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Cristine Koehler Zanella Edson José Neves Júnior
As Relações
Internacionais e o Cinema Volume 1: Espaços e Atores Transnacionais
As Relações Internacionais e o Cinema Volume 1: Espaços e Atores Transnacionais
ORGANIZAÇÃO
Cristine Koehler Zanella Edson José Neves Júnior
Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Cristine Koehler Zanella, Edson José Neves Júnior Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.
cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj R321 As Relações Internacionais e o Cinema, Volume 1 : Espaços e Atores Transnacionais / organização Cristine Koehler Zanella , Edson José Neves Júnior. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2015. 320 p. : il. ; 23 cm. (Relações Internacionais ; 14) ISBN 978-85-8054-246-2 1. Globalização. 2. Globalização - Aspectos econômicos. 3. Relações econômicas internacionais. I. Zanella, Cristine Koehler. II. Neves Júnior, Edson José. III. Série. 15-22352 CDD: 330.9 CDU: 330
coordenação editorial
Antônio Carlos Lessa | UNB Henrique Altemani de Oliveira | PUC-SP conselho editorial
Coleção Relações Internacionais
Tullo Vigevani | UNESP Shiguenoli Miyamoto | UNICAMP Carlos Moneta | Universidad Tres de Febrero, Argentina Janina Onuki | USP Francisco Monteoliva Doratioto | UNB
Fino Traço Editora ltda. Av. do Contorno, 9317 A | 2o andar | Barro Preto | CEP 30110-063 Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212-9444 finotracoeditora.com.br
Apresentação 9 SEÇÃO I Velhos e Novos Colonialismos na África
1 “As Quatro Penas Brancas” ou o colonialismo ingênuo | Raúl Enrique Rojo 15
2 “Hotel Ruanda”, 20 anos depois: anatomia de uma guerra transnacional | André Luiz Reis da Silva, Isadora Loreto da Silveira 35
3 “Diamante de Sangue”: uma reflexão sobre a dimensão internacional do conflito em Serra Leoa | Geraldine Rosas Duarte 53 SEÇÃO II Terrorismo Internacional e Guerra ao Terror
1 “Nova York Sitiada”, o terrorismo internacional e a Guerra ao Terror | Edson José Neves Júnior, Lauren Machado 77
2 “A Hora mais Escura” e o discurso hegemônico da Guerra ao Terror | Bruno Mendelski de Souza 97 SEÇÃO III Revoluções e Conflitos Internacionais
1 “Atlântico Negro; na rota dos orixás”: inventando fluxos e redes culturais | Rodrigo Corrêa Teixeira 123
2 “Persépolis” e o Islã transnacional | Fernanda Barth Barasuol 135 SEÇÃO IV Resistências Políticas na América Latina
1 “Infância Clandestina” e o internacionalismo da oposição às ditaduras cívico-militares no Cone Sul | Clarissa Franzoi Dri, Marina Lazarotto de Andrade 153
2 “No”: O Plebiscito de 1988 e a legitimidade internacional do regime Pinochet | Rodrigo Fracalossi de Moraes 169
3 “Também a chuva”: A Guerra da Água na Bolívia vista a partir do movimento decolonial | Ademar Pozzatti Junior 183 SEÇÃO V Diplomacia Cultural e “Soft Power”
1 “Alô, amigos”: o soft power da Boa Vizinhança chega pela Disney | Cristine Koehler Zanella 207
2 “Notícias de uma Guerra Particular”: o soft power brasileiro e as organizações criminosas nas favelas cariocas | Marcos Paulo dos Reis Quadros 227 SEÇÃO VI Dinâmicas Econômicas Internacionais
1 “O Capital”: a influência de atores transnacionais sobre a regulamentação financeira internacional | Eduardo Ernesto Filippi, Inaê Siqueira de Oliveira 249
2 “O Jardineiro Fiel”, Mama Tessa e o problema da ajuda externa no continente africano | Thales A. Zamberlan Pereira 265 SEÇÃO VII Migrações Internacionais e Cosmopolitismo
1 “Do outro lado”, lado a lado, do mesmo lado: a convergência dos espaços transnacionais pelo indivíduo | Marc Antoni Deitos 279
2 “O Porto”: um olhar idealista sobre o indivíduo nas Relações Internacionais contemporâneas | Joséli Fiorin Gomes 293 Sobre os autores 313
Aos professores que nos fizeram ver os filmes para alĂŠm do entretenimento.
