PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: (IM)PASSES SUBJETIVOS CONTEMPORÂNEOS III

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Psicanálise e Educação: (im)passes subjetivos contemporâneos III

Maria de Lourdes Soares Ornellas

(Org.)





Psicanálise e Educação:

(Im)passes subjetivos contemporâneos III

ORGANIZAÇÃO

Maria de Lourdes Soares Ornellas


Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © Maria de Lourdes Soares Ornellas Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj P969 Psicanálise e Educação: (Im)passes subjetivos contemporâneos III / organização Maria de Lourdes Soares Ornellas. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2015. 232 p. : il. ; 23 cm. (Edvcere ; 35) ISBN 978-85-8054-256-1 1. Psicanálise e educação. 2. Psicologia. I. Ornellas, Maria de Lourdes Soares. II. Série. 15-24764 CDD: 370.15 CDU: 37.015.3

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Prefácio  7

1  Psicanálise e educação: encontro (des)encontrado  15 2  A escuta de pais no dispositivo da Educação Terapêutica: uma intervenção entre a psicanálise e a educação  35

3  O autismo na sociedade contemporânea: algumas reflexões a partir da Psicanálise, tendo em vista os professores que trabalham com crianças autistas  55

4  O que quer um adolescente que recusa a aprender?  71 5  Língua sagrada, língua falada  91 6  A escola e a patologização da infância: uma leitura psicanalítica  99 7  Famílias plurais e a (não) relação com a escola: para além do modelo nuclear  117 8  A autoridade docente na escola contemporânea  135 9  Esrastès e Eromênos: um par de transferência na relação professor e aluno  149

10  Os anéis de Borromeu e a Educação: uma articulação (im)possível  165 11  Sintoma: substantivo comum, de dois gêneros e plural na cena pedagógica contemporânea  183

12  O RSI Lacaniano: o que há para saber?  197 13  Malévola e Aurora: escuta subjetiva na escola do conto de fadas e contemporâneo  211 Sobre os autores  227



Prefácio

Talvez o leitor eventualmente fique com a impressão, ao cabo da leitura dos artigos que compõem este livro, que os (im)passes subjetivos (isto é, que as vicissitudes que são estruturais à constituição subjetiva mais elementar, bem como ao devir mesmo do sujeito) têm se transformado, na contemporaneidade, em um iminente e já quase inequívoco impasse. No que toca a esse ponto, a elisão do parêntese não representa pouca coisa. Afinal, a passagem de (im)passes a impasses revela, pois, um efetivo incremento das vicissitudes concernentes à emergência do sujeito (para muito além, é claro, daquelas já referidas como estruturais, estatutárias ou inelutáveis). Por óbvio, nada há que possa garantir, assegurar a irrupção subjetiva; contudo, isso não significa que os (im)passes intrínsecos a essa operação não possam ser reduplicados. Ou seja, a elisão do parêntese (o qual bem merece o qualificativo de “dialético”) aponta para o fato de que o laço social em nossos tempos, prevalentemente, já não parece capaz de suportar o sujeito do desejo, senão que, ao contrário disso, está em questão hoje, de forma hegemônica, comportá-lo, anexá-lo, anulá-lo, talvez foracluí-lo. Mas não obstante isso, neste livro o leitor não encontrará nada da ordem de um cortejo de lamúrias acerca desse “destino” subjetivo e contemporâneo. É que, em que pese tal cenário no mínimo “inamistoso”, ou talvez justamente em virtude dele, os referidos autores trataram de se posicionar em face desse relativo – mas não inócuo – depauperamento das condições de possibilidade do “vir a ser” do sujeito. E com vistas a dialetizar tais impasses subjetivos da contemporaneidade – isto é, com vistas a insuflar neles, uma vez mais, algo da ordem do desejo e, com isso, elevá-los ao nível de (im)passes subjetivantes – nossos autores se serviram da teoria psicanalítica – teoria essa que implica, propriamente, o sujeito do desejo. Ou seja, se os autores se propuseram aqui a pensar, 7


