preservação do Mobilidade & patrimônio em Brasília
_como aliar a preservação do patrimônio histórico de Brasília à melhoria na promoção da mobilidade urbana?
//Filipe Pireneus Conde
filipe pireneus conde
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo | FAU Universidade de BrasĂlia | UnB 1Âş semestre de 2017
preservação do Mobilidade & patrimônio em Brasília
_como aliar a preservação do patrimônio histórico de Brasília à melhoria na promoção da mobilidade urbana?
Autor Filipe Oliveira Conde Professora orientadora Maria do Carmo de Lima Bezerra
//Sumário //Apresentação 1 //Introdução: contexto e problemática
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//Capítulo 1: Mobilidade — identificação dos fatores da forma urbana que facilitam a mobilidade
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//Capítulo 2: Características da identidade de Brasília, cidade Modernista
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//Capítulo 3: A mobilidade na concepção do projeto urbanístico de Brasília
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//Capítulo 4: Preservação e patrimônio em Brasília
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_4.1. A preservação de uma obra modernista: contradição de conceitos
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_4.2. Brasília Revisitada: a afirmação do patrimônio
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_4.3. O tombamento de Brasília — identidade, legislação e evolução
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//Capítulo 5: Brasília revisitada novamente — possibilidades de intervenção para facilitar a mobilidade garantindo a preservação _5.1. Avaliação em relação ao uso do solo
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_5.2. Avaliação em relação à densidade
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_5.3. Avaliação em relação à conectividade/acessibilidade
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_5.4. Avaliação em relação à continuidade
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//Considerações finais
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//Bibliografia
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//Capas 55
//abstract On approaching mobility in the Brazilian capital, it is necessary to understand its acknowledgement as a listed world heritage site. This essay seeks to build an understanding around the modernist characteristics of the city, which form its identity, to then start a debate upon the concept of heritage and its conservation in the scope of cities, in order to propose solutions to a possible urban review in favor of urban mobility.
//resumo Com o intuito de se discutir a mobilidade na capital brasileira, faz-se necessário perpassar por seu reconhecimento enquanto patrimônio histórico e cultural da humanidade. O ensaio então busca criar uma compreensão acerca das características modernistas da cidade, que são formadoras de sua identidade, para então gerar uma discussão acerca da noção de patrimônio e sua preservação, no âmbito das cidades, com o intuito de propor soluções a uma possível revisão urbana em prol da mobilidade.
//Apresentação Conhecendo e vivendo em diferentes cidades, hoje as enxergo como o palco que promove o encontro das pessoas que nelas vivem. Sendo assim, vejo a essência do viver urbano traduzir-se no movimento dessas pessoas no espaço, e considero que os estudos da mobilidade urbana permitem que compreendamos a complexidade das relações envolvidas neste âmbito. Essa temática — a mobilidade urbana — será tratada neste ensaio sob uma ótica singular, pois tem como objeto de estudo uma cidade patrimônio da humanidade. O ensaio, então, se divide nessas duas abordagens, a mobilidade e a preservação do patrimônio urbanístico, para depois mesclá-las, buscando identificar como possibilitar intervenções que promovam a mobilidade sem que sejam postos em risco os elementos essenciais que garantem a preservação da cidade. Essa abordagem possui como desafio adicional o fato de procurar enfatizar os aspectos da forma urbana da cidade que contribuem para a mobilidade, não entrando no campo da gestão de transportes, onde reside a maioria dos estudos sobre o tema. Este ensaio tem como objetivo discutir as possibilidades de intervenção no projeto urbanístico de Brasília, garantindo a integridade de sua preservação e facilitando a mobilidade urbana.
O foco do estudo se dá na tangência entre a mobilidade e a cidade moderna tombada, sendo necessário compreender as diferentes áreas de estudo envolvidas: os elementos configuracionais facilitadores da mobilidade, as características formadoras da identidade da cidade moderna que fundamentam a preservação do patrimônio histórico do conjunto urbanístico de Brasília e a própria preservação do ponto de vista das normas legais.
de Pós-Graduação da FAUUnB, intitulado “A contribuição dos elementos da forma urbana na construção da mobilidade Sustentável”, (2015). Enquanto o primeiro desenvolve um estudo da presença desses aspectos — forma urbana e mobilidade — em Brasília para contrapor as normas de tombamento, o outro se atém aos elementos de configuração da morfologia urbana na escala do pedestre que, por sua vez, possuem menor interferência no tombamento patrimonial da cidade.
Esses conhecimentos serão adquiridos a partir de revisão bibliográfica e propiciarão a avaliação sobre o nível de intervenção possível a ser recomendado para melhoria da mobilidade em Brasília, sem por em risco as características formadoras da sua identidade.
Assim, os objetivos de 1 a 3 constituemse em uma sistematização de pesquisas realizadas sobre os elementos da forma intervenientes na mobilidade e sobre as condições limitantes do patrocínio a sua obtenção.
Foram definidos os seguintes objetivos direcionadores do estudo:
O objetivo 4 dará continuidade aos trabalhos referidos na medida que procurará não só destacar as normas de patrimônio existentes mas o que de fato constitui uma alteração significativa da identidade modernista, merecedora do título de patrimônio histórico e cultural da humanidade. A premissa é que as normas são mais rígidas do que de fato pedem as características a serem preservadas e portanto seria possível um maior grau de liberdade nas intervenções facilitadoras da mobilidade no que tange a forma urbana.
1. Entender os elementos da forma urbana que promovem a mobilidade; 2. Identificar as características da cidade modernista; 3. Compreender os objetivos e o marco legal que regem o tombamento de Brasília; 4. Identificar possibilidades de intervenção promotoras da mobilidade que ajam em consenso com os princípios que garantem a preservação do patrimônio histórico. Como metodologia, o ensaio complementa e se baseia em informações levantadas por outros dois trabalhos, desenvolvidos também para a disciplina de Ensaio Teórico, sob orientação da professora Maria do Carmo, sendo eles “Mobilidade e Brasília”, de Marina Madsen (2015) e “A Escala do Pedestre de Brasília”, de Marco de Mello (2016). Os dois trabalhos consideram os aspectos da configuração urbana que facilitam a mobilidade nas cidades e tomando por principal referência a tese de doutorado de Caroline Gentil, do Programa
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//Introdução: contexto e problemática Com o intuito de solucionar problemas decorrentes da urbanização acelerada e desordenada das cidades industriais, e após várias investidas de diversos pensadores do urbanismo ao longo dos séculos XVIII e XIX surge uma nova forma de se organizar o meio urbano, nascendo a cidade modernista, que repensa a lógica do espaço urbano. Naturalmente, desenvolvem-se estudos acerca do traçado e do ordenamento urbano e suas influências sobre a cidade e, anos após a construção das cidades modernistas, já no segundo quarto do século XX, são feitas releituras à sua lógica original e à eficiência de seu desenho na busca de se atingir seus objetivos iniciais e, dentre esses estudos, o tema da mobilidade. O palco para o desenvolvimento do estudo será a cidade de Brasília (Distrito Federal, Brasil), pois ela nos oferece um ambiente particular: uma grande área de preservação urbanística resultante de seu reconhecimento frente à UNESCO como patrimônio da humanidade. Brasília, como cidade modernista, fundada em 1960, tem no seu traçado urbano a maior expressão de sua identidade. Sendo assim, com o reconhecimento da cidade como patrimônio, diversos esforços são executados para a manutenção de seu caráter modernista, que se expressa especialmente nas suas formas urbanas. Muitos dos aspectos relativos à mobilidade estão ligados à gestão do sistema
de transportes, mas uma considerável influência é exercida pela forma urbana, sendo essa a que apresenta maior dificuldade de alteração, em especial para o estudo de caso, por envolver a questão do tombamento da cidade modernista. A cidade é dispersa no seu território, com grandes áreas vazias, o que torna o caminhar uma tarefa árdua — em especial sob o sol. Com um sistema de vias que lhe é característico, e pela prioridade ao uso de automóvel, muitas vezes não há calçadas para alguns trajetos, sendo o pedestre negligenciado. O transporte público torna-se custoso, pelas grandes distâncias a vencer. Dividida em eixos paralelos, às vezes torna-se difícil a circulação no sentido transversal. Brasília encontra-se, então, num impasse: priorizar a mobilidade em detrimento da própria legislação de preservação histórica ou manter o patrimônio reduzindo avanços no desenvolvimento da mobilidade. Entretanto, entende-se que há uma complexidade maior abrangendo os dois temas, e este ensaio se realiza com a pretensão de compreender os dois universos temáticos que coexistem na capital federal e de buscar iluminar questões fundamentais como: quais são as formas de se promover a mobilidade pelo desenho urbano e como se preservar um patrimônio urbanístico sem que haja impedimento na evolução e na dinâmica da cidade.
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//Capítulo 1: Mobilidade — identificação dos fatores da forma urbana que facilitam a mobilidade “Mobilidade urbana: condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano” — Lei Federal de Mobilidade Urbana | Lei 12.587/2012
Fundamentada em princípios de acessibilidade universal, desenvolvimento sustentável, equidade de uso e acesso ao espaço público, eficiência de serviços, dentre outros, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) institui diretrizes para a conceituação da mobilidade. Com o objetivo de garantir o acesso universal à cidade, a Política busca fomentar a efetividade da gestão do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana, entendido pelo “conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garante os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município”1.
1. Art. 2º da Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012.
A partir dos princípios básicos, foram criadas diretrizes para a PNMU, sendo elas a integração com as políticas do desenvolvimento urbano (compreendidas como a infraestrutura de saneamento e as políticas de uso do solo), o fomento ao desenvolvimento de projetos integradores e estruturadores do território urbano, a prioridade dos meios de transporte públicos coletivos sobre os individuais e os privados, a prioridade do deslocamento não-motorizado sobre os demais, a busca pela integração entre os modais e sistemas, o incentivo ao desenvolvimento de tecnologias não prejudiciais ao meio ambiente, bem como a mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos. Depreende-se então que a mobilidade se constitui pelo deslocamento — seus modais e sua gestão — e pela estrutura de transporte, que devem ser conjuntamente geridos, e entendidos como influências mútuas. Apesar de um crescente interesse no desenvolvimento de políticas na temática, percebe-se uma maior importância direcionada ao seu caráter
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sistemático e gerencial, com uma deficiência no estudo da forma urbana enquanto potencial em proporcionar a mobilidade. Ao mesmo passo que ter uma frota de veículos coletivos menos poluentes é de suma importância à sustentabilidade do sistema, uma cidade que se organiza de tal forma a consolidar rotas mais eficientes também o é. A possibilidade de integração de tarifas entre diferentes modais, ou de transporte de bicicletas nos ônibus e metrôs torna-se ainda mais interessante quando as ciclovias são bem estruturadas, permitindo um eficiente transporte não motorizado de curta distância complementado por um motorizado de longa distância, ou então quando há calçadas fazendo as ligações entre os diferentes pontos de paradas do transporte público, e estas são seguras e dotadas de infraestrutura. Na classificação entre cidades dispersas ou compactas, Brasília, como cidade modernista, aproxima-se mais da primeira, sendo a segunda de onde são retirados, de maneira geral, os elementos que influenciam positivamente na mobilidade. O presente trabalho busca trazer à discussão das influências exercidas na mobilidade justamente estes elementos, por considerar que estão mais intimamente ligados com o desenho do espaço que, por sua vez, está presente desde o a origem de Brasília, objeto de estudo. Em A Contribuição dos Elementos da Forma Urbana, Caroline Gentil faz uma extensa análise bibliográfica para chegar a quatro fatores relacionados à forma das cidades, que têm influência na mobilidade urbana: densidade, características do uso do solo urbano, continuidade e características do desenho urbano — conectividade e acessibilidade. Serão exatamente estes fatores encontrados por Gentil que serão utilizados para a análise da mobilidade urbana de Brasília em comparação às suas características identitárias.
