FRONTEIRAS MÓVEIS: HISTÓRIA, LITERATURA

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Cl茅ria Bot锚lho da Costa

Fronteiras M贸veis: hist贸ria, literatura Org.

Maria do Espirito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro




Fronteiras Móveis: história, literatura

ORGANIZAÇÃO

Cléria Botêlho da Costa Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro


Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Cléria Botêlho da Costa, Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

F959 Fronteiras Móveis : história, literatura / organização Cléria Botêlho da Costa, Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro. – 1. ed. – Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2015. 296 p. ; 23 cm. (História ; 52) ISBN 978-85-8054-242-4 1. Teoria do conhecimento. 2. Antropologia. I. Costa, Cléria Botêlho da. II. Ribeiro, Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante. III. Série. 15-20802 CDD: 121 CDU: 165

Conselho Editorial Coleção História Alexandre Mansur Barata | UFJF Andréa Lisly Gonçalves | UFOP Júnia Ferreira Furtado | UFMG Gabriela Pellegrino | USP Iris Kantor | USP Marcelo Badaró Mattos | UFF Paulo Miceli | Unicamp Rosângela Patriota Ramos | UFU

Fino Traço Editora ltda. Av. do Contorno, 9317 A | 2o andar | Barro Preto | CEP 30110-063 Belo Horizonte. MG. Brasil | Telefone: (31) 3212-9444 finotracoeditora.com.br


Apresentação  13

1  Gente da gleba: heterogeneidade, história e política | Albertina Vicentini   13 2  Fronteiras da recepção – percursos históricos e estéticos na interlocução entre palco e plateia | Rosangela Patriota   39

3  Quando a literatura encontra a política: 1954 e 1964 nas escritas de Marcos Rey e de Carlos Heitor Cony | Lucilia de Almeida Neves Delgado  61

4  O cordel brasileiro e os movimentos literários | Cléria Botêlho da Costa, Maria Helenice Barroso   85

5  O “historiador-artista”: indagações sobre o modelo narrativo clássico | Monica Pimenta Velloso  101

6  O café, o jornal e o leitor: aventuras noturnas em crônicas do fin-de-siécle | Marina Haizenreder Ertzogue, José Alcides Ribeiro, Maria do Espirito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro  119

7  A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro: o caleidoscópio histórico das ruas da megalópole | Eloísa Pereira Barroso   137

8  Milagre do povo no cinema: o filme Tenda dos milagres | Marcos Silva   161 9  Fronteiras estéticas e historiografia do cinema brasileiro: revisitando o debate acerca do cinema novo e do cinema marginal | Alcides Freire Ramos  171

10  El Adán Buenosayres de Leopoldo Marechal: elementos literarios para una trans-historia | Edgard Vidal    183

11  Aluísio Azevedo e a história literária: possibilidades de interpretações | Ana Porto   203

12   Aproximações entre literatura e teatro: apontamentos sobre Visões Siamesas da Companhia do Latão (2004) | Rodrigo de Freitas Costa   219


13  História e literatura na descrição da trajetória da Comissão Mista brasileira peruana de Exploração do Alto Purus | Alexandre Pacheco   233

14  Sob os voos dos morcegos. Augusto dos Anjos: um intérprete da modernidade | Telma Dias Fernandes   255

15  “A literatura é o labirinto perquiridor da linguagem escrita”: guerrilha semântica na literatura underground de torquato neto | Edwar de Alencar Castelo Branco   275 Sobre os autores  287


Apresentação

O conhecimento e análise da trajetória humana em múltiplas temporalidades é objeto peculiar da História. O historiador, ao descolar seu olhar para o passado, procura compreender as ações dos sujeitos históricos, individuais e coletivos, suas motivações, o ambiente e as condições em que foram realizadas. Busca também interpretar o sentido dessas ações, através da pesquisa e análise de fontes documentais diversas. Ao fazê-lo, dialoga com diferentes registros que podem traduzir: modos de vidas, sensibilidades, lembranças, esquecimentos, convivências, resistências, exercício de poderes, tradições, renovações, permanências, protestos, contestações, mudanças. Enfim, uma gama de possibilidades que caracterizam a vida humana. A produção historiográfica tem muitos pressupostos. Entre eles destacam-se duas dimensões inerentes ao movimento da História: tempo e espaço. As concepções sobre o tempo, em sua heterogeneidade, estão registradas em diferentes teorias sobre a temporalidade e seus processos diacrônicos e sincrônicos. Há abordagens de base estruturalista que, por exemplo, privilegiam o tempo longo. Outras destacam os movimentos conjunturais e de impactos imediatos. Esse é o caso da História do Tempo Presente. Longo ou curto, simultâneo ou sucessivo, passado ou futuro, o tempo é substrato da trajetória humana. Traz em si a História como realização concreta das vivências dos sujeitos sociais e individuais e, também, a História como conhecimento produzido. Portanto, para melhor entendimento sobre a produção historiográfica é fundamental considerar dois tempos específicos: o referente ao desenrolar de acontecimentos e processos e o relativo à produção de narrativas sobre esses mesmos acontecimentos e processos. Quanto ao espaço, também exerce forte influência sobre a escrita historiográfica, pois as análises históricas além de referenciadas a um determinado tempo traduzem culturas de grupos, inseridos em espacialidades específicas (os lugares plenos de significados) e marcadas por hábitos, valores, sensibilidades. 8


