DESIGUALDADE DE E EXPANSÃO DO ENSINO SUPERIOR NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

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Desigualdade e expansão do ensino superior na sociedade contemporânea: O caso brasileiro do final do século xx ao princípio do século xxi

Antonio Augusto Pereira Prates Ana Cristina Murta Collares


Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Antonio Augusto Pereira Prates, Ana Cristina Murta Collares Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP - Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. P925d Prates, Antonio Augusto Pereira Desigualdade e expansão do ensino superior na sociedade contemporânea : O caso brasileiro do final do século XX ao princípio do século XXI / Antonio Augusto Pereira Prates, Ana Cristina Murta Collares. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2014. 184 p. : il. ; 23 cm. (Sociedade e Cultura ; 16) ISBN 978-85-8054-226-4 1. Educação. 2. Ensino superior - Brasil. 3. Igualdade na educação. I. Collares, Ana Cristina Murta. II. Título. III. Série. 14-15894 CDD: 378.81 CDU: 378(81)

Conselho Editorial Coleção Sociedade e Cultura Elisa Pereira Reis | UFRJ Leopoldo Waizbort | USP Renan Springer de Freitas| UFMG Ruben George Oliven | UFRGS

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Sumário Prefácio 9 Introdução 17 Primeira Parte A organização: dilemas institucionais e políticos

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Capítulo 1 Universidade e ciência: do iluminismo ao século xix

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Capítulo 2 O ensino superior no século xx: padrões de expansão

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Capítulo 3 Ensino Superior: a questão da democratização e da desigualdade estrutural

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Capítulo 4 O ensino superior no brasil e sua trajetória institucional: do modelo napoleônico do início do sec. xx ao modelo americano dos anos cinquenta

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Segunda Parte A desigualdade: questões de acesso e diferenciação

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Capítulo 5 A expansão do ensino superior no Brasil entre 1982 e 2006: efeitos sociodemográficos

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Capítulo 6 O acesso ao ensino superior no Brasil: a influência das origens familiares

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Capítulo 7 Diferenciação horizontal na educação superior no Brasil: diferenças sociodemográficas entre o ensino público e o privado 147 Referências bibliográficas

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Ao Henrique, meu filho e nosso colega de profissão com quem tivemos oportunidade de discutir vários temas deste livro antes de sua partida tão precoce. Antonio Augusto Pereira Prates



Prefácio

A centralidade do ensino superior na sociedade contemporânea

A

s ciências sociais, em particular a sociologia, têm desenvolvido uma relevante contribuição para a compreensão da inserção do ensino superior no contexto das sociedades contemporâneas. Autores pertencentes a diferentes filiações teóricas ressaltaram a relevância que o ensino superior ocupa no conjunto das instituições que conformam as sociedades modernas. As análises realizadas por Talcott Parsons, Martin Trown, Burton Clark, Edward Shills, Randall Collins, Pierre Bourdieu, Raymond Boudon, Peter Scott, Michael Gibbons, Gerard Delanty, entre outros – pautadas por distintas perspectivas explicativas – e também por determinados sociólogos latino-americanos e brasileiros têm evidenciado as complexas relações que o ensino superior mantém com o processo de desenvolvimento econômico, com a formação de quadros profissionais para as burocracias públicas e privadas em várias partes do mundo. Ao mesmo tempo, essas e outras análises desenvolvidas nas ciências sociais, salientam as imbricações que o ensino superior mantém com as crescentes pressões da sociedade civil, diante das demandas de igualdade de oportunidades e construção da cidadania nas sociedades contemporâneas. Em várias partes do mundo, governos nacionais vêm desenvolvendo políticas públicas para tornar seus sistemas de ensino superior provedor de recursos humanos altamente qualificados. Ao mesmo tempo, procuram introduzir reformas com vista a transformar o ensino superior em um ator estratégico no processo de inovação científico-tecnológica e de modernização social. Nessa esteira, têm surgido – em diferentes continentes, tais como na Europa e em determinados países asiáticos, como Singapura, Taiwan, China, Malásia, Coreia do Sul, Japão, etc, – programas específicos voltados para reestruturação do ensino superior de tal modo a tornar suas respectivas sociedades mais competitivas, no processo de globalização que perpassa as sociedades contemporâneas. Nos dias atuais, uma pluralidade de atores configura a dinâmica do ensino superior. No plano das sociedades nacionais, destacam-se as próprias instituições de ensino que tendem a ocupar posições diferentes nas hierarquias de prestígio acadêmico, estudantes provenientes de origens sociais heterogêneas, docentes que atuam em distintas áreas do conhecimento, policy makers que desempenham funções no interior de ministérios de educação e nos organismos de avaliação institucional, associações 9


