USOS DO LIVRO NO MUNDO LUSO-BRASILEIRO SOB AS LUZES: REFORMAS, CENSURA E CONTESTAÇÕES

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Luiz Carlos Villalta

Usos do

no

Livro Mundo

Luso-Brasileiro

sob as Luzes: reformas, censura e

contestaçþes





Usos do Livro no Mundo Luso-Brasileiro sob as Luzes: Reformas, Censura e Contestaçþes

Luiz Carlos Villalta


Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Luiz Carlos Villalta Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj V767u Villalta, Luiz Carlos Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as luzes: reformas, censura e contestações / Luiz Carlos Villalta. - 1. ed. – Belo Horizonte, Fino Traço, 2015. 556 p. : il. ; 24 cm. (História ; 53) ISBN 978-85-8054-244-8 1. Censura – Brasil. 2. Liberdade de imprensa. 3. Livros condenados. 4. Segurança interna – Brasil. 5. Imprensa – Censura. I. Título. 2. Série. 15-22136 CDD: 070.13 CDU: 070.13

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Prefácio  11 Nota de Esclarecimento  15 Introdução  17 PARTE I   Usos do Livro sob o Reformismo Ilustrado Português: Parâmetros e Alvos 1. Teorias Corporativas de Poder, Milenarismos e Anticientificismo   29 2. As Luzes   79 3. O Reformismo Ilustrado Português   125

PARTE II   Usos Prescritos e Interditados: a Censura 4. A Censura sob o Reformismo Ilustrado   171 5. O Controle e a Difusão dos Livros   223 6. As Licenças para Posse e Leitura de Livros Proibidos   269

PARTE III   Usos do Livro pelos Leitores: Leitura e Ordem Religiosa e Política 7. Os Livros e seus usos Enunciados e Implícitos   325 8. Usos Inventivos dos Livros, Heresias e Ensaios Sediciosos   409 9. Usos Inventivos do Livro e Contestação Política: a Inconfidência Mineira (1789)   459 Conclusões  501 Fontes Primárias e Bibliografia  511


Lista de Tabelas Tabela I. Requerimentos para Leitura e/ou Posse de Livros Proibidos no mundo luso-brasileiro (1770-1825)*  273 Tabela II. Provisões de Licenças para Leitura e/ou Posse de livros proibidos no mundo luso-brasileiro (1775-1794)*  275 Tabela III. Requerimentos e Licenças* para Leitura e/ou Posse de livros proibidos no mundo luso-brasileiro (1770-1825)**   279 Tabela IV. Licenças para Ler e/ou Ter livros proibidos: Clérigos e Leigos (1770-1817)*   281 Tabela V. Tipos de Licenças para Ler e/ou Ter livros proibidos dadas a clérigos e leigos (1770-1817)*  282 Tabela VI. Números de Provisões, por Tipos, dadas a Clérigos para Leitura e/ou Posse de livros proibidos (1775-1794)   282 Tabela VII. Números de Provisões, por Tipos, dadas a Leigos para Leitura e/ou Posse de livros proibidos (1775-1794)   283 Tabela VIII. Nº de inventariados possuidores de livros em Mariana, por condição ou ocupação social (1714-1822)   360 Tabela IX. Nº de Remessas livros da América para Portugal (1769-1821), por origem e destino final   366 Tabela X. Nº de Remessas de livros da América para Portugal, por condição ou ocupação dos remetentes (1769-1821)   367 Tabela XI. Nº de Remessas de Livros de Portugal para diferentes destinos do Brasil (1769-1800)  373 Tabela XII. Participação dos mercadores nas remessas de livros de Portugal para a América (1769-1800)  375 Tabela XIII. Livros em geral e Romances no circuito Brasil-Portugal (1769-1821)   393 Tabela XIV. Nº de Livros de Prosa de Ficção e de outros gêneros no circuito Brasil-Portugal, por ocupação dos remetentes (1769-1821)   394 Tabela XV. Nº de Romances, por ocupação dos remetentes, destinados ao Maranhão, Pará, Pernambuco e Rio de Janeiro (1769 -1800)   397 Tabela XVI. Nº de Romances, por ocupação dos remetentes, nos circuitos Reino-“Brasil” (1769-1821) e Reino-Bahia (1769-1815)   398


