FERROVIA, SOCIEDADE E CULTURA 1850-1930

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Ferrovia, Sociedade e Cultura 1850 – 1930



Pablo Luiz de Oliveira Lima

Ferrovia, Sociedade e Cultura 1850 – 1930


Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Pablo Luiz de Oliveira Lima Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade do seu autor e não expressam necessariamente a posição da editora.

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L732f Lima, Pablo Luiz de Oliveira Ferrovia, Sociedade e Cultura : 1850-1930 / Pablo Luiz de Oliveira Lima. – 2.ed. – Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2015. 160 p. ; il. (História ; 8) Inclui bibliografia ISBN 978-85-8054-241-7 1. Ferrovias – Minas Gerais – História. 2. Ferrovias – Brasil – História. 3. Minas Gerais – História 1850-1930. I. Título. 2. Série. CDD: 385.0981 CDU: 656.2(8)

conselho editorial

Coleção HISTÓRIA

Alexandre Mansur Barata | ufjf Andréa Lisly Gonçalves | ufop Gabriela Pellegrino | usp Iris Kantor | usp Júnia Ferreira Furtado | ufmg Marcelo Badaró Mattos | uff Paulo Miceli | unicamp Rosângela Patriota Ramos | ufu Fino Traço Editora ltda. Av. do Contorno, 9317 A | 2o andar | Barro Preto | CEP 30110-063 Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212-9444 finotracoeditora.com.br


Para Waldemar e Sinhá, Pedro e Cacilda, Luiz e Andréa



Agradecimentos Este livro é uma adaptação de minha dissertação de mestrado em História realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre 2001 e 2003. Devo agradecer, em primeiro lugar, à universidade pública, patrimônio construído pelo trabalho da sociedade brasileira. Um universo de professores, funcionários e estudantes, que dão vida real às universidades, nos acompanha pela caminhada acadêmica, e a todos sou grato. À Profa. Dra. Maria Eliza Linhares Borges agradeço pela orientação durante a feitura deste trabalho, e aos membros da banca examinadora, Prof. Dr. Carlos Magno Guimarães e Prof. Dr. Douglas Cole Libby, pelos valiosos comentários e pela atenciosa leitura da dissertação. E a muitos outros professores, como a Profa. Dra. Thaís Pimentel, Profa. Dra. Beatriz Magalhães, Prof. Dr. José Carlos Reis, Prof. Dr. José Neves Bittencourt e Profa. Dra. Maria Inês de Almeida: obrigado pelo apoio de sempre. O acesso a fontes preservadas em uma série de locais de pesquisa foi fundamental e, em Belo Horizonte, merecem meu reconhecimento os funcionários do Arquivo Público Mineiro (APM), da Hemeroteca Pública, da Biblioteca Pública Luiz de Bessa e das bibliotecas da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH-UFMG), da Faculdade de Ciências Econômicas (FACE-UFMG) e do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR-UFMG). Agradeço ainda aos funcionários da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) pelo acesso às bibliotecas da empresa em Belo Horizonte e, no Rio de Janeiro, ao arquiteto Sérgio Morais, coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Bens Históricos da RFFSA, antigo PRESERFE (Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Ferroviário). Em São João del Rei, sou grato ao Museu Ferroviário de São João del Rei, monumento à memória ferroviária mineira, atualmente administrado pela Ferrovia Centro-Atlântica (FCA). E, no Rio de Janeiro, ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), à Biblioteca Nacional e ao Arquivo Nacional. Duas pessoas que fazem parte deste livro merecem meu agradecimento e uma sincera homenagem: a Sra. Maria de Jesus Fontelas e o Sr. Alcino Sidney de Souza. Ambos foram funcionários da Companhia de Estrada de Ferro Oeste de Minas durante as décadas de 1920 e 1930. Suas lembranças foram compartilhadas em entrevistas emocionantes, momentos de mergulho na memória daqueles que trabalharam cotidianamente nas ferrovias brasileiras, aproximando à história o universo vivo da experiência.