de reitores de universidades públicas e privadas, diversos movimentos sociais que lutam pelas suas agendas particulares de reivindicações, sindicatos de docentes que interferem nos embates educacionais, jornalistas que se consideram especializados em temáticas do ensino superior, etc. Essa multiplicidade de atores e de organizações, através de suas diversas ações cotidianas, não apenas atuam historicamente no âmbito dos sistemas nacionais de ensino superior, reproduzindo e/ou alterando seu funcionamento, mas simultaneamente produzem visões e conhecimentos parciais sobre seu modus operandi. No plano internacional, surgiram nas últimas décadas novos atores que também atuam no funcionamento do ensino superior. Neste sentido, sobressaem as atividades exercidas pelas agências multilaterais que direta e/ou indiretamente formulam agendas de reformas para o setor educacional, como Banco Mundial, Banco Interamericano, Unesco, OECD, OMCT/GATS. Observa-se também, no plano internacional, a atuação de blocos regionais que introduzem mudanças na reestruturação do ensino superior, tal como a Comunidade Europeia, as práticas desenvolvidas por diversas fundações (Ford, Aga Khan, Carnegie), as movimentações de provedores de serviços educacionais (Apollo International, Sylvan Learning Systems, Thompson Learning), as práticas de instituições acadêmicas que elaboram rankings internacionais, tal como o da Universidade de Shangai que criou, em 2003, o Academic Ranking of World Universities. Não seria insensato afirmar que, como tendência, o debate sobre ensino superior realizado na sociedade brasileira, por diferentes atores que atuam em seu interior, é significantemente autocentrado no país e pouco atento às profundas transformações que estão ocorrendo neste nível de ensino, em vários cantos do mundo. Por outro lado, a produção acadêmica nacional sobre o ensino superior tem, com notórias exceções e de uma forma geral, circunscrito suas análises aos limites da sociedade brasileira, levando em pouca consideração mudanças em curso na configuração do ensino superior no plano internacional. O presente livro representa uma importante contribuição intelectual para o debate e para a produção de novos trabalhos acadêmicos sobre o ensino superior no país. Os autores distanciam-se de um nacionalismo metodológico que, na perspectiva de Ulrich Beck, vem predominando ao longo da história da sociologia, conduzindo-a a confinar a análise de distintos objetos nos limites do estado-nação. De certa forma, esta visão, tem orientado, em larga medida, as reflexões e análises de diferentes atores da sociedade brasileira, interessados em compreender e agir neste nível de ensino. Afastando-se desta postura metodológica, os autores adotam, ao longo do livro, uma ampla perspectiva histórica que também aborda o 10