por meio da psicanálise, o sujeito e seus sobrecarregados impasses atuais, é justamente porque tal sujeito (o do inconsciente) se encontra em ato na psicanálise. E o plano discursivo escolhido para essa implicação psicanalítica não foi outro que o da educação. Ou antes: o plano que aqui se encontra em pauta é o da articulação (im)possível entre educação e psicanálise. Trata-se, portanto, do campo discursivo no qual se vinculam dialeticamente – muito embora sem pretensão de síntese ou fusão – a psicanálise e a educação. Em vista disso, não é sem boas razões que, logo de saída, Ornellas interrogue: “que lugar e posição teriam a psicanálise e a educação em face desta realidade contemporânea, que coloca o sujeito a serviço do gozo ininterrupto dos objetos de consumo, não deixando lugar para emergir a subjetividade?”. Ora, também não por acaso, o artigo de tal autora é seguido de dois outros – um de autoria de Kupfer e Lajonquière e outro de Mrech – que versam sobre o autismo. E de acordo com Mrech, o autismo se tornou “um significante estratégico para nomear o espírito de nossa época”. Ou seja, uma resposta plausível à interrogação acima leva em conta necessariamente uma espécie de “autoconsumo” ou de uma procrastinação do narcisismo. Ou em outros termos: tal resposta leva em conta o “fortalecimento das formas autoeróticas de gozar” – tal como afirma Mrech –, fortalecimento que ocorre sem que os sujeitos tenham deixado de manter laço com o Outro (e o que configura, portanto, um típico impasse contemporâneo, na medida em que para fazer laço é necessário, sobretudo, o recalque da pulsão autoerótica). No que toca a esse “significante estratégico”, que, não sem consequências subjetivas, recorta em nosso horizonte o “espírito de época”, Kupfer e Lajonquière recordam-nos acerca da visada já tradicional, no campo da psicanálise, a respeito da posição psíquica assumida pelos pais de crianças autistas em face de seus filhos (posição a qual – no que concerne à etiologia do autismo – é reativa mais do que causal). Isto é: há muito tempo que se considera, na psicanálise, que a predisposição do bebê “em experimentar como excessiva a demanda do Outro parental” é que abre uma ferida no narcisismo dos pais. E é, pois, em função desta que o casal parental então se cerra subjetivamente aos apelos da criança. Eis que, em função disso, o (im) passe – que poderia, ao menos em princípio, dar margem à emergência de algo 8


da ordem da subjetividade na criança – se transforma em um impasse quase inequívoco, e o qual se instala em um momento primordial da constituição subjetiva. Pois bem, o que então se põe em jogo nesse cenário – a fim de que se possa, talvez, fazer do impasse um (im)passe – é a necessidade de se sustentar, antes de tudo o mais, o narcisismo parental com vistas a que o discurso educacional familiar possa se deslocar em nome de uma possível subjetivação da criança. Eis aí uma importante inflexão em termos de manejo clínico e também em termos teóricos. Já Pereira, Toledo e Boaventura – ao analisar as motivações de adolescentes que se recusam a aprender no interior de uma instituição de ensino vinculada ao Programa de Aceleração de Estudos da Rede Municipal de Ensino da Secretaria de Educação de Belo Horizonte – levantam a hipótese da “procrastinação do ligamento materno” por parte desses jovens (procrastinação que é também sustentada, por óbvio, pelos adultos da instituição). Evidentemente, os autores postulam um contexto geral no âmago do qual esse caso particular se desdobra: é que, posteriormente às convulsões comportamentais e sexuais dos anos 1960 e 1970, a autoridade de instituições tradicionais como família e escola, dentre tantas outras, foi desconstruída tão severamente a ponto de se colocar em xeque – ou de se colocar mesmo à deriva – tais instituições. Diante disso, particularmente nas escolas (mas não apenas nelas), os profissionais da educação se viram instados a tentar reinstituir, não sem dada nostalgia neurótica, a “condição tradicional de exercício da transmissão simbólica”, o que paradoxalmente os levou a estabelecer laços imaginários com os alunos, mais do que a interpelá-los simbolicamente. Pois bem, nesse cenário contemporâneo tomado de idealizações, a recusa em aprender por parte dos jovens se presta, então, à preservação da relação materno-filial; ela se presta, em outros termos – e até onde isso é possível –, a sustentar a recusa da angústia de castração bem como a diferença sexual. Em suma: o desligamento em relação ao pai é adiado a ponto tal de a escola já não despontar aí como “local de aprendizagem, regulamentos e consequentes restrições” (ou seja, como lugar privilegiado para interpelações simbólicas dos jovens pelos professores), mas, antes, como um suposto espaço de liberdade, e em face do qual os professores – equiparados simbólica e discursivamente aos alunos – se fazem “amigos” destes; isto é, diante 9