Felizmente, muitos foram os amigos e familiares que contribuíram de diversas maneiras durante o processo incessante de pesquisa, entre eles Diego Lima, Raisa Lima, Bernadete Dias, Clarissa Dias, Anália Sidney de Souza, João Sidney de Souza Filho, Anis Maria de Oliveira, Cléa Dalva de Oliveira, José Carlos Lima, Wagner Cardoso, Marcus Caetano Domingos, Eduardo Caetano Domingos, Francisco Santirocchi Jr., Ítalo Domingos Santirrochi, Julião Villas, Luceli Maria de Jesus, Roni Domingos, Bernardo Gouveia, Beatriz Matos, Rosângela Souza Vilaça, os camaradas do PCB e colegas do movimento estudantil em defesa da educação pública de qualidade. A Tulíola e Ian, agradeço pela infinita alegria. E, para concluir esta longa lista, dedico este trabalho aos meus maiores mestres: Waldemar e Divina (Sinhá) Lima, Pedro e Cacilda Oliveira, meus avós; Luiz Lima e Andrea Oliveira Lima, meus pais. A presença do trem é parte fundamental de nossa história. Pablo Luiz de Oliveira Lima


Sumário Apresentação Maria Eliza Linhares Borges.......................................................................11

Introdução

Ferrovia, história e memória.......................................................................15

Capítulo I

Um Império entre o atraso e o progresso: memórias de viajantes, políticos e empreendedores ferroviários......................................................................29 1. Olhares estrangeiros: Auguste Saint-Hilaire e James Wells..............31 2. Olhares brasileiros: José Almeida Leite Moraes, Mauá e Christiano Ottoni...................................................................................................41 Capítulo II

A ferrovia em pauta nas memórias oficiais dos homens de Estado, do Império à República...............................................................................................59 1. Desenvolvimento ferroviário e integração nacional..........................65 2. A Companhia de Estrada de Ferro Oeste de Minas – EFOM...........70 3. A Companhia de Estrada de Ferro Goiás – EFG.............................90 Capítulo III

Ecos da locomotiva: representações culturais do trabalho ferroviário.............101 1. O lugar dos trabalhadores nas memórias da EFOM e EFG..............102 2. O trabalho noticiado, fotografado e rememorado..............................108 Considerações Finais

Patrimônio histórico e memória ferroviária em Minas entre o abandono e a preservação........................................................................................147


Referências Bibliográficas........................................................................153 Relatórios dos presidentes da Província e Estado de Minas Gerais.....153 Relatório de presidente da república..............................................154 Periódicos...................................................................................155 Bibliografia.................................................................................155

Imagens Imagem 1: Trem em movimento sobre trilhos de bitola estreita da antiga EFOM, entre São João del Rei e Tiradentes, 2001..................................................77 Imagem 2: “Planta da E. de F. Oeste de Minas” em 1903................................. 88 Imagem 3: Ponte Paula Cândido, sobre o Rio São Francisco..............................92 Imagem 4: “Estação de Sítio–Ponto inicial da EFOM e entroncamento com a Estrada de Ferro D. Pedro II”, 1881.........................................................110 Imagem 5: “Festa inaugural da navegação fluvial no Rio Grande, em 18 de dezembro de 1880”................................................................................ 111 Imagem 6: “Direcção e Administração da E. F. O. de Minas”, 1897.................113 Imagem 7: “Interior das officinas e rotunda (Ribeirão Vermelho)”....................115 Imagem 8: “Officinas de ‘Formiga’”, 1922..................................................... 116 Imagem 9: “Escola e villa operaria em Divinópolis”........................................ 117 Imagem 10: “Passagem da linha ferrea pela Pedra Branca (Angra dos Reis)”....122 Imagem 11: “Pontes provisorias do trecho da Goyaz, sendo a 1a. de 15m,00 de altura”...............................................................................................123 Imagem 12: “Construção de uma ponte da EFOM”.........................................124 Imagem 13: “Vista interna da Rotunda de São João del Rey em janeiro de 1912”....................................................................................................143 Imagem 14: Estação e Rotunda de Ribeirão Vermelho, 2001...........................148 Imagem 15: Antigas oficinas ferroviárias de Ribeirão Vermelho, 2001.............149 Imagem 16: Interior da rotunda de Ribeirão Vermelho, 2001..........................149