processo de institucionalização do ensino superior nos contextos europeu e norte-americano, Através deste procedimento, destacam a emergência de determinados modelos organizacionais do ensino superior que surgiram nas sociedades francesa, alemã, inglesa e norte-americana nos fins do século XIX e início do século XX, que exerceram forte influência na estruturação da instituição universitária em várias partes do mundo, reverberando também na trajetória do ensino superior no Brasil. Tal reconstrução histórica encontra-se amparada em uma pertinente bibliografia internacional e nacional. Nesta direção, os autores articulam, analiticamente, uma diversidade de atores e organizações que se movimentam no espaço do ensino superior, tanto na sua dimensão internacional quanto na sociedade brasileira. A partir desta perspectiva analítica, a trajetória e o funcionamento do ensino superior no Brasil são inseridos e, ao mesmo tempo, contrastados com determinadas transformações que vêm ocorrendo em escala mundial, neste nível de ensino. Este livro enfoca um conjunto de temas que são centrais para a compreensão da configuração e dinâmica do ensino superior nos dias atuais, tais como, relação entre produção do conhecimento científico e universidade, gênese histórica de modelos paradigmáticos de organização universitária, emergência de uma cultura mercantil de gestão universitária nas últimas décadas – que pressupõe medidas de accountability –, avaliação de desempenho, busca de eficiência institucional, etc. No entanto, gostaria de salientar, brevemente, a relação que os autores estabeleceram entre as temáticas da expansão do acesso ao ensino superior, o processo de diferenciação/hierarquização institucional e a questão da ampliação das funções do ensino superior. Para os autores, um dos traços mais significativos do ensino superior na sociedade contemporânea foi uma forte tendência de ampliação do seu acesso, que ganhou nítidos contornos a partir dos anos 1960, adquirindo velocidades diferentes em distintas sociedades nacionais. Inicialmente voltado para uma restrita clientela dotada de capital econômico e cultural, o ensino superior passou a incorporar gradativamente, em escala mundial, novos grupos sociais, que até então estavam às suas margens. Neste contexto, o livro, na esteira da clássica análise elaborada por Martin Trown, fornece elementos que indicam a passagem, em nível internacional, de um modelo de “elite” para um modelo de atendimento de “massa”. De tal forma, que as matrículas mundiais no ensino superior saltaram vertiginosamente de 82 milhões em 1995, para um total de 185 milhões de estudantes em 2011. Tal fenômeno também ocorreu no ensino superior brasileiro que, a partir do final dos anos 1960, iniciou a marcha ascendente no processo de expansão. O modelo de ensino de “massa”, é percebido 11


pelos autores como resultado da pressão para ampliação da cidadania no contexto das democracias liberais, de demandas de uma força de trabalho mais qualificada nas economias industriais avançadas, derivadas do avanço do processo de racionalização da sociedade ocidental analisado por Max Weber. No entanto, a expressiva ampliação de acesso ao sistema de ensino superior no mundo inteiro não teria sido possível sem a mudança do modelo das universidades clássicas e a simultânea criação de outros formatos institucionais alternativos. Com muita propriedade, os autores do livro identificam no processo de diferenciação institucional um dos mecanismos que possibilitaram a expansão do acesso ao ensino superior nas sociedades contemporâneas. Ao longo de sua trajetória histórica, o ensino superior, em diversos países, esteve estruturado basicamente na existência de universidades, de tal forma que esses dois termos – ensino superior e universidade – tendiam a designar fenômenos praticamente equivalentes. No entanto, a partir dos anos 1960, as universidades foram perdendo o monopólio de serem o locus exclusivo e legítimo das atividades de ensino e pesquisa. O termo diferenciação institucional, utilizado pelos autores, aponta para o surgimento de novas modalidades de instituições tais como, Community Colleges nos EUA, Fachhochschule na Alemanha, Institut Universitaires de Recherche na França e Polytechnics na Inglaterra e outros congêneres. O surgimento do processo de diferenciação institucional foi estimulado pelas pressões de demanda de inclusão social, pela resistência das instituições universitárias em expandir suas vagas e pela demanda de formação mais rápida e mais sensível às necessidades do mercado de trabalho. A multiplicação de uma pluralidade de instituições não-universitárias nos quatro cantos do mundo representou, ao lado da expansão mundial de matrículas, uma outra transformação relevante no ensino superior contemporâneo que acarretou amplas consequências em seu modus operandi. Para os autores, a mudança no modelo de gestão das universidades e o crescimento do ensino privado em várias sociedades nacionais, contribuíram também, ao lado do processo de diferenciação institucional, para a expansão mundial das matrículas do ensino superior. O modelo mercantil de gestão representou uma consequência das restrições financeiras da crise fiscal do Estado e encontra-se associado também à crescente hegemonia da ideologia neoliberal, que propõe a transposição da lógica da gestão de empresas que operam no mercado econômico para o interior dos serviços públicos. Nesta visão, a educação superior pública deveria ser gerenciada numa lógica de eficiência em termos de custos e de avaliação de resultados, de metas almejadas, e de aumentar a competitividade dos sistemas universitários nacionais no contexto internacional. Esta ideologia impul12


