Livro tarantino versão final

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Mauro Baptista

O CINEMA PÓS-MODERNO DE QUENTIN TARANTINO:

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SUMÁRIO Prefácio.................................................................................................................................8

2 Narrativa e palavra em Cães de alguel

Introdução..........................................................................................................................12 A política de autores..........................................................................................................16

Da história à trama...........................................................................................................75

A teoria de Gênero.............................................................................................................17

Argumento (ou história resumida)...................................................................................79

De filme policial ao filme de crime urbano ......................................................................21

A quebra da cadeia casual e cronológica............................................................................80

Encenação em profundidade no cinema de Quentin Tarantino......................................22

O questionamento do cinema convencional dos anos 1980...........................................84

Os capítulos deste livro.....................................................................................................33

Omitir e postergar na seleção e na ordem dos eventos...................................................89 Paródia e gênero.................................................................................................................91

1 O cinema pós-moderno de Quentin Tarantino Gênero, cinema clássico e cinema pós-moderno..............................................................37

Os flashbacks e a ficção como jogo de labirinto...............................................................93 Formas de jogo................................................................................................................100 O predomínio da palavra sobre a imagem.....................................................................102 Encenação e profundidade em Cães e aluguel...............................................................104

Cinefalia e ecletismo..........................................................................................................41 A recusa do naturalismo e do melodrama........................................................................42 Vontade do narrador e casulidade.....................................................................................50 As três formas de representação fundamentais do cinema de Tarantino.......................57 Cenas do cotidiano.............................................................................................................59 O jogo.................................................................................................................................63 Taratntino e a relação com o cinema do passado: Paródia, pastiche e jogo....................70

3 Pulp fiction: O acaso e a invesão das convenções de gênero A inversão de aspectos estruturais de gênero................................................................116 Das cenas do cotidiano ao absurdo.................................................................................133 Uma elaborada estrutura narrativa................................................................................136 Realidades e interpretações.............................................................................................140 A dupla performance e a paródia....................................................................................143 O acaso.............................................................................................................................150 Moral e consumo..............................................................................................................153 Encenação em profundidade em Pulp Fiction...............................................................159

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4 Maturidade e tempo em Jackie Brown O tempo do cotidiano......................................................................................................164

Mr. Blonde Cães de aluguel (1992)

A crítica ao sentimento americano.................................................................................167 Realismo, presente e autoconsciência.............................................................................175 Cenas do cotidiano...........................................................................................................180 A atração subordinada e comentada...............................................................................185 Distancieamento e autoconsciência................................................................................188 Personages, consciência de si e diálogos.........................................................................191 Da manipulação do narrador à ambivalência em torno da casualidade........................200 Cultura de massas e consumo.........................................................................................205 À procura de uma moral..................................................................................................210

5 Kill Bill 1 e 2, à prova de morte e bastardos ingllórios: A consolidação de um mesre do cinema

Jules Winnfield Pulp fiction (1994)

Kill Bill, os filmes de artes marciais e o western............................................................214 Encenação em profundidade e design de produção em Kill Bill.....................................217 Encenação em profundidade e design de produção em Kill Bill 2: Abertura e o massacre de Two Pines.................................................................................................................221 O massacre de Two Pines................................................................................................226

Louis Gara Jackie Brown (1997)

À prova de morte ............................................................................................................230 Bastardos inglórios, a obra-prima de Quentin Tarantino.............................................234 Conclusões........................................................................................................................243 Referências Bibliográficas................................................................................................246

Beatrix Kiddo e Bill Kill Bill (2003) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 6-7

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Prefácio

Com o cinema de Quentin Tarantino, de Mauro Baptista, um dos principais cineastas da atualidade recebe, em português, uma reflexão condizente com a dimensão de sua filmografia. Desde seu aparecimento, Tarantino obteve repercussão imediata na mídia. Durante muitos anos, no entanto, seu talento foi mantido em suspenso, oscilando à espera de uma confirmação. Cada nono filme (e seus filmes são bastante espaçados entre si) demandava mais um degrau para o reconhecimento definitivo. o tipo de cinema no qual se embrenhou, ativo no corpo a corpo com gêneros cinematográficos pouco valorizados, talvez tenha contribuído para a atitude desconfiada. A obra de Tarantino possui um viés pouco afeito a abordagens com foco temático ou conteudístico, em que boa parte da crítica costuma centrar sua atividade. Um dos méritos do trabalho de Mauro Baptista é colocar o dedo na ferida e direcionar a análise para a espessura textual cara ao diretor. É impossível pensar Tarantino sem dialogar com a história do cinema e das formas estilísticas que ela traz consigo. Daí a impressão de deslocamento na crítica ético-valorativa de sua obra, que parece girar em falso, ao sustentar a recusa da representação da violência por falta de um porto seguro que sustente a boa consciência. O livro evita essa armadilha e coloca o autor na perspectiva que lhe cabe: cineasta da virada do milênio, regurgita a massa imagética que lhe atravessa mediante tradições diversas, manipula tecnologias que brilham como eterna novidade aos olhos da humanidade debruçada em seu novo brinquedo maquínico. Tarantino é o que é o cinema em sua tradição mais densa: a que teve espessura para gerar sua própria modernidade. Tradição encarnada à perfeição pela nouvellevague francesa que, no momento seguinte, gera em seu esgotamento rococó os volteios e as redondilhas com os quais o diretor constitui sua obra. O que pode parecer uma modernidade esgotada aqui adquire tensão necessária para esticar o arco e atirar a flecha, percorrendo o cinema do cinema do cinema de gênero. É nesse sentido que podemos dizer- que a análise proposta

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proposta pelo livro está situada em um ponto de vista privilegiado para levar adiante seu

vas diversas, sobre estilo e mise-en-scàne- David Bordwell aborda o tema em Figuras traçadas na luz:

intento. Evitando os escolhos da abordagem conteudística, de viés ético/social, coloca-se

A encenação no cinema (papirus, 2008) e Jacques Aumont retorna de modo esclarecedor ao assun-

frente a frente com a história do cinema e, em particular, com o cinema de gênero, a fim de

to em le cinima et la mise-en-scàne (Armand Collin, 2006). Ao colocar Tarantino como autêntico

flexionar a visão que daí parte. Sendo trabalho de origem acadêmica, o quadro conceitual

herdeiro da tradição da mise-en-scàne no cinema, a análise abre um flanco fértil de abordagem e se

do texto está bem cercado e permite agilidade na análise fílmica, para além da metodologia

situa no coração da obra de que trata. Tarantino não se relaciona abstratamente com a história do

descritiva. Aborda individualmente cada um dos, longas-metragens do autor, tendo no ho-

cinema, recortando-a em uma miríade de citações, mas lida com um conjunto de procedimentos de

rizonte elementos estruturais que permitem a visão de conjunto da obra. Trata-se de uma

estilo pensados em seu âmago como “encenação”. O desafio é amplo e o livro o enfrenta com desen-

aposta alta, correspondida no final da leitura.

voltura, pois não é fácil olhar para dentro da imagem e lá enxergar de que elementos é composta

O texto amarra uma visão unitária e coerente da filmografia de Tarantino, trazendo

plasticamente. Tarantino não só sabe ver, como também sabe fazer com base no que soube olhar.

como motor um desenvolvimento conceitual seguro e a capacidade de Baptista em ver ci-

Trata-se do diferencial, do coração que bate em sua obra, e é para aí que o livro de Mauro Baptista

nema. Talvez esteja aí o principal diferencial do livro. Trata-se da interpretação de alguém

soube se dirigir, abrindo um interessante caminho conceitual para atingi-lo.

que sabe olhar para a imagem cinematográfi ca e para seu estilo com base numa visão diacrônica. Para isso, é preciso acreditar no cinema, ter gosto por sua arte, conforme viceja em seu veio historicamente mais denso aquele mesmo que serve de inspiração para o cineasta abordado. É nessa direção que, acertadamente, deixa na periferia conceitos como naturalismo ou melodrama, mais frágeis em sua horizontalidade, abrindo espaço para que a quadra exploitation, gênero, paródia e jogo/ acaso seja colocada no âmago da análise. O livro então toma impulso e destila os elementos estruturais que configuram a estilística de Tarantino, nos diversos filmes e roteiros que compõem seu universo, configurando a idéia de um autor. Mais uma vez a perspectiva aberta é boa e a análise, bem situada, rende frutos. Saber ver cinema é um mérito que muitos não possuem. Para a alegria dos amantes da arte, tanto o autor do livro como o autor dos filmes possuem esse dom. E para falar de alguém que conhece filmes e sua história, faz-se necessário uma pessoa capacitada para o desafio do corpo a corpo com a estilística do cinema que a obra de Tarantino propõe. Ao valorizar conceitos como mise-en- scène, estilo e autoria, Mauro Baptista encontra uma boa ferramenta analítica para adentrar essa dimensão do cineasta. Mostra-se igualmente em sintonia com as tendências mais frutíferas da atualidade. Não é à toa que dois dos principais pensadores de cinema da atualidadepublicaram obras recentemente, em perspecti-

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Introdução

No início dos anos 1990, eu morava no Rio, mais precisamente no Jardim Botânico, onde sublocava um andar de uma casa grande numa rua bem alta, Afrânio de Mello Franco. Uma noite, durante a semana, decidi ir ao cinema em Botafogo, queria assistir a um filme americano que acabara de estrear e que tinha um cartaz que, do meu ponto de vista, prometia um bom filme: um homem vestido de terno Preto apontava uma arma para outro homem. Era Reservoir dogs, cujo título em português ficou Cães de aluguel. Tendo sido criado por um pai fanático por variadas formas de cinema, admirador e conhecedor da melhor tradição do cinema americano clássico, duro e “muscular” - western,filme noir, policial-, fui ao cinema com boa expectativa. Logo no começo da sessão, estava maravilhado, em estado de êxtase. Assistia à cena inicial e não conseguia conter minha surpresa e meu deslumbramento. O que eram aquela câmera circular, aqueles diálogos afiados, aquela decupagem? E o plano dos membros da gangue em câmera lenta? Genial. Aquele sujeito era um grande diretor. Saí do cinema comovido. Fazia muito tempo não via um talento daqueles. Tempos depois, resolvi morar em São Paulo e fazer doutorado na USP: “Quentin Tarantino: História, comentário e cultura pop no filme de crime”. Mas até então ele tinha dirigido apenas um longa-metragem. Escrevi o projeto e o apresentei enquanto Pulp fiction era lançado. Cinco anos depois, em 1999, defendi minha tese, com uma banca formada por Ismail Xavier, Fernão Ramos, Dora Mourão, Lúcia Nagib e meu orientador, Antônio Luiz Cagnin. Dessa tese, reescrita e reformulada, surge este livro.

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O cinema de Quentin Tarantino

sua vez um débito do cinema com o teatro. Ao mesmo tempo, integra a essa base clássica cineastas modernos como o primeiro Godard, pós-clássicos autorais como Kubrick e Scorsese e um cinema pós-moderno paródico que tem em Sergio Leone, nos anos 1960, um precursor e em Brian De Palma seu principal expoente, nos anos 1970 e 1980, e que

O propósito geral deste trabalho é analisar e interpretar o cineasta Quentin Tarantino e

se propagou nos cinemas de Hong Kong, no exploitation italiano (Enzo Castellari, Lucio

os sete longas-metragens escritos e dirigidos por ele, que tiveram lançamento entre 1992 e

Fulci) e no exploitation americano (Jack Hill) entre as décadas de 1970 e 1980. O cinema

2009: Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992), Pulp fiction, tempo de violência (Pulp fiction,

de Tarantino também se opõe claramente a um segundo tipo de cinema, que podemos de-

L994), Jackie Brown (1997), Kill Bíll 1 (2003) e Kill Bill 2 (2004), À prova de morte (Death

nominar cinema convencional contemporâneo, ou pós- moderno conservador, baseado em

proof,2007) e Bastardos inglórios (lnglourious basterds,2009).

narrativa clássica linear simplificada, com personagens esquemáticos e pontos de virada

Consideraremos como contexto do objeto central os três roteiros de Tarantino dirigidos

preestabelecidos, histórias baseadas na mitologia (conforme Joseph Campbell) e abundân-

por outros, Amor à queima-roupa (True romance, 1993, de Tony Scott), Assassinos por na-

cia de efeitos especiais. Cinema de fórmula que vem dominando Hollywood desde os anos

tureza (Natural born killers, 1994, de Oliver Stone) e Um drinque no inferno (From dusk

1980, cujos representantes típicos são George Lucas e Steven Spielberg.

till dawn, 1996, de Robert Rodriguez), e o curta-metragem “O homem de Hollywood” (“The

No estudo de Quentin Tarantino, desejo unir as abordagens da teoria dos gêneros ci-

man from Hollywood”), que Tarantino realizou para o filme Grande Hotel (Four rooms,

nematográficos (genre theory) (Schatz 1981, p. 8) e da política de autores (politique des

1995), com outros três episódios, dirigidos por Allison Anders, Alexander Rockwell e Ro-

auteurs), consideradas opostas nas décadas de 1950, 1960 e 1970. Pretendo superar o an-

bert Rodriguez. Minha abordagem pretende unir a forma como Tarantino conta uma his-

tagonismo e incorporar as contribuições de dois métodos críticos que se complementam,

tória, o manejo das matérias de expressão próprias do cinema (o denominado estilo), a

já que a teoria de gênero se ocupa dos sistemas de convenções narrativas e temáticas, e a

dramaturgia e os aspectos culturais e ideológicos. Consciente ou inconscientemente, todo

política de autores, dos cineastas que trabalharam efetivamente dentro desses sistemas.

cineasta se coloca a favor de um tipo de cinema e em oposição a outro. Por isso, frequente-

A combinação de teoria de gênero e da política de autor me parece adequada para analisar

mente, analiso o cinema de Tarantino com referência ao que ele não é.

um cineasta que faz cinema de gênero de uma perspectiva consciente de autor. Devo pre-

Estudar um cineasta como Tarantino não é tarefa fácil. Ele é um autor eclético, enciclo-

cisar que minha abordagem não se limita à teoria de gênero e à política de autores, utiliza

pédico e autoconsciente por excelência, que evoca várias formas de fazer e pensar o cinema

também influências de outros campos teóricos, como abordagens textuais que, partindo do

num mesmo filme e se alimenta delas. Nessa análise por oposições, diferenciei Tarantino de

formal, realizam uma análise cultural-ideológica.

vários tipos de cinema. O primeiro, o cinema clássico de Hollywood, que, embora seja o modelo dominante até hoje, também é, numa acepção mais delimitada, um modelo que ocupa um período histórico que vai de 1915 até 1960. Do cinema clássico, herança fundamental, Tarantino incorpora principalmente os gêneros e suas convenções, a mise-en-scène eficaz (à la Howard Hawks), o prazer de contar histórias e o domínio dos diálogos e da palavra, por

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A política de autores

A política de autores foi formulada por um grupo de críticos, entre eles Jean- Luc Godard, François Truffaut, Eric Rohmer e Jacques Rivette, nos Cahiers du Cinéma dos anos 1950. Liderados por André Bazin, esses críticos definiram a política dos autores, privilegiando o filme de gênero e o estilo, com ênfase na mise- en-scàne como alternativa para a crítica mais tradicional, que valorizava os grandes temas e significados. A política de autores destinava-se a reavaliar diretores americanos que trabalhavam de acordo com as regras de Hollywood e conseguiam desenvolver uma obra pessoal. Nos Estados Unidos, Andrew Sarris (1962-1963) reformulou essa política, denominando-a teoria de autor, radicalizando seus princípios e tirando grande parte de sua sutileza e ambiguidade. Na Inglaterra, a influência da política de autores expressou-se principalmente na revista Movie, em artigos de críticos como Ian Cameron, V.F. Perkins e Robin Wood (Caughie 1981, pp. 48-60). A crítica auterista atacou os filmes qualificados de filmes de arte pela importância dos temas que escolhiam tratar e pela abordagem estilística acadêmica (o chamado “cinema de qualidade”). Em contrapartida, colocou como grandes autores especialistas em cinema de gênero pouco reconhecidos pela crítica da época, como Howard Hawks, Alfred Hitchcock, Raoul Walsh, Samuel Fuller e Anthony Mann. Por outro lado, a política de autores rebaixou o prestígio de diretores considerados grandes pela crítica anterior, como William Wyler e outros, hoje considerados mestres, como Billy Wilder. Da política de autores, analisarei quatro aspectos inter-relacionados: o repúdio da distinção entre arte e entretenimento, entre alta cultura e cultura de massas; a crítica, portanto, ao cinema “de qualidade”, que se proclama de arte pela nobreza do tema e por um estilo calculado para parecer sofisticado; a preocupação com o estilo, considerado essencial Quentin Tarantino

Quentin Tarantino Cães de alguel (1992) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 16-17

para definir um autor; e a avaliação positiva dos filmes de gênero. Do último ponto, surge a releitura dos gêneros que Jean-Luc Godard e François Truffaut viriam a fazer. O primeiro

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gumenta que esses processos transformações periódicas. Steve Neale (1995, p. 170) argumenta que

conceitos contra os filmes de gênero e de massas: apenas a análise de cada filme nos dirá se

esses processos podem ser dominados pela repetição mas também marcados fundamentalmente

ele tem valor ou não. Isso implica abolir a oposição, forte no pensamento ocidental do sé-

pela diferença, variação e mudança. (...) A natureza processual dos gêneros se manifesta como uma

culo XX, entre alta e baixa cultura, entre a Grande Cultura, com maiúsculas, e as culturas de

interação de níveis: o das expectativas, o do corpus genético e o das regras e formas que governam

massas; implica pensar a cultura como algo dinâmico, com uma permanente interação entre

a ambos. Cada novo gênero constitui um adendo a um grupo já existente de gêneros e implica uma

suas diversas manifestações. No que tange ao estilo, ele é uma preocupação central deste

seleção do repertório de elementos genéricos disponíveis em qualquer ponto do tempo.

* Neste livro, são minhas as traduções de trechos retirados de obras estrangeiras.

aspecto mencionado inclui a rejeição de todo tipo de cânones no cinema, bem como de pre-

trabalho: concentrarei minhas análises na mise-en-scàne, na decupagem e na performance.

A teoria de gênero

Gêneros como processos - Em princípio, não é fácil definir o termo gênero, dadas as diversas concepções formuladas nas últimas três décadas. Segundo Thomas Schatz um filme de gênero envolve personagens familiares e unidimensionais num padrão de história previsível e num contexto familiar. Os filmes que não são de gênero, por sua vez, apresentam personagens não familiares, “indivíduos singulares a quem nos referimos não tanto em termos de experiências fílmicas anteriores, mas em termos de nossas próprias experiências do “mundo real” (Schatz 1981, pp. 7-8).* O filme de gênero se relaciona com o grupo de filmes preexistentes que formam o gênero e criam um mundo ficcional. A noção de gênero evoluiu de concepções baseadas em aspectos temáticos e formais para outras, que assinalam a importância da interação desses aspectos com o público e a indústria. Os primeiros escritos sobre gênero pensavam o conceito de forma histórica. Os gêneros eram estudados como estruturas fixas, isoladas do contexto econômico e social. Em contrapartida, trabalhos mais recentes, como os de Rick Altman e Steve Neale, pensam os gêneros como estruturas em contínua interação com público, indústria e crítica (Neale 1980 e 1995;Altman 1988 e 1989). Os gêneros não são formas isoladas, homogêneas, mas processos, sistemas que sofrem transformações periódicas. Steve Neale (1995, p. 170) ar-

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Como os corpus genéricos estão sempre mudando e se expandindo, arrolar exaustivamente

inovação dentro do universo de gênero e obtém sucesso, a indústria repete a fórmula em

os elementos que conformam cada gênero não se faz sem dificuldade; daí a necessidade de

várias produções. A tentativa imediatista de retrabalhar uma inovação é um ciclo, um jogo

historiar as definições de gêneros. Rick Altman (1988, p. 3), no artigo “Reusable packaging:

marcado pela repetição e pela diferença. Qual a diferença entre um ciclo e um subgênero?

Generic products and the recycling process”, nota que a terminologia genérica costuma

Um ciclo é um grupo de filmes localizados num período histórico específico de duração li-

envolver nomes e adjetivos, e que seguidamente uma mesma palavra ocupa duas funções:

mitada. o filme de gângsteres dos anos 1930 foi um ciclo que ocorreu de 1929 a 1933. Mas,

comédia musical ou musical. Os primeiros usos do termo são invariavelmente de natureza

se pensarmos o filme de gângsteres como um gênero, ele terá vários ciclos: o inaugural, já

adjetival, descrevendo uma ampla categoria estabelecida (poesia lírica ou poesia épica).

mencionado; o da segunda metade da década de I 930 (Anjos de cara suja [Angek with dirty

Usos posteriores produzem a liberação do adjetivo de seu substantivo e a formação de

faces] , 1938, de Michael Custiz; Heróis esqueci dos [The roaring twenties],1939, de Raoul

uma nova categoria com seu próprio status independente (ibid., p. 4). Altman descreve o

Walsh; Beco sem saída [Dead end], 1937, de William Wyler); o terceiro ciclo, como parte

processo da seguinte forma:

do filme noir (Fúria sanguinária [White heat],I949, de Raoul Walsh; os assassinos [The

Poesia lírica é um tipo de poesia; quanto mais tipos de poesia nomearmos mais reforça-

killers], 1946, de Robert Siodmak); o cinema de crime de Don Siegel, samuel Fuller e Roger

remos a existência da poesia como uma categoria independente, em que cada tipo corres-

Corman dos anos 1950 e 1960 (Assassino público número um [Baby Face Nelson],1957,

ponde a um diferente aspecto em potencial da poesia. Quando abandonamos o substantivo

de Don Siegel; A lei dos marginais [Underworld USA], 196r-, de Samuel Fuller; Domina-

e promovemos o adjetivo à categoria de substantivo - a lírica - fazemos bem mais que sim-

dos pelo ódio [Machine gun Kelly],l958, de Roger Corman); até produções isoladas como

plesmente passar de um tipo genérico - poesia - a um caso específico - o poema lírico. Ao

o poderoso chefão I (The godfather I, 1972) e II (1974), de Francis Coppola; O rei de Nova

atribuirmos ao adjetivo a qualidade de substantivo, indicamos que a lírica existe como cate-

York (King of New York, 1990), de Abel Ferrara; e Scarface ( 1983), e Os intocáveis (The

goria independente de poesia, o substantivo que ela originalmente modificava. (Ibid., p. 3).

untouchables, 1987) de Brian De Palma.

Altman nos lembra que, antes de o western ser um gênero, havia melodramas western,

Em contrapartida, o subgênero é um grupo de filmes, de quantidade limitada se compa-

aventuras western, romances western e até comédias western, dramas western e épicos

rado a um gênero, que atravessa diversos períodos históricos, e cuja definição quase sempre

western (ibid., p. 4). os gêneros formados quando os adjetivos passam a ser substantivos

necessita mais de uma palavra, por exemplo, caper film (filme de golpe, com O grande golpe

(como comédia, melodrama, épico) podem ser substituídos ao serem modificados por ou-

[The Killing], 1956, de Stanley Kubrick, e Cães de aluguel, 1992, de Quentin Tarantino);

tros termos, que passam de adjetivos a substantivos (como musical, western). Esse pro-

women in prison film (filmes de mulheres em prisões, como Celas em chamas [Caged heat],

cesso de mudança permanente gera confusões, visto que se empregam nomes de gêneros

1974, de Jonathan Demme, e The big doll house, 1971, de Jack Hill); comédia policial; co-

criados em diversos momentos históricos: gêneros que existiram, que existem e que ainda

média musical.

não existem completamente (ibid.,p.7). Do ponto de vista de Neale e Altman, que compartilho, os gêneros são produtos transitórios e históricos de processos permanentes. Ciclos e subgêneros - Os projetos de lucros a curto prazo da indústria levam-na a capitalizar tendências e a estruturar os filmes de acordo com a atmosfera cultural. Se um filme apresenta uma

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1. Por exemplo, os flashbacks não vêm acompanhados de voz over.No filme noir, os flashbacks provêm da subjetividade de um personagem, nos filmes de Tarantino provêm da instância narrativa.

Do filme policial ao filme de crime urbano

Encenação em profundidade no cinema de Quentin Tarantino

A filmografia de Tarantino se insere num gênero que podemos denominar “filme de cri-

O cinema de Tarantino apresenta uma sofisticada mise-en-scène. Parte essencial deste

me”. A denominação mais empregada em português, filme policial, parece-me inadequada e

livro é o estudo não só da dramaturgia e dos aspectos culturais e ideológicos do cineasta,

pouco precisa para qualificar firmes que se concentram nos criminosos e nos quais o papel

mas também do estilo, da forma como ele dirige. Para isso, farei uma análise detalhada da

da polícia é secundário, Durante o transcurso deste trabalho, investiguei os gêneros da

encenação e do enquadramento, combinando a pesquisa acadêmica com minha reflexão

violência e do crime e suas diferentes denominações. Filme noir, por exemplo, fala de um

como diretor de cinema e de teatro. A encenação é um dos quatro aspectos da mise-en-

grupo de filmes com padrões narrativos e temáticos comuns realizados entre 1941 e 1958.

-scène (os outros são a iluminação, a performance e a ambientação). O enquadramento

Alguns críticos empregam a expressão, desconsiderando o período histórico, para se referir

é um dos componentes da fotografia. Enquadramento e encenação compreendem várias

a filmes das décadas de 1970,1980 e 1990 que eventualmente compartilhem com a tradição

escolhas de estilo, que distinguem o trabalho de um diretor, como a posição de câmera, a

noir das estruturas narrativas e dos temas. Todavia, mesmo nesse sentido, não seria apro-

posição dos atores, a disposição dos objetos e a locação. Embora o enquadramento seja,

priado falar de noir ou neo-noir no caso de Tarantino: embora partilhe algumas estratégias

tecnicamente falando, parte da fotografia, num cinema mais autoral costuma ser, sobretu-

narrativas, como os flashbacks - ainda que com diferenças importantes, não compartilha

do, responsabilidade do diretor, ao passo que, na produção mais convencional e industrial

sua visão de mundo. A categoria firme de gângster (gangster film) tampouco é apropriada:

de Hollywood, tal tarefa cabe principalmente ao diretor de fotografia. Quentin Tarantino

o gênero tem um padrão de ascensão e queda de um criminoso, distante do universo de

se inclui na escola mais autoral, no primeiro caso: decide o enquadramento e delega ao

Tarantino. A expressão mais adequada, a meu ver, é filme de crime urbano (urban crime

fotógrafo os aspectos específicos de luz, película e lentes. O tipo de enquadramento e a dis-

film). Esse gênero se ocupa das atividades criminosas nas cidades da década de 1920 até

posição dos atores no espaço determinam um tipo de montagem. Não faremos um estudo

nossos dias, lidando com violência, morte, investigações (Thomson 1977). Por uma ques-

detalhado da montagem em seus filmes, mas analisaremos sua relação com o enquadra-

tão de espaço, utilizarei apenas a expressão filme de crime, como sinônimo de filme de

mento, a encenação e a profundidade de campo. Mise-en-scène e profundidade de campo

crime urbano.

- Na acepção mais difundida, a profundidade de campo designa a capacidade das lentes da

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câmera de captar diversos planos de ação em foco. David Bordwell (1997,p.56) afirma que é um erro interpretar profundidade de campo como equivalente de profundidade de foco: Profundidade de campo também inclui a possibilidade daquilo que denominamos “encenar em profundidade”, ou seja, dispor objetos significativos ou atores a diferentes distâncias da câmera, sem considerar se todos esses elementos da cena estão em foco. Por exemplo, nos filmes de Renoir de 1930, as cenas frequentemente estavam dispostas em profundidade, sem que todos os planos se mantivessem nitidamente em foco.

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Segundo Bordwell (ibid., pp. 46-53), para os críticos franceses do período do pós-guerra - com destaque para André Bazin -, o termo profundidade de campo significava a capacidade de encenar em profundidade, com diversos níveis de profundidade em foco ou não. Profundidade de campo e nitidez de foco são escolhas técnicas que permitem refletir sobre o ponto central de minha abordagem: como filma Tarantino. Suaestética cinematográfica privilegia dois traços no plano: marcar a passagem do tempo e encenar em profundidade. Por encenar em profundidade, refiro-me à capacidade de dispor personagens, objetos de cena e locação em vários níveis, como, por exemplo, colocar o rosto de um personagem na frente do quadro, interagindo com outro no fundo, distante um ou mais metros do primeiro; ou um objeto na frente, um personagem na metade do espaço e outro no fundo. Um olhar atento para cineastas contemporâneos que optam por encenar em profundidade de campo, como Tarantino ou o James Cameron de Titanic, revela o quanto a distinção entre profundidade de campo e profundidade de foco é pertinente para a análise .Em Pulp fiction e Titanic,predominam os planos com uma progressiva perda de foco, que permitem distinguir as figuras do fundo, observar seus movimentos e sua relação com os elementos mais próximos da lente. Tarantino opta por profundidade de campo e montagem pausada, ao passo que o cinema contemporâneo convencional trabalha com planos com pouca profundidade e uma edição cada vez mais rápida. O cinema clássico de Hollywood adotou uma decupagem de planos de curta duração, que segue regras como o eixo de 180 graus, o plano geral que estabelece a ação (establishing shot), o campo e contra campo, a continuidade espacial e temporal entre planos da mesma cena. Do ponto de vista de produção, a divisão de uma cena em vários planos facilita a filmagem; esse sistema permite um maior controle do produto na pós-produção. A decupagem clássica costuma ser acompanhada do que se chama cobertura: filmar uma mesma ação com diversas tomadas, para cobrir-se de possíveis falhas num plano. Por outro lado, existem aqueles diretores (entre eles, Tarantino) que rejeitam a cobertura e filmam a cena de forma a impossibilitar uma montagem diferente daquela concebida na filmagem. Frequentemente, são diretores que valorizam planos de longa duração e a continuidade da performance dos atores na mesma tomada. Qual é a forma de filmar convencional e dominante da década de 1980 até hoje? Há

Jules e Vega Pulp fiction (1994)

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predileção por planos de curta duração e montagem rápida. Essa montagem leva a preferir

maior espaço lateral do formato anamórfico (vulgarmente conhecido como scope). O outro

tomadas que tenham apenas um nível em foco (em geral, o personagem em questão). To-

formato muito usado pela indústria americana, o 1,85 (o favorito de Spielberg), também

madas com apenas um nível em foco levam o montador afazer mais cortes, já que o tempo

apresenta pouca profundidade de campo se comparado com o formato 1,66, preferido pelo

de leitura do espectador é menor do que em planos com diversas escalas de profundidade.

cinema europeu e brasileiro, ou com à antigo 1,33, característico do cinema clássico preto e

De forma geral, o cinema convencional contemporâneo apresenta pouca profundidade de

branco dos anos 1930 e 1940. A escolha de formatos de tela larga com pouca profundidade

campo e foco. Há razões técnicas que apoiam esse tipo de

de campo reforça a preferência do cinema convencional de Hollywood por uma montagem

cinematografia. David Bordwel,(ibid.,p.237) lembra que, nos anos 1950, a introdução do

rápida. Planos com várias escalas de profundidade exigem que o espectador tenha tempo

formato anamórfico (um dos processos registrados foi o cinemascope) e o uso generalizado

para ler a imagem e estabelecer as relações entre personagens e objetos na frente e no fun-

da cor (que exige mais luz que o preto e branco) marcaram o fim do estilo de profundidade

do da imagem. Enquadramentos típicos do widescreen, como primeiros planos com apenas

de campo e de foco que dominou o cinema americano em preto e branco na década de 1940.

uma parte de um ator em foco, exigem o corte rápido para outro plano que mantenha o in-

O negativo de cor precisava (e precisa) de mais luz que a emulsão do preto e branco para ob-

teresse do espectador. O cinema convencional contemporâneo trabalha com uma profundi-

ter profundidade de campo. O formato widescreen trouxe mais espaço fílmico lateral, mas

dade moderada. A combinação de movimento de câmera com rack focus permite extensos

uma notória diminuição da profundidade de campo. A profundidade dos filmes widescreen

planos em que a câmera faz uma panorâmica de um ponto a outro, mudado o nível em foco,

era tão limitada que os diretores foram obrigados a encenar de forma lateral: os atores eram

numa montagem interna, sem corte. É à que chamo de profundidade parcial: não há simul-

colocados numa linha perpendicular. Na metade dos anos 1950, os diretores de fotografia

taneamente diversas escalas de profundidade nítidas para o olho do espectador.

que trabalhavam com filmes widescreen e com cor tinham, em geral, resignado-se a fundos

Planos de curta duração com pouca profundidade de campo, longos planos com steady

fora de foco em primeiros planos e em planos médios. os problemas diminuíam em cenas

cam com rack focus, planos em exteriores com profundidade moderada, predominância de

externas ensolaradas e com o uso de lentes grande-angulares (ibid.,pp.239_241).

planos próximos (close, plano médio) com o fundo esmaecido, montagem rápida, eis o es-

Bordwell descreve como o filme widescreen não aboliu, mas modificou, a prática de en-

tilo da indústria cinematográfica de hoje. Encenação em profundidade - O enquadramento

cenar em profundidade. A partir dos anos 1960, encontramos algumas estratégias nesse

de Tarantino guia-se pelo princípio de omitir uma parte vital da ação, preferindo deixá-la

sentido: mudança de foco no curso da cena (técnica chamada em inglês de rack focus),

no espaço off. Esse enquadramento é parte de uma narrativa baseada na ocultação de dados

passando de um ponto a outro, ou inclusão de elementos importantes que não estejam em

importantes. Nessa lógica da omissão, Tarantino recorre a enquadramentos que mostram

foco nítido, sem se importar com a visibilidade total (ibid., pp.242-256). Essa combinação

um outro enquadramento (um quadro dentro de um quadro),com predileção por batentes

de profundidade e foco seletivo é típica do estilo predominante na indústria atual. Ainda

de portas. Frequentemente, a limitação imposta pelos batentes deixa um personagem fora

hoje, na década de 1990, apesar de avanços, com novas lentes e películas mais sensíveis à

de campo. Exemplo: o espectador ouve dois personagens conversando, mas vê apenas um

luz, o formato widescreen continua criando problemas para a obtenção de vários níveis de

deles, como na discussão inicial de Mr. White e Mr. Pink no galpão (Cães de aluguel) ou no

profundidade com nitidez de foco.

diálogo no banheiro entre o boxeador Butch e sua namorada, Fabienne (Pulp fiction).

Atualmente, a maioria das produções de porte da indústria hollywoodiana prefere o

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Tarantino costuma afastar a câmera do primeiro elemento importante no quadro, os

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Butch Coolidge Pulp fiction (1994) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 28-29

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atores, as molduras ou um objeto de cena. O vasto espaço fílmico entre câmera e ator termi-

créditos, Vincent e Jules conversam no carro sobre as diferenças entre Europa e Estados

na provocando distanciamento no espectador.Em Cães de aluguel, essa composição de qua-

Unidos, a câmera permanece “invisível” e mostra dois habitantes de Los Angeles falando

dro domina as cenas do galpão. Quando, à distância física, agrega-se o recorte da moldura,

de banalidades num carro. Mas, quando os dois matadores pegam as armas, a câmera os

aumenta o distanciamento e a compreensão de que há uma instância externa que tem um

enfoca de dentro do porta-malas, primeira posição de câmera da sequência que cria distan-

determinado ponto de vista. Dentro de uma dicotomia simplificadora, que distingue entre

ciamento. Um extenso travelling em plano de conjunto, na altura dos olhos, segue Vincent

um cinema baseado na montagem (cinema americano) e outro baseado no plano (cinema

e Jules enquanto caminham no jardim de um prédio e falam sobre televisão, outro enqua-

europeu), Tarantino filia-se sem dúvida à segunda tradição: prefere o plano como entidade

dramento que constrói o realismo do cotidiano. Quando entram no prédio, um plongée

fundamental do cinema, privilegia a continuidade da performance dos atores e valoriza

marca outra vez a existência do narrador. Já no corredor, o predomínio de decupagens não

cada corte (e portanto cada plano). O ritmo depende primeiro do plano, da mise-en-scène

obstrutivas e realistas dá lugar a uma alternância entre essa forma e o distanciamento, coe-

e, somente depois, da montagem.

rente com a mistura de diálogos banais e autoconscientes, como a discussão do significado

As posições de câmera que provocam distanciamento no espectador favorecem sua per-

de uma massagem de pés ou a frase de Jules, “vamos incorporar o personagem” (“let’s get

cepção do firme como um jogo ficcional. A postura lúdica da decupagem apresenta o fil-

into character”). Tarantino é um autor difícil de analisar, pois nem sempre opta por uma

me como resultado de escolhas propositais de um narrador. As escolhas, não naturais, no

correspondência entre a dramaturgia e a forma de representação. Quando o traficante Lan-

sentido de que poderiam ter sido outras, pertencem a um estilo enciclopédico e eclético.

ce mostra diversos tipos de heroína para Vincent, a câmera adota um ângulo baixo, com

As variações de estilo e as pontuações da posição de câmera, somadas ao humor e à estru-

visão restrita, que deflagra distanciamento, numa cena de tom realista.

tura narrativa, fazem o espectador assistir aos filmes como se fossem jogos, histórias com combinações e formas narrativas arbitrárias. Tarantino sublinha que o filme é narrado e filmado de uma entre muitas outras maneiras Possíveis. E o que dizer das passagens em que a câmera oculta sua presença, adotando um estilo menos visível, longos e elegantes travellings ou planos em tripé, próximos de um estilo clássico? É outra forma de filmar, mais adequada ao que denominamos realismo do cotidiano. Exemplos: a conversa de Eddie, Larry Freddy e Mr. Pink no automóvel, quando falam de Elois, da diferença entre mulheres negras e brancas e de Pam Grier; a discussão sobre Madonna ou sobre a gorjeta (Cães de aluguel); o papo entre Mia Wallace e Vincent Vega enquanto jantam no Jackrabbit Slim’s (Pulp fiction). Diferentes formas de filmar, que podem coexistir numa mesma passagem. Vemos novamente o ecletismo do cineasta. A longa troca de ideias entre Jules e Vincent, prévia à execução dos jovens delinquentes, oscila entre uma decupagem não obstrutiva, própria do realismo do cotidiano, e posições de câmera que distanciam. Quando, após os

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Vincent Vega Pulp fiction (1994)

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A terceira forma de representação discutida, a atração, também apresenta oscilações

É conhecida a influência do primeiro Jean-Luc Godard (de 1959 a 1964) e de Jean Pierre

entre diversos tipos de decupagem. Quando a atração se baseia fundamentalmente na ima-

Melville no cinema de Quentin Tarantino e este nutriu sua cinefilia também com o cine-

gem (como a morte dos policiais na radiopatrulha ou a injeção de adrenalina em Mia),

ma de Truffaut e Rohmer. O que discuto aqui é uma ligação mais sutil ainda do cineasta

Tarantino a apresenta com uma montagem rápida e frequentes closes,para construir uma

americano com a nouvelle vague, a mise-en-scène. O mesmo apreço da mise-en-scène que

vertigem que prenda a atenção do espectador. Alterna, porém, os planos de pouca dura-

fazia Rohmer, na fase de crítico, admirar Howard Hawks surge nos filmes da última fase

ção e profundidade com planos de conjunto de notória profundidade. Reserva os closes de

de Tarantino, abertamente pós-moderna e pastiche (Kill Bill 1e2 e À prova de morte). Se

pouca profundidade e a montagem ágil para o clímax das atrações, voltando depois rapi-

esses três filmes não mostram a mesma vitalidade ou interesse relativo à dramaturgia, di-

damente a planos com profundidade na cena. A profundidade é uma presença constante,

ferentemente da obra-prima Bastardos inglórios, o mesmo não se pode dizer em relação à

como mostram a tortura do policial em Cães de aluguel, a execução dos jovens traficantes

mise-en-scène.Em Kill Bill, À prova de morte e Bastardos inglórios, Tarantino experimenta

por Jules e Vincent e a injeção de adrenalina no coração de Mia em Pulp fiction. Quando as

vários tipos de mise-en-scène, arrisca muito como diretor e testa seu talento permanente-

atrações são momentos de choque verbais, Tarantino prefere as decupagens não obstruti-

mente. À mise-en-scène se soma outro fator, presente desde Kill Bill: nos últimos filmes, ao

vas, próximas do realismo do cotidiano. Ocasionalmente, combina-as com uma posição de

contar com orçamentos maiores, Tarantino aposta numa concepção visual única e sofisti-

câmera que distancia. Exemplo: o diálogo carregado de brincadeiras sexuais entre Eddie e

cada, numa atmosfera usual com muito maior peso da pós-produção, que estudaremos sob

Vic Vega no escritório de Joe.

o conceito de design de produção (production design), que compreende a direção de arte, o figurino e a pós-produção de imagens. Se, em Cães de aluguel e Pulp fiction, o conceito visual do filme foi decidido entre diretor e diretor de fotografia, em Kill Bill 1 e 2, por exemplo, essa operação foi realizada entre Tarantino e os designers de produção, David Wasco e Cao Ju Ping. Em Bastardos inglórios, esse investimento em design de produção é incorporado numa estratégia mais geral de fusão entre o impulso pós-moderno e o estilo clássico, numa síntese que volta a mostrar um equilíbrio difícil e virtuoso entre direção, design de produção e fotografia, e roteiro. Equilíbrio de uma perfeição tal que supera mesmo sua obra até hoje mais característica, Pulp fiction.

Mia Wallace Pulp fiction (1994)

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Os capítulos deste livro

O quarto capítulo analisa como Jackie Brown deixa de lado os momentos de agressão e choque, a paródia humorística, as rápidas alterações de tom, e opta por uma visão realista e desencantada do cotidiano na Califórnia contemporânea. Jackie Brown faz sentir o transcurso do tempo, numa abordagem que busca uma maior homogeneidade de estilo

No primeiro capítulo, estabeleço os principais conceitos que guiam a obra de Tarantino.

e um ritmo regular e pausado. Na relação entre Jackie e Max Cherry, Tarantino critica a

Apesar de incorrer no perigo da generalização, dadas as mudanças de um filme para outro,

tradição sentimentalista americana e sua impossibilidade de associar romantismo a sexo.

esse método me permitiu trabalhar em profundidade noções teóricas e, fundamentalmen-

Diferentemente de Cães de aluguel e Pulp fiction, Jackie Brown expõe um ponto de vista

te, conceber e aprofundar conceitos adequados para a obra de Tarantino. Concentro-me em

abertamente crítico sobre certos aspectos da cultura de massas e da sociedade de consumo.

demonstrar como ele faz filmes de gênero pós- modernos, não clássicos, e defino as três

Se, em Cães de aluguel, a lealdade e a solidariedade pareciam fúteis pela interferência da

formas de representação que dominam seu cinema: o realismo do cotidiano, a agressão

emoção sem raciocínio, em Jackie Brown, postula-se a necessidade de combinar esses valo-

chocante e agressiva (momentos exploitation) e o jogo.

res à maturidade e à reflexão.