de tal noção voltada ao espaço escolar, os docentes mesmos se recusam a ensinar aos alunos, deixando, com isso, de acenar educacionalmente a estes últimos com a necessidade de renunciar às exigências pulsionais em nome da realidade do desejo, em nome da castração. Ora, mas ainda que os referidos autores do artigo considerem que tal maternagem docente represente mais do que apenas umas das características imperantes na educação contemporânea (característica que também “arrasta” os (im)passes subjetivos dos alunos para o beco sem saída de impasses quase insolúveis), não creio que se deva desvinculá-la do quadro mais geral – e a essa altura já centenário – da hegemônica psicologização da educação contemporânea. De fato, antes ainda das convulsões dos anos 1960 e 1970, foi a partir da psicologização maciça do discurso educacional e do dispositivo escolar (iniciada nos anos 20 do século passado) que o “desligamento do pai” se deslocou “para uma espécie de procrastinação do ligamento materno” (e o que não aconteceu sem consequências em termos de um efetivo incremento das vicissitudes atinentes à subjetivação dos alunos na escola contemporânea). É que a hegemônica maternagem docente (de inspiração psi) multiplicou e multiplica os impasses psíquicos dos discentes, na medida mesmo em que o desligamento em relação ao pai é o requisito fundamental para a circulação social por parte dessas crianças e jovens. Ou em outras palavras: tal desligamento é indispensável para que os alunos possam, por meio do aprendizado escolar, transitar do âmbito privado de seus lares para o mundo público. Mas por força, entretanto, da maternagem discursiva e psi (que é prevalente em termos educacionais há quase cem anos) a escola cada vez mais se assemelha ao “segundo lar do aluno” (e não ao espaço transicional entre o privado e o público). Por conta disso é que é preciso, pois, destacar – tal como faz Bittelbrunn – a urgência de “desmistificar a ideia de que a escola é a continuidade da família (e vice-versa) quando se pode pensar que há demandas diferenciadas de cuidados/de educação, que não se excluem [...]”. Ou seja, também entre família e escola deve operar uma dialética sem síntese (e a qual, vale insistir, é subjetivante para o aluno, ao contrário da imperante maternagem psi).

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Ainda quanto a esse ponto, cabe também reiterar, como fazem Radel e ainda Menezes, que a transição escolar do privado ao público não deve se confundir com a homogeneização dos alunos. Nas palavras de Radel: “A escola, 2ª instituição onde as crianças vivem o Real da infância em paralelo à família, endossa esse discurso ao abdicar da sua função precípua que é a de educar considerando a diferença de subjetividades, os diferentes estilos, e faz uma tentativa de homogeneizar a diferença”. De certo, é importante não perder de vista, ademais, que a escola, mesmo não sendo propriamente o mundo público (ou seja, a polis), deve operar em seu nome e, sendo assim, ela necessita promover o estabelecimento de um “senso comum” (que é condição para o exercício da política e do diálogo entre adultos); ela deve dar margem, pois, a que os alunos – cidadãos ainda em formação – compartilhem tradições públicas, isto é, comunguem conhecimentos e valores socialmente validados. Nesse sentido, a escola há de levar em conta, é claro, a diferença de subjetividades dos alunos, mas isso na medida em que tal diferença implique um aprendizado não todo de conteúdos comuns ensinados em sala de aula pelos professores. A escola pública, nesses termos, não pode perder de vista o “para todos” em função do “cada um” (nem vice-versa). Ela deve, portanto, articular dialeticamente – em nome da subjetivação do aluno bem como do interesse público – o singular e o comum. Trata-se, afinal, de suscitar o (in)comum na sala de aula. Por certo, esse (in)comum escolar – que articula o “para todos” ao “cada um” sem os fundir – exige, como afirma Silva, “destituir-se de um ideal de Escola pronta, acabada, para deixar entreaberto o estranho, o inusitado, o incongruente”. E, para tanto, o que se requer do professor não é muito mais do que ensinar conhecimentos públicos em nome do desejo que o habita. Ou seja: é eticamente imprescindível que o professor dê margem, em sua fala e em seu ensino, ao retorno do recalcado em si mesmo e nos alunos; é imprescindível que ele, ao ensinar, suscite o familiarmente estranho do inconsciente. Em outros termos, é preciso que, ao veicular enunciados socialmente compartilhados, a enunciação do professor esteja em questão. Ou parafraseando Larissa Ornellas: é indispensável que a relativa invariância dos enunciados escolares (de química, geografia, filosofia etc.) “respondam