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Fatores relacionados à forma urbana x influência na mobilidade urbana sustentável Densidade
Continuidade
A densidade é influenciada pelos índices urbanísticos (taxa de ocupação, índices de aproveitamento, gabarito). Criar uma diversidade urbana de tipologia de habitações, diferentes densidades, tamanhos diferentes de terrenos públicos ou privados implicaria em menor segregação espacial e poderia também influenciar a mobilidade urbana porque é um atributo condicionador da densidade. O aumento da densidade pode auxiliar na redução das viagens por veículo se planejado junto com a oferta de transporte público e uso misto do solo. Baixa densidade impacta de forma negativa a mobilidade urbana.
Tendência à limitação do processo de expansão urbana. Crescimento próximo ao centro. Preenchimento dos espaços vazios, requalificação dos espaços degradados. A expansão das cidades é um fator que gera mais viagens de automóvel.
Uso do solo
uso misto, multifuncionalidade Promover o uso misto e maior proximidade entre as diversas atividades pode reduzir a necessidade do automóvel e facilitar na construção de uma rede transporte mais eficiente e integrada. Uso singular ou zoneamento rígido pode gerar mais deslocamentos no tecido urbano, impactando de maneira negativa na mobilidade urbana.
Desenho urbano
conectividade/acessibilidade As características do desenho urbano podem auxiliar na redução de viagens de automóvel, principalmente se o mesmo permitir articulação com o serviço de transporte público por meio de melhor conectividade e acessibilidade entre ruas, calçadas e ciclovias. Dependendo da concepção do desenho urbano, pode-se atribuir em determinadas áreas urbanas uma maior ou menor utilização para os transportes não-motorizados ou transporte público, reduzindo a dependência do automóvel.
Fonte: GENTIL, 2015. (modificado)
//Capítulo 2: Características da identidade de Brasília, cidade Modernista “O sol se levanta. O sol se levanta de novo. A jornada solar de 24 horas ritma a atividade dos homens” — Retirado de A Carta de Atenas2
Assim começa a Carta de Atenas, documento elaborado em 1933 em decorrência do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna — CIAM. Em 1928, um grupo de arquitetos, liderados por Le Corbusier, cria o CIAM, que teve dez edições, realizadas entre 1928 e 1956, e visava à discussão de temas arquitetônicos contemporâneos, buscando formular soluções criativas a problemas vigentes, seguindo os princípios modernistas, e expô-las ao público. Em 1933, no IV CIAM, que é realizado a bordo do navio Patris II, com o itinerário Marselha-Atenas (daí o nome dado à Carta elaborada em decorrência do encontro),
2. A Carta de Atenas, São Paulo: HUCITEC: EDUSP, 1993.
os participantes analisaram 33 cidades, gerando uma série de postulados acerca de sua presente situação bem como elaborando propostas para sua adequação às novas visões de planejamento urbano discutidas. Os resultados obtidos com o encontro foram reunidos num documento que ficou conhecido por Carta de Atenas. Entretanto, esse documento é encontrado em diferentes versões, sendo a que rogou mais conhecida aquela organizada por Le Corbusier, e publicada em 1941, com conteúdo de autoria própria mesclado ao do Congresso. A discussão suscitada no documento gira em torno do urbanismo funcional, que elenca três funções primordiais às quais todo centro urbano deve servir: habitar, trabalhar e recrearse; e como meios para tal, entende-se como necessário organizar a circulação, a ocupação do solo e a legislação. O texto divide-se, assim, com três tópicos relativos às funções da cidade, acrescidos da discussão acerca da circulação e do patrimônio histórico das cidades.
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“Brasília é a expressão de um determinado conceito urbanístico, tem filiação certa, não é uma cidade bastarda” — Brasília Revisitada
Brasília, projetada em 1957 por Lúcio Costa, tem traços claros de influência da Carta de Atenas, de 1933/1941, e se põe como uma das poucas cidades onde se tenha experimentado de forma tão visível os conceitos sugeridos pela doutrina modernista. A cidade funcional que se divide em habitação, lazer e trabalho, vê em Brasília sua própria imagem: ao longo do Eixo-Rodoviário, habitação, do Eixo-Monumental, trabalho e, no cruzamento dos eixos, lazer. A Carta de Atenas faz críticas às cidades da época: muito densas, desprovidas de verde e de organização racional, com habitações insalubres. “Nos setores urbanos congestionados, as condições de habitação são nefastas pela falta de espaço suficiente destinado à moradia, pela falta de superfícies verdes disponíveis, pela falta, enfim, de conservação das construções” — Carta de Atenas
Postula-se a inserção do verde no contexto habitacional, e pensa-se os edifícios segundo ideais higiênicos: são elementos básicos a todos o sol, a vegetação e o espaço. Em vista das novas tecnologias, estimula-se a morada em edificações em altura, mas com densidades admissíveis — calcula-se uma população de 250 a 300 habitantes por hectare, números muito próximos aos das superquadras brasilienses3. Com edifícios
em altura, espaçados, permeados por verde e ainda com a compreensão do espaço em seu viés morfológico — “o espaço é de ordem psicofisiológica [...][onde] a estreiteza das ruas [...] criam uma atmosfera tão insalubre para o corpo quanto deprimente para o espírito” —, nascem as superquadras. “As construções elevadas erguidas a grande distância umas das outras devem liberar o solo para amplas superfícies verdes” — Carta de Atenas
Voltando-se para a premissa básica de que a vida na cidade se organiza segundo as funções do indivíduo, é necessário que este tenha facilidade de se deslocar de sua moradia para seu trabalho e lazer e assim de volta à moradia. Determina-se que haja construções de uso coletivo próximas as unidades habitacionais, que seriam como o “prolongamento” da própria residência, servindo a diversas necessidades. Surge a ideia das entrequadras, bem como das unidades de vizinhança, abrigando, cada qual uma escola, igreja, clube... “As novas superfícies verdes, que se terá intimamente amalgamado aos volumes edificados e inserido nos setores habitacionais, não terão por função única o embelezamento da cidade. Elas deverão, antes de mais nada, ter um papel útil, e as instalações de caráter coletivo ocuparão seus gramados: creches, organizações pré ou pós-escolares, círculos juvenis, centros de entretenimento intelectual ou de cultura física, salas de leitura ou de jogos, pistas de corrida ou piscinas ao ar livre” — Carta de Atenas
3. Num cálculo simplificado, para 11 edificações (seis andares com oito apartamentos cada) por superquadra, cada qual com 7 hectares, tem-se, para 3 e 4 habitantes/unidade, respectivamente, 226,3 e 301,7 hab/ha.
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Estimula-se que os locais de trabalho tenham sua distância à moradia reduzida ao mínimo, mas que as zonas industriais
mantenham-se em áreas próprias à atividade industrial, formando cidades lineares, em conjunção com os sistemas de escoamento dos produtos e recebimento das matériasprimas, representado em Brasília, pelo Setor de Indústrias e Abastecimento — SIA, ao longo da linha férrea, a qual tem por parada final a rodoferroviária, integrada ao traçado dos eixos; são estes respectivamente a cidade industrial linear e uma forma de conexão das áreas da cidade. “O centro de negócios deve encontrar-se na confluência das vias de circulação que servem ao mesmo tempo os setores de habitação, os setores da indústria e do artesanato, as administrações públicas, alguns hotéis e diversas estações [de transporte]” — Carta de Atenas
No postulado citado acima, é claro o ordenamento básico de Brasília: na confluência das vias que servem à habitação — o eixo rodoviário —, à indústria, à administração pública e alguns hotéis — o eixo monumental, encontra-se o centro de negócios — setores bancário-comercial e de escritórios para profissões liberais, representações e empresas4. “As horas de liberdade cotidiana devem ser passadas nas proximidades da moradia” — Carta de Atenas
O verde, além de adentrar o cenário urbano, passaria de paisagem a elemento constituinte da vida urbana, como palco da circulação entre curtas distâncias e como área para o desenvolvimento de atividades. Distâncias maiores deixam de ser vistas
como um empecilho à vida cotidiana, dada à presença dos automóveis, sendo vencidas por vias que integrariam todo um novo sistema de circulação. “O princípio da circulação urbana e suburbana deve ser revisto. Deve ser feita uma classificação das velocidades disponíveis. [...] O zoneamento, levando em consideração as funções-chave — habitar, trabalhar, recrear-se — ordenará o território urbano. A circulação, esta quarta função, só deve ter um objetivo: estabelecer uma comunicação proveitosa entre as outras três” — Carta de Atenas
Mesclam-se, assim, as funções urbanas. Percebe-se a necessidade de ter-se separados os locais do trabalho, da moradia e do lazer, especialmente pelas peculiaridades técnicas das quais cada um necessita, mas há um entendimento da importância da costura entre eles. “A circulação moderna é uma operação das mais complexas. [...] Cada uma dessas atividades [automóveis, pedestres, ônibus, bondes, caminhões] exigiria uma pista particular [...]” — Carta de Atenas
Em contraponto às cidades medievais, com muralhas, nas quais as ruas são estreitas e sinuosas, e para as quais se voltam as residências, ladeando umas às outras e ocupando todo o comprimento da rua, a Carta de Atenas elabora uma nova visão sobre circulação. Recomenda-se o não alinhamento direto das habitações às vias, para garantir melhor insolação a estas.
4. Como descritos no Memorial do Plano Piloto, por Lúcio Costa.
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“Sendo as vias de trânsito ou de grande circulação bem diferenciadas das vias de circulação miúda, não terão nenhuma razão para se aproximarem das construções públicas ou privadas. Será bom que elas sejam ladeadas por espessas cortinas de vegetação” — Carta de Atenas
As calçadas, que surgiram como elemento de segurança, para retirar os pedestres dos leitos carroçáveis das vias, não mais seriam suficientes para garantir a segurança destes frente à ameaça oferecida pelo aumento da velocidade dos automóveis, devendo se separar das vias automotivas, adequando-se cada qual à sua escala e velocidade característica. Daí também se postula a diferenciação das vias não só entre automotivas e de pedestres, mas as ruas residenciais, de passeio, de trânsito e principais. Em Brasília, as vias internas às superquadras, L1 e W1 — interrompidas para impedir intensificação do fluxo —, vias comerciais, eixinhos e eixos: todas seguem uma lógica de diferenciação de escalas de trânsito. “As ruas, ao invés de serem entregues a tudo e a todos, deverão, conforme sua categoria, ter regimes diferentes. As ruas residenciais e as áreas destinadas aos usos coletivos exigem uma atmosfera particular. Para permitir às moradias e a seus ‘prolongamentos’ usufruir da calma e da paz que lhes são necessárias, os veículos mecânicos serão canalizados para circuitos especiais” — Carta de Atenas
Comenta-se acerca das distâncias entre os cruzamentos, que se muito curtas — como eram nas cidades da época — não permitem
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aos veículos que atinjam velocidade para sua eficiência; estima-se uma distância entre 200 e 400 metros para a separação dos acessos. As superquadras têm o comprimento de cerca de 250 metros, sendo os eixos de acesso a elas (eixos L e W, vias L1 e W1) interrompidos regularmente em intervalos de semelhante distância, com intervalos semelhantes na W3, superiores na L2 e semelhantes a estes no Eixo-Rodoviário (entre retornos). “Os cruzamentos de tráfego intenso serão organizados em circulação contínua por meio de mudanças de níveis” — Carta de Atenas
O traçado viário de Brasília pauta-se no traçado rodoviário, com alças de acesso, retornos, binários, hierarquia rígida de vias, cruzamentos com mudanças de nível, rotatórias. Tal opção surge como solução para segmentar o tráfego em escalas, ideia expressa em diversas ocasiões na Carta de Atenas. Brasília é criada como um dos mais fiéis exemplos aos ideais do urbanismo modernista, mas a cidade possui características próprias de sua identidade modernista, são concretizações de postulados teóricos, alguns com um modo à brasileira talvez. A seguir, foi elaborado um quadro comparativo, elencando as principais características da identidade do urbanismo modernista, segundo especialmente a Carta de Atenas, e fazendo um paralelo da forma como estão presentes — ou não — essas características no projeto de Brasília.