Apresentação
São dois os motivos que nos levaram a organizar um livro sobre as Relações Internacionais e o Cinema. Primeiro, compartilhamos a convicção de que os filmes podem ser uma valiosa ferramenta de aprendizado para as Relações Internacionais. Segundo, acreditamos que o cinema foi – e continua a ser – uma importante ferramenta política. Essa apresentação serve para que desenvolvamos essas ideias brevemente, concluindo com os agradecimentos absolutamente merecidos àqueles que nos auxiliaram a colocar em ação o roteiro desta obra.
Os filmes e o aprendizado em Relações Internacionais Com alguns anos de docência no ensino superior, sentimos que as Relações Internacionais oferecem um campo privilegiado para a utilização de filmes enquanto ferramenta de aprendizado, sejam eles ficção ou documentários, e pelas seguintes razões: (i) por ter como objeto as relações que ultrapassam as fronteiras, em poucos outros cursos de graduação o aluno pode sentir uma distância tão grande em relação a seus objetos e espaços de estudo quanto nas Relações Internacionais – os filmes, ao ilustrarem eventos, ajudam a perceber melhor conceitos, atores e movimentos desses espaços, tornando-os, assim, menos abstratos; (ii) o envolvimento com uma história pode facilitar o interesse nos conteúdos relacionados ao filme e, assim, motivar a investigação de determinado tópico de um conteúdo; (iii) a apresentação contextualizada oferece uma visão mais complexa dos temas tratados, estimulando o aluno a explorá-los por mais frentes que apenas aquelas pertencentes a uma ou outra escola teórica, o que alimenta a perspectiva crítica de análise; e (iv) a utilização dos filmes pode ser mais estimulante do que apenas a leitura de textos, além de contribuir para uma participação mais ativa da classe. 9
Certamente não imaginamos que exista uma capacidade intrínseca de transformação pela simples abordagem de conteúdos por meio de filmes. Também não advogamos para que eles sejam tomados como fontes fidedignas de informação, ou como leituras inabaláveis de um ou outro evento. Temos consciência dos diversos recortes que as lentes fazem ao serem direcionadas a este ou àquele ponto do cenário, a esta ou àquela personagem, e, exatamente por isso, concordamos que todo filme traz uma visão traduzida e construída de determinada realidade. Os textos aqui reunidos compartilham dessa perspectiva de análise. Seus autores trataram os filmes como fontes estimulantes para a reflexão e o aprendizado, cujos dados, informações e construções foram criticados pelos especialistas – como efetivamente deveriam ser –, sempre que cabível, de acordo com os seus conhecimentos acadêmico-científicos. Como veículos que são, os filmes podem carregar os mais diversos conjuntos de valores e visões de mundo, e é só quando acompanhados da crítica qualificada, que se dispõe a tomá-los como fonte primária, cotejando-os com o momento histórico em que foram produzidos e avaliando por quem foram produzidos e para quem foram direcionados, que os filmes podem manifestar todo o seu potencial como ferramenta de aprendizado nas Relações Internacionais.
O cinema e a política A utilização do cinema para formar e influenciar a opinião pública, induzir posições políticas, criar inimigos e legitimar políticas governamentais não é novidade. Desde a Revolução Russa e a criação do Proletkult em 1917 – organismo para produção de uma nova cultura popular revolucionária –, passando pela propaganda dos nazistas e dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, pelo papel de Hollywood na Guerra Fria e, mais recentemente, naquela que alguns insistem em chamar de Guerra ao Terror, por mais privada de definição objetiva que essa expressão seja, o cinema tem se destacado como poderosa ferramenta política. Tanto quanto ou ainda mais do que as outras manifestações artísticas, o filme carrega valores, identidades e estéticas próprias que refletem uma escolha deliberada de quem o produziu ou, no mínimo, refletem o espírito de um determinado espaço em um determinado tempo.