Apresentação “A passagem da recordação através das gerações é o que está em jogo nos documentos guardados nos fundos dos arquivos”, disse certa vez Marc Bloch. Defensor do poder explicativo do analista, esse fundador da École des Annales sabia que a passagem da recordação através das gerações não é um ato natural. Ao invés disso, depende da observação e da crítica metódica do historiador. Este livro é, sem dúvida alguma, uma amostra do trabalho de construção de uma das narrativas mais importantes da História do país. Produzida a partir de três tipos de arquivos, melhor dito: de três espaços de enunciações discursivas, inscritos em textos, fotografias e lembranças orais, Pablo Luiz de Oliveira Lima narra o fazer de atores que um dia devotaram suas vidas a diferentes atividades ligadas à implantação e ao desenvolvimento da rede ferroviária brasileira, em especial, à de Minas Gerais. Para o leitor brasileiro que hoje tem vinte anos de idade ou mais, e que elegeu a História como campo de aprendizagem para sua posterior atuação profissional, Ferrovia, sociedade e cultura (1850-1930) traz à tona um viver novo, porque desconhecido. Acostumado a usar a rede de rodovias que paulatinamente substituiu o sistema ferroviário e o relegou à condição de memória, de patrimônio histórico, a leitura deste livro oferecerá, ao leitor jovem, uma oportunidade de conhecer e compreender a rede de motivações, propósitos e práticas individuais e coletivas que, a partir de meados do século XIX, fundaram uma nova ordem social. Independentemente do grau de adesão aos parâmetros que a norteavam, seus atores (fossem eles formuladores, inventores e/ou usuários das inovações técnico-científicas e artísticas em curso) vivenciaram os impactos, positivos e negativos, de um novo modo de viver, produzir, ver, crer e sentir fortemente alicerçado na crença do poder transformador da técnica e da ciência. Antes, as páginas do livro que ora temos o prazer de apresentar mostram, de um lado, a inserção do país, e mais especificamente de Minas Gerais, em um modelo de desenvolvimento adotado em escala global. De outro lado, chamam a atenção para as peculiaridades de ritmos, direções e significados de sua aceitação e implementação em terras brasileiras. À medida que a leitura flui, é possível perceber como esse conjunto de particularidades é uma das principais portas de entrada para a compreensão dos modos e dos porquês de as tradições, até então dominantes, terem se 11


mesclado a novos valores e hábitos, a novas crenças e novos comportamentos que mudaram a paisagem rural e urbana de boa parte do país ao longo de algumas décadas. Vale destacar: juntamente com a invenção do telégrafo, da luz elétrica e da fotografia, as ferrovias também criaram uma nova marcação do tempo. Infinitamente mais velozes, se comparados aos períodos anteriores, os anos subsequentes viram quadruplicar a população mundial, instituíram novos cânones de urbanização, produção e comércio; viram o movimento incessante de imigrantes estrangeiros e nacionais deslocando-se de um lugar a outro, diversificando os grupos étnicos e, sobretudo, intensificando as trocas ideológicas, religiosas e culturais. Se nos fosse dado descrever tais mudanças na linguagem dos gráficos, o leitor teria à sua frente um quadro feito de linhas ascendentes e descendentes, as quais subiram entre 1850-1914, durante a chamada Belle Époque europeia, para descerem, na Europa, entre 1914-1918, durante a Primeira Grande Guerra, e simultaneamente subirem no Brasil que, impossibilitado de importar tecnologia e exportar sua produção agrícola, aproveitou as adversidades para iniciar sua primeira experiência de substituição de importações, o que lhe possibilitou investir em industrialização e mudar os padrões de vida nas áreas urbanas. Esse conjunto de alterações em voga até a Grande Crise de 1929 teve desdobramentos, nos níveis global e local, que tanto atingiram as formas de ordenar a vida econômica quanto as relações sócio-culturais. Como mostra o autor do presente livro, a crença no poder transformador das ferrovias foi um dentre outros imperativos a marcar a passagem do tempo entre os anos de 1850 e 1930. Compreender as combinações, por certo assimétricas, de suas variáveis é um dos desafios aos que hoje se dedicam ao estudo da História para amanhã, logo cedo, assumirem o compromisso com seu ensino e sua produção. Para o leitor nascido entre as décadas de 1920 e 1960, este livro terá outros sabores, outros significados. Na sua maioria, esses homens e mulheres partilharam os impactos das transformações iniciadas, dentro e fora do país, no último quartel do século XIX. Mais: integram a comunidade de indivíduos que hoje retêm na memória um emaranhado de fragmentos feitos de sons, ritmos, cores e sentimentos direta ou indiretamente ligados à matriz discursiva e comportamental inventada e difundida durante a chamada era das ferrovias. É provável que, para este leitor, o passar do tempo tenha alterado as tonalidades das recordações, sobretudo quando as estações-ferroviárias e tudo o que elas significaram no passado vão, pouco a pouco, sendo transformadas em museus, portanto, em lugares de memória, como diria Pierre Nora. 12