As diferentes abordagens temporais da História, agregadas ao reconhecimento das especificidades espaciais da vida em comunidade, fazem da construção do conhecimento histórico um empreendimento complexo e, muitas vezes, conflituoso. Assim aconteceu, por exemplo, com a renovação epistemológica e metodológica proposta pela Escola dos Annales. Sua incorporação não foi imediata e muito menos alcançou unanimidade quando de sua proposição. Ao contrário, encontrou resistências de diferentes dimensões, pois o reconhecimento da pluralidade, como por ela proposto, pressupõe flexibilidade para absorver renovações teóricas, epistemológicas e metodológicas. Renovações muitas vezes rejeitadas por apego a tradições, ideologias e poderes. O século XX contribuiu imensamente para tornar a escrita da História mais complexa e desafiadora. Foi um tempo de revolução metodológica verticalizada. Nesse sentido, a guinada epistemológica no campo da História pode ser entendida como uma verdadeira revolução paradigmática que inclui a escolha de novos objetos, a ampliação da pesquisa documental e a relação da História com diferentes áreas de conhecimento, em um movimento dialogal complexo e desafiador. Entre as diferentes áreas de conhecimento com as quais a História passou a dialogar com intensidade destacam-se a Economia, a Antropologia, a Sociologia, a Política, a Ecologia, a Geografia, a Religião, a Filosofia, a Arte, a Psicanálise e a Literatura, esta última, temática do presente livro, que reúne textos, cujo mote é a análise de obras literárias sob a perspectiva do historiador. Organizado pelas historiadoras Cléria Botêlho da Costa, da Universidade de Brasília (UnB), e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), é oportuna contribuição à História da Cultura. Literatura e História são maneiras diferentes de falar da realidade. Todavia, aproximam-se pelo registro da vida humana como experiência. Ambas atribuem sentidos à vida social e representam realidades e vivências. Suas narrativas, embora peculiares, constroem enredos sobre o desdobrar das existências individuais e coletivas. Todavia História e Literatura, embora contribuam para a demarcação dos substratos de temporalidades específicas, são campos de conhecimento caracterizados por registros diferenciados das 9


experiências do viver. E o que as distingue nas suas construções textuais peculiares são os diferentes compromissos que cada uma delas tem com a tradução narrativa da realidade. A literatura atua em um campo que pode ser ficcional, por isso muitas vezes é identificada como “o imaginário da História”. Sua natureza alegórica traduz imaginários e em muito contribui para desvendar os sentidos de diferentes realidades, uma vez que sua natureza ficcional não exclui o cruzamento das representações coletivas com o real. A História, em uma instância distinta à da Literatura, dedica-se a traduzir o que de fato aconteceu, embora influenciada, como já registrado, por temporalidades, espacialidades e opções teóricas e metodológicas. A História, assim como a Literatura também constrói representações, posto que também traduz imaginários. Essa tradução, entretanto, é realizada de maneira diferente ao da escrita literária, pois na produção da narrativa histórica, o imaginário pressupõe a realidade como suporte das representações coletivas e dos significados compartilhados pela comunidade pesquisada. Dessa forma, o exercício narrativo da História encontra limites se comparado à escrita literária que, em decorrência de sua natureza, é mais livre. A História, ao contrário, é pautada por rigor metodológico, que acompanha a produção de seu conhecimento desde a escolha de objetos e fontes até a escrita de uma versão interpretativa. Essas diferenças, todavia, não anulam as interseções entre as duas. Literatura e História dialogam intensamente a partir de suas especificidades e, como traduz o título do presente livro, caminham em um terreno em que as fronteiras são móveis, chegando algumas vezes a ser tênues e invisíveis a um primeiro olhar. Assim, de acordo com Pesavento (2003, p. 11): Se formos pensar a História como uma narrativa a História avança da Antropologia para os domínios de outro campo, que é o da Literatura. Nessa medida, quando o historiador penetra no terreno da linguagem, entendendo que as palavras sempre dizem além de sua função nominativa, ele fatalmente depara com o mundo de significados verbais e com figuras de linguagem.