Carta de Atenas x Plano Piloto de Brasília CA: Características das cidades Modernistas, segundo a Carta de Atenas PP: Presença das características Modernistas na concepção de Brasília
CA: As cidades devem servir a três funções: habitar, trabalhar e recrear-se; sendo acrescida uma quarta — o circular —, cuja função é a comunicação entre todas as outras; PP: Brasília organiza-se em quatro escalas: residencial [habitar], monumental [trabalhar], gregária e bucólica [ambas, recrear-se], com um complexo sistema viário que as une;
CA: As funções habitação e trabalho devem ter sua distância reduzida ao mínimo; PP: Não havendo a expansão desigual da cidade, com a criação de cidadessatélites dependentes do Plano Piloto, seria possível viver e trabalhar numa região compreendida de ponta a ponta por um eixo de menos de 20 km, com as zonas de trabalho localizadas ao centro;
CA: As habitações devem ser servidas (em sua proximidade) por edificações de uso coletivo; PP: Para cada unidade de vizinhança, além dos comércios, foram criadas as entrequadras, responsáveis por abrigar os usos coletivos;
CA: Deve ser estabelecido um programa de entretenimento abrangente, com parques, praças, sejam urbanos ou em meio à natureza, para a prática de esportes, manifestações culturais ou reflexão; PP: Além das entrequadras, e as praças no interior de cada superquadra, estão presentes no projeto da capital áreas para o jardim zoológico, jardim botânico, hípica, camping e, sobretudo, a criação de um grande lago;
CA: Os valores arquitetônicos (do edifício ou urbanos) devem ser salvaguardados, considerando-se a mutabilidade da cidade e necessidade da promoção de justiça social;
CA: O verde deve estar presente entre as edificações, saindo do campo para fazer parte da vida urbana, não tendo mais apenas função estética;
PP: Desde a implantação de Brasília a preservação de seu conjunto urbanístico enquanto valor histórico é garantida por lei5, com o impedimento de se modificar a cidade sem aprovação legal; e desde então a cidade construiu uma extensa história em volta de sua patrimonialização.
PP: Garantidos pela preservação da escala bucólica, os amplos espaços verdes fazem de Brasília uma cidade-parque;
CA: Devem-se buscar condições de higiene adequadas para a moradia, garantindo a presença do sol, do ar puro e de espaço; PP: Com edifícios elevados sobre pilotis e espaçados entre si, busca-se a presença dos três elementos [sol, ar puro, espaço] na unidade habitacional;
CA: As habitações não serão alinhadas às vias, estando dispostas no terreno entremeadas por áreas verdes; PP: Os blocos nas superquadras estão conjugados a bolsões de estacionamento e não a vias de circulação propriamente ditas;
5. Artigo 38 da Lei 3.751, de 13 de abril de 1960: Qualquer alteração no plano-piloto, a que obedece a urbanização de Brasília, depende de autorização em lei federal.
CA: Estimula-se a moradia em edifícios em altura, cuja densidade deve ser calculada para otimizar o uso do espaço e a salubridade da residência; PP: As superquadras foram todas pensadas para abrigar exclusivamente edificações em altura, com densidades médias de 200 a 300 hab/ha;
CA: A circulação dar-se-á segundo uma classificação hierárquica, considerando as características de cada via; PP: Cria-se um complexo sistema hierárquico de eixos, por exemplo: temse o Eixo Rodoviário como via de tráfego rápido, que escoa para os Eixos L e W, que por sua vez se conectam, por meio de vias comerciais, às vias locais L1 e W1, que distribuem o tráfego às superquadras;
Carta de Atenas x Plano Piloto de Brasília
CA: Pedestres e automóveis terão seus caminhos separados, que serão diferentes, conforme suas necessidades; PP: Não foram construídas calçadas ao longo dos principais eixos de alta velocidade, evitando o contato dos pedestres com os automóveis, ao mesmo passo que o trânsito dos pedestres nas unidades de vizinhança se dá de forma mais intuitiva e interligada;
CA: O automóvel deve ser considerado segundo suas características mecânicas para a organização das vias automotivas: menos interrupções e cruzamentos para que possam atingir a velocidade adequada; PP: Os eixos são interligados às vias locais por ligações em desnível, a fim de evitar cruzamentos e semáforos, havendo também uma grande proliferação de binários, retornos e rotatórias;
CA: Na confluência das vias que servem a todos os outros setores, estarão os centros de negócios; PP: Os setores centrais localizam-se exatamente no cruzamento dos eixos Rodoviário e Monumental, que levam às residências e palácios de governo;
CA: Deve-se ter como unidade básica para o planejamento o homem; PP: Critica-se Brasília por ter, como unidade básica o veículo, embora estivesse constante no memorial escrito por Lúcio Costa que nas unidades de vizinhança seria possível suprir todas as demandas cotidianas e realizar todos os trajetos a pé;
CA: As zonas industriais devem organizarse ao longo dos sistemas de escoamento, formando cidades lineares, afastadas das áreas residenciais por faixa de arborização; PP: Cria-se o Setor de Indústrias e Abastecimento ao longo da via férrea, separados da área residencial pelo jardim botânico e jardim zoológico;
CA: As cidades devem impedir a especulação imobiliária, pois esta devassa com a organização urbana, seguindo uma ordem própria, a do mercado; PP: Cria-se o mecanismo da venda das projeções ao invés de lotes nas superquadras, como forma de garantir que fossem seguidas as diretrizes construtivas estabelecidas, são adquiridas terras pelo governo, como forma de mitigar a expansão urbana descontrolada; entretanto, a pressão imobiliária na cidade é constante e incessante;
//Capítulo 3: A mobilidade na concepção do projeto urbanístico de Brasília “Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzandose em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz” — Memorial do Plano Piloto
Segundo o próprio Lúcio Costa, Brasília nasce do cruzamento dos eixos. Desde o primeiro esboço vê-se a importância que o traçado urbano já teria sobre a cidade. Os eixos estariam intimamente ligados à organização da vida na nova capital. Quando Lúcio Costa assume que “houve o propósito de aplicar os princípios francos da técnica rodoviária [...] conferindo-se ao eixo [...] a função circulatória tronco, com pistas centrais de velocidade e pistas laterais para o tráfego local” ou então que “para o tráfego de caminhões estabeleceuse um sistema secundário autônomo” e que “ao fundo das quadras estende-se a via de
serviço” percebe-se o desejo de se aplicar a técnica das setorizações também para as vias, ideia já consumada na Carta de Atenas. Nos comércios locais, se disporiam as lojas voltadas às residências, com acesso privativo dos pedestres, restando aos automóveis, os estacionamentos voltados à porção posterior, de serviço, das lojas. Lúcio Costa entendia o automóvel como domesticado do homem, devendo ser inquestionavelmente assumido praticamente como meio de transporte primário, mas deixa claro também que ele não partilha do mesmo espaço do pedestre, por não se enquadrarem na mesma escala e, em especial, por não possuírem a mesma velocidade. “Ele só se ‘desumaniza’, readquirindo vis-à-vis do pedestre, feição ameaçadora e hostil quando incorporado à massa anônima do tráfego” — Memorial do Plano Piloto
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Para o projeto das superquadras, se estabelece como princípio a separação entre automóveis e pedestres, especialmente por uma diferença entre as escalas de cada transporte, quando se discorre sobre a segregação dos dois sistemas “mormente o acesso à escola primária e às comodidades existentes no interior de cada quadra”, fica subentendido a acesso à tais estruturas como local, peatonal. Estando o veículo, na situação da quadra, apenas se dirigindo ao estacionamento, como ponto de parada. Cria-se uma rede autônoma ao pedestre, não, porém, de menor importância à do automóvel. Se levarmos em consideração a concepção das unidades de vizinhança, nas quais os cidadãos da nova capital poderiam relacionarse e usufruir do lazer e comércio local sem a necessidade de deslocar-se por grandes distâncias, podendo realizar os trajetos todos a pé, nessa escala local, seria o pedestre o ente prioritário para questões de planejamento. Se, ao cruzar de uma asa à outra, os eixos têm trânsito desimpedido, nas superquadras a facilidade de mobilidade deve recair ao pedestre. “Há então que separá-los, mas sem perder de vista que em determinadas condições e para comodidade recíproca, a coexistência se impõe” — Memorial do Plano Piloto
Lúcio Costa incrementa, ainda sobre a separação automóvel-pedestre que, ao considerarmos que automóveis e pessoas não compartilham da mesma escala e costumam, no projeto, ter seus caminhos separados, à medida que sua coexistência for necessária, não basta apenas juntá-los espacialmente, tal qual estavam quando separados, em especial quando se admite que o veículo assuma feição “ameaçadora e hostil” frente ao pedestre, seria necessário que de sua junção viessem a se portar diferentemente.
A Carta de Atenas disserta sobre uma nova maneira de viver, e teoriza sobre como deveriam ser as cidades para tal, assim também o faz o Memorial do Plano Piloto, um passo à frente, pois tinha função de efetivar a construção da tal cidade, que daria espaço à nova maneira de viver. “[...] a cidade é fantástica vista dos aviões, mas uma porcaria ao nível do chão” — Jan Gehl6
Jan Gehl, urbanista dinamarquês cunhou a expressão Síndrome de Brasília, se referindo às cidades que priorizam as grandes escalas de se olhar o urbanismo. Gehl divide a cidade em três escalas: a do planejamento da cidade, do planejamento do lote, e a escala das pessoas — que, segundo o urbanista, é a que importa, é a partir da qual as pessoas se relacionam com a cidade. A Síndrome de Brasília acontece quando as duas primeiras escalas são bem resolvidas, sendo a última é deixada de lado. Gehl vê em Brasília problemas oriundos da natureza formal da organização do espaço: espaços muito grandes, ruas muito largas, passagens longas e retas... Mas apesar disso, a cidade carece de estruturas na menor escala. “As grandes áreas verdes são atravessadas por caminhos abertos pela passagem das pessoas, mostrando como os habitantes protestaram, com os pés, contra o rígido plano formal da cidade” — Cidades Para Pessoas
Uma das visões mais características de Brasília são suas grandes áreas verdes, gramadas, atravessadas por dezenas de caminhos de grama pisoteada, ou então as
6. Palestra proferida no Center for Architecture em Nova York, em 15 de setembro de 2010.
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diversas calçadas que vão sendo construídas em cima destes caminhos, em comparação às rígidas calçadas ortogonais que levam nada a lugar nenhum na cidade. Brasília é uma cidade que, para o pedestre, não parece planejada: as calçadas são muitas vezes inexistentes — como reflexo, talvez, da ideia de se separar o pedestre do automóvel, ou apenas da falta de um planejamento voltado para a pequena escala, a do pedestre —, outras tantas, esburacadas, ou quebradas pelas raízes de árvores — como uma cidade tão dispersa, pode ter tanta competição por um mesmo espaço? Há casos de ciclovias que foram construídas em cima de calçadas e que, por sua vez, competem pelo espaço com raízes ou vagas de estacionamento. A cidade nasce dos eixos e neles vê o seu desenvolvimento. É clara a organização das áreas residenciais em torno do eixo norte-sul, e das áreas centrais em torno do eixo lesteoeste, mas as conexões leste-oeste para as áreas residenciais e norte-sul para as áreas centrais se dão de forma completamente segmentada. Recentemente a malha cicloviária da cidade foi expandida tornando-a uma das cidades com mais quilômetros de ciclovias do país, mas não se vê pelas ruas semáforos para ciclistas e, muitas vezes, as conexões dessa via com as automotivas nem sequer é sinalizada aos motoristas. Pedestres comumente se vêm obrigados a transitar entre os carros estacionados para se chegar às calçadas: é clara a preferência dada aos automóveis particulares frente aos outros modais. Richard Rogers, arquiteto britânico, aponta como patologias de uma mobilidade ineficiente o aumento dos congestionamentos, relações conflituosas entre os modais, expansão de vias com perda de espaços públicos, aumento do número de estacionamentos... Percebe-se então a presença de uma mobilidade deficiente na cidade.