sionou universidades públicas em vários países a buscar fontes alternativas de financiamento, a introduzir pagamento de anuidades, a estabelecer parcerias com empresas públicas e privadas e a prestar serviços para amplos segmentos da sociedade. Paralelamente, ocorreu uma significativa expansão de instituições privadas em várias sociedades, mundo a fora, tais como, Colômbia, Chile, Coreia do Sul, Filipinas, Indonésia, algumas delas organizadas como empreendimento for profit. A expansão de matrículas mundiais do ensino superior conduzida pelo processo de diferenciação institucional e pela presença real de uma expressiva privatização do ensino superior, na visão dos autores, produziu um sistema de ensino hierarquizado em termos de prestígio acadêmico, tanto no interior de distintas sociedades nacionais quanto no plano internacional, processo este captado pela existência de uma diversidade de avaliações institucionais. De modo geral, as universidades de pesquisa tendem a ocupar o topo da pirâmide, em termos de reconhecimento acadêmico, tal como ocorre com as universidades que integram a Ivy League, no contexto norte-americano. Por outro lado, as universidades especializadas na atividade de ensino, geralmente, ocupam posições intermediárias e as instituições de ensino técnico profissional tendem a aparecer na base da pirâmide. Ao lado dos processos de expansão e diversificação/hierarquização, os autores assinalam outra transformação expressiva no ensino superior contemporâneo em nível mundial, qual seja, a ampliação de suas funções de atuação. Apoiando-se na análise desenvolvida por Clark Kerr, em seu trabalho The Uses of Universities , o livro destaca que determinadas universidades passaram a oferecer, para suas respectivas sociedades, uma ampla gama de funções, tais como, prestação de serviços para agricultura, indústria, instituições estatais e atendimento de diversas demandas da sociedade civil, etc. Em função dessas relações que o ensino superior passou a estabelecer com o seu ambiente externo, iniciou-se um gradativo processo de revisão de sua própria identidade institucional, até então calcada num modelo humboltiano, que tendia a preservar um relativo isolamento e autonomia intelectual das universidades diante de uma pluralidade de demandas do mundo externo. Ao longo do livro os autores ressaltam que o processo de expansão do acesso ao ensino superior não implica necessariamente na redução de desigualdade social, uma vez que as taxas de matrícula tendem a ser menores que a demanda por educação em uma sociedade determinada. Apoiandose na análise desenvolvida por Samuel Lucas, que formulou a teoria da desigualdade efetivada, o livro salienta que quando o acesso em um deter13