Neste exato momento, a leitura de Ferrovia, sociedade e cultura (18501930) é uma rara oportunidade para o confronto, sempre salutar, porque analítico, entre a tentação de romantizar o passado e a necessidade de promover sua constante dessacralização. Afinal, é exatamente no exercício de resistir ao poder sacralizador da memória que se encontra a possibilidade de criar um mundo novo, livre dos efeitos coléricos ou entusiásticos do que ficou, no presente, das memórias do passado. Nessa medida, o leitor que vivenciou partes do passado aqui feito História há de se deparar com acontecimentos que lhe transportarão para espaços hoje inexistentes ou remodelados e, por isso mesmo, re-significados. Mas, simultaneamente, será enredado em uma cadeia de circunstâncias que lhe dificultará idealizar as ações dos formuladores, inventores e/ou usuários das inovações técnico-científicas que, segundo uma leitura otimista do passado, teriam inaugurado um mundo promissor independentemente de classe, sexo, etnia e credo religioso. Ao invés disso, a análise aqui desenvolvida é sacrílega, para usarmos uma expressão de Tzvetan Todorov, porque problematiza as matrizes discursivas da época e mostra como o ideal de progresso identificado com a era das ferrovias foi o resultado do sentido atribuído à combinação entre tradição e modernidade. Combinação essa que teve, dentro e fora do país, seus lotes de prazer e sofrimento; de inclusão e exclusão econômica, social, política e cultural. Por fim, pensando com Michel De Certeau, diríamos que esse exercício analítico demandou algumas operações próprias do ofício do historiador que o autor deste livro tão bem soube executar. Mais que favorecer a esse ou aquele impacto da era das ferrovias, a sequência de seu trabalho disponibiliza os fatos coletados em diferentes arquivos, organiza-os, relaciona-os, estabelece suas causas e seus desdobramentos para então atribuir-lhes um sentido que, no limite, é sempre suscetível de mudança, pois depende fundamentalmente do fabricador do passado: o historiador. Em outras palavras, o estudo de Pablo Luiz de Oliveira Lima oferece ao leitor jovem e ao leitor que, como dito há pouco, desfruta um chão comum de memórias da era das ferrovias a possibilidade de conhecer, compreender e re-avaliar “a passagem da memória através das gerações”. Maria Eliza Linhares Borges PPGH/UFMG

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Introdução

Ferrovia, história e memória “A burguesia, através de sua exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países. (...) Em lugar das antigas vontades, satisfeitas pela produção do país, encontramos novas vontades, exigindo para satisfazê-las produtos de terras e climas distantes. No lugar da antiga reclusão e autossuficiência local e nacional, temos conexões em todas as direções, uma interdependência universal das nações. A burguesia, pelo aperfeiçoamento rápido de todos os instrumentos de produção, pelos meios de comunicação imensamente facilitados, arrasta todas as nações, até a mais barbárica, para a civilização. (...) Compele-as a introduzir o que chama de civilização no seu meio, ou seja, a tornarem-se burguesas. Resumindo, cria um mundo à sua imagem.” Friedrich Engels e Karl Marx, O Manifesto do Partido Comunista, 1848 (1996:14-15) “Assim, pois, acontecimentos notavelmente análogos, que, no entanto, ocorrem em meios históricos diferentes, conduzem a resultados totalmente distintos. Estudando em separado cada uma dessas formas de evolução e comparando-as depois, pode-se encontrar facilmente a chave do fenômeno, porém nunca se chegará a isso mediante o passaporte universal de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja suprema virtude consiste em ser supra-histórica.” Karl Marx, Carta ao diretor do Otiechenstviennie Zapiski, 1877 (1947:171-172)