Tabela XVII. Títulos dos Romances mais remetidos, no comércio livreiro legal, de Portugal para o Rio de Janeiro, Maranhão, Pará e Pernambuco (1769-1800)   401 Tabela XVIII. Títulos dos Romances mais enviados, no comércio livreiro legal, do Brasil para Portugal (1769-1821), de Portugal para o “Brasil” (1769-1821) e de Portugal para a Bahia (1769-1815)   403

Lista de Figuras Gráfico I. Números (em %)* de proibições determinadas por Editais e de Obras que foram mantidas e suspensas em 171 Licenças sem Tipo-Número para ler e/ou possuir livros proibidos registradas em Requerimento (1770-1817) e Provisões (1770-71)**  292 Gráfico II. Números (em %)* de proibições determinadas por editais e de Obras que foram Mantidas e Suspensas em 114 Provisões para ler/ou possuir livros proibidos (1775-1777)**  293 Gráfico III. Números (em %)* de proibições determinadas por Editais e de Obras que foram Mantidas e Suspensas em 171 Provisões (1790-94) para ler e/ou possuir livros proibidos**  294 Gráfico IV. Tipos-Números de licenças registrados nos Requerimentos (1770-1790) e Provisões (1770-1771 e 1775-1794)*  298 Gráfico V. Evolução da posse de livros entre os inventariados de Mariana (1714-1822)*  363 Gráfico VI. Nº de remessas de livros da América para o Reino (1769-1821)  365

Abreviaturas ACSM – Arquivo da Casa Setecentista de Mariana AEAM – Arquivo Episcopal da Arquidiocese de Mariana AN – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro APM – Arquivo Público Mineiro (Belo Horizonte) BN – Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) BNL – Biblioteca Nacional (Lisboa) BPM – Biblioteca do Palácio Episcopal de Mariana (Museu do Livro) IANTT – Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (Lisboa)



Ao meu avô, Francisco de Faria, e a meus pais, Milton e Alba, com quem descobri o prazer de ler os livros e o mundo Para Laura de Mello e Souza, sempre minha mestra Ao meu irmão Kico e aos amigos-leitores Dora Carvalho, Fábio Faversani, Fernanda Moraes, João Furtado, Lúcia Jacob, Mariana Mendonça, Rogério Fernandes (in memoriam) e Waldair Costa (in memoriam)



Prefácio

Desde que este estudo foi escrito em 1999, muitos artigos escreveu Luiz Carlos Villalta na área escolhida anos atrás: a história do livro e da leitura. As novas temáticas abordadas pelo autor, como por exemplo o consumo de romances e novelas no mundo letrado luso-brasileiro, em nada invalidam esta primeira pesquisa, antes a complementam, percorrendo trilhas anteriormente apenas lobrigadas. O cerne deste livro é sem dúvida a censura implementada na segunda metade do século XVIII, primeiro pelo ministro de D. José, o marquês de Pombal, e depois nos reinados seguintes, acompanhando sempre a atividade censória as mudanças na política europeia e a produção intelectual originária sobretudo da Inglaterra e da França. Mas não se trata aqui de generalidades há muito repetidas sobre a ilustração e a censura. A pesquisa foi minuciosa e certamente muitas surpresas esperam o leitor. A começar pela análise dos critérios censórios e dos alvos principais dos censores, revelados pelos sucessivos editais de proibição de obras, e também das imagens que acompanhavam os textos. Teve o autor o cuidado de procurar no arquivo português da Torre do Tombo os originais manuscritos relevantes para a pesquisa. Enquanto o primeiro, de 1768, visava aos jesuítas e suas doutrinas em obras praticamente desconhecidas hoje, o de setembro de 1770 faz aparecer toda a gama dos deístas e livres pensadores ingleses, bem como os filósofos franceses mais conhecidos. Para Villalta a censura oscilou entre concessões excessivas e uma severidade demasiada, o que se tornava evidente na fiscalização da circulação e da posse de livros, bem como na concessão de licenças para a leitura de obras proibidas. Os censores tinham plena consciência de que livro proibido por edital se tornava imediatamente um livro desejado, o que dava origem a um comércio livreiro clandestino e, o que era muito frequente no Brasil colonial, à cópia manuscrita, senão da totalidade da obra, pelo menos das partes mais relevantes para um leitor ávido de saber o que se escrevia na Europa culta da época. Não há dúvida de que os comissários do Santo Ofício no Brasil se esmeraram na localização de obras proibidas nas bibliotecas coloniais e, quando a posse não era comprovada, pelo menos sabiam, por meio das denúncias feitas, quem as tinha lido. Villalta explorou esta longa participação dos representantes da Inquisição na 11