minado nível educacional torna-se praticamente universal, a manutenção da desigualdade social mantém-se através de diferenças mais sutis, produzidas pelo próprio funcionamento do sistema educacional. Neste sentido, no contexto do ensino superior, a desigualdade social é gerada através do reconhecimento acadêmico que possuem as instituições públicas e privadas em seus respectivos países, pela inserção do estudante em áreas de estudo que tendem a ter níveis diferentes de prestígio social, e de suas reconversões em lucros materiais no mercado de trabalho, etc. Além disto, as origens sociais dos estudantes, a renda familiar, o nível de educação dos pais são fatores importantes que condicionam suas trajetórias escolares e influenciam na sua inserção no mercado profissional. A partir desta perspectiva explicativa, o livro realiza uma sofisticada análise empírica sobre as complexas relações existentes entre a expansão do ensino superior no Brasil e determinados mecanismos internos do sistema educacional que interferem na dinâmica da desigualdade social. A trajetória do ensino superior no Brasil é analisada a partir dos eixos que foram contemplados no processo de transformações do ensino superior internacional. Em termos organizacionais, seu início, no século XIX, foi influenciado pelo modelo napoleônico, fortemente controlado pelo Estado colonial e fragmentado em faculdades voltadas para o ensino profissional. As primeiras universidades que surgiram no país, nos anos 1930, foram configuradas pelo modelo humboltiano, com forte ênfase na cátedra. Ganha relevo, no livro, a longa luta desenvolvida por um conjunto de atores, tais como, professores, educadores, cientistas, policy makers, em prol de uma reforma no ensino superior, tendo como um de seus alvos a criação de instituições universitárias que integrassem as atividades de ensino e pesquisa. Essas reivindicações, que ganharam impulso desde a década de 1920, foram parcialmente incorporadas na agenda dos militares que percebiam no ensino superior um ator estratégico no desenvolvimento econômico do país. A Reforma de 1968, introduziu o modelo departamental, calcado na experiência norte-americana. O livro ressalta que um dos aspectos mais relevantes desta Reforma foi a criação da pós-graduação, que institucionalizou a atividade de pesquisa nas universidades, uma vez que esta atividade era realizada em institutos especializados e apartados das instituições universitárias. Nas últimas cinco décadas, o ensino superior brasileiro experimentou transformações quantitativas e qualitativas pari passo com determinadas mudanças que ocorreram também neste nível de ensino no plano internacional. Nesta direção, os autores destacam a expressiva expansão de matrículas e de instituições, em larga medida comandada por uma forte privatização do sistema, e a consequente hierarquização de prestígio 14


acadêmico, que passou a existir entre os milhares de estabelecimentos que surgiram neste período. Ganha relevo, na análise realizada pelos autores, a diferenciação institucional impulsionada pela LDB, promulgada em 1996, que interrompeu o predomínio do modelo único de ensino superior, institucionalizado pela Reforma de 1968, o qual preconizava que o ensino superior no país seria organizado somente a partir de universidades e que os estabelecimentos não-universitários existentes seriam exceções provisórias que, com o tempo, convergiriam para o modelo universitário. Desta forma, a LDB flexibilizou a organização do sistema, ao sancionar o funcionamento de diferentes tipos de instituições, como centro universitário, faculdades, universidades e universidades de ensino. Por outro lado, esta legislação estimulou os cursos a distância, criou cursos sequenciais, substituiu os currículos mínimos por diretrizes curriculares, objetivando a existência de variações de um mesmo curso em função de suas especificidades contextuais. No entanto, o presente trabalho deixa claro que as universidades federais pouco avançaram com relação à autonomia administrativa e financeira. Desde o Estatuto das Universidades de 1931, predomina um rígido modelo burocrático, controlado pelo poder público federal, não se podendo esquecer que este documento legal possuía mais de cem artigos, normatizando de forma detalhada o cotidiano da vida universitária. Esta cultura de centralização burocrática permanece nos dias atuais revestida em decretos e portarias ministeriais, num cipoal de resoluções que engessam as tomadas de decisões nas universidades federais, contrastando com as universidades privadas no país que gozam de total autonomia administrativa e financeira. Os departamentos jurídicos instalados nas universidades federais representam atualmente uma ramificação dos órgãos de controle da administração federal e atuam como uma fonte inibidora de flexibilidade administrativa e financeira da gestão da vida acadêmica destas instituições. De forma arguta, o livro evidencia o papel do sindicato nacional dos professores universitários contra a proposta formulada pelo governo federal em meados da década de1990, visando a autonomia administrativa e financeira das instituições federais, contrapondo a ela o mantra da indissociabilidade ensino-pesquisa e extensão, o princípio da isonomia salarial, o sistema de representação paritária de professores, alunos e funcionários, defendendo um padrão único de organização para o ensino superior no país. Com relação à autonomia administrativa e financeira das universidades, o Brasil encontra-se na contra mão das tendências mundiais. O conhecimento de mudanças que estão ocorrendo numa pluralidade de países, em todos os continentes, a respeito da flexibilização da gestão universitária, 15