Para a discussão da mobilidade é interessante analisar Brasília segundo os aspectos da forma urbana facilitadores da mobilidade, levantados por Gentil (2015) e sintetizados no capítulo 1. A seguir [próxima página], tem-se um quadro relacionando estes fatores à situação de Brasília, incorporado do trabalho realizado por Madsen (2015) citado anteriormente. Verifica-se uma baixa densidade na região do Plano Piloto, que é reforçada pela descontinuidade do tecido urbano, características ambas apoiadas pela legislação de tombamento. Devido à descontinuidade, há largas distâncias a serem vencidas e vastos espaços abertos, o que causou, na esfera do desenho urbano — em especial na escala do transporte nãomotorizado —, uma baixa conectividade do sistema viário. Para a escala do automóvel, tal decisão foi planejada na lógica da engenharia de tráfego, marcada pela diferenciação de vias em função das velocidades e usos, com o princípio de que as vias de tráfego rápido não devem possuir interrupções frequentes, sendo o trânsito local distribuído pelas vias coletoras, que fazem a conexão às vias arteriais. Entretanto, para os pedestres, vê-se uma falta de preocupação com o desenho de suas vias, estando em geral subordinadas às vias automotivas, fazendo com que estes tenham que percorrer grandes distâncias ainda que não fosse necessário, o que leva à existência de caminhos informais abertos em meio aos gramados. Devido à falta de planejamento específico, os trajetos dos pedestres frequentemente tornam-se inseguros, em vários aspectos: falta de mobiliário urbano, tipos de pavimento às vezes inadequado, falta de conexão, descontinuidade, tudo marcado pela baixa presença de transeuntes. Esses aspectos conformam o que é denominado por Gentil (2015) como falta de conectividade, o
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que foi detalhado por Mello (2015) para a área de uma superquadra. Brasília tem pautada em sua concepção a setorização das escalas modernistas da vida urbana: habitar, trabalhar, recrear. Tal setorização dificulta a mistura de usos do solo, que por sua vez implica em usos pendulares da cidade, ficando a maioria das regiões deserta durante algum período do dia. De maneira exemplificativa, as regiões centrais, com os setores bancários, comerciais ou de autarquias, no período da noite possuem
Acessibilidade A concepção do desenho urbano pode influir em uma maior ou menor utilização dos transportes não-motorizados ou transporte público, reduzindo a dependência do automóvel, desde que sejam trabalhadas adequadamente a conectividade e acessibilidade entre ruas, calçadas e ciclovias.
No Plano Piloto: As características relativas à conectividade e acessibilidade, intrínsecas ao desenho urbano, parecem não ter sido formalmente projetadas na escala humana, definida por Gehl (2013); Pedestres e ciclistas prejudicados; Características passíveis de intervenções com potenciais facilitadores da promoção da mobilidade urbana, uma vez que não entram em documentação de tombamento.
circulação quase nula, salvo nos arredores de alguns poucos pontos comerciais que funcionam no contra turno. O mesmo acontece na Esplanada dos Ministérios e próximo aos palácios na ponta oeste do Eixo Monumental, exceto que nesses setores a presença de pontos comerciais é ainda menor, restrita praticamente ao comércio informal. Diante dessas considerações que levam à inibição do pedestre, fica exposta uma contradição: como uma cidade com tão vastos espaços livres, que tem em sua concepção o
Continuidade Tendência à limitação do processo de expansão urbana por se tratar de um fator que gera maior número de viagens de automóvel; Crescimento próximo ao centro; Preenchimento dos espaços vazios, requalificação dos espaços degradados.
No Plano Piloto: Desenho urbano com contornos bem definidos, de maneira que não possibilita o crescimento da cidade como extensão de sua malha; Desenvolvimento satélite;
de
cidades-
Escala bucólica tombada (Portaria nº 3147) para a manutenção do caráter de cidade-parque;
7. Portaria nº 314 do IPHAN, de 1992.
discurso da liberdade de circular, que foi uma das ideias inovadoras no campo do urbanismo trazidas pela cidade, ter uma mobilidade tão dificultada pela mesma configuração que foi apresentada como sua facilitadora? É possível revisitar, hoje, essa configuração para que se busque alcançar as ideias originais? Por que não se implementam técnicas como shared spaces para ruas de menor circulação, ou de traffic calming para áreas escolares ou de trânsito local, por que não são feitos estudos locais para as
superquadras segundo suas necessidades específicas? Seria possível promover uso misto nas áreas setorizadas? Modificar as densidades existentes? Brasília encontra-se atualmente tombada em três instâncias como patrimônio histórico e cultural: distrital, federal e mundial. É frequente a discussão em Brasília acerca de seu tombamento como impeditivo ao progresso da cidade, e essa dualidade tombamentodesenvolvimento será discutida adianta, sob o viés da mobilidade, como foco de discussão.
Situação dos fatores promovedores da mobilidade no Plano Piloto Fonte: MADSEN, 2015. (modificado)
Uso e ocupação do solo A promoção do uso misto e maior proximidade entre as diversas atividades pode reduzir a necessidade do automóvel e facilitar na construção de uma rede de transporte mais eficiente e integrada.
No Plano Piloto: Segregação das funções em setores, resultando na pequena quantidade de áreas com uso misto e consequente deslocamentos pendulares; Tombamento (Portaria nº 314) das quatro escalas (monumental, residencial, gregária e bucólica) dificultando a promoção ao uso misto do solo.
Densidade O aumento da densidade poderia auxiliar na redução das viagens por veículo se planejado junto com a oferta de transporte público e uso misto do solo.
No Plano Piloto: Baixas densidades. Gabarito máximo (Portaria nº 314): seis pavimentos nas 300, 100 e 200 e três, nas 400; Taxa de ocupação residencial máxima (Portaria nº 314): 15% da área da superquadra.
//Capítulo 4: Preservação e patrimônio em Brasília “À medida que o tempo passa, os valores indubitavelmente se inscrevem no patrimônio de um grupo [...] simples construções adquiriram um valor eterno na medida em que simbolizam a alma coletiva; constituem o arcabouço de uma tradição que, sem querer limitar a amplitude dos progressos futuros, condiciona a formação do indivíduo [...] a cidade comporta um valor moral que pesa e que lhe está indissoluvelmente ligado” — Carta de Atenas
Já na Carta de Atenas discute-se a importância do reconhecimento e da preservação do patrimônio, com um capítulo dedicado ao tema. Fica clara a posição dos idealizadores do documento de que as cidades são conjuntos vivos, cujas manifestações
ao longo dos anos fazem parte da criação de sua personalidade. Verifica-se uma visão de preservação que busca não cercear as possibilidades de inserção da cidade ou edifícios na vida contemporânea, evitando a redução da obra a um testemunho estático do passado. Assim, vale a revisão de outro documento, alinhado a essa compreensão mais ampla acerca da preservação, a Carta de Washington. Em 1987, o ICOMOS8 elabora a Carta de Washington, Carta internacional para a salvaguarda das cidades históricas, na qual discute a adaptação da cidade histórica à vida contemporânea.
8. Conselho Internacional de Monumentos e Sítios [Internacional Council on Monuments and Sites].
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Busca se preservar o caráter histórico da cidade e os elementos que o expressam, em especial: e) “Os padrões urbanos, definidos pelo parcelamento e malha viária; f) “A relação entre edifícios e espaços verdes e abertos; g) “A aparência formal, interior e exterior, dos edifícios, definida pela escala, tamanho, estilo, estrutura, materiais, cor e decoração; h) “A relação entre a cidade ou conjunto urbano e seus arredores, tanto naturais quanto antrópicos; i) “As várias funções que a cidade ou conjunto urbano adquiriu ao longo do tempo. “Qualquer ameaça a essas qualidades comprometeria a autenticidade da cidade ou conjunto urbano históricos”9. À partir da compreensão da autenticidade do patrimônio, seria necessário, além de garantir a sua manutenção, compreender o que torna o objeto um autêntico testemunho histórico. “Poderíamos dizer [...] que nos encontramos diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o objeto material e seu significado” — Carta Brasília
Outros dois documentos, a Carta Brasília, elaborada em 1995, pelo ICOMOS, no âmbito dos países do Cone Sul, e o Documento de Nara para a Autenticidade de 1994, afirmam outro conceito relevante a ser aqui destacado: o de autenticidade, que estaria ligado à correspondência do bem material com seu significado, sendo esta necessária para validar sua preservação.
elencadas na Carta de Washington, devese procurar destacar o significado por trás da peça material a ser preservada que, no caso das cidades, está intimamente ligado à identidade que foi construída entre o espaço e seus habitantes. Tais princípios servem para validar a preservação, além de evitar tanto a descaracterização do patrimônio (com o distanciamento de seu significado10) quanto a preservação além do patrimônio. Na discussão das cidades históricas tornadas patrimônio, Brasília entra como um caso particular. Sua distinção começa no campo temporal: a cidade não é histórica pelos séculos de história acumulada, pois acabou de cruzar a marca do meio século de existência. Se em tão pouco tempo de vida já há na cidade relevância tal que a faça querer se manter como ela é, resta saber onde reside tão relevante teor. “[...] a solução apresentada é de fácil apreensão, pois se caracteriza pela simplicidade e clareza do risco original, o que não exclui, conforme se viu, a variedade no tratamento das partes, cada qual concebida segundo a natureza peculiar da respectiva função, resultando daí a harmonia de exigências de aparência contraditória” — Memorial do Plano Piloto
Como contradição, Brasília nasce simples, a partir de um traçado que, com clareza, exprime todo o programa de uma cidade, mas a sua concepção se faz complexa. A cidade, ao passo que trabalha a forte setorização, busca a autonomia dos setores, invoca a separação dos meios de transporte, mas urge pela coesão de cada um em
Por isso, na busca pela preservação de uma cidade, além das características
9. Carta de Washington, 1987.
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10. Note que aqui, significado não deve ser confundido com função. A requalificação da função de edifícios históricos, por exemplo, não implica na perda de seu significado para o contexto em que se insere.
separado, se divide em escalas, mas necessita a sua coexistência. “É assim que, sendo é também cômoda, acolhedora e íntima. tempo derramada e bucólica e urbana, funcional”
monumental eficiente, É ao mesmo concisa, lírica e
— Memorial do Plano Piloto
Brasília pecaria se falhasse em equilibrar seus anseios de “aparência contraditória”: um eixo monumental que não ofereça comodidade ao pedestre que o
contempla em sua monumentalidade; uma cidade na qual, por todos os lados, se vê inserido o verde digno da vida no campo, que é absolutamente urbana, mas que não se moderniza ao passo das cidades cosmopolitas; uma cidade estruturada em eixos que proporcionam uma rápida conexão com o outrora longínquo, mas que, com uma diversidade pouco explorada, a facilidade de vencer distâncias transforma-se em distâncias a serem vencidas. Trairia, assim, os conceitos que a deram vida, tornando-se o invólucro de uma identidade pretendida, mas não contemplada.