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No diálogo com a Literatura, cabe ao historiador, a partir das necessidades de seu ofício, fazer indagações, que pressupõem prévia capacidade seletiva e interpretativa, uma vez que na interseção própria a esse conversar o historiador encontra personagens, cotidianos, valores e representações do mundo. Nesse movimento, a Literatura se constitui como fonte privilegiada, em especial para a História Cultural. Fornece ao historiador além de múltiplas informações, valores e representações inerentes às sociabilidades específicas. Também, no diálogo com obras literárias, o historiador pode mergulhar nas regiões mais distantes do passado, como acontece, por exemplo, nos romances históricos, ou de “época”, ou mesmo encontrar projeções de futuro, como no livro, 1984, do escritor britânico, George Orwell. Também, nesse fértil encontro, a Literatura fornece à História representações que traduzem vivências e experiências do espaço da vida privada ou registros de marca mais universal e pública. Nas duas situações, o texto literário é fértil, fonte para a construção de interpretações e escritas da História. O presente livro traduz, de forma exemplar, a fertilidade da “conversa” da Literatura com a História. Senão, vejamos: • O texto de Marina H. Ertzogue, José Alcides Ribeiro e Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro apresenta cenas noturnas do Café Londres na cidade do Rio de Janeiro no fim do século XIX, a partir das crônicas de Alcindo Guanabara publicadas na Gazeta da Tarde e no jornal Novidades (1886-1887) e das de Gregório de Almeida divulgadas pelo Diário de Notícias e pelo Diário do Comércio (1887-1890). De acordo com os autores do artigo os textos selecionados evocam a escrita noir de Edgar Allan Poe, além de tratar da influência da noite na melancolia, na sensibilidade do escritor e na “Literatura do eu”; • O artigo de Ana Gomes Porto dedica-se à análise da obra de Aloísio Azevedo, considerando também a abordagem de críticos da obra do autor, como Alfredo Bosi que afirma que Azevedo realizou “romances sérios” como O mulato, Casa de pensão e O cortiço e “pastelões melodramáticos” como A Condessa Vésper, Girândola de amores e A mortalha de Alzira;

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• Eloísa Pereira Barroso, por sua vez, dedica-se a interpretar aspectos da produção literária sobre o Rio de Janeiro, tomando, com grande sensibilidade, como referência principal o livro Romance Negro e Outras Histórias, de Rubem Fonseca; • Albertina Vicentini, por sua vez, apresenta análise sobre o papel intelectual de Hugo de Carvalho Ramos no processo de construção da nacionalidade, na Primeira República Brasileira. Para tanto, cuida de refletir sobre a novela-conto deste autor, Gente da Gleba, enfatizando sua perspectiva política de inventário e denúncia do atraso da sociedade goiana em tempos de discussão da modernidade brasileira; • Cléria Botêlho da Costa e Maria Helenice Barroso debruçam-se sobre as influências históricas na formação do cordel brasileiro, desdobrando sua abordagem em consistentes e profundas reflexões sobre a relação entre cordel e movimentos literários no Brasil; • Lucilia de Almeida Neves Delgado envereda pela relação entre História Política e Literatura, ao tomar como referência duas obras literárias, Ópera de Sabão de Marcos Rey, que tem como pano de fundo a conjuntura do suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e A Revolução dos Caranguejos de Carlos Heitor Cony, cujo cenário são a manifestações de segmentos da população brasileira, quando do golpe político de 1964; • Alcides Freire Ramos revisita o final da década de 1960, no Brasil. Seu texto realiza instigante reflexão sobre o debate acerca do cinema novo e do cinema marginal, que marcaram aqueles anos; • Edgard Vidal dedica-se à obra Adan Buenosayres de Leopoldo Marechal. Considera ser, essa obra literária, uma novela polifônica que aborda o misticismo na vida cotidiana da capital da Argentina; • Marcos Silva, ao discutir o filme Tenda dos milagres, de Nelson Pereira dos Santos, busca contribuir para o debate sobre a experiência ditatorial brasileira de 1964/1984, sublinhando questões como cultura popular e luta pelas liberdades sociais;

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• O texto de Alexandre Pacheco tem como objetivo narrar as interpretações que Leandro Tocantins, autor de Euclides da Cunha e paraísos perdidos (1967), faz das representações que Euclides constrói sobre a Amazônia Ocidental ao subir o Rio Purus; • Edwar de Alencar Castelo Branco desenvolve sensível reflexão sobre o sentido contestatório, marginal e subversivo da obra do poeta baiano Torquato Neto, no início dos anos de 1970, quando o Brasil estava mergulhado no período mais duro da ditadura implantada no país, no ano de 1964; • Mônica Veloso debruça-se sobre a relação porosa e ambivalente da História com a Literatura, tomando como referência para suas irretocáveis e argutas análises o livro Vida e Morte de M. J. Gonzaga, do escritor carioca Lima Barreto. Este conjunto de textos aprofunda estudos específicos sobre as dimensões dialogais e inter-relacionais da História com a Literatura que mesmo tendo competências distintas constroem narrativas sobre espaços, tempos e sujeitos, vida privada e vida pública. Além disso, o que não é pouco, desafia os historiadores da cultura a mergulharem na escrita literária com um olhar renovado, capaz de enxergar a complexidade da História em movimento. Lucilia de Almeida Neves Delgado

Referências bibliográficas ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2003.