deveria estimular a desburocratização do funcionamento das universidades federais e a (re)pensar criticamente os efeitos perversos do centralismo proveniente do poder federal e que tanto aterroriza os responsáveis por estas instituições. Países que sempre exerceram um rígido controle financeiro e administrativo em suas universidades públicas, como a França e a Alemanha, estão gradativamente flexibilizando a gestão de suas instituições, impulsionados pelo processo de globalização econômica, cultural e científica e pela acirrada competitividade existente no plano internacional do ensino superior. A leitura deste livro enriquece o debate acerca do ensino superior no país. Longe de apresentar fórmulas messiânicas e um receituário salvacionista para os problemas do ensino no país, prima pela análise objetiva e contribui para ampliar a compreensão das profundas e complexas transformações que estão ocorrendo neste nível de ensino nos planos internacional e nacional. Carlos Benedito Martins Professor Titular Departamento de Sociologia Universidade de Brasília

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Introdução Desde os anos 70 do século XX, com a falência do “Welfare State” – já muito bem documentada na literatura1 –, os sistemas de ensino superior do mundo inteiro vêm experimentando mudanças profundas na sua estrutura de funcionamento e no seu papel social. Em quase todos os países do mundo contemporâneo a gestão pública do sistema de ensino superior vem confrontando novos dilemas postos pela reconfiguração do contexto globalizado das finanças públicas e das demandas políticas de inclusão social e econômica nestas sociedades. O primeiro dilema a ser considerado para a gestão do sistema público de ensino superior pode ser caracterizado pelo duplo e contraditório sistema de pressão a que estão submetidas as instituições de ensino: de um lado, elas são pressionadas no sentido de se tornarem mais responsivas ao controle do sistema público; de outro lado, elas sofrem as pressões para se tornarem um sistema independente e livre das amarras financeiras e administrativas do controle governamental. As instituições públicas de ensino superior sofrem as restrições impostas pelo aumento crescente das demandas políticas e sociais dos “stakeholders” para torná-las mais transparentes para a sociedade, aumentando a visibilidade dos seus custos e dos seus resultados, e, ao mesmo tempo, são estimuladas pelas autoridades estatais a buscar sua independência financeira via cobrança de anuidades, maior integração e agressividade no mercado de serviços. Essa política seria a base de sua legitimidade para o exercício pleno de sua autonomia financeiro-administrativa. Obviamente, este jogo de pressão dupla varia em intensidade e abrangência de acordo com a história do sistema de ensino superior de cada sociedade, mas é inquestionável sua presença, visto como um padrão generalizado nas sociedades contemporâneas, colocando dilemas de variadas naturezas para os gestores governamentais e para os administradores, professores e pesquisadores das instituições de ensino superior. O segundo dilema que marca o contexto contemporâneo dos sistemas de ensino superior são as pressões para a democratização de acesso e a recalcitrância das universidades de pesquisa ou de liberal-arts em aceitar a massificação, ambas, tradicionalmente, com acesso restrito às elites sociais. Esse dilema deu lugar à segmentação do sistema de ensino superior, transformando-o em um sistema “binário”, com1 Referimo-nos, aqui, ao estudo de A. Shonfield (1965), J. O’ Connor (1973), C. Offe (1984) e Gǿsta Esping-Andersen (1990).