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à multiplicidade de vozes; que de gerações em gerações falam e entrefalamse por elas”. É somente dessa forma que a vida de cada aluno “até a última hora pode encontrar um sentido novo em seu futuro, a partir do começo”. Em suma: na escola, a irrepetível enunciação do professor é o que pode invocar as irrepetíveis enunciações dos alunos. A enunciação do docente (que ensina enunciados escolares) dá margem, pois, à emergência subjetiva dos discentes (ao passo em que estes aprendem tais enunciados). De mais a mais, quero crer ainda que é nessa transmissão escolar que se encontra cifrado um esboço de resposta para a inquietante questão proposta por Antonino: “Como esperar que um único professor, no seu exercício docente, possa fazer par com número tão extenso de alunos de uma única sala de aula?”. Na esteira da complexa relação educacional entre público e privado, Cortizo afirma: “A implementação da individualização como princípio moderno confronta o que deveria ser a finalidade educativa, tendo em vista que o sentido genuíno da instituição escolar está ancorado numa dimensão social e pública”. Pois bem, é isso justamente o que, uma vez mais, põe em xeque a psicologização da educação, na medida em que esta, de forma maternal e privada, propõe uma pedagogia adaptada a cada aluno, uma educação “sob medida”, customizada etc. Ora, como poderia o aluno – em meio a essa prevalente maternagem psi – transitar do espaço privado ao público, uma vez que a demanda que ele recebe na escola contemporânea pretende ser tão “diferenciada”, particularizada, individualizada, especial? Cabe aqui insistir que, por conta da referida psicologização educacional, a escola já não desponta como uma instituição que deve se tornar acessível a todos (ainda que tal acessibilidade opere como um ideal simbólico e, logo, como um ideal referido à castração ou à lógica do não todo): à escola, hoje em dia, exige-se que se adapte a cada aluno – o que faz com que cada um deles se torne então “especial”, e não (in)comum. Ora, sob tais premissas psi, não há mesmo como se sustentar o sentido público da função escolar 1. Em suma: para que a subjetividade do aluno seja levada em conta, não é necessário que ele receba um tratamento único, especial, particularizado 1. Vale lembrar que o sentido público da formação escolar tinha lugar e vez na chamada Escola da República. Quanto a essa questão, não se deve perder de vista o Gymnasium vienense onde estudou o jovem Sigmund Freud.

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etc. na escola. O que se requer é que o tratamento público levado a cabo aí seja não todo, isto é, que ele faculte, em seu avesso, a emergência do sujeito tanto no que toca aos professores quanto aos alunos (alunos que, em vista disso, talvez não recusem hegemonicamente o ensino, uma vez que haverá, nesse caso, lugar para o desejo que os habita). É desse modo, a partir da emergência do sujeito na escola (emergência que se encontra hoje em dia sitiada por reduplicados impasses) que se pode compreender, no dizer de Neto, “as relações do aluno X professor no lugar de sujeito da demanda com o mestre suposto-saber”. Ademais, é com base no devir do sujeito do desejo que nós, como diz o autor, nos “entregamos na busca do saber inconsciente” (quer seja na posição discursiva de professor, quer seja na posição discursiva de aluno). Há, pois, que se suscitar, na educação, as formações do inconsciente, como diz Jesus, se desejamos que nossas crianças entrem “em contato com temas que necessitam lidar tais como a relação com a própria mãe ou com quem ocupa esse lugar, o significado do feminino e da maternidade na sociedade contemporânea e a transição da infância para a adolescência”. Caso contrário, continuaremos acirrando a procrastinação infantilizante do ligamento à mãe e, com isso, nós reduplicaremos os impasses subjetivos que, contemporaneamente, proliferam no campo da educação em decorrência dessa exacerbação psi das vicissitudes atinentes ao desligamento psíquico em relação ao pai. Boa leitura! Douglas Emiliano Batista