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Gente da gleba: heterogeneidade, história e política Albertina Vicentini

Gente da Gleba é uma narrativa de Hugo de Carvalho Ramos, datada de 1916, i.e., do ano anterior à publicação de Tropas e Boiadas, em 1917. Hierarquicamente, tem como narrativa primária a estória de Benedito dos Dourados, afilhado e braço direito do Coronel dono da Fazenda Quilombo, fazenda de gado, açúcar e café próxima ao povoado de Curralinho, em Goiás. Apaixonado por uma moça, a Chica, do povoado de Santo Antônio, Benedito descobre ser ela também a amante de seu padrinho Coronel, homem que ele põe humilhantemente a correr quando pega os dois em flagrante. A humilhação não será esquecida pelo Coronel que, brutalmente, castrará o afilhado, deixando-o morrer à míngua no pelourinho do curral da fazenda: Morrera o infeliz, após lenta agonia de uma semana sem pão e sem água no fundo da casa do tronco, donde urros de endemoninhado saíam na noite, ao acompanhamento lúgubre das aves de má morte no telhado (RAMOS, 1998, p. 153).

Nhá Lica, sua filha, apaixonada que era por Benedito, morre logo após “de tristeza e paixão”. Narrativa secundária é a da fuga e reaprisionamento do negro Malaquias, camarada endividado pelo sistema de ajuste de dívidas junto ao Coronel, que o prende ao tronco e o surra, reinventando, pós-abolição, o antigo cativeiro da época da escravatura. Afora essas duas, alguns pequenos contos (ou causos) povoam o texto: o do equívoco de Benedito em relação ao enterro do filho do Cristino, que ele presume ser uma assombração ou aparição (que Hugo de Carvalho 14


reedita no conto ‘Caminho das Tropas’, dentro de Tropas e Boiadas); o de ‘Generoso das Abóboras’, velho treme-treme, que acordara com uma cascavel dormindo enrodilhada em seu peito e pela angústia do momento branqueara instantaneamente a cabeça e dera a tremer do acontecido em diante; a do ‘Desidério’, cabo de polícia do tempo da monarquia, que atinge o bandoleiro Deodato, homem de corpo-fechado, que só morre quando lhe tiram o “bentinho” que trazia ao pescoço; e a de ‘Pai Romeu’, escravo levado ao tronco, cuja surra ele transpõe para o filho do patrão, que morre pela feitiçaria do negro. Também compõem o universo diegético primário do texto o registro de jogos de carta, como o truco goiano e seu modo espalhafatoso de ser jogado, suas expressões verbais e comportamentos à mesa; jogos de grupos – o bete, o chicotinho-queimado; as cavalhadas – recuperação da luta entre mouros e os cristãos de Carlos Magno; as folias da roça; as danças do interior goiano – o bumba meu boi, a dança dos índios, a dança de velhos, o vilão, o quebra-bunda, a dança do Congo, as congadas; a descrição da Semana Santa na Cidade de Goiás – as procissões do Domingo de Passos, os Sete Passos da Noite, a Via-Sacra, a Sexta-feira Santa, a Procissão do Enterro, o Sábado da Aleluia e a Queima do Judas, o Domingo da Ressurreição; as ‘simpatias’; as superstições dos bentinhos; quadrinhas de canto e verso. Parte dessas assertivas se deve ao fato de que, pelo menos no propósito textual, Gente da Gleba parece constituir-se na narrativa mais peculiar de Hugo de Carvalho. O título da novela-conto já indicia isso: gente da gleba, isto é, uma exposição geral, panorâmica, do homem do interior goiano. De um lado, dentre os trabalhos de Hugo de Carvalho Ramos, é a que mais inventaria, etnograficamente, a mentalidade, os usos e costumes do homem sertanejo – suas danças, causos, superstições, simpatias, jogos de entretenimento, usos, costumes, vocabulário etc – sempre atrelados a um discurso e a cenas desenvolvidas para esse sentido, ou seja, cria cenas e situações narrativas capazes de permitir o ingresso desse inventário, que é realizado de forma explícita; de outro lado, é também a obra mais ilustrativa daquela face original de Hugo dentro da corrente regionalista de seu tempo, que é a sua face política da denúncia social local e nacional, que somente