fiscalização daquilo que os coloniais não deveriam ler, embora muitas vezes os denunciantes fossem por demais vagos quanto à identificação das obras. Mais eficazes seriam certamente os funcionários das alfândegas do Reino e da colônia, que tinham a obrigação de verificar a bagagem dos passageiros das embarcações transatlânticas, e mesmo da tripulação. Mas não seria possível esconder obras e depois desembarcá-las mais tarde? Difícil é encontrar provas desse desembarque clandestino. Nesta pesquisa foram colhidas informações sobre o transporte marítimo de livros utilizando os códices e as caixas de documentos da Torre do Tombo, numa época em que ainda poucos pesquisadores conheciam tal documentação, e daí a grande originalidade deste trabalho. Facilitava o embarque e desembarque de livros a existência de um rol com o título das obras e de seus autores, mas este tinha de ser elaborado com exatidão, incluindo também o local e a data de impressão. Só assim, com a licença censória concedida, as bibliotecas particulares ou as obras destinadas a serem comercializadas poderiam sair rapidamente das alfândegas. Mas tal exatidão nem sempre ocorria, talvez como tentativa de fazer passar textos mais discutíveis do ponto de vista dos censores. Villalta tem o cuidado de acentuar as incoerências da fiscalização alfandegária, citando o caso de uma obra de Locke, cuja comercialização na Bahia pela casa livreira dos Bertrand não foi autorizada, mas que foi liberada para um padre a poder ler. Além disso destacou o contrabando de livros proibidos como provam os autos das devassas realizadas no Brasil. Seria certamente impossível controlar toda a longa costa marítima brasileira e as pequenas embarcações que não passavam pelas alfândegas. Havia ainda que controlar não só a entrada de livros no Brasil como a sua posse nas várias capitanias e a essa tarefa se dedicaram ocasionalmente alguns magistrados como os ouvidores. Villalta completou assim a pesquisa com a análise de todos aqueles que se preocuparam com a fiscalização da circulação das obras na colônia. Um capítulo importante e extremamente original deste estudo aborda a questão dos privilegiados que recebiam licença dos órgãos censores para as leituras proibidas aos demais. Mas, do ponto de vista da leitura no Brasil colonial, torna-se decepcionante o fato de serem muito escassos os requerimentos apresentados por leitores da América portuguesa: apenas 11 pretendiam uma licença formal para os livros defesos, sendo 8 as licenças concedidas, e estas a clérigos. Tal situação leva a formular a hipótese de que, na vastidão do território brasileiro, a fiscalização censória encontrava maiores dificuldades em localizar os textos proibidos, os quais só por denúncia poderiam ser encontrados nas bibliotecas particulares, e portanto não valia a pena o esforço burocrático de tentar regularizar sua leitura. 12