O transporte ferroviário nasceu no mesmo período histórico que o Império do Brasil – o segundo quartel do século XIX – e desde o início despertou o interesse das lideranças do jovem Estado em sua tarefa de construir uma nação sobre vasto e diverso território. A inovação técnica mal era conhecida na Europa e já era vista como uma solução para a questão da integração nacional no Brasil. Caberia à ferrovia o papel de 15


fortalecer a união imperial e o poder do governo central sobre um país de dimensões continentais. A consolidação de rotas de comunicação e comércio entre o interior e o litoral, mais dinâmicas e eficientes, permitiria o transporte dos valores da civilização presentes na Corte para o sertões mais remotos do império. No entanto, a posteriori sabemos que a ferrovia não teve neste país o desenvolvimento esperado pelos seus entusiastas, e tampouco semelhante ao de outras nações. As citações da obra de Karl Marx e Friedrich Engels com as quais este livro se inicia justificam-se por serem tais pensadores contemporâneos ao processo de difusão da economia capitalista industrial pelo mundo, processo este acompanhado e alimentado pela simultânea disseminação da tecnologia ferroviária. Melhor talvez seja dizer sistema ferroviário, que envolve a dimensão da técnica, tecnologia e ciência, assim como as esferas do trabalho e capital e, certamente, o campo da ideologia. No Manifesto do Partido Comunista, de 1848, Marx e Engels elaboram a representação do progresso da civilização capitalista como um processo histórico inevitável que transformaria as mais diversas regiões em domínios da burguesia, tornando todas materialmente semelhantes. Muito diferente é a citação, de 1877, que revela claramente a compreensão de que, apesar de muitas aparentes semelhanças, os processos históricos são formados por características próprias de acordo com cada conjuntura espacial e temporal. Marx refuta, nesta passagem, a ideia de uma teoria “supra-histórica” que fosse capaz de explicar todos os fenômenos, em qualquer tempo e espaço. Neste caso, percebe-se uma profunda diferença entre o texto do Manifesto de 1848 e o da Carta de 1877, o que significa uma mudança de pensamento, fruto do amadurecimento intelectual marxista. No entanto, é possível dizer que, no campo das ideologias eurocêntricas do século XIX como um todo, predominou uma crença na inevitabilidade do progresso e na possibilidade de os mesmos elementos levarem a resultados semelhantes em locais diferentes, como no caso da ferrovia. Assim, muitos membros da elite brasileira acreditavam que o trem de ferro poderia ser implantado ao Brasil e que levaria ao desenvolvimento econômico semelhante ao de outros países que também possuíam vias férreas, como a Inglaterra, a França e os Estados Unidos. No Período Regencial, desenvolvimento sócio-econômico e modernização cultural tornaram-se temas importantes das agendas políticas nacionais e regionais. Importar tecnologia ferroviária, e assim “queimar etapas” no processo de industrialização, parecia ser o motor do progresso no caso brasileiro. Em 1835, em meio a uma conjuntura política conturbada, com revoltas no norte e sul do país, o governo central abriu a primeira con16