“Eu caí em cheio na realidade, e uma das realidades que me surpreenderam foi a rodoviária, à noitinha. Eu sempre repeti que essa plataforma rodoviária era o traço de união da metrópole, da capital, com as cidades-satélites improvisadas da periferia. É um ponto forçado, em que toda essa população que mora fora entra em contacto com a cidade. Então eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasilienses, essa massa que vive fora e converge para a rodoviária. Ali é a casa deles, é o lugar onde eles se sentem à vontade. Eles protelam, até, a volta para a cidade-satélite e ficam ali, bebericando. Eu fiquei surpreendido com a boa disposição daquelas caras saudáveis. E o “centro de compras”, então, fica funcionando até meia noite... Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. Só o Brasil... E eu fiquei orgulhoso disso, fiquei satisfeito. É isto. Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. Foi uma bastilha. Então eu vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa como poderia ser, Brasília está funcionando e vai funcionar cada vez mais. Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade. A realidade foi maior, mais bela. Eu fiquei satisfeito, me senti orgulhoso de ter contribuído.” — Lúcio Costa, 30/11/87
_4.1. A preservação de uma obra modernista: contradição de conceitos “Embora as asas da planta de avião da Brasília ainda não estejam terminadas, o projeto todo foi listado como Patrimônio Mundial da UNESCO em 1987. O que começou cinquenta anos atrás como um protótipo de uma nova era, virou uma relíquia. Agora o desenho é altamente relevante, até mesmo fascinante, embora por razões muito diferentes: como ‘preservar’ o que é moderno, ou em outras palavras, como parar a modernidade sobre seus próprios trilhos?” — Brasília por Rem Koolhaas
“Modernismo” se entende como os movimentos difundidos desde o final do século XIX e início do século XX com o objetivo de
romper com os padrões estéticos da arte, da literatura e da arquitetura tradicional vigente, ao mesmo passo que “modernismo” — com letra minúscula — seria o “gosto pelo que é moderno”, sendo moderno o “atual, recente, inovador, avançado”11. Na arquitetura moderna (Modernista) está imbuída a busca pela inovação, seja ela tecnológica, formal ou ideológica. Seria para os modernistas um grande desapontamento ver sua obra tornar-se o padrão que suplanta o inovador ou, ainda pior, transformar-se nas ruínas dos tempos porvir.
11. Segundo o Pequeno dicionário Houaiss da língua portuguesa. Editora Moderna.
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Rem Koolhaas (2011), arquiteto, teórico e professor holandês, em seu texto sobre Brasília, sabiamente aponta que a cidade que “nasceu como um protótipo de uma nova era, virou uma relíquia”. Faz, na citação anterior, a pertinente constatação que o ato de preservar o que é moderno (ou Modernista) significa retirar do objeto preservado parte de sua essência, que é a essência modernista de se pôr como inovação e como ruptura ao vigente; preservar o moderno é parar a sua modernidade. Assim, a preservação de Brasília se faz necessária, mas traz consigo uma complexidade sem precedentes. Como visto, Brasília possui filiação na Carta de Atenas, que tratava de cidades porvir, cidades teóricas, quase utópicas. Por sua vez, as convenções da UNESCO que tratam da preservação do patrimônio (o Memorando de Viena, a Carta de Washington e dezenas de outros documentos) tratam de uma generalidade de casos, incluindo edifícios, patrimônios naturais, conjuntos urbanísticos e cidades, todos das mais variadas épocas. Assim, a adequação de tais documentos ao caso de Brasília mostra-se, às vezes, insuficiente, sendo necessário às autoridades da cidade entrar em assuntos inéditos à preservação. Brasília se insere na discussão como um caso muito particular, a área de tombamento é de grandes extensões — 112,25 quilômetros quadrados12 —, a cidade é uma centralidade administrativa, mas também de dinâmica socioeconômica em construção; sua vida cotidiana não gira em torno de seu caráter histórico, mas é fortemente influenciada por ele. Existem cidades que são preservadas ou por sua estética e técnicas construtivas ou por terem sido palco de fatos históricos, Brasília é tudo isso. A cidade não se preservou para que pudesse ser vista, contemplada, para garantir
12. Área tombada pela UNESCO, em 1987.
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um testemunho histórico, sua preservação vai além, ela busca garantir que se possa ser vivida, da mesma forma como se preconizava em sua concepção. “A constante de Brasília é ser a cidade-capital do Brasil e, ao mesmo tempo, representar um momento de conquista dos valores que consolidaram altos ideais coletivos de perseverança e otimismo, encarnados por JK. As perspectivas de seu futuro devem preservar os ideais de sua concepção e, ao mesmo tempo, manter a cidade como símbolo permanente da modernidade, que guiou sua criação. Para que Brasília não seja apenas uma cidade sonhada nos anos 50, mas que se torne uma cidade plenamente vivida no século XXI, é preciso desdobrar-se à frente: novas arquiteturas deverão corresponder às expectativas que seu Plano Piloto abriga em estado latente, para além das arquiteturas aqui consolidadas” — Rossetti, Arquiteturas de Brasília
Eduardo Pierrotti Rossetti (2012), arquiteto e professor, termina o texto citado ressaltando a necessidade de se criar novas arquiteturas, que rompam com o presente, visem o futuro, mas que retomem o passado, em sua ideia original; ele fala da arquitetura da cidade, mas pode-se reproduzir o mesmo para o seu urbanismo, para a sua preservação. A cidade, que é testemunho de um sonho dos anos 1950 e se filia a ideias do início do século (como a Carta de Atenas) ou, ainda antes, com influências do fim do século XIX, com as cidades-jardim de Ebenezer Howard, deve ser mais que um testemunho de tantas ideias, deve ser a consolidação dessas ideias no mundo real, não podendo ficar presa ao passado, devendo estar em contínuo processo adaptação, em consonância com a Modernidade.
“Às criticas das premissas modernistas da concepção de Brasília parece ter escapado um fato singular: como toda a cidade foi inventada de uma só vez, toda ela também envelhecerá de uma só vez! Antevendo isso, Lucio Costa sagazmente enunciou que Brasília não ficaria velha, mas, sim, antiga. Grande parte do volume do que está construído hoje no Plano Piloto de Brasília é moderna, modernista ou quis ser moderna como pôde [...]” — Rossetti, Arquiteturas de Brasília
Koolhaas visita a cidade em 2011, quando ela completava seus 51 anos; 24 anos antes, já entre 1985 e 1987 — quase trinta anos depois da inauguração da capital — Lúcio Costa volta à Brasília convidado a redigir um documento (intitulado Brasília Revisitada13) que guiasse seus anos e caminhos a seguir.
questão de como preservar Brasília, “saber dizer não como dizer sim na busca contínua da resposta adequada”14. Koolhaas, da época de sua visita, vê Brasília já como cidade “relíquia”. À cidade que aspirava à modernidade, ao avanço tecnológico e das soluções urbanas tornar-se um túmulo na própria arquitetura é considerarse empreitada falida. “Aqui, a utopia foi construída e o moderno, se não se tornou eterno, vai envelhecer! Entre um extremo e outro, o que fazer? Talvez, investigando a diferença entre o ideário geral da cidade, o projeto e o projetar, abrem-se as chances de novas alternativas” — Rossetti, Arquiteturas de Brasília
“Vendo Brasília atualmente, o que surpreende, mais que as alterações, é exatamente a semelhança entre o que existe e a concepção original” “[...] de um lado, como crescer assegurando a permanência do testemunho da proposta original, de outro, como preservá-la sem cortar o impulso vital inerente a uma cidade tão jovem” — Brasília Revisitada
O arquiteto inicia o documento com os trechos acima, já surpreso que, no final da década de 1980, a cidade mantinha-se tal como planejada — não que não houvesse desvios com o projeto, havia muitos, mas que se mantivesse a sua essência. Já demonstrando uma preocupação intrínseca com o futuro da cidade, Lúcio Costa compreende a necessidade de se estudar a
13. Anexo I do Decreto 10.829/1987.
14. Brasília Revisitada, 1985/87.
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_4.2. Brasília Revisitada: a afirmação do patrimônio Em Brasília Revisitada, Lúcio Costa oficializa a concepção de Brasília na interação entre quatro escalas, que são a reformulação das funções urbanas modernistas — o habitar, o trabalhar, o recrear-se e o circular —, e um refinamento de sua própria concepção anterior: “É o jogo de três escalas que vai caracterizar e dar sentido a Brasília... a escala residencial ou quotidiana... a dita escala monumental, em que o homem adquire dimensão coletiva [ou cívica]; a expressão urbanística desse novo conceito de nobreza... Finalmente a escala gregária, onde as dimensões e o espaço são deliberadamente reduzidos e concentrados a fim de criar clima propício ao agrupamento... Poderemos ainda acrescentar mais uma quarta escala, a escala bucólica das áreas abertas destinadas a fins-de-semana lacustres ou campestres” — Lucio Costa15
15. Lucio Costa em entrevista ao Jornal do Brasil, 8 de novembro 1961.
As três escalas transformam-se em quatro: “A interação de quatro escalas urbanas. A concepção urbana de Brasília se traduz em quatro escalas distintas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica” — Brasília Revisitada
A escala monumental representa a marca característica da criação da cidade: representar o Estado, sediar o governo federal; ela se mostra em especial ao longo do Eixo Monumental, da Praça dos Três Poderes, à Praça do Buriti (antes, Praça Municipal), criados para abriga-la, utilizando-se de técnicas geométricas, arquitetônicas e construtivas para a exaltação da monumentalidade, princípios estes que acabam se propagando voluntariamente, revelando o desejo da cidade de ser monumental como um todo. A escala residencial pode ser vivida nas superquadras; com ela, busca-se inserir no tecido urbano áreas serenas, dominadas pelo verde, pelos espaços abertos, servidas por comércios e edificações coletivas locais; aqui deve predominar a escala do homem. A escala gregária, por sua vez, propicia o encontro, das pessoas, das vias de circulação, das cidades, da cultura; manifestando-se no centro urbano, é acompanhada do aumento da densidade, marcando um centro vertical na cidade. A escala bucólica atravessa toda Brasília, pondose como delimitadora de espaços, não como barreiras, mas como áreas livres; ela traz a natureza à cidade, transformando-a em cidadeparque. Não se deve entender as quatro escalas como tendo uma dimensão física; elas se manifestam prioritariamente em um local mas não se restringem a ele, elas se traduzem por características físicas do espaço, mas transcendem-nas. Lúcio Costa, nas duas citações das três ou quatro escalas (“é o
jogo das três escalas”; “a interação de quatro escalas”), deixa claro que a concepção de Brasília não se dá pela presença das escalas, mas pela costura entre elas. As superquadras, por exemplo, assim como no centro da cidade, devem estimular os encontros, como subcentralidades; também buscam, da escala monumental, incorporar a monumentalidade em seus edifícios residenciais; assim como inserir o verde contemplativo, cercando-se de áreas densamente arborizadas. As escalas como ditas por Lúcio Costa vão além de parâmetros concretos como a altura das edificações, seus materiais, cores ou sistemas construtivos; estão ligadas à essência por trás dessas frações da cidade que, em conjunção, formam um todo harmônico. Deve ser possível depreender dessa essência um saber virtual para, a partir dele, transmitir as características originais contidas no plano da cidade, e não buscá-las na repetição e rígida manutenção do existente. A capital é fruto de um traçado certeiro que, por sua vez, traduz no papel um conceito repleto de significação. O caráter sensível, o genius loci16 da cidade é então muito sutil e não está restrito à suas obras arquitetônicas, ou ao seu traçado viário ou paisagístico, mas não é também independente a eles. Brasília tem em si uma identidade que transcende sua dimensão física, mas é por ela construída.
16. Genius loci, do latim, pode ser traduzido como o “caráter do lugar”, a “atmosfera predominante de um lugar”. Tem sua origem na religião na Roma antiga, sendo utilizado na arquitetura por Aldo Rossi.