É interessante contudo o caso citado de um advogado público da comarca de Pernambuco que viu negada a licença pedida para ler obras proibidas. Alegava ele a necessidade de melhorar sua instrução, pois não era formado em leis e advogava apenas com autorização régia num local e período determinados, e dizia ser seu propósito “sustentar os direitos da régia autoridade a cada passo atacada pelas contínuas usurpações e opressões do sempre ávido clero”. O requerimento saiu escusado, não se sabe se por seu anticlericalismo ou se por não ser tão douto quanto se exigia de um leitor privilegiado, embora seja mais provável esta última hipótese. Como acentua Villalta, a concessão de licenças para leituras proibidas remetia a um pequeno e elitizado segmento de leitores: mais clérigos do que leigos, todos com formação universitária em Leis, Cânones ou Teologia, indivíduos exercendo cargos de governo, de magistratura ou de ensino em conventos. Se a censura limitava a concessão de licenças a indivíduos com um determinado perfil, por outro lado também só se candidatavam a essa permissão aqueles leitores que se enquadravam nessas exigências. Na década de 1790, contudo, aumentou o número de leigos beneficiados com licenças de leitura durante o período em que atuou a Real Mesa da Comissão Geral, conhecida, e também criticada, por sua maior liberalidade. A parte final deste estudo de fôlego, precursor de outros realizados já no século XXI, diz respeito à circulação e à posse de livros entre a colônia e metrópole (e vice-versa), e é esta linha de pesquisa que hoje ocupa maior número de pesquisadores em várias regiões do Brasil. Foram escolhidas duas capitanias urbanizadas, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e examinaram-se os inventários feitos por morte a fim de se verificar quem possuía livros. É sem dúvida a metodologia mais adequada, embora, como tenho escrito em vários trabalhos, é de supor que o número de proprietários de bibliotecas fosse mais elevado na medida em que só era feito o inventário quando havia filhos menores e, mais raramente, quando surgia alguma dificuldade nas partilhas entre os herdeiros. Muitos indivíduos morriam portanto só com seus testamentos, sem que nenhuma autoridade tivesse inventariado seus bens. Por essa razão, tornamse igualmente muito úteis por sua complementaridade os inventários por ocasião de sequestro de bens pelas autoridades. Villalta recorreu ainda a outro tipo de documentação guardado na Torre do Tombo que, na época em que esta pesquisa foi elaborada, ainda era praticamente desconhecido: os róis de bibliotecas particulares transportadas do Reino para a colônia e vice-versa, bem como os róis apresentados pelos mercadores de livros que pretendiam vendê-los no Brasil. Aí se percebe a grande mobilidade dos grupos profissionais ocupados em vários ramos da administração colonial, sendo frequente a alegação de que os livros serviam para os estudos e para a prática das respectivas profissões. 13


A posse de determinadas obras nada significa, contudo, se não soubermos se elas foram efetivamente lidas e de que modo elas foram apropriadas e comentadas em textos produzidos pelos leitores. Essa é sem dúvida a parte mais árdua da pesquisa em história da leitura, se excetuarmos áreas consagradas como a História da Filosofia e em menor grau a História da Literatura. Aí as leituras dos filósofos anteriores ou contemporâneos são esmiuçadas para se descobrir como foram digeridas, discutidas e apropriadas ou descartadas por outros filósofos. E todos sabemos como os especialistas literários constantemente buscam as influências de outros autores naqueles que estão sendo analisados. Tudo fica mais difícil quando se trata do leitor comum. Os estudantes da Universidade de Coimbra não eram contudo leitores comuns e numa época em que os livros circulavam já em maior quantidade no mundo luso -brasileiro, mesmo os proibidos, as discussões sobre eles travadas significavam uma apropriação muito mais intensa de seu conteúdo do que quando um leitor contava simplesmente aos amigos o assunto dos livros que lera. A oralidade andava intrinsecamente ligada à leitura, ou por meio de rápidos comentários sobre seu conteúdo, por vezes mesmo deturpado, ou por debates mais profundos, provenientes de uma análise de texto mais cuidada. E Villalta esforçou-se por captar essa dimensão oral da leitura, o que representa sem dúvida um grande avanço em relação àqueles que pensam apenas na leitura silenciosa de alguém sozinho num recanto de uma sala ou de uma biblioteca. Congratulo-me pois com a publicação de uma obra até agora conhecida apenas de alguns poucos através da tese de doutorado de 1999. O cuidado na escolha da documentação, a riqueza de informação contida neste trabalho, a acuidade das análises, e a inventividade na problemática levantada, tudo se conjuga para que o livro de Luiz Carlos Villalta constitua um marco que se ergue para orientar aqueles pesquisadores que pretendem continuar nas trilhas por ele abertas e também para dar prazer àqueles leitores que se questionam sobre o passado livresco de nossa cultura. Maria Beatriz Nizza da Silva