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viria a ser desenvolvida com mais vigor a partir do regionalismo de 1930, especialmente o nordestino. Isso quer dizer que a miscelânea (sem sentido pejorativo) que vimos apontando como uma das resoluções de obra da corrente regionalista1 comparece como resolução de texto (e não mais somente de obra) nessa novela-conto de Hugo de Carvalho Ramos. Aliás, ela não é a única narrativa do seu livro de contos Tropas e Boiadas que apresenta essa faceta. Outras também se resolvem com esse sentido, como Madre de Ouro, Nostalgias ou Dias de Chuva (as duas últimas próximas à crônica, a primeira mais como registro documental). Essa defasagem na obra final e na novela-conto Gente da Gleba indicia, por si só, o conceito de heterogeneidade de Cornejo Polar, que diz ser uma produção textual heterogênea aquela que é, no mínimo, contraditória, porque tem um elemento que “não coincide com a filiação dos outros e cria na obra, necessariamente, uma zona de ambiguidade e conflito” (POLAR, 1977, p. 12). Ou seja, são heterogêneas obras cujos referentes empíricos não conseguem estruturar uma forma estética pertinente, apontando níveis sociais e estéticos desiguais aos de sua produção; ou por se destinarem a um consumo diferente; ou porque o escritor parte de uma consciência de polo hegemônico, incapaz de penetrar numa matéria-prima que lhe é estranha; ou porque fratura o mundo representado e o modo de apresentá-lo; ou apresenta formas estéticas avançadas ou anacrônicas, incoerentes com o sistema reproduzido; enfim, obras que apresentam estruturas díspares em convivência. Tal não significa, no entanto, um conceito negativo, porque, especialmente em relação ao escritor de polo hegemônico, como é o caso de Hugo de Carvalho Ramos – escolarizado, consciente, de família relativamente de posses, estudante e morador do Rio de Janeiro –, essa defasagem pode ganhar positividade, quando a obra tipo “miscelânea”, conforme assinalamos 1. Ou seja, sem nenhum tipo de pejo literário, o escritor regionalista coloca em sua obra, lendas, trovas e superstições recolhidas, História (em rodapés), introduções informativas, glossários etc., ao lado de seus contos criativos. Se isso faz das relações referente de obra/ referente empírico mais próximas neste tipo de literatura que nos outros, essas mesmas relações, ampliadas, adjetivam o universo do relato regionalista como particular frente a outros considerados de temática universal.

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atrás, passa a ser um tipo de resistência a um cânone ou modelo transplantado através da formulação de outro modelo, como fez Euclides da Cunha em Os Sertões, dividindo o seu texto em três partes e preenchendo-o com História, Sociologia, opinião etc. Recorrer à história permite, de imediato, explicar as razões da pluralidade literária latino-americana, que em grande parte procede do desenvolvimento desigual de nossas sociedades. Esta única comprovação, talvez óbvia mas necessária para não se cair nos excessos de etnicismo, modifica substancialmente todo o campo do problema. Efetivamente, a perspectiva histórica obriga a considerar, em que pese a pluralidade real de nossas literaturas, que existe um nível integrador concreto (...) (POLAR, 2000, p. 30)

De maneira que, apesar do inventário que existe dentro de Gente da Gleba, mas também por causa dele e da denúncia social, esse conto de Hugo de Carvalho Ramos é, afinal, um conto cuja perspectiva política é bastante assente. Se há a dialética da identidade do rincão goiano e da sua alteridade com as outras regiões do país no inventário, a essa identidade e alteridade, no entanto, se junta um momento histórico local que é, politicamente falando, preciso denunciar, especialmente porque discute a possível modernidade nacional regeneradora – ou mesmo o jogo campo-cidade sempre sub-reptício nesse tipo de literatura – das questões da Primeira República brasileira e as ideias desse tempo. Atraso e modernidade já eram discussões pendentes na sociedade brasileira desde o final do século XIX, que assistira à Segunda Revolução Industrial ou Revolução Tecnocientífica, cujas características principais foram a grande empresa monopolista, a internacionalização da economia sob o Estado e a Ciência como instrumento para desenvolver técnicas e materiais industriais2. Ou seja, ser moderno significava, a esse tempo, 2. “Não há dúvida de que o mundo já não era o mesmo a partir de 1870. Era impossível ficar alheio ao turbilhão de novidades impostas pela revolução tecnológica, porque as transformações que decorriam não se mostravam ocasionais, como tinham sido na 1.ª Revolução Industrial. Eram cientificamente planejadas: surgiram os novos materiais, o aço, a eletricidade e o petróleo substituíram o ferro e o vapor, e a medicina foi revolucionada com os avanços da indústria química e da farmácia, bem como com o advento das novas