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_4.3. O tombamento de Brasília — identidade, legislação e evolução Brasília foi inscrita na Lista do Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO17 em 7 de dezembro de 1987, sob o número 445, segundo recomendação enviada pelo ICOMOS no ano anterior, a 31 de dezembro de 1986. A preocupação acerca da preservação da identidade da nova capital data desde antes de sua inauguração: o então presidente, Juscelino Kubitschek sanciona, a 13 de abril de 1960, a Lei 3.751, que dispõe sobre a organização administrativa do Distrito Federal, da qual se retira a primeira menção acerca de preocupação de se preservar Brasília: Art. 38 — Qualquer alteração no plano-piloto, a que obedece a urbanização de Brasília, depende de autorização em lei federal. — Lei 3.751/1960
Com a condição de que as autoridades brasileiras adotassem leis que assegurassem a salvaguarda da capital em sua concepção urbanística, foi assinado o Decreto nº 10.829, em 14 de outubro de 1987, do governo do Distrito Federal. Nele se explicita a preservação da concepção urbanística do Plano Piloto, onde trata das quatro escalas de Lúcio Costa e delimita a área do
17. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura [United Nations for Education Science and Culture Organization]
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tombamento de Brasília, constando, ainda, das recomendações do texto Brasília Revisitada (com ilustrações e planta anexa). Art. 2° — A manutenção do Plano Piloto de Brasília será assegurada pela preservação das características essenciais de quatro escalas distintas em que se traduz a concepção urbana da cidade: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica. — Decreto 10.829/1987
Em 2 de outubro de 1989 entra em vigor a Lei nº 47, do Governo do Distrito Federal — GDF, que dispõe sobre o tombamento de bens, móveis e imóveis, monumentos naturais, sítios e paisagens no âmbito distrital. E em 199018, o Plano Piloto tem seu conjunto urbanístico tombado em âmbito federal sendo, em 8 de outubro de 1992 elaborada, pelo IPHAN19 a portaria nº 314, que define os critérios que regem o tombamento da cidade. Em 15 de fevereiro de 2012, é assinada a portaria nº 68 do IPHAN, que estabelece a área do entorno do Conjunto Urbanístico de Brasília e dispõe sobre as diretrizes para o seu tombamento em conjunção com o da área do Plano Piloto.
18. Processo de Tomabemento nº 1.350-T-90, inscrito sob o nº 532, folha 17, volume 02 do Livro do Tombo Histórico, 14 de março de 1990. 19. Instituo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
“Brasília é um exemplo definitivo do urbanismo modernista do século XX [...] a cidade aproximou as ideias de grandes centros administrativos e espaços públicos com uma nova maneira de viver na cidade, como proposto por Le Corbusier em edifícios de seis andares sobre pilotis permitindo que a paisagem fluísse embaixo e envolta destes” — Comitê do Patrimônio Mundial, UNESCO
A partir da recomendação feita pela ICOMOS ao Comitê de Patrimônio Mundial (WHC — World Heritage Committee), Brasília foi incluída como sítio de Patrimônio Mundial (da Humanidade) segundo dois dos dez critérios usados pelo comitê: ii) representar uma obra-prima do gênio criativo humano20; iv) ser um exemplo excepcional de um tipo de construção, conjunto arquitetônico ou tecnológico ou paisagem que ilustre (um) estágio(s) significante(s) na história da humanidade;21
20. Tradução livre a partir do site do WHC/UNESCO: [to represent a masterpiece of human creative genius]. 21. Tradução livre a partir do site do WHC/UNESCO: [to be an outstanding example of a type of building, architectural or technological ensemble or landscape which illustrates (a) significant stage(s) in human history].
Parafraseando o próprio Comitê de Patrimônio Mundial, Brasília representa a expressão viva dos princípios e ideais do Movimento Modernista, evidenciando não somente uma determinada época histórica como também uma estratégia de desenvolvimento e um processo de autoafirmação nacional perante o mundo. Para a UNESCO, a preservação de Brasília deve garantir que seu excepcional valor universal — Outstanding Universal Value — não cesse de ser transmitido à comunidade mundial e às gerações futuras. E para a sua manutenção deve-se garantir a autenticidade de Brasília, com a preservação de alguns atributos chave — estes, melhor
compreendidos à partir das quatro escalas de Brasília —, transcritos a seguir: “[...] a interseção dos dois eixos e a distribuição hierárquica do sistema viário, a divisão da cidade em setores com suas respectivas características e usos finais, a rede de espaços abertos e verdes, a Esplanada dos Ministérios e estruturas representativas que compõem o Eixo Monumental, as superquadras organizadas com base nas unidades de vizinhança e, finalmente, os projetos arquitetônicos de Oscar Niemeyer dos principais edifícios representativos” — Comitê do Patrimônio Mundial, UNESCO
Densidade Características Modernistas de Brasília, pautadas pelas características estabelecidas na Carta de Atenas (1941) e pelo Memorial do Plano Piloto (1957):
As superquadras terão gabarito máximo uniforme de talvez seis andares sobre pilotis, sua densidade será pensada para validar a utilização dos equipamentos coletivos e garantir um ambiente mais próximo à escala humana; as áreas centrais serão verticalizadas, com exceção às áreas representativas.
Atributos primários para a atribuição do Outstanding Universal Value de Brasília, pela UNESCO (1987):
“As superquadras organizadas com base nas unidades de vizinhança”.
Artigos do Decreto 10.829 (1987), para manutenção do Plano Piloto, e da Portaria nº 314, IPHAN (1992), para a proteção do Conjunto Urbanístico de Brasília como elemento tombado:
Gabarito máximo de 3 pavimentos para as quadras 400, 6 para as 100, 200 e 300 e 21 para os setores centrais verticalizados; taxa de ocupação máxima das superquadras de 15%.
Como um dos principais documentos a discutir a preservação de Brasília e determinar o seu futuro, temos a portaria nº 314 do IPHAN. Ela regula o tombamento federal de 1990, pautando-se nos documentos anteriores, em especial o Decreto 10.829 e Brasília Revisitada, consagrando as quatro escalas como centrais à preservação da cidade; cujas características, se preservadas, assegurarão a manutenção do Plano Piloto.
Diante da necessidade de verificar a situação do diálogo entre a identidade da capital federal e legislação que a abrange, buscou-se desenvolver o quadro a seguir, ao qual foram acrescidos os fatores da forma urbana, como definidos por Gentil (2015), para dar espaço então à discussão destes no ambiente da preservação de Brasília.
A própria portaria, apesar de delimitar a área de preservação do Plano Piloto, não trata da totalidade de seus setores, focando-se nos objetivos relacionados à manutenção de cada escala.
Uso do solo
Acessibilidade
Continuidade
A cidade é dividida em setores, mas sua ocupação não é restrita, devendo-se buscar tanto a especialização de cada setor, quanto sua relativa autonomia.
A circulação acontece com a hierarquização das vias, cada qual com função e características próprias; ao automóvel será priorizado o trânsito livre e, ao pedestre, o acesso livre.
Os amplos espaços abertos e verdes são parte do tecido da cidade, devendo ter função utilitária para a vida urbana; os edifícios não serão alinhados diretamente às vias.
“A divisão da cidade em setores com suas respectivas características e usos finais”.
“A distribuição hierárquica do sistema viário”.
“A rede de espaços abertos e verdes”.
Permite-se, nas superquadras, pequenas edificações térreas de uso comunitário.
As superquadras deverão ter apenas um acesso; deverão ser mantidas as interrupções nas vias L1 e W1; o eixo rodoviário manterá seu caráter rodoviário.
São considerados área 22 non-aedificandi todos os terrenos não edificados ou ainda não destinados à edificação.
22. Non-aedificandi, do latim: não edificável, área onde é vedada a edificação.
//Capítulo 5: Brasília revisitada novamente — possibilidades de intervenção para facilitar a mobilidade garantindo a preservação Neste capítulo se procederá uma análise dos fatores da forma urbana facilitadores da mobilidade e as decorrentes possibilidades de intervenção na estrutura urbana de Brasília, de modo a garantir a melhoria da mobilidade de
forma aliada à preservação das características modernistas da cidade, que devem ser aquelas que o tombamento visa manter como legado para a humanidade.
_5.1. Avaliação em relação ao uso do solo “Percorrido assim de ponta a ponta esse eixo monumental, vêse que a fluência e unidade do traçado, desde a praça do Governo até à praça Municipal, não exclui a variedade e cada setor, por assim dizer, vale por si como organismo praticamente autônomo na composição do conjunto. Essa autonomia cria espaços adequados à escala do homem e permite o diálogo monumental localizado sem prejuízo do desempenho arquitetônico de cada setor na harmonia da integração urbanística do todo” — Memorial do Plano Piloto
No projeto para o Plano Piloto, como visto acima, está presente a noção de que a cidade contará com espaços autônomos, indo além da ideia da setorização, que é comum ao modernismo. Quando Lúcio Costa estabelece setores distribuídos pela cidade cuja utilização não está restrita à de sua denominação — o Setor Bancário, por exemplo, não está restrito ao uso bancário, mas este deve ser sua função primária. No parágrafo acima, que trata da setorização ao longo do Eixo Monumental — o qual abrigaria a praça de governo (Praça dos Três Poderes), a Esplanada dos Ministérios, a Rodoviária, a Torre de TV, o setor esportivo e
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a Praça Municipal (o equivalente à Praça do Buriti), os setores de quartéis, de garagens e armazenamento, a Rodoferroviária e do Setor de Indústrias e Abastecimento —, está presente a ideia de que cada setor venha a conter em si uma autonomia, que se expressa tanto em termos de arquitetura, conferindolhes caráter distintivo em relação aos outros, como em termos de uso do solo, não estando vedada certa variedade de usos, a partir da predominância daquele que lhe dá o nome. Está implícito a favor da mobilidade que quem por ali trabalhe ou transite não deva necessitar de grandes deslocamentos para suprir necessidades corriqueiras, sejam de alimentação ou serviços. “No setor dos bancos, tal como no dos escritórios, previramse três blocos altos e quatro de menor altura, ligados entre si por extensa ala térrea com sobreloja de modo a permitir intercomunicação coberta e amplo espaço para instalação de agências bancárias, agências de empresas, cafés, restaurantes, etc” — Memorial do Plano Piloto
A mesma ideia é encontrada na descrição de outros setores, como o Bancário e o Comercial; servindo, os edifícios mais altos, ao caráter nominal do setor, e os térreos, ligados uns aos outros por marquises, pilotis ou mezaninos, em compatibilidade com a escala humana, das necessidades dos que por ali transitam. “Não insistir na excessiva setorização de usos no centro urbano — aliás, de um modo geral, nas áreas não residenciais da cidade, excetuando o centro cívico. O que o plano propôs foi apenas a predominância de certos usos” — Brasília Revisitada
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Deve-se entender a setorização de Brasília como norteadora de seu projeto, como uma maneira de dar forma e dinamismo à cidade, mas não como condição única, a ser seguida à risca, engessando o desenvolvimento da escala local, a escala do pedestre, que é justamente a mais prejudicada. Como visto, a restrição de usos ou a sua uniformidade influencia negativamente na mobilidade urbana e, por outro lado, a diversidade a favorece, por promover a aproximação entre a moradia o trabalho e o lazer. Se a cidade se divide rigidamente em áreas para abrigar usos uniformes, faz-se necessário o deslocamento entre elas, e gera deslocamento de forma pendular, seguindo horários determinados. Além de aumentar a distância a ser percorrida diariamente, a setorização de usos aumenta também o número de viagens. Com os deslocamentos ocorrendo de forma pendular, tem-se o aumento do fluxo de veículos nos horários de pico, com subutilização da infraestrutura viária nos demais horários. Esta se torna cara e sua manutenção gera altos custos para o transporte público. Esse, sendo ineficiente, leva à demanda por automóveis de uso individual, que geram congestionamentos em momentos de pico. “O transporte não motorizado, realizado a pé ou por bicicletas e, eventualmente, por outros veículos de propulsão humana deve ser incentivado para uso nas atividades diárias, por intermédio de diferentes ações: I.