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Nota de Esclarecimento

Este livro assenta-se em grande parte no texto da minha tese de doutorado, Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa, defendida em 1999, sob orientação da Profa. Dra. Laura de Mello e Souza, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desde então, muito se editou sobre Luzes, censura, livros, leituras no mundo luso-brasileiro e, ainda, sobre a Inconfidência Mineira. Para respeitar ao máximo as linhas gerais do texto e não adiar ainda mais sua publicação como livro, incorporei apenas algumas dessas novas contribuições. Ao incorporá-las, tive em vista dar maior solidez às teses centrais aqui expostas e também ser fiel aos caminhos que trilhei ao longo dos últimos anos. Assim, ampliei a bibliografia sobre as Luzes e o mundo luso-brasileiro de então, revi referências, subdividi capítulos e incorporei sugestões da banca examinadora, constituída pela orientadora e pelos professores Eni de Mesquita Samara (FFLCH-USP), in memoriam, Fernando Antônio Novais (FFLCH-USP), Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves (UERJ) e Marisa Lajolo (IEL-UNICAMP), aos quais sou muito grato. Sou muito agradecido também aos amigos do ICHS-UFOP e da FFLCH-USP, que acompanharam de perto a produção deste estudo, assim como aos da FAFICH-UFMG, que, direta e indiretamente, ajudaram-me a repensá-lo. À Universidade de Coimbra e a Luís Reis Torgal, agradeço pela acolhida e pela co-orientação quando do primeiro estágio de pesquisa em Portugal. À CAPES e à Universidade Federal de Ouro Preto, sou grato, respectivamente, pela Bolsa de PICD e pelo afastamento para desenvolver a pesquisa que deu origem a este livro. Algumas pessoas foram de grande importância no processo de elaboração deste livro, em suas várias etapas, dentre elas quero destacar Ana Maria de Almeida Camargo, Laura de Mello e Souza, Lúcia Bastos Pereira das Neves, Luiz Mott, Luís Reis Torgal, Márcia Abreu, Maria Beatriz Nizza da Silva (referência fundamental) e Raquel Glezer, às quais sou muito agradecido. Por fim, sou grato à CAPES e ao Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, que contribuiu para a publicação deste livro, para o que concorreu o apoio entusiástico da Fino Traço Editora e da FAPEMIG, através do Programa do Pesquisador Mineiro.