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estar atualizado com o mundo e acompanhar a ordem urbano-industrial resultante daquela revolução. No entanto, no Brasil, esse tipo de modernização, pelo menos no início do século XX, foi uma preocupação ambígua e contraditória das nossas elites. Se houve a preocupação com o urbano no sentido da ‘higienização’ em todos os sentidos – reforma e embelezamento de cidades, monumentalismo, sanitarismo, afastamento da pobreza dos grandes centros, ‘limpeza social’ etc. (SEVCENKO, 1995), “são também bastante conhecidas as teses, especialmente a partir de Alberto Torres, que postulavam um destino agrícola para o Brasil, estabelecendo uma distinção entre a superioridade da agricultura em relação à artificialidade das atividades urbanas”, dizem Peres e Terci (2001, p. 140). Dito de outra forma, se, dentro da formação dos dois grandes grupos no nível internacional – o centro europeu e norte-americano formado pelos países industrializados e a periferia composta pelos demais países, basicamente de economia agrícola –, o Brasil mantinha-se no segundo grupo, sem processos de industrialização, ainda que o mercado interno tenha se intensificado e dinamizado, e persistia ainda a elite rural, com sua estrutura produtiva monocultora e latifundista de base primário-exportadora, e que resistiria até os anos 30 do século XX (PERES e TERCI, 2001, p. 139); dentro da ordem interna, como alerta Renato Ortiz (1994), a partir de então, inaugura-se uma linha de pensamento que busca “entender a questão da identidade nacional na sua alteridade com o exterior”. Ou seja, ser moderno significava principalmente tirar o Brasil do “atraso” em que se encontrava, identificado nos elementos formadores do povo ou da raça brasileira, atribuídos ao passado colonial e suas remanescências, e agravados pelo clima tropical – negritude, indolência, preguiça3, mas também na esfera da ciências – a microbiologia, a bioquímica e a bacteriologia –, que alteraram qualitativamente a prática médica. Sem contar a revolução na agricultura, provocada pela introdução dos fertilizantes artificiais, dos novos métodos de conservação dos alimentos – a refrigeração, a pasteurização e a esterilização – e, ainda, do aperfeiçoamento nos processos de embalagem de alimentos enlatados” (PERES e TERCI, 2001, p. 139). 3. Veja-se que, em 1914, Monteiro Lobato iniciaria sua detratação do homem do campo brasileiro na figura do Jeca Tatu, cujas características de atraso pela preguiça, ignorância, falta de higiene etc., coadunariam com essas ideias, estabelecendo-o antes como “problema”

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política, para a qual ser moderno era acabar com os entraves das oligarquias regionais e as mazelas eleitorais4 que as perpetuavam no poder, impedindo a ascensão das “oposições redentoras”. De maneira que, ainda nesse período, a centralidade da preocupação com a construção da República de fim do século XIX e início do XX se deslocaria para a da construção da nacionalidade, dando origem a uma campanha nacionalista que tomaria conta do país. “Esse movimento envolveu as principais capitais brasileiras, institucionalizando-se nas ligas nacionalistas estaduais, e, embora tivesse ainda como elemento irradiador as transformações no cenário das relações internacionais, diferia substancialmente do que fora o processo “regenerador” das décadas iniciais da República”: Tratava-se de um movimento introspectivo, e não cosmopolita como o anterior, o centro irradiador passou a ser São Paulo, não o Rio de Janeiro, e seu objetivo consistiu na busca de uma identidade nacional que permitisse ao Brasil integrar o mundo moderno e participar da divisão internacional do trabalho, preservando sua autonomia e soberania. Para tanto, o resgate do passado, das raízes tradicionais, da cultura popular, dos feitos de suas gentes desde os áureos tempos do período colonial representava uma âncora fundamental para a construção de um futuro alicerçado na justaposição do velho e do novo, do arcaico e do moderno (SEVCENKO apud PERES e TERCI, 2001, p. 142). econômico e não mais como conflito étnico ou de poder político – monarquia/república – como fora discutido por Euclides da Cunha em 1905. 4. José Antonio Spinelli Lindoso (2005, p. 6-7) relaciona, sucintamente, certos aspectos que caracterizam a Primeira República, ressaltados por diversos analistas (Fausto, 1975; Furtado, 1975; Gorender, 1981; Mello, 1982; Silva, 1976; Souza, 1977): a debilidade do mercado nacional, fracamente integrado, acarretando uma relativa autonomia dos vários subsistemas regionais e/ou estaduais; a complementaridade de interesses entre agricultura e indústria, em condições de dependência da segunda à primeira, formando uma unidade contraditória; a subordinação do capital industrial ao capital agromercantil, o que supõe ao mesmo tempo identidade e contradição; a inserção subordinada e “dependente” da economia nacional no sistema econômico mundial capitalista, como exportadora de bens primários e importadora de capitais e bens industrializados; a propriedade da terra como eixo da organização social; a dependência e o favor como traços que permeiam as relações sociais, mascarando as oposições e os conflitos básicos; a regionalização das demandas econômicas e políticas das classes dominantes, conferindo especificidade a seus conflitos internos; a “passividade” das massas rurais, sob a tutela do paternalismo coronelístico, cuja ruptura se dá, em geral, pela “rebeldia primitiva”: messianismo, cangaceirismo, banditismo; o liberalismo excludente do sistema político, ou liberalismo meramente formal.