criação e adequação de espaço viário seguro e confortável para o pedestre, o ciclista e a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida;
II. adoção de medidas de uso e ocupação do solo que favoreçam a redução das necessidades de deslocamentos motorizados” — PDTU/DF, Lei-Distrital 4.566/2011
Áreas com maior mescla de usos têm atributos que melhoram a vida urbana: trazem as pessoas às ruas durante períodos mais longos do dia, diminui a distância entre deslocamentos necessários, por aproximar funções, reduz o número de deslocamentos motorizados — em especial quando aplicado juntamente ao aumento da densidade, permitindo mais funções num espaço menor —, permite que sejam tomadas decisões acerca do local de moradia em função da proximidade ao trabalho, ou a escolas, a equipamentos de lazer... Brasília poderia ser revista, embasada pelo próprio Memorial do Plano Piloto, ou Brasília Revisitada, ou até mesmo as legislações de preservação primárias. A existência de comércios nessas áreas tem predominantemente sido permitida a títulos precários, com pouca regulamentação e preferência a quiosques, deteriorando ainda mais o espaço e não assumindo a possibilidade de múltiplos usos. Alguns setores se beneficiariam, inclusive, com a inclusão de habitações, que geram mais dinamismo e permanência à área. Ainda que em algumas áreas não seja possível o uso residencial, urge a ampliação do comércio, em especial o noturno, para melhorar a utilização dos setores nesse horário e como forma de frear a expansão urbana que tem ocorrido em Brasília, desde a sua inauguração, mas recentemente começa a significar uma evasão de seu centro urbano, como já notado por Lúcio Costa em Brasília Revisitada, deixando pouco caracterizada a escala gregária: “Reexaminar os projetos dos setores centrais, sobretudo os ainda pouco edificados, no sentido de propiciar a efetiva existência da escala gregária” A aproximação entre moradia e trabalho não pode ser determinista, não se pode definir
que determinado cidadão more num setor e trabalhe em outro próximo, as famílias possuem composições diferentes e as pessoas são múltiplas, a cidade deve buscar meios para permitir que as múltiplas opções possam ser feitas. Daí que não se pode, por exemplo, ter como fato que os moradores das superquadras trabalhem todos no Eixo Monumental e por isso moram na proximidade de seu trabalho. É preciso considerar os novos tipos de trabalho, espaços de coworking, pequenos escritórios locados nas quadras comerciais — antes designadas para lojas e serviços de varejo. Surgem novos centros comerciais nas entrequadras, tomando os espaços dos equipamentos culturais. Os edifícios comerciais — em especial os da Asa Sul, com menor oferta de lojas — deveriam se remodelar, utilizar-se da arquitetura para aproveitar-se dos desníveis, facilitando os acessos ao subsolo e pavimentos superiores, permitir a instalação de restaurantes nas coberturas, discutir-se o aumento de gabarito. O que se percebe é que a ideia mais bem desenvolvida é, ainda, a das superquadras, que relaciona as diferentes funções numa mesma quadra, enquanto nas quadras periféricas do Plano Piloto — as 500/700/900 e 600/800 — há uma maior rigidez, até por a sua ocupação ter sido originária de interpretações do Memorial do Plano Piloto, já que Lúcio Costa não as detalhou, ou por terem sofrido alterações de sua destinação inicial — onde, contraditoriamente, sua flexibilização é feita pela introdução de novos usos exclusivos. As 700 vêm passando por um processo orgânico de miscigenação de usos, bem como surgem nas 900 algumas áreas habitacionais. Para uma cidade criada ex nihilo23, de patrimônio preservado, deveria haver mais
23. Ex nihilo, do latim: à partir do nada.
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projetos para a adequação dessas áreas às novas demandas de uso do solo, ao invés de negá-las e vê-las acontecer espontaneamente. “Quando visitei a feira de comércio livre na área da Torre tive boa impressão — havia artesãos e ambulantes, o que atraia muito mais público comprador do que se o local fosse privativo dos artesãos. Tomando conhecimento do que pleiteiam os artesãos através de associação sediada em Taguatinga, entendo que nos fins de semana deveria ser reservada área privativa para os artesãos — tanto quanto possível contígua, mas sem excluir o comércio livre dos ambulantes. Mesmo porque o comércio deles atraindo maior público, acaba por beneficiar também os artesãos. Tratase apenas de definir as duas áreas embora mantidas contíguas para que assim se beneficiem mutuamente, em vez de se hostilizar” — Registros de uma Vivência
Vias como a W3, W4 e W5 são praticamente desertas à noite, ou largadas à prostituição e consumo de drogas. Na W3, faz-se ausente o uso habitacional, enquanto na W4 e W5, está ausente o uso comercial. Assim como o caso acima, descrito por Lúcio Costa, a relação entre as diferentes funções de uma cidade têm, uma na outra, impacto positivo. Por mais que elas mantenham-se separadas, não devem separar-se demais. É o caso das superquadras, a unidade de vizinhança que funciona, tem-se no comércio a vida ativa, fluxo intenso de veículos e pessoas; no interior das quadras, uma vida calma e serena, com atividades internas dos moradores, em especial das crianças nos parquinhos e quadras, e moradores que levam seus cachorros para passear. É quase como se houvesse entre o comércio e a residência uma barreira, mas esta não existe de fato. É claro que nem todas as superquadras têm essa vida ativa, e por isso que deveriam ser estudadas individualmente, assim como o foram na
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época de sua criação; deveriam ser feitos projetos de readequação das quadras. A cidade é um desenvolvimento contínuo, não podendo ser deixada de lado 60 anos após sua construção. Se se o custo não se paga ou não há interesse o suficiente envolvido na requalificação das pequenas áreas urbanas, este deve ser criado. Assim, ao analisar Brasília, à partir da tabela elaborada no capítulo anterior, faz-se algumas considerações acerca do uso do solo: há uma forte setorização (uniformidade) dos usos, ainda que injustificada após análise dos documentos — que, pelo verificado, permitiram alterações sem ferir a ideia original.
_5.2. Avaliação em relação à densidade “Até o século XIX [...] os construtores não podiam erguer um imóvel que ultrapassasse seis pavimentos. O presente não é mais tão limitado. As construções atingem sessenta e cindo pavimentos ou mais. Resta determinar, por um exame criterioso dos problemas urbanos, a altura que mais convém a cada caso particular. No que concerne à habitação, as razões que postulam a favor de uma determinada decisão são: a escolha da vista mais agradável, a busca do ar mais puro e da insolação mais completa, enfim, a possibilidade de criar nas proximidades imediatas da moradia instalações coletivas, áreas escolares, centros de assistência, terrenos para jogos, que serão seus prolongamentos. Apenas construções de uma certa altura poderão satisfazer a contento essas legítimas exigências” — Carta de Atenas
Na Carta de Atenas, a densidade era calculada para oferecer “um número mínimo de horas de insolação para cada moradia” e para validar a utilização dos equipamentos coletivos próximos, para que não fossem subutilizados. Opta-se, nas superquadras, por uma densidade de 200 a 300 habitantes por hectare, tal como preconizava a Carta de Atenas, resultando, de maneira geral, em 11
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edifícios em fita, com 6 pavimentos sobre pilotis, dispostos numa área de 7 hectares; e assim foi definido no seu tombamento, como visto, sem margem para a modificação desses parâmetros, mantendo-se o gabarito e a taxa de ocupação máximos, tal como definidos. “Dentro dessas ‘superquadras’ os blocos residenciais podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo porém, a [...] princípios gerais: gabarito máximo uniforme, talvez seis pavimentos e pilotis [...]” — Brasília Revisitada
Mais uma vez identifica-se, no relatório Brasília Revisitada, possibilidades que podem mediar a atualização e preservação de Brasília. No texto acima, o “talvez” de Lúcio Costa dá margens a essa discussão, sobre o que manteria a identidade de Brasília: edifícios de oito pavimentos sobre pilotis, ou talvez doze? Foi uma decisão que, tivesse sido outra, em nada alteraria seu caráter modernista. Nas quadras da centena 400 foram construídos edifícios mais baixos, de três andares sobre pilotis, a maioria sem garagem no subsolo, sem elevadores. Edificações mais econômicas que estimulavam a presença de pessoas diferentes faixas de renda no Plano Piloto. O que se tem hoje em dia, com os altos preços do mercado imobiliário e a falta de políticas públicas que assegurem a mescla de classes econômicas, são edifícios novos
sendo construídos, com garagens, elevadores, coberturas, preços elevados, e apenas três andares. A baixa densidade do Plano Piloto acarreta no aumento do valor do terreno, adensar a cidade, em conjunção a políticas públicas efetivas poderia gerar unidades residenciais mais econômicas em áreas centrais, e não segregadas. O aumento da densidade deve ser acompanhado da implantação de novas linhas de transporte público e melhoria das existentes, bem como de maior diversificação nos usos —, as ruas (e calçadas) se requalificam, mais sombreadas, com mais equipamentos urbanos. “O Plano Piloto possui apenas 8,1% do território do DF e sua população 9,6% do total, possuindo, portanto, uma densidade demográfica de 420 habitantes por km². Entretanto, apesar de seu pequeno tamanho em comparação às outras cidades do Distrito Federal, o Plano Piloto ainda é o maior empregador da região porque aqui se concentra a atividade de governo, e, também, o maior volume da construção civil em áreas ainda desocupadas “O fato de que 80% da atividade econômica e quase 70% dos empregos do DF se concentrarem no Plano Piloto, é a prova cabal da falta de planejamento da região”
O texto introdutório da Cartilha de Preservação do Plano Piloto afirma uma falta de planejamento na região em função da concentração de empregos no Plano Piloto, mas poderia também se traduzir na manutenção de uma densidade talvez abaixo do potencial de absorção da área tombada. Um caso que poderia ser pensado a favor da mobilidade sem que, necessariamente, se altere a concepção de modernidade do Plano Piloto seria o estímulo à subcentralidades, com densidades maiores e usos mistos, para viabilizar o transporte público, bem como a implantação de centros comerciais mais diversos. Por fim, como no caso anterior, se verifica a possibilidade de alteração das densidades sem a perda das características da cidade, na qual as soluções em prol da mobilidade poderiam ocorrer somadas à solução de outros problemas, como o elevado custo da terra.
— Cartilha de Preservação Plano Piloto 50 Anos
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_5.3. Avaliação em relação à conectividade/ acessibilidade A conectividade, dos fatores apontados por Gentil (2015), é aquele que possui maior impacto na mobilidade do pedestre. Partindo desse estudo, a pesquisa desenvolvida por Mello (2016), acerca da mobilidade na escala do pedestre para o caso de Brasília, identificou como os elementos configuracionais do espaço urbano: passeio, barreiras, pontos de descanso, acessos e mobiliário urbano. Devendo estes elementos possuir como qualidade atributos como segurança, conforto e amenidade para que desempenhem suas funções com maior eficiência. Esse fator, essencial à mobilidade urbana, é aquele que mais facilmente seria implementado em Brasília sem que houvesse maior discussão quanto à interferências nas
suas características de cidade tombada. Ele diz respeito à qualificação dos imensos espaços livres e longas calçadas da cidade, e só viria a favor de sua preservação e do que apregoa o Memorial do Plano Piloto quanto à apropriação do espaço pelas pessoas. A análise de Mello (2015) conclui a falta de manutenção dos passeios; as vias de alta velocidade funcionando como barreiras; a necessidade de se implementar atrativos nos espaços livres, para que estes desempenhem a função de articulação que necessitam para permitir a conectividade, atrativos que podem ser equipamentos públicos, ou simples pontos de descanso, sempre fazendo uso da implementação de mobiliário urbano de qualidade; a necessidade de se adaptar os
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acessos e passeios de modo a permitir acesso universal ao sistema, bem como melhorar a costura das vias e torna-las mais atrativas ao passeio não-motorizado. O projeto de Brasília previa a dissociação entre automóvel e pedestre quando estes assumissem escalas incompatíveis. O resultado foi que, muitas vezes deixou-se de lado o sistema circulatório do pedestre, talvez pela ausência de um projeto mais detalhado para as superquadras, ou por uma preferência geral ao uso do automóvel. A questão é que os pedestres em Brasília encontram-se negligenciados, as calçadas, quando existentes, frequentemente necessitam de manutenção, ou estão mal posicionadas no espaço, levando às pessoas a percorrer o caminho mais curto, abrindo caminhos pisoteados nos gramados. Talvez a dificuldade de posicionar adequadamente as calçadas no espaço se dê pela grande descontinuidade entre os espaços ocupados: onde há a possibilidade de deslocamentos em todas as direções a escolha da direção da calçada pode tornar-se uma escolha difícil. Estipular caminhos prioritários aos pedestres ajudaria a definir rotas, entretanto estas devem ser validadas pelos usuários, para tal torna-se importante a sua qualificação, em função dos elementos citados anteriormente. Como exemplo têm-se as ciclovias: as bicicletas têm a liberdade de trafegar pelas ciclovias, calçadas e ruas, e nem sempre as ciclovias oferecem o menor trajeto, mas dotálas de semáforos, sinalização, exclusividade de uso, pavimentação adequada à sua função, bem como torna-la parte de uma malha cicloviária faz com que haja a predileção pelo seu uso frente a outros caminhos possivelmente menores. A ausência de calçadas ao longo dos principais eixos justifica-se em suas velocidades. A ausência de eixos de calçadas
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que permitam a travessia de longas distâncias não se justifica. A calçada que atravessa as quadras 400 de ponta a ponta das Asas, próxima à L1, por exemplo, tem potencial para se tornar um grande eixo peatonal: calçada larga, margeada por extensa faixa de área verde, acompanha áreas residenciais, mas se conecta a áreas comerciais a cada 400 metros, aproximadamente, poderia tornar-se a rambla de Brasília. Se sua pavimentação fosse uniformizada, sua iluminação melhorada, se atrelassem a ela pequenos usos comerciais e equipamentos públicos nas áreas verdes adjacentes, acompanhada do aumento da densidade populacional, se transformaria num novo vetor, estimulando o transporte nãomotorizado. A seguir, há uma análise feita pelo GT Brasília24, acerca dos impasses colocados pela malha do Plano Piloto como sistema de comunicações urbanas: --
a forte hierarquia é fator de extrema segregação física, categorizando definitivamente as instâncias local e global;
--
o caráter linear foi potencializado, somente possibilitando ligações transversais diretas em distâncias muito grandes;
--
o desenho viário facilita os deslocamentos, mas também as altas velocidades; suas vias funcionam sempre, como barreiras e nunca como elementos de costura entre dois trechos adjacentes;
--
a superfície viária é das
24. Em 1981 foi criado o Grupo de Trabalho para Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural de Brasília — GT Brasília. Esse grupo de trabalho elaborou um dossiê de informações visando criar uma consciência coletiva em torno da questão do patrimônio em Brasília. Entre outros, buscaram ressaltar os aspectos identitários da cidade a serem preservados bem como propor melhorias a serem implementadas.
mais altas que se conhece contribuindo portanto, à elevação do valor do solo em Brasília; --
há uma absoluta divisão de circulações para pedestres e veículos que sempre privilegia aqueles automotores a ponto de não haver, muitas vezes, possibilidades peatonais.
“Estes problemas não devem, porém, comprometer a preservação das características fundamentais da malha, principalmente na AIESPP, mas conduzir a correções acessórias, tais como: 1.
A característica de hierarquização viária pode manter-se, mas ser enfraquecida para contornar os efeitos de barreira, fortalecendo o direcionamento e facilitando sua transposição.
2.
A característica de linearidade não se altera quando se realizam até duas ligações transversais diretas no contexto das Asas.
3.
As características de composição da malha não se alteram se as vias sofrerem correções em suas larguras e raios de giro, e se forem incorporadas às mesmas possiblidades para pedestres.“
das calçadas pode influenciar o seu uso; calçadas levemente afastadas dos edifícios facilitam sua compreensão visual, sendo mais confortáveis para caminhadas, ao mesmo tempo, em edificações com vitrines ou loggias, as calçadas devem estar próximas aos edifícios, permitindo tanto a circulação quanto a permanência. Trabalhar com os desníveis, em especial nos comércios locais Norte (que voltam-se aos quatro lados), possibilitando a ampla acessibilidade a todos eles, é fundamental para o florescer do comércio mas também para a garantia do justo e universal acesso ao espaço público.
Ainda no tema da conectividade, se pode discutir a relação entre a malha viária de automóveis e pedestres. A hierarquização viária buscou separar as vias por suas velocidades e usos, pautando o desenvolvimento de cada uma nas peculiaridades às quais seu uso reclama. Devem ser feitos estudos caso a caso, buscando valorizar, como forma de estímulo, as vias relativas aos transportes nãomotorizados. Às vezes o posicionamento
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_5.4. Avaliação em relação à continuidade A grande dificuldade gerada pela falta de continuidade dos espaços na cidade é o aumento das distâncias, com a dificuldade de locomoção do pedestre, que tem um caminho alongado e pouco atrativo — pela baixa diversidade — para percorrer, levando à sua opção pelo uso do transporte motorizado. A escala bucólica de Brasília é largamente pautada nos espaços de áreas verdes, que inequivocamente fazem parte de seu caráter de cidade-parque, entretanto, estes constituem, frequentemente, mais um plano de fundo para a cidade do que parte ativa da paisagem urbana, tornando-se vazios urbanos, que geram descontinuidade espacial. Destituir Brasília de seus espaços verdes seria acabar com sua feição de cidadeparque, mas a sua qualificação os elevaria à
sua função inicial: costurar espaços urbanos, oferecendo amenidades aos transeuntes e pondo-se como espaço para a realização de atividades, das mais diversas. A requalificação dos vazios pode não aproximar os cheios, mas certamente torna o trajeto mais atrativo. “[...] detectar espaços ociosos e diferenciar área verde de área não ocupada para qualificar os espaços de convívio na cidade — com mobiliário urbano [...]” — Eduardo Rossetti, artigo para Vitruvius
A solução parece estar, por meio da conectividade, em tornar os espaços descontínuos em espaços de melhor qualidade.
50
//Considerações finais O texto foi desenvolvido como uma forma de suscitar a discussão sobre o caráter mutável da cidade, abrindo caminho para novas indagações e buscando demonstrar a possibilidade de se abraçar alternativas e novos pontos de vista para a cidade Modernista, numa tentativa de assegurarlhe sua contemporaneidade, bem como o não comprometimento de sua preservação enquanto patrimônio tombado. Toda a discussão foi pautada na mobilidade, como tópico fundamental para garantir à cidade uma melhor qualidade de vida, em consonância com as necessidades contemporâneas. Em função dos quatro elementos que promovem a mobilidade — uso do solo, densidade, conectividade/acessibilidade, continuidade — e a análise dos documentos que tratam de Brasília — sua identidade e preservação —, pôde-se perceber a possibilidade de se intervir na cidade para a melhoria da mobilidade, sem que haja prejuízo em seu caráter identitário. Reconhece-se a sensibilidade da discussão patrimonial, bem como a necessidade de serem produzidos estudos específicos para cada intervenção, e sendo a promoção da mobilidade na cidade uma necessidade cada vez mais presente, esta discussão não pode ser deixada de lado, devendo ser realizada acompanhada de todo o arcabouço técnico que possa embasar a produção das propostas.
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//Bibliografia ArPDF, CODEPLAN, DePHA. Relatório do Plano Piloto. GDF, 1991. BEZERRA, Maria do C. de L., GENTIL, Caroline D. A. Elementos da forma urbana relacionados à mobilidade sustentável. 2013. BRASIL. Lei 12.587, de 3 de janeiro de 2012. Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. BRASIL. Lei 3.751, de 13 de abril de 1960. Dispõe sôbre a organização administrativa do Distrito Federal. CANTALICE, A.S.C. Uma breve reflexão sobre forma urbana. ARCHITECTON — Revista de arquitetura e Urbanismo, V. 2, n. 2, 2012. COSTA, Lucio. Brasília Revisitada, 1985/87. Disponível em: <http://urbanistasporbrasilia. weebly.com/uploads/9/4/0/4/9404764/ brasiliarevisitada.pdf>. Acesso em: 19 jun. 2017. COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. 1 ed. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.
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//Capas
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3
5
6. Torre de TV, de Lúcio Costa (1965)
1. Ponte JK — Juscelino Kubitschek, de Alexandre Chan (2002) 2. Catedral Metropolitana de Brasília, de Oscar Niemeyer (1970) 3. Memorial dos Povos Indígenas, de Oscar Niemeyer (1987)
7. Escadaria do Palácio Itamaraty, de Oscar Niemeyer (1970) 8. Capela do Palácio da Alvorada, de Oscar Niemeyer e Athos Bulcão (1958) 9. Trevo Rodoviário na EPTG, releitura de fotografia de Bento Viana
4. O Meteoro, de Bruno Giorgi (1967) 5. Edifício Morro Vermelho, de João Filgueiras Lima — Lelé (1974)
10
4
11
10. Teatro Nacional, de Oscar Niemeyer (1966)
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6
7
8
16. Torre de TV Digital, de Oscar Niemeyer (2012)
11. Igrejinha, de Oscar Niemeyer (1958) 12. Os Guerreiros, de Bruno Giorgi (1959)
17. Bloco C da SQN 107, de autor não identificado (circa 1965)
13. Pombal, de Oscar Niemeyer (1961) 14. Palácio da Alvorada, de Oscar Niemeyer (1958)
18. Ginásio Nilson Nelson, de Ícaro de Castro Mello, Eduardo de Castro Mello e Cláudio Cianciarullo (1973)
15. Biblioteca Nacional de Brasília, de Oscar Niemeyer (2008)
14
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9
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O Modernismo se entende pelos movimentos difundidos no final do século XIX e início do século XX, buscando romper com os padrões estéticos vigentes da arte, da literatura e da arquitetura tradicionais, ao passo que modernismo — assim com letra minúscula — seria o gosto pelo moderno, e o moderno, aquilo que é atual, recente, inovador e avançado. Está internalizada na arquitetura moderna — Modernista — a busca pela inovação, pela ruptura, seja ela tecnológica, formal ou ideológica. Seria de grande decepção para os modernistas verem sua obra tornar-se o padrão que suplanta o inovador ou, ainda pior, transformar-se nas ruínas dos tempos porvir, no novo velho. Brasília nasce num ambiente de ruptura: mais que a transferência da capital, a cidade traz um novo modo de viver urbano. Assim, nascida da genialidade humana, tornase um importante objeto de preservação, exemplar de um momento histórico. E tal como surge da inovação, com ela tornase passado, ao transformar o ato em fato. A cidade nasce de uma ideologia funcional: habitar, trabalhar, recrear-se. Estas são as funções básicas de uma cidade, definidas pelo arquiteto modernista Le Corbusier, acrescidas de uma quarta: o circular. Brasília, à sua maneira, se organiza nas mesmas funções, com o circular — acrescente-se: viário — sendo o esqueleto dinamizador da vida urbana, e a
forte setorização responsável por acolher as demais funções. Adaptando-se e moldando a identidade da cidade, as funções chamaramse escalas: residencial, monumental, gregária e bucólica. No projeto e nos textos originais de Lúcio Costa, criador do Plano Piloto, desde os princípios é evidente a presença da mobilidade: a importância do traçado viário, os eixos, os cruzamentos — ou a ausência destes —, a separação entre veículos e pedestres e a diferenciação de escala e função das vias. No estudo da mobilidade urbana, a abordagem adotada pelo ensaio entende quatro fatores presentes na forma das cidades como vinculados à sua promoção: uso do solo, densidade, acessibilidade e continuidade. Sob a ótica destes fatores, faz-se uma análise à situação atual de Brasília, buscando soluções de adequação àquelas condições que seriam ideias à promoção da mobilidade na cidade. Na busca de soluções, entretanto, a discussão se faz tendo como ponto de partida não a legislação e os entendimentos atuais acerca do tombamento da cidade, mas as características que formam a sua identidade, levantadas na análise de documentos históricos de sua concepção e suas influências, e as que conceituam um patrimônio, sua significância e sua preservação. Faz-se então uma ruptura com o pensamento vigente, buscando trazer para a cidade, outra vez, aquilo que a deu origem: sua modernidade.
• 2017 •