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Introdução

Este livro inscreve-se no campo do que hoje se denomina história do livro e das práticas de leitura. Tendo como seus maiores expoentes na atualidade Roger Chartier e Robert Darnton, esse campo vem chamando a atenção de inúmeros outros historiadores e também de pesquisadores de diferentes áreas, mormente sob o prisma da literatura, ou da linguística, ou ainda da educação, todos eles engajados na construção de uma história do livro e da leitura. No exterior, dentre os estudiosos que se voltam para o livro e a leitura na Época Moderna, podem-se citar historiadores como Carlo Ginzburg e Natalie Zemon Davis e, mais precisamente em Portugal, a linguista Rita Marquilhas. No Brasil, às historiadoras Maria Beatriz Nizza da Silva, Lúcia Maria B. P. das Neves, Tânia Bessone Ferreira e Leila Mezan, juntam-se às pesquisadoras da literatura Marisa Lajolo, Regina Zilberman e Márcia Abreu. Dessa produção acadêmica sobre o livro e as práticas de leitura, emerge um elemento mais ou menos comum, sintetizado com muita clareza por Roger CHARTIER: a compreensão de que a história dos livros e da leitura requer que se focalize atentamente a tensão entre o poder do livro sobre o leitor e a liberdade e inventividade deste último na produção de sentidos no contato com os textos1. Assim, Robert DARNTON, em sua “história dos livros”, interessa-se pelo circuito de comunicação que vai do autor ao editor (ou ao livreiro, isto é, o comerciante especializado na venda de livros2), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor e chega ao leitor, o qual encerra o circuito (na medida em que o autor, o ponto de partida, também é um leitor)3. Cada fase deste processo, suas 1. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 121. 2. Na época focalizada neste livro, livreiros são aqueles que vendem livros, acepção registrada por Raphael Bluteau, em seu Vocabulário Português & Latino, de 1716 (BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino, áulico, anatômico, architetonico […]. Lisboa: Officina de Paschoal Silva, 1716, vol. 4, p. 263), são agentes comerciais que se voltam para a comerciação livreira. Contudo, no período, o comércio de livros escapava do círculo restrito dos livreiros, sendo desenvolvido por mercadores que vendiam vários tipos de mercadorias (SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira: da reforma da Universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999, p. 105-182): isto é, os livros eram vendidos frequentemente em estabelecimentos e por agentes comerciais não-especializados. Além disso, havia livreiros que não se restringiam ao comércio dos livros, agindo como editores e impressores. 3. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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inter-relações e o processo como um todo, em suas variações no tempo e no espaço, e em suas relações com outros sistemas (econômico, social, cultural, político), constituem objeto de interesse da história dos livros. No Brasil, Maria Beatriz Nizza da SILVA adota posição bastante similar, pois toma o livro como fato social – isto é, objeto de escrita e leitura mas também de venda, compra, colecionamento; motivo de censura, crítica e classificação; vítima de esquecimento ou algo retido pela memória coletiva4. Roger CHARTIER entende que as investigações devem seguir duas linhas: uma, sobre as estratégias usadas pelos autores e editores para impor uma ortodoxia do texto, uma leitura forçada; e outra, sobre a diversidade de leituras antigas5. Investigar a imposição da ortodoxia do texto, no contexto da Época Moderna, envolve a abordagem das normas e dos procedimentos através dos quais o Estado e a Igreja procuravam controlar a impressão e a circulação dos livros, isto é, exige que se focalize o funcionamento do aparato censório. Requer também que se atente para as distâncias e tensões existentes entre a ação de autores e editores, entre o texto, o que foi escrito pelos autores, e o impresso, aquilo produzido pelos editores – estes, muitas vezes, para se aproximar do que julgavam ser as expectativas dos leitores ou para atenderem às determinações da Igreja e do Estado, censuravam as alusões tidas como contrárias aos interesses dos últimos ou como blasfemas e heréticas, e alteravam substantivamente os livros, encurtando-os, suprimindo trechos e capítulos supérfluos, simplificando enunciados, modificando a estruturação dos períodos e parágrafos, acrescentando títulos e resumos6; os tradutores, em Portugal, não apenas vertiam os textos estrangeiros para o vernáculo, como adaptavam-nos, modificando-os às vezes sensivelmente7. Os autores, por sua vez, procuravam controlar a publicação de seus trabalhos8, enquanto a pirataria, prática rotineira9, ampliava o fosso existente entre autores e editores. Para analisar a imposição da ortodoxia do texto há que considerar, ainda, as identificações por meio das quais as obras se classificavam, os gêneros em que eram enquadradas e os indicadores formais e materiais dos livros, destacando-se as ilustrações, a “aeração da 4. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Livro e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). Revista de História, São Paulo, 46 (94): 441-457, 1973. 5. CHARTIER, Roger , op. cit., p. 123. 6. DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; CHARTIER, Roger, op. cit., p. 129-300; e ALCALÁ, Angel. La censura inquisitorial de la literatura del siglo de oro en España y en Portugal: comparación de sus ‘indices’ y sus resultados. In: NOVINSKY, Anita, CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Inquisição: ensaios sobre mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1992, p. 423-424. 7. CARREIRA, Laureano. O teatro e a censura em Portugal na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional, 1988, p. 115-123. 8. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: UnB, 1994, p. 54. 9. DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução, op. cit., p. 184.