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Essa é concepção fundamental sobre o papel político do filme que subjaz à narrativa dos capítulos que compõem este livro. Ressaltamos a especificidade e a força dos filmes como elementos formadores de opinião, em um processo que às vezes passa despercebido pelo espectador. Seus diferentes recursos viabilizam o estabelecimento de múltiplas identificações e proximidades entre o espectador, que “se vê” na tela, e as personagens com características diversas, próximas às suas, desejadas ou mesmo negadas – haja vista a atração e simpatia que tantos anti-heróis provocam nas audiências. Quem nunca se identificou com uma personagem cinematográfica? Ainda que eventualmente marcado por exageros, comuns ao gênero da arte, o filme, enquanto proposta de representação, tem o condão de aproximar quem o assiste da realidade representada – mesmo que utópica ou distópica. A aproximação, por seu turno, cria espaço para a conexão que viabiliza a transmissão de uma mensagem – momento em que efetivamente o filme se realiza. Obviamente, o público não é agente passivo nesse processo. Aliás, sua reação de aceitação ou rejeição responde sempre às mensagens do filme. Embora haja possibilidade de rejeição das ideias explícitas e implícitas transmitidas pelo enredo, é preciso reconhecer que um olhar analítico e crítico sobre o que é apresentado é um processo que demanda um esforço adicional do espectador – ou, ao menos, prática. Isso porque, para cotejar o filme com os fatos e dinâmicas do mundo, é preciso suscitar uma sequência de reflexões sobre o impacto que o filme causou, entender por que causou rejeição ou aceitação ou questionamentos ao enredo, entender até que ponto as mensagens que o filme quer passar ou as reflexões que provoca estão confirmadas por evidências, e assim por diante. Analisar um filme nem sempre – no nosso entender quase nunca – é um processo rápido e fácil. Talvez justamente por isso raramente se discuta a intenção por trás das cenas e diálogos, e menos ainda se critique o conjunto de valores que a obra veicula. Cada um dos textos reunidos neste livro se propõe a enfrentar um ou outro desses desafios. Algumas vezes o autor valeu-se do filme como pano de fundo para discutir o contexto histórico, político ou econômico que envolve o enredo; em outras, o autor cotejou a pertinência ou não da
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mensagem que o filme transmite, e em outras, ainda, investigou as estruturas políticas que patrocinaram determinada mensagem que se desejava que fosse transmitida. Estamos certos que o leitor conseguirá se informar e se apropriar muito mais dos filmes depois de lê-las.
Os merecidos agradecimentos Como obra coletiva que é, e tal como um filme, este livro não teria sido mais que um projeto de roteiro caso os autores não tivessem acreditado no enredo. A dedicação e qualidade com que os autores desenvolveram seus capítulos e o esforço e a compreensão com que trabalharam nas revisões que se seguiram para que tivéssemos um grupo formalmente coeso de textos nos honra e nos emociona. Esperamos que o conjunto que formamos a partir do esforço de cada um de vocês lhes agrade tanto quanto nós lhes somos gratos pela participação nesta obra. À editora Fino Traço, por meio de sua diretora Betânia Gonçalves Figueiredo, queremos registrar nossos sinceros agradecimentos por apostar neste projeto. A confiança decidida em aceitar a nossa proposta, a cordialidade no trato que toda sua equipe nos dispensou e a seriedade na condução de cada etapa da publicação deixa-nos confiantes que a qualidade do livro, no que dependeu da editora, foi assegurada. Enfim, nosso muito obrigado para Jaqueline Maissiat e Maria Carolina Beraldo, pelo suporte técnico e financeiro nesta obra e pela parceria incondicional na vida desses organizadores.