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posto, por um lado, pelas universidades de elite e, por outro, pelas instituições não universitárias, de amplo acesso para as populações de baixa renda, voltadas para o treinamento de mão de obra demandada pelo mercado. A solução desses dilemas tem sido diferenciada pelas diversas sociedades nacionais, mas pode-se identificar questões comuns que vêm à tona no debate político mais geral do tema educacional nessas sociedades. Essas questões têm raízes históricas no desenrolar do processo de institucionalização do sistema de ensino e da ciência nessas sociedades. A discussão, por exemplo, sobre a autonomia da universidade frente aos governantes e do seu monopólio sobre as credenciais do saber foi central na Inglaterra e Europa continental entre os séculos XV e XIX (Ben-David, 1974). O ponto central dessa discussão refere-se ao modo como as universidades e os sistemas de ensino e pesquisa científica se relacionaram, tendo como pano de fundo os movimentos sociais e as ideologias sobre o papel do conhecimento para a sociedade e para a política. A análise histórica dessa questão é importante porque abre perspectivas para a contextualização comparativa. Como mostra J. BenDavid (1974), os fatores estruturais que tiveram impacto relevante no estilo de fazer ciência e ensinar pessoas, em cada nação, diferiram em função do contexto socioeconômico-cultural. O segundo traço característico dos sistemas de ensino superior nas sociedades contemporâneas, o modelo de ensino de massa tem origem tanto na pressão sobre a ampliação da cidadania das Democracias Liberais quanto nas demandas de uma força de trabalho mais qualificada nas economias industriais avançadas. Como sugere T. H. Marshall (1965), no século XIX as Democracias Liberais sofreram um processo de ampliação de direitos de cidadania e de representação política, obedecendo à crescente pressão do princípio igualitário da lógica democrática. Do direito à educação básica às demandas pela educação terciária foi apenas uma questão de tempo. O processo de racionalização da sociedade ocidental de acordo com Max Weber colocou, de forma crescente, ênfase no acesso à educação como um traço típico da sociedade democrática liberal. Hoje a chamada Sociedade Pós-Industrial do Conhecimento tem na detenção do monopólio do saber um dos principais pilares de acesso a privilégios. Nesse contexto, o acesso ao ensino terciário passou a ser visto, nessas sociedades, como condição sine qua non, embora não suficiente, de igualdade de oportunidades. Desigualdades estruturais persistem nas sociedades contemporâneas ao longo das dimensões demográficas, sociais e organizacionais do sistema de ensino superior. 18


O livro se divide em duas partes, precedidas de uma introdução. Na primeira parte, compreendida pelos capítulos de 1 a 4, discutiremos como esses dilemas anteriormente mencionados têm sido tratados, em um quadro comparativo internacional, à luz dos modelos típico-ideais de instituição universitária que se configuraram historicamente na sociedade ocidental e como, à luz desta discussão, deve ser compreendida a trajetória do sistema de ensino superior no Brasil dos anos 1990 em diante. No capítulo 1 apresentaremos uma visão histórica geral sobre o relacionamento entre produção de ciência e criação das instituições universitárias desde o século XV, com o objetivo de contextualizar a emergências dos tipos-ideais de instituição universitária que serviram de base paradigmática para o desenvolvimento dos modelos institucionais dessas organizações no século XX. No capítulo 2 discutiremos a expansão do sistema de ensino superior nas sociedades contemporâneas e os modelos institucionais dessa expansão, visando caracterizar dois modelos típico-ideais de expansão institucional do sistema de ensino superior. No capítulo 3 discutiremos o grau de democratização do acesso à educação superior e as tensões e dilemas da desigualdade estrutural presente nas sociedades onde este se implementa. No capítulo 4 trataremos da trajetória das políticas públicas do sistema de ensino superior e da produção científica no Brasil, desde o último quartel do século XIX, à luz da discussão comparativa do contexto histórico geral, apresentada na seção anterior. Na segunda parte do livro, apresentaremos uma análise quantitativa sobre os fatores de desigualdade de acesso e de estratificação do sistema de ensino superior no Brasil atual. No capítulo 5 apresentaremos uma análise, com base nos bancos de dados disponíveis no país, do impacto de fatores socioeconômicos sobre o acesso à educação em geral, e à educação superior no Brasil nas últimas décadas desde a abertura democrática. No capítulo 6 apresentaremos as bases de estratificação horizontal do sistema de ensino superior brasileiro, enfocando o período que vai de 1982 a 2006, ou seja, do início da abertura democrática até o primeiro mandato do governo Lula. Por fim, no capítulo 7 serão discutidos os efeitos da diferenciação interna sobre o sistema de desigualdade, usando os mesmos dados do capítulo anterior (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD), complementados por uma análise do Exame Nacional de Cursos de 2003, conhecido como Provão.

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