cessão para uma ferrovia entre a Corte e as províncias da Bahia, do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Todavia, a primeira ferrovia brasileira foi inaugurada apenas em 1854. Desse ano até 1889, foram construídos 9.500 km de linhas férreas por vinte companhias ferroviárias em todo o país (David, 1985:13). Durante a República, a malha nacional triplicou sua extensão até 1930 (Schoppa, 1985:27), ano que marcou o fim da primeira grande fase da História ferroviária brasileira, na qual esta análise se insere. Esse período foi caracterizado por um paradoxo: a cooperação concreta entre trabalho, ciência e tecnologia em torno de um sistema de transporte construído sem um planejamento social, econômico e técnico que o coordenasse nacionalmente, apesar da ideologia do progresso ordenado que atravessou o Império e a Primeira República. Entre 1854 e 1870, foram assentados 700 km de trilhos no Brasil; em 1890, o país possuía 9.600 km de malha ferroviária, aumentando para 15.000 km em 1900 e 30.000 km em 1925. Durante o governo Vargas, muitas companhias ferroviárias foram estatizadas e incorporadas em redes regionais. Em 1931, a malha mineira, maior da atual região sudeste, passou a compor a Rede Mineira de Viação. Em 1952 foram iniciados os estudos para a formação de uma rede nacional, criada em 1957, pelo governo de Juscelino Kubitschek, com o nome de Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), a Rede, que passou a controlar quase todas as ferrovias do país. O ano seguinte, 1958, marcou o auge da malha nacional: 38.000 km. A partir de então e durante ditadura militar iniciada em 1964, no entanto, o transporte ferroviário foi negligenciado em detrimento de uma política de transporte rodoviário. Ao final da ditadura, em 1983, o país possuía apenas cerca de 29.000 km. Em 1996, o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso desestatizou a malha nacional e a RFFSA entrou em processo de liquidação. Atualmente, doze empresas concessionárias lucram com o transporte de mercadorias em larga escala pelos 29.637 km de ferrovias brasileiras, uma malha menor do que a de 1925.1 A história da influência social e cultural das ferrovias no Brasil permite a reflexão sobre as questões da modernidade e do papel da tecnologia na vida humana que acompanha a realidade contemporânea. Conhecer as primeiras ferrovias brasileiras contribui para a percepção do caráter histórico do capitalismo no Brasil, marcado por mudanças e permanências; transformações na forma e reproduções na essência.

Site da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) (www.antt.gov.br/index. php/content/view/4751.html), acessado em 16/12/2014. 1

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Neste livro, selecionamos duas empresas na raiz da consolidação do capital industrial, comercial e de serviço no Brasil. Uma delas é a Companhia de Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM), primeira empresa privada de sociedade anônima do setor ferroviário sediada em Minas Gerais. Inaugurada em 1881 entre a estação de Sítio, próxima a Barbacena, nos trilhos da Estrada de Ferro Dom Pedro II (EFPII), e a cidade de São João del Rei, realizou a ligação ferroviária entre o oeste da província e a EFPII, que conectava o Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo. Em 1899, devido ao déficit orçamentário, a EFOM foi liquidada, leiloada e adquirida pelo governo federal. Passou a ser uma das maiores empresas controladas pelo Estado no país. A segunda é a Companhia de Estrada de Ferro Goiás (EFG), inaugurada em 1907, empresa também privada, partindo da cidade oeste-mineira de Formiga, ponto final da EFOM, em direção norte-noroeste, rumo ao estado de Goiás. Em 1918, seus trilhos alcançaram a cidade de Patrocínio. Com a crise internacional provocada pela Primeira Guerra Mundial, esta empresa também faliu e em 1920 foi liquidada e comprada pela EFOM, que então se tornou a maior companhia ferroviária de Minas Gerais. Durante meio século, milhares de trabalhadores realizaram a ligação ferroviária entre o litoral e o interior do país. Os trilhos e estações que ainda sobrevivem são evidência deste trabalho, enquanto as memórias destes homens e mulheres são pouco conhecidas. O presente estudo foi elaborado com o acesso a diferentes lugares de memória do trabalho ferroviário na sociedade mineira que guardam, por um lado, as estratégias de consagração e imortalização de certas versões e interpretações. Por outro, registram também os silêncios e esquecimentos, a ausência de inúmeros sujeitos nas fontes históricas. Assim, é preciso realizar um movimento entre o que pode ser revelado e o que é oculto, permitindo o surgimento das várias faces de um mesmo processo. Representações sobre o trabalho ferroviário, produzidas pelas companhias, pelas comunidades por elas conectadas e pelos próprios trabalhadores, analisadas de um ponto de vista histórico, permitem a elaboração de várias hipóteses sobre o cotidiano do trabalho ferroviário e sobre a sociedade que as produziram. O tema ferroviário tem sido abordado pela historiografia brasileira sob perspectivas diversas e de maneira fragmentada. Desde os anos 1950, trabalhos de memória histórica passaram a se fundamentar em pesquisas baseadas em diferentes metodologias. O livro Um trem corre para o oeste: estudo sobre a Noroeste e seu papel no sistema de viação nacional, de Fernando de Azevedo, publicado em 1953 sobre a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que percorreu os estados de São Paulo e Mato Grosso, é um 18



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