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Seção I Velhos e Novos Colonialismos na África
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“As Quatro Penas Brancas” ou o colonialismo ingênuo Raúl Enrique Rojo1
Introdução Pretendemos tratar aqui de As quatro penas brancas, uma obra de real valia cinematográfica, a ponto tal que, apesar de ser contemporânea do início da Segunda Guerra Mundial, tem suportado bem (bem melhor que muitos dos filmes de sua época) o passo do tempo. O que não deixa de ser paradoxal, já que ainda que seu grande tema pareça ser a honra (uma versão vitoriana e aristocrática dela, quando menos), a produção pressupõe sem rubores a existência de uma malquista instituição internacional que nos apresenta sob suas melhores luzes: o ora famigerado colonialismo. Não é de hoje que historiadores, cientistas políticos e internacionalistas sabem que entre as premissas de caráter global dos distintos conflitos sin1. Possui graduação em Direito pela Universidad de Buenos Aires (1964), mestrado em Sociologia pela Pontificia Universidad Católica Argentina Santa María de los Buenos Aires (1984), diploma de estudos avançados (DEA) em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1986), doutorado em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1991) e pós-doutorado em Sociologia Jurídica pela Université de Montréal (2002). Foi titular da Chaire des Amériques do Institut des Amériques da Université de Rennes 2 – Haute Bretagne (2008) e pesquisador visitante do Centre de Recherche en Droit Public da Université de Montréal (2001-2002). Participou de estágio organizado pelo Institut des Hautes Études sur la Justice junto ao Parlamento Europeu, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (1998). Atualmente é professor permanente do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em cujo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais também lecionou até outubro de 2013.
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gulares que estremecem ou têm abalado a cena internacional devemos mencionar em primeiro lugar o imperialismo colonial, condição histórica prévia de todas as lutas de libertação, revoluções e instabilidade endêmica do Terceiro Mundo (Geiss, 1987:22). Porém, nesta época em que o “politicamente correto” se impõe em todos os discursos (sejam eles das ciências sociais ou da ficção audiovisual), e em que o colonialismo não só é veemente condenado pelos povos que o padeceram mas também pelas antigas potências coloniais (vítimas de uma estranha má consciência ou de um tardio complexo de culpa), parece oportuno esclarecer que não foi sempre assim. Até o pós-Segunda Guerra Mundial e notadamente durante o “longo século XIX”2, as colônias não foram unicamente o fruto de uma estratégia de distração ultramarina destinada a desviar as tensões da Europa ou os ouropéis prestigiosos que mal dissimulavam as carências e derrotas de governos em busca de legitimação: houve uma verdadeira doutrina da “carga civilizatória do homem branco” que supostamente impunha aos europeus a obrigação de exportar o que acreditavam ser sua compreensão superior das leis de Deus e da natureza a povos frequentemente vistos como primitivos e selvagens. Estes, em troca desses inestimáveis bens, tinham o correspondente dever não só de trabalhar nas minas e nos campos produzindo as mercancias que os europeus não podiam produzir em seu território, mas também de renunciar a parte de seus bens e (na maioria dos casos) a sua autonomia política, fazendo seus os padrões matrimoniais europeus, as vestimentas, os hábitos alimentícios e as tecnologias que seus colonizadores se sentiam obrigados a impor-lhes. Quimera empós da qual se ceifaram as vidas de milhões de autóctones, mas também em cujo encalço se sacrificou soldados, missionários, mestres, médicos e administradores coloniais cujos ossos acabaram branqueando ao sol dos desertos ou apodrecendo nas selvas de terras longínquas.
2. O longo século XIX (em inglês: the long nineteenth century) é um termo cunhado pelo historiador britânico Eric Hobsbawm para referir-se ao período histórico de 125 anos compreendido entre 1789 e 1914. Hobsbawm tomou a ideia de Fernand Braudel, que falava do “longo século XVI” (Braudel, 1976), e espraia sua teoria ao longo de três livros sobre distintas “eras” ou “idades” (Hobsbawm, 1970; 1978; 1989).