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página pela multiplicação dos parágrafos”, as subdivisões e os formatos que impunham ou propunham significados distintos e formas de leitura10. Pesquisar a diversidade de leituras antigas passa, inicialmente, pelo arrolamento das obras em circulação, aquelas vendidas pelos livreiros – tal como fizeram DARNTON11, Sara NALLE12, G. BERGER13 e Maria Beatriz Nizza da SILVA14 –, ou ainda, encontradas em bibliotecas públicas, e/ou possuídas por particulares, e/ou enviadas de Portugal para a América – como realizaram, respectivamente, Nizza da SILVA15, ARAÚJO16, VILLALTA17 e ABREU18. A identificação dos títulos das obras, de seus autores, e sua classificação e quantificação são procedimentos úteis19. Na classificação, devemse evitar os anacronismos, não se colocando “curiosidades do século XX” no meio das categorias de classificação do passado20, ou, inversamente, o “passadismo”, não adotando os mesmos critérios de catalogação presentes na documentação compulsada, cujo resultado seria a produção de um quadro desconcertante21. Trata-se de um trabalho árido e controverso, pois se verifica uma variedade de critérios e de formas de classificação. A quantificação das obras possuídas, do número de bibliotecas e de livros que as constituíam permite avaliar a incidência da venda e da posse de livros, a distribuição desta entre os indivíduos e os diversos agrupamentos sociais (de classe, ofício, gênero, religião etc.). Possibilita também verificar as inter-relações existentes entre sua distribuição pelos indivíduos e grupos, e sua variação numérica pelas áreas

10. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros, op. cit., p. 18-20. 11. DARNTON, Robert. Edição e sedição, op. cit. 12. NALLE, Sara Nalle. Litteracy and culture in Early Modern Castile. Past & Present. Oxford, (125): 65-96, nov. 1989. 13. BERGER, G. Littérature et lecteurs à Grenoble aux XVIIe et XVIIIe siècles: le public littéraire dans une capitale provinciale. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine. Paris, (33): 114-132, jan./mar. 1986. 14. SILVA, Maria Beatriz Nizza da, op. cit., p. 449-454. 15. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Livraria Pública da Bahia em 1818: obras de História. Revista de História, São Paulo, 43 (87): 225-239, 1971. 16. ARAÚJO, Jorge de Souza. Perfil do leitor colonial. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988 (Tese de doutorado) 3 vol. 17. VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e (coord.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 331-385. 18. ABREU, Márcia. Leituras Coloniais. CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2, 1998, São Paulo. Anais. São Paulo: USP / Calouste Gulbenkian, 1998. v. 2, p. 201-207. 19. Leila Mezan Algranti fez um estudo sobre o conteúdo e a composição de bibliotecas nos recolhimentos carmelitas no Brasil. Seu propósito era identificar a ortodoxia do texto e as condutas que se queriam impor às mulheres; ao mesmo tempo ambicionava aproximar-se da diversidade das leituras. (ALGRANTI, Leila Mezan. Os livros de devoção e a religiosa perfeita: normatização e práticas religiosas nos recolhimentos femininos no Brasil colonial. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 109-124). 20. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Livro e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821), op. cit., p. 138. 21. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette, op. cit., p. 175-176.

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Nos últimos anos, vários escritos vieram à luz sobre a história do livro e da censura no mundo luso-brasileiro entre finais do século XVIII e inícios do XIX. Pouco, porém, se conhece ainda a respeito dos mecanismos de funcionamento da censura e das práticas de leitura que possibilitam repensar as sociabilidades culturais e as tensões que se estabelecem entre o poder do livro sobre o leitor e a liberdade deste último na ressignificação dos textos. Por meio de sua curiosidade insaciável, o livro de Luiz Carlos Villalta vem preencher essa lacuna. Com trama convincente e pesquisa pormenorizada, este estudo instigante analisa os usos atribuídos aos livros pelos leitores e as práticas de censura que incidiram acerca da circulação, da posse e da leitura de obras no mundo luso-brasileiro, durante a crise do Antigo Regime. Luiz Carlos apresenta, assim, conclusões inovadoras sobre esse fascinante processo do mundo do livro e da leitura, em texto escrito com clareza, dando imenso prazer ao leitor, que poderá, por sua vez, recorrer à sua própria inventividade para elaborar outras interpretações. Afinal, como lembrava Borges, cabe aos leitores enriquecerem o livro. Lucia Maria Bastos P. Neves


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