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Psicanálise e educação: encontro (des)encontrado Maria de Lourdes S. Ornellas

Na cultura e civilização desta contemporaneidade, a lei é consumir objetos que possam vir a suprir as falhas simbólicas por excesso de apelo ao que é da ordem do imaginário, do virtual; seria a economia do funcionamento narcísico primário por excelência: o eu e a sua imagem no espelho. Este é o objeto de consumo no mais alto grau, efeito da captação imaginária, portanto objeto de sedução. A imagem embaça e não se pode ver o líquido proposto por Bauman (2001), quando destaca a modernidade somada à busca incessante do objeto perdido. Esse objeto que é sempre perdido se encontra evanescente também na escola, e, se quisermos nos aproximar dele, torna-se necessário chegar até a sala de aula. O discurso do professor é único. Apenas o professor ritualiza e autoriza o momento no qual o aluno deverá emitir seu semissaber. O olhar severo é uma tática de dominação e, nesse olhar silencioso, o professor, marcado pela (des)autorização, diz o que será feito. A contemporaneidade expressa o declínio da função paterna pelas novas economias psíquicas. Estas novas economias psíquicas retiram o lugar da divisão do sujeito, num funcionamento de Recusação do significante Nomedo-Pai, instância terceira que, através do Discurso Materno, insere o sujeito na castração, sujeito dividido pela linguagem. Inscritos nesta nova economia, nota-se o quanto o gozo das sensações superficiais aparece em destaque na atualidade e o objeto que rege o gozo capitalista não obtém ancoragem simbólica no campo do desejo. Na contemporaneidade, percebe-se um deslizamento metonímico do objeto, cuja apresentação é cada vez mais acessível, prática e impessoal, impedindo o sujeito de se situar em face de um processo de representação simbólica desse objeto. 15


A partir dessa fala principiante, tenta-se indagar: que lugar e posição teriam a psicanálise e a educação em face desta realidade contemporânea, que coloca o sujeito a serviço do gozo ininterrupto dos objetos de consumo, não deixando lugar para que a subjetividade emerja? Para o (des)encontro desses dois saberes, é possível tentar mostrar algumas pistas que ora enumero de seis, pelas quais torna-se fundante o encontro da psicanálise com a educação: sujeito, transferência, escuta, professor e aluno, estilo e afetos. A primeira pista é da concepção de sujeito. Assim, inicia-se essa fala, afirmando a inexistência de laço social sem um sujeito que o re-invente. Para se chegar à gênese de como a primazia do este é você! começou, Lacan (1936) apresenta o artigo o Estágio do Espelho, marcando uma diferença entre o eu epistêmico e o eu subjetivo, e afirmando que o eu ocupa o lugar do imaginário, lugar da constituição do narcisismo, das pulsões primárias e a agressividade marca um exemplo de pulsão primária. O estádio do espelho (1936) marca o momento psíquico e ontológico correspondente à criança entre 6 e 18 meses de vida. Nessa fase, a criança percebe sua unidade corpórea, identifica-se com o Outro e se enche de júbilo com a descoberta da sua própria imagem. Para Lajonquière, “o sujeito não tem origem, portanto não se desenvolve, ao contrário, ele se constitui graças a duas operações lógicas [...] que a teoria chama de estádio do espelho e complexo de Édipo” (1992: 215). Para ele, o ser humano não nasce sujeito. É por meio da imagem do eu corporal como unidade que o sujeito vai se constituir. A função do estádio do espelho é referida à constituição da imago no sentido de estabelecer uma relação do organismo com sua realidade. Implica a ideia da aquisição de uma imagem corporal advinda da relação com outro semelhante. O contexto do reconhecimento pela criança de sua própria imagem é estruturante para a identidade do sujeito e é vivida em uma relação narcísica e imaginária com o Outro, coincidindo com a entrada no Complexo de Édipo, o qual estrutura o acesso do sujeito ao simbólico e o inscreve no lugar de ser desejante. Segundo a psicanálise, o sujeito é o sujeito do desejo, e ele se manifesta nas formações do inconsciente, ou seja, através dos sonhos, sintomas, enganos, esquecimentos, lapsos, atos falhos etc. O saber do inconsciente escapa ao sujeito quando ele fala. Considerando a distinção entre a psicanálise e o

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discurso científico, Lacan (em 1985) afirma que o sujeito é cingido por uma barra, por uma inacessibilidade tal como já foi dito na ordem da linguagem. O vocábulo vem do grego indiviuum e pode ser pensado como indivisível. Do ponto de vista lógico, (Ferreira, 1999) indivíduo é um ser representado por aquele que admite predicados, ou seja, é um ser humano indiviso. É uma espécie qualquer, orgânica ou inorgânica, que constitui uma unidade distinta. Para a filosofia, o indivíduo é o Um, que se refere ao único, supõe a união de duas bandas formando uma unidade completa (Lalande, 1996). As elaborações de Freud sobre o sujeito não se confundem com a inteligência do indivíduo; o sujeito não é sua inteligência, não está no mesmo eixo, é excêntrico. Esta é, para Lacan, a metáfora tópica – o sujeito está descentrado em relação ao indivíduo. Este sujeito é um outro, quer dizer, seria uma outra cena. Pontuar que o sujeito está dividido, segundo Lacan (1978), é dizer que só há sujeito em ser falante (o fala-ser, le parletre). É a ordem do significante que causa o sujeito, estruturando-o num movimento de divisão, fazendo advir o inconsciente. O conceito de sujeito em psicanálise implica o próprio desconhecimento deste em relação ao seu determinante, ou seja, o inconsciente. Essa relação de desconhecimento é constituinte do sujeito e permite articular várias polissemias possíveis de se pensar a cultura, a civilização, seja na arte, na ciência, na educação, na política ou nas relações professor-aluno. A noção do inconsciente ainda é estranha à educação, pois é difícil conviver com a ideia de que possa existir um saber do qual nada se sabe, contudo sustenta a verdade do desejo tanto de aprender quanto de ensinar. O sujeito revela-se num outro campo, no campo simbólico, não se constitui uma unidade, é dividido, fendido, faltante, desejante, incompleto e traz nas suas Formações do Inconsciente o sonho, o ato falho, o chiste, o sintoma, os quais estão assujeitados ao inconsciente. Nessa vertente, Lajonquière complementa: O fato de “estar em falta” chama-se desejo (Wunsch) e o objeto que o causa com sua falta chama-se em Freud (Das Ding) e, em Lacan, objeto “a” (l´objet petit a). Reencontrá-lo não seria outra coisa que usufruir uma satisfação equivalente àquela originária; em tal situação haveria uma identidade de percepção entre a satisfação atual e o traço mnêmico da “original”. (Lajonquière, 2007: 156)

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No lugar da completude há falta, indicada pela noção de Coisa (Das Ding freudiano1), que Lacan retira do texto do Projeto (1895) e eleva à categoria de conceito, dando-lhe o estatuto de causa irredutível do desejo. O desejo, tanto para Freud como para Lacan, está articulado à Lei. Lei aqui entendida, não como uma prescrição moral, todavia como a Lei da castração, que nomeia o simbólico, fundada no real da satisfação plena do desejo. Lei e desejo são as duas faces da mesma moeda. Safouan diz: “se o desejo é a carne, a lei é o osso” (1966: 31). A concepção de sujeito defendida neste escrito é aquela já nomeada de sujeito da falta; o objeto, causa de desejo, emerge, embora se encontre perdido, tenta se aproximar desse objeto, porém ele escapa. O sujeito deseja ter, porém a falta é constitutiva. A segunda pista é marcada pela transferência. A relação transferencial na sala de aula tem uma intenção: revelar que este construto é fundante para uma escuta do que acontece na escola, nos enlaces feitos, desfeitos e refeitos na relação professor-aluno. Esses sujeitos transferem entre si afetos prazerosos e desprazerosos, os quais, se bem trabalhados, podem contribuir para a análise das formas e cores desenhadas nos pergaminhos do projeto pedagógico. É possível afirmar também que essa temática revela a urdidura com a qual a transferência pode enodar o cotidiano escolar. Transferência é uma palavra de origem latina, composta pela predisposição trans, que quer dizer além de e pelo verbo ferre, que significa levar ou trazer ou transportare, suportar. Na transferência, há o agalma. Para Lacan (1960, p. 139), ele é o objeto do desejo, precioso, algo presente no interior. É o encanto, objeto brilhante etc. Esse agalma é presentificado pelas lembranças parentais, que permitiram a escuta da sua história, seu afeto, suas identificações, fazendo dele objeto de desejo. Lacan escreveu o Seminário 8: A transferência e nos fez entrar no enigma do amor de transferência. O objeto a não se coloca como um objeto cujo atributo pode satisfazer o desejo por sua presença ou o frustrar por sua ausência. Sua função é ser causa de desejo. O brilho fugaz do agalma não é representado na sua completude, não é a luminosidade totalizante a que Heidegger se referiu. 1. Par simbólico observado por Freud no brinquedo de uma criança de 18 meses, revelando no jogo presença e ausência (Chemama, 1995: 82).

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Este conceito, originado na religião (vem do grego agallein), significa adereço, aquilo que serve para enfeitar. É um objeto precioso de poder benéfico ou maléfico, traduzido por ornamento, brilho e, para Lacan, é o objeto causa de desejo, o objeto a. O objeto de desejo é parcial e é perdido, como bem pode ser visto quando Alcibíades compara Sócrates com a estatueta grotesca de Sileno e se encanta com o agalma que parece ver em Alcebíades. Referindo-se a esse tempo, citado por Kaufmann, Lacan pontua: “Nessa época, objetos desse gênero eram igualmente receptáculos, caixas de joias; o agalma é, portanto, não apenas objeto precioso, mas também objeto escondido no interior, enfim, como objeto de oferenda, ele é aquilo com que se pode captar, seduzir a atenção divina” (Kaufmann, 1996: 16). Esse objeto, suscitando sedução e enamoramento, abriga em seu interior, escondido, o objeto de desejo, o agalma. Não é a beleza dele, nem a ascese, que Alcibíades deseja, contudo esse objeto único, esse agalma visto em Sócrates e do qual Sócrates o desvia, porque sabe que não o tem. Se, por um lado, é pela transferência que o psicanalista é investido da posição de Grande Outro e se implica como aquele que possui um agalma, por outro, o professor se vê como um objeto parcial, por ser o objeto do desejo do aluno. O agalma do professor é visto pelo seu aluno como clarão na sala de aula, num momento evanescente que marca no objeto o enigma do real inscrito no seu saber, ainda que não sabido. O referido Seminário indaga sobre o agalma, esse objeto galante, escondido no interior desse Sileno grotesco representado pelo personagem atópico de Sócrates. Por essa via, evidencia-se um fragmento do diálogo O banquete, de Platão, para pensar sobre os fatos vivenciados na sala de aula, sabendo de antemão que o tema do qual trata O banquete é: de que serve ser sábio em amor? Lacan emprega os termos Erastès e Erômanos, inspirado na relação professor-aluno, estabelecida em Atenas, ressignificando-os para se referir à relação analisante x analista, e pergunta: o que se passa no amor ao nível desse par Erastès (sujeito do desejo, da falta) e Eromanos (no par é o único que tem alguma coisa). Nesse sentido, toma-se de empréstimo esses dois termos e, aqui, tenta-se metamorfoseá-los na relação transferencial entre o aluno e o professor. Na sala de aula, o aluno (Erastès) está no lugar e na posição de algo que lhe falta, quer aprender, quer saber e, supostamen19


te, pensa poder encontrar suas respostas na fala do professor. A posição do (Eromanos) é confortável, posto que é demandado pelo aluno e faz semblante de ter aparentemente algo a oferecer, ou seja, mostra-se como sujeito suposto saber e esse2 sabe, conhece o manejo de como articular com o objeto, visando sustentar a transferência, singular. Pensa-se que a psicanálise tem saído dos muros da clínica e ousado adentrar no contexto educacional e escolar para interpretar e entender as relações estabelecidas entre professor e aluno. A psicanálise deixou de ser a prática do divã apenas e é encontrada, hoje, nas universidades, nos hospitais, nas comunidades, nas escolas etc.; ou seja, ela está também tecida no social. Na instituição escola, ela tem estado em certa medida presente, pois é nesse lugar que se encontram os dois sujeitos: o professor e o aluno. Ambos são portadores de uma fala, de uma escuta e elas podem estar no campo do prazer e desprazer. Em 1921, não se pode esquecer, Freud mudou o enfoque dos seus estudos clínicos dos sujeitos para uma leitura crítica psicanalista da sociedade: É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfações para seus impulsos instintuais, contudo, apenas raramente e sob outras condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. [...] Desde o começo a psicologia individual nesse sentido ampliado mais inteiramente injustificável das palavras é, ao mesmo tempo, também social. (Freud, 1978, v. XVIII: 91)