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Essa “obrigação” foi teorizada por diversos políticos (e não necessariamente pelos mais reacionários: de Jules Ferry, radical de esquerda francês do século XIX, a Guy Mollet, seu compatriota socialista de meados do século XX) e por “homens de ação“ bem distintos, que vão desde o barão Frederick Lugard, ex-governador de Hong-Kong e da Nigéria, que participou da submissão colonial do sultanato de Sokoto, no norte deste último território3, ao soldado trânsfuga, jornalista, aventureiro e escritor galês-estadunidense Henry Morton Stanley, que conquistou o Congo para Leopoldo II da Bélgica (Stanley, 1876; 1886), passando pelo missionário protestante, médico e explorador escocês David Livingstone, que contribuiu ao desenvolvimento e à promoção do Império britânico enquanto lutava contra o tráfico de escravos, evangelizava o Sul do continente africano e curava doenças tropicais das quais acabou sendo vítima (Livingstone, 1999; 2004). Essa visão da colonização não foi, todavia, uma simples luta de ideias. Ela beneficiou-se da visibilidade e prestígio que lhe conferiam os pincéis dos “orientalistas”4 e, sobretudo, da pena de literatos influentes como Rudyard Kipling, que lhe pôs nome (no poema The white man’s burden) e apresentou-a como uma “carga” de dimensão crística, suportada pelo colonizador que será doravante comparado a Jesus carregando sua Cruz e o peso dos pecados do mundo (Kipling, 1899:290). No poema5, em que Kipling expôs com maior crueza sua visão, o homem branco se distinguirá por sua serenidade, apesar do medo, da fadiga e da ingratidão dos povos colonizados (“meio crianças” e “meio demônios”), a quem com altruísmo aporta a paz, a civilização e a ciência, sarando os doentes e alimentando os famintos. 3. Na década de 1920, Lugard publicou suas reflexões em um livro imediatamente traduzido para várias línguas, que converteu seu autor em uma autoridade incontestada em matéria de administração colonial. Ele defendia ali uma política de governo indireto (indirect rule) para as colônias africanas. Lugard justificava a dominação colonial em nome da propagação do cristianismo e da luta contra a barbárie. Para ele, o Estado britânico devia implicar-se na colonização não só para proteger os missionários, mas também os chefes locais e as populações autóctones das guerras tribais (Lugard, 1922). 4. Ver, por exemplo, Antoine-Jean Gros e seu célebre “Bonaparte e os pestíferos de Jaffa”, que se exibe no Louvre. 5. Ainda que os versos de A carga do homem branco fossem escritos originalmente para o Jubileu de Diamantes da rainha Victoria (que teve lugar em 20 de junho de 1897), o autor mudou o texto para refletir um novo tema: a colonização pelos Estados Unidos das Filipinas trás sua vitória na guerra contra a Espanha de 1898.
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Kipling abriu assim o caminho para outros, que escreveram, pintaram ou filmaram com toda naturalidade – e diríamos até que ingenuamente (isto é, na maioria dos casos sem segundas intenções políticas ou propagandísticas, entendendo-o como uma “lógica decorrência” da “natureza das coisas”) – as peripécias, os belos gestos de coragem, amor ou desinteresse de brancos protagonistas em países exóticos, que os criadores e seu público consideravam próprios de sua condição de homens e mulheres civilizados. A Europa era quem definia o mundo civilizado, e só se podia tomar parte dele sendo (ou fazendo-se) europeu. Toda negativa a tornar-se europeu não era então mais que uma prova de barbárie, contumácia no erro ou depravação moral que serão as marcas dos vilões na ficção. Kipling mesmo foi a “canteira” onde diversos autores cortaram sua “pedra”. Seu poema épico Gunga Din – dedicado a um sargento indiano cuja alcunha dá nome à obra (Kipling, 1892), sargento este que se sacrifica para salvar um oficial inglês – servirá de base para o script do filme epônimo6 que um grupo de roteiristas (encabeçados por Joel Sayre e Fred Guiol, a partir de argumentos de Ben Hecht e Charles MacArthur)7 misturará a elementos tirados de Soldiers Three, uma coleção de histórias curtas do mesmo autor (Kipling, 1888). Citemos aqui, porém, alguns dos “outros” autores menos em vista, muitos dos quais pretenderam dar forma literária a suas lembranças castrenses ou aproveitaram essas para ambientar suas obras de ficção. Estou-me referindo, por exemplo, ao major do Exército britânico das Índias Francis Yeats-Brown, autor de The Lives of a Bengal Lancer, livro que inspirou8 o filme clássico conhecido no Brasil como Os lanceiros da Índia9 (Yeats-Brown, 1930). Ou a Percival Christopher Wren, outro inglês, mas que serviu na Legião Estrangeira francesa, onde se passa a ação de boa parte da 6. Filme norte-americano (RKO) de 1939, dirigido por George Stevens e protagonizado por Cary Grant, Victor McLaglen e Douglas Fairbanks Jr., com Sam Jaffe no papel do supletivo indiano que lhe dá nome. 7. Mas que contaram com a ajuda de prestigiosos colaboradores das sombras ou nègres, como Lester Cohen, John Colton, Vincent Lawrence, Dudley Nichols, Anthony Veiller e nada menos que William Faulkner. 8. E que recebeu em 1930 o Prêmio James Tait Black Memorial. 9. Filme norte-americano de 1935 protagonizado por Gary Cooper, Franchot Tone, Richard Cromwell e Douglas Dumbrille; dirigido por Henry Hathaway e escrito por Grover Jones, William Slavens McNutt, Waldemar Young, John L. Balderston e Achmed Abdullah.
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famosa saga dos irmãos Geste10, escrita na década dos anos 1920 e levada várias vezes ao cinema – a última delas em 1939, numa memorável película de William A. Willman chamada, precisamente, Beau Geste. Deixei para o final (ainda que não esgote com certeza uma lista meramente tentativa) o autor Alfred Edward Woodley Mason (1865-1948). Também ele fez carreira militar em sua Inglaterra natal, ocupando-se em labores de inteligência naval. Tentado pela política, foi deputado de um único mandato, mas teve mais sorte com as letras, ganhando merecido prestígio como autor de romances. Alguns deles eram policiais, e a maioria, de fundo romântico-aventureiro, ambientados em terras estranhas e distantes como convinha ao etos vitoriano então vigente. É o autor de The Four Feathers, livro publicado em 1902 (Mason, 2009) que inspirou sete adaptações cinematográficas, entre elas aquela conhecida no Brasil pelo nome de As Quatro Penas Brancas, estreada em 193911, que hoje trazemos à baila e que por sua contextualização, seu alento épico e sua suntuosidade visual me parece ser a versão definitiva.
O filme e o contexto histórico que o inspira Foi essa uma das mais célebres e espetaculares produções de Alexander Korda (realizador e produtor húngaro naturalizado britânico) e também uma das mais famosas odes ao exército e ao imperialismo colonial britânicos, que começou a projetar-se nos cinemas em um momento decisivo para a Grã-Bretanha. Com efeito, as tensões eram então grandes na Europa, com uma Alemanha que avançava já seus peões, indiferente à branda desaprovação de seus vizinhos. Em 12 de março de 1938, ocorrerá o Anschluss, com a anexação 10. Composta por cinco obras, começando pelas três mais conhecidas: Beau Geste, Beau Sabreur e Beau Ideal, às quais se acrescentam Good Gestes (coleção de nouvelles) e Spanish Maine, romance publicado nos Estados Unidos com o nome de The Desert Heritage, onde o ciclo se fecha no ponto em que tudo tinha começado (Wren, 1926; 1928 a; 1928b; 1929; 1935). 11. Que é a quarta versão, trás aquelas em preto e branco de 1915, 1921 e 1929. Entre as outras, a quinta, de 1955, intitulada Storm over the Nile, foi também realizada por Zoltan Korda, em colaboração com Terence Young. Quanto à penúltima, de 1977, foi dirigida por Don Sharp e tem Beau Bridges e Jane Seymour como protagonistas. Finalmente, a mais recente, conhecida no Brasil com o nome de Honra e Coragem, data de 2002 e foi dirigida por Shekhar Kapur, que confiou ao saudoso Heath Ledger o papel do herói.
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Filmes são sempre janelas para mundos que de outra forma não conseguiríamos acessar. Pela capacidade que têm de aproximarem um objeto não raro distante, os filmes podem ser também uma ferramenta valiosa no estudo das Relações Internacionais. Para realizar esse potencial, o conteúdo dos filmes – e, em alguns casos, sua própria forma – precisa ser refletido e analisado a partir do momento em que foram criados, bem como por quem e para quem foram produzidos e a narrativa que desenvolvem. As Relações Internacionais e o Cinema reúne análises dessa natureza, dedicadas, neste primeiro volume, aos espaços e aos atores transnacionais. Nele o leitor encontrará a análise de um conjunto de filmes que auxiliam a compreensão de conflitos, negociações, resistências e narrativas sobre os velhos e novos colonialismos, o terrorismo internacional, as revoluções, as resistências políticas, a diplomacia cultural, as relações econômicas e as migrações internacionais.