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Assim é que, escrita em 1916, a novela/conto de Hugo de Carvalho Ramos e seu autor estão no centro dessas discussões, desenvolvendo tanto o resgate de nossa “cultura popular” quanto sendo “âncora para a construção de um futuro alicerçado na justaposição do novo e do velho”, com intuito nacionalista. Conforme assinalamos, há nela uma “miscelânea” que significa também esse conjunto de ideias que assolou o país nessa Primeira República. Se não, vejamos. Conforme vimos dizendo a respeito da posição ambígua e contraditória do Brasil nesse momento, o poder das elites agrárias sobre o setor produtivo encontrava uma burguesia citadina que também se desenvolvia lentamente, principalmente onde se firmava o fluxo industrial, como Rio e São Paulo. Essa burguesia, na luta pelo poder e direção do país, possuía um elemento a mais que as elites agrárias: o fator ideológico e intelectual, representado pelo conjunto da intelectualidade nacional e regional, que começava a impor uma interpretação da realidade brasileira da maneira como ela viria a se dar nos anos 1930, ou seja, em bases menos românticas e mais assentes à situação real do país. Hugo de Carvalho Ramos não foge a esse processo como elite citadina. Nascido na cidade de Goiás, de classe relativamente abastada e letrada – era filho de um juiz também escritor e poeta –, estudou todas as fases de escolarização no Lyceu de Goiás até ir para o Rio de Janeiro em 1912 para completar seus estudos de Direito. Um escritor bastante letrado5, do universo de seus escritos realçam suas habilidades intelectuais: prosador-poeta simbolista e regionalista, crítico literário, poeta, tradutor, correspondente assíduo com 5. Cf. o que ele diz sobre a sua própria formação intelectual seletiva e a formação necessária a qualquer um. O entrecho é de uma carta sua a um iniciante que lhe pede a opinião sobre o que ler: “A minha opinião sobre a leitura, e leitura de ‘livros literários, de que faz objeto sua longa missiva, absolutamente não é uma opinião geral, abrangendo todos os que se deixaram morder por essa tarântula que se chama febre dos livros e de mais ler para mais aprender. É apenas circunscrita a meu caso particular uma vez tendo dado o giro a todas as literaturas, escolas, e, principais, achei, levado sempre por um espírito inicial de sistematização, que toda a bagagem mundial de escolas literárias se poderia reduzir a uns vinte ou trinta arquétipos gerais, donde derivaria toda essa fonte de obras literárias que fazem a riqueza intelectual das nações civilizadas. Mas, para chegar a esta conclusão, idêntica a de tantos outros, muito teve que ler, confrontar, compulsar e admirar, antes que o meu espírito já mais ou menos ‘blasé’ dessas leituras e estudos, se encerrasse em meia dúzia de autores que fazem hoje em dia as delícias da minha meditação” (RAMOS, 1955, p. 225).

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familiares e amigos, leitor de língua inglesa e francesa e, especialmente, em nosso interesse aqui, articulista de jornais e revistas. Como articulista, Hugo de Carvalho Ramos refere-se sempre ao universo intelectual brasileiro, que ele elabora como de três tipos, conforme disse França (1978, p. 30): uma geração de intelectuais fortemente influenciada pelas ideias estrangeiras, europeias e americanas, na literatura, na arte e no esporte; uma ‘nova geração’ (na qual ele se inclui) preocupada com a independência intelectual e com a imposição de uma nova consciência nacional; e uma mentalidade acrítica, atrasada, contraposta às duas anteriores, condicionada historicamente pela sociedade agrária estática, que se articula sob o coronelismo e as oligarquias. Dessa ‘nova geração’, Hugo acaba por ser mais que um participante, um militante. Um de seus pontos principais é o atendimento a uma ética nacionalista, de que sua literatura faz parte, a resguardar o típico local daquilo que ele chama de desnacionalização de nossa cultura, ou seja, atacar os elementos que descaracterizam a cultura nacional, como a troca do bete pelo futebol, por exemplo, ou a da capoeira pelo boxe, troca que desprestigia não só o ‘nosso’ esporte como a inteligência nacional: “Pesa imaginar que, num país de índole tão inventiva, se esteja a importar tudo do estrangeiro, ideias e fatiotas, sem uma nota, um sainete original, característico, inconfundível, a dizer alto da nossa inteligência e dos foros de povo emancipado.” (RAMOS, 1955, p. 120). Propõe a adjunção de nosso jornalismo à sua luta dentro de um projeto de nacionalização da literatura, deixando de lado “os folhetins (...) e a matéria de rodapé [que] continua a ser Richembourg, Terrail, Escrich e o funambulesco Nick Carter.” (RAMOS, 1955, p. 171). Ao contrário, apregoa: Prodigioso estímulo adviria para a boa produção nacional, ao mesmo tempo que se orientaria melhor o senso estético dos leitores, o caso das nossas empresas jornalísticas irem procurar entre os verdadeiros autores nacionais matéria de colaboração, aviventando no público, por mais este meio, não só a preferência, como também o conhecimento dos variados aspectos e costumes do país. E assim fazendo obra patriótica, digna dos mais calorosos louvores (RAMOS, 1955, p. 171).

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A consciência dos males que obstaculizam a modernidade da nação também comparece nos seus discursos sobre a necessidade moral de uma liderança intelectual orgânica para o país [a citação é longa, mas importante, porque sintetiza algumas ideias fundamentais de Hugo]: É enorme a responsabilidade que toma sobre os ombros quem se vota ao encargo de escrever para o público, e mormente o público de um país como o nosso, onde a difusão do ensino e hábito de discernir e aquilatar por si não chegaram ainda ao louvável grau de desenvolvimento de algumas outras nações. A boa vontade de uns é destruída pela incúria de outros, e somos uma nacionalidade onde não há uma opinião pública instável e esclarecida, nem tampouco a íntima consciência dos nossos verdadeiros destinos. E, pesa confessá-lo, a classe literária, entre nós, pouca ou nenhuma influência tem, presentemente, sobre a orientação e a marcha do progresso social, relegada para um plano secundário a que não deve, absolutamente, fazer jus. Se a maioria de nossos políticos profissionais se limita apenas a guerrilhas de campanário onde a verdadeira noção de aspirações pátrias se perde em lutas estéreis de pouco ou nenhum alcance para a coletividade, cumpre aos homens de pena assumir o papel de divulgadores e encarecedores das diversas partes do corpo social, pouco conhecidas entre si, exaltando-as e amando-as na medida de suas forças, a fim de que o sentimento de solidariedade coletiva não se malbarate e se perca em menosprezo e dissenções intestinas (RAMOS, 1955, p. 227).

Dentro desse papel de intelectual liberal e a fim dessa solidariedade coletiva, Hugo chega a propor uma literatura engajada e uma relação associativa entre os literatos: Esquecem-se, como bem diz, cremos, Fialho de Almeida, de que os homens de letras são a classe mais nobre de um país. Isso, em parte, é devido ao completo alheiamento entre a maioria de nossos escritores, dos problemas e necessidades de ordem política e econômica da nação, que muitos enclausurados da Torre de Marfim afetam desconhecer, senão menosprezar. E também à absoluta falta, entre os intelectuais de

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espírito associativo, que faça de tantos membros isolados e esmagados pela massa, um corpo uno, intimamente solidário com suas partes, conscientes de seus direitos e da sua função social, impondo-se e opondo-se às variadíssimas correntes contrárias de nulíssimos concorrentes na atividade pública, cujo êxito e prestígio de opiniões são quase sempre devidos à sua coesão e força numérica (RAMOS, 1955, p. 171).

De maneira que o regionalismo de Hugo de Carvalho Ramos se explica também um pouco por isso: a sua necessidade, enquanto intelectual orgânico, de participar desse momento “patriótico” de construção da nacionalidade brasileira. O inventário que promove em relação aos elementos folclóricos goianos dentro da novela-conto Gente da Gleba (e em todo o seu livro Tropas e Boiadas) se justifica no “resgate do passado, das raízes tradicionais, da cultura popular, dos feitos de suas gentes desde os áureos tempos do período colonial”, de que falamos, para sedimentar uma identidade goiana e uma nacionalidade brasileira6, cumprindo o seu papel intelectual construtor. De outro lado, no entanto, esse inventário e a denúncia parecem ser tão prementes que promovem alguns deslocamentos internos ao texto, defasando-o e defasando-se, também. Em outras palavras, a denúncia é efetivada pela narrativa propriamente, que guia toda a novela-conto, embora alguns deslocamentos; já o inventário tem, por vezes, uma resolução literária por demais heterogênea (de acordo com o conceito de Polar). Isto é, se parte dele – como o jogo do truco, por exemplo – se incorpora à narrativa-guia 6. Quando sugere como deveria ser a participação de Goiás no Centenário da Independência em 1922 (que ele não chegou a ver porque se suicidou em maio de 1921), Hugo corrobora o que fizera em Gente da Gleba: “Será uma variadíssima exibição de costumes regionais, trazendo para o cosmopolitismo do Rio de Janeiro as mais características e singulares feições do nosso povo genuinamente brasileiro (...) Todos esses festejos podem ser organizados, a nosso ver, com vistas ao programa geral, sob quatro grupos básicos, de acordo com os elementos étnicos de que derivam: primeiro, a dança dos índios, representando a raça aborígene, genuinamente local; segundo, os lanceiros, o vilão, a dança dos velhos, etc., dos primitivos conquistadores; no terceiro grupo, o congo, o moçambique, o batuque etc., da grei africana; por último, bumbas, quebra-bundas, catiras, cateretês, dança dos camaradas, etc., etc., da mescla geral, figurando a atualidade naquilo que mais houver de original e característico. Tudo num conjunto harmônico, que traga para o paladar carioca, enfaradíssimo de exotismos e enxertias europeias, o sabor sadio de um mergulho jovial nas matrizes profundíssimas de nossa nacionalidade, consolidando o instinto ancestral de coesão étnica na comunhão dos três fatores da raça” (RAMOS, 1955, p. 126).

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Este conjunto de textos aprofunda estudos específicos sobre as dimensões dialogais e inter-relacionais da História com a Literatura que mesmo tendo competências distintas constroem narrativas sobre espaços, tempos e sujeitos, vida privada e vida pública. Além disso, o que não é pouco, desafia os historiadores da cultura a mergulharem na escrita literária com um olhar renovado, capaz de enxergar a complexidade da História em movimento. Lucilia de Almeida Neves Delgado

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