“No princípio foi o verbo”. Lacan (1978) retoma essa frase bíblica e acrescenta: “O homem fala”. Verbo remete à palavra e ao discurso, isto é, antes de pensar, cogitar, o sujeito fala e é atravessado por um outro falante que toma parte na cadeia – conduzida, supostamente, pelo próprio sujeito – e a invade, produzindo efeito de sentido. O sujeito, quando nasce, é capturado pela fala, vive em meio a um universo de fala, universo organizado de palavras, o que vai contribuir para 2. Lacan utiliza esta nomeação para explicitar que o sujeito (paciente) atribui um saber ao seu analista. Um saber a respeito do gozo: um saber que o sujeito acredita necessitar para superar seus problemas (Lacan, 1993: 87).

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suas escutas e representações. Se a transferência é o ponto de partida do ato educativo – sua base psicológica possível –, ela não pode ser o seu ponto de chegada. É evidente que os mesmos fenômenos do tratamento psicanalítico podem ocorrer fora dele. Nessa compreensão, Freud afirma: “Não é verdade que a transferência surge com maior intensidade durante a psicanálise do que fora dela. Em instituições nas quais doentes nervosos são tratados não analiticamente, pode-se notar a transferência ocorrendo com maior intensidade” (1978: 1090). O contexto em que esse problema está enfocado se refere ao espaço de sala de aula no qual o professor fala. O sujeito se constitui na fala e pela falta. É porque na falta que o sujeito fala. Esse é um locus privilegiado para a psicanálise, na medida em que faz operar o divórcio entre o significante e o significado, possibilitando o sujeito se constituir. A fala implica um buraco no silêncio e esse véu faz semblante na fala do sujeito, na relação transferencial em ato estabelecido entre professor e aluno. Para entender o fenômeno da transferência, vale pontuar aqui a noção de sujeito introduzida por Lacan. A formulação lacaniana de sujeito3 oferece como resposta à pergunta da hipótese do inconsciente, sem aniquilar sua dimensão fundamental de não-sabido. A terceira pista nomeada pela autora de escuta, aqui referenciada, remete para algo a se tecer à própria realidade da sala de aula. Freud (1912) cunhou o conceito de Atenção Flutuante para que a escuta pudesse se dar de maneira acurada. Faz-se pertinente pontuar que nesta flutuação da atenção não se deve ficar preso apenas ao que é dito, mas, também, observar os gestos, as expressões, os silêncios. Vale a aposta de que no ato educativo há o sujeito do desejo que fala e escuta para quem aprender é mais do que transmissão de conhecimento. É busca para falar o que não pode ser dito inteiramente, contudo, ainda assim, insiste em dizer. Quando o professor pulsiona o aluno a falar livremente, é possível que ele possa se implicar em seu próprio dizer, se confrontam com sua palavra, suas contradições, suas camuflagens e suas ironias. Se a escola permite a palavra circular, é propícia para a escuta se fazer presente. 3. O sujeito revela-se num outro campo, no campo simbólico, não se constitui enquanto unidade, é sujeito dividido cindido, é falante, faltante, desejante, incompleto e traz nas suas Formações do Inconsciente o sonho, o ato falho, o chiste, a fantasia, o sintoma, os quais estão assujeitados ao inconsciente.

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E o plano discursivo escolhido para essa implicação psicanalítica não foi outro que o da educação. Ou antes: o plano que aqui se encontra em pauta é o da articulação (im)possível entre educação e psicanálise. Trata-se, portanto, do campo discursivo no qual se vinculam dialeticamente – muito embora sem pretensão de síntese ou fusão – a psicanálise e a educação. Em suma: para que a subjetividade do aluno seja levada em conta, não é necessário que ele receba um tratamento único, especial, particularizado, etc. na escola. O que se requer é que o tratamento público levado a cabo aí seja não todo, isto é, que ele faculte, em seu avesso, a emergência do sujeito tanto no que toca aos professores quanto aos alunos (alunos os quais, em vista disso, talvez não recusem hegemonicamente o ensino, uma vez que haverá, nesse caso, lugar para o desejo que os habita).


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