O segundo capítulo mostra como o cinema de Tarantino baseia sua narrativa na distin-

O quinto capítulo analisa os filme Kill Bill 1 e 2, À prova de morte e Bastardos ingló-

ção entre a história e as várias formas possíveis de narrá-la, como recusa o naturalismo e as

rios. Nele, constataremos como, em Kll Bill e em À prova de morte,Tarantino radicaliza seu

fórmulas narrativas da indústria dos anos 1980 e 1990. Definindo o autor como reflexivo

projeto para o lado da metaficção e da reciclagem de gêneros e de filmes exploitation das

e autoconsciente, trato da paródia do gênero de crime e da autorreflexividade de persona-

décadas de 1970 e 1980. Os últimos filmes de Tarantino parecem evidenciar que ele tem

gens e atores, que provoca distanciamento. Tarantino considera a realidade e o passado

abandonado as abordagens que combinam uma aguda observação da sociedade contempo-

fragmentários, não únicos, e propõe a recuperação de valores como a lealdade e a solida-

rânea americana, presentes em Cães de aluguel, Pulp fiction e Jackie Brown.Em Bastardos

riedade num quadro geral de descrédito por tipos de moral coletiva, apontando, por outro

inglórios, mostra uma volta à tradição do cinema clássico americano. Trata-se de seu filme

lado, para a sua futilidade quando a emoção dificulta a reflexão.

mais perfeito, o mais preciso na dramaturgia, aquele em que a herança do melhor do cine-

O terceiro capítulo se concentra no acaso, princípio causal que governa Pulp fiction e que permite o que chamo de inversão de aspectos do gênero de crime. A inversão gera a fusão de

ma clássico e de gênero americano é sintetizada num projeto de cinema pós-moderno para o futuro do século XXI.

filme de crime com a comédia, as rápidas mudanças de tom e a oscilação entre as três formas de representação que dominam o cinema de Tarantino e que citei anteriormente. Pulp fiction inunda o gênero de referências à cultura pop e ao consumo, aspectos interligados e celebrados. Substitui o conflito violento de Cães de aluguel por acordos baseados numa atitude cool, que permite aos personagens pensar e dialogar. A capacidade de reflexão dos personagens torna suas decisões morais não só necessárias como acertadas.

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1 O CINEMA PÓS-MODERNO DE QUENTIN TARANTINO:

Mr. Brown Cães de aluguel (1992) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 36-37

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Gênero, cinema clássico e cinema pós-moderno

uma ampla variedade de gêneros, como o western, as histórias de mistério e a ficção científica. Os filmes exploitation dos anos 1950, 1960 e 1970, influência central na obra de Tarantino , eram realizados fora do circuito dos grandes estúdios, por companhias independentes, com o propósito de obter lucros rápidos. Eram projetados em drive- ins e salas

O cinema de gênero possibilitou que a indústria de Hollywood, em sua era clássica (de

pouco respeitáveis e tentavam atrair um público juvenil, oferecendo mais sexo e violência

1915 a 1960), oferecesse ao público uma produção diversificada e ao mesmo tempo pa-

que as produções de Hollywood. Roger Corman é provavelmente a figura mais conhecida

dronizada. Gêneros como o western,o musical, a comédia e o filme de crime baseavam-se

do exploitation, como diretor e produtor; outro nome importante é o do produtor Sa-

na repetição de padrões narrativos e temáticos com uma margem de alterações gradual e

muel Arkoff e sua companhia, a American International Pictures. O período que pesquisei

limitada, o que explica a utilização reiterada, pelos críticos, de conceitos como a tradição e

em detalhe foi a primeira metade da década de 1970, em especial os filmes dirigidos por

as convenções genéricas. Os gêneros, mesmo em processos de transformações periódicas,

Jack Hill, com a atriz Pam Grier, como Coffy (1973), Foxy Brown (1974), The big dollhouse

permitiam a diferenciação dos filmes por tipos de narrativa e de personagens, comparti-

(1971), The big bird cage (1972), mas também Switchblade Slsters (Jack Hill, 1975), The

lhando um sistema narrativo e dramático: o cinema clássico. Portanto, fazer cinema de

Mack (Michael Campus, 1978), Beyond Valley of the Dolls (Russ Meyer, 1970), Superfly

gênero implica, em princípio, seguir as coordenadas do modelo clássico de Hollywood. se-

T.N.T (Ron O’ Neal, 1973), Black Mama, white Mama (Eddie Romero 1972).

melhante observação pode parecer óbvia para o leitor, mas acho importante recordar essa

Essas são influências centrais que detectei na análise dos longas-metragens e roteiros de

relação cinema clássico e gênero, dado que há mais de três décadas que assistimos a filmes

Tarantino, com o apoio de entrevistas e críticas. Se desejarmos situar o cineasta em termos

pós-modernos e,sua reincorporarão dos gêneros em chave de paródia ou pastiche, com es-

geográficos, deveremos precisar que ele mistura o filme de crime americano com a releitura

pecial destaque para o filme de crime, geralmente chamado filme policial.

de gêneros vinculados à violência (o policial, o western, o filme de horror), realizada por

Tarantino faz cinema de gênero pós-moderno, não clássico. Ele incorpora estratégias

cineastas da França, da ltália e de Hong Kong. A relação de Tarantino com uma cinemato-

narrativas do filme noir e do cinema moderno, a paródia de filmes de gênero e a diversi-

grafia da magnitude da italiana é exemplar paia ilustrar como ele se posiciona perante o ci-

dade de estilos que se inicia na década de 1960. É um autor cinéfilo e eclético que parte da

nema e a cultura. Não demonstra especial interesse pelo cinema italiano mais reconhecido

tradição pulp e se nutre de um amplo leque de formas de fazer cinema, de Howard Hawks

e prestigiado como o neorrealismo (Rossellini, De Sica), o cinema moderno dos anos 1960

a Sergio Leone, dos exploitation films estadunidenses dos anos 1970 ao primeiro Jean-Luc

(Fellini, Visconti, Antonioni, Bertolucci) nem, tampouco, pela célebre comédia italiana

Godard (1959-1965). O pulp, conceito que ganhou reconhecimento popular como filme

(Mario Monicelli, Dino Risi). Porém, admira e identifica-se com o cinema italiano que pa-

Pulp fiction, tempo de violência (Pulp fiction, 1994), era o conjunto de revistas de narrativa

rodia gêneros, como o western (Leone, Antonio Margheritil e o spaguetti western de modo

popular que estavam no auge nas décadas de 1920 e 1930, cujo nome deriva do papel de

geral), o filme de crime e o filme de guerra (Enzo Castellari e Assalto ao trem blindado

polpa em que eram impressas. Essas revistas, entre as quais se destaca Black Mask, foram

[Quel maledetto treno blindato, 1978, cujo título em inglês é The inglorious bastards] e

importantes para o nascimento e o desenvolvimento da literatura policial ou hard-boiled

os mestres do cinema de horror (Mario Bava, Lucio Fulci, Dario Argento). Cinema italiano

(Daniel Hammet, Raymond Chandler, entre os mais importantes). Atualmente, o pulp é

de baixo orçamento, caracterizado pelo excesso, a violência e a paródia, com fins explicita-

identificado com o gênero de crime, apesar de, em sua época, os pulp magazines abarcarem

mente comerciais e pouco status cultual, que teve seu apogeu nos anos 1960,1970 e 1980.

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No cinema francês, o foco do cinema de Tarantino se volta para diretores como Godard e o Jean Pierre Melville de Técnica de um delator (Le doulos, 1962) e O samurai (Le samurai, 1967), que retrabalharam os gêneros hollywoodianos desde o cinema moderno. De forma similar ao Godard de Acossado (Àbout de souffle,1960) e Banda à parte (Bande à part, 1964),Tarantino pensa o cinema valendo-se do jogo e da citação de outros filmes e da autorreferência, com total consciência da tradição do cinema de crime (crime film). A cinefilia como estilo de vida, a reciclagem do cinema do passado e o prazer estético pela representação da violência o levam a interessar-se por filmes de artes marciais e de crime produzidos em Hong Kong nas décadas de 1970, 1980 e 1990, com destaque para John Woo. O cinema pós-moderno de Tarantino é criativo. Esclareço esse aspecto, pois qualifico boa parte do cinema pós-moderno dos anos 1980 e 1990 como conservador, uma vez que obedece a um modelo clássico simplificado, transformado em fórmula, e cita o passado cultural e cinematográfico sem estabelecer diferença (o pastiche). A distinção é importante, porque, nos últimos anos, crítica e público acostumaram-se a associar o cinema de gênero à combinação de pastiche e narrativa clássica empobrecida, diante da predominância de produções nessa linha. Tarantino realiza filmes eficazes como histórias de gênero, que, ao mesmo tempo, pensam o cinema. Bastardos inglórios (Inglourious basterds,2009), seu último filme, é o maior exemplo disso. A competência dos filmes de Tarantino como simples histórias permite que não dependam exclusivamente de guinadas reflexivas nem dos conhecimentos cinematográficos do espectador. Há várias décadas que a operação de uma obra voltar-se sobre si mesma não constitui um mérito em si. A publicidade e a televisão fazem brincadeiras autorreferentes o tempo todo. Tampouco deveria ser um grande mérito o domínio de uma simplificada narrativa clássica, hoje traço dominante do cinema contemporâneo.

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A recusa do naturalismo e do melodrama

Nesta seção, desejo expor como Tarantino se afasta do cinema clássico. O reconheci-

anos 1960 e início dos anos 1970, o cinema de Hollywood adaptou ao paradigma clássico a

mento de que o cinema de Hollywood se impôs ao mundo como a norma “correta” justifica

variedade estilística do cinema moderno dos anos 1960.2 Atualmente, o cinema contempo-

começar mostrando como Tarantino não segue o paradigma clássico. Grande parte da crí-

râneo apresenta uma variedade de estilos que torna a produção industrial algo distante do

tica define o cinema de Hollywood como realista, visão essa questionável. Prefiro pensar

filme clássico dos anos 1940 ou 1950, embora a permanência de noções da matriz melodra-

o cinema clássico como naturalista; reservo a palavra realismo para a estética que propõe

mática, como a regeneração moral e a lição de vida, relativize tal diferença. Tarantino, ciné-

uma abertura para o mundo, a fim de captar a essência das coisas (uma concepção herdeira

filo que se nutre de pelo menos cinco décadas de cinema, a mostra uma coerência formal e

de André Bazin). Ismail Xavier (1977, p. 31) define o naturalismo como “a construção de

estilística heterogênea. Cineasta enciclopédico, seu estilos resulta da síntese e combinação

um espaço cujo esforço se dá na direção de uma reprodução fiel das aparências imediatas

de diferentes abordagens com um grande ponto em comum: o jogo e a diversão com o cine-

do mundo físico”, seguindo o princípio do “estabelecimento da ilusão de que a platéia está

ma e com o mundo. Esse centro conceitual unifica seu cinema e suas principais influências:

em contato direto com o mundo representado, sem mediações”.

o sentido da aventura e da diversão de Hawks, o jogo e a crítica do cinema de Godard, a

Hollywood seleciona os acontecimentos mais relevantes e os dispõe numa ordem linear,

paródia do western de Leone, a reformulação do filme de crime de John Woo por meio da

governada por uma lógica de causa e efeito, onde o acaso tem um lugar limitado, reservado

influência do musical americano e dos filmes de artes marciais. A coerência estilística de Ta-

geralmente para o primeiro terço do filme. A coincidência pode ser fundamental para ini-

rantino é de natureza diversa da de diretores clássicos como Hawks ou John Ford, porém,

ciar a trama, mas, uma vez estabelecidas as bases da história, um evento levará ao seguinte

também da unidade de Sergio Leone, que parodiava o western clássico.

numa lógica de causa e efeito. O naturalismo associa-se a uma narrativa clássica guiada por

Tarantino trabalha no filme de crime depois de mais de três décadas de citação e re-

princípios da matriz melodramática, uma forma sentimentalista que usa a oposição entre

ciclagem, de variedade estilística moderna e pós-moderna) o que levou alguns críticos a

o bem e o mal para transmitir lições morais. Utilizo melodrama na acepção mais ampla do

qualificarem-no de autor pós-pós-moderno (Fuller 1998, pp. 174-175).

termo, não aquela que identifica o termo como o gênero do amor e dos sentimentos exacer-

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bados em particular. Num excelente artigo, Linda Williams (1998) afirma que o melodrama é a forma dominante do cinema americano, em contraposição à perspectiva, mais difundida, que concebe a representação de Hollywood como realista.

4. Do cinema clássico dos anos 1940 até a década de 1980.

Falar de estilo hoje é muito diferente de fazê-lo há três ou quatro décadas. Em fins dos

5. Defino estilo como o uso sistemático e significativo das técnicas do cinema, que compreende a mise-en-scène, a fotografia, a montagem e o som. Para mais detalhes, ver o excelente trabalho de Bordwell (1997, p. 4).

2. Falo de paradigma clássico de Hollywood no sentido empregado por David Bordwell, ou seja, um sistema que oferece uma série de escolhas ao cineasta dentro da tradição. Ver Bordwell, Staiger e Thompson (1985, p.5). 3. Como aponta Ismail Xavier (1995, p. 15), “o cinema moderno dos anos 60, entre outros efeitos, provocou rearranjos no cinema mais industrializado que mostrou sua força ao incorporar, domesticando, muitas das conquistas dos jovens autores, de modo que os processos narrativos apresentam, nas produções dos últimos vinte e cinco anos, uma variedade de estilos que torna a experiência contemporânea de massa algo distante do universo de Griffith ou mesmo do filme clássico da década de 50. No entanto, seria precipitado exagerar tal diferença, uma vez que a matriz melodramática retorna com toda força em filmes ‘para toda a família’, os mega sucessos como os de Lucas e Spielberg”.

Cinefilia e ecletismo de estilo

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está subordinada a uma narrativa realista, mas um sistema geral e dominante que se esconde por trás de efeitos realistas. Para essa autora, o melodrama é “a base do filme clássico de Hollywood” (ibid.,p.58). Quando os manuais de roteiro, tão em voga nos anos 1980 e 1990, 6. Quanto à persistência do melodrama no cinema de Hollywood, ver Williams (1998, pp. 42-88); Xavier (1996, pp.247-266); Ismail Xavier (1995).

sublinham a necessidade de que os personagens mudem e aprendam algo significativo durante a história, referem-se, sem explicitá- lo, à matriz melodramática. O cinema de Tarantino não segue os princípios do melodrama de forma estrita, mas é consciente de sua força: Pulp fiction ironiza lição de moral presente na maioria dos filmes de Hollywood. o matador Jules sente o “toque de Deus” quando as balas não o atingem e abandona o crime para viajar pregando a palavra de Deus. A regeneração de Jules explicita pelo excesso e pelo humor a lição de vida do melodrama, que em geral Hollywood prefere não apresentar tão abertamente. Cães de aluguel (Reservoir dogs,1992) busca uma mo-

Jackie Jackie Brown (1997)

ral fora da oposição entre o bem e o mal: os criminosos podem ser solidários e éticos, e

A coincidência de nomes não é casual. Tarantino desejava inicialmente que o sator Michael

o traidor (que se arrepende) é um policial. Jackie Brown (1997) critica as limitações do

Madsen interpretasse o personagem em Pulp fiction. Ambos os personagens são crimino-

sentimentalismo no relacionamento afetivo, não consumado sexualmente, de Jackie (Pam

sos com uma atitude cool, distanciada, paródica, que, sublinho, é herdeira da interpretação

Grier) e Max (Robert Foster).

pioneira e distanciada de Clint Eastwood nos três westerns que realizou com Sergio Leone. Interpretação que, na época, foi mal compreendida pela maioria da crítica, que a qualificava como não atuação. A decupagem convencional da indústria implica dividir uma cena em vários planos (em geral de curta duração e de pouca profundidade de campo), que são unidos na montagem para criar a relação entre os personagens e a unidade temporal e espacial. Cada plano tem pouca significação em si mesmo; o sentido surge na montagem. Essa decupagem favorece a produção padronizada, porque retira grande parte da responsabilidade da mise-en-scène, transferindo-a para a montagem, apoiada pela edição de som, pela música e pelos efeitos. Tarantino prefere planos de extensa duração, boa profundidade de campo e,

6. Quanto à persistência do melodrama no cinema de Hollywood, ver Williams (1998, pp. 42-88); Xavier (1996, pp.247-266); Ismail Xavier (1995). 7. Uma das carências de Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West [Once upon a time in the West], 1968), apesar de toda sua excelência, é a ausência de Eastwood, substituído por Charles Bronson. O rosto inexpressivo de Bronson, estilo pedra, carece da performance relaxad.a e paródica de Eastwood, e o personagem perde brilho e importância. Na época, Leone ofereceu o papel a Eastwood, mas este o recusou, achando que já tinha cumprido um ciclo com Leone.

Para Williams, o melodrama não é uma forma que só aparece em momentos de excesso e

em consequência, uma montagem lenta se comparada com a hollywoodiana convencional. se o incluíssemos em grandes oposições, diria que Tarantino pertence a uma tradição do plano que valoriza a mise-en-scène, identificada com a escola europeia, ao passo que o cineMax Cherry Jackie Brown (1997)

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ma americano segue uma tradição de decupagem/ montagem. Sublinhei a palavra “prefere”

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em virtude do ecletismo do diretor no modo de filmar, coerente com o ecletismo de tons, temas e formas narrativas. Anteriormente, já assinalei que, num autor como Tarantino, devemos falar de tendências dominantes num estilo heterogêneo e eclético. Esse estilo não tem o tipo de homogeneidade de clássicos como John Ford, modernos como Federico Fellini, ou mesmo contemporâneos como Mike Leigh ou James Cameron. A unidade de estilo de Tarantino surge da combinação de formas que, alguns anos atrás, pareceriam opostas e destinadas a entrar em choque. Em pulp fiction, os longos e elegantes travellings coexistem harmoniosamente com a câmera na mão nervosa em estilo documentário. Na pós-modernidade, ambas as formas de filmar não são percebidas como técnicas que se relacionam pelo choque, como o foram em sua época a combinação de cenas com jump-cuts e outras com extensos planos-sequência em Acossado. A decupagem de Tarantino mostra o representado na tela como uma ficção, um jogo, sem provocar a ilusão de que o filme é um microcosmo idêntico ao mundo “real”. O enquadramento não busca a invisibilidade, mas também não

Mr. Pink Cães de aluguel (1992)

se evidencia a ponto de interferir muito no narrar de uma história. O cinema de Tarantino

pião inglês, cinéfilo e ex-crítico de cinema. Toda decupagem, ou seja, toda divisão de uma

prefere um ponto intermediário, em que a câmera seja percebida, mas esteja subordinada à

cena em planos, já implica certo tipo de montagem. No cinema de Tarantino, a predomi-

narração dos eventos. o nível de intervenção do narrador pela presença da câmera na histó-

nância de longos planos com significativa profundidade de campo faz sentir a passagem do

ria é produto de uma combinação heterogênea de diferentes formas de filmar.

tempo e a passagem de u plano a outro, revelando o momento do corte e, portanto, a ope-

Em cães de aluguel,por exemplo, é notório o domínio da câmera na mão e dos planos de

ração de montagem. A decupagem de seus filmes não provoca a identificação da audiência

conjunto prolongados, como parte do estilo geral que evita a montagem ágil convencional

com personagens. o mecanismo de identificação do cinema clássico depende combinação

contemporânea. Embora esses dois procedimentos predominem, o filme também emprega

de dois elementos: o esquema denominado por Hollywood shot/reaction-shot e a chamada

travellings com carrinho (na fuga de Mr. pink), steady cam (quando Mr .Orange mata Mr.

“câmera subjetiva” (Xavier 1977,p.26).Na estratégia de shot/reaction-shot, o novo plano

Blonde) e, em raras ocasiões, montagem rápida (quando Mr. White mata dois policiais). Já

explícita o efeito, no comportamento de algum personagem, de acontecimentos mostrados

em Pulp flction, há menos câmera na mão, predominam os travellings e os planos extensos

anteriormente (algo acontece e a isso segue um plano do herói explicitando sua reação) ou,

em steady cam ou tripé, norma dominante de um estilo suave, elegante e calmo. No entan-

estratégia-inversa, num plano personagem observa e, no seguinte, a câmera mostra o que

to, mais uma vez, as rápidas mudanças de tom justificam ocasionalmente utilizar câmera na

o personagem vê de ponto de vista, combinação de shot/reaction-shot e camera subletiva

mão nervosa e montagem rápida na cena da overdose de Mia Wallace. Bastardos inglórios

(ibid). Alfred Hitchcock foi um dos cineastas que melhor utilizou essa combinação; Brian

se destaca por seus brilhantes enquadramentos com câmera fixa, no tripé, utilizando com

Palma a incorporou com algo de afetação e aproveitou os avanços tecnologia representados

maestria o formato de tela larga. Penso, por exemplo, na cena em que é introduzido o es-

por gruas mais sofisticadas, “câmeras” de menor peso e steady cam.

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Cães de aluguel e Pulp fiction (não Jackie Brown) utilizam muito pouco câmera subjetiva

duração para além do convencional. Assim, o espectador espera o corte clássico padrão, que

(só a detectamos mediante uma análise exaustiva) e a combinação de shot/reaction-shot.

não chega, sente a arbitrariedade do plano e observa a cena de fora, distanciado, como num

Os filmes marcam a perspectiva do narrador colocando a como um observador externo.

jogo ficcional. Quando o corte acontece, passa-se para planos mais próximos, de perfil, e às

Como o olhar da câmera não costuma adotar o personagens, não se favorece o efeito de

vezes para outros planos totalmente frontais, que provocam o estranhamento do especta-

identificação do público com eles. A maneira de filmar os diálogos pode esclarecer a reserva

dor. O filme joga com o conhecimento do público, acostumado e condicionado à fórmula

do cinema , Tarantino com respeito à identificação. A alternância de pontos de vis diame-

de um plano geral que estabelece o local e da alternância de planos de três quartos cada vez

tralmente opostos - o campo/contracampo - é um procedimento-chave construir a identi-

mais próximos. O ecletismo de Tarantino não o leva a rejeitar totalmente o plano de três

ficação (ibid.). O cinema clássico costuma filmar um diálogo colocando a câmera perto do

quartos, mas a manejá-lo em certas ocasiões como uma opção a mais, não como a norma.

ponto de vista de cada interlocutor, dando ao uma visão próxima da do personagem. Dessa

Quando recorre a esse plano convencional que conforma o citado triângulo, coloca-o numa

forma, o espectador tem a impressão estar dentro do diálogo.

perspectiva distanciada ao cortar para planos de conjunto que se prolongam no tempo ou

A forma convencional de filmar uma conversa entre duas pessoas é fazer um plano de

ao saltar para o outro lado do eixo imaginário de 180 graus formado entre os personagens.

conjunto que situe os personagens no ambiente e passar rapidamente para planos que mos-

Para evitar o mecanismo da identificação entre espectador e personagem, Tarantino pre-

trem alternadamente um e outro interlocutor. Se traçarmos uma linha imaginária entre

fere situar a câmera em distâncias não equivalentes à distância dos interlocutores, como,

ambos os personagens e outras duas entre personagem e a câmera, teremos um triângulo.

por exemplo, na metade de uma mesa. Assim, o olhar do espectador não equivale ao olhar

De acordo com o ideal clássico Hollywood, o ângulo entre a câmera e o interlocutor e a linha

do personagem, nem mesmo se aproxima dele.

entre ambos personagens deverá ser inferior a 90 graus. Quanto mais a câmera se aproxima ponto de vista do personagem, mais diminuirá o ângulo e mais o espectador terá sensação de observar o diálogo de dentro. Que tipo de decupagem Quentin Tarantino adotou para escapar do esquema que se tornou natural e automático na indústria? Em linhas gerais, evita construir triângulo entre a câmera e os personagens. Quando recorre a uma posição de câmera do triângulo, rapidamente muda para um enquadramento não convencional, um primeiro plano totalmente de perfil. Dessa forma, relativa as posições de câmera do estilo automático da indústria, contrapondo-as a outro tipo de posição de câmera não convencional (planos de conjunto de perfil, primeiros planos de perfil). Recordemos as conversas na lanchonete de Pulp fiction: a do casal de assaltantes Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plumer), prévia aos créditos, e no epílogo a de Jules (Samuel Jackson) e Vincent (John Travolta) ou a de Jules e Pumpkin. Nessas cenas, Tarantino prioriza planos de conjunto que mostram os personagens de perfil (vemos apenas um dos olhos) e estende sua

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Yolanda e Pumpkin Pulp fiction (1994)

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Em diálogos que não acontecem em mesas, Tarantino recorre a outras técnicas, como lon-

Vontade do narrador e causalidade

gos planos gerais, travellings ou planos próximos que não tentem construir o triângulo mencionado. Na primeira parte de Cães de aluguel, especialmente nas discussões entre Mr. Pink e Mr. White, usa planos- sequência que mostram a ação a distância. Em Jackie Brown, também utiliza planos de conjunto dos interlocutores de longa duração, mas, em prol de

Nos filmes de Tarantino, o espectador percebe, já nas cenas de abertura, o filme se as-

uma abordagem mais realista, em algumas cenas recorre a uma decupagem mais próxima

sume como uma ficção manipulada por uma instância externa, homens caminhando em

do cinema clássico. Resumindo: o cinema de Tarantino exibe um conjunto de formas de

câmera lenta, a conversação off sobre a tela escura, a over do locutor de rádio e a música

filmar um diálogo em que a abordagem clássica é apenas mais uma forma, frequentemente

pop de Cães de aluguel; a imagem dos assaltantes que se congela (freeze frame), os créditos

secundária. As outras maneiras de enquadrar têm objetivos precisos: primeiro, mostrar a

com caracteres vermelhos amarelos, as músicas surf-rock estrepitosas e o ruído de mexer

ação com distanciamento, evidenciar a instância externa da narração (fazendo notar a po-

no dial de Pulp fiction; a música soul, o extenso travelling e a postura estática artificial

sição da câmera e a montagem) e, portanto, recusar a identificação do espectador; segundo,

protagonista de Jackie Brown; a divisão em capítulos de Kill Bill 1 e 2 e Bastardos inglórios.

relativizar o esquema convencional do triângulo, mostrar sua artificialidade e brincar com

Todos esses aspectos de estilo evidenciam para o espectador a presença um narrador que

isso; terceiro, obter uma maior continuidade dos planos, que favoreça o desempenho dos

manipula imagens e som de forma lúdica. O filme diz claramente ao espectador que está

atores (não nos esqueçamos dos habituais diálogos longos).

contando uma história de forma estilizada, que sua preocupação não é realista nem naturalista: trata-se de uma história assumida como história, de um jogo entre narrador e público.

Mr. White e Mr. Pink Cães de aluguel(1992)

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Mr. White Cães de aluguel(1992)

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No cinema clássico, a narração costuma explicitar-se na abertura de um filme, mas com

operação de troca de dinheiro de vários pontos de vista. Os flashbacks de Cães de aluguel

o desenrolar da história ela rapidamente se oculta para o espectador, para construir o que

(cinco no total) são apresentados como segmentos sem aparente relação causal, organiza-

alguns cineastas denominam estilo invisível (Bordwell, Staiger e Thompson 1985, p. 25).

dos a fim de a impedir que o espectador reordene os eventos em progressão cronológica en-

No entanto, nos filmes de Tarantino, pelo contrário, o narrador retorna muitas vezes para

quanto assiste ao filme. Apenas uma análise minuciosa permite reconstruir com exatidão a

marcar sua presença por meio de vários procedimentos, o mais notório deles são os cartões-

ordem linear dos eventos. O filme obtém essa desconstrução causal pelo uso de várias elip-

-título que interrompem transcurso “natural” de imagens e som. Essa participação explícita

ses e flashbacks. Analisemos o primeiro flashback em Cães de aluguel. Há elipses que supri-

do narrador incita à participação do espectador, que se sente cúmplice do jogo ficcional.

mem por completo cenas importantes - a mais notória delas é o assalto - e outras, menos

Além de manipular imagens e som, o narrador dos filmes de Tarantino participa ativamen-

evidentes, que eliminam pequenas partes que ligam as cenas, apagando a causa e a conse-

te do encadeamento das cenas, sem seguir uma lógica de causa e efeito. Explico o ponto. O

quência, como, por exemplo, a conexão entre a conversa inicial na lanchonete e o assalto

cinema clássico de Hollywood, conforme definição de Bordwell, Staiger e Thompson, cons-

à joalheria. Depois da cena entre Freddy, Mr. Pink, Mr. White e Eddie no carro, o filme

trói as histórias baseando-se na causalidade, na consequência motivações psicológicas. “A

corta diretamente para a reunião preparatória do golpe com todos os membros no galpão,

causalidade centrada no personagem (pessoal ou psicológico) é o esqueleto da história clás-

suprimindo o momento em que os primeiros quatro homens descem do carro e entram no

sica. Isso parece tão óbvio que temos de recordar que a causalidade narrativa também pode

galpão. O público assiste a essas cenas, como partes autônomas, cuja ligação não segue o

ser impessoal” (ibid., p. 13) Bordwell, Staiger e Thompson identificam outros três tipos de

princípio de causa e consequência, mas sim a vontade narrativa arbitrária do narrador.

causalidade ou princípio causal:

Aqui, novamente, foi a análise que me revelou que as partes mantêm uma lógica de pro-

. causas naturais (exemplo: inundações, herança genética, ciclos de vida);

gressão narrativa que narra de que maneira Freddy se infiltra no bando. Dessa forma, as

. um princípio causal pensado como processos sociais e

cenas são partes de uma trama, mas também segmentos autônomos de um quebra-cabeça

. um princípio causal de narrativa, como “uma espécie de indeterminismo impessoal, em

no qual o público tem de reconstruir as grandes linhas da ordem cronológica para captar

que o acaso e a sorte deixam para o indivíduo pouca liberdade de ação” (ibid.).

o sentido do filme. Quando reordenamos os eventos, comprovamos que foi suprimida a

A narrativa clássica inclui o terceiro tipo de causalidade, o acaso e a sorte, mas quase

causalidade que explica as ações dos personagens. A causalidade centrada nos personagens

sempre o subordina a um princípio causal centrado nas ações do personagem; aquilo que

também é sabotada pelo papel forte de um princípio causal do acaso e imprevisível, como o

o personagem faz determina seu destino. A coincidência geralmente é o evento que deses-

azar de Freddy quando é baleado no estômago e o comportamento irracional de Mr. Blonde

tabiliza uma situação inicial, é aquilo que chama o herói a agir. Porém, a partir do fim do

na joalheria, quando mata várias pessoas.

primeiro ato, quando está bem definido o objetivo do protagonista, serão suas ações que determinarão seu sucesso ou fracasso. A estrutura narrativa de Cães de aluguel, Pulp fiction, Jackie Brown, Kill Bill e Bastardos inglórios rompe com a ordem linear e causal centrada no personagem, própria do cinema clássico. Jackie Brown segue uma ordem mais linear, porém interrompida por breves flashbacks do narrador e por uma sequência que narra uma

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zada para debilitar a cadeia causal centrada nos personagens. A maneira clássica de utilizar o flashback envolve uma série de indícios que permitem ao espectador reconstruir facilmente, enquanto assiste ao filme, a ordem linear eventos. O cinema clássico justifica a irrupção dos flashbacks ao fazer com que provenham da subjetividade de um personagem. Caso

3. Volta a: Jules e Vincent matam os delinquentes. 4. O tiro na cabeça de Marvin. 5. A limpeza do carro na casa de Jimmie com The Wolf. 6. Jules e Vincent encontram Pumpkin e Honey Bunny na lanchonete.

típico: um personagem recorda seu passado, veem-se cenas desse passado e, posteriormen-

Cada segmento funciona como um microrrelato que basta a si mesmo, episódios que

te, retorna-se personagem de quem partiu o flashback. Em Cães de aluguel, os flashbacks

podem ser desfrutados pelo espectador separadamente’ graças às digressões que debilitam

não partem da subjetividade de um ‘personagem, mas da decisão do narrador, que deseja

a ordem causal. Há dois grandes tipos de digressões: um tipo são os desvios da narrativa

se mover com liberdade no tempo. A história em si tem objetivos bem definidos (o assalto)

de uma cadeia linear e causal, procedimento muito utilizado no cinema moderno dos anos

e deadlines (o assalto, a reunião no galpão), estratégias típicas da construção clássica. Já

1950 e 1960; outro são as digressões verbais dos próprios personagens, aqueles diálogos

Pulp fiction apresenta três histórias em uma ordem não cronológica que nos impede de fa-

não relacionados coma história central, que saltam de um tema a outro e se estendem no

lar de flashbacks, porque não há uma parte da história que possamos situar como presente.

tempo sem fazer avançar a trama; diálogo, que têm sido identificados como característi-

Trata-se de três histórias interdependentes, cada uma com início, desenvolvimento e fim,

cos do universo tarantinesco. Esse tipo de digressões dos personagens ficou como marca

formadas, por sua vez, por segmentos que funcionam de forma mais autossuficiente que

registrada do estilo Tarantino. Depois de Pulp fiction, vários filmes da indústria america-

seus equivalentes em Cães de aluguel. A título de exemplo, e história’A situação de Bonnie”,

na incorporaram digressões, pequenas, domesticadas, sobre cinema, televisão e música. A

de Pulp fiction, é formada por quatro segmentos, que, dispostos em ordem linear, seriam:

técnica fora de contexto, encontra um espectador que reconhece o truque e se transforma

. a visita dos matadores Jules e Vincent aos jovens delinquentes;

numa prática neutra. Em Putp fiction e Cães de aluguel, a ordem dos eventos depende mais da vontade do nar-

. o episódio do tiro acidental na cabeça de Marvin;

rador do que da ação dos personagens. Mesmo na narrativa mais linear de Jackie Brown,

. a limpeza do sangue e dos restos de cérebro do carro

o narrador interfere na ordem dos eventos e mina a causalidade centrada nas ações dos

(Quentin Tarantino), com a presença do personagem

personagens. Já Kll Bill obedece a uma lógica do narrador. A noiva, que narra a história em flashback, mas com a clara interferência de um grande narrador, o grand imagier de que

The Wolf ( Harvey Keitel);

falava Albert Laffay. Mover-se para frente ou para trás na história por vontade do narrador

. Jules Vincent e o casal de assaltantes Pumpkin e Honey Bunny na lanchonete.

é uma característica do cinema moderno de que o cinema de Tarantino compartilha. Em

1. Um prólogo do casal de assaltantes na lanchonete e corte para os créditos

seus filmes,a causalidade centrada nas ações dos personagens, própria do cinema clássico,

2. Volta a: Jules e Vincent matam os jovens delinquentes e uma cartela anuncia o episódio “Vincent Vega e a Mulher de Marsellus Wallace”.

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fica num segundo plano em relação à interferência do narrador, justificada pela liberdade narrativa na hora de contar histórias.

8. O deadline, um ponto no tempo em que algo deverá ser executado, é uma estratégica típica da narrativa clássica. Ver Bordwell, Staiger e Thompson 1985, pp. 44-48.

Ocupemo-nos agora dos saltos no tempo em cães de aluguel, a principal estratégia utili-

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As três formas de representação fundamentais do cinema de Tarantino: Cenas do cotidiano, momentos exploitation e jogo

Douglas sirk e o mik-shake Martin and Lewis.Há aqui uma combinação ímpar do que chamo de cenas do cotidiano, gênero e jogo. Neste ponto, torna-se necessário precisar o que é o cinema exploitation. Numa definição abrangente, são filmes de baixo orçamento feitos fora da indústria em queo

10. Nos anos 1970, filmes como Coffy, Foxy Brown e The big doll house, protagonlzados por Pam Grier e dirigidos por Jack Hill, referência fundamental do cinema de Tarantino, chocavam e divertiam o público, que assistia a eles em drive-ins (cinemas ao ar livre em que os espectadores estacionavam seus carros e assistiam aos filmes de dentro dos automóveis) e salas pouco respeitáveis.

9. Em homenagem ao diretor célebre por seus melodramas da década de 1950 e à dupla de comediantes do cinema e apresentadores de televisão Dean Martin e Jerry Lewis.

objetivo principal é obter lucro da maneira mais rápida possível. Para esse propósito, costumam Agora, gostaria de apresentar os três modos de representação que constroem a hetero-

mostrar mais violência e sexo (e ocasionalmente drogas) do que a produção majoritária. No Brasil, a

geneidade pós-moderna do cinema de Tarantino: o que denomino as cenas do cotidiano,os

pornochanchada, os filmes de Zé do Caixão e a produção da Boca do Lixo, e, na Argentina, os filmes

momentos exploitation e o jogo.O cinema de Tarantino oscila entre esses três modos de

eróticos kitsch dirigidos por Armando Bo e protagonizados por Isabel Sarli são típicos casos de cine-

representação, que implicam notórias mudanças de tom e Provocam reações diversas no

ma exploitation (nesses casos, podemos falar de sexploitation). Na análise do cinema de Tarantino,

espectador, como o horror, o riso e a cumplicidade. A abundante reapropriação de nume-

concentro-me nos filmes exploitation americanos das décadas de 1950, 1960 e 1970, que atraíam o

rosas e diversas influências cinematográficas presentes em seus filmes levou-me a pensar

público com doses maiores de violência e sexo do que as mostradas pela indústria de Hollywood.l.

e criar esses conceitos, no esforço de conseguir uma melhor compreensão d. u- cinema

De certa forma, Tarantino efetuou com o exploitation dos anos 1970 uma reapropriação que lembra

eclético, heterogêneo e ambíguo por definição. O fato de identificarmos essas três formas

a realizada por Truffaut e Godard com o cinema de gênero americano, em particular com a série B

não significa que surjam sempre modo isolado. O filme de gênero é o universo comum onde

dos anos 1940 e 1950 (grande parte deo filme noir éB). Como a série B, os filmes exploitation das

se alternam e combinam cenas do cotidiano,os momentos exploitation e o jogo. Uma cena

décadas de 1960 e 1971 foram durante bastante tempo ignorados pela crítica.

como a tortura policial (Cães de aluguel) parte de uma situação do filme de crime, com a

Porém, não podemos desconhecer as diferenças de status entre o cinema B e os exploitation, dado

sinceridade cruel de Mr. Blonde (Michael Madsen) e as súplicas do policial, para surpreen-

que os filmes B eram realizados dentro da indústria, com orçamentos baixos para Hollywood, mas

der e chocar o espectador com uma violência herdeira dos filmes exploitation americanos

superiores às cifras dos exploitation. A série B permitiu a muitos diretores passar a realizar filmes de

dos anos 1970 e do cinema de horror italiano (anos 1970 e 1980), na combinação de tor-

grandes orçamentos. Isso ocorreu com menor freqüência no caso dos exploitation(Jonathan Dem-

tura, música e dança.A saída noturna de Vincent (John Travolta) e Mia (Uma Thurman)

me é uma das exceções; fez o filme de cárcere de mulheres Caged heat). O grande diretor do exploi-

em Pulp fiction reúne a metaficção genérica do ambiente retrô anos 1950 (a casa noturna

tation dos anos 1970, Jack Hill, não conseguiu continuar filmando quando esse tipo de exploitation

Jackrabbit Slim’s), cheio de citações do cinema e de música pop do passado, com a conversa

morreu (fim dos anos 1970) e é ainda um ilustre desconhecido do grande público.

do casal numa concepção de tempo realista (digressões, silêncios). Personagens do gênero (o matador, a mulher do chefe mafioso), vestidos de forma estilizada, altamente contaminados pela cultura pop na imagem e no comportamento discutem coisas banais e cotidianas num ambiente que evoca uns idealizados anos 1950. Jackrabbit Slim’s é um ícone citacional pós-moderno, com seus pôsteres de filmes das décadas de 1950 e 1960, o cantor imitador de Ricky Nelson, os garçons e as garçonetes que são réplicas de figuras como Maril1.n Monroe, Buddy Holly, o Zorro, Mamie van Doren, o hambúrguer

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11. O exploitation dos anos 1950, 1960 e 1970 apoiou-se em subgêneros como os filmes de prisão feminina, de gangues, de motoqueiros, de horror, de ficção científica e o blaxploitation (exploitations protagonizados por afro-americanos na primeira metade da década de 1970), que recriavam fundamentalmente o amplo universo genérico do filme de crime, dividindo-o em subgêneros como o filme do traficante, do proxeneta.

O ponto inicial é o seguinte:você tem personagens de gênero em situações de gênero que você já assistiu em outros filmes, mas, de repente, sem razão aparente, eles são colocados em regras da vida real’ (Smith 1994 p. 100). Ao ler essa declaração de Tarantino, o leitor poderá se perguntar: de que tipo de regras da vida real ele fala? O cineasta satura o filme de crime de referências à cultura pop, de hábitos de consumo cotidianos, de brincadeiras e piadas sobre sexo, com o humor como contraponto irônico. Por cultura pop, entendo o conjunto de subculturas de massa como a música ligeira, as séries de televisão, o cinema de ação, a cultura da droga. Tarantino mescla uma situação típica do gênero de crime com aspectos próprios do banal, do rotineiro, do lado prosaico da vida. Essa irrupção do banal é expressa nas longas conversas dos personagens, que postergam a execução do objetivo; não só postergam e dilatam o tempo das cenas, frequentemente, dificultam que o espectador perceba qual é o objetivo dos personagens. Pulp fiction é o exemplo mais radical desse ponto. Qual é o objetivo de Vincent e Jules quando percorrem lentamente a cidade de Los Angeles de carro, como flâneurs motorizados? Seu objetivo, deixado propositadamente em segundo plano pelo filme, é entregar a mala a Marsellus Wallace.

Vincent Vega Pulp fiction(1994)

Ocasionalmente, essa situação híbrida de filme de crime e lado prosaico da vida sofre uma virada repentina, provocada pero acaso, que detém o avanço lógico da trama, para criar um hiper-realismo que rapidamente, pelo exagero e pelo humor negro, passa a ser absurdo e irreal (o tiro na cabeça de Marvin, a overdose de Mia, em Pulp fiction; a cena da tortura do policial, o sangue de Freddy, em Cães de aluguel). Nesses instantes, em lugar de realismo, há uma magnificação áo banal e do acidental, o que chamarei de momentos exploitation. Mas fiquemos por agora concentrados nascenas cotidianas, nas digressões dos personagens sobre o dia a dia e a cultura pop. Uma estratégia central do cinema de Tarantino é inverter as prioridades do gênero. Aspectos que anteriormente eram secundários são agora principais, em detrimento do avanço da história em prol do objetivo. Qualifico o foco no banal e rotineiro do cinema de Tarantino como cenas do cotidiano,essencialmente diferentes da representação naturalista de Hollywood, que busca a aparência de real. A passagem do gênero para o lado prosaico da vida pode ser provocada por irrupção de um acontecimento imprevisível, pela ação irracional de um personagem ou pelas digressões dos personagens nos diálogos, que giram fundamentalmente em torno de cultura pop,sexo,

12. Cultura que se caracteriza pelo hábito de parte da sociedade contemporânea urbana ocidental de consumir drogas, especialmente a maconha, haxixe e cocaína, e pela associação desse hábito com a música rock. Lembremos a preferência de Woody Allen pelo jazz e sua aversão manifesta às drogas e ao rock (ver Noivo neurótico, noiva nervosa [Annie Halll], 1977).

Cenas do cotidiano

drogas e consumo. No cinema de Tarantino, a cultura pop faz parte do lado prosaico da vida da mesma maneira que atividades rotineiras como consumir/afst-food, dirigir um automóVincent Vega Pulp fiction(1994)

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vel ou ir ao banheiro. É a visão do cineasta sobre o cotidiano de Los Angeles, um lugar onde

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a vida real está permanente invadida e permeada pela indústria cultural, cinematográfica,

e nos Estados Unidos;

televisiva e musical. Consumo presente em seus filmes é constituído fundamentalmente por hábitos de baixo custo, acessíveis à maioria da população: escutar música, assistir à te-

. um boxeador, Butch, que arrisca a vida para recuperar um relógio de ouro da família

levisão, ir ao cinema, comer comida barata e consumir haxixe. Há algumas exceções, como

que sua mulher Fabienne esqueceu no seu apartamento; o matador Vincent, que vai ao

Vincent Vega (Pulp fiction), que compra heroína a 500 dólares à grama e é dono de um

banheiro com um gibi para ler, e que morre executado, porque deixa a metralhadora na

carro Malibu, e os traficantes em Jackie Brown, que compram armas. As preferências de

cozinha e Butch chega e descobre a metralhadora;

consumo popular de cada personagem definem sua personalidade e sua capacidade de comunicar-se com o outro. Vejamos algumas das incursões das cenas do cotidiano no univer-

. o dono de uma casa de penhor e um policial, que torturam e estupram; Vincent que

so do filme de crime.Nessa enumeração, desejo constatar a saturação do gênero por ele-

compra heroína de um amável traficante, Lance, que parece um estudante hippie de classe

mentos cotidianos e banais, próprios do lado prosaico da vida, que ajudam a construir um

média; Vincent, que sai à noite com a mulher do chefe, Mia Wallace, e num restaurante

distanciamento humorístico e uma visão paródica do gênero:

interroga-se sobre o alto preço de:um milk-shake;

. em Cães de aluguel, os assaltantes falam de Madonna, de dar ou não dar gorjeta, de

. Mia, que confunde heroína com cocaína e sofre uma overdose;

séries de televisão, de música pop, de filmes e atores, da diferença entre as mulheres negras e brancas, de comprar haxixe, de programas de rádio;

. um assassino (Vincent), cuja pistola dispara por acidente e mata um jovem, Marvin, sujando de sangue um carro; a dupla Vincent e Jules, que faz uma faxina no carro numa

. os assaltantes fazem piadas e brincam o tempo todo (sobre sexo especialmente) nos

casa de subúrbio;

preparativos do golpe; . o filme saturado de referências a séries de televisão, filmes de gênero e música rock e . dizem que não querem se chamar Mr. Pink ou Mr. Brown, pelas conotações de homos-

pop.

sexualismo e excremento dos apelidos; Em Jackie Brown, não faz sentido a enumeração, porque as cenas do cotidiano são a for. há um assaltante, Mr. Blonde, que, depois do assalto, captura um policial, coloca-o no porta-malas do carro efazum intervalo para comet fast-food;

ma dominante. Nesse caso, não é o gênero de crime que se impregna do banal e do cotidiano, há uma interação de ambos os elementos num mesmo nível de importância. Há, sim, oscilações, em que o lado prosaico da vida de Los Angeles predomina sobre cenas próprias

. em Pulp fiction,, vemos: criminosos entusiastas de fast-food, um chefe do crime, Mar-

do gênero de crime e vice-versa. Kill Bill e A prova de morte(Death proof,2007) continuam

sellus Wallace, que sai para comprar donuts na rua; os matadores Vincent Vega e Jules

no caminho instaurado em Pulp fiction, porém, com um mergulho mais intenso no univer-

Winnfield, que discutem o significado sexual de uma massagem nos pés, como se conso-

so das imagens metaficcionais. O consumo como hábito cotidiano some, para dar lugar a

mem drogas na Holanda e as diferenças entre hábitos de consumo de fast-food na Europa

personagens ainda menos naturalistas ou realistas.

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Os momentos exploitation e o cinema de atrações

sas bizarras chocam e atraem a atenção do espectador e o sacodem emocionalmente, suspendendo o avanço da história Tarantino se compraz estendendo os tempos (da cena, dos planos) para além do convencional, prolonga o momento violento e mórbido ou a conversa-

13. Por exemplo, Zombie, a volta dos mortos (Zombie 2,1980) e pavor na cidade dos zumbis (paura nella città dei morti viuenti, 1981), de Lucio Fulci, diretor italiano reconhecido nos gêneros fantásticos e horror, que os críticos denominam giallo.

ção vulgar com uma vontade manifesta de perturbar o público, de fazer que tenha dificuldaAo gênero de crime e às cenas do cotidiano, o cinema de Tarantino agrega momentos de extrema violência, conversas bizarras sobre sexo e a cultura da droga, que chocam e agri-

des para assistir ao filme com conforto. Nessas cenas, o espectador é agredido nos sentidos movimenta o corpo e o olhar; fica consciente de si mesmo e sua posição na poltrona.

dem o espectador. Momentos que, graças à paródia e ao humor negro, provocam emoções contraditórias e frequentemente simultâneas, como o horror e o riso. Reações diversas,

. quando Mr. White/Larry atira numa radiopatrulha, os policiais se retorcem enquanto

que, pela ambivalência proposital, dependem bastante do estado de espírito do espectador

são perfurados pelas balas e o parabrisa do carro se empapa de sangue, numa imagem exi-

nesse momento particular. Os filmes criam essa ambivalência que desconcerta o especta-

bicionista de violência e de horror;

dor de duas formas: por um lado, opera rápidas e constantes mudanças de tom, por outro, exibe a violência e lança ao mesmo tempo um olhar irônico e distanciado sobre a cena;

. quando Mia corre perigo de vida numa overdose de heroína, Tarantino demora os mo-

duas operações simultâneas sobre um mesmo momento. Esses momentos de violência e

mentos anteriores à injeção de adrenalina no coração; a cena evoca os filmes de horror, mais

conversas bizarras chocam e atraem a atenção do espectador e o sacodem emocionalmente,

especificamente, as produções italianas sanguinolentas de zumbis, que Tarantino admira;

suspendendo o avanço da história, Tarantino se compraz estendendo os tempos (da cena, dos planos) para além do convencional, prolonga o momento violento e mórbido ou a con-

. o encontro entre Mr. Blonde/Vic Vega e Eddie dá lugar a uma série de piadas sexuais

versação vulgar com uma vontade manifesta de perturbar o público, de fazer que tenha difi-

vulgares, com referências explícitas ao homossexualismo e aos estupros nas prisões mascu-

culdades paraassistir ao filme com conforto. Nessas cenas, o espectador é agredido nos sen-

linas; piadas que se prolongam além do necessário para caracterizar os personagens.

tidos movimenta o corpo e o olhar; fica consciente de si mesmo e sua posição na poltrona. Acredito que tenham sido o excesso e o senso de humor dos momentos de violência, Ao gênero de crime e às cenas do cotidiano, o cinema de Tarantino agrega momentos de

sexo e drogas dos filmes exploitation dos anos 1970 que inspiraram Tarantino para criar

extrema violência, conversas bizarras sobre sexo e a cultura da droga, que chocam e agri-

suas cenas violentas e grotescas, que desconcertam e provocam riso no espectador, fazen-

dem o espectador. Momentos que, graças à paródia e ao humor negro, provocam emoções

do-o esquecer momentaneamente da história. Esses filmes exploitation interrompiam a

contraditórias e frequentemente simultâneas, como o horror e o riso. Reações diversas,

narrativa linear e causal de seus subgêneros com passagens de violência, sexo e, em menor

que, pela ambivalência proposital, dependem bastante do estado de espírito do espectador

medida, consumo de drogas. Defino as cenas agressivas, exibicionistas e chocantes dos fil-

nesse momento particular. Os filmes criam essa ambivalência que desconcerta o especta-

mes de Tarantino como momentos exploitation. Quentin Tarantino é o primeiro diretor

dor de duas formas: por um lado, opera rápidas e constantes mudanças de tom, por outro,

de magnitude que incorpora os exploitation films dos anos 1970 a um projeto de cinema

exibe a violência e lança ao mesmo tempo um olhar irônico e distanciado sobre a cena; duas

pós-moderno criativo.

operações simultâneas sobre um mesmo momento. Esses momentos de violência e conver-

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14. Enquanto estudava os momentos de exibição agressiva dos filmes exploitation, como The big doll house, não pude deixar de pensar em compará-los com os procedimentos de agressão ao espectador do cinema marginal, que Fernão Ramos relaciona com uma proposta estética brechtiana, que agride o espectador como elemento de conscientização. Nos filmes exploitation,há certamente uma maior preocupação em contar uma história de forma clássica, o que contrasta com a maior agressão e desconstrução narrativa do cinema marginal. Ver Ramos (1987).

Afirmo que os momentos exploitation deTarantino pertencem à tradição lúdica do cine-

Acredito que o cinema de atrações seja um componente essencial do exploitation dos

ma de atrações, conceito desenvolvido na metade da década de 1980 pelo americano Tom

anos 1970. O que defini como momento exploitation é uma atração no sentido de Gunning.

Gunning (1990), ao estudar um cinema não narrativo dos primeiros tempos. O cinema de

o momento exploitation, verdadeira atração,choca o espectador sacode mente e corpo e o

atrações, modo dominante até 1906-1907, não teve como prioridade contar uma histó-

faz consciente de si mesmo na sala de cinema. É, por exemplo, o momento de Bastardos

ria, mas, sim, mostrar imagens excêntricas que surpreendiam e chocavam o espectador,

inglórios em que o “urso judeu” mata o oficial nazista com o taco de beisebol, cena de vio-

fazendo-o perceber o ato de observar e até mesmo sua presença ante o espetáculo (Gunning

lência tal que muitos espectadores tiram os olhos da tela. vejamos outro exemplo: quando

1994, p. 115). Em vez de convidar o espectador a entrar num mundo fictício, como no teatro

projetavam cães de aluguel,no início dos anos 1990, na cena em que Mr. Blonde corta a

naturalista, a atração busca o estímulo direto da audiência. Gunning define a atração “como

orelha do policial, alguns espectadores deixavam a sala, vários fechavam e/ou tapavam os

aquilo que estimula a curiosidade visual, desperta ou cria excitação, espanto ou assombro.

olhos, outros olhavam com espanto e tensão. Na época, essa exibição de violência física e

É algo em si inusitado, fascinante ou poderoso, e que atrai a atenção da audiência” (ibid.,p.

verbal gerou pesadas críticas na imprensa. O momento exploitation é uma das principais

114). No começo do século, a experiência do público nesse tipo de filme assemelhava-se

estratégias do cinema de Tarantino para interromper o transcurso da história em direção

antes às atrações de uma feira ou um circo do que ao teatro de “qualidade” (Gunning 1990,

a um objetivo, além das digressões e da divisão do filme em segmentos autônomos. Outro

p. 58). Gunning extrai o termo atração do artigo de Sergei Eisenstein sobre um novo mode-

procedimento que suspende o envolvimento do espectador é o jogo.

lo para o teatro. Atração, para Eisenstein, é todo elemento que submeta o espectador a uma ação sensorial ou psicológica com o propósito de produzir nele certos choques emocionais (Eisenstein 1983). A atração lembra continuamente ao espectador que está assistindo a um espetáculo. Numa entrevista à revista Imagens Gunning afirma: “Quando falo do cinema de atrações estou em parte dizendo que, historicamente, o cinema vem desse entretenimento popular tradicional, e não está em sua origem, interessado primeiramente em ilusão realista” (Gunning 1994,p. 115), uma asseveração de Gunning merece particular destaque: se bem diferente do cinema narrativo, o cinema de atrações não é necessariamente oposto a ele (Gunning 1990, p. 57). De fato, escreve Gunning, o cinema de atrações não desaparece com o domínio da narrativa a partir de 1908, apesar de raramente dominar o formato de um longa-metragem. Ele fornece uma corrente subterrânea que flui sob a narrativa lógica e o realismo diegético (Gunning 1995, p.56) e sobrevive em práticas da vanguarda e como componente de filmes narrativos, mais evidentes em certos gêneros (o musical) do que em outros (Gunning 1990,p.57).

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Mr. Blonde Cães de aluguel (1992)

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O jogo Os filmes de Tarantino recorrem a vários truques para distanciar o espectador da ficção, são técnicas que marcam o caráter ficcional da representação e deflagram um efeito de

. câmera lenta combinada com música: na sequência prévia aos créditos de abertura de Cães de aluguel (os assaltantes caminham pela rua), no estupro de Marsellus Wallace (Pulp fiction); jogo e distanciamento na performance dos atores, que desempenham um duplo papel: mostram-se simultaneamente como atores e como personagens;

descolamento do espectador da história, apresentada como jogo de distanciamento e não como espelho do real. Entre as técnicas utilizadas podemos destacar, por exemplo:

. jogo e distanciamento na decupagem, com posições de câmera que evidenciam sua presença; perspectivas que limitam o campo de visão, câmeras afastadas dos atores;

. cartões-título que definem o significado de pulp no início do filme (Pulpfiction); cartões-título com o nome dos personagens em caracteres brancos sobre tela preta (Cães de

. cenas em que os personagens são situados em posições quase geométricas, não realis-

aluguel); cartões-título com o nome das histórias ou dos capítulos (Pulp fiction, Kill Bill,

tas, como no vasto galpão de Cães de aluguel; roupas artificiais, estudadas, não naturalistas

Bastardos inglóios) ou caracteres sobre a imagem fotográfica, informando o tempo e o lu-

dos personagens; o paletó, a gravata preta e a camisa branca dos assaltantes; o aspecto de

gar da ação (Jackie Brown);

membro de gangue do policial Holdaway em Cães de aluguel; o paletó e o corte de cabelo de Jules e Vincent (Pulp fiction); o gorro e a trança de cabelo de Ordell (Jackie Brown);

. fade in/fade outs, momentos em que a tela vai para preto e há um instante de silêncio; pausas na narrativa;

. técnicas de back projection, ou seja, de projeção de cenários ao fundo, como em Pulp fiction, no diálogo entre o boxeador e a taxista Esmeralda, e em Kill Bill,na cena em que

. voz over nos créditos de abertura dos filmes, de um locutor de rádio e de Freddy (Cães

Uma Thurman dirige enquanto fala para a câmera.

de aluguel); As técnicas que distanciam o espectador podem criar, em certas ocasiões, passagens de . vozes de personagens conversando, com tela escura ou sob os créditos, inclusive sob

metaficção, no sentido de imagens não do mundo, mas imagens que a comunicação gera

o logo da companhia produtora (Cães de aluguel, Pulp fiction); música proveniente de um

para representar esse mundo (Melier 1996, p_ 228g). A metaficção implica evocar, citar,

programa de rádio (Cães de aluguel) ou com ruído de movimentação do dial (Pulp fiction);

aludir, parodiar obras do passado. Quando Butch escolhe a espada de samurai e desce-a

em Jackie Brown, a canção inicial começa sobre o selo A Band Apart, a produtora do diretor;

escada em posição de combate, Pulp fiction joga com imagens típicas de filmes de artes marciais e, por que não, de Toshiro Mifune em Yojimbo (1961) e Os sete samurais (1964)

. elementos lúdicos e excêntricos, não naturalistas, como o quadrado que Mia Wallace

deAkira iurosawa. Quando a imagem de Pumpkin e Honey Bunny com as armas empunha-

desenha no ar, brincadeira que lembra o Godard da primeira fase; a paisagem em branco e

das se congela (freeze frame), evoca similar procedimento em Três homens em conflito

preto projetada no táxi que transporta o boxeador Butch em Pulp fiction, evocando a técni-

(The bad, the good’and the ugly, 1968), de Sergio Leone. Quando Jackie, interpretada por

ca de back projection, muito utilizada no cinema clássico dos anos 1930 e 1940;

Pam Grier, percorre o aeroporto ao som da música soul “100 street”, de Bobby Womack, os

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ecos dos filmes blaxploitation dos anos 1970, protagonizados pela mesma atriz, dominam a imagem. Quando Mia Wallace desenha um quadrado no ar, recordamos procedimentos da primeira fase de Godard, em especial o minuto de silêncio que os personagens e a Tarantino

Tarantino e a relação com o cinema do passado: Paródia, pastiche e jogo

parte de histórias e técnicas presentes em outros filmes e marca diferenças e distância. Essa tarefa pode ser estudada sob a noção ampla de paródia, da perspectiva desenvolvida por Linda Hutcheon (1991).

Hutcheon trabalha o conceito de paródia dentro de um projeto intelectual que pensa o pós-moderno como força criativa. para essa autora, a paródia é uma dasformas mais importantes da autorreflexividade, é repetição com diferença, intertextualidade com distância e ironia (Hutcheon 1989, p. 54). Ela amplia o significado da paródia, desvinculando-o da companhia obrigatória do cômico e do riso. Para a autora, nem toda paródia é ridicularizadora, nem toda referência a um texto anterior é uma paródia, como atestam os conceitos de imitação, citação e pastiche. Diferentemente da citação, a paródia trabalha tanto no nível da obra a ser parodiada quanto no do código da obra que utiliza a paródia. portanto, na paródia, existem dois textos em jogo, o citado e o contraponto irônico. Os filmes de Tarantino adotam uma postura lúdica em relação ao cinema de passado e a si mesmos. É um cinema pós-moderno criativo, que se vale da paródia, em oposição a um cinema pós-moderno conservador, apegado a uma depauperação do cinema clássico, à citação sem diferença e ao pastiche. Hutcheon indica como “a paródia procura de fato a diferenciação no seu relacionamento com o modelo, o pastiche opera mais por semelhança correspondência (...) a paródia transformadora no seu com outros textos ; o pastiche é imitativo”(IBID.,p.55). Um filme pós moderno que se baseia no pastiche não estabelece a diferença e evita tratar o presente, preferindo evocar um passado cinematogfáfico mítico. É uma prática acrítica, um mero exercício de cinefilia nostálgica e conservadora. Quentin Tarantino trabalha com filmes, gêneros e formas de fazer cinema, com uma distância que incorpora a referência ao tempo presente do filme que realiza. Se, em Jackie Brown, ele evoca a Califórnia dos anos 1970, é porque se preocupa com a visão que se tem dessa época no tempo presente. Como estão os personagens que viveram ativamente aque-

Mia Wallace Cena filme: Pulp fiction Pulpdo fiction(1994)

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les anos hoje, no final da década de 1990. na cidade de Los Angeles? Se, em Putp fiction,ele alude a diversas épocas do filme de crime, é para olhar com ironia e reformular o gênero.

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Seu cinema mostra como vários pressupostos do cinema de crime do passado não continuam necessariamente vigentes, como, por exemplo, a femme fatale, a paranóia, a cidade ameaçadora. O fato de retomar o cinema do passado e marcar uma diferença (a paródia com distância criativa) revela que Tarantino tem uma concepção cinematográfica pessoal e própria. É dentro dessa revisão criativa do passado que podemos valorizar em seus filmes a permanência de questões-chave do gênero, como a confiança’ a ética, a lealdade. Aspectosque não estão presentesnos filmes como meros significantes do gênero,mas como produto de um processo que reformula o filme de crime de uma perspectiva contemporânea. Quentin Tarantino repensa o passado cinematográfico à luz da época em que concebe seus filmes.

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Beatrix Kiddo Kill Bill (2003) 26/11/2013 21:07:07


2 NARRATIVA E PALAVRA EM CÃES DE ALUGUEL

Mr. Pink Cães de aluguel (1992) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 74-75

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Da história à trama

O personagem chamado de Mr. Pink, interpretado por Steve Buscemi argumenta com habilidade e, no final do filme, descobrimos que tinha razão, mas faltam-lhe força e autoridade para se impor. seu físico franzino,sua racionalidade e certa fraqueza e dúvida são li-

1. “Chamar a atenção para o dispositivo” (“call attention to the device”) é uma denominação utilizada

mites fortes para impor sua masculinidade. O personagem que ouve está apegado demais à Neste capítulo, vamos nos ocupar de seu primeiro filme, Cães de aluguel (Reservoir dogs,

própria interpretação dos fatos. Assim, a verdade torna-se, para os personagens, inapreen-

1992). Quentin Tarantino baseia sua dramaturgia na consciência de que há uma história e

sível e equivalente à ficção. A realidade fragmentária e ambígua faz com que os personagens

várias formas possíveis de narrá-la. Essa diferenciação entre a história e a forma de narrá-la

encontrem dificuldades para obter um saber unificado que lhes permita atuar com a frieza

tem sido minada pelo naturalismo cinematográfico, que apresenta a ilusão de que a platéia

racional que se espera de um profissional. O velho gângster Joe Cabot reúne um grupo

está em contato direto com o mundo representado, como se todos os aparatos da lingua-

de seis homens para executar um grande golpe. Tiata-se de um clássico ponto de partida

gem utilizados constituíssem um dispositivo transparente (Xavier 1977,p.32). O cinema de

do filme de crime, de um subgênero denominado caper film, que chamarei em português

Tarantino sublinha que o que assistimos na tela é uma ficção e não a realidade ou mesmo

de filme de golpe. O golpe é uma ação especial, em que um indivíduo ou um grupo tem de

uma aparente realidade. Sua obra oscila permanentemente entre momentos em que chama

atingir um objetivo difícil, por meio de um estratagema complexo. Tarantino escolhe não

a atenção para o dispositivo fílmico e uma ficção que envolve e diverte o espectador.

mostrar o golpe, o evento que gera o subgênero, jogando contra as contra convenções ge-

As operações do cinema de Tarantino de aludir e citar outros filmes do passado (reflexividade), de brincar consigo mesmo, sublinham a presença de um narrador, incitam a

néricas. o espectador assiste aos eventos anteriores ao assalto, de duração aproximada de umas semanas, e aos eventos posteriores, que duram entre uma e três horas.

participação do espectador e costumam provocar certo distanciamento, reflexão e diversão. As estratégias citadas, próprias do cinema pós-moderno, não procuram criar de maneira artificial um estilo, sem uma ideia clara da relação entre forma e conteúdo. O cinema de Tarantino escolhe uma narrativa que debilita a cadeia linear de causa e efeito, traço marcante do cinema clássico, sublinha que há um narrador por trás das imagens e chama a atenção para o discurso, por acreditar narrativa clássica não é adequada para transmitir sua concepção de cinema. Cães de aluguel questiona os conceitos de objetividade e os limites do podemos conhecer (Smith 1994,p.33). com a decisão de não mostrar o joalheria, a palavra dos personagens, inerentemente subjetiva, predomina aparente objetividade das imagens. os assaltantes de Cães de aluguel brigam verbalmente para impor sua própria versão do que ocorreu no local do assalto. Assim, a verdade depende da habilidade de quem argumenta e da atitude de quem ouve; depende da informação que recebe o personagem que ouve e do significado que ele lhe atribui.

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Mr. Pink Cães de aluguel (1992)

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A elipse do assalto desorienta o espectador e estimula sua participação. história tem elementos típicos do cinema clássico, como deadlines e um objetivo claramente definido (o 2. Sobre o filme de golpe (caper film),ver Cawelty (1976, p. 73). há garantias, apenas a vontade de confiar no outro, valendo-se da intuição, da razão e dos códigos morais individuais. Em última instância, a amizade é um ato de fé.

assalto). Por outro lado, é narrada por meio de estratégias cinema moderno. Cães de aluguel põe em evidência questões de fundo que os filmes tradicionais de golpe deixavam em segundo plano, como a necessidade de confiar, a amizade, a Iealdade, a verdade e a mentira. os membros do bando precisam confiar nos o outros, nos termos do “contrato” que Cabot estabeleceu. Mas confiar implica riscos. O filme coloca a amizade, a solidariedade e a lealdade como valores importantes, mas no interroga: como confiar sem ser prejudicado? Em que se deve basear a confiança? Não há garantias, apenas a vontade de confiar no outro, valendo-se da intuição, da razão e dos códigos morais individuais. Em última instância, a amizade é um ato de fé. Essas questões são inseparáveis da forma e do estilo do filme. Se Cães de aluguel apresenta uma narrativa fragmentária, não linear-causal, é necessário voltar à distinção entre história e trama, lembrando o método dos formalistas russos (Lemon e Reis 1965). O formalismo define história como a totalidade de eventos dispostos em ordem cronológica e causal, e trama como a ordem e a forma que esses eventos apresentam na obra (Tomashevsky 1965, pp. 66-67). Saindo do universo formalista, a trama é também chamada de narrativa ou relato, ou seja, a forma de contar uma história. A narrativa (ou trama) organiza-se com base na decisão do narrador de que o espectador não veja as imagens do assalto. Na trama, há uma exposição retardada dos eventos, uma ordem não linear, rica em omissões e postergações de informação, e uma escolha fundamental de não mostrar o assalto à joalheria. A trama de Cães de aluguel contrapõe uma linha de ação em tempo presente com três flashbacks, além de incluir flashbacks dentro de flashbacks. No jargão da prática e da crítica cinematográfica, o denominado argumento é uma síntese dos principais eventos da história em ordem causal e cronológica. Vejamos o argumento ou resumo da história.

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Mr. White Cães de aluguel (1992) 26/11/2013 21:07:13


Argumento (ou história resumida)

ta a arma para Joe, em defesa de Freddy. Eddie aponta sua arma para Mr. White. Os três disparam. Freddy é atingido. Mr. Pink pega a mala com os diamantes e sai do armazém. Ouve-se uma troca de tiros que sugere que Mr.Pink é pego peã polícia. Freddy confessa a Mr. White ser um policial. Mr. White geme e coloca a pistola na cabeça de Freddy. A policia entra no local e ordena a Mr. White que largue a arma. Mr. White atira e a polícia o mata.

O policial Freddy Newandyke logra infiltrar-se no bando do velho gângster Joe Cabot,

Agora, vejamos como Tarantino escolheu contar essa história, de que forma selecionou,

com a ajuda de seu colega, o agente Holdaway. Joe, secundado pelo filho, Niceguy Eddie,

ordenou e narrou os eventos e criou uma trama, minado frequentemente a ordem causal e

reúne um grupo de homens para roubar um carregamento de diamantes numa joalheria de

cronológica. O questionamento do cinema convencional dos anos 1980 e a construção de

nome Karina e convida Freddy a fazer parte da operação. Joe dá um codinome a cada um

um cinema pós-moderno.

dos seis membros do bando: Mr. Pink, Mr. White (Larry), Mr. Orange (Freddy), Mr. Brown, Mr. Blonde (Vic Vega) e Mr. BIue, para evitar que sejam revelados os nomes verdadeiros. O assalto não ocorre como planejado. O alarme toca, aparecem muitos policiais e Mr.

A quebra da cadeia causal e cronológica: Resultados primeiro, causas depois

Blonde mata vários empregados. Há tiroteio e confusão. Os assaltantes fogem de forma desordenada. Mr. Pink consegue escapar com os diamantes, depois de trocar tiros com a polícia. Mr. Brown morre, Mr. Orange é atingido na barriga por uma bala e chega a um

A pergunta que devemos fazer é: por que Tarantino organizou os eventos dessa forma?

armazém carregado por Mr. White. Deitado no chão e perdendo muito sangue, Mr. Orange

Por que a elipse do assalto, os flashbacks e os flashbacks dentro de flashbacks? Quais as

pede para ser deixado num hospital. Mr. White responde que Joe vai arranjar um médico.

razões? Essas escolhas formais correspondem a uma estratégia narrativa que mostra pri-

Mr. Pink entra e afirma que foram emboscados pela polícia, que há um traidor no bando

meiro os resultados e depois as causas. Dessa forma, o filme debilita a cadeia linear de causa

e que devem sair do armazém o quanto antes. Mr. Blonde aparece e comunica que Eddie

e efeito do cinema clássico, em que cada evento provoca o seguinte (A leva a B que leva a C).

está chegando e que deu ordens para ninguém sair do armazém. Um policial (Marvin) é

Bordwell, Staiger e Thompson (1985, p. 13) assinalam que o cinema clássico de Hollywood

trazido por Mr. Blonde no porta-malas do carro. Eddie chega ao armazém e não acredita na

constrói as histórias com a seguinte premissa: “causalidade, consequência, motivações

versão de Mr. Pink e Mr. White sobre a existência de um traidor. Eddie sai com o Mr. Pink

psicológicas, a determinação para superar obstáculos e alcançar objetivos. A causalidade

e Mr.White para ocultar os carros. O policial (Marvin) é torturado por Mr.Blonde, Freddy

centrada no personagem - pessoal ou psicológico - é a armadura da história clássica”. Ao

mata Mr.Blonde antes que este ponha fogo no policial. Freddy confessa a Marvin que é

mostrar primeiro os resultados, Cães de aluguel propõe-se como um enigma que o especta-

um policial; Marvin jaó conhecia. Freddy informa a Marvin que a polícia está cercando o

dor tem de decifrar. A mesma estratégia narrativa é empregada por Tarantino nos roteiros

depósito, à espera de Joe Cabot. Eddie, Mr. White e Mr. Pink voltam ao armazém. Eddie se

originais de Amor à queima-roupa (True romance, 1993) e Assassinos por natureza (Na-

enfurece com a morte de seu amigo, Mr. Blonde (vic vega). Freddy tenta explicar. Eddie não

tural born killers,1994), filmes dirigidos por Tony Scott e Oliver Stone, respectivamente.

acredita na versão de Freddy. Joe Cabot chega e afirma que Freddy trabalha para a polícia. Mr. White defende Freddy. Joe aponta a arma para Freddy, para matá-lo. Mr. White apon-

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Mr. Blonde, Mr. White e Mr. Pink Cães de aluguel (1992) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 82-83

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A forma de estruturar a informação de Cães de aluguel provoca duas fases do saber: na primeira parte, o espectador sabe menos que os personagens; quando Orange revela que é

O cinema moderno e a fórmula de Hollywood dos anos 1980

um policial, passa-se a uma segunda fase, em que o espectador tem mais informação que os 4 . Quentin Tarantino se refere a essa estrutura como “respostas primeiro, perguntas depois” (Fuller 1998, p. 53). 5. Ver, por exemplo, página 12 no roteiro em inglês editado pela Faber and Faber: um cartáo-título anuncia “Um destes homens é um policial” e, embaixo, “e no final, todos estarão mortos, menos um”. Na tradução editada pela Rocco, ver a página 36 (Tarantino 1997 a).

personagens. Ainda assim, a trama apresenta furos de informaçãoque não são preenchidos e, quando o filme termina, o espectador sabe menos que o narrador. O espectador nunca

Nos anos 1960 e na primeira metade dos anos 1970, o cinema moderno e o auge dos no-

assiste ao assalto nem sabe como Mr. Blue morreu, nem o que aconteceu com Mr. Blonde

vos cinemas nacionais colocaram em xeque o predomínio de Hollywood. No final da década

na prisão que alterou sua personalidade, nem quem é Dov, a pessoa com quem Eddie fala ao

de 1970, Hollywood recuperou o domínio do mercado mundial com fórmulas narrativas

celular enquanto dirige, nem o que acontece com Mr. Pink quando sai do armazém, embora

baseadas na simplicidade de personagens e conflitos, na ordem cronológica e causal dos

possa deduzir que foi detido pela polícia. São características de uma narrativa própria do

eventos e na espetaculosidade potencializada por efeitos especiais. As décadas de 1980 e

cinema moderno, mas também da melhor tradição do cinema clássico, como o filme noir.

1990 marcam o apogeu da superprodução de lançamento global, que combina pastiche (re-

Em Cães de aluguel, o encadeamento dos eventos depende mais da vontade do narrador do

petição sem distância critica), matriz melodramática e montagem rápida. Nos dias atuais,

que da lógica de causa e efeito das ações dos personagens (a ação A provoca a seguinte, B, e

constata-se que Hollywood impôs sua concepção de cinema ao mundo. Há, porém, dife-

assim por diante). A causalidade centrada nos personagens do cinema clássico é contestada

renças significativas entre o cinema hollywoodiano convencional dos últimos 20 anos, do-

pelos saltos no tempo que efetua o narrador. Uma comparação do roteiro original com o

minado pela fórmula consagrada por Spielberg e Lucas, e o cinema clássico dos anos 1930,

filme mostra que várias partes foram retiradas na montagem, e outras, de menor extensão,

1940 e 1950, aquele da era dos grandes estúdios. Logo me ocuparei dessas diferenças. Por

foram acrescentadas durante a filmagem. O exercício revela que, embora a estrutura em

agora, voltemos ao cinema clássico. Para Bordwell, Staiger e Thompson, o cinema clássico é

puzzle do filme tenha sido uma operação iniciada no roteiro, a montagem teve um papel

um paradigma redundante, que oferece escolhas dentro das regras da tradição. Por que re-

fundamental no que se refere a debilitar as conexões entre as cenas e eliminar as redundân-

dundante? vejamos o procedimento do flashback. No cinema clássico, há vários elementos

cias típicas do cinema clássico.

de estilo que cumprem a função de explicitar ao espectador o salto ao passado. Tomo como exemplo um flashback de o homem que matou o facínora (The man Who shot Liberty Valance,1962), de John Ford. O cowboy Tom Doniphon (John Wayne) ao advogado Ramson Stoddard (James Stewart) que, no duelo entre Stoddard e Valence, foi um tiro seu que matou Liberty Valance e não o tiro da arma de Stoddard. A câmera se aproxima do rosto de Wayne até chegar ao close. Wayne fuma um cigarro e começa a lembrar verbalmente os momentos prévios à morte de Valance; entra numa música suave; Wayne solta uma grande nuvem de fumaça, que chega a dominar o plano; há uma fusão e o espectador é levado para as imagens do passado, que são acompanhadas durante uns instantes pela voz

Eddie Cães de alugel (1992)

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over de Wa1me. Na cena, há vários procedimentos de estilo que sinalizam ao espectador o salto no tempo, para facilitar compreensão. Por isso, argumenta-se que o cinema clássico

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é um estilo redundante. Porém, devo ressaltar que o estilo clássico de Hollywood não corresponde a uma fórmula, confusão cada vez mais comum nos dias de hoje. A narrativa e o estilo clássico são bem mais sofisticados que os equivalentes dos filmes contemporâneos convencionais. o culto ao presente da era contemporânea e sua consequente falta de memória e apagamento do passado fazem com que o cinema dos últimos 20 anos que se pretende convencional negue não só toda a tradição do cinema moderno, mas também desconheça a sofisticação da tradição clássica, retirando apenas os aspectos mais óbvios e convencionais. Como afirmam Bordwell, Staiger e Thompson (1985, p. 5), no cinema clássico, sempre há outra maneira de fazer algo. Por exemplo, flashback de O homem que matou o facínora, a música poderia não ter sido utilizada, o corte seco poderia ter substituído o travelling para o rosto de Wayne. No cinema clássico, não há uma receita fixa de procedimentos, mas uma concepção geral que prioriza a claridade narrativa e, portanto, recorre à redundância. O primeiro grande flashback do western de Ford é anunciado apenas por um plano de uma 6. Além, claro, do domínio da distribuição e exibição e das campanhas globais de marketing.

velha diligência e a voz do personagem de James Stewart. Do meu ponto de vista, numa narrativa, há diversos graus de redundância, tanto no cinema clássico quanto no cinema moderno. O grau zero de redundância implicaria não apenas um cinema não narrativo, mas uma expressão artística indecifrável para o espectador.

Mr. Blonde Cães de alugel (1992)

Afirmo que a Hollywood dos anos 1980 aumentou a redundância e transformou o paradigma clássico em fórmula, limitando as opções narrativas (a forma de organizar os eventos numa trama e, portanto, arranjara informação) e os procedimentos de estilo (enquadramento, mise-en-scène, musica, montagem etc.). As regras dessa formula foram explicitadas no manual de roteiro de Syd Field(1995), publicado em 1979, dois anos depois do lançamento de Guerra nas estrelas, (Star wars, 1977), filme de George Lucas que marca o início da nova era das superproduções baseadas na simplicidade narrativa, na matriz melodramáti ca, na mitologia e nos efeitos especiais. A proliferação dos manuais de roteiro na década de l980 evidencia a reformulação conservadora do paradigma clássico. A fórmula descrita por Field postula que a história seja narrada em ordem cronológica, que se evitem os flashbacks e que a situação e o conflito sejam apresentados na primeira meia hora, de preferência nos primeiros dez minutos. O filme deve dividir-se em três atos: uma exposição de 30 minutos, um desenvolvimento do conflito de 60 e um desenlace de 30. O longametragem deve ter dois plot points fundamentais: um no final do ato 1 (entre o

Mr. Blonde Cães de alugel (1992)

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minuto 25 e o 30), que mude a direção da ação; outro no final do ato 2 (minutos 85 a 90 aproximadamente), que provoque a última virada que leve ao desfecho da história.

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O objetivo da fórmula é que o espectador entenda claramente a situação, o conflito e os personagens, por meio de uma narrativa linear de causa e efeito que, no desenlace, feche

Omitir e postergar na seleção e na ordem dos eventos

todas as interrogações. Trata-se de eliminar a ambigüidade, para facilitar a fruição e a comdos anos 1980 ao optar por vários protagonistas, rejeitar a linearidade cronológica e pre-

A omissão de eventos significativos e a disposição dos eventos em ordem não linear são

ferir dramaturgia e mise-en-scène ambíguas, escolhas caras ao cinema moderno, mas tam-

técnicas essenciais da narrativa de Tarantino, que segue a estratégia já mencionada de mos-

bém ao melhor do cinema clássico (Hitchcock, Ford, Hawks) e, dentro deste, grande parte

trar primeiro os resultados e depois as causas. Fredric Jameson (1998, p.43) lembra que

do filme noir (Fuga do passado [Out of the past]), A morte num beijo[Kiss me deadly], À

o domínio narrativo se caracteriza pela capacidade de contrair e dilatar os eventos, fazer

beira do abismo[ The big sleep]). Se á fórmula hollywoodiana dos 1980 postula que se deva

elipses, resumos de partes importantes da história, ou se estender num detalhe. Trata-se,

definir o conflito e os personagens na primeira meia Cães de aluguel revela que Mr. Orange

pois, da relação entre uma história e a narrativa (ou trama), que implica uma lógica de se-

é um policial apenas no minuto 61, num longa- metragem de 100 minutos. Esse dado fun-

leção e ordem dos eventos. Cães de aluguel omite e posterga eventos importantes, deixa

damental é postergado mais de meia hora além do aconselhado pela fórmula adotada pela

lacunas na trama que incitam à participação da audiência, que percebe a existência de uma

maioria das produções contemporâneas convencionais.

instância narrativa que organiza a história. Os procedimentos de omissão e postergação

Penso Tarantino como cineasta pós-moderno e paródico (repetição com diferen-

podem ser cognitivos e/ou visuais. O enquadramento de Cães de aluguel costuma ocultar

ça e distância),e de grande erudição cinéfiIa, comprovada tanto nos filmes como nas

e postergar informação ao utilizar perspectivas visuais que destacam a arbitrariedade da

entrevistas.l, Em relação à exposição retardada, às omissões e aos saltos para o passado,

posição de câmera e valorizam o espaço off, o que fica fora do quadro. Assim, o espectador

podemos associar cães de aluguer principalmente ao cinema moderno europeu dos anos

pergunta-se primeiro ”o que vejo?”, e, posteriormente, “o que o filme deixa ver?”.

1950 e ao firme noir.A vontade de brincar com filmes do passado (intertextualidade) evoca

A primeira cena já estabelece a extrema valorização do espaço off, traço marcante de

a primeira fase de Jean-Luc Godard, a paróquia do western de Sergio Leone, os filmes de

Cães de aluguel. A câmera faz círculos na mesa da lanchonete e deixa ver pequenas partes

crime de Jean-Pierre Melville, Técnica de um delator (Le doulos,1962) e O samurai (Le

da ação: um rosto, várias costas, um perfil, alternados com momentos de escuridão na

samurai,1967),o cinema de Hong Kong dos anos 1980 (John Woo, Ringo Lamm) e até um

tela. Essa restrição visual já estava planejando o roteiro. Na conversa entre Mr. Pink e Mr.

cineasta clássico, como Howard Hawks, que repetia a si mesmo (El Dorado, de 1966,retoma

White, no quarto do fundo do corredor, o roteiro frequentemente indica enquadrar só um

Rio bravo,de 1959). Relação entre uma história e a narrativa (ou trama), que implica uma

personagem e deixar o outro fora de campo (Tarantino 1994,p.20 e pp. 35-38). Quando Mr.

lógica de seleção e ordem dos eventos.

White e Mr. Pink discutem, o roteiro indica uma restrição visual ousada, que não foi prati-

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cada no filme enquadrar, durante tempo prolongado (três páginas, cerca de três minutos), o personagem que escuta, não o personagem que fala (ibid.,pp. 35_3g;.rr Dessa forma, a decupagem não segue o diálogo de forma automática, não se corta do personagem que fala ao personagem que responde.

9. Um cinema pós-moderno pode utilizar o pastiche, mas não a paródia. Identifico a paródia como base de um pós-modernismo criativo, oposto a um pós-modernismo conservador, ligado ao pastiche. Sobre a paródia, ver Hutcheon (1989, pp. 45-68). 10. Entrevistas que, embora importantes, não são documentos mais importantes do que outros.

7. Matriz melodramática caracterizada pela necessidade de redenção moral dos personagens e pela simplificação dos conflitos por meio da oposição entre o bem e o mal. 8. Os plot points são os eventos que fazem avançar a trama

preensão do espectador. Cães de aluguel posiciona-se contra essa narrativa convencional

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A omissão cognitiva é mais significativa quando o personagem não é mostrado nem escutado e o filme parece esquecê-lo. No armazém, Mr. Orange (Freddy), ferido, está sempre deitado no chão. Quando desmaia, a decupagem tende a ocultá-lo. Antes de torturar o policial Marvin, Mr. Blonde procede confirma que Mr. Orange está inconsciente. Mr. Blonde Mr. Blonde cai crivado de balas. Um corte seco mostra Mr. Orange, que atira. Essa decupagem implica um tipo específico de montagem. Os planos extensos com profundidade de campo são acompanhados de uma montagem que faz sentir o corte e valoriza o tempo e a passagem de um plano a outro. Montagem lenta se comparada à edição cada vez mais rápida do cinema contemporâneo convencional.

Cães de aluguel joga com outros filmes preexistentes. Identifico os procedimentos de incorporação de formas, estilos, temas e ideias de firmes de passado como paródia, seguindo o trabalho de Linda Hutcheon (1989). para a autora, paródia consiste em retomar formas anteriores com distância crítica e diferença. Hutcheon assinala como a paródia é repetição, “que inclui diferença (Deleuze); é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo”. Hutcheon desobriga a paródia de estar necessariamente acompanhada do cômico (ibid.,p.58). Cães de aluguel possui tanto o jogo intertextual da paródia humorística quanto o jogo da paródia desprovida de humor. O filme afirma a vigência de questões tradicionais do filme de crime, como confiança, lealdade e traição. Ao mesmo tempo, retira o tom grave e sério do gênero, ao somar humor negro e personagens conscientes de sua imagem e de si mesmos, com senso de humor de comediantes. O espectador ri principalmente com os personagens, suas piadas e sua alegria; e, em menor medida, ri da crueldade mórbida das situações. Os personagens não são mostrados como inferiores ao espectador, como em Short cuts, cenas da vida (Short cuts, 1993, de Robert Altman), nem os temas e as convenções do filme de crime e da série B são ridicularizados e desprezados, como em O perigoso adeus (The long goodbye, 1973. de Altman), e como Godard não fez em filmes como Acossado (À bout de souffle, 1960), Banda à parte (Bande à part,1964) ou o pequeno soldado (Le petit soldat, 1963), embora haja quem afirme isso. O filme de crime costuma representar um golpe, sublinhando a seriedade e concentração dos especialistas e as várias etapas e detalhes que devem executar com eficiência para ter sucesso. Essa é a norma estabelecida pelo cinema americano. Profissionalismo, planejamento, eficácia, cálculo exato do tempo da operação, grande esforço humano para conter qualquer imprevisto. Cada integrante do bando deve seguir à risca sua função e ser uma peça impecável numa operação que deve ser uma engrenagem perfeita de relojoaria.

Mr. Orange Cães de alugel (1992)

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Em contrapartida, na comédia, personagens e situações do gênero de crime são parodiados e ridicularizados desde o início, como o singular. O diabo riu por último (Beat the devil,

11. A cena está dividida em três partes. Na primeira, não há indicações; na segunda, a câmera enfoca Mr. White em primeiro plano_ e Mr. Pink permanece fora de em todas as suas falas; na terceira, Mr. Pink fica em primeiro plano e Mr. White quem fica off. Na segunda e na terceira partes, o objetivo é ir contra as regras da decupagem clássica convencional, visto que os personagens com as falas mais importantes e mais extensas ficam fora de foco.

procede à dança e à tortura de Marvin. Esquecemo-nos da presença de Mr. Orange, até que

O jogo: Paródia e gênero

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1953, de John Huston), o inglês O quinteto da morte (The ladykillers, 1955, de Alexander Mackendrick) e, numa abordagem paródica ainda influenciada pelo neorrealismo, Os eter-

Os flashhacks e a ficção como jogo e labirinto

nos desconhecidos (l soliti ignoti, 1958 de Mario Monicelli). Nesses filmes, o espectador 12. Basear-se nos gêneros para fazer outra coisa, um cinema moderno intertextual e autorreflexivo, como Godard fez, não significa desprezar a série B americana. pelo contrário, Godard homenageava os filmes B americanos e o cinema de gênero hollywoodiano. O outro grande cinema que Godard admirava era o neorrealista italiano, Rossellini em particular.

sabe claramente que está diante de uma paródia ridicularizadora dos filmes de crime. O filme de crime costuma representar um golpe, sublinhando a seriedade e concentração

Os flashbacks, as elipses e o retardamento da informação fazem de Cães de aluguel um

dos especialistas e as várias etapas e detalhes que devem executar com eficiência para ter

labirinto narrativo. o espectador tem de organizar a ficção reunindo os dados parciais que

sucesso. Essa é a norma estabelecida pelo cinema americano. Profissionalismo, planeja-

lhe são fornecidos. Procedimentos como a estrutura narrativa não linear, os cartões-título,

mento, eficácia, cálculo exato do tempo da operação, grande esforço humano para conter

os letreiros, a voz over do locutor de rádio na tela escura e a imagem fade in/fade out evi-

qualquer imprevisto. Cada integrante do bando deve seguir à risca sua função e ser uma

denciam a existência de um processo narrativo. A partir da cena inicial, que termina com os

peça impecável numa operação que deve ser

personagens caminhando em câmera lenta e os créditos, o espectador percebe a clave lúdica

uma engrenagem perfeita de relojoaria. Em contrapartida, na comédia, personagens e situ-

de um narrador que claramente manipula a história. O cinema clássico justifica a irrupção

ações do gênero de crime são parodiados e ridicularizados desde o início, como o singular.

de um flashback se é oriundo da subjetividade de um personagem. É uma forma de romper

O diabo riu por último (Beat the devil, 1953, de John Huston), o inglês O quinteto da mor-

a linearidade respeitando a causalidade baseada nas ações dos personagens, aqui represen-

te (The ladykillers, 1955, de Alexander Mackendrick) e, numa abordagem paródica ainda

tada pelo ato de lembrar. Primeiro, vemos um personagem que lembra fatos passados, e

influenciada pelo neorrealismo, Os eternos desconhecidos (l soliti ignoti, 1958 de Mario

logo vemos as imagens do passado com a voz do personagem, até que a voz desaparece. Ti-

Monicelli). Nesses filmes, o espectador sabe claramente que está diante de uma paródia

tanic, de James Cameron, utiliza esse procedimento de volta ao passado de forma clássica.

ridicularizadora dos filmes de crime.

Rose, de 101 anos de idade, recorda sua experiência como passageira do navio.

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Em Cães de aluguel, os flashbacks não se originam da memória de um personagem, mas da decisão do narrador de retornar no tempo. Além disso, o filme elimina uma série de sinais (voz over,fusão de imagens) explicativos e redundantes do cinema clássico, que permitem ao espectador reconstruir facilmente a ordem linear dos eventos. Os flashbacks de Cães de aluguel têm diversas apresentações, longitudes, importância. Suas formas narrativas e seus estilos mudam progressivamente de um a outro. As técnicas estilísticas variam gradualmente e mostram um estilo eclético e heterogêneo. Os blocos narrativos do armazém,narrados em “tempo real”, entre os flashbacks, têm uma longitude sensivelmente diversa. O primeiro flashback mostra a fuga de Mr. Pink, perseguido pela polícia nas ruas, num momento posterior ao assalto. O flashback é introduzido com um simples corte, sem voz over ou cartão-título, e a transição de volta para o armazém utiliza novo o corte seco. A duração é breve, 50 segundos.

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Mr. Pink Cães de aluguel (1992) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 94-95

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O flashback seguinte mostra uma conversa entre Mr. White/Larry e Joe Cabot no escri-

Freddy lê as páginas com dificuldade; c) ruavazia,Freddy repáte a história com habilidade

tório deste último e tem uma duração superior (lmin47s) ao anterior. O flashback também

na frente de Holdaway; d) bar, Freddy conta para Eddie, Joe

é introduzido com um corte, porém, depois se insere um cartão- título de caracteres bran-

e Larry lMr. White como começou a vender maconha; e) comeva o flashback falso, voz over

cos sobre fundo preto (“Mr. White”). O terceiro salto para o passado se refere ao encontro

de Freddy, banheiro de estação de trem, Freddy entra com uma mala cheia de maconha e

entre Mr. Blonde/Vic Vega, Joe e Eddie. A duração de seis minutos e 37 segundos descarta

encontra quatro policiais e um cachorro pastor alemão, há um insert de Larry no bar; f)

toda equivalência de longitude com o anterior. O flasback começa com um letreiro (“Mr.

volta ao bar, Joe

Blonde”) introduzido com corte seco. Esse salto ao passado e o precedente compartilham o

elogia Freddy.

narrar um encontro entre Joe e um futuro assaltante no escritório do chefão. Porém esse flashback se detém na relação entre Mr. Blonde/Vic e Eddie, filho de Joe. O salto ao passado

3) Volta ao fast-food.Freddy e Holdaway. Corte para:

termina com um fade in/fade out no rosto de Vic Vega, uma muda estilo em relação aos anteriores. Chegamos ao quarto salto para o passado (intitulado Mr. Orange), um verdadeiro capítulo à parte. É flashback mais complexo e extenso (22min50s) e desarma predições

4) Apartamento. Freddy atende o telefone. Eddie o espera na rua. Antes de Sair, Freddy olha-se no espelho e repete que o bando não sabe de nada

sobre equivalência e lógica convencionais na estrutura narrativa. Há outro flashback, e este contém uma anedota falsa contada por Freddy, apresentada na estrutura voz over-flashback. Este último salto ao passado é introduzido com um corte

5) Rua. Freddy entra no carro de Eddie. No caminho para o armazém, Eddie, Mr. Pink, Larry e Freddy fazem piadas.

seco, um letreiro (Mr. Orange), como os anteriores, e termina com um fade in/ fade out. As formas de iniciar e terminar o flashback são iguais ao anterior, mas diversas do primeiro e

6) Armazém’ vemos os oito homens da primeira cena do firme (o café na lanchonete).

do segundo .O quarto flashback compreende três partes: como Freddy se infiltrou no bando (aqui está o flashback falso); os preparativos do golpe; a fuga de Freddy, Mr. Brown e Mr. White do assalto. Esta última cena se une à primeira pós-créditos, a que começa com Fre-

7) Fotografias da joalheria Karina. Num automóvel, Larry e Freddy, estacionados na frente da joalheria, falam do plano do assalto.

ddy gritando de dor. Dessa forma, o círculo narrativo está completo e volta-se ao armazém para o desenlace. Este último grande flashback comprova a heterogeneidade estilística e formal do cinema de Tarantino. Vejamos um esquema do quarto e extenso flashback apre-

8) Depois do assalto. Mr. Brown morre ao volante de um automóvel. Larry e Freddy para m um carro na rua. A dona do veículo fere Freddy no estômago e este a mata.

sentado sob o “Mr. Orange”: 1) Fast-food. Mr. Orange/Freddy., diz ao colega, o policial Holdaway, que foi convidado por Joe a participar de um golpe.

9) Carro. Larry e Freddy gritando de dor e medo. É cena posterior aos créditos, apenas um momento um pouco anterior.

2 ) Novo/flashback sobre como Freddy aprende a contar a história da maconha: a) terraço, Holdaway dá a história escrita para Freddy; b) apartamento,

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Já assinalei que a história da venda da maconha de Freddy é narrada na forma de voz

sional de Mr. Pink e o reforça ao não revelar seu nome, o único membro do bando que se

over/ flashback, a principal estratégia narrativa do filme noir. Não deixa de ser irônico que

comporta como um verdadeiro profissional. Outro exemplo de como o passado é inerente-

o único salto ao passado que começa com a introdução clássica da voz sobre as imagens pas-

mente subjetivo, filtrado pela nossa interpretação dos fatos, é a cena entre Marvin, o poli-

sadas seja uma história falsa, que o espectador conhece primeiro como um texto escrito que

cial capturado, e Freddy. Marvin diz a Freddy que sabe que ele é um policial, ambos foram

o policial Holdaway dá a Freddy. Segundo J.P. Terotte (1989, p. 16), a estratégia voz over/

apresentados numa festa. Freddy não lembra. Marvin responde: “Eu lembro” (“I do”).

flashback assinara que o olhar e a compreensão são sempre de alguém, e que.cada visão provém de uma perspectiva única, invariavelmente limitada e subjetiva. Com o filme noir, Cães de aluguel partilha o sentido da relatividade que o cinema clássico mais convencionar tenta ocultar. A forma particular, o lugar e o estatuto de cada flashback de Cães de aluguel revelam a singularidade de sua narrativa. Cães de aluguel remete à tradição do filme noir, mas estabelece diferença e distância. O filme trabalha com formas preexistentes e as combina com uma concepção lúdica e cinéfila, originária dos anos 1960, o que proporciona à narrativa ao estilo uma liberdade maior do que a praticada pelo filme noir.Tarantino não deseja se enquadrar numa tradição determinada, como o filme noir, a nouvelle vague e os filmes exploitation americanos dos anos 1970, mas se relacionar com elas de forma livre, sem subordinação. Seu projeto é criar o novo com base no preexistente, uma ideia de novo que pressupõe mudanças, mas também continuidades. Já não é um novo associado à ruptura e à negação do passado, visão mais própria das vanguardas do modernismo. O primeiro filme de Tarantino concebe o tempo passado como algo subjetivo e inapreensível. Essa visão do passado implica que aquilo que sabemos é inerentemente parcial, limitado e subjetivo. O filme levaria várias perguntas, a maioria delas é respondida no transcurso da trama. Há, porém, outras, secundárias que não são respondidas nem fechadas. Podemos interpretar essa característica como própria dos cinemas da modernidade, mas devemos lembrar, por exemplo, o filme À beira do abismo,de Howard Hawks, em que várias questões não são respondidas. Do passado dos personagens, conhecemos apenas uma pequena parte, por meio de informações subjetivas que podem passar despercebidas ao assistir ao filme pela primeira vez. Exemplo: ao discutir com Mr. White, Mr. Pink diz rapidamente que conhece Joe desde criança, única menção ao fato. O filme brinca com o racionalismo profis-

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Mr. Orange Cães de aluguel (1992)

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. na cena da lanchonete, a câmera faz círculos, alternando visões parciais de rostos com as costas que chegam a ocupar toda a tela durante instantes; . no armazém, na primeira parte do filme, Tarantino enquadra Mr. White

Tarantino utiliza diversas técnicas com o objetivo de distanciar o espectador e apresentar o filme como jogo. Já no começo do filme, os diálogos sobre os créditos iniciais, sobre a tela escura, anunciam a abordagem lúdica. A isso, somam-se a voz

. no quarto do fundo, através de batentes de portas, e mostra o longo corredor, deixando Mr. Pink fora de quadro. A câmera está literalmente distanciada da cena;

over do locutor de rádio e o plano lateral sem profundidade dos presonagens caminhando em câmera lenta. Anteriormente, já nos referimos ao uso dos cartões-título (caracteres brancos sobre fundo negro) que designam o nome de um personagem e param a história.

.a cena entre Joe, Vic e Eddie no escritório também coloca a câmera num ambiente dis-

14. Assim informa o roteiro original (ibid., p. 12).

Formas de jogo

tinto daquele onde estão os atores. A câmera “olha de longe” a cena, através do batente de uma porta.

Os fade in/fade outs funcionam como pausas narrativas que pontuam os blocos narrativos. Momentos em que a história é suspensa, a tela escurece e o silêncio

Cães de aluguel sublinha que há uma narração com a presença da chamada câmera não

substitui ruídos, música e diálogos. outra técnica é avoz oyer d,eum locutor de

motivada pela ação. Quando Mr. White e Mr. Pink vão discutir no quarto do fundo, a câme-

rádio sobre a tela escura, anunciando uma música.

ra mostra primeiro um vaso sanitário quebrado num ambiente sujo e gira à esquerda para

O roteiro de Cães de aluguel tem um exemplo mais ousado de jogo: um car-

mostrar, no final do corredor, os dois personagens. Da mesma forma, quando Mr. Blonde

tão-título assinala “Um destes homens é um tira” (“one of these men is a cop”),

vai cortar a orelha do policial, a câmera faz uma panorâmica à esquerda e volta quando a

depois, embaixo da primeira frase, “No final, estarão todos mortos, menos um,,

mutilação acabou.

(“And by the end, all but one will be dead”) (Tarantino 1994, p.12). É uma forma de antecipar parcialmente a intriga ao espectador, para que assista à história com certo distanciamento emocional. O cartão-título foi cortado na montagem. Outro procedimento que provoca distanciamento do espectador da história são os planos de personagens em posições geométricas no amplo espaço do armazém, que evocam o palco de um teatro. Na história da venda de droga, Freddy e os policiais aparecem quietos e calados, como estátuas no banheiro; apenas o cachorro se mexe, enquanto ouvimos a voz over de Freddy. Aqui, o espectador não pode deixar de observar o estilo e a falta de naturalismo ou realismo da cena. A luta final é encenada com planos gerais que mostram um triângulo de quatro personagens: Joe e Eddie ocupam dois vértices e o outro é formado por Mr. White e Mr. Orange, deitado:

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Cena do filme Cães de aluguel (1992)

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outro. É por isso que podemos falar de monólogos no filme, porém, não no sentido estrito de um personagem exprimindo-se sem interrupção. Gostaria de transcrever um diálogo que exemplifica a transição, difícil de delimitar com rigidez, entre diálogo e monólogo. A si-

Em páginas anteriores, assinalei como Cães de aluguel formava parte subgênero cha-

tuação: Mr. White e Mr. Pink acabam de chegar ao armazém e discutem sobre o acontecido

mado filme de golpe. Tarantino escolhe não mostrar a ação concreta do golpe, estratégia

na joalheria, mais precisamente sobre a conduta de Mr. Blonde: Mr. Pink: Todo o mundo

retórica de elipse, jogando contra as convenções genéricas. Dessa forma, assistimos aos

entra em pânico. Quando as coisas ficam tensas, todo omundo_ entra em pânico. Todo o

eventos anteriores ao assalto, cuja duração se estima em algumas semanas, e aos eventos

mundo. Não importa quem você seja, não dá praevitar. É a natureza humana. Mas você

posteriores, que duram aproximadamente e entre uma e três horas. A elipse do assalto tem

entra em pânico por dentro. Na sua cabeça. Você se dá o direito de dois segundos de pânico,

o claro objetivo de desorientar o espectador e incitar sua participação. Tarantino oculta o

então, se recupera e enfrenta a situação. O que não dá pra fazer é atirar pra todo lado e ma-

motivo dinâmico central da história (a ação de dois minutos na joalheria) e, em contraparti-

tar todo o mundo. Mr. White: O que se espera é que você aja como a porra de um profissio-

da, inicia o filme numa lanchonete com oito minutos de digressões sobre Madonna, música

nal. Um psicopata não é um profissional. Não dá pra trabalhar com um psicopata, porque

pop dos anos 1970 e uma discussão sobre dar ou não dar gorjeta, motivos livres e estáticos

você não sabe o que esses loucos vão fazer em seguida. Cara, Meu Deus, quantos anos você

que não fazem avançar a história. A disposição dos eventos da história (a trama) organiza-

acha que aquela garota negra tinha? Vinte, vinte e um, talvez? Mr. Pink: No máximo.

-se com base nas cenas armazém, onde são evocados os acontecimentos anteriores ao as-

Outro tipo de diálogo que vta monólogo é a piada extensa, que lembra os comediantes

salto (com exceção da sequência prévia aos créditos) por meio de diálogos e de retornos ao

de casas noturnas e dos sitcoms da televisão americana. Os personagens de Cães de aluguel

passado sem voz over. Os flashbacks contrapõem-se à ação no armazém, narrada em “tem-

gostam de fazer piadas continuamente e de se deleitar num clima brincalhão de camara-

po real” - entendido como a coincidência entre a duração do evento na história e na trama.

dagem masculina. Exemplos: quando Mr. Brown finaliza sua teoria sobre a música “Like

No amplo espaço do armazém, Mr. Pink e Mr. White tentam achar sentido para o ocorri-

a virgin”, está satisfeito consigo mesmo e espera risadas; para um público de três colegas,

do na joalheria. Aqui, a imagem é substituída pela palavra: a mostração cinematográfico (no

Eddie conta a piada de Elois, a mulher que colou o pau do marido na barriga; a extensa fala

sentido de André Gaudreault 1989) dá lugar às diversas versões orais do mesmo fato Mr.

de Freddy quando conta a história da venda da droga é o melhor exemplo de diálogo que

Pink tenta convencer os outros de que o assalto foi uma cilada; tenta chegar a um acordo

vira monólogo; Freddy começa a contar a história a Eddie, Joe e Larry num bar, no início,

através do diálogo; fracassa uma e outra vez. o estatuto superior da palavra é construído

os personagens o interrompem com perguntas. Mas depois que Freddy “decola” contando

com diálogos extensos dos personagens que se transformam em reflexões. Assim, os diálo-

a anedota, sua voz passa a ser voz over de um flashback falso.

gos viram algo muito similar ao monólogo. O trânsito do diálogo ao monólogo marca uma

15. Sobre relações entre história e discurso, ver Genette (1972).

nagem pensa em voz alta, consciente de si mesmo, sem esperar ou depender da resposta do

16. Sobre o conceito de motivo, Boris Tomashevsky (1965, pp. 67-68 e p.70) escreve: “O tema de uma parte irredutível de um trabalho é chamado o motivo (...). A história é o agregado de motivos em sua ordem lógica, causal e cronológica. os motivos que não podem ser omitidos são motivos de união: aqueles que podem ser omitidos sem perturbar o transcurso causal e cronológico de eventos são motivos livres (...) Motivos que mudam a situação são motivos dinâmicos, aqueles que não a mudam, são estáticos. Dinâmicos são os motivos que são centrais para a história que fazem avançar”.

O predomínio da palavra sobre a imagem

passagem da influência do cinema clássico à influência do cinema moderno. Uma comédia como Jejum de amor (His girl friday,1940,de Howard Hawks) é baseada nas rápidas e inteligentes trocas de palavras, mas os personagens não param para refletir sobre sua própria atividade e identidade. Em Cães de aluguel, o diálogo dá lugar a momentos em que o perso-

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Encenação em profundidade em Cães de aluguel

Como Tarantino conseguiu em Cães de aluguel encenar em profundidade no formato anamórfico, conhecido pela limitada capacidade de foco? segundo o diretor de fotografia, Andrzej Sekula a solução foi filmar em Super 35 mm, em vez de fazê-lo diretamente em anamórfico, A decisão foi tomada, em princípio, por razões econômicas (Pizello 1992, p. 66). No Super 35 mm, a ampliação para o formato anafórmico é realizada nas pós-produção. Há um inconveniente no processo: uma sensível perda de qualidade de cores e nitidez na cópia final. Mas há vantagens, como a possibilidade de obter

Mr. Pink e Mr. White Cães de aluguel (1992)

maior profundidade de campo. “O Super 35 mm permite usar lentes esféricas. Primo,

Outra escolha importante de Sekula foi filmar com o negativo Kodak de 50 Asas 5245,

e supostamente propicia uma maior profundidade de campo. O verdadeiro anafórmico

uma película lenat, utilizada em geral para exteriores diurnos, que requer muito mais luz

produz uma perspectiva mais achatada”, sublinha Sekula (ibid). As lentes Primo dimi-

que negativos mais utilizados na indústria, como o de 50 Asas. O tipo de película favorecia

nuem notoriamente a distorção das lentes grande-angulares (de curta distância focal) e

a intenção de Tarantino de fazer um filme de cores fortes, nítidas: “Sempre que eu conver-

proporcionam maior profundidade de campo.

sava com ele [Sekula] sobre como eu queria que o filme aparecesse, eu falava em termos

O fotógrafo provocou, com a luz e o tipo de película utilizada, o que chamou de “um efeito tridimensional”, para construir uma imagem realista” (ibid).

de cores: “quero que o preto seja terrivelmente preto” (ibid., p.64). O principal objetivo do cineasta e do fotógrafo foi criar uma grande profundidade de campo e de foco. Sekula filmou os interiores com aberturas entre 4 e 4.5, e os exteriores, em geral com aberturas entre 4 e 5.6. Com clareza conceitual, Sekula argumenta como o tipo de imagem alcançada pelo fotógrafo condiciona o tipo de montagem: Se eu tiver uma exposição mais longa e tudo estiver nítido, podemos nos demorar mais do que se eu usasse uma abertura rápida. O público consegue ver os rostos com muito mais clareza. Se o espectador fica muito tempo sem ver o rosto dos atores, ele fica frustrado, e essa frustração leva o editor a cortar muito mais rapidamente para o close. Se tudo estiver claro e nítido, tenho a liberdade de me demorar num plano longo; as emoções podem ir crescendo por mais tempo, antes de cortamos para o close. Aprendi isso com aminha experiência de edição. Essa é uma das grandes diferenças

Mr. Pink e Mr. White Cães de aluguel (1992)

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entre cinema e TV; por causa da claridade da imagem fílmica, pode-se ficar mais tempo

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num plano longo, dando aquela fração extra de um segundo. (ibid., p.66). Em resumo, vá-

Na primeira parte da cena (nos primeiros dois minutos), a câmera gira em círculos ao

rias decisões de cinematografia possibilitam encenar em profundidade. Super 35 mm, len-

redor da mesa, mostrando partes dos integrantes do bando (as costas, um rosto, parte de

tes Primo, muita luz para compensar a película de 50 Asas, aberturas lentas (4 a 5.6). Essas

um rosto) e ocultando outras. Como Tarantino não deseja mostrar totalmente os persona-

técnicas foram guiadas por um estilo preconcebido, que reforçou os fundamentos do estilo.

gens, há pouca profundidade de campo (não podemos distinguir o fundo do bar). Quando

Os planos gerias e de conjunto, com profundidade de campo e imagem nítida, possibi-

Mr. Brown termina de contar sua interpretação de uma música de Madonna, um close de

litaram fazer menos cortes e ter uma montagem lenta, pausada. Já assinalamos como o

Joe Cabot indica a passagem para planos mais abertos (planos médios e americanos), com

estilo de Tarantino surge da incorporação de diversos estilos que, no conjunto, estabelecem

profundidade suficiente para que distingamos o fundo do bar, os fregueses e o exterior pela

um tom dominante. Naquele final da década de 1990, um estilo uniforme, que tentava lo-

janela. A profundidade de foco não é total, como nos filmes em preto e branco fotografados

grar a unidade do cinema clássico, revela frequentemente falta de estilo e pobreza de ideias.

por Gregg Toland nos anos 1940. Da perfeita nitidez da mesa e seus membros, passa-se

Shakespeare apaixonado (Shakespeare in love, 1998, de John Madden), filme em widescre-

para uma perda gradual de foco, que ainda assim permite distinguir movimento e figuras.

en, apresenta uma câmera que se movimenta durante todo o tempo na mesma velocidade,

A terceira parte da cena (a discussão sobre dar gorjeta) é constituída fundamentalmente de

planos de curta duração com pouca profundidade (apenas um nível em foco), montagem

primeiros planos sem profundidade. Aqui, Tarantino segue a convenção de enfocar o perso-

rápida com o mesmo ritmo e contínuas passagens de música que comentam a ação de ma-

nagem e deixar o fundo fora de foco. Quando há um corte para um plano americano de Mr.

neira redundante. É provável que diretores e produtores tenham acreditado que esse “esti-

White e Mr. Orange, volta-se à profundidade de campo de planos similares anteriores; um

lo”, baseado no movimento constante e na rapidez da montagem, daria ritmo à comédia ro-

plano médio de Mr. Brown, Mr. Blue e Mr. Pink, e um plano de conjunto de Joe Cabot reco-

mântica. A combinação de steady cam em movimento permanente e edição ágil é um estilo

lhendo os dólares de gorjeta, ambos com boa profundidade de campo, confirmam o retorno

forte na Hollywood dos anos 1990. Outra forma codificada de filmar, falsamente oposta

à profundidade.

à de Hollywood, é a constante câmera na mão, em estilo documentário, e uma edição que recorre a cortes abruptos, na pretensão de representar espontaneidade. Esse estilo é a vulgarização de uma forma de filmar originária dos anos 1960, inspirada principalmente em John Cassavetes e Jean-Luc Godard. Muito popular no cinema independente americano das décadas de 1980 e 1990, tem sido ultimamente incorporado por Hollywood, em especial em produções de médio porte que tentam parecer independentes. Analisemos agora em detalhe o enquadramento e a forma de encenar em Cães de aluguel. A primeira cena do filme, a conversa entre os integrantes do bando na lanchonete, é encenada fundamentalmente em primeiros planos e planos médios. Mr. Blue Cães de aluguel (1992)

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Segue-se a sequência que apresenta os nomes dos atores e o título do filme sob os inte-

Vemos grande parte do ambiente principal do galpão. Mr. White e Mr. Orange no fundo

grantes caminhando em câmera lenta. os dois planos gerais têm profundidade de campo,

do local, Mr. Pink, de costas, afasta-se da câmera. O foco é nítido. Logo, na discussão entre

os closes dos atores deixam o fundo esfumado. A profundidade de campo continua na cena

Mr. White e Mr. Pink, a decupagem é constituída fundamentalmente por planos de extensa

em que Mr. White dirige o carro com Mr. Orange ferido no banco de trás: pela janela do veí-

duração com profundidade de campo e de foco. Primeiro, a câmera vai, durante 38 segun-

culo, distingue-se o exterior com qualidade. A câmera procura mostrar os dois personagens

dos, de Mr. White e Mr. Orange, no chão, para Mr. Pink, que fala, agitado, e caminha de um

juntos em plano médio. o sangue abundante, de uma cor bem vermelha, e os gritos de Mr.

lado para o outro. Segue-se um plano médio rápido de Mr. Pink (três segundos) para ficar

Orange surpreendem e chocam o espectador. Do tom distanciado e lúdico da conversa na

17 segundos em Mr. White, sem Aqui começa o trecho que considero paradigmático da mi-

lanchonete e dos personagens caminhando na rua, passamos a sangue e gritos.

se-en-scène de Cães de aluguel. Plano geral de 45 segundos. Começa uma intensa troca de

Passemos ao galpão, onde Tarantino encena com profundidade de campo pouco usual

ideias entre Mr. White e Mr. Pink. A câmera está colocada perto da porta do galpão, a vários

no cinema industrial contemporâneo. Mr. White e Mr. Orange (Freddy) entram no galpão,

metros (mais de 15) dos atores. Não há elementos próximos da câmera, só os atores longe

filmados com câmera na mão próxima dos atores. Mr. White coloca Mr. Orange no chão

da lente, perto do fundo do cenário. o plano elimina a dramaticidade da ação e provoca

e cuida dele. Na troca entre ambos os personagens há profundidade de campo tanto nos

distanciamento no espectador por vários procedimentos: primeiro, a câmera permanece

planos médios quanto nos closes, prática pouco comum no cinema contemporâneo, que

fixa durante os 45 segundos; segundo, os atores se movimentam muito pouco em quase

prefere filmar os primeiros planos com teleobjetivas para evitar distorção. Corte para plano

todo o plano; terceiro, quando Mr. Pink sai do local e se dirige para o corredor, Mr. White o

geral: Mr. Pink entra no local.

segue e a câmera fica sete segundos em Mr. Orange, ferido no chão, até o corte; quarto, os atores dispõem-se praticamente em linha e o fundo do galpão evoca o palco de um teatro. É um enquadramento em perspectiva quase plana. Digo quase plana, pois a câmera não está num ângulo de 90 graus com o fundo, mas colocada um pouco à direita, criando uma ligeira rinha diagonal; a porta do galpão está em off esquerda. Esse plano de 45 segundos quebra o tom realista da entrada de Mr. White e Mr. Orange no local, filmada com câmera na mão. O próximo plano começa com pedaços de um vaso sanitário e uma cesta de lixo num pequeno ambiente do galpão. A câmera faz uma panorâmica, sobe lentamente e sai do quarto movimentando-se para a esquerda. Vemos o batente da porta em close, depois um longo corredor com dois batentes de portas e, no fundo, Mr. White, longe, conversando com Mr. Pink (fora de quadro) numa sala com espelho e pia. A câmera fica estável no meio do corredor. Não vemos Mr. Pink, apenas o ouvimos: ele está fora do campo de visão delimitado pela porta. Aos 36 segundos, Mr. Pink entra em quadro. É um plano praticamente estático, de

Mr. Orange Cães de aluguel (1992)

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um minuto e 31 segundos, realizado numa época em que a indústria costuma cortar a cada

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três ou cinco segundos, com exceção dos travellings realizados com steady cam, tomadas

construção histórica como universo metaficcional, como mostra a genial cena da sessão de

que substituem a montagem por uma intensa movimentação que gera contínuas mudanças

cinema em Paris com todo o alto comando nazista.

de quadro. A câmera quieta, o corredor e os batentes de portas e Mr. Pink fora de quadro intensificam o distanciamento que observamos no plano anterior. Todos os elementos do corredor estão em foco nítido. Afora o movimento inicial de 11 segundos, a câmera permanece fixa por um minuto e 21 segundos. Na maior parte do tempo, o quadro oculta uma parte importante da ação,o personagem Mr. Pink, que, aliás, fala mais que Mr. White. Eis um traço de estilo de Tarantino: em certas ocasiões, não mostrar quem fala, mas quem ouve; não mostrar a ação,mas a reação. Um estilo que pensa a imagem e o som de forma independente, sem que o som siga a imagem numa relação de subordinação. No estilo convencional de Hollywood, parte-se de um princípio de obviedade e redundância: o som segue a imagem, o personagem que fala é mostrado, o importante numa ação tem de ser mostrado. O enquadramento de Tarantino segue sua concepção formal e estilística de não dar toda a informação ao espectador. Na cena que acabamos de analisar, não vemos Mr. Pink quando fala irritado e bate nas paredes da sala, mas sim quando, posteriormente, olha para o espelho e tenta se acalmar. A encenação e o enquadramento de Cães de aluguel apresentam o galpão como um palco de teatro. A profundidade de campo e de foco, a luz realista, a longa duração dos planos e os poucos cortes, a distância considerável entre câmera e atores, o galpão quase vazio e as posições dos atores criam distanciamento e um efeito de teatralidade. O baixo orçamento do filme (um milhão de dólares na época) condicionou essa escolha. Com orçamentos médios, Tarantino abre seu olhar para a cidade de Los Angeles, o consumo e o cotidiano, em Pulp fiction, tempo de violência (Pulp fiction, 1994) (oito milhões) e Jackie Brown (1997) (12 milhões). Orçamentos médios para grandes, como Kill Bill 1 e 2 (2003;2004) (30 milhões de dólares cada), permitem ao cineasta mergulhar no universo metaficcional completamente, com um grande investimento no design de produção (production design) e na reciclagem dos dos anos 1970 (artes marciais, exploitation). Em Bastardos inglórios (Iglorious basterds,2009), o olhar sobre fatos históricos de extrema relevância, a história, algo novo na obra de Tarantino,levam o cineasta a combinar a re-

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Mr. White Cães de aluguel (1992)

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Mr. White e Mr. Pink Cães de aluguel (1992) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 112-113

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3 PULP FICTION: O ACASO E INVERSÃO DAS CONVENÇÕES DE GÊNERO

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A inversão de aspectos estruturais de gênero

depurou e sofisticou (Tarantino, Almodóvar), convivendo com outras tendências fortes do cinema contemporâneo. Antes de entrar no Jackrabiit, conversando no carro, Mia desenha um quadrado no ar, momento de intervenção do narrador que cria um efeito de jogo. Quando Vincent e Mia se sentam à mesa, assistimos um lugar pós-modeno abarrotado

No primeiro capítulo, afirmei que Tarantino reformulava o filme de crime abarrotando

de referências ao cinema dos anos 1950 e, por outro lado, a clara influência do primeiro

uma situação típica do gênero com o que denominei cenas do cotidiano. Frequentemente,

Godard, silêncios, lentidão nos diálogos e comentários banais )o preço de um Milk-shake),

essa situação híbrida sofre uma virada repentina, com a irrupção do acaso. Em Pulp fiction,

que mostram uma vontade de expressar o tempo real de uma conversa, e ao mesmo tempo,

tempo de violência (Pulp fiction, 1994), o acaso, geralmente na forma do azar, detém o

de desconstruir as expectativas do espectador em relação à temporalidade do filme. Se, em

avanço da trama na esperada lógica linear de causa e efeito, própria do cinema clássico, para

Godard, essas cenas até irritavam quem esperava um ritmo mais acorde ao paradigma

criar uma espiral hiper-realista e bizarra. A saída noturna de Vincent Vega e Mia Wallace é,

clássico, em Tarantino, a transgressão é suavizada pela incorporação de uma banda sonora

em princípio, uma situação clássica do filme de crime: o jovem criminoso que sai com a mu-

muito bem escolhida e muito presente. As paradas, as quebras de ritmo, os tempos mortos,

lher do chefe, geralmente mais poderoso e mais velho. Lembremos, por exemplo, o filme de

transformam-se no cinema de Tarantino, numa atmosfera geral hedonista, chamada pelo

gângsteres Scarface, a vergonha de uma nação (Scarface, 1932, de Howard Hawks).

próprio diretor de cool. Potencial Coll que já existe nos filmes de Godard, como COSSADO

Ambos têm um visual estilizado e inspirado na cultura de massas. Vincent, de terno

E Banda à parte, quando assistido hoje. Quando Mia e Vincent são chamados para dançar,

preto e camisa branca, lembrando os anos 1950 e 1980 (os irmãos cara de pau [The blues

é o ator e não o personagem que evoca a história do cinema. Ver John Travolta dançando

brothers], 1980, de John Landis), cabelo comprido posterior aos anos 1970, brincos dos

evoca no espectador uma pletora de citações, um sentimento de nostalgia e uma compa-

anos 1990. Mia, com cabelo chanel preto, bem escuro, anos 1970, e ainda a clara citação a

ração irônica com os filmes famosos do inicio de sua carreira, como Os embalos de sábado

Louise Brooks, atriz que teve seu apogeu na década de 1920. A entrada de Vincent e Mia no

a noite (Saturday nigth fever, 1977) e a Grease, nos tempos da brilhantina (grease,1978).

restaurante e sala de shows Jackrabbit Slim’s é uma celebração autoconsciente da cultura pós-moderna. No Jackrabbit, confluem várias homenagens à cultura pop e jovem dos anos 1950, ao cinema e à música, à cultura dos subgêneros exploitation e do rock and roll: Buddy Holly, Marilyn Monroe, filmes de Roger Corman,Jerry Lewis e Dean Martin, Douglas Sirk. Vincent, ele mesmo um personagem pós-moderno, com seu figurino de terno preto e camisa branca’, brincos e cabelo comprido dos anos 1970, passeia pelo local muito à vontade, entre garçons e garçonetes inspirados em estrelas de Hollywood, telas de televisão, cartazes de filmes exploitation. O Jackrabbit é um lugar que homenageia os anos 1950, como visto pelo cinema na década 1990, uma década pós-moderna consciente de seu próprio pó-modernismo. Se os anos 1980 foram a década em que o cinema pós-moderno explodiu e se consolidou, os 1990 foram a década em que esse pós-modernismo cinematográfico se

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Mia Wallace e Vincent Vega Pulp Fiction(1994)

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A overdose de Mia, que confunde heroína com cocaína, propicia uma escala de hiper-realismo. Primeiro, saímos do universo pós-moderno para ver as cenas entre Vincent e o traficante Lance com uma iluminação sem contraluz, realista, e uma câmera na mão que 1. Como por exemplo, lembremos a longa conversa do casal no hotel, em Acossa (à bout de souffle, 1960) ou das conversas dos personagens de Banda à parte 9Bande à part, 1964), em particular aquela no bar, em que os personagens fazem um minuto de silêncio que antecede a memorável cena de baile do trio protagonista. 2. Entendo o hiper-realismo como algo que se apresenta como mais real que o real, e portanto, não é real.

evoca o cinema vértié. Passamos da precariedade realista dos preparativos até o absurdo hiper-real da injeção de adrenalina entrando no peito de Mia e a reação dela. O pulo da personagem, como se fosse um zumbi, constrói não é real. momento exploitation; é mais uma citação, agora ao gênero terror, como abordado pelo cinema italiano dos anos 1970 e e 1980 (do diretor italiano Lucio Fulci em particular). A cena confirma que a estratégia central de Tarantino em Pulp fiction consiste em escolher aspectos característicos dos gêneros e inverter sua importância. Aspectos que antes eram secundários no gênero agora são principais, e os que eram principais, agora são secundários (como, por exemplo, Vincent e Jules entregarem a mala para Marsellus Wallace). A inversão desses elementos vai contra as expectativas do público, acostumado a um desenrolar da história que siga as convenções de gênero. A irrupção maciça do lado prosaico da vida, incluindo a obsessão pela cultura de massas, e a criação do que denominei momentos exploitation, cenas bizarras, formam parte da estratégia de inversão. Uma das técnicas do estratagema é minimizar os eventos, os objetivos e as explicações típicas da construção de uma trama clássica de crime. A técnica deixa em segundo plano os objetivos dos protagonistas, os obstáculos lógicos a ultrapassar e os antagonistas, e apresenta um universo dominado pelo acaso e pelo azar.A falta de lógica causal dos eventos reforça o fato de os protagonistas não terem pressa e passearem vagarosamente pela cidade. Flâneurs, passeantes, sim, da cidade de Los Angeles e, portanto, motorizados. Nada mais afastado da pressa crescente típica das perseguições e dos tiroteios, do crescendo e da urgência dos protagonistas em prol do objetivo, típica do cinema americano.

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Mia Wallace Pulp Fiction(1994) 26/11/2013 21:07:26


Pulp fiction parte de histórias com um número pequeno de eventos; há poucas, porém

venções constrói uma paródia humorística. Nas cenas de violência, o filme se concentra nos

extensas, sequências. Em cada locação, o firme permanece mais tempo do que é costumeiro

momentos prévios e posteriores à violência em si. A duração dessas cenas em Pulp fiction

no cinema convencional contemporâneo, graças a prolongadas conversações entre os per-

- os momentos prévios a um confronto armado, um assassinato, um assalto - aumenta no-

sonagens, nas quais as digressões predominam sobre as informações que fazem a história

toriamente quando comparada com a narrativa clássica. Em relação ao cinema contempo-

avançar. O filme distancia parcialmente o espectador e o diverte, apoiando-se fundamen-

râneo mais convencional dos últimos 20 anos, esse filme estendeu a quantidade e a duração

talmente em sua habilidade para o diálogo. Um exemplo de como Tarantino prolonga os

das cenas de violência, porém, seguindo uma lógica do espetáculo. As cenas violentas do

tempos e suspende o progresso da ação por meio de diálogos digressivos é o assassinato de

cinema de Tarantino privilegiam o choque, a agressão sensorial ao espectador, não o es-

Brett e seu colega. Primeiro, vemos Jules e Vincent, que conversam (no carro, na rua e no

petáculo. Seguindo uma trilha explorada com maestria por Sergio Leone no western, Pulp

edifício), durante mais de sete minutos (7min20s), antes de entrar no apartamento. Eles

fiction prolonga os momentos prévios e os posteriores ao ato de violência. Leone utilizava

falam sobre fast- food, drogas, as diferenças entre Europa e Estados Unidos e o significado

silêncios dos personagens, grandes closes e a música operística de Ennio Morricone, para

de uma massagem nos pés. Há apenas três breves momentos em que os matadores sobre a

estender o tempo no momento prévio dos duelos, uma cena arquetípica do western. Exem-

ação que está em curso. O primeiro e mais extenso lapso dura apenas 16 segundos. A dupla

plos: os atores clint Eastwood com Gian Maria volonté, em Por um punhado de dólares (Per

retira as armas do porta-malas do carro:

un pugno di doilari,l 964); Clint Eastwood, Lee van cleef e Eli wallach, em Tiês homens e

Jules: A gente precisava ter uns fuzis para esse tipo de negócio.

um conflito (II buono, il brutto, il cattivo, 1966) . uma tendência já anunciada por Howard

Vincent: Quantos estão 1á em cima?

Hawks em Rlo Bravo (1959),western com pouca violência física e tiros, em que o que im-

Jules: Três ou quatro.

porta mesmo são as relações humanas dos personagens (do personagem de John Wayne

Vincent: Contando com o nosso homem?

com o de Dean Martin; de Wayne com o de Angie Dickinson). Apesar da influência de Leo-

Jules: Não tenho certeza.

ne, a diferença que salta aos olhos em relação aos filmes desse diretor italiano é a profusão

Vincent: Então, talvez tenha uns cinco caras ali?

de palavras que os personagens utilizam antes de decidir se atiram ou não. Tarantino junta

Jules: Pode ser.

a extensão do momento prévio à violência de Leone às digressões dos personagens de Go-

Vincent: Merda, a gente tinha de ter fuzis.

3. Jules: We should have shotguns for this kind of deal Vincent: How many up there? lules: Three or four. Vincent: Counting our guy? fules: I’m not sure. Vincent: So there could be up to five guys there? Jules: It’s possible. Vincent: We should have fuckin’ shotguns.

Pulp fiction é uma grande paródia pós-moderna do filme de crime. A subversão das con-

dard e à riqueza dos diálogos lúdicos dos filmes de Howard Hawks. Pulp fiction prolonga os momentos prévios e posteriores ao ato violento, por meio de

Depois, no corredor, lules checa a hora:

extensos diálogos digressivos e com a irrupção do acaso. O filme ocasionalmente prolonga o ato em si, conformando momentos de agressão e choque, uma trilha explorada com ma-

Jules: Que horas são?

estria por Sam Peckinpah, Artur Penn, Scorsese e John Woo.

Vincent: Sete e vinte e dois da manhã. Jules: Ainda não tá na hora, vamos esperar.

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carro e se desfazer do cadáver de Marvin. No cinema de crime clássico, as cenas de violência

mento que propicia a paródia do filme de crime. O terceiro momento em que a dupla fala da

eram partes secundárias de uma trama cujo centro era, por exemplo, a ascensão de um gan-

ação é a breve frase de Jules: “vamos incorporar o personagem” (“Let’s get into character”).

gster, a execução de um assalto, a luta política para capturar um criminoso, a detecção de

Afora essas breves menções à missão que ambos têm de executar, o tema central de sua

um crime. A cadeia lógica de eventos levava logicamente a “inevitáveis” momentos de vio-

conversa, desde o momento em que pegam as armas até entrarem no apartamento, é Mia

lência, justificados pelas ações dos personagens. Nessa lógica de causa e efeito, que alguns

Wallace e o que aconteceu com Antwan Rockamora por lhe fazer uma massagem nos pés.

filmes noir quebravam (A dama de Shangai [The lady from Shangai, 1947]), o personagem

Na cena em questão, esse tópico da conversa é digressão, uma informação não funcional.

construía seu destino para o bem ou para o m. Os filmes de crime dos anos 1940 e 1950

Contudo, o final do diálogo entre Vincent e Jules revela que a informação está relacionada

incluíam momentos de crueldade e violência, porém menos explícitos e de curta duração,

com a história a seguir: Vincent vai sair à noite com Mia. Uma vez no apartamento, Jules

sugeridos e não mostrados. Cenas sádicas e violentas eram peças secundárias de uma trama

retarda a execução de Brett e seu sequaz, mostra seu poder e senso de humor, que inclui

que priorizava os obstáculos que o protagonista tinha de ultrapassar e sua compreensão

recitar uma passagemdaBíblia antes de assassinar. A cena é retomada no terceiro episódio,

dos acontecimentos. Lembremos duas memoráveis cenas de violência do cinema de crime

nos instantes prévios ao assassinato de Brett, o primeiro jovem traficante.

clássico. Em O beijo da morte (Kiss of death, 1947, de Henry Hathaway), o deliquente

O tiro acidental de Vincent contra Marvin, o informante de Marsellus, no carro, gera

psicopata Tommy Udo (Richard Widmark) atira uma velha paralítica escada abaixo, numa

toda uma história baseada nas consequências surrealistas de dirigir um carro pela cidade,

lembrada cena. O filme gira em torno do ex-criminoso em Um preço para cada crime (The

de dia, com um cadáver no veículo e sangue esparramado. Baseando-se em eventos que o

enforcer, 1951, de Bretaigne Windust/Raoul Walsh), num bar, membro de uma organiza-

cinema clássico narraria em poucas cenas, Tarantino cria uma história que ocupa mais de

ção secreta de assassinos, anuncia a seu companheiro que vai matar o dono do estabeleci-

um terço do filme, incluindo-se o prólogo. Ele não desenvolve a história no sentido tradi-

mento só para provar sua capacidade, porém, o crime não é mostrado.

cional, algo que incluiria, entre outras possibilidades, os motivos e objetivos das ações, no caso, explicar por que Brett e companhia traíram Marsellus, revelar o conteúdo da pasta e o que Marsellus faria com ela, apontar possíveis antagonistas que procurariam a pasta e

4. Jules: What time is it? Vincent: Seven twenty-two in the A.M. Jules: It ain’t quite time yet, let’s hang back.

mostrar uma eventual presença ameaçadora da polícia. Produto da estratégia de inversão da estrutura clássica, Pulp fiction constrói as histórias com base em suas peculiares cenas de violência. As balas que não tocam Vincent e Jules por milagre provocam a redenção deste último. A tortura e o estupro de Marsellus trazem à reconciliação deste com Butch. O assalto fracassado na lanchonete do

5. O personagem de Victor Mature colaborando com a lei, casando-se pela segunda vê e feliz. A voz over feminina que inicia O beijo da morte é lembrada na voz over de Alabama, no início de Amor à queima-roupa (True romance, 1993, de Tony Scott).

Não há um motivo lógico para que os matadores esperem mais uns segundos; é um procedi-

epílogo leva Jules a provar sua redenção e possivelmente assusta a a dupla de assaltantes o suficiente para que se afastem do crime. A morte acidental de Marvin no carro provoca toda a situação de Bonnie: a dupla vai para a casa de Jimmy e é ajudada por Wolf a limpar o

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acrobáticos ou Donald o’connor escalando paredes em cantando na chuya (Singin’ in the

Tarantino cria, do instante que precede o tiroteio, uma situação que distancia e ironiza a

rain, 1952), vemos Chow Yun Fat e Tony Leung saltando e disparando ao mesmo tempo em

representação da violência. Em Pulp fiction, esse instante prévio possibilita a expressão das

câmera lenta ou em 24 fotogramas por segundo, em tiroteios que se estendem por vários

últimas palavras dos personagens e, sobretudo, das últimas palavras do diretor/autor: uma

minutos. Uma cena de violência é estruturada em três fases, nas quais o cineasta pode se

argumentação extensa de Jules, que finalmente descobre o valor morar de uma passagem

concentrar e prolongar os tempos: o choque violento em si (o tiroteio, a luta física), o mo-

bíblica que costumava recitar antes de matar. A estratégia de inversão que domina Pulp fic-

mento prévio ao choque e o momento posterior. Peckinpah privilegiou a manipulação do

tion atinge também os personagens. Jules e Vincent são dois assassinos de aluguel que, no

enfrentamento violento em si, alongando os tempos com a alternância de câmera lenta e

cinema dos anos 1940 e 1950, seriam personagens secundários de uma história provavel-

imagem em tempo “real”, a 24 quadros por segundo. Leone privilegiou a prolongação dos

mente protagonizada por heróis (detetives, policiais), representantes de uma moral coleti-

instantes prévios ao duelo. Iohn woo, embora seja mais lembrado pelas elaboradas e coreo-

va ou mesmo foras da lei com um forte senso de moral. É o que ocorre com os personagens

grafadas cenas de violência (que ampliam o estilo de Peckinpah), retoma o legado de Leone

interpretados por Humphrey Bogart em Relíquia macabra (The Maltese Falcon,1941, de

e também prolonga os instantes anteriores a um tiroteio, ao colocar os rivais apontando

John Huston) e A beira do abismo (The big sleep,1946), os detetives Sam Spade e Philiph

a arma um para o outro e ameaçando disparar, o famoso “duelo mexicano”, presente em o

Marlowe ou o jornalista que Bogart encarna em A trágica farsa (Theharder they fall,1956,

matador, que Tarantino utiliza em Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992).

de Mark Robson), e mesmo o gângster de O último refúgio (High Sierra,1941, de Raoul

Tarantino combina o duelo em triângulo de Leone com o apontar as armas antes de dis-

Walsh), romantização do herói veterano e ético fora de época. Também os ladrões inter-

parar de Woo, para criar uma cena de violência distanciada e irônica. Acrescenta ao triân-

pretados por Sterling Hayden em O segredo das joias (The asphalt jungle,1950, de John

gulo uma frenética gritaria dos personagens, que evoca as falas agressivas típicas do Martin

Huston) e O grande golpe (The killing, 1956, de Stanley Kubrick) são heróis morais, figuras

scorsese de caminhos perigosos (Mean streets, 1973) e os bons companheiros (Goodfellas,

que o público pode adotar como referência moral. Outro modelo possível é o do herói que se

1990). Como bem assinala Dennis Mellier (1996, p. 216), o triângulo exige mais atenção

arrepende de seus pecados, como Jeff Bailey (Robert Mitchum) de Fuga do passado; Walter

de cada membro e gera a expectativa de quem consegue escapar. O triângulo faz perder

Neff (Fred McMurray) em Pacto de sangue (Double indemnity,1944,de Billy ou o Sueco

importância quem vence o confronto, quem dispara mais rápido e melhor. Em cães de alu-

(Burt Lancaster) em Assassinos (The killers, 1946, de Robert Siodmak).

guel, todos os rivais morrem e o espectador não consegue saber quem acertou em quem.

Quando o protagonista é um delinquente moralmente irrecuperável, como Cody Jarret

Em Amor à queima-roupa (True romance, 1993), primeiro roteiro de Tarantino filmado,

(James Cagney) em Fúria sanguinária (White heat, 1949, de Raoul Walsh), um personagem

os três grupos que se enfrentam se destroem a tiros. Em pulp fiction, a cena final do res-

como o agente de seguros interpretado por Edmond O’Brien funciona como referência da

taurante mostra Jules apontando para Pumpkin, Honey Bunny apontando para Jules e

morai coletiva, apesar das ambiguidades de seu papel, já que trai Cody Jarret. Em Pulp

Vincent apontando para Honey Bunny. A situação gera uma estrutura em que certamente

fiction, os protagonistas Jules e Vincent são assassinos de aluguel,sem hábitos nem prin-

haverá mais perdedores que vencedores. como em outros conflitos centrais do filme, a saída

cípios que possam ser definidos como ideais de uma coletividade, com um sentido moral

é negociada, com uma mensagem ambivalente, que joga entre a ironia e a predicação pasto-

limitado, apoiado nos conceitos de lealdade e valorização da camaradagem. Ambos matam

ral. Em Pulp fiction, assim como em Cães de aluguel e no roteiro de Amor à queima-roupa,

por encomenda, sem peso na consciência, e ser cruéis. Vincent droga-se com heroína.

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O outro protagonista, Butch, trai Marsellus e mata seu rival na luta; ademais, mata Vincent e um dos estupradores. Nem Butch, nem Jules, nem Vincent têm as qualidades de um herói acorde com uma moral de inspiração cristã. Esse é o tipo de personagem que Tom Hanks, Kevin costner, Tom Cruise e Mel Gibson costumam interpretar: o homem heterossexual, de profissão respeitável e legal, casado ou em busca de companheira, que não se droga (nem mesmo fuma) nem bebe, e que vela pelos valores coletivos da sociedade. Não quero dizer com isso que Tarantino se filia ao ceticismo próprio dos anos 1970 ou de Goodfellas, mas que, primeiro, apresenta personagens marginais, individualistas e que desempenham atividades ilegais, contrárias à moral coletiva, para, depois, tentar recuperar algum sentido de moral nesse panorama. Mas, como o hedonismo, o individualismo e a falta de uma moral coletiva são traços dos anos 1980 e 1990, a chamada “ausência de valores”, não podemos descartar um alto grau de identificação da audiência com Jules e Vincent.

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Pulp fiction é um filme de crime sem polícia ou bando rival de Marsellus. A única história que tem protagonistas e antagonistas no sentido clássico é “O relógio de ouro”, em que Butch tem de escapar de Marsellus e seus matadores. No prólogo de”A situação de Bonnie” (“The Bonnie situation”), Jules e Vincent eliminam com facilidade aqueles que são os antagonistas (Brett e dois colegas). Esse deveria ser o final da história num desenvolvimento clássico. A complicação surge por azar, quando Vincent dispara sem querer a arma e mata Marvin, o jovem traficante que denunciou a traição de Brett. A partir daí, o obstáculo para que a dupla atinja seu objetivo (lembremos: entregar a mala a Marsellus) é ter de transitar pelas ruas de Los Angeles num carro com um cadáver e com sangue abundante esparramado, algo potencialmente perigoso. A saída que Jures encontra é ir à casa de um amigo, Jimmie, interpretado pelo próprio Tarantino. A paródia humorística surge, primeiro, do

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absurdo da situação de dois matadores passearem à luz do dia com um cadáver e sangue esparramado no carro. Eles não aceleram o automóvel, continuam na velocidade lenta de

A paródia continua, depois, com a ideia de que dois assassinos se atemorizem com a

flâneurs, a permitida nas ruas de Los Angeles, a não ser que peguem uma típica highway

possibilidade de que a mulher de Jimmie, uma simples enfermeira, chegue em casa, veja a

(estrada). Mas os personagens de Pulp fiction parecem desconhecer as estradas de Los An-

dupla e o marido lidando com o cadáver e a peça do divórcio. Ninguém menciona a even-

geles e a pressa a de chegaro ao objetivo.

tualidade de que ela os denuncie à polícia. Uma vez na casa, o esforço de Jules e Vincent, capitaneados pelo especialista The wolf (Harvey Keitel), consiste em limpar o carro, ocultar o cadáver, para dar segurança à dupla, e também evitar o divórcio de Jimmie. No roteiro, há um diálogo, cortado na montagem, em que Marsellus e fules, conversando ao telefone, insinuam a possibilidade de ter de matar a mulher se ela chegar e vir o cadáver. A eliminação desse diálogo na montagem aumentou o efeito cômico da cena. A estratégia de inversão de prioridades de Pulp fiction esvazia a estrutura clássica de histórias com importantes objetivos e temas, com uma cadeia lógica e causal de eventos e viradas na história. Jules e Vincent têm uma missão modesta, embora violenta, que é apresentada como rotineira e trivial. Brett e seus amigos não são um bando de criminosos durões que possam ameaçar a dupla. São, pelo contrário, um grupo de jovens inexperientes, com aspecto de estudantes,

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que morrem de medo ao ver os dois matadores.

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Vejamos o seguinte depoimento de Tarantino a respeito de Jules e Vincent (apud Smith 1994): Pulp fiction não corta para o herói porque não tem heróis no sentido convencional.

Das cenas do cotidiano ao absurdo

Apresenta uma cadeia causal de eventos muito tênue, preferindo um cotidiano, preferenteA terceira história é mais ou menos como os três minutos de abertura de Action Jackson, comando, ou qualquer outro filme de Joel Silver - dois matadores de aluguel aparecem e eliminam alguém; em seguida, eles cortam para”Warner Bros. Presents”e você tem a sequência de créditos; depois, eles cortam para o herói a 300 milhas de distância. Aqui, os dois matadores aparecem, PAM-PAM-PAM, mas nós não cortamos, ficamos com eles o resto da manhã e vemos o que acontecerá com eles depois disso.

mente diurno, em que os personagens circulam lentamente pela cidade, guiados pelo acaso dos eventos. Jules e Vincent não têm de transpor a escalada de obstáculos tradicionais da

No primeiro capítulo, eu disse que Tarantino baseava seu cinema em três formas de

dramaturgia clássica nem têm um antagonista claro e definido. Quando o cineasta fala de

representação: as cenas do cotidiano, o jogo e os momentos exploitation, atrações no sen-

ficar com eles toda a manhã, refere-se à falta de eventos e obstáculos típicos de certo cine-

tido dado por Tom Gunning. os três modos oscilam e coexistem num universo que remete

ma moderno e à preferência por um cotidiano que deseja captar os tempos dos personagens

a outro universo já existente, aquele criado por centenas de filmes anteriores. Pulp fiction

em suas conversas e atividades prosaicas.

é o longa-metragem de Tarantino que mais explora uma constante oscilação entre as três formas, dadas as rápidas mudanças de tom e de ritmo. Afirmei também que a fusão de gênero e cenas do cotidiano era modificada com a irrupção do acaso até criar uma escalada hiper-real que terminava no absurdo e no grotesco. A overdose de Mia é um exemplo claro de ideias em princípio realistas (a confusão de cocaína com heroína, a injeção de adrenalina no coração), tratadas em chave hiper-real com humor negro. Vincent furando o peito violentamente com a agulha e o pulo de Mia como se fosse uma morta-viva conformam um momento exploitation de tom ambivalente, que provoca reações contraditórias no espectador. A imagem de Mia pálida após a injeção combina o hiper-realismo do ressuscitar da overdose com a evocação dos filmes de zumbis dos anos 1980, em especial os italianos dirigidos por Lucio Fulci. Quando o filme corta para Vincent e Mia no carro, voltando para a casa dela, o filme já retornou ao tom e ao tempo característicos das cenas do cotidiano. Essa passagem ambígua, das cenas do cotidiano ao hiper- realismo, indica a necessidade de analisarmos com mais vagar outros momentos em que Pulp fiction introduz aspectos aparentemente realistas num filme de crime. Vejamos o encontro casual, disfarçado de próprio da vida cotidiana, entre Butch e Marsellus, cujo absurdo passa despercebido num primeiro momento, pela lógica interna do filme. Basta pensar na fraca verossimilhança do encontro para perceber por que a cena gera as gargalhadas do público. Se pensarmos que o realismo implica reproduzir na tela algo que pode acontecer na vida real, por que um poderoso gân-

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gster iria comprar pessoalmente, sem companhia, donuts e café? E mais, como imaginar que ele iria levar comida a pé, em Los Angeles, cidade do automóvel por excelência? Aqui,

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Na longa conversa de Vincent e Jules no corredor do apartamento de Brett e seus colegas, um detalhe aponta para o hiper-realismo cômico da cena: quando Jules pergunta a hora para Vincent, este responde7h22 da manhã. Jules diz que ainda não é hora de entrar e ambos se afastam um pouco da porta para continuar discutindo o significado de uma massagem nos pés. O realismo da resposta exata contrasta com o ridículo de que os assassinos tenham um horário para entrar, posponham a missão por pouco mais de um minuto, e fiquem no corredor numa missão que as convenções do gênero levam o espectador a pensar que tenha algo de perigosa. Outro instante similar de passagem do prosaico ao hiper-real absurdo ocorre na visita de Butch ao seu apartamento. O boxeador entra cauteloso, recupera seu relógio e, quando lhe parece que ali não há ninguém, decide fazer torradas. Um instante próprio da vida doméstica, que se torna absurdo se considerarmos que Butch arrisca a vida ao entrar em sua ex-casa. O exagero do lado prosaico da vida e sua verossimilhança hiper-realista aumentam quando escutamos o ruído da descarga e Vincent sai do banheiro com uma revista em quadrinhos na mão. Em todos os casos citados, as cenas são prosaicas e não realistas. Tarantino trabalha o prosaico em chave hiper-real, cria um hiper-realismo do cotidiano. Esse hiper- ealismo do cotidiano é utilizado para criar o efeito cômico de sua paródia dos filmes de crime.

8. Os já citados no capítulo l, como Zombie, a volta dos mortos (zombie 2, 1980) e Pavor na cidade dos zumbis (Paura nella città dei morti viventi, l98l).

o banal e o cotidiano transformam-se em hiperirreal.

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Uma elaborada estrutura narrativa

que abandona o crime. A desmontagem da linearidade da história também provoca efeitos paródicos cômicos, como ver Vincent – que morreu na segunda história – protagonizar a terceira história, o epílogo e terminar vivo. A novidade do procedimento não é fundada em assistir a um protagonista que já ,morreu vivo em cenas do passado. Filmes como Cidadão

Às três anunciadas por letreiros agregam-se um prólogo e um epílogo, relacionados com

Kane (Citizen Kane, 1941, de Orson Welles) e O homem que matou o funcionário (The man

o terceiro episódio, chamada “A situação de Bonnie”. Pulp fiction, poderia ser não “três

Who shot Liberty Valance. 1962, de John Ford) empregam esse procedimento por meio da

histórias...sobre uma história”, como anuncia o roteiro, mas “quatro histórias de uma”, a

voz over e do flashback. A inovação de Pulp fiction é não retornar ao momento da morte do

quarta sendo o resultado da união da cena pré-creditos e do epílogo. O prólogo mostra um

personagem, como era habitual no padrão narrativo voz over/flashback, altamente desen-

jovem casal, Pumpkin e Honey Bunny, conversando numa lanchonete, até que anunciam

volvido pelo filme noir. Isso permite que a última imagem seja a de um morto- vivo que

um assalto. Logo vêm os créditos e a sequência em que Vincent e Jules matam Brett e seu

caminha numa atitude cool, vestindo short e camiseta. A comicidade e o estranhamento

colega recuperam a pasta de Marsellus. Segue a história de Vincent e Mia. Depois, a história

que Vincent e seu andar particular e arrogante produzem evocam o cadáver (o roteirista

do relógio de ouro, que confronta Butch e Marsellus. A terceira é “A situação de Bonnie”,

interpretado por William Holden) numa piscina, que recordava sua vida em Crepúsculo

que começa retomando o ponto na história em que Jules recita a bíblia e termina quando

dos deuses (Sunset Bouletard,1950, de Billy Wilder). O procedimento de retornar a partes

os dois matadores deixam o carro no depósito e decidem tomar café da manhã. Com o corte

da história já narradas e mostrá-las de outra perspectiva não só gera humor como deixa

para Jules e Vincent na lanchonete, já estamos no epílogo, que reúne a dupla de matadores

claro ao espectador que a narrativa escolhida é apenas uma dentre as possíveis. Um dos

com o casal que anuncia o assalto no prólogo.

efeitos cômicos é perceber que Jules e Vincent tomam café enquanto a dupla de assaltantes

Anteriormente, afirmei que Pulp fiction desmonta a linearidade cronológica de tal for-

da cena pré-créditos decide assaltar a lanchonete; outro, ver novamente Jules recitando a

ma que não permite estabelecer um tempo presente como referência, o que inviabiliza falar

Bíblia antes de matar Brett e ver uma parte da história não mostrada, um delinquente es-

que estamos perante flashbacks. Cabe referir-se a histórias interconectadas narradas fora

condido no banheiro, morto de medo.

da ordem cronológica, porém sem uma indeterminação de tempo presente, passado e futuro, estratégia por vezes utilizada no cinema moderno. A narrativa permite delimitar qual evento ocorre antes ou depois na linha do tempo e, dessa forma, reorganizar as histórias em ordem linear, mas não enquanto se assiste ao filme. A estrutura complexa e lúdica e os cartões-título que anunciam as histórias fazem com que o espectador tenha consciência dos mecanismos da narração desde uma postura lúdica de participação, características já anunciadas por procedimentos como a autoconsciência do filme comunicada pelo título, pelo cartão-título que define o significado de pulp e pelos caracteres coloridos dos créditos, que remetem à pop art, acompanhados de uma música surf-rock estrepitosa. A estrutura narrativa não linear coloca em primeiro plano de importância a transformação de Jules,

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A estrutura narrativa das histórias favorece a livre circulação de personagens num universo ficcional definido como “três histórias... sobre uma história”. Vincent aparece em todas as histórias, prólogo e epílogo, e protagoniza a primeira. Marsellus é um personagem principal somente em “o relógio de ouro”, mas fala-se dele durante todo o filme. Jules aparece em todas as histórias e protagoniza o epílogo. Butch é o protagonista de uma história e aparece brevemente na primeira, quando Marsellus lhe ordena perder a luta. os episódios giram em torno de uma comunidade de personagens, habitantes de uma Los Angeles contemporânea, ligados ao crime de uma forma ou de outra. Crime que é apresentado como uma atividade cotidiana e prosaica, exemplificada pelo vendedor de drogas Lance, retratado como um jovem afável, de aspecto hippie, que nunca esteve na prisão. Como em Cães de

Butch Coolidge Pulp Fiction(1994)

aluguel, a desconstrução da linearidade de pulp fiction gera uma narrativa que o espectador

Pulp fiction questiona não a existência de uma realidade, mas a possibilidade de apreen-

não consegue reordenar enquanto assiste ao filme, e que o obriga a assistir e compreender a

dê-la, minando tanto o estatuto de verdade de imagem como veracidade do verbal. Quando

história por meio da assumida disposição arbitrária dos eventos. Essa narrativa não linear

Vincent comenta que dizem que Marsellus atirou Antwan Rockamora (Tony) pela janela,

não busca questionar a utilidade de contar histórias, à maneira de parte do cinema mo-

Mia pergunta: ..Isso é verdade? Vincent ”Não, é só o que ouvi dizer” E insiste: “ Mas acon-

derno de finais das décadas de 1960 e 1970, mas potencializar e revigorar a arte de contar

teceu mesmo?”,. Mia aponta para a impossibilidade de saber o que aconteceu: “A verdade é

histórias cinematogra- ficamente. Maestria narrativa do cinema americano clássico, que

que ninguém, além de Marsellus e Tony Ro.ky Horror, sabe por que Marsellus atirou Tony

Godard elogiava nos anos 1960 e que a Hollywood dos últimos 25 anos parece ter perdido

Rocky Horror por aquela janela”. O saber tem limites, e o passado é, por definição, inapre-

quase definitivamente em suas produções, independentemente de algumas exceções que

ensível em sua totalidade. Pumpkin (Tim Roth) também relativiza palavra quando conta o

apenas confirmam a regra.

caso de um homem que assaltou um banco com um cerular. Pumpkin diz que ameaçaram o caixa, dizendo que estavam com sua filha. Sua namorada, Honey Bunny, pergunta se machucaram a menina e ele responde: “Não sei, para começar, é provável que nunca tenha havido uma menininha”.Pumpkin não conhece os detalhes da história que escutou. Tem um saber parcial. E o saber total, que não é questionado, é mostrado como construção, da qual devemos desconfiar. Saber que se expressa apenas na mentira, como o que Freddy de cães de aluguer (também Tim Roth) tinha da história falsa da maconha.

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maior disparidade entre ambas as partes que narram o mesmo segmento da história acon-

11. “It’s that a fact?”/”No, itt not, itt iust what I heard.”/”But did it happen?”/”The truth is, nobody knows why Marsellus tossed Tony Rocky Horros out that window except Marsellus and Tony Rocky Horror”. 12. “I don’t know, there probably never was a little girl in the first place.”

tece na fala de Honey Bunny. No prólogo, ela tinha dito (aqui é necessário apresentar a As histórias que os personagens contam verbalmente, assim como as três histórias e o epílogo que compõem o filme, têm lacunas que criam um sentido ambíguo e fragmentário. Pulp fiction questiona o potencial de realidade de suas imagens, evocando a ambiguidade de narrativas não realistas. Algumas diferenças propositais em cenas que são narradas duas vezes provam o que acabo de afirmar. Quando o filme volta a execução de Brett, mostra um jovem delinquente que está escondido no banheiro. Depois de escutar os disparos de Jules e Vincent, que matam Brett, o jovem sai rápido, grita e dispara seu revólver várias vezes até esvaziá-lo. Jules e Vincent ficam incrédulos, olham para si mesmos e não apresentam ferimentos, viram-se para trás e veem vários buracos de bala na parede; apontam as armas e matam o jovem. O ponto aqui é que os buracos de bala na parede podem ser notados antes de o jovem disparar. O tamanho visível dos buracos e a importância deles na história (a conversão de Jules) levam a desconsiderar a explicação corriqueira de erro de continuidade. Na minha opinião, é uma pequena brincadeira, própria da natureza lúdica e não naturalista do filme, que assinala ao espectador o caráter ficcional, e portanto arbitrário, dos eventos e que evidencia a presença de um narrador que manipula imagens e som. Não estamos perante a lógica naturalista do cinema clássico, que concebia o cinema como uma janela ao mundo, lógica da transparência. O legado do cinema moderno dos anos 1960, Godard em especial, deixou uma marca importante no cinema de Tarantino, que é parte essencial de sua obra. No epílogo de Pulp fiction, a história também é retomada de forma a repetir um momento )á narrado, de outro ponto de vista. Na lanchonete, vemos Jules e Vincent discutir longamente, até que Pumpkin diz: “Garçom, café”. Aí, percebemos que estamos no mesmo lugar do prólogo, na mesma hora e que o casal de assaltantes ainda não anunciou o assalto. Quando a dupla grita “isto é um assalto”, a câmera mostra Honey Bunny (Amanda Plummer) de costas, numa posição de câmera diferente do prólogo, apontando a arbitrariedade da narrativa. Porém, a

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versão em inglês): “Any of you fuckin’pricks move and I’ll execute every motherfuckin’last one of you”; no epílogo, diz: “Any of you fuckin’ pricks move and I’ll execute every one of you motherfuckers!”. Essas diferenças são parte de uma estratégia que contradiz qualquer pretensão realista ou naturalista e indicam ao espectador que está assistindo a uma ficção que pode ser contada de diversas maneiras. Alguns exemplos citados (as balas, o que Honey Bunny diz) provavelmente passem despercebidos quando se assiste ao filme pela primeira vez, o que indica que Tarantino deseja deixar esse tipo de ponderação autorreflexiva em segundo plano, de jogo, para não minar o potencial das histórias em si. Essa postura, que incorpora a autorreflexividade como necessária, subordinando-a ao gosto de contar histórias, é própria de um cineasta pós-moderno por excelência. Tarantino compartilha o enfoque que ataca a ideia de que há um único mundo empírico, e que considera “a ideia de refletir a natureza completa imperdoável e definitivamente ingênua” (Wilber 1996,p.92). Partindo dessa visão, assinala-a para o espectador, e a utiliza a serviço da arte de contar histórias, sem converter em central o questionamento da utilidade de narrar. Procedimento que, na década de 1990, às vezes é um lugar-comum em um cinema que procura se auto intitular “arte”. Não era assim há três décadas. O público acostuma-se com os procedimentos formais e estilísticos, por isso, o artista deve modificar suas técnicas continuamente. A posição de Tarantino sobre a realidade e suas possíveis interpretações está presente no monólogo de Jules diante de Pumpkin, momento de enfrentamento em triângulo, que dá

13. “se algum boçal se mexer, acabo com a porcaria de todos vocês!” “Se algum boçal se mexer, acabo com todos vocês, seus merdas!”

Realidades e interpretações

lugar às últimas ideias do personagem e do autor. Jures repete a totalidade da passagem de Ezequiel 25:17 e agrega: “Faz anos que eu digo essa merda. E se você alguma vez escutou isso, significava tua morte. Nunca me perguntei o que isso significava de verdade. Achava que era só uma coisa cruel para dizer a um merda antes de enfiar uma bala na bunda dele... Mas,agora, tô pensando, poderia querer dizer que você é o homem mau. Eu sou o homem bom. E este Mr. 45 é o pastor que protege a minha bunda boa no vale da escuridão. Poderia

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ser também que você fosse o homem bom e eu o pastor e o mundo é que fosse mau e egoísta. Soa bem. Mas essa merda não é a verdade. A verdade é que você é fraco. E eu sou a tirania

A dupla performance e a paródia

dos homens maus. Mas estou tentando, fungo. Estou realmente tentando ser um pastor.” 14’ I’ve been saying that shit for years. And ifyou ever heard it, it meant your ass. I never really questioned what it meant. I thought it was jusi a cordblooded thing to say to a motherfucker before you popped a cap in his ass... Now, I,m thinking, it could mean you,re the evil man. And righteous man. And Mr. 45 here he’s the shepierd prot”.ting my righteous ass in the in the valley of darkness. Or it could be you,re the righteous man and I’m the shepherd and it’s the world that’s evil and selfish. I’d like that. But that shit ainl the truth. the truth is you,re weak. And I’m the tyranny of evil men. But I’m trying Ringo. I,m trying real hard to be shepherd.

As palavras de Jules no epílogo deixam espaço para que Tarantino expresse sua opinião como autor. Segundo essas palavras, que confirmam a construção do filme como um todo,

Prólogo do filme. Jules, de arma na mão, diante do jovem traficante Brett, recita antes

o fato de não acreditar na capacidade de apreender totalmente a realidade não deve levar a

de executá-lo: Existe uma passagem que eu tenho memorizada e que parece adequada a esta

um relativismo radical que impeça ter um ponto de vista específico. como diz Jules: “Pode-

situação, Ezequiel25:17: “O caminho do homem justo é rodeado por todos os lados pelas

ria ser também que você fosse o homem bom pastor e o mundo é que fosse mau e egoísta.

iniquidades dos egoístas e pela tirania dos maus. Bendito aquele que, em nome “da caridade

Soa bem [as diversas interpretações]. Mas essa merda não é a verdade. A verdade é que você

e boa vontade, pastoreia os fracos pelo vale da escuridão. Pois ele verdadeiramente cuida de

é fraco.” Palavras de Jules e do autor Tarantino: o relativismo extremo pode soar bem, mas

seu irmão e encontra crianças perdidas. E eu vou derrubar sobre você e aqueles que tentam

não devemos abdicar da possibilidade de compreender o mundo e adotar uma posição a

envenenar e destruir meus irmãos grande vingança e firria. E saberão que eu sou o Senhor,

respeito.

quando eu e a minha vingança cairmos sobre vocês”. Epílogo. Jules, com a arma apontada para a cabeça de Pumpkin, repete a passagem. Só que, dessa vez, Jules não atira e perdoa a última, pela primeira vez na vida. Jules decidiu mudar. A forma como Jules pronuncia a passagem bíblica duas vezes é capital para a análise de desempenho que farei a seguir. Desejo demonstrar que a performance de Jackson, embora brilhante e eficiente, tem uma abordagem que prejudica o filme em relação ao que está escrito no roteiro. Em contrapartida, argumentar por que acredito que o desempenho de Travolta representa perfeitamente o tom da sensibilidade cool que é paradigmática em Pulp fiction. A palavra cool é pronunciada várias vezes pelos personagens, procedimento em que o filme volta-se para si mesmo e deixa em evidência para o espectador, ao nomeá-la, sua atmosfera geral. Cool como sinônimo de uma atitude relaxada e distanciada em relação à vida. segundo Gilles Lipovetsky, diante da exasperação e da seriedade identificadas com a época moderna, a visão de mundo e a atitude cool caracterizam a época pós-moderna. Vejamos primeiro como são os personagens, independentemente dos desempenhos. Dos dois matadores, Vincent Vega é o mais cool. É afável, nada o faz perder o controle, fala baixo e tem um senso de humor leve e pós-moderno, que não busca a gargalhada, mas um sorriso

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permanente. Vincent adota continuamente uma pose de valentão, que revela que percebe a si mesmo de forma distanciada.

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16. A esse respeito, consultar Lipovetsky (1996, em particular os capítulos III, “Narciso o la estratégia del vacío”, e V, “La sociedad humorística”).

15. There’s a passage I got memorized, seems appropriate for this situation: Ezekiel 25:17:”The path of the righteous man is beset on all sides by the inequities of the selfish and the tpanny of evil men. Blessed is he who, in the name of charity and good will, shepherds the weak through the valley of darkness, for he is truly his brother’s keeper and the finder of lost children. And I will strike down upon thee with great vengeance and furious anger those who attempt to poison and destroy my brothers. And you will know my name is the lord when I lay my vengeance upon you”.

a voz nos momentos adequados, como se compreendesse o significado último do texto. Ja-

como personagem cool por excelência. No fundo, Vincent, extremamente consciente de

ckson não dá ao texto necessário o contraponto irônico que proporciona uma performance

sua imagem, assume os trajetos e a pose do papel que desempenha no mundo, o de ma-

distanciada e relaxada. O desempenho clássico e sério de Jackson contradiz o próprio sen-

tador. Travolta interpreta Vincent, percebendo que este é um personagem que atua, que

tido da transformação de Jules. Na cena final da lanchonete, Jules explica a Pumpkin que

reflete sobre seu comportamento o tempo todo. Vincent mostra ter uma visão distanciada

durante anos recitou a passagem para suas vítimas sem realmente questionar o que signi-

de sua profissão e de sua masculinidade. Em contrapartida, Jules é mais enérgico e sério,

ficava, e que dizia simplesmente porque lhe aprecia cool. Claro, a performance de Jackson

como mostra a cena da execução de Brett e seus colegas: Vincent quase não fala e Jules

é eficiente tecnicamente. Mas sua abordagem prejudica o filme, porque o personagem não

realiza maior parte do trabalho, alternando senso de humor e gritos para dominar a cena.

deveria entender ou dar importância ao texto bíblico na primeira vez que o recita diante

Em todo o filme, Jules irrita-se mais e é mais crispado que Vincent. Mas o fato de ser mais

de Brett. Aqui, um desempenho irônico quando recitasse a passagem seria mais coerente

ativo também daria ao personagem, em tese, a possibilidade de mostrar-se mais relaxado

com a concepção da cena: a demora em matar, as perguntas sobre a comida, as perguntas

em situações de violência. De fato, nessas situações, Jules tem frases mais estilizadas e

absurdas, do estilo “Ele parece uma puta?” ( ao referir-se a Marsellus Wallace).

humorísticas que Vincent. Antes de matar Brett, Jules diz coisas como: “Hambúrgueres. A pedra angular de qualquer café da manhã nutritivo”; “Você se importaria se eu pegasse um pouco da sua saborosa bebida para lavar isso?”. Da dupla, Jules é o mais cool na cena final e quem verbaliza várias vezes a atitude celebrada por Tarantino. A dupla de assaltantes, Jules diz:

Jules: vamos relaxar, Yolanda [...]. vamos ficar como três Fonzies. E como é Fonzie? Vamos, Yolanda, como é Fonzie? Yolanda: Relaxado? Jules: Certo. E é assim que vamos ficar. Vamos ficar relaxados.

No entanto, a performance de /Jackson, embora eficiente, não chega a expressar o perfil

17 .”Hamburgers. The cornerstone of any nutritious breakfast”;”You mind if I have some of your tasty beverage to wash this down with?”

A performance distanciada e relaxada de Travolta é essencial para a percepção de Vincent

18. Jules: So we cool, Yolandaaaaa (..) We’re gonna be like three Fonzier. And what’s Fonzie like: Come on, Yolanda, what’s Fonzie like?/Yolanda: Cool:/ Jules: Correct-amundo. And that’s what we’re gonna be, weee’re gonna be cool. be, we’re gonna be cool.

no filme. O problema é Jackson, que recita a passagem com seriedade e energia, elevando

19. “Does he look like a bitch?”

John Travolta interpreta Vincent, que, por sua vez, atua como um matador valentão.

cool e brincalhão do personagem, que está presente no roteiro. Isso afeta, entre outras coisas, a dupla mensagem paródica na transformação moral de Jules. No roteiro, a cena em que Jules recita pela primeira vez a passagem Ezequiel 25:17 é mais cômica e irônica que

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As abordagens diversas nas performances de Travolta e Jackson explicam por que a reflexividade e a atitude cool de Jules nem sempre são comunicadas. Talvez seja a vontade do ator Jackson e do diretor Tarantino de distinguir Jules de Vincent que explique o exagero na seriedade e crispação do primeiro personagem, que o impediu de incorporar uma postura cool, mais própria da sensibilidade pop e pós-moderna do filme. Dada a performance de Jackson, Jules adota muitas vezes o que podemos definir como uma atitude hora, oposta à atitude cool. A reflexividade e o distanciamento da dupla ficam explícitos quando Jules diz “Vamos incorporar o personagem”, antes de entrar para executar os jovens delinquentes. O último plano demonstra claramente por que o desempenho de Travolta é mais acertado para a sensibilidade cool característica de Pulp ftction. Depois que a dupla de ladrões Honey Bunny e Pumpkin sai do local, Vincent diz em voz baixa: “Acho que a gente deveria ir embora”. Os dois matadores, de armas na mão, caminham pela lanchonete, vestindo shorts e camisetas com inscrições infantis, acompanhados por uma música pop de surf. Param na porta e colocam suas pistolas no calção, ocultando-as com as camisetas, dão meia volta e saem. Fim do filme. Enquanto Jules caminha com o corpo rígido e o rosto sério e irritado, Vincent move o corpo de um lado para o outro, em pose quase cômica,fazendo uma careta de “durão” Jules é um cara duro, já Vincent interpreta um cara duro. O desempenho cool de Travolta permite fazer um comentário sobre o próprio cinema. Jean Paul Belmondo fazia caretas em Acossado (lembremos o final), quebrando explicitamente o naturalismo. A performance de Travolta é menos abertamente antinaturalista; provoca a percepção de que Vincent está sempre fazendo pose.

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e, em menor medida, por azar, que Fabienne esquece o relógio de ouro, que Vincent deixa a metralhadora na cozinha. Má sorte que relativiza a crença de que os personagens sofrem consequências de suas ações e que questiona a concepção luterana de um destino marcado de antemão. Uma conversa em Cães de aluguel, entre Mr. White e Joe Cabot, preanuncia a

Pulp fiction reúne histórias arquetípicas do filme de crime, cenas do cotidiano e situa-

importância que terá a falta de sorte dos personagens em Pulp fiction:

ções oriundas da cultur apop e do cinema exploitation (a overdose de heroína, a câmara de tortura). As histórias são interrompidas em seu percurso de gênero de crime pelo acaso, princípio estrutural que domina o filme. Em contrapartida, o cinema clássico e o cinema convencional contemporâneo sempre subordinam o acaso à lógica de causa e efeito das ações dos personagens. Tarantino aproveita que, nos anos 1980 e 1990, o espectador üu uma grande quantidade de filmes com a mesma estrutura narrativa (três atos, ordem cro-

Joe: O que aconteceu com Marcellus Spivey? Não era sempre ele que te dava cobertura? Mr. White: Ele está cumprindo 20 anos em Susanville. Joe: Por quê? Mr. White: Azar [risadas de Mr. White e Joe].

20. “I think we should be leaving.”

nológica: a fórmula de Syd Field) para 20. “I think we should be leaving.” jogar com suas expectativas daquilo que verá na tela. Quando o espectador acha que a história vai numa

Não há maiores explicações das causas de o personagem estar na prisão, apenas a pa-

direção, um acontecimento imprevisível (o acaso) a envia numa direção inesperada. Um

lavra “azar” e risadas. Em Pulp fiction, o acaso e a falta de sorte colocam os protagonistas

desenvolvimento da história não anunciado pelos acontecimentos prévios. O acaso como

numa situação grave e complicada, que logo conseguem superar. Diferentemente de Cães

princípio estrutural subverte o gênero de crime e suas convenções e propicia que estas sejam

de aluguel, aqui, os personagens centrais libertam-se do destino trágico e fatal, herdeiro

parodiadas. O acaso permite a fusão do filme de crime com a comédia, estratégia de com-

do filme noir.Uma injeção de adrenalina salva Mia da morte. Butch salva Marsellus da tor-

binação de gêneros na forma de paródia típica do pós- moderno. Acontecimentos absurdos

tura e da morte (não do estupro), é perdoado e sai de Los Angeles com o dinheiro. Vincent

cruzam os gêneros para incursionar por um tipo de humor negro paródico, aparentado com

e Jules se livram do cadáver e do carro manchado de sangue. Butch recupera o relógio de

Pedro Almodóvar, o David Lynch de Coração selvagem (Wild at heart, 1990),lohn Woo e

ouro. Até mesmo Vincent Vega, que morre assassinado por Butch na única história em que

Sergio Leone. O acaso e o absurdo de Pulp fiction lembram o sentido de desordem e caos de

é personagem secundário, é “salvo” simbolicamente pelo narrador, retorna vivo na terceira

Três homens em conflito. Pulp fiction substitui a causalidade centrada nos personagens do

história e fecha o filme no memorável plano final. A atitude distanciada e aberta ao diálogo

cinema clássico por uma causalidade do acaso ou coincidência. Numa paródia do paródia

dos personagens centrais é fundamental para sair da situação grave criada pelo acaso. A

do filme de crime, como em Pulp fiction, costuma-se adotar a forma de falta de sorte dos

negociação prevalece sobre o enfrentamento violento. Em vez de conflitos em que ambas

personagens. Falta de sorte acompanhada de um tanto de incompetência. É por azar e por

as partes não cedem e que são resolvidos pela violência (Cães de aluguel), em Pulp fiction,

certa incompetência que Mia Wallace confunde heroína com cocaína, que a arma de Vin-

a maioria dos conflitos é dominada pela palavra, encaminha-se gradualmente para a nego-

cent dispara sem querer e mata Marvin no carro, que Butch Marsellus na rua, que ambos

ciação e termina em acordos cordiais. Assistimos a acordos negociados para os personagens

terminam em mãos de uma dupla de torturadores estupradores; mas é por incompetência

centrais da história e à violência para os conflitos com os personagens

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21. Joe: But what happened to Marcellus Spivey? Didn’t he always move your ice? Mr. White: He’s doin’ twenty years in Susanville. Joe: What for? Mr. White: Bad luck.

O acaso

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Moral e consumo

secundários. A confrontação violenta não desaparece. Ela perdura como atração, no sentido de choque e agressão sensorial já mencionado, como peça da tradição de gênero e como lugar privilegiado para o excesso e o grotesco. Lembremos algumas situações que não se solucionam com a negociação, mas sim com um confronto em que uma parte se impõe à outra: na luta, Butch mata (sem querer) o boxeador oponente, mata também Vincent; Ju-

Pulp fiction busca resgatar um sentido de moral ante a decadência de uma mo-

les e Vincent matam Brett e seu colega; Butch mata um dos estupradores; Marsellus fere

ral coletiva de origem e concepção cristãs. O filme postula a validade e a necessida-

gravemente o outro e lhe promete torturas medievais: “Escuta, garoto, ainda não acabei

de de delimitar uma ética, centrada numa ideia de honestidade mais acorde com a

com você. Vou virar medieval com a sua bunda”. Tarantino reserva o acordo negociado para

realidade de uma sociedade individualista e hedonista, em que o consumo é a ativi-

o conflito central da trama e deixa a resolução violenta, como contraste, para os conflitos

dade principal, que coloniza todas as esferas da vida cotidiana. Os personagens de

secundários. Por exemplo, o episódio “O relógio de ouro” gira em torno da traição de Butch

Pulp fiction defendem conceitos como a lealdade e a amizade, que dependem de-

para com Marsellus; quando Butch o salva, ambos fazem um acordo verbal de paz. No en-

reciprocidade entre as partes. Trata-se de conceitos mais restritos à esfera indivi-

tanto, na mesma história, Butch mata Vincent, o boxeador Floyd e um dos estupradores,

dual, menos absolutos e coletivos do que aqueles próprios de uma moral coletiva

conflitos que giram em torno do conflito central. Em “Vincent Vega e a mulher de Mar-

cristã ou humanista leiga, como o dever cívico, a honestidade, a bondade. Na visão

sellus” (“Vincent Vega and Marsellus Wallace’s wife”), não há nenhuma morte, mas Vincent

dos personagens de Pulp fiction, é-se leal e bom amigo de alguém, independente-

tem de ameaçar o vendedor de drogas Lance com a denúncia deste a Marsellus, para que o

mente de a pessoa ter uma ocupação legal ou não. A lealdade e o cumprimento de

ajude a salvar Mia. Quando Mia é reanimada, Vincent, Lance e Judy, a mulher do traficante,

acordos dependem de relações humanas específicas e de seu contexto, e não estão

suspiram e festejam. Um acordo pacífico, sem rancores, próprio de pessoas maduras, sela o

submetidos aos princípios de uma moral coletiva. São valores limitados à esfera

adeus entre Vincent e Mia, cuja breve relação é o cerne da história.

individual, sustentados pela idéia de reciprocidade, que não contemplam o bene-

O terceiro episódio,”A situação de Bonnie”, retoma o prólogo em que Jules e Vincent as-

fício da sociedade como conjunto. Vincent, assassino profissional, sabe da neces-

sassinam Brett e seu colega. A história conta como a dupla de matadores fica numa situação

sidade de algum tipo de moral, que expressa na relação de respeito e lealdade para

complicada (o carro sujo de sangue e o cadáver) e consegue sair dela por meio de várias ne-

com Jules e Marsellus. Na primeira história, Vincent volta com Mia, mulher de

gociações: primeiro, com Jimmie, que o deixa ficar em sua casa; depois, com Marsellus, que

Marsellus, à noite para a casa dela. Mia convida-o para tomar um trago e vincent

envia até eles The Wolf e, em seguida, com este último, que lhes ensina a limpar e camuflar

vai ao banheiro. Ali Vincent se olha no espelho e coloca a lealdade como centro de

o carro. É graças a esse princípio, que reserva os enfrentamentos violentos para tramas e

sua moral. Vincent: Este é um teste moral de você mesmo: você consegue ou não

personagens não principais, que Butch pode matar Vincent em “o relógio de ouro”, na única

consegue manter a lealdade. Pois é muito importante quando as pessoas são leais

história em que o matador não é protagonista.

umas com as outras.

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O problema que os personagens de Pulp fiction se colocam é justamente como construir uma moral que guie suas ações, dado o descrédito geral da sociedade na moral coletiva. Jules e Vincent dão continuidade à tradição do filme de crime de apresentar dois especialistas 23’ Vincent: This is a moral test of yourself, whether or not you can maintain loyarty. Because whein people are loyal to each other, that,s very meaningful.

com uma ética centrada no profissionalismo. Ocorra o que ocorrer, ambos estão decididos a entregar a maleta de brilho misterioso (citação cinéfila de Á morte num beijo [Kiss me deadly,1955, de Robert Aldrich) a Marsellus Wallace. Tarantino recusa o ceticismo originário do new Hollywood cinema dos anos 1970 (Scorsese, Altman) e busca construir uma ética baseada numa moral relativista e particularizante, sem cair no discurso neoconservador que propõe o retorno a uns anos 1950 imaginários. Ao mesmo tempo, não renega totalmente a desmistificação do status quo do cinema dos anos 1960 e 1970 nem o projeto antiidealista de Martin Scorsese em Os bons companheiros.Pulp fiction não procura resgatar valore sem figuras tradicionais representativas da autoridade, como a polícia, o Estado, a família, e sim em seres marginais, na contramão da lei e da ordem: assassinos, vendedores de drogas, delinquentes, chefes do crime. Personagens que vivem de atividades ilegais e condenadas pela sociedade, mas que defendem a validade do cumprimento de acordos e a amizade e que, por isso, enfrentam dilemas de consciência.

Vincent Vega Pulp Fiction(1994)

Em Pulp fiction, a celebração de uma atitude relaxada (cool), tendente ao diálogo e ao pragmatismo, favorece acordos entre partes. Em vez dos confrontos violentos de Cães de aluguel, em Pulp fiction, os conflitos centrais dão lugar a acordos, atos de perdão e reconciliações. contudo, como já disse, a vigência da violência e do enfrentamento físico em tramas e personagens secundários permanece, e funciona como contraste que valoriza o acordo entre os protagonistas. Tarantino não se propõe a recuperar valores coletivos nem a apresentar um mundo idealizado. Seu projeto de resgate de uma moral básica, delimitada, baseada nas relações pessoais, está acompanhado da celebração do consumo e da cultura de massas. Porém, um consumo identificado com hábitos de baixo custo, principalmente comida e subculturas de massa, com destaque para o cinema. o encontro entre o assassino Vincent e o vendedor de drogas Lance é paradigmático para explicar a estreita relação entre moral e consumo na sociedade individualista, hedonista e cool de Pulp fiction. Lance e Vincent se identificam por compartilhar uma moral baseada na honestidade e no respeito pelos direitos do consumidor, afastada dos ideais cristãos ou humanistas. Lance faz comentários racistas e defende a execução sem julgamento daqueles que danificam os automóveis alheios. A única moral coletiva que transparece no diálogo é uma que respeita o outro como

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consumidor, não como cidadão. Vejamos a cena. Na casa, Lance mostra a Vincent diferentes tipos de heroína:

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24. Lance: This one’s a rittre more expensive. It’s five hundred. But when you shoot it, you’ll never know where the extra money went’ Nothing wrong with the first two. Itt real, real, real, good shit. But this one’s afucking madman. Vincent: Remember, I just got back from Amsterdam. Larce: Am.I a nigger? Are you in Inglewood? No. you,re in my home. White people who difference between good shit and bad shit, this i, ,n” frour” they come to. Vincent Vega: you don,t mind if I shoot up here?

Lance: Cara, que merda!

vai saber para onde foi o dinheiro extra. As dualprimeiras são boas. É mercadoria

Vincent: Nem me diga. Ele ficou guardado durante três anos. Fica fora cinco dias -

boa, boa, boa mesmo. Mas esta aqui é porreta.

cinco dias e algum merdinha sem pinto fode ele.

Vincent: Não esqueça que acabei de voltar de Amsterdã.

Lance: Esses caras tinham de ser mortos, semjurgamento, sem júri, direto para a execução...

Lance: Eu sou negro? Você está em Inglewood? Não. Você está na minha casa. Os

Vincent: Eu só queria ter pego eles fazendo isso , sabe? Cara, eu dava qualquer coisa

brancos que sabem diferenciar mercadária boa de mercadoria ruim, é para esta casa

pra pegar eles fazendo aquilo. Teria valido a pena ele fazer isso se eu pudesse pegá-los,

que eles vêm.

saca o que eu quero dizer? Lance: Filho da puta! Vincent: É coisa de covarde. Não se fode o carro dos outros.

Vincent Vega: Você não se importa de eu injetar aqui?

Lance: Isso não se faz.

Lance:. Me casa, su casa.

Vincent: É contra as regras.

Vincent: Mucho gracias. Lance: Você ainda tem o seu Malibu? Vincent: Cara, sabe o que um bosta fez com ele outro dia? Lance: O quê? Vincent: Riscou com chave.

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Lance: Me casa, su casa. Vincent: Mucho gracias. Lance: Still got your Malibu? Vincent: Oh, man, you know what some fucker did to it the other day? Lance: What? Vincent: Fuckin’ keyed it. Lance: Oh, man that,s fucked up.

Lance: Esta é um pouco mais cara. Custa 500 0 grama. Mas, depois de injetar, você

Tarantino contraria expectativas do público acostumado às regras do gênero: o traficante é um sujeito pacífico, mistura de estudante com visual hippie, que, se por um lado faz comentários racistas, por outro se ofende quando se insinua que possa estar mentindo ao anunciar sua mercadoria. Expressões politicamente incorretas de personagens não idealizados, mas tampouco demonizados, conüvem com um tipo de moral que o autor considera necessária para a vida em sociedade. O consumo em Pulp fiction é apresentado como uma atmosfera cultural geral e parte do cotidiano. Consumo e cultura de massas, que definem a personalidade dos indivíduos, ao obrigá-los a fazer opções. Porém, os personagens não se mostram obsessos pelo consumo e parecem lidar com ele com tranquilidade, mas, é importante salientar, numa realidade de abundância de bens materiais. o prazer de viver, de desfrutar do dia a dia e das pessoas, exemplificado nas longas conversas entre Vincent e Jules, Vincent e Mia, Butch e Fabienne, domina Pulp fiction, a falta de pressa dos personagens, marginais e lúmpens, para atingir seus objetivos, e a ausência de grandes ambições mostram uma visão de mundo afastada das premissas centrais da sociedade americana. A opção final de Jules, de largar o crime para pregar a palavra de Deus, indica uma saída da sociedade de consumo e do materialismo, rejeitada por Vincent, que afirma que essa opção o transformará num mendigo. Caminho de saída que esboça uma crítica ao consumo, que se

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confirmará no filme seguinte de Tarantino, Jackie Brown. Pulp fiction ironiza a lição de mo-

Encenação em profundidade em Pulp fiction

ral do melodrama, explicitando em termos religiosos a regeneração de Iules, que abandona o crime porque sentiu a presença de Deus quando as balas não o tocaram. Por meio da iro-

25. Lance: They should be fuckin’killed. No trial, no jury, straight to execution. vincent: I just wish I caught’em doin’it, ya know? oh man, I’d give anything to catch’em doin’it. It’s been worth him doin’it, if I coulda just caught’em, you know what I mean? Lance: What a fucker! Vincent: It’s chicken shit. You don’t fuck another man’s vehicle. Lance: You don’t do it.

nia, o filme faz uma autocrítica ambígua, visto que a história parece corroborar a interpretação de ]ules, çlue, na melhor tradição protestante americana, entende um evento como

Se o galpão de Cães de aluguel evocava o palco teatral, a imagem de Pulp fiction apresen-

divino, baseando- se em sua experiência indiüdual e subjetiva. o mesmo evento é definido

ta cores vivas e fortes, lembrando os quadrinhos e a arte pop dos anos 1960. Pulp fiction

por Vincent como freak occurrence, produto do acaso, princípio central da dramatur gia

foi filmado diretamente em formato anamórfico. Apresenta boa profundidade, porém, se

de Pulp fiction. Por que Vincent morre? Por sua característica falta de cuidado ao deixar a

a nitidez nos diversos níveis de profundidade de Cães de aluguel, em razão das limitações

metralhadora na cozinh aou por ignorar o aüso divino que Jules interpretou? Já Jules tem

técnicas de widescreen já discutidas. Dado o ecletismo de Tarantino, vou falar de tendên-

um momento de clarividência, é,,purificado por um anjo,( The Wolf) ao ser banhado no jar-

cias dominantes. Pulp fiction costuma apresentar profundidade de foco de, aproximada-

dim e decide largar sua profissão para “caminhar pela terra”. No entanto, Vincent também

mente, dois a três metros. Depois dessa área, há uma perda gradual. A profundidade de

é banhado por The Wolf, embora com maior relutância, e talvez, por não perceber a mensa-

campo permite dispor elementos em diversas escalas de profundade, mas sem o efeito rea-

gem divina, morre baleado por Butch.

lista proporcionado peal nitidez de Cães de aluguel. Em cenas com fundos distantes, como

Essas ambigüidades di filme em relação ao seu próprio discurso conformam a relutância

a conversa do casal de assaltantes na lanchonete, percebemos o trânsito e a movimentação

diante de uma moral coletiva que não propunha uma reflexão sobre seus próprios princí-

da rua pela janela, sem distinguir o recorte das figuras. Dito de forma simples, parece que

pios. É muito provável que boa parte do projeto moral de Tarantino seja justamente recu-

o fundo está em foco, mas um olhar atento revela que na está. Na saída noturna Vincent e

sar-se a proclamar uma moral coletiva. É clara a negação do diagnóstico moralista puritano

Mia, no Jackrabbit Slim’s, o primeiro percorre o vasto local: divisamos as pessoas, as mesas

da sociedade. Tarantino tenta resgatar um sentido moral mais limitado. Porém, a recusa

e até os pôsteres de filmes pendurados na parede sem conseguir ler os títulos ou perceber

à moral coletiva, para afirmar apenas o cumprimento de acordos e a honestidade entre

os detalhes fundo que se esfuma, combinado às cores fortes, é parte de um movimento

parceiros, é problemática, assim como sua ambigüidade perante a regeneração religiosa.

reflexivo: assistimos a imagens construídas com base em outras imagens. Mas o voltar-se

No projeto moral Pulp fiction, há mais questionamentos e dúvidas do que certezas, e há

sobre o cinema do passado é apenas uma das direções para onde aponta o filme. Se esse fos-

contradições internas amadurecida e fechada sobre o assunto.

se o único interesse de Tarantino, por que a notória profundidade de campo de Pulp fiction,

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difícil de conseguir em widescreen? Por que não recorrer ao típico fundo totalmente fora de foco, tão comum nas produções anamórficas da indústria, que provocaria um efeito menos realista? Tarantino oscila entre as imagens distanciadas e reflexivas e o realismo do cotidiano. Se a imagem de Pulp fiction é uma das mais pop, metaficcionais e “artificiais” de sua obra, a dramaturgia repousa numa maciça irrupção do lado prosaico da vida no mundo de sonhos fabricado por Hollywood. Quando me referi aos problemas do formato anamórfico

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26. Refiro-me à posição neoconservadora que condena a cultura e a libertação dos costumes e o hedonismo e, portanto, a violência no cinema, as subculturas de massa, a libertação sexual, as drogas.

teria sido com primeiros planos de cada personagem, com algum establishing shot que

diversas distâncias da lente eram recorrer a cenas com muita luz, de preferência exteriores

mostrasse Jules e Pumpkin juntos. No plano escolhido por Tarantino, a capacidade de en-

ensolarados, e utilizar lentes de distância focal curta. Pulp fiction é um filme de crime ba-

cenar em profundidade depende fundamentalmente da considerável distância que a câme-

sicamente diurno, com cenários iluminados pelaluz abundante de Los Angeles e interiores

ra guarda em relação aos atores mais próximos, Jules e Pumpkin. Se ambos, que formam

com leves distorções na imagem, que revelam o uso de grandes-angulares. Na conversa do

o primeiro ponto de interesse, tivessem sido filmados de perto, por exemplo, num plano

casal de assaltantes na lanchonete, tanto os planos de conjunto na mesa quanto os clo-

médio dos rostos, Vincent e Honey Bunny teriam ficado fora de quadro.

ses dos personagens apresentam distorção e amplitude de espaço lateral típicas de lentes

O clássico diretor convencional os teria possivelmente aproximado de Jules e Pumpkin,

grande-angulares. Anteriormente, apontei que o estilo de um autor pós-moderno como

o que mudaria grande parte da interação entre os personagens, ou, opção ainda mais pa-

Tarantino não tinha a unidade e a coerência de um autor clássico. Várias cenas demonstram

dronizada, teria feito planos separados de cada personagem. Portanto , a própria decisão

o ecletismo de estilo do diretor: a injeção de adrenalina em Mia na casa de Lance é filmada

de encenar em profundidade implica distanciar a câmera dos atores mais próximos e não

primeiro com câmera na mão, profundidade de campo e poucos cortes, depois com closes e

colocá-los perto da lente, pois dessa forma se limita o espaço lateral da tela e os persona-

montagem rápida, para terminar num geral em contra-

gens mais distantes da câmera ficam fora de quadro. Estabelecer uma distância considerá-

plongée com profundidade; o assassinato dos jovens traficantes por Jules e Vincent é decu-

vel entre a câmera e os atores mais próximos permite ampliar a disponibilidade de espaço

pado principalmente com primeiros planos, planos médios e montagem rápida; a conversa

lateral do quadro.

27. Plano geral ou de conjunto que situa os personagens na locação.

com a profundidade, assinalei que duas formas de obter imagens com elementos nítidos a

de Jules e Vincent no corredor, que precede a entrada no apartamento, com extensos e lentos travellings (plano médio a plano geral) e montagem lenta. Um plano singular do epílogo marca um momento significativo da encenação em profundidade em Pulp fiction, o geral da lanchonete: Jules aponta uma pistola para Pumpkin; Honey Bunny, namorada de Pumpkin, de pé numa mesa, aponta outra para Jules; Vincent aponta a sua para Honey. Os personagens ocupam todo o espaço do formato widescreen,de uma ponta à outra da tela. Na versão convencional para vídeo, o plano teve de ser dividido em dois para poder ser adaptado ao retângulo do aparelho de televisão. O primeiro elemento em foco é a mesa. Depois, vemos Jules e Pumpkin na proporção de um plano americano. No fundo, Vincent e Honey Bunny de corpo inteiro. Com o desenrolar da açáo, a atenção do espectador passa de Jules e Pumpkin para Honey Bunny, ao fundo à direita, depois para Vincent, ao fundo à esquerda. E vice-versa, o olho volta afazer lodo o percurso pela imagem. Tarantino explora os diversos pontos de interesse a fim de construir uma montagem interna ao plano. Uma maneira convencional de decupar esse enfrentamento

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4 MATUBIDADE E TEMPO EM JACKIE BROWN

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O tempo do cotidiano

Brown soma a vontade de representar o tempo da vida cotidiana e contemporânea de Los Angeles. Tempo dos personagens em atividades prosaicas: conversar demoradamente ao telefone, caminhar num shopping, assistir à televisão e fumar haxixe, andar de carro ouvindo música. O filme prolonga a duração das cenas para alguém do convencional, em seu

Jackie Brown (1997) mostra mudanças importantes no cinema de Tarantino

afã de respeitar os tempos de personagens veteranos e de captar o ritmo plácido, mas mo-

em relação a Cães de aluguel (Reservoir dogs, 1992) e Pulp fiction, tempo de vio-

nótono, do cotidiano californiano. Tempo que se dilata num presente trivial, sem charme,

lência (Pulp fiction, 1994). Em seu terceiro longa-metragem, ele deixa de lado as-

que contrasta com o passado dos anos 1970, permanentemente evocado pela música e pe-

pectos centrais desses dois filmes anteriores, como os momentos de agressão e

los diálogos dos personagens. Evocação do passado que não é nostálgica; os ecos dos anos

choque, as situações arquetípicas do gênero, a paródia humorística, e opta por

1970 que permeiam o presente de finais da década de 1990 levam personagens e público a

um estilo mais calmo e uniforme, que privilegia uma visão realista e desencanta-

tomar consciência do tempo transcorrido. Um dos desafios centrais dos personagens é sa-

da da vida cotidiana na Califórnia dos anos 1990. Cães de aluguel e Pulp fiction

ber pensar o presente da perspectiva do ocorrido no passado, saber madurecer. Uma visão

jogavam com a alternância entre cenas que se prol0ngavam, fazendo sentir a pas-

similar da vida une a aeromoça Jackie Brown (Pam Grier) e o agente de finanças Max Cher-

sagem do tempo, e cenas de montagem rápida, conformando um ritmo irregular.

ry (Robert Foster), que no entanto, adotam diferentes atitudes ante a passagem do tempo:

Em Jackie Brown, Quentin Tarantino abandona as rápidas mudanças, para fazer

Jackie se rebela com coragem, inteligência e a vontade de avançar; Max a aceita, com um

sentir o transcurso do tempo em todo o filme, numa abordagem que busca uma

tipo de inteligência e a resignação. Em contrapartida, os criminosos Ordell Robbie (Samuel

maior homogeneidade de estilo. Tempo do cotidiano dos personagens e tempo da

Jackson) e Louis Gara (Robert De Niro) não amadureceram. Seu colega Louis ja não é o que

narração, que se confundem num filme de ritmo regular e pausado. Cotidiano do

era antes: a passagem dos anos e uma vida de má qualidade massacraram suas capacidades.

filme que se constrói com tempos prolongados e ações banais dos personagens numa Los Angeles diurna, ensolarada e trivial. Grandes ruas sem pessoas, lentos deslocamentos em automóveis, corredores e praças de alimentação de shopping, subúrbios tranquilos de casas com jardins, vastos estacionamentos, casas comuns, bares sem agitação noturna, ruas desertas e silenciosas à noite: poucas vezes o cinema americano mostrou Los Angeles de forma tão pouco atraente. Uma cidade americana representada não por meio das imagens que o cinema fabricou durante um século, mas pelas imagens prosaicas da própria cidade. Impulso desmistificador de Tarantino, que, para captar a essência da cidade no tempo presente, buscou áreas urbanas como Carson, Compton, Hawthorne ou o shopping Del Amo, lugares que a indústria cinematográfica não costuma filmar, lugares desprovidos de décadas de midiatização das imagens Hollywood. Às imagens sem glamour, Jack

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Jackie e Max compreendem e aceitam a passagem do tempo, criando as bases para a relação de afeto, baseada numa progressiva confiança mútua e na honestidade de um para

A crítica ao sentimentalismo americano

com o outro. Contudo, as diferentes atitudes diante da vida (Jackie, rebelião; Max, resignação) e a repressão afetiva e sexual de Max os separam na cena final. Vamos lembrar a cena. Max puxa a descarga e sai do banheiro de seu escritório. Jackie o espera, sentada. Ela agra-

Na relação entre Jackie Brown e Ma-x Cherry, o filme reflete de forma crítica sobre a

dece a ajuda que lhe permitiu pegar os 500 mil dólares de Ordell, diz que vai viajar para a

tradição sentimentalista americana e sua impossibilidade de associar romantismo a sexo.

Espanha e propõe a Max acompanhá-la. Max, acostumado com uma vida rotineira, recusa.

Em Love and death in the American novel, Leslie Fiedler (1997) apontou a dificuldade que

Jackie lhe pergunta se tem medo dela. Max junta os dedos e diz “um pouco”. Jackie chega

a ficção americana tem de representar o amor e o sexo entre homens e mulheres e a conse-

junto dele. Os dois se beijam pela primeira vez. Quando se beijam uma segunda vez, o tele-

quente obsessão com a morte e a violência. A essa dificuldade, Fiedler soma um homosse-

fone toca, Max atende. Alguém o consulta sobre a fiança de um menor; o trabalho continua.

xualismo latente, no sentido de que a amizade e a camaradagem masculinas são preferidas

Max olha Jackie sair do escritório. Max pede para o cliente ligar em dez minutos e desliga,

às obrigações adultas do amor heterossexual. Em 1948, Fiedler argumentou, num artigo

mas é tarde demais, Jackie já parte no carro que antes era de Ordell. Close do rosto de Max,

titulado “Come back to the raft ag’in, Huck Honeyl”, que o padrão básico do romance ame-

que mostra arrependimento por não ter ido. Max mexe os lábios com saudade do beijos de

ricano incluía uma relação homoerótica entre um homem branco e um homem de cor (afro-

Jackie e caminha lentamente para os fundos do escritório. Fica de costas, fora de foco, pen-

-americano ou indígena) e que a camaradagem masculina liberava os protagonistas das

sativo. Entra a música soul dos créditos, “110 Street”, de Bobby Whomack. No carro, Jackie

obrigações adultas da paixão heterossexual, do casamento e das obrigações domésticas.

vai embora, triste com a separação. Pouco a pouco, alegra-se, até cantarolar a música tema do filme, cuja letra conta a história de um afro-americano pobre, do gueto, de vida dura.

Jackie Brown apresenta uma relação ambígua com essa tradição puritana de personagens assépticos. Embora mostre de forma positiva uma relação romântica sem sexo (Jackie e Max), também sublinha suas limitações. Max simpatiza com Jackie e se apaixona por ela desde o primeiro momento, ajuda-a a livrar-se da polícia e a ficar com o meio milhão de dólares de Ordell. Max não quer passar de uma amizade entre duas pessoas maduras para uma relação amorosa sexual baseada na confiança e no respeito. É essa dificuldade da ficção americana em representar um amor maduro e sexual entre homem e mulher que Jackie Brown exibe com lucidez e autoconsciência. A crítica a essa constante repressiva se apóia tanto no arrependimento de Max quanto na progressiva felicidade que Jackie recupera nos segundos finais do filme. Foi Jackie, mulher afro-americana, que tomou a iniciativa e propôs a Max acompanhá-la. E foi Max, homem branco anglo-saxào, que não conseguiu superar sua repressão e resignação. A relação sem sexo entre Jackie e Max Cherry pode ser lida

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como uma alegoria das limitações da sexualidade e do amor na sociedade americana. Os relacionamentos sexuais homem-mulher são apresentados como acordos de negócios, tro-

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cas de favores num jogo de poder. Ordell, traficante de armas, sustenta faça sexo com uma

Ele podia escolher qualquer um dos caminhos.

de suas mulheres, Melanie, uma garota de praia que vive dos homens. O ato sexual entre

Duane: E a Kelly McGillis?

Louis e Melanie é mostrado como uma descarga física, algo rápido e impessoal. A relação

Syd: KellyMcGillis é a heterossexualidade. Ela fica dizendo: não, não, não, não, não,

sexual não incrementa a cumplicidade de Louis e Melanie; pelo contrário, a partir desse

não, vai pelo caminho normal, respeita as regras, vai pelo caminho normal. Eles

momento começa a antipatia entre ambos, a começar por Louis, que não tolera a vontade

ficam dizendo, não, vai para o lado gay, seja do jeito gay, defenda os gays, certo? E

de Melanie de trair Ordell. Posteriormente, num castigo talvez inconsciente ao ato sexual

isso que acontece durante todo o filme. Ele vai para a casa dela, certo? Parece que eles

passado, Louis mata Melanie no estacionamento do shopping de forma inesperada. O ci-

vão fazer sexo, aquela coisa de ficarem sentados juntos recostados, ele toma um

nema de Tarantino expõe de maneira irônica a tese de Leslie Fiedler da homossexualidade

chuveiro, essas coisas. Eles não fazem sexo. Ele sobe na moto e vai embora. Ela fica

latente , em Cães de aluguel e Pulp fiction. Curiosamente, o próprio Quentin Tarantino

ali: “Droga, droga, o que está acontecendo aqui?”. Na cena seguinte, a gente a vê

explicitou a tese do homossexualismo subjacente numa breve aparição como ator em Vem

dentro do elevador, vestida como um rapaz. Está de boné, de óculos de aviador,

dormir comigo (Sleep with me, 1994, de Rory Kelly). A cena: uma festa em Los Angeles,

usando a mesma jaqueta que Iceman usa. É como se ela pensasse: certo, é assim que

com gente entre 25 e 35 anos; Tarantino interpreta Syd, um dos convidados. Mais do que

vou agarrar aquele sujeito que está indo para o lado dos gays, tenho de tirá-lo desse

ser um personagem, Tarantino representa ele mesmo antes do sucesso e da fama. Ele ex-

caminho; para isso, vou usar de subterfúgios, vou me vestir de homem. Certo? É

plica na festa como Top gun, ases indomáveis (Top gun,1986, de Tony Scott), filme que

assim que ela aborda o tema.

acontece numa academia de pilotos da força aérea americana, é na verdade a história de um

Duane: oK, mas deixa eu te perguntar uma coisa -vou fazer uma pequena digressão

homem lutando contra a própria

de dois segundos. Encontrei aquela garota,Amy, aqui, é como se estivesse flutuando

homossexualidade.

por aqui. EIa acabou de se separar, certo?

Syd: Porque a ideia geral, cara, é a subversão. A gente quer subversão de forma

Syd: Tá certo, mas o verdadeiro final do filme é quando eles atacam os migs no fim,

generalizada. Sabe qual é o roteiro mais porreta já escrito na história de Hollywood?

certo? Porque ele tinha passado para o lado gay.Eles são esse grupo de ataque gay,

É Top gun.

certo? E estão derrotando os russos, os gays estão derrotando os russos. E acabou, eles

Duane: Sem essa.

aterrissam e Iceman tenta endireitar as coisas. E qual a última cena deles juntos?

Syd: Top gun é o máximo. Top gun é o quê? Você acha que é uma história sobre um

Todos se abraçam e se beijam felizes; Ice se aproxima de Maverick e diz: “cara, você

punhado de pilotos de guerra.

pode dirigir meu rabo sempre que quiser!”. E o que Maverick diz? “você pode dirigir

Duane: É sobre um punhado de caras sacudindo o pau por aí.

o meul”. Luta de espadas,luta de espadas! Caralho”.

Syd: É a história da luta de um homem com sua própria homossexualidade. É isso! Top gun é sobre isso. Tem o Maverick, certo? Ele está na fronteira, meu. Ele está bem em cima da linha, certo? E tem o Iceman e a turma dele. Eles são gays, representam o homem gayr, certo? E eles ficam dizendo, vem paraolado gay,vemparaolado gay.

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O cinema de Tarantino é ambivalente e ambíguo em relação à tradicional dificuldade da

não chegam sequer a se beijar, por causa da overdose dela. No entanto, a cumplicidade e a

ficção americana para representar o amor sexual entre homens e mulheres. Cães de aluguel

confiança entre ambos desembocam num acordo amigável, sem rancores. Como Mia não é

e Pulp fiction se inserem na constante da cultura americana revelada por Fiedler e, ao mes-

nem femme fatale nem mulher de família, não representa uma ameaça à liberdade de Vin-

mo tempo, a ironizam pelo excesso, pelo humor negro e pela explicitação. O primeiro filme

cent, que termina a saída noturna lançando um beijo no ar. Nesse retrato de uma história

é construído em torno de relações afetivas entre homens, as mais notórias e passíveis de

de amor romântica que não se concretiza, sem sexo, o filme acompanha a dificuldade da

serem interpretadas como homoeróticas “inocentes” sendo aquelas entre Mr. White (Lar-

ficção americana a que Fiedler se refere. Mas, no retrato positivo de Mia, mulher sexual

ry) e Mr. Orange (Freddy), e entre Eddie e Mr. Blonde (Vic Vega). Aqui, o sexo é lembrado

independente e divertida, e no seu relacionamento maduro, sem paranóias, com Vincent,

em piadas masculinas grosseiras, muitas delas de conotação homossexual explícita, como

o filme já mostra procurar sair da clássica limitação tão presente no cinema americano.

as contadas por Vic e Eddie, e em piadas em que a mulher sexuada é descrita explicitamen-

. Marsellus, o chefe gângster afro-americano, nunca é mostrado em contato amoroso e/

te como ameaça, por exemplo, quando se fala de Elois, a garçonete negra “devoradora de

ou sexual com sua esposa branca, Mia. Além disso, talvez como castigo por ter uma mulher

homens”. Pulp fiction apresenta algumas nuanças. Por um lado, há no filme um persona-

branca, ele é torturado e estuprado por um policial e pelo dono de uma loja de penhor.

gem feminino “positivo” (Mia), por outro, uma relação amorosa sexual como a de Butch e Fabienne, que, no entanto, não se desenvolve segundo padrões adultos, e sim infantis,

. Quando Jules grita com Brett, antes de assassiná-lo, pergunta-lhe se Marsellus parece uma puta, e depois por que tentou “fodê-lo [Marsellus] como se fode uma puta”.

afora o fato de Fabienne ser francesa. A mesma infantilidade irreal caracteriza o casal de

. No episódio “O relógio de ouro”, Tarantino zomba da camaradagem masculina táo pre-

assaltantes Pumpkin e Honey Bunny. Em ambos os casos, é a mulher quem assume a pos-

zada pela ficção americana e seu homoerotismo inocente. Butch criança recebe a visita do

tura mais infantil, secundada pelo parceiro. No apelido Honey Bunny, com suas conota-

capitão Koons, recém-chegado do Vietnã, e que era amigo de seu pai, o major Coolidge,

ções americanas de “doce” e “querida” (Honey) e “gatinha” e “gostosa” (Bunny), novamente

morto na guerra. Koons conta a Butch que, durante os cinco anos que permaneceu num

nota-Se a explicitação irônica, o excesso e a reflexão como uma das estratégias preferidas

campo de concentração no Vietnã, seu pai guardou um relógio, herança familiar, e que,

de Tarantino. Fiedler apontou a incapacidade do romance americano de retratar uma mu-

quando Coolidge morreu, ele mesmo (Koons) o guardou no ânus durante outros dois anos,

lher madura, exibindo em lugar monstros de virtude ou de maldade, símbolos de rejeição

para poder um dia lhe entregar o relógio.

ou medo da sexualidade (ibid.,p.24).Da mesma forma, a teoria feminista tem marcado a

Jackie Brown abandona a ironia, o excesso e o humor negro, para reconhecer as limita-

mesma incapacidade da indústria de Hollywood para apresentar mulheres ativas, sexuais e

ções dessa tendência da ficção americana e afirmar a necessidade de superar a dicotomia

seguras de si. Vincent e Jules têm um relacionamento baseado no respeito mútuo, porém

entre romantismo sem sexo (expresso na relação entre Jackie e Max) e o sexo como merca-

infantil, em contraposição à hostilidade entre o traficante Lance e sua mulher, Jody. Quan-

doria, veiculado por Ordell e suas amantes, e pelo desencontro entre Melanie e Louis.

do Jules abandona Vincent, este é morto por Butch. Há outros indícios da relação ambivalente de Tarantino com a tradicional dificuldade da ficção americana para representar amor e sexo: . Vincent sai à noite com Mia, mulher de Marsellus, e ambos vivem um romance mas

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Realismo, presente e autoconsciência

Se, em Cães de aluguel e Pulp fiction e nos roteiros de Amor à queima-roupa (True romance,1993) e Assassinos por natureza (Natural born killers,1994), Tarantino oscilava entre as cenas do cotidiano, o jogo e as atrações ou momentos exploitation, em Jackie Brown deixa este último modo em segundo plano para se apoiar nos dois primeiros. Esse terceiro longa-metragem de Tarantino combina cenas do cotidiano e jogo. A filmografia de Tarantino mostra um progressivo afastar da herança clássica do cinema de crime americano. Seu primeiro longa-metragem, Cães de aluguel, é o que mais se encaixa na tradição do gênero, em temas e estrutura narrativa. No entanto, nele já encontrávamos digressões de personagens e segmentos narrativos que se afastavam da trama própria de crime para se ocupar da cultura de massas, do desempenho e aquilo que denominei cenas do cotidiano. Pulp fiction é uma antologia de historias clássicas de gênero, fusionada com o cotidiano de uma urbe americana caracterizada por consumo, cinema, televisão e cultura da droga. Jackie Brown apresenta uma história de crime invadida e dominada pela irrupção do cotidiano e do prosaico do tempo presente. Jackie Brown opta por uma abordagem centrada no cotidiano e no tempo presente de uma Los Angeles sem glamour, que desmistifica o crime, apresentando-o como mais uma atividade lucrativa e rotineira da sociedade capitalista. O crime é dissociado da psicopatia, da loucura, é apresentado como uma atividade ilegal, mas nada excepcional. A dominância do impulso desmistificador começa com a protagonista, uma mulher afro-americana da classe trabalhadora que, aos 44 anos, ganha muito pouco, menos do que ganhava dez anos antes, e luta para melhorar de vida; continua em personagens como Ordell, traficante de armas de médio porte; Max, o agente de fianças; Louis, o ex-réu convicto; e a dupla de policiais, competentes, mas sem brilho, Nicolet e Dargis. O filme deseja mostrar o que ocorre dia após dia, o que se repete sucessivamente, em detrimento do excepcional e inverossímil. O leitor deve recordar que o olhar sobre o lado pro-

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saico da vida, definido como cenas do cotidiano, já estava presente em filmes anteriores. Mas, em Jackie Brown, as cenas do cotidiano predominam sobre as convenções genéricas e se somam à vontade de contar uma história no presente, apoiando-se na construção de imagens do mundo, com distanciamento e consciência de si. Jackie Brown abandona as rápidas mudanças de tom e de ritmo, a passagem de um modo de representação para outro, para escolher um tom distanciado e prosaico e um ritmo pausado e uniforme. O realismo de Jackie Brown se constrói com conversas e hábitos prosaicos e sua duração temporal específica. Duração do prosaico que agora percorre toda a narrativa, na tentativa de representar o tempo da vida dos personagens; tempo da Califórnia contemporânea. Tarantino já não se baseia na autonomia e originalidade da cena, apoiando-se nos tempos dos personagens e no tempo da narrativa como um todo, fazendo sentir o transcurso do tempo. Paradoxalmente, a narração de uma história que acontece no presente (para o que contribuem a transparência e nitidez das imagens e o tempo dos planos) combina com personagens cuja característica comum é falar do passado (Baecque 1998, p. 28) . Jackie Melanie Jackie Brown (1997)

Brown evoca o grupo de filmes reunidos sob o termo blaxploitation com distância crítica, sem intenção de recriá-los utilizando o pastiche. Compartilha alguns aspectos com o 1. Jules: Then why did you try to fuck’im like a bitch?

blaxploitation, como a protagonista mulher (agora veterana, não jovem e objeto sexual), a música soul e a gíria afro-americana, com destaque para a palavra nigger,mas não os momentos transgressores de violência, sexo e drogas, que defini como atrações no sentido de Gunning, nem personagens típicos como traficantes de drogas, proxenetas e prostitutas. A relação não nostálgica com o passado cinematográfico é um dos pilares da abordagem de Jackie Brown. O fato de a protagonista ser uma mulher afro-americana cuja juventude transcorreu nos anos 1970,a escolha da atriz Pam Grier, os outros personagens afro- americanos (Ordell, Sheronda, Simone e Winston), a esplêndida música soul, grande parte dela Louis Gara Jackie Brown (1997)

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extraída de trilhas sonoras de filmes blaxploitation,ligam a luta de Jackie a virtudes subjacentes do blaxploitation.Mas Tarantino não tenta recriar o gênero, fazer um blaxploitation

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dos anos 1990, mas sim estabelecer uma distância crítica e relacionar Jackie Brown com uma tadição cinematográfica específica, reconhecendo a herança de um grupo de filmes exploitation dos anos 1970 protagonizados por afro-americanos. Jackie Brown contém uma reflexão sobre o que poderia ter sido o blaxploitation se tivesse durado mais (ele floresceu entre 1971 e 1974) e tido a possibilidade de ampliar sua abordagem, em particular, sua escolha de protagonistas mulheres, independentes e agressivas - característica, aliás, do exploitation de modo geral.

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Cenas do cotidiano

por um “hiper-realismo espetacular dos lúmpens”, caminho geralmente escolhido no filme de crime americano. As convenções genéricas que o espectador reconhece abrem espaço para que Tarantino trate de pessoas comuns e narre em um ritmo lento, cadenciado. Jackie Brown abandona uma estética do espetacular e do riso, ligada à tradição americana do en-

Em Jackie Brown, o crime, fonte do espetacular e do excepcional no cinema convencio-

tertainment, para se ocupar de personagens de vidas cinzentas e difíceis, que Hollywood

nal de Hollywood, é apresentado como parte de um cotidiano em que dominam o prosaico,

prefere não representar. Jackie trabalha como aeromoça numa companhia de terceiro nível,

a falta de charme e a monotonia. Essa perspectiva, quase sempre ignorada por Hollywood,

ganhando apenas 16 mil dólares por ano mais benefícios sociais. Ela mora numa casa digna,

afasta-se da tradição americana resumida na palavra entertainment. Com Jackie Brown,

com mobília pobre e sem graça, gasta pelo tempo, num bairro afro-americano pobre que

Tarantino abandona uma de suas obsessões - a indústria cultural americana e sua capacida-

não é apresentado como violento e assustador (como costumam fazer tanto a Hollywood

de de divertir. Se, por um lado, a sociedade americana desenvolveu uma notável indústria

convencional quanto a maioria dos cineastas afro-americanos), mas como um subúrbio

de lazer e entretenimento, por outro, o seu avançado sistema capitalista impôs uma vida

banal e anônimo de Los Angeles.

sumamente regrada e previsível, em que as prioridades são a eficácia no trabalho e o consu-

O personagem de Max Cherry é central para evidenciar a intenção de contar uma his-

mo. Para construir esse quadro do cotidiano, Tarantino escolheu filmar numa área anônima

tória de crime contemporânea. Max tem mais de 50 anos e trabalha há 19 como agente

de Los Angeles, a South Bay, nos municípios de classe média e média-baixa de Carson, Tor-

de fianças de criminosos pouco perigosos: “Efetuei algo assim como 15 mil fianças desde

rance e Hawthorne e no bairro de classe média-baixa e baixa afro- americana de Compton,

que estou no negócio”. Apesar de exigir o contato permanente com criminosos e o porte e

lugares relativamente próximos do aeroporto internacional.

eventual uso de armas e violência, seu trabalho é mostrado como prosaico e destituído de

As imagens de Jackie Brown mostram uma grande Los Angeles diferente daquela que co-

interesse. Quando Max conta para Jackie que bate em criminosos, algema-os e leva-os para

nhecemos pelas imagens do cinema e da televisão. Aqui, não vemos o esplendor de Beverly

a cadeia, e Jackie pergunta “Você faz isso?”, Max responde “É o meu trabalho”. Max tem

Hills e as colinas de Hollywood, as praias de Venice ou Malibu ou a represa Mudholland;

uma postura distanciada e desencantada com respeito a sua atividade. Nada parece deixá-

tampouco vemos sua outra face, subúrbios dominados por gangues, pobreza,tráfico de dro-

-lo nervoso, nem assustá-lo demais, nem tirá-lo de seu cansaço existencial. A passagem do

gas e crime. O filme mostra a abundante luz do sol de Los Angeles, a quietude e o silêncio

tempo, a monotonia do trabalho e de uma vida cuja única diversão parece ser frequentar

da cidade à noite, vastos espaços urbanos (ruas, estacionamentos e aeroportos) em longos

sessões vespertinas de cinema no shopping fazem Max decidir se aposentar, decisão que

e lentos percursos de carro, a grandiosidade e a monotonia de shoppings, bares e restau-

comunica a Jackie no shopping Dell Amo: “Cansei disso tudo (...) depois de algumas horas

rantes quase vazios, todos lugares desprovidos de concentração de pessoas, de movimento

penso: O que estou fazendo aqui? Dezenove anos desta merda? Então, decidi, foi isso”.De-

e agitação . Jackie Brown não associa o crime a pobreza” loucura e violência, não se apóia

cisão que não consegue cumprir. A escolha do ator Robert Foster, s;ua performance distan-

no sensacionalismo e sentimentalismo do melodrama. A não estetização da pobreza dos

ciada e minimalista constroem um personagem sensível e cotidiano, um homem normal.

personagens e sua singularização permitem que o espectador interprete essa história como uma entre tantas outras, e relacione a história com o mundo externo, os personagens com a sociedade toda. Poderíamos dizer que o filme opta por um “cotidiano dos proletários” e não

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Num projeto em que o prosaico predomina sobre a tradição do espetacular, Ordell, tra-

A atração subordinada e comentada

ficante de armas de médio porte, é apresentado como um homem de negócios comum da sociedade do capitalismo avançado. Ordell, 45 anos, não é um poderoso chefe mafioso nem negócios ilegais. Diferentemente de Mr. Blue de Cães de aluguel,não bate nem mata por

Em Jackie Brown, pela primeira vez em seus filmes e em seus roteiros (Amor à queima

prazer ou loucura; ele assassina de maneira fria e racional. É um criminoso sem escrúpulos,

roupa, Assassinos por natureza, Um drinque no inferno (From dusk till dawnl), Tarantino

individualista, que não tem limites éticos quando se trata de proteger seu negócio de venda

não recorre a cenas agressivas e chocantes, na tradição do exploitation. Os momentos que

de armas, mas que sabe respeitar, acordos. Ordell não é excepcionalmente brilhante, ou

poderiam ser atrações estão subordinados a uma representação distanciada ou cotidiana. O

paranóico, caminho tradicional de Hollywood, mas também não é estúpido ou desastrado,

exemplo mais claro é o vídeo de promoção de armas, chamado Chicks who love guns (Gati-

outro extremo explorado por paródias ridicularizadoras. Ordell é esperto, mas não muito

nhas que amam armas), a que Ordell e Louis assistem na casa do primeiro, na cena posterior

inteligente, é rápido e sabe tomar decisões, mas fala demais e pode ser enganado.

aos créditos. O video, uma mistura de anúncio publicitário com filme exploitation, consiste

Louis Gara (Robert De Niro), delinquente que acabou de sair da prisão, teve no passado a

em belas mulheres de biquíni Que apresentam metralhadoras,fuzis automáticos e pistolas.

capacidade de Ordell, mas a idade e a prisão parecem ter afetado seu raciocínio. Louis pare-

Ordell manipula o controle remoto, avança e retrocede a fita, e faz comentários críticos, a

ce estar num estado de permanente lentidão e letargia. No roteiro, Tarantino descreve que

começar pela popularidade do crime e pelo consumo de armas. Não presenciamos a cena

a experiência de ter vivido metade da existência na prisão “afetou sua linguagem corporal e

exploitation diretamente, apenas os personagens que a veem na televisão, interferindo

seu processo de pensamento” (1997b, p. 4). Louis é mostrado como alguém que já foi inte-

nela com o controle remoto e comentários.

ligente e hoje está lento, velho, prematuramente desgastado. O fato de a incompetência de Louis ser causada pela passagem do tempo e por um envelhecimento perturbado (anos de

4. Ordell: What the fuck happened to you man? Shit, your ass use’ to be beautiful.

2. Jules: Then why did you try to fuck’im like a bitch?5. “I’ve written something like fifteen thousand bonds since I’m in the business’” 3. “I’m tired of it (....) after a couple of hours I think: What I’m doing here? Nineteen years of this shid So I made up my mind, that’s it’”

é psicopata, cruel ou violento. Ordell usa a violência como uma extensão natural de seus

prisão) é sublinhado na cena entre ele e Ordell na caminhonete, quando descobrem que a sacola tem apenas 40 mil dólares e não os 550 mil que Jackie prometera. Ordell fica furioso com a incompetência e lentidão mental de Louis, seu amigo de anos, e dispara duas vezes contra ele. Louis agoniza, Ordell diz: “Que merda aconteceu com você? Droga, antes sua bunda era bonita”.

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A mesma rejeição do excesso,da agressão e do choque está presente na mise-en- scène das mortes de Melanie, Louis e Ordell. Em Pulp fiction e Cães de aluguel, a violência e a morte eram lugares privilegiados para exibir o cinema de atrações, com destaque para a exibição do movimento dos corpos ao serem crivados pelas balas. Em contrapartida,Jackie Brown oculta o momento em que os disparos atingem os corpos Outra cena que poderia ter sido representada para agredir e chocar o espectador,amortedeMelanie,queacontecena operaçãodeentregadodinheiro. No shopping Dell Amo, Louis, já com a sacola de dinheiro, não encontra a saída. Melanie zomba dele e indica o caminho. No estacionamento, Louis não consegue lembrar onde deixou o carro e Melanie continua zombando. Louis perde o controle e dispara duas vezes contra ela; aqui, a câmera permaneceu em Louis e deixou Melanie fora de quadro. Não vemos Melanie quando morre nem quando fica estendida no chão morta. Há uma intenção deliberada de não mostrar seu corpo. Os momentos exploitation

Melanie Jackie Brown (1997)

permanecem subordinados, como uma lembrança mediada por um olhar crítico e distanciado do autor nos personagens.

Melanie, loura californiana, vestida com short jeans e top, é, simultaneamente, um personagem cotidiano e um personagem que evoca o exploitation. Em Los Angeles, a influência da indústria audiovisual sobre o cotidiano é tão significativa que se torna difícil estabelecer as fronteiras entre realismo e ficção. Tarantino explora essa condição midiatizada de Los Angeles para combinar o artifício da ficção com a mimese realista e criar personagens como Melanie e Ordell. Os filmes exploitationdos anos 1960 e 1970 faziam do corpo da

5. Literalmente, bomba; em sentido figurado, mulherão.

mulher uma atração (lembrar, por exemplo, Russ Meyer)’ Mas Melanie é uma ex- atração do exploitation, uma ex-bombshell que já não é tão bonita como no passado. Quando Simone imita as Supremes, há uma atração breve, que logo é ironizada pela imagem de Louis olhando o número e se balançando numa cadeira de balanço. Quando Jackie entra na prisão de mulheres e a trilha sonora apresenta a música “Longtime woman”, originária deThe big doll house (1971,de Jack Hill) e cantada por Grier, o exploitation é evocado, em particular o ciclo mulheres na prisão. A falta da agressão e do choque dos momentos exploitation colabora para fazer de Jackie Brown um filme mais distanciado e consciente de si mesmo Louis Gara Jackie Brown (1997)

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do que Cães de aluguel e Pulp fiction. Vejamos vários procedimentos que contribuem para deflagrar o distanciamento.

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Distanciamento e autoconsciência

O distanciamento também é obtido com procedimentos que operam enquanto a história é narrada, por meio da interação dos personagens. Uma cena- chave para entender como Jackie Brown não opta pela exibição agressiva da violência e apresenta um estilo mais distanciado é a morte de Beaumont Livingston, o delinquente empregado de Ordell.

Jackie Brown utiliza técnicas que interrompem o fluxo realista da imagem em movi-

Ordell visita Beaumont e o convence a entrar no porta-malas de seu carro. Ordell liga o

mento - como letreiros, subtítulos, os fade in/fade outs, a divisão da tela (split screen) e o

carro e coloca música no toca-fitas. Abre o porta-luvas, de onde retira luvas de couro. Calça

gráfico de um mapa - para evidenciar a presença de um narrador, distanciar e lembrar que o

as luvas devagar, como num ritual. Aumenta o volume da música. Pega um revólver e con-

que acontece na tela é ficção. Os fade in/fade outs funcionam como pontuação na narrativa,

fere se está carregado. O carro parte, dobra uma esquina e sai de quadro; deixamos de ouvir

um procedimento já utilizado em Pulp fiction e Cães de aluguel. Trata-se de pausas na fic-

a música. A câmera sobe devagar vários metros e mostra um grande terreno baldio. A não

ção que alentecem o fluxo da história. Os letreiros, formados por caracteres brancos na tela

menos de 100 metros de distância, vemos aparecer o carro de Ordell e ouvimos de novo a

preta, não anunciam capítulos, como em Pulp fiction e Cães de aluguel; aqui, eles aparecem

música, distante. Plano geral o carro para, a música é desligada. Vemos a figura de Ordell,

de forma menos metódica e são menos formais, expressando comentários explícitos do

que sai do carro, abre o porta-malas (Beaumont fala algo) e mata Beaumont com dois dispa-

narrador para o público. Tanto marcam as diversas fases da operação de entrega de dinhei-

ros. Ordell entra no carro, dá a partida, a música volta. O carro sai do terreno baldio e sai de

ro, num impulso didático, quanto fazem um comentário irônico na relação sexual entre

quadro. O extenso plano tem um leve movimento de câmera para a direita, outro pequeno

Louis e Melanie (“Três minutos depois”). Uma variante interessante é a frase que brinca

para cima à esquerda, utiliza o espaço off comas entradas e saídas do carro.

com a frase principal do letreiro. Exemplo: primeiro, o letreiro indica entrega de dinheiro, logo, outra sentença embaixo ironiza - “Desta vez de verdade”. Um procedimento não utilizado nos filmes anteriores é o que denomino de “subtítulos”: caracteres brancos na parte baixa da imagem fotográfica em movimento, de intenção realista e didática. Os subtítulos dividem-se em duas categorias: aqueles que indicam a locação exata dos acontecimentos bairros de Los Angeles (exemplo: “City of Carson”), proximidade de ruas, o aeroporto e o shopping Dell Amo - e os que indicam a hora exata dos diversos fashbacks que conformam a operação de entrega de dinheiro (exemplo: “Hora: 3h30”). O gráfico do mapa mostra a Califórnia e o México e um desenho de um avião que sai de Cabo San Lucas até chegar num círculo que aponta o aeroporto de Los Angeles. Num procedimento de natureza um pouco diferente, Tarantino divide a tela pela metade, para encenar o momento em que Ordell tenta matar Jackie e ela acaba apontando uma arma para ele, e em que Max, no carro, percebe o desaparecimento de seu revólver.

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Ordell e Beaumont Jackie Brown (1997)

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A decupagem clássica contemporânea resolveria o que é narrado nesse plano num mínimo de cinco planos. A lentidão e a calma de Ordell, o ritual das luvas e a música, a câmera

Personagens, consciência de si e diálogos

que sobe devagar, a saída do de quadro do carro, os segundos que o carro demora a entrar de novo em quadro, a distância e a altura de onde o momento da morte é mostrado e o tempo geral da cena constroem uma mise-en-scène distanciada,fria, bem diversa da mise-en-

A maioria dos personagens de Jackie Brown é consciente de sua,imagem de forma mais

-scène exibicionista de Pulp fiction e Cães de aluguel nesse tipo de cena. Lembremos, por

relaxada e madura do que os personagens exibicionistas e obsessivos de Cães de aluguel e

exemplo, a morte de Brett e a injeção de adrenalina de Mia (Pulp fiction); os enfrentamen-

Pulp fiction. Não se confrontam narcisicamente com espelhos para checar rosto, penteado

tos de Mr. White e Mr. Pink com a polícia, a morte do policial Marvin (Cães de aluguel).

e roupas, atitude que se resume na pergunta “Que tal estou?” do policial Marvin , em Cães

Outra cena de estilo similar’ que recorre a movimento lento de câmera, mostra Ordell fa-

de aluguel, nem icorporam atitudes evidente e assumidamente artificiais e performáticas

lando com Max pelo telefone. Música soul. Ordell está no escuro, falando sentado num

(como Vincent, em Pulp fiction), nem mesmo Ordell, personagem narcisista muito próxi-

sofá. A câmera enquadra os ombros e a cabeça e se aproxima num travelling lento. O plano

mo do universo de Pulp fiction. Ordell assumiu a imagem e atitude artificiais durante anos,

é alternado com um primeiro plano de Max, no escritório. A câmera chega até a cabeça de

que se confundem totalmente com seu próprio eu. Ordell está sempre em pose, exibindo

Ordell até se deter num pequeno fio de cabelo que está em pé. O calculado travelling no es-

o que imagina ser a imagem glamorosa de um traficante com estilo, seja pela elegância e

curo é ironizado quando percebemos que se a um cabelo na testa; o movimento de câmera

excentricidade das roupas e do cabelo, seja pelo domínio e consciência de si que demonstra

se estrutura a fim de conter sua própria autocrítica.

quando fala’ Mas nem ele nem nós, espectadores, percebemos o desdobramento, o momento em que, como Freddy, Jules e Vincent, Ordell decide incorporar um personagem, o instante “let’s get into character” (“vamos assumir o personagem”). Aqui, não há dupla função do ator Samuel Jackson, interpretar a si mesmo e ao personagem. como os protagonistas de cães de aluguel e Pulp fiction, Ordell fala com prazer, conhece o valor de cada palavra e expressão, utiliza a linguagem oral como arma de poder, às vezes com sucesso (com Beaumont e Louis), às vezes sem (com Jackie e Max). Seu colega, Louis Gara, por outro lado, personagem permanentemente perdido na realidade, derrotado pela idade, com hábitos pouco saudáveis e anos de prisão, não tem a capacidade de ser consciente de sua imagem e, portanto, de exercer controle sobre ela. são outros personagens que comentam e controlam a imagem de Louis - Ordell (que lhe compra roupa) e Melanie -, assim como decidem onde mora, o que faz e sua atividade sexual. Essa falta de poder sobre a própria vestimenta, unida à falta de domínio da fala e dos movimentos, conformam um personagem desampa-

Ordell Robbie Jackie Brown (1997)

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rado, que está “morto”, no sentido de fora da realidade, antes de ser assassinado por Ordell, como castigo por sua falta de capacidade. Jackie e Max têm outra relação com a imagem que

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de estar sempre começando de novo, ganhando muito pouco e com perspectivas futuras

ocupa com a idade e seus efeitos sobre a aparência. Não de maneira obsessiva e neurótica,

limitadas. Max aceita o passar do com uma calma e uma maturidade que, no final da histó-

mas com a lucidez de quem compreende que os anos passam e que está numa situação eco-

ria, revelam-se bastante carregadas de resignação e de um leve estado depressivo, próprio

nômica precária, pior que uma década antes. A pressão da polícia e a ameaça de uma con-

de quem foi derrotado pouco a pouco por uma vida cinzenta, rotineira. Ele revela a Jackie

denação levam-na a perceber que está atravessando uma fase decisiva de sua vida, em que

que chegou à conclusão de que, depois de 19 anos, quer deixar de trablhar como agente de

tem de decidir se melhora ou se desce mais ainda. Em contrapartida, Max aceita o passar

finanças. Embora pense em parar de trabalhar, não encontra forças para mudar de vida.

dos anos, com uma mescla de sabedoria e resignação, sem por isso deixar de se preocupar

Por ter-se apaixonado ou quase apaixonado por Jackie, Max aceita ajudá-la sem pedir

com a aparência, a ponto de ter feito um tratamento capilar para recuperar a cabeleira.

nada em troca, correndo riscos. Quando Jackie o convida para viajar para a Espanha, ele é

“Quando olho no espelho, a imagem se parece comigo”, diz para Jackie. Em Jackie e Max,

incapaz de aproveitar a chance. O que parecia maturidade é também medo e falta de entu-

a consciência de si mesmo é lucidez para perceber com certo distanciamento sua posição e

siasmo para viver. Como em Cães de aluguel e Pulp fiction, os diálogos oscilam entre o lado

seu lugar na vida.

prosaico da vida e a estilização, agora com um peso maior do primeiro pólo. Como nos

Os personagens de Jackie Brown, como os de caes de aluguel e purp fiction, revelam nos

outros dois filmes, os personagens têm plena consciência do valor da linguagem, mas ago-

diálogos uma consciência de si que lhes permite refletir sobre eles mesmos e sobre outros

ra apenas Ordell exbe aberta e permanentemente essa consciência. Outros personagens

personagens. Em Jackie Brown, os personagens vivem no presente, mas têm em comum

importantes, como Jackie, Max, os policiais Nicolet e Dargis, somente em rar ocasiões de-

o fato de viverem falando do passado (Baecque 1998, p. 28). Jackie, Max, Ordell e Louis

bruçam-se sobre a linguagem e o significado dos termos que emprega. Os diálogos entre Ja-

são protagonistas maduros, veteranos, com idades entre 44 (Jackie) e 55 (Max) anos, que

ckie e Max se caracterizam por simplicidade e honestidade, tempos mortos, tom prosaico.

sabem que já viveram mais da metade da existência e sentem o transcurso do tempo. Ja-

Jackie e Max acabam de se conhecer e tomam um drinque no bar Cokatoo Inn.

ckie, Max e Ordell já pensam em uma aposentadoria confortável. Louis, por sua vez, é um

5. Max No, thanks. I quit three years ago. Jackie: You gain weight. Max: Ten pounds. I lose it and put it back on’ Jackie: That’s why I don’t quit.If i can fly anymore, I’m gonna have a bitch of a time gettin my brand. Max: What’s Your brand? Jackie: Davidoffs. I get’em in Mexico’ They’re hard to find here.

projetam para o exterior, graças ao fator tempo. Mulher bonita d e 44 anos, Jackie se pre-

Jackie oferece um cigarro a Max:

personagem derrotado pelo tempo: acaba de sair da prisão, é superado pelo ritmo contemporâneo e ainda não consegue se situar minimamente para poder pensar em aposentado-

Max: Não, obrigado. Larguei faz três anos.

ria. Esses quatro personagens avaliam ou tentam avaliar (Louis) seu presente em relação

Jackie: Você engordou?

a uma trajetória de mais de 20 anos. Nessa trajetória, os anos 1970 são evocados como a

Max Cinco quiloos. Eu os perdi e os recuperei de novo.

época fundamental, o ponto de referência dos personagens. Naquela década, Ordell e Louis

Jackie: Por isso, não largo. Se não puder mais voar, vou passar um mau bocado paconseguir

se conheceram na prisão, Max começou a trabalhar como agente de fianças e Jackie como

minh a marca.

aeromoça. Há também, uma referência a Melanie, de trinta e poucos anos, que parece ter

Max Qual é a tua marca?

iniciado sua trajetória de garota de programa no final da década de 1970.

Jackie: Davidoffs. Eu os consigo no México. São difíceis de encontrar por aqui.

Jackie e Max são os personagens que mais olham para o passado com o objetivo de reavaliar eq uestionar seu presente. Jackie explica a Max que está cansada

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Max Cherry Jackie Brown (1997) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 194-195

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Logo, Ordell é distanciado, quando se observa de fora, “eu odeio ser esse tipo de negão,

filmes anteriores de Tarantino. Diferentemente de Jackie e Max, Ordell fala de forma exibi-

e apela a uma suposta fraternidade racial para manipular Beaumont. Num diálogo que cabe

cionista, com uma mescla de gíria e sofisticação similar à de Jules (Pulp fiction), Holdaway

em duas linhas, Ordell repete quatro vezes a palavra nigga, versão coloquial de nigger (ne-

e Mr. Pink (Cães de aluguel), personagens que verbalizam tudo o que lhes acontece, pata

gro) :

dar sentido aos acontecimentos e impor sua vontade. Ordell domina a linguagem e a utiliza como forma de poder; altera a maneira de falar conforme as circunstâncias. Mas sua

Ordell Look, I hate to be the kind of nigga, nigga does a favor, then bam, hits the

confiança nas palavras é também sua debilidade. Ordell fala demais e confia em excesso em

nigga up for a favor in return. But I’m afraid I got be this kind ofnigga.

seu desempenho como delinquente cool. Ordell sabe quando e como variar a linguagem’ dependendo da pessoa e do momento. com Beaumont, Ordell usa o tom e as expressões

Como Ordell não subestima Jackie, fala de maneira mais direta, sem apelar para a frater-

da gíria afro-americana para cativá-lo e depois matá-lo. Observemos a repetição da palavra

nidade afro-americana, o que não o impede de utilizar a gíria como técnica humorística em

you, que, junto com a entonação dos atores, produz um efeito de rima. Notemos também as

um comentário sobre a beleza de Jackie. Lembremos a cena, no bar Cokatoo Inn, em que

três vezes que usa a palavra ass, como metonímia da pessoa. A notória repetição de certas

Jackie e Ordell falam sobre a entrega do dinheiro.

palavras é um traço de estilo característico de Tarantino, que chama a atenção para certas palavras. Assim, o espectador assiste, por um lado, à ação e por outro, presta atenção em

6. Ordell: Olha para você e tua bunda livre’ Vem cá’ me dá um baita abraço’ Beaumont:Quemerdaeupossodizer?Sério.oquepossodizer?obrigado,obrigado,obrigado. Ordell: Quem tava lá para ajudar tua bunda? Beaumonl: Você tava lá.

termos e expressões, provocando uma instância de reflexão. Ordell: Look atyou andyour fiee ass. Come overhere and give me a motherfucking hug.

Ordell: Dammed, I bet you come here on a Saturday night and you need nigga repellent keep’ em off your ass.

A sequência da conversa mostra uma luta verbal, na qual Ordell não consegue se impor

Beaumont: Whatthefuckcanlsay?I’mseriousman’Whatthefuckcanlsay?

sobre Jackie. O diálogo é um exemplo da importância que Tarantino dá ao uso específico de

Thank You, thank You, thank You.

cada termo. Vejamos como discutem, para definir se o que Jackie faza converte em mana-

Ordell: Who was there for Your ass?

ger (empresária) ou partner (sócia).

Beaumont: You were there. Ordell: Who?

Jackie: I ain’t your partner, I’m your manager. I’m managing to get your money out

Beaumont: You.

of Mexico, into America, in your hands, and I’m managing to do all this under the

Ordell: Who?

nose of the cops: that makes me your manager, and managers get fifteen percent’

Beaumont: You.

Ordell: Managers get ten Percent.

Ordell: You see, it works like this.You get your ass in trouble,I get your ass out. That’s

Jackie: That’s an agent’ Managers get fifteen percent.

my job. And I don’t mind teilin’ya, nigga, it’s steady work.

Ordell I’ll give you ten.

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Ordell: Quem? Beaumont: Você. Ordell: Quem? Beaumont: Você. Ordell: Tá vendo, é assim que é. Você bota tua bunda em confusão, eu boto ela fora Esse é meu trabalho. E não me incomodo em te dizer, negão, é trabalho sério.

Ordell é o personagem cuja maneira de falar se parece com personagens típicos dos dois

Jackie: Plus the same deal as before.

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Vejamos agora um dos melhores exemplos de diálogo estilizado. Ordell mostra a Louis o

conhecem de memória as porcentagens que cabem a um empresário e a um agente. Ordell

cadáver de Beaumont no porta-malas do carro, e explica sua maneira de fazer negócios. O

é um permanente comentador, de si mesmo e dos outros. Quando reflete sobre outros,

grifo de várias partes do diálogo é meu.

7. Ordell: Olha, eu odeio ser o tipo de negão que faz um favor pro negão, então pá, pede ao negão um favor em troca. Mas temo ter de ser esse tipo de negão. 8. Ordell: Porra, aposto que você vem aqui num sábado à noite e precisa de repelente de negão para mantê-los longe da sua bunda.

costuma fazê-lo na forma de pequenas digressões que detêm o avanço da trama por um instante, para pensar em voz alta. Assim, Ordell veicula opiniões que o filme não desmente

Louis: Who was that?

e podemos atribuir ao narrador. Vejamos a cena em que Ordell chega com Louis na casa de Redondo Beach, proveniente do shopping. Melanie está deitada no sofá, como de costume,

Ordell: That’s Beaumont. Louis: Who’s Beaumont?

fumando haxixe num cachimbo. Louis está com roupas novas. Ordell comenta em tom de

Ordell: An employee I had to let go.

brincadeira o aspecto anterior de Louis e reclama da atitude de Melanie.

Louis: What did he do?

Melanie: Hey, hey, hey. I think somebody’s got new clothes. Ordell: We’ve been shoppin’. Can’t have my boy running around lookin’like a bum on the street. Louis: I didn’t look like a bum.

Ordell: He put him self in a position where he was gonna have to do ten years in prison, that’s what he did. And if you know Beaumont, you know there ain,t no way in hell he can do no ten years. And if you know that,you know Beaumont,s gonna do any goddam thing Beaumont can to keep from doin’ten years, including tellin, the federal government everything they want to know about my black ass. Now that, my friend, is a clear mse of him or me. And you best believe it ain’t gonna be me.

Ordell: But you have a Salvation Army thing goin’. (....) Ordell: Damn, girl. You gettin’high already. It’s only two o’ clock.

Ordell usa expressões nada naturalistas, próprias de uma linguagem escrit como “he put

Melanie: It’s that late?

himself in a position”, “I had to let go” (no lugar de “I killed” [eu matei]) ou “is a clear case

Ordell: I’m serious, you smoke too much ofthat shit. That shit robs you your ambition.

of him or me”, fala de si em forma indireta (“and if you know”), e repete três vezes o nome

Melanie: Not if your ambition is gettin’high and watch TV.

de Beaumont. Esses procedimentos evidenciam sua consciência da linguagem e chamam

9. Jackie: Eu não sou sua sócia, sou sua empresária. Estou tratando de tirar seu dinheiro do México e colocá-lo nas suas mãos na América, e estou tratando de fazer tudo isso debaixo do nariz dos tiras: isso faz de mim sua empresária e os empresários têm direito a 15%. Ordell: Os empresários recebem 10%. Jackie: Isso são os agentes. Os empresários recebem 15%. Ordell: Vou te dar dez. Jackie: Mais o mesmo trato de antes.

Ordell e Jackie, habitantes da grande Los Angeles, cidade que gira em torno do cinema,

a atenção do espectador para a construção da fala. A isso, devemos somar a combinação Com Sheronda, numa das casas de Compton, Ordell olha a bagunça e reclama: Ordell: Dammed, girl, how can you live like this? Sheronda: Like what? Ordell: In this repugnant shit.

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da construção estilizada e sofisticada das falas com expressões coloquiais, gramaticalmente incorretas, como ain’t, gonna,black ass. O som das palavras cria um efeito próximo da rima. No escritório de Max, ri da rima de uma frase sua: “somebody with a grudge blew Beaumont’s brains out, hey, blew... Beaumont’s... brains out” [risadas].

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Jackie Brown se apresenta como uma narrativa em geral linear, com alguns saltos no tempo. Numa proposta realista, apoiada em imagens do mundo, e não metaficcionais, Tarantino quis manter como norma uma aparente ordem cronológica clássica, interrompida por ocasionais saltos no tempo, provenientes da vontade do narrador. A estrutura narrativa e o estilo tendem a ocultar esses saltos, para que o filme seja percebido como uma narrativa mais linear e “natural” do que de fato é. Exceto a cena da entrega do dinheiro no shopping Dell Amo - principal segmento de desestruturação da linearidade, os outros flashbacks são

10. Melanie: Ei, ei, ei, acho que alguém está de roupas novas. Ordell: Fizemos umas compras. Não posso deixar meu garoto andar por aí como um vagabundo. Louis: Eu não parecia um vagabundo. Ordell: Mas você tava com um troço do Exército da Salvação. (...) Ordell: Porra, garota, cê jâ tâ ficando alta. São só duas da tarde. Melanie: Já é tão tarde assim?

de pouca extensão e sempre ligados e subordinados a uma ação que ocorre no presente.

Jackie Jackie Brown (1997)

Como em Cães de aluguel e Pulp fiction,os saltos no tempo partem da manipulação do

Para ilustrar minha argumentação, vejamos agora um flashback que parte da vontade do

narrador, não surgem das lembranças de um personagem, técnica do cinema clássico. Há

narrador, apesar de ilustrar o que um personagem lembra. No shopping Dell Amo, situado

uma exceção, o flashback de Max no shopping, quando lembra o momento em que Jackie

no município de Torrance, Max encontra Jackie na praça de alimentação. Sentados numa

lhe pediu para ajudá-la. Os flashbacks são utilizados para voltar a narrar, de outro ponto de

mesa, Max diz que decidiu se aposentar no dia em que foi buscar Jackie na prisão. Flashba-

vista, um evento que já foi narrado, pelo menos parcialmente.

ck. Revemos o dia em que Max foi buscar Jackie, filmado de outro ângulo: “senhora Brown,

Louis: Tô falando sério. Você fuma demais essa merda. Essa merda te tira tua ambição. Melanie: Não, se a tua ambição for ficar alta e assistir TV. 11. Ordell: Porra, garota, como você consegue viver assim? Sheronda: Assim como? Ordell: Nessa merda repugnante.

Da manipulação do narrador à ambivalência em tornoda causalidade

sou Max Cherry, seu agente de fianças”. Volta a Max e Jackie no shopping. Flashback. Rua, à noite. Max deixa Jackie na frente da casa dela. Câmera no banco de trás. Vemos Max fora do veículo e Jackie tirando o revólver de Max do porta-luvas. A decupagem sublinha que â perspectiva é do narrador, e não de Max. A câmera colocada no assento traseiro do carro, que mostra Jackie retirando a arma e Max na rua, dá uma perspectiva visual que não pode ser a do agente de fianças. Se, em Pulp fiction, a linearidade era desmontada de tal forma que não se podia falar de flashbacks, Jackie Brown apresenta um salto no tempo que mistura as noções de flash-forward e flashback. Jackie janta com o policial Nicolet num restaurante. Flash-forward. No apartamento dela, numa cena posterior ao jantar com Nicolet, Jackie discute com Max suas possibilidades de êxito. Flashback.Volta à cena no restaurante. Max Cherry Jackie Brown (1997)

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Jackie diz para Nicolet que traz consigo 50 mil dólares (quando, na verdade, são 500 mil). Flash-forward. Jackie e Max no apartamento.

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Max Cherry Jackie Brown (1997) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 202-203

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A principal operação de subversão da ordem linear acontece na operação de entrega de dinheiro, no shopping Dell Amo. A sequência divide-se em três segmentos, nos quais o nar-

Cultura de massas e consumo

rador nos mostra a operação de três perspectivas diferentes. Apenas parte de cada segmenprimeiro os passos de Jackie. Brown, depois os de Louis e Melanie, para terminar com Max

A principal operação de subversão da ordem linear acontece na operação de entrega de

Cherry. Cada segmento se inicia com um subtítulo que indica na tela a hora exata (exemplo

dinheiro, no shopping Dell Amo. A sequência divide-se em três segmentos, nos quais o nar-

- “hora: 3h30”). Primeiro, vemos Jackie, desde o momento em que organiza o dinheiro no

rador nos mostra a operação de três perspectivas diferentes. Apenas parte de cada segmen-

banheiro do avião até aquele em que chama os policiais em voz alta no shopping; depois,

to mostra o mesmo momento da história, segundo personagens diversos. O narrador segue

Louis e Melanie, desde o momento em que esta demora a sair do apartamento de Redondo

primeiro os passos de Jackie. Brown, depois os de Louis e Melanie, para terminar com Max

Beach até aquele em que Louis a mata no estacionamento; por último, Max, desde quando

Cherry. Cada segmento se inicia com um subtítulo que indica na tela a hora exata (exemplo

caminha pelo shopping até sair com o dinheiro.

- “hora: 3h30”). Primeiro, vemos Jackie, desde o momento em que organiza o dinheiro no

Cada flashback se inicia num momento da história posterior ao começo da outra, não

banheiro do avião até aquele em que chama os policiais em voz alta no shopping; depois,

há um ponto fixo e determinado no presente para o qual a história volte. Nesse longo seg-

Louis e Melanie, desde o momento em que esta demora a sair do apartamento de Redondo

mento de entrega de dinheiro, as cenas são encadeadas pela explícita intervenção arbitrária

Beach até aquele em que Louis a mata no estacionamento; por último, Max, desde quando

do narrador. A maneira de apresentar os saltos no tempo e outras intervenções explícitas

caminha pelo shopping até sair com o dinheiro.

do narrador, como os letreiros e os subtítulos, sugerem que a ordem linear que domina a

Cada flashback se inicia num momento da história posterior ao começo da outra, não

história e a relação de causa e efeito entre uma cena e outra, dispostas nessa ordem, estão

há um ponto fixo e determinado no presente para o qual a história volte. Nesse longo seg-

subordinadas à manipulação arbitrária do narrador. A música, os letreiros e subtítulos, a

mento de entrega de dinheiro, as cenas são encadeadas pela explícita intervenção arbitrária

tela dividida, o estilo distanciado e os tempos que se prolongam questionam a importân-

do narrador. A maneira de apresentar os saltos no tempo e outras intervenções explícitas

cia da cadeia causal que une cenas dispostas em ordem cronológica. Em outras palavras, a

do narrador, como os letreiros e os subtítulos, sugerem que a ordem linear que domina a

relação causal entre essas cenas torna-se ambígua. Jackie Brown organiza a maior parte da

história e a relação de causa e efeito entre uma cena e outra, dispostas nessa ordem, estão

trama em ordem linear e simultaneamente questiona o fato de essas cenas ordenadas cro-

subordinadas à manipulação arbitrária do narrador. A música, os letreiros e subtítulos, a

nologicamente dependerem de uma causalidade centrada nos personagens.

tela dividida, o estilo distanciado e os tempos que se prolongam questionam a importân-

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cia da cadeia causal que une cenas dispostas em ordem cronológica. Em outras palavras, a relação causal entre essas cenas torna-se ambígua. Jackie Brown organiza a maior parte da trama em ordem linear e simultaneamente questiona o fato de essas cenas ordenadas cronologicamente dependerem de uma causalidade centrada nos personagens.

disso, você sabe que Beaumont faria qualquer coisa para evitar ficar dez anos, inclusive contar para o governo federal tudo que quisesse saber sobre minha bunda negra. Então, âmigo, esse é um caso evidente de ou eu ou ele. E pode acreditar que não serei eu. 13. Ordell: Algum ressentido estourou os miolos de Beaumont.., [A tautofonia não ocorre em português.]

12. Louis: Quem era esse? Ordell: Era Beaumont. Louis: Quem é Beaumont? Ordell: Um empregado que tive de despachar. Louis: O que ele fez? Ordell: Ele se colocou numa posição tal que ia ter de passar dez anos na cadeia, foi isso que ele fez E se você conhece o Beaumont, satre que não tem jeito de ele não passaÍ dez anos. E se você sabe

to mostra o mesmo momento da história, segundo personagens diversos. O narrador segue

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Max: Você não entrou na revolução dos CDs?

comentar a forte influência que a cultura de massas, e Hollywood em especial, exercem na

Jackie: Só um pouco. Mas não tenho condições de começar tudo de novo. Investi

vida do americano. Tarantino não foi, evidentemente, o primeiro cineasta a tratar do consu-

muito tempo e dinheiro nos meus discos.

mo na sociedade contemporânea (lembrar Godard em Acossad [Àbout de soufflel]);porém, é dos mais eficazes quando se trata de mostrar a relação íntima e cotidiana do homem contemporâneo, sem culpa ou neurose, com o consumo e a cultura de massas. É também talvez quem melhor expresse a influência e o poder de Hollywood na vida cotidiana do americano

14. Max: Mrs. Brown, I’m Max Cherrn your bail bondsman. 15. Com a mesma música que inicia o filme Coffy (1973, de Jack Hill), protagonizado por Pam Grier.

médio. Os personagens entusiasmados com a música pop, o cinema, a televisão e o fast-

Coloca o vinil, entra a música, chamada “Didn’t I blow your mind this time”. Max: É verdade, mas não dá para conseguir novidades em vinil. Jackie: Não compro novidades com tanta frequência.

food levaram parte da crítica a afirmar que o cineasta celebrava de forma acrítica todo tipo

Posteriormente, Max entra numa loja e compra a música do The Delfonics em fita cas-

de cultura de massas, em particular aquelas de mais baixa qualidade. Jackie Brown mostra,

sete, e a escuta no carro. Ordell é um personagem de transição na relação com a cultura

no entanto, que a relação de Tarantino com a cultura de massas é ambígua; por exemplo, a

de massas, situado entre personagens Pulp fiction, como Jules e Vincent’ e outros mais

celebração parcial de Pulp fiction contrasta com a crítica do roteiro de Assassinos por na-

característicos do universo de Jackie Brown, como Jackie, Max e Louis, Ordell é um ho-

tureza. Grande parte dessa ambiguidade provém da predileção por um consumo de baixo

mem de negócios obsessivo no trabalho. Se Melanie e Louis fumam haxixe e olham com

custo e da afeição por objetos ligados a um passado recente) os anos 1970, como carros,

interesse filmes na televisão, ordell, em contrapartida, trabalha o tempo todo.Sua relação

rádios, fitas cassete, discos de vinil, uma escolha oposta à predileção por objetos e hábitos

com Hollywood é pragmática: o único filme que prende sua atenção é um vídeo de promo-

caros apoiados em novidades tecnológicas. Jackie Brown confirma essa relação ambígua ao

ção de armas. Ele aproveita o que sabe de filmes de ação para conhecer as preferências dos

expor um ponto de vista abertamente crítico sobre certos aspectos da cultura de massas e

clientes,dado que os filmes de Hollywood promovem as armas que ele depois vende.

da sociedade de consumo e ao evocar com respeito os filmes blaxploitation Há certamente

Ordell mostra o vídeo para Louis’ explica como as vendas de tal ou qual arma dependem de

uma notória diminuição de referências explícitas e conversas sobre cultura de massas e

sua utilização em filmes de sucesso, e como,graças ao cinema, ele lucra muito. Vejamos em

fast-food. Além de Beaumont, também os outros personagens (Melanie, Sheronda, Simo-

detalhes a cena em que Ordell mostra o vídeo de propaganda de armas,Chicks Who loves

ne) que têm uma ligação estreita com a cultura de massas, ou que se deixam fascinar por

guns, a Louis. A própria fita é uma amostra da influência de Hollywood no mundo real. Pri-

ela, são colocados sob uma lente desencantada. Iâ os três personagens principais, a aero-

meiro, Ordell critica a popularidade e o status do crime nos Estados Unidos:

16. Max: You neyer got into the whole CD revolution? Jackie: I got a few. But I can’t afford to start all over again. I got too much time and money invested in my records. Max: Yes, but you can’t get new stuff on records. Jackie: I don’t buy new stuff that often.

Uma das preocupações fundamentais de Tarantino em Cães de aluguel e Pulp fiction era

moça Jackie, o agente de fianças Max Cherry e o traficante Ordell, não têm uma ligação obsessiva com a cultura de massas. Eles mostram somente um gosto pela música soul dos

Ordell: Essa Tec 9? Eles a anunciam como sendo a arma mais popular no mundo do

anos 1970, expresso na referência a uma canção romântica do grupo The Delfonics, que se

Crime americano.Você acredita numa merda dessas? No folheto que vem junto com

torna símbolo do sentimento de perda da juventude e de uma época passada e mítica da

ela,está até escrito: ”A arma mais popular do cinema americano”,como se tivessem

Califórnia. Lembremos a cena. Na sua casa, Jackie, acompanhada de Max, pega um vinil de

orgulho dessa merda.

um grupo dos anos 1970 chamado The Delfonics.

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Ordell: A merda é cara,meu.Vem da Áustria.Meus fregueses não estão por dentro, então, ninguém pede.(...) Mas é só colocar aquele cara mau num filme e todo

rânea, temos Jackie, mulher afro-americana e proletária, e Max, agente de fianças. Ambos mostram certo grau de introspecção, valores próprios e maturidade, que facilitam a mútua sintonia. Tarantino indica a introspecção com closes dos rostos, que ocupam toda a tela e

mundo quer uma. Tô falando sério. Aí apareceram os filmes de Hong Kong’ e todo

são tratados como paisagens, e lentos movimentos de câmera, que se aproximam dos olha-

negão quer ter uma 45. E eles não querem uma, querem duas, porque o negão quer 9 mm. A arma é quase igual, sem aqueles problemas de emperramento. Mas, pra

res. Um travelling ao rosto e o olhar-se no espelho conformam o momento-chave de dúvida

alguns negões aí na rua, não adianta dizer nada’ Eles querem uma 45. O matador ser”o matador”. O eles não sabem, e o filme não conta, é que a 45 tem sérios

de trocar as sacolas com o dinheiro. Jackie olha para sua imagem no espelho com medo;

e enfrentamento consigo mesma de Jackie. Ela está no provador da loja do shopping, antes sabe que os próximos acontecimentos decidirão o rumo de sua vida.

problemas de emperramento. Sempre aconselho e ofereço pros meus clientes uma tinha uma 45, eles querem uma 45. A referência irônica a O matador (The killer) de John Woo e ao cinema de Hong Kong

17. Ordell: This Tec 9? They advertise it as being the most popular gun in American crime’ can you belive thar ,rriti rt u.tr,áif ,ays that on th. little booklei that comes with it. “Most popular gun in American crime”, like they’ re proud of that shit. 18. Ordell: Shit,s expensive, man from Austria. My customers don t know shit about it, so there ain’t no demand. t. ‘l ri”ip”t tftat bad boy in a flick’ every motherfucker out there want one’ I’m

é parte de um movimento consciente de Tarantino de responder às críticas em relação à celebração da cultura de massas e ao seu fascínio pelo cinema de ação. Toca o telefone. Ordell atende e fala com um cliente. Quando volta, agrega: Ordell: Tá vendo, o que foi que eu disse? O homem em Nova York quer uma 9 mm Smith e Wesson modelo 5946. Por que ele quer essa? É a arma que aquele negão do New York Undercover usa. Por causa daquele negão, posso vendê-la para esse negão por 1.250. A ligação de outros personagens com a cultura de massas é descrita com ceticismo: Melanie, a amante de Ordell, que vive fumando haxixe e vendo televisão; Simone, outra amante de Ordell, que faz uma patética imitação das Supremes; e ainda Sheronda, a pobre jovem do interior que vai viver na casa de Ordell em Compton, bairro afro-americano pobre, achando que é Hollywood, um dos privilegiados de Los Angeles. A própria clientela de Ordell é

serious as a heart attack. Then Hong Kong movies came out, every nigga gotta have a .45. And they don’ t want one, they want t!vo, cause nigga want to be “the killer”. What they don’t know, and that movie don’ t tell you, is a .45 has serious fuckin’ jammin’ problem. I always try and steer a customer towards a 9-mm. Damn near the same weapon, don’t have half the jammin’ problems. But some niggas out there, you can’t tell them anything. They want a .45. The killer had a .45, they want a .45.

Depois, Ordell conta como é decisivo para as vendas que as armas apareçam em filmes:

ridicularizada por este, e é composta, segundo Melanie, de drogados. Melanie também diz a Louis que o conhecimento de armas que Ordell exibe se resume a apenas repetir coisas que ouviu. Como polo oposto, distanciados do consumo e da cultura de massas contempo-

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19. Ordell: See, what did I tell you? Man in New York wants a 9-mm Smith and Wesson model 5946. Why does he want it? It’s the gun that nigga on New York Undercover tses. Because of that nigga, I can sell it to this nigga for twelve-fifty.

Em Jackie Brown,Tarantino continua sua busca de uma ética num mundo individualista e cético, onde as antigas noções de moral fundamentadas no dever cívico ou na religião estão em decadência. Trata-se de respeitar pequenos códigos que valorizem a lealdade, a amizade sem interesse e a honestidade (a palavra para cumprir acordos). se, em cães de aluguel, a validade da lealdade e da camaradagem eramquestionadas pela falta de raciocínio de personagens como Mr. White e Mr. Blonde Jackie Brown postula a necessidade de reflexão, maturidade e inteligência para construir uma moral e uma ética. A transparência e a

20. Jackie: I didn’t use You, Max. Mar I didn’t saY You did. Jackie: I never lied to You’ Max: I know. Jackie: We’re Partners. Max: I’m fifty years old. I can’t blame anybody for anything I do.

À procura da moral

maturidade ajudam pessoas como Jackie e Max, mas o individualismo sem reflexão e a imaturidade levam outras, como Ordell, Melanie e Louis, à destruição. Max ajuda Jackie sem pedir nada em troca. Em contrapartida, Jackie é sempre honesta e transparente com Max. A amizade desinteressada entre ambos, num contexto complicado, que poderia levar a suspeitas e traições, aponta para a possibilidade de construir relações humanas profundas e sólidas numa sociedade contemporânea individualista e cética. Um diálogo da cena final entre Jackie e Max resume a relação desinteressada entre ambos. O local é o escritório de Max: Jackie: Eu não te usei, Max. Max: Eu não disse isso. Jackie: Nunca menti Para você. Max: Eu sei. Jackie: Somos sócios. Max: Tenho 50 anos. Não posso mais responsabilizar alguém pelo que faço. “Tenho cinquenta anos. Não posso mais responsabilizar alguém pelo que faço.” Uma frase fantástica, longe do melodrama e, portanto’ da vitimização dos personagens, que resume todo o poder desse pequeno grande filme.

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5 KILL BILL 1 E 2, À PROVA DE MORTE E BASTARDOS INGLÓRIOS: A CONCLUSÃO DE UM MESTRE DO CINEMA*

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Kill Bill, os filmes de artes marciais e o western

sobretudo em relação a Pulp fiction e Jackie Brown. No entanto, o filme como um todo, como projeto de cinema, deixa dúvidas. Ele cansa e deixa um pouco desconcertados aqueles que acompanhavam de perto sua obra, mas, em particular, aqueles que tinham apreciado

Depois de um longo intervalo, é lançado o quarto longa-metragem de Quentin Tarantino, Kill Bill l, em 2003, seis anos depois de Jackie Brown (1997). Um ano depois, em 2004, é lançado Kill Bill 2. Trata-se de um projeto que era originalmente um filme só. Porém, dada sua grande duração, a empresa produtora decidiu dividir a obra em duas partes, por razões comerciais. Kill Bill é uma história de vingança de uma personagem mulher, a Noiva, numa clara citação e influência de fiImes exploitation importantes dos anos 1970, em que a atriz Pam Grier encarnava a protagonista vingativa (.F oxy Brou,n, Colíy). Kill Bill é um filme de artes marciais combinado com western e spaguetti western. Tal combinação singular já é introduzida pelo próprio ator que encarna Biil, David Carradine, protagonista do seriado KungFu,em que interpretava o personagem Kwai chang caine,um chinês que percorria a pé o velho oeste americano. Uma característica singular de Kill Bill é que o próprio Bill só aparece na segunda parte, no último trecho do filme. Kill Bill continua

muito Jackie Brown. Onde estão as sutilezas dos cinemas dos anos 1960, a influência de Godard, de Jean Pierre Melville? Onde está a concisão do cinema clássico americano, de um Howard Hawks? Com exceção da primeira cena, onde estão as fantásticas cenas de diálogo e humor pós-moderno, tão características de seus filmes? Em Kill Bill 1, vemos um diretor mergulhando de cabeça no universo exploitation americano e asiático, com resultados estéticos interessantes, porém, de maneira algo autocomplacente e repetitiva. Parece-me que, quando os personagens saem dos Estados unidos e chegam à Ásia, o filme perde rigor; parece que falta distanciamento ao diretor para lidar com uma cultura não ocidental.Daí que Kill Bill 1 seja aquele filme em que há mais citações claramente reconhecíveis, um mar de citações e referências a outros filmes. Há certamente em Tarantino um encantamento com o universo das artes marciais, em particular com os filmes dos anos 1960 e 1970,que acredito o fez ganhar um novo público, mais jovem.

o projeto de Tarantino de resgatar gêneros e formas de fazer cinemas marginais e fazer duas coisas ao mesmo tempo: um fi1me exploitation e um filme de arte, tudo dentro da indústria contemporânea de Hollywood. Ao mesmo tempo, Kill Bill é um projeto do diretor de fugir da etiqueta de diretor de filmes pequenos, de arte; assim, negocia com a indústria para se transformar num diretor americano com maiúsculas. O filme apresenta o claro objetivo de Tarantino de realizar uma história simples, pós-moderna, próxima do universo dos quadrinhos. É também um projeto em que o cineasta quis testar seus limites como diretor, em virtude das muitas cenas de ação de diversos estilos e em diversas locações e dos personagens bem diversos. Ao assistir a Kill Bill 1, comprovamos que Tarantino melhorou de verdade como encenador e como diretor: as cenas de ação são muito sofisticadas e estão mais bem filmada s; o design de produção e a fotografia mostram sofisticação, bom gosto e até mesmo um luxo estético não apresentado antes; a montagem do filme é mais precisa,

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morte de Bill, que diz”Pai Mei te ensinou até técnica dos cinco dedos que explodem o coração?”, para depois andar no jardim e cair como um boneco, mostram um diretor magistral, em pleno domínio de suas funções. Essa é uma cena que o DVD nos permite rever dezenas

Encenação em profundidade e design de produção em Kill Bill

*Parte do escrito aqui sobre Bastardos inglórios foi publicada como artigo na revista Teorema 15,Porto Alegre, dez. 2009, com o título “Mestre do estilo: Com Bastardos inglórios Quentin Tarantino realiza sua obra prima e assegura seu lugar ao lado dos grandes mestres da história do cinema.

de vezes e que tem a aura de perfeição de outras cenas memoráveis da história do cinema. Tarantino é, antes de cineasta, um grande cinéfilo. O cinéfilo sabe que um filme se constitui

A trajetória de Quentin Tarantino mostra a passagem de uma fase de produções de bai-

de grandes cenas, cenas tão bem realizadas que possam ser usufruídas isoladamente, uma

xo custo e da opção de investir em direção de arte e fotografia analógicas (Cães de aluguel,

lição do mestre do estilo clássico Howard Hawks, uma das referências centrais dos jovens

Pulp fiction) para uma fase de maiores orçamentos, consolidação da pós-produçao digital e

críticos dos Cahiers du Cinéma dos anos 1950, na hora de escrever sua política dos autores.

grande investimento no chamado production design ou design de produção (Kill Bill, Bas-

No entanto, os dois Kill Bill não têm o peso de um Pulp fiction para pensar o cinema e o

tardos inglórios). Com o avanço da tecnologia digital, o design de produção ganha cada vez

mundo contemporâneo por meio do consumo, nem a precisão estilística e a força de Cães

mais espaço e tira da fotografia o lugar central no que é relativo à criação de uma atmosfera

de aluguel, nem a maturidade da reflexão sobre a passagem do tempo de Jackie Brown.

visual única para cada filme. Esse fato se comprova pela ascensão da figura do designer de produção, em particular nas produções hollywoodianas. Hoje, o nome do designer de produção aparece separado nos créditos, antes do montador e do autor da trilha sonora, algo impensável na Hollywood clássica. A tecnologia digital amplia muito a manipulação e a alteração do já filmado, o que provoca um controle maior da imagem final. A isso se soma a existência de uma corrente estética forte no cinema contemporâneo, pós- moderna, que valoriza uma imagem estetizada. Trata-se de um tipo de imagem em que o referente perde importância. Conforme os processos de manipulação digital avançam, a chamada realidade pró-fílmica perde importância: cenários, objetos, figurinos, quase tudo é passível de ser recriado na fase de pós-produção. Passamos de uma direção de arte, identificada com a fotografia em película, sem pós-produção digital, em que cenário e objetos eram organizados para serem captados por uma câmera, para um design de produção, função que subordina os efeitos especiais e o figurino. Em grandes produções, o designe produção não só tem a função de pensar a concepção usual relativa a locações, cenários, móveis e objetos de um filme, como também compreende todos os produtos relacionados a ele. . Nessa definição mais ampla do que a antiga definição de direção de arte, design de produção implica portanto, não só o filme, mas também DVDs, CDs, cartazes, roteiro, trailer. Pensar num filme

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de Tarantino implica pensar também no cD que contém sua trilha singular. As trilhas dos

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filmes de Tarantino são extremamente populares; CDs e DVDs de Pulp fiction e cia. vendem muito. Isso desde o primeiro filme, Cães de aluguel. E a capa dos CDs dos filmes de Tarantino contêm seu projeto d,e design de produção. o design de produção de Kill Biil 2 é muito heterogêneo, sua unidade parte da multiplicidade, da conjunção de uma infinidade de texturas de imagens e alusões a cinemas e estilos do passado. Apresenta cenários e figurinos queseriam impossíveis de serem pensados num filme clássico ou mesmo num filme pós-clássico. Da mesma forma como o estilo cinematográfico de Tarantino relativo à decupagem e à montagem é um acabado exemplo de pós-modernidade sofisticada, o design de produção de Kiil Bill é também a quinta-essência da unicidade dentro de uma grande variedade. E o princípio unificador do design de produção de Kill Bill 1 e 2 é a prática da paródia e do pastiche, porém, com sofisticação e investimento tais que essas práticas já criam um universo pós-moderno único, identificável à assinatura do cineasta. Comparemos a imagem do personagem de uma Thurman, vestida de noiva, dirigindo, numa fotografia em preto e branco, com fundo projetado (back projection), técnica hollywoodiana dos anos 1940 e 1950 que costuma lembrar Alfred Hitchcock, com as cenas entre o mestre pai Mei e a Noiva, cujo design de produção e cuja textura de imagem evocam os filmes de artes marciais de cores desgastadas dos anos 1970. Qual a unidade entre essas duas imagens? A princípio, nenhuma. Um espectador de 20, 30 anos atrás se chocaria com essa diversidade. Uma análise mais cuidadosa poderá, sim, perceber uma unidade estilística pós-moderna de alusão, citação e recriação criativa. A diversidade de concepção de imagens e design de produção é ainda mais evidente quando lembramos o salto do último plano da segunda cena, “o massacre de Two Pines” para a primeira imagem que segue: o filme passa de uma capela no meio do deserto, filmada em preto e branco num exterior de luz cinza, para uma cena de um deserto de cores fortes, vivas, extremamente iluminada. As cores do deserto são mais do que naturalistas, elas foram acentuadas para obter um efeito hiper-real. Houve aqui notoriamente a escolha do diretor em acentuar as diferenças entre as imagens, ambas correspondendo a geografias relativamente próximas (o deserto americano do Meio Oeste).

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As múltiplas abordagens de Quentin Tarantino para a imagem de Kill Bill são lembradas pelo diretor de fotografia Robert Richardson: Uma das primeiras afirmações de Quentin foi que ele queria que cada capítulo do roteiro fosse como um rolo de um filme diferente. Ele

Encenação em profundidade em Kill Bill 2 Abertura e o massacre de Two Pines

queria entrar e sair de vários estilos reconhecidos na hora de lidar com todos esses gêneros (western,melodrama, thriller,horror). Tinha um conhecimento absoluto do look de cada

Analisemos agora a encenação em profundidade do filme e sua proposta de imagem.

sequência. (Pavlus 2003, p. 36) Richardson acrescenta que os conceitos de Tarantino sobre

Cena de abertura. Plano inicial do filme. Close da Noiva. A imagem é inspirada no gênero

cada capítulo eram tão específicos e variados que o diretor pensou inicialmente em chamar

de terror. Trata-se de uma imagem gótica. A fotografia é muito contrastada, a lente é do

três diretores de fotografia diferentes, “mas, no final, Quentin decidiu contratar uma pes-

tipo normal, possivelmente 50 mm’ a luz é muito lateral’ o que acentua os contrastes entre

soa, provavelmente para manter as coisas consistentes em relação a uma grande produção”

o lado iluminado da face e o lado escuro. A equipe de fotografia optou por usar pouco reba-

(ibid., p. 36). Para pensar a fotografia de Kill Bill, Robert Richardson assume que assistiu a

timento’ o que diminui as diferenças entre ambos os lados do rosto. O véu de noiva aparece

mais de 200 filmes, concentrando-se nos de artes marciais originários de Hong Kong (Lady

manchado de sangue. A imagem mostra não apenas sangue, mas também uma materiali-

snowblood [Shurayuki Hime], Era uma vez na China [wong Fei Hung]) e nos americanos

dade de carne e sangue, como demonstram as feridas na boca, nos dentes e a pele rasgada.

exploitation da década de 1970 (Coffy; Black Mama, white Mama). Como bem observa o ar-

Aqui, fotografia e design de produção evocam uma violência maior do que a mostrada,

ticulista John Pavlus na revista American Cinematographer, com a quantidade de gêneros

dado o enquadramento que deixa fora de quadro grande parte da informação e a opção pelo

e subgêneros a processar, somada à escala de produção global (o filme foi rodado na china,

preto e branco, que suaviza o choque causado pela quantidade de sangue. O filme corta para

no Japão, no México e na Califórnia), a principal preocupação do fotógrafo era manter a

o personagem de Uma Thurman, que fala para câmera resume a narrativa de vingança para

consistência visual do projeto (ibid.).É importante destacar uma afirmação de Richardson,

o espectador. No final da fala, ela diz: “Eu vou matar Bill” (“I’m gonna Kill Bill”), dando lugar

que confirma uma das hipóteses de minha pesquisa. Pavlus escreve que o fotógrafo “credita

aos créditos. A imagem evoca os anos 1950, pelo design do carro conversível, pela fotogra-

à elaborada mise-en-scène de Tarantino (desenvolvida em colaboração com os designers de

fia suavizada em e preto e branco. A fotografia é de contraluz; é uma imagem suave, com

produção Yohei Taneda e David Wasco) a maior parte da tarefa” (ibid.) no que se relaciona

vários níveis de preto e branco, evocando o glamour das imagens do cinema da era clássica.

à imagem do filme. “O look do filme já estava basicamente definido bem antes de meu en-

A lente utilizada é uma teleobjetiva,que tende a criar imagens pictóricas e belas’ ao mostrar

volvimento” (ibid.), observa Richardson.

o personagem em foco e o fundo borrado, fora de foco. À primeira vista, há um claro efeito

Em conclusão, o fotógrafo afirma que Tarantino trabalhou antes a imagem de Kilt Bill

de fundo projetado(back projection),que evoca o cinema dos anos l950 e,particularmente,o

com os designers de produção I À afirmação de Richardson, soma-se o próprio artigo de

de Alfred Hitchcock. Porém, numa análise acurada, percebemos que o efeito não é de fundo

John Pavlus, publicado numa revista técnica (American Cinematographer) de alta legitimi-

projetado, mas um efeito especial, combinação de design de produção e fotografia, que evo-

dade perante a indústria. A prática da indústria cinematográfica está colocando o design

ca o procedimento de antanho, mas estabelece uma diferença sutil e significativa. No fundo

de produção no mesmo nível da direção de fotografia, algo impensável duas décadas atrás.

projetado de Kill Bill 2,a personagem vem em direção à câmera e as coisas se afastam, em fluxo invertido. Analisando as imagens da Noiva e o fundo projetado,parece que o vidro do parabrisa do carro não provoca nenhuma diferença

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significativa na paisagem. A esse efeito,soma-se o travelling em direção ao rosto do personagem, outra diferença em relação aos filmes dos anos 1950. Por questões de estilo, o paradigma do cinema clássico não comportava uma cena em que o personagem olhasse e falasse para a câmera.Esse procedimento é um legado dos cinemas modernos e da nouvelle,vague, mais concretamente de Jean-Luc Godard. Lembremos, por exemplo , Acossado (À bout de souffle) e os movimentos de câmera ao redor do rosto de Ana Karina em Alphaville.

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O massacre de Two Pines

“O massacre de Two Pines” começa com a narração do personagem de Uma Thurman, que apresenta os fatos de forma distanciada e até irônica. Vemos uma primeira imagem. Plano geral de cima, leve plongée,lente levemente grande-angular. A imagem tem um certo tom clássico: o preto e branco é naturalista, a cena é externa. Vemos uma capela modesta, branca, e um pinheiro. No interior da capela, móveis de madeira rústicos e austeros. No plano de conjunto, a noiva e o noivo ouvem o pregador e sua mulher. o filme utiliza muita contraluz (observar a luz branca na cabeça dos personagens), o que gera uma espécie de aura nas cabeças do casal. Trata- se de uma acentuação exagerada da técnica clássica de

Beatrix Kiddo e Bill Kill Bill 2 (2004)

iluminação: uma fonte principal de luz, uma luz de recheio e outra de contraluz, que dão volume aos personagens. Ao radicalizá-la, o filme mostra a técnica utilizada, o espectador fica consciente da artificialidade da luz. A imagem denota que foi usada uma lente grande-angular. Isso dá uma certa deformação ao ambiente e aos personagens, amplia o espaço lateral e permite mais profundidade de campo. Já mencionamos que a encenação em diversos níveis de profundidade é uma das técnicas favoritas de Quentin Tarantino e uma das técnicas cinematográficas mais subestimadas e esquecidas da história do cinema. Há um forte contraste cultural entre os móveis de madeira rústicos e as roupas bem pop e informais do noivo e dos quatro amigos do casal. Por um lado, cenário rústico de western;por outro, roupas bem contemporâneas e informais, oriundas da cultura pop. Os planos nessa cena privilegiam a iluminação por trás, para criar glamour. Essa iluminação dá mais volume físico aos personagens. A cena tem uma presença maior da luz do que o costume. Dessa forma, fica mais pictórica e é protagonista da cena.

A cena acontece no deserto, que é conhecido por ter uma luz forte, cansativa para o olhar do ser humano. o filme abusa desse fato, de estar no deserto, para de novo exagerar essa luz que cega, que cansa a visão. Tarantino aproveita uma condição real, o deserto, para criar um efeito de hiper-realidade e artificialidade. Do tratamento clássico e naturalista do western dos anos 1940 e 1950, passamos para uma imagem estilizada e com certa artificialidade, que, porém, não perde a referência do real. Se essa referência fosse perdida, não haveria espaço para trabalhar com o universo do western. A principal fonte de luz vem da porta, do deserto e, em outro plano de abstração, pertence ao universo do western. A luz exagerada dá mais volume a personagens e cenografia. Luz forte e lente grande-angular permitem uma enorme profundidade de campo, maior capacidade de encenação em profundidade, sem ter de recorrer a cortes, e um maior aproveitamento da cenografia. Há vários níveis de profundidade que podem ser aproveitados pela encenação: o primeiro, o do casal; o segundo, o do banco e do braço do acompanhante (canto direito); o terceiro, o das amigas conversando; o quarto, o do amigo, um pouco atrás; o quinto nível de profundidade, o dos móveis que estão contra a parede da capela e as janelas; o sexto nível, o do deserto.

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Beatrix Kiddo Kill Bill 2 (2004)

Vamos agora para o momento em que Kill Bill cita e recria o famoso plano de Rastros de ódio (The searchers, 1956, de John Ford). Longe de uma citação gratuita de um cinema pós-moderno que abusa do pastiche (caso de De palma), a alusão simboliza os paralelismos na narrativa de vingança da Noiva e de Ethan (personagem de John Wape). Se Ethan percorre o oeste americano em busca de sua sobrinha, raptada pelos índios, a Noiva vai percorrer, de carro e de avião, os Estados Unidos e o Oriente, à procura de Bill. Citação e recriação, repetição e diferença. Paródia e não pastiche. O plano da Noiva recortada pela moldura da porta e, no fundo, o deserto recriam um tempo passado, próprio do western. A cena cria uma suspensão de tempo em que o espectador cinéfilo parece antever ou até desejar a aparição da figura majestosa de John Wayne. Esse plano é dos melhores exemplos de como foi criada uma luz para gerar profundidade e aproveitar melhor o design de produção. Por um lado, vemos as luzes e o teto, num primeiro nível; depois, a moldura da porta; depois, a paisagem do deserto, com a luz quase estourada. Há um claro sentido simbólico ao escolher uma imagem com pontos de clareza e pontos de escuridão total.

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Cena do filme Kill Bill 2 Kill Bill 2 (2004) 26/11/2013 21:08:03


Esse filme é parte do projeto Grindhouse (2007), em parceria com Robert Rodriguez, autor de Planeta Terror (Planet Terror,2007), e outros três cineastas,autores de trailers falsos. Evoca os filmes de terror exibidos em programas duplos nos Estados unidos nos anos 1970, em salas denominadas grindhouses*. Esses filmes e a forma de serem exibidos acabaram nos anos 1980 com a chegada do vídeo, assim como todo o universo exploitation que Tarantino costuma citar e recriar. À prova de morre mostra um dublê de Hollyrvood (Stunt-

Shanna Death Proof (2007)

man Mike, interpretado por Kurt Russel), que anda num carro preparado para aguentar

Talvez, em parte, por ser bastante limitado o universo cinematográfico citado e recriado,

qualquer tipo de batida. Esse dublê é obcecado por garotas e transforma seu carro numa

o filme não tem o brilho dos filmes anteriores de Tarantino. Há uma mudança muito inte-

arma letal. O mais interessante do filme são a fotografia e o design de produção. A ideia do

ressante na segunda parte, aquela das perseguições de carro, e o diretor assume mais riscos

diretor é reproduzir as cores desgastadas e os saltos na película que esses filmes costuma-

artísticos nesse filme do que se possa pensar. À prova de morte foi lançado fora dos Estados

vam ter quando exibidos em cópias já muito rodadas. O filme apresenta características bem

Unidos separadamente, o que certamente tira parte de sua força. Dois anos depois, seria

próprias do Tarantino de Kill Bill 1 e 2: a predileção por longas cenas e longos diálogos, que

lançado Bastardos inglórios, um projeto de mais de dez anos do cineasta, um grande filme.

se esticam além do habitual numa proposta clássica, e a combinação desse procedimento com longas cenas de ação, nesse caso, extensas perseguições de carro, outro desafio formal para o cineasta.

* Salas de cinema decadentes, que ofereciam sessões duplas (dois filmes pelo preço de um ingresso), geralmente exibindo filmes pornográficos, de terror e do gênero exploitation.

À prova de morte

Dublê Mike Death Proof (2007)

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Julie Death Proof (2007) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 232-233

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Bastardos inglórios, a obra-prima de Quentin Tarantino

Recentemente, depois da saga Kill Bill e de À prova de morte, fazia sentido se perguntar qual seria o lugar de Tarantino na história do cinema. Seria apenas um grande cineasta dos anos 1990 que virou um excelente artesão com Kill Bill? Bastardos inglórios o confirma como um dos poucos diretores contemporâneos que “obrigam” as pessoas a assistir a seus

Bastardos inglórios é uma obra-prima que coloca Tarantino junto dos grandes da his-

filmes nas salas de cinema. Esse filme era um projeto de mais de dez anos. Tarantino tinha

tória do cinema, John Ford, Orson Wel1es, Federico Fellini e outros. Tarantino é hoje um

um roteiro de extensão tal que chegou a pensar em fazer dele uma série de televisão com

mestre do estilo, um mestre das formas cinematográficas trabalhadas na melhor tradição

vários capítulos. Num jantar com o diretor francês Jean-Luc Besson, este disse a Tarantino

do cinema de gênero americano. Mestre das formas como foi Alfred Hitchcock no passa-

que essa decisão seria uma pena, pois era dos poucos diretores contemporâneos que ainda

do, mestre dos filmes de gênero como foram, entre outros, o próprio Hitchcock, Anthony

o faziam assistir a filmes na tela do cinema. Isso levou Tarantino a repensar o projeto e es-

Mann e Howard Hawks. Tarantino é um cineasta que adora contar histórias e que, para-

crever uma versão para um longa-metragem. Besson tinha razão. Não faz sentido deixar de

doxalmente, por ser um mestre do estilo, leva-nos a desfrutar de seus filmes também de

ver um novo fi1me de Tarantino na tela grande para esperar a versão em DVD, hábito muito

forma independente das histórias que narra. Bastardos inglórios é seu filme mais perfeito,

acorde aos dias atuais, de popularização dos aparelhos de televisão widescreen.

o mais preciso na dramaturgia, o mais bem dirigido, em que a herança do melhor do cinema

Como acontece também com, por exemplo, filmes de Michael Mann (Miami Vice,2006)

clássico e de gênero americano é sintetizada num projeto de cinema pós-moderno para o

ou David Lynch (Cidade dos sonhos [Mulholland Drive),2001), esperamos a versão em

futuro do século XXI.

DVD apenas para rever os filmes e/ou para voltar a usufruir das melhores cenas. Bastar-

A cena inicial de Bastardos inglórios provoca no espectador a mesma expressão de boca

dos inglórios, com sua arrojada reescrita da história e sua mise-en-scène virtuosa, coloca

aberta e assombro que provocava a cena inicial de cães de aluguel, aquela clássica cena da

Tarantino como um diretor a ser observado durante décadas, por várias razões: é um gran-

câmera circular na mesa da lanchonete enquanto os assaltantes discutem sobre Madonna e

de roteirista, é um diretor de atores cada vez melhor, chegando ao virtuosismo; tem um

dar ou não dar gorjeta. Trata-se do êxtase do cinéfilo, da estupefação e do prazer que ocor-

talento especial para as trilhas sonoras, uma paleta de cores característica e uma variação

rem raramente no espectador perante uma cena, o momento em que ela chega à perfeição:

estilística significativa entre as cenas.

atores, câmera, montagem, música. Esse êxtase do cinéfilo, tão bem lembrado por Woody Allen no início de sonhos de um sedutor (Play it again, Sam, 1972), quando seu personagem não conseguia fechar a boca de admiração ao assistir a Bogart na cena final de Casablanca.É esse momento de assombro, de prazer, que suspende o ego do espectador, que Bastardos inglórios provoca em várias cenas. Hoje, na primeira década do século XXI, é impossível pensar em cinema contemporâneo sem falar de Quentin Tarantino, cineasta americano nascido em Los Angeles em 1962. Aqueles que acharam Cães de aluguel a primeira obra de um gênio do cinema estavam certos.

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Tenente Aldo Raine e Sargento Donny Donowitz Bastardos Inglรณrios (2009)

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Numa era em que a arte da mise-en-scène, chave do grande cinema, é cada vez mais ignorada, Bastardos inglórios nos presenteia, por exemplo, com a cena inicial, do camponês francês Pierre LaPadite e o coronel alemão Landa, interpretado magistralmente por Christoph Waltz. O início da longa cena lembra, pela música, pela fotografia e pelos longos tempos, o western e os mestres John Ford e Sergio Leone. O confronto entre LaPadite e Landa é uma obra-prima em si e pode ser considerado, no que diz respeito à direção de ator, uma das dez melhores cenas da história do cinema. Cena pós-moderna por excelência, reúne dois estilos de interpretação e dois tipos de personagem aparentemente inconciliáveis, um dramático clássico, LaPadite, e um humorístico pós-moderno, Landa. O camponês francês, interpretado com precisão por Denis Menochet, é um personagem ancorado no drama dos anos 1940; não há em LaPadite nenhum traço de ironia ou leveza pós-moderna. Mas Tarantino nos mostra como o camponês se prepara para enfrentar os nazistas com

Coronel Hans Landa Bastardos Inglórios (2009)

uma performance estudada, calculada. Há no personagem uma cisão entre seu programa e a performance, a divisão e o cálculo mental do personagem introduzidos pelos cinemas da modernidade.

LaPadite se movimenta pouco, tenta mostrar calma e autocontrole, já Landa se exibe, mostra extrema educação e sofisticação, movimenta- se bastante e fala muito, fundamentalmente em duas línguas, francês e inglês. Waltz realiza com perfeição uma tarefa difícil e dupla, paradigma da interpretação pós- moderna: fazer um personagem, o coronel Landa, que é em si um ator de si mesmo. Algo que anteriormente John Travolta já havia feito muito bem em Pulp fiction,por exemplo, ou Michael Madsen em Cães de aluguel. Tarantino costuma colocar em seus filmes um personagem desse tipo, um personagem distanciado (Bill, por exemplo), emocionalmente frio, pouco realista, que olha com ironia o embate emocional daqueles personagens que se digladiam com a energia do drama clássico. O fato de Bastardos inglórios ser falado em três idiomas e, fundamentalmente, muito bem encenado e atuado nos três, é outro ponto a ser observado. Waltz, ator austríaco, atua com perfeição nos três idiomas e ainda mostra um bom italiano. Tarantino declarou que achar esse ator foi importantíssimo para que ele se decidisse a fazer o filme. Bastardos é o primeiro

Tenente Aldo Raine Bastardos Inglórios (2009)

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filme sobre a segunda Guerra Mundial a ter longas cenas interpretadas em três línguas, a superar aquilo que era um problema frequente nos filmes de guerra, como nazistas falando

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em inglês, francês etc., a utilizar a globalização cultural a seu favor, artisticamente falando. O filme passa de um idioma para outro com total maestria, sem que o espectador possa perceber nenhuma hesitação ou perda de nível na performance, quando, por exemplo, a cena muda do inglês para o alemão ou para o francês. se Bastardos inglórios é um filme que gera admiração por sua perfeição formal em vários aspectos, há que se destacar em particular a direção de atores, um verdadeiro marco do cinema contemporâneo. Primeiro, na escalação do elenco, tarefa que costuma ser metade do trabalho de um diretor. Novamente, quanto aos tipos físicos e à combinação destes entre si, o filme é excelente, sobretudo em relação aos personagens fora do universo dos bastardos. A menina judia francesa, Shosanna, a atriz espiã dos aliados, Bridget, o agente inglês, Archie Hicox, que fora crítico de cinema no pré guerra, o major das SS, Goebbels e, claro, Landa e Lapadite, todos são interpretados por atores muito bem escalados e extraordinariamente bem dirigidos (Mélanie Laurent, Diane Kruger, Michael Fassbender, Sylvester Groth). Brad Pitt, o tenente Aldo Raine, que curiosamente chega a trabalhar com Tarantino depois da melhor interpretação de sua vida (Queime depois de ler [Burn after reading], 2008, dos irmãos Coen), não é um dos pontos fortes do filme. sua caricatura é eficiente no início, mas não contém a sutileza e a ambiguidade do filme e se desgasta. E o que dizer da forma original e arriscada como Quentin Tarantino lida com a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto e, de modo geral, com a história? Uma tal abordagem iria certamente trazer críticas. Alguns argumentam que se trata de um tema muito sério para ser abordado com humor desse tipo, lúdico pós-moderno. E que, ao lidar com a história e com fatos reais, Tarantino não teria a liberdade que experimentou com, por exemplo, Kill Bill. Outros preferem o mundo ficcional pós- moderno por excelência criado em Pulp fiction. Este último é, sem dúvida, o filme mais original de Tarantino, mas, na minha opinião, trata-se de um roteiro excelente e urna direção boa, mas autoindulgente. Outra argumentação interessante é que Bastardos inglórios lembra demais um filme americano dos anos 1950. Essa dívida estilística do filme, notória, é realçada sutilmente quando o cineasta chama o líder dosbastardos de Aldo Raine, uma homenagem a AIdo Ray, ator dos anos 1950,

Shosanna Dreyfus Bastardos Inglórios (2009) LIVRO_TARANTINO-VERSÃO-FINAL.indd 240-241

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protagonista do excelente filme de guerra Os que sabem morrer(Men in war, 1957),de Anthony Mann. Estou entre aqueles que acham genial, se bem que ambígua, a reescrita da

Conclusões

história de Bastardos inglórios, realizada por meio do cinema, enfatizando o poder deste. Por um lado, em relação ao trauma do Holocausto e ao nazismo, o filme concretiza aquilo que muitos sonhavam fazer, a pura vingança, sem desculpas nem justificativas melodramá-

Os personagens dos filmes de Tarantino circulam num universo em que os gênero de

ticas. Essa parece ser uma resposta de Tarantino, amante dos filmes de violência e vingança

crime e violência se fusionam com digressões, pequenos momentos do cotidiano, represen-

americanos, à hipocrisia tão cara à chave melodramática do mesmo cinema americano. É

tações do lado prosaico da vida. O cinema de Tarantino confunde a separação convencional

também, segundo o filme, uma forma ambivalente de superar o trauma, visto que o tenente

entre atividades prosaicas ligadas ao mundo real (tomar café da manhã, ir ao banheiro, cir-

Aldo Raine marca os nazistas a fim de que eles sempre sejam reconhecidos como nazistas.

cular pela cidade) e atividades ligadas às representações da cultura de massas. Seus filmes

Mas, sem dúvida, o humor e a leveza pós-moderna deixam Bastardos inglórios ambi-

apresentam um mundo altamentecontaminado pela indústria do entretenimento, seja o

valente na sua relação com a história. Parece-me que, ao lidar com fatos históricos, com a

contemporâneo, seja a Segunda Guerra Mundial. A saída noturna de Vincent e Mia na casa

tradição do filme de guerra e, portanto, com o legado de grandes cineastas como Anthony

noturna retrô em Pulp fiction, os assaltantes vestidos de preto de cães de aluguel, as falas

Mann, Stanley Kubrick e Raoul Walsh, Tarantino ficou menos citacional, mais contador de

do personagem de Brad Pitt em Bastardos inglórios são exemplos paradigmáticos.

histórias e mais concentrado na maquinaria interna do filme propriamente dita. De certa

Daí a obsessão dos personagens pela comida, que mistura algo prosaico e elementar

forma, depois de seu primeiro longa-metragem, Cães de aluguel, ele volta a se aproximar do

como o comer com uma imagem própria da cultura pop. Quentin Tarantino é o primeiro

legado do cinema clássico da última fase. A história e os fatos reais levam Tarantino a in-

autor de destaque a mostrar a presença constante e crescente da indústria cultural, de

ternalizar toda a potência lúdica pós-moderna no grande marco narrativo e estilístico do

Hollywood em especial, na vida do americano urbano e em suas atividades mais prosaicas.

cinema americano dos anos 1950. É um caminho mais do que interessante. Bastardos in-

os personagens de Cães de aluguel e Pulp fiction, autoconscientes de seu papel e de sua

glórios aponta, sem dúvida, novos rumos de excelência estilística e dramatúrgica para o

imagem, confrontam permanentemente sua experiência com o universo ficcional do cine-

cinema contemporâneo.

ma e da televisão . Jackie Brown, por sua vez, apresenta uma opção ante a contaminação da experiência pela mídia, por meio de personagens veteranos, pouco interessados na cultura de massas contemporânea como Jackie e Max. A Noiva, personagem de Uma Thurman em Kill Bill, parece sempre consciente de que está protagonizando um filme de vingança. As mudanças de um filme para outro apontam para uma posição ambígua em face da cultura de massas. Em cães de aluguel e Pulp fiction, ela é celebrada por personagens reflexivos e infantis. Em Jackie Brown, prevalece um olhar crítico do autor e de personagens maduros como Jackie e Max, conscientes de sua imagem, mas não obcecados por ela. A presença das subculturas de massa da cultura pop no estilo de um filme não é nenhuma novidade. O cinema de Tarantino inova quando coloca essa cultura de massas no centro dos interesses

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dos personagens. Os westerns de Leone fazem parte da cultura pop, mas, por razões ób-

poder pensar com calma. A atitude cool e lúdica dos personagens favorece o diálogo e o

vias de verossimilhança, ela não integra sua dramaturgia e permanece extradiegética. Nos

acordo transparente entre as partes. O modelo de acordo é o compromisso estabelecido

primeiros filmes de Godard, os personagens são influenciados e se interessam pela cultura

entre Jackie e Max(em Jackie Brown),produto do equilíbrio entre sentimentos e razão.

de massas, sem que ela chegue a ser tema de discussão (recordar Michel Poiccard e seu in-

O cinema de Tarantino recusa a lição de vida do melodrama, cara ao cinema americano.

teresse por Bogart em Acossado). Nesse primeiro Godard, a cultura de massas (Hollywood

Sua ideia de moral se funda em pequenos códigos que valorizam a lealdade, a amizade, a

em especial) integra o universo ficcional e é comentada peio narrador, não pelos persona-

palavra para cumprir acordos. Ele reúne o prazer de contar histórias de gênero, com o co-

gens. No cinema de Tarantino , a cultura pop é comentada tanto pelos personagens como

mentário sobre o cinema e sobre sua obra, construindo um cinema pós-moderno inovador

pelo narrador. A integração da cultura de massas ao universo de personagens conscientes

e de grande futuro. Seu último filme, Bastardos inglórios, mostra uma síntese muito inte-

de si mesmos confunde as fronteiras entre história e comentário reflexivo. Quando, em

ressante entre a tradição clássica e a reciclagem pós-moderna. A história levou o cineasta

Pulp fiction, Jules diz a Vincent que, a cada vez que limpa os restos de cérebro, sente-se

a internalizar toda a potência lúdica pós-moderna no grande marco narrativo e estilístico

Os canhões de Navarone (The guns of Navarone,1961, de J. Lee Thompson) e Super Fly

do cinema clássico americano. Bastardos inglórios mostra a consolidação definitiva desse

T.N,T. (1973, de Ron O’Neal), história e comentário se superpõem. o cinema de Quentin

cineasta que ficará na história entre os grandes e que hoje sinaliza rumos interessantes

Tarantino distancia o espectador para permitir que este usufrua o prazer da ficção e reflita

para o cinema contemporâneo.

sobre o que assiste. Ao mesmo tempo, consegue não distanciá-lo totalmente e manter seu interesse na história. A decupagem, que denuncia a arbitrariedade da ficção sem quebrar a ilusão, é outro procedimento que, misturando história e comentário, distancia parcialmente o espectador. Os momentos de explicitação do discurso que suspendem a história são pontuais e de extensão limitada. A abordagem autoconsciente do cinema de Tarantino não busca sabotar a ficção, mas revitalizar a arte de contar histórias. Por último, o papel central dos personagens e sua preocupação ética e moral numa sociedade individualista é outro aspecto que explica a eficácia dos filmes como histórias. A estrutura narrativa dos filmes de Tarantino colocam em primeiro plano importantes decisões morais dos protagonistas. O cineasta busca uma moral não convencional. Para ele, as decisões morais devem Ser tomadas com uma atitude distanciada e relaxada, que permita a reflexão. Em Cães de aluguel, os compromissos morais acabam sendo fúteis, porque os personagens estão enceguecidos pelas emoções. Pulp fiction apresenta uma passagem do conflito violento para a negociação e o acordo lúcido. Estar cool, frase tão repetida em Pulp fiction, é controlar as emoções para

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