UM RIO COMO UM PÁSSARO

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Carlos rodrigues Brand達o Ilustrado por Luis Matuto



Carlos rodrigues Brand茫o Ilustrado por Luis Matuto

est贸rias, contos e lendas de rio e beira-rio


Texto © Carlos Rodrigues Brandão Ilustrações © Luis Matuto Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora.

Cip-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. B817u

Brandão, Carlos Rodrigues Um rio como um pássaro : estórias, contos e lendas de rio e beira-rio / Carlos Rodrigues Brandão ; ilustração Luis Matuto. - 1. ed. - Belo Horizonte, MG : Fino Traço, 2014. 204 p. : il. (Traço Jovem ; 1) ISBN 978-85-8054-188-5 1. Ficção infantojunvenil brasileira. I. Matuto, Luis. II. Título. III. Série. 14-08416 CDD: 028.5 CDU: 087.5 10/01/2014 13/01/2014

Produção e coordenação editorial Maíra Nassif e Cláudia Rajão Revisão de textos Lucas Morais Projeto gráfico e diagramação Ana C. Bahia Fino Traço Editora Ltda. Av. do Contorno, 9317 A | Barro Preto Belo Horizonte - MG - Brasil Telefone: (31) 3212 - 9444 finotracoeditora.com.br


Sumário Eu, chamado Z  7 O rio e a rabeca  27 A viagem ao fim do mundo  45 Quando eu comecei a sumir  71 Um rio, meu avô e eu  83 Um rio como um pássaro  97 O arco-íris  109 O homem que era a sua história  121 A fábula da sede 135 Eu, nascido ave  151 O homem que era quem foi  157 Um rio chamado Opará  179 Um menino, Francisco 187 Eu, chamado Carlos 195



Foi um rio que passou em minha vida E o meu coração se deixou levar... Um dia um homem com alma e nome de menino, Paulinho, Paulinho da Viola, inventou um samba. E num momento do seu samba a gente canta isso.

Nasci bem no coração de uma cidade grande. Nasci em Copacabana, no Rio de Janeiro. Lá, vivi a minha vida de menino, de jovem e de começo de adulto, que às vezes a gente chama de “gente grande”. Primeiro eu conheci apenas as “gentes da cidade”, como eu mesmo. Mas depois eu tive a sorte de viajar para lugares de longe e de perto. Lugares longe das cidades grandes. Lugares que a gente chama de “campo”, “interior”, “roça” e assim por diante. E convivi quando criança, quando jovem, quando adulto e agora, como um homem que vai ficando velho, com as “crianças da roça”. Foi com elas e com os seus pais e parentes que eu aprendi muito sobre a vida, o mundo e nós. Foi com pessoas pequenas e grandes que às vezes nunca tinham ido numa escola e nem sabiam ler-e-escrever, que eu aprendi algumas das lições mais sábias de minha vida. Delas eu ouvi também histórias e estórias bem diferentes das da cidade. Até hoje uma das alegrias de minha vida é sair da cidade, ganhar as estradas que “vão pro campo” e ir conviver com gente que vive de plantar e colher o que a gente come em casa. E ouvir as suas estórias. E saber de suas vidas. E seguir aprendendo com a sua sabedoria. Pois é a esta gente pequena, crianças e jovens do “mundo do campo”, que este livro de estórias de rio e beira-rio é dedicado.



Eu, chamado Z o começo Meu nome é Z. Vocês podem me chamar assim mesmo: Z. Ou Zê, se preferirem. Mas não me chamem de Zé, que é um outro nome e serve para vocês chamarem mais depressa alguém que se chame José. Tenho este nome e só ele. Ele é a letra inicial de poucos nomes, se nós formos comparar com a letra “A” ou com a letra “C”. Tudo bem, pois além de servir para começar nomes que são apelidos, como Zezinho, Zé (como eu lembrei acima) ou Zeca, o “Z” serve também para nomes antigos e bastante ilustres, como Zózimo, Zenón, Zorba e Zanoni. Vocês podem não conhecer ninguém com estes nomes. Mas saiba que foi gente importante. Eu apareço aqui logo no começo deste livro de contos porque tenho uma história (ou estória) para contar. Ela não é uma história dessas que a gente ponha num livro (a não ser neste) e nem tem mesmo algum grande herói dentro dela. Mas como ela é a história deste livro, eu pensei que vale a pena contar como ela foi. E, além disso, ela é ao mesmo tempo uma estória muito simples e uma história inacreditável. Logo vocês vão ver o porquê. Acho que já deu pra saber que eu sou uma letra. Na verdade eu sou a última letra do alfabeto em Português. Em outras línguas também, mas em outras não. E existem até algumas línguas em que eu, o “Z”, nem apareço. Letras como eu, um “Z”, são pronunciadas junto com outras, em palavras que pessoas como vocês falam umas com as outras. Ou mesmo a sós. Letras como eu são chamadas por gente como vocês de “consoantes”.

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Quase nunca elas são faladas ou são escritas sozinhas, como nossas irmãs, as cinco vogais: A, E, I, O, U. Você pode falar “A”, “À”, ou “E” ou “É”. Mas só falaria “Z” se você fosse dizer algo como “aquilo ali parece a letra ‘Z’”. Ou então quando você quiser juntar várias de nós, os “zês”, para imitar um ruído ou um zumbido, como: “zzzzzzzzzzzzzzz”. Eu sou uma letra bem pouco usada na língua que vocês falam. E vocês sabem que falam ou escrevem usando muitas vezes o “A”, o “B” o “C” e outras letras. É assim mesmo. Só de vez em quando alguém chama um “Z” para dizer alguma coisa. De uns tempos pra cá eu fiquei um pouco mais conhecido, por causa de um herói de outros tempos - nem tão antigos assim - que gostava de escrever com a espada a letra do começo do nome dele: “Z”. Pois ele se chamava “Zorro”. E também por causa de um filme

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chamado “Z”. Um belo filme grego que vocês não devem deixar de ver quando ficarem um pouco maiores. Letras são também escritas. Claro! Afinal tudo o que vocês estão lendo aqui são letras escritas como palavras. No passado, os primeiros homens falavam entre eles com palavras de letras, ou com os sinais dos quais surgimos nós, muitos anos atrás. E depois eles descobriram que podiam escrever palavras com letras como eu, além de falar palavras. E em cada grupo de gente humana a seu tempo, e em cada povo a seu modo, as pessoas que pensam-falam-e-escrevem aprenderam a nos escrever em pedras, em barro cozido, em pele de animais, em madeira, em metais, e até mesmo... bem depois, em polpa de madeiras transformadas em... papel. Como o desta folha que vocês estão lendo agora, e por onde começa boa parte de nossa história.


Hoje em dia nos escrevem em plásticos, em luzes e em telas de aparelhos na frente das quais as pessoas gastam horas e horas todos os dias. Vocês também? Tenho que lembrar uma coisa muito estranha. Mas algo mais que olhado com cuidado pode parecer até mesmo algo extraordinário. Quando duas pessoas falam, quando conversam, nós, as letras, não aparecemos no que elas dizem uma pra outra. Claro, é que então aparecem só as palavras que são construídas com a reunião das letras. Só aparece mesmo uma letra quando uma palavra cabe numa letra só. Por exemplo, quando você diz: “você é bonita e ela também”. Viu só? Aí a letra “E” aparece com um acento em cima, para ser um verbo. E aparece sem acento nenhum, e serve para ligar duas palavras. Mas quando as palavras são escritas, então nós, as letras, podemos ser vistas. E é a nossa alegria! Cada palavra de uma frase é desenhada com letras que não podem ser faladas sozinhas, a não ser de vez em quando. Mas que podem ser vistas no seu lugar da palavra. Por exemplo, veja só a palavra “sozinho” escrita aqui. Lá estou eu, entre um “O” e um “I”, que são duas letras vogais. Então, mesmo que a gente não seja “pronunciada” a não ser de vez em quando, dá pra sentir que as letras existem sim. Somos reais de verdade! E, pensem bem, o que seria das palavras sem nós, as letras? É o mesmo que pensar uma pessoa, como o João ou a Maria, sem a cabeça, sem os braços, as mãos, o coração, os pés e o fígado. E tanto é assim que alguém pode dizer, vendo o que uma outra pessoa escreveu: “a Tereza tem uma bonita letra!”

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Nós, as letras, existimos, como as palavras que vocês falam, na memória e na imaginação. As palavras que nós formamos de infinitas maneiras existem dentro dos seres humanos, como vocês. Como você. É espantoso, mas dentre todas e de todos os milhões e milhões de plantas e bichos do mundo, só mesmo os seres humanos (como eles gostam de serem chamados) aprenderam a nos inventar, usar e... abusar de nós, de vez em quando. Existimos ordenadamente, uma depois da outra, em alfabetos. Por exemplo, na língua em que vocês estão lendo isso tudo, o Português, vocês já sabem que o alfabeto começa na letra “A” e termina em mim, o humilde “Z”. As pessoas dos povos do mundo falam e escrevem em muitíssimas línguas diferentes. Algumas delas possuem letras e palavras parecidas com o nosso Português, como o Espanhol. Outras têm letras semelhantes, mas

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palavras muito diferentes, como o Alemão. Outras ainda, possuem letras e palavras muito diferentes das nossas. Duvida? Vá conversar com um chinês! Vá ler o que ele escreveu. Acho que chega dessa conversa tão ao gosto de nós, as letras. Vamos deixar isto pra outra hora e começar a nossa estória... ou história.

o meio Aconteceu que um dia eu surgi nesta exata página em que vocês estão agora. O que aconteceu é que, nesse dia tormentoso nós acordamos, eu e minhas companheiras, e descobrimos, de “A” a “Z”, que não estávamos, como de costume, uma depois da outra, em ordem e dentro de um alfabeto completo


em Português. E nem estávamos dispostas em algum tipo de “coisa escrita com sentido”, como as pessoas que leem gostam de dizer. Com um susto sem tamanho descobrimos que havíamos sido atiradas aqui nesta página em branco que vocês leem agora – finalmente e depois de muito trabalho – as palavras que conseguimos formar para vocês poderem ler o que está escrito. Por favor, leiam, portanto! Preciso repetir: foi um susto enorme! Foi um susto tão grande quanto o susto que um bando de letras desordenadas poderia levar. Abrimos os olhos e com nossos olhos de letras nós nos vimos espalhadas por todos os cantos da página. Uma página em branco é o lugar onde nos sentimos mais em nossa casa. Afinal, a página em branco é a nossa morada e a nossa oficina de trabalho. Vocês já sabem que sozinhas valemos pouca coisa e queremos “dizer” quase nada. Mas quando nos juntamos aos pares ou em trincas, formamos sílabas, formamos fonemas... como em “pa”. Quando as sílabas ou os fonemas que nos unem se unem, elas e nós formamos palavras, como “página”. E quando algumas palavras se encontram e são colocadas uma em seguida das outras, elas formam frases, como: “a página em branco não está mais em branco”. É uma alegria enorme quando a gente se vê sendo reunidas pela mente e as mãos de alguém como vocês! Que felicidade descobrirmos pouco a pouco que estamos nos reunindo para formar palavras, para formar frases, períodos, sentenças! Enfim, pra formar uma página inteira e pronta, carregada de ideias que saíram da cabeça de alguém que nos escreveu! Ora, palavras e ideias que, quando

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lidas por alguém como vocês, vão entrar de um modo ou de outro em suas mentes. E em seus corações, às vezes. E talvez elas sejam as melhores palavras das melhores ideias. Acho que deveria ser assim também com os seres humanos que nos usam para escrever o que eles sabem, o que eles pensam ou o que eles sentem. E nós nos sentimos “na maior felicidade” quando a última de nós grita lá do fim: “completamos mais uma página!” E a nossa alegria só é maior quando aos poucos vamos descobrindo que, de letra em letra, de fonema em fonema, de palavra em palavra, de frase em frase, de período em período, vamos criando algo que não cabe às vezes em uma página só. Nem em duas, algumas outras vezes, nem em três, em quatro ou mesmo em mais páginas. Quando as ideias de um alguém que

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nos multiplica por muitas e muitas letras, e acaba sendo uma carta, uma poesia, um conto, um livro inteiro... imagine! Bom, acho que devo voltar às minhas lembranças do “acontecido”. Repito! Num primeiro momento foi um susto muito grande que todas nós levamos. Cada uma de nós ia acordando e vendo, num abrir e fechar de olhos (olhos de letras, bem entendido), que cada letra estava fora da ordem de qualquer abecedário. Descobrimos que não estávamos reunidas de modo algum. Estávamos na maior desordem possível. E apenas por acaso algumas de nós formávamos palavrinhas simples, como “pé” ou “pó”. Enfim, tudo ao nosso redor era uma “zorra” (olha eu aí!) completa. Cada vogal ou consoante de nós estava entre as outras letras, esparramada no imenso branco sempre igual de uma folha de papel... em branco. Estava o “R” entre o “L” e o “E”, não muito longe de um outro confuso e


assustado grupo formado pela “M”, a “J”, a U”, a “T” e eu, a letra “Z”. E assim ficamos... sem saber o que dizer. Ou, em nosso caso, sem saber o que letrar. Foi então que começamos a ver, com os nossos muitos olhos de surpresa e de espanto, o que havia acontecido. Ora, então, em seguida, eu e a letra “A” procuramos nos aproximar e começamos a tentar compreender o que havia acabado de acontecer. Letras também pensam e compreendem... pelo menos do jeito das letras. Bem, o nosso espanto foi bem maior ainda quando eu me vi ao lado de um outro “Z”. E tem muitos mais esparramados aqui nesta página, ele me falou, quando leu em mim o meu tremendo susto. E, então, eu comecei a compreender que não apenas um, mas uma porção de alfabetos estavam esparramados naquela folha. Atenção: sempre que aparecerem palavras ou frase e até mesmo parágrafos inteiros escritos com o que as pessoas chamam de “itálico”, como agora, na palavra “itálico”, isto quer dizer que o que está escrito é o que alguém está falando, ou escrevendo! E debaixo desta folha tem outra e debaixo dela tem muitas, completou o “outro Z”. E em cada uma delas tem um monte de alfabetos com letras iguais a nós, todas espalhadas. Era demais! Então eu sugeri ao “outro Z” que a gente se reunisse lá no canto da página. Quem sabe? Mesmo reconhecendo o estado incrível de nossa situação, nós poderíamos fazer alguma coisa para recuperarmos pelo menos uma parte a ordem tradicional dos nossos alfabetos. E o “outro Z”, meu irmão, respondeu: já pensei nisso, mas achei melhor uma reunião com outras letras também. Quanto mais letras pensando juntas, melhor.

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Então fomos. Deslizamos até um canto da página onde nos esperavam já três “AS”, dois “IS”, um “B”, cinco “ERRES”, dois “EMES” e um “ZÊ”. Contando com nós dois, éramos então “três ZÊS”). Imaginem vocês que mal um “A” ia tomar a palavra e dizer uma primeira ideia (ou fazer uma primeira pergunta), e nós vimos de repente cair sobre a nossa página branca, carregada de letras, de susto e de espanto, uma sombra enorme, maior do que o tamanho da página. Isso parece com cara de alguma gente, foi dizendo um dos “IS”. E era. Bastou a gente olhar pra cima e foi dar de cara com a cara de um homem olhando pra gente e pra página salpicada de nós, ao acaso. Uma página-bagunça, mas que sem nós dentro dela seria uma outra tão igual... “página em branco”.

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Nem foi preciso olhar duas vezes para eu ver, ou ler aquele rosto. Era o de um homem mais velho do que moço, e mais triste do que alegre. E foi quando todas nós ouvimos ele falar, juntando os sons de nós, letras em fonemas e palavras, para dizer isto: Eis aí! Um monte de letras minhas amigas de tantos anos esparramadas no papel. E hoje eu não sei o que fazer com elas... não sei mesmo o que escrever... E, de repente, vimos cair lá de cima, dos olhos dele, duas gotas, que quando nós nos juntamos para escrever o que é, formamos a palavra: “lágrima”. O homem chorava de triste. E então nós, as letras da página, compreendemos que a bagunça de nós-letras na folha de papel era a causa da tristeza dele. O que fazer? Acho que naquela hora esta era a pergunta que quase todas nós estávamos fazendo, cada uma pra si mesma e todas para todas as letras. Homens e mulheres sabem o que fazer com a gente. Ou não sabem, como


o nosso homem-escritor naquela hora. Mas será que letras sabem o que fazer com um homem? Eu sei, gritou um “M”, como se ele estivesse adivinhando a minha dúvida. Eu sei! Ele repetiu. E logo nós nos juntamos em um enorme círculo de muitas e muitas letras ao redor dele. E logo um “J” gritou lá de trás: M, fala alto pra todo mundo ouvir! E começa já... já! Ele completou só para se ouvir duas vezes. Muito bem, minha gente amiga! Vou começar minha fala agora mesmo! (e só nesta linha o “M” apareceu oito vezes). O que é que a gente acordou e descobriu num susto? Eu penso que foram duas coisas! Primeira coisa: descobrimos que nós acordamos e vimos que estávamos todas esparramadas na mais completa desordem ortográfica e lógica nesta página. E parece que também em outras páginas. Isso mesmo! Jogadas ao acaso, sem ordem “letral” alguma. Não estamos em fila no alfabeto, e nem estamos em linha, formando palavras e frases. Estamos numa confusão enorme. Uma bagunça sem tamanho! Segunda coisa: vimos que apareceu aqui em cima da “página um” uma face, um rosto, uma cara de algum alguém. Eu acho que era um homem. Ele falou o que eu penso que todas as letras aqui ouviram. E todo mundo viu que dos olhos dele caíram duas lágrimas... uma palavra tão triste e tão bonita... porque tem um “M” na parte do fim... o “M” arrematou. E daí? gritou um “S” lá de trás. Até aqui você só disse o que todas nós sabemos. Eu sei até mais do que você. Conheço a cara desse homem. Ele se chama Carlos Rodrigues Brandão.

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Ele já escreveu comigo e com todas vocês em outros livros. A gente já passou muitas e muitas vezes pelas palavras e pelas ideias dele. E daí? O que é que a gente pode fazer? O que simples letras podem fazer quando um homem se debruça sobre uma folha de papel e diz que não sabe o que fazer com a gente? É isso mesmo, disse de repente o “J”. Se ele não sabe o que vai fazer com a gente, o que é que a gente pode fazer com a gente? Ora, eu acho que é muito simples! Replicou o “M”, como se no meio daquela confusão tivesse descoberto isso que os homens chamam: “a luz no fim do túnel”. Nós vamos fazer alguma coisa com ele. E vamos fazer coisa que nós, as letras, sabemos fazer muito bem!” Duvi-de-o-dó, disse um “D”. Você está é mais confuso do que a confusão

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em que nós estamos metidas! Não, respondeu o “M”. Eu tenho uma magnífica, mágica, misteriosa e maravilhosa ideia. E eu acho que ele falou estes quatro adjetivos femininos só pra se ver no começo de uma palavra quatro vezes. Prestem muita atenção! O “M” continuou. Esse homem chamado Carlos está sem ideia nenhuma pra reunir a gente em palavras, em ideias, em poesia, em conto ou seja lá o que for que ele queria escrever com a gente. Mas se ele entrou em “crise de ideia”, ou em “carência de palavras”, nós, as letras das palavras que ele ia escrever, podemos muito bem ajudar. Tudo bem! Gritaram juntos um “T” e um “B”. E o que é que você sugere agora, “M”?


Eu sugiro que a gente se escreva por ele!!! O “M” emendou pra imensa surpresa de todas nós. E então eu, o “Z”, ouvi uma porção de sons de espanto e de dúvida. Foi quando, com a cara mais séria e perplexa possível um “C” perguntou: mas, como? E ele perguntou isso em nome de todas nós, com a mais contundente e completa cara de espanto. E arrematou gritando bem na frente do “M”. Como? Como?? Como??? Muito simples, continuou o “M”, respondendo com a mais completa calma. Nós esperamos o homem-Carlos dormir. Enquanto ele dorme a gente se reúne. Um punhado grande de letras em cada página do papel aqui. E começamos a criar aquilo que ele não está conseguindo nem começar. Se vocês olharem o comecinho da primeira página do monte de páginas em que estamos, vocês irão ver que antes de “entrar em crise” ele pelo menos escreveu o título do que deve ser o livro que ele queria escrever. E ele escreveu logo em seguida o título de cada conto (ou eu acho que era “conto”) que ele pensava escrever. No meio da confusão da manhã de hoje vocês caíram num susto tão grande que nem perceberam que no meio da imensa confusão havia pelo menos um comecinho de “ordem-letral”. É verdade, completou um “X”. O “M” tem toda a razão. Eu vi que esse homem pelo menos conseguiu escrever o título e o subtítulo do que vai (ou não vai) ser um livro escrito com milhares e milhares de nós juntas, as letras. Eu subi lá na “página de rosto” e vi, ou li o que estava escrito antes da desordem de nós espalhadas nas páginas seguintes. Lá está escrito assim: Um rio como um pássaro.

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E lá em baixo da página estava escrito o nome dele. Depois – vão lá e vejam de novo – ele escreveu ainda o que eu acho que são os nomes de cada coisa que ele ia escrever. Acho que são títulos de contos. Ele gosta muito de escrever contos! Depois, esta página está em branco. E nas outras é que começa essa confusão enorme, nas páginas onde nós estamos aqui e ali, esparramadas ao acaso, nessa maior desordem! Foi então que o “M” retomou a palavra e continuou falando, cada vez mais entusiasmado. Pois bem. Eu acho que a gente poderia fazer o seguinte. Cada grupo de muitas letras deveria se reunir nas muitas páginas em que estamos. Acho que a gente poderia pensar juntas as estórias, os contos, as lendas, ou o que

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seja que ele ia escrever e não escreveu. Como todas nós já estivemos reunidas em tantos escritos dele antes, e como a gente já se acostumou até a pensar um pouco como ele pensa, nós podíamos muito bem nos reunir. E então poderíamos começar a fazer o que a gente mais sabe: formar sílabas, criar palavras, inventar frases, construir linhas, preencher páginas inteiras de escritos. Até aí tudo bem! Interrompeu um “A” com a pompa de quem sabe que o alfabeto começa nele. Mas... e depois? Ou você acha que letras sozinhas escrevem um livro sem passarem antes pela mente, pelas ideias e pelas mãos de um homem? É! Eu acho que esse dilema vai ser o “x” da questão, aproveitou para lembrar o “X”. Nada disso! Depois vai ser mais fácil ainda! Respondeu serenamente o “M”.


Vejam, depois de tudo escrito, a gente espera o homem-que-escreve dormir. Daí nós saímos na ordem do que escrevemos do começo ao final do livro. Saímos devagar e com calma “letral”. E então entramos dentro da cabeça pelos ouvidos. Pois nos humanos, os ouvidos, os olhos e tudo mais vão dar direto na mente, na imaginação e na memória deles! Então eu tomei coragem e tão alto e entusiasmado quanto o “M”, comecei a completar o que ele ia dizer. Daí nós chegamos com nossos contos prontos dentro da mente dele! Olhei pro “M”, e vi que ele não estava zangado por eu ter tomado a palavra dele. E ele até fazia uma cara de quem aprovava o que eu dizia. E então eu segui em frente. E no sono profundo do homem que ia nos escrever, nós entramos... como num sonho. Entramos passo-a-passo lá dentro onde ele sonha quando está dormindo, e onde ele pensa quando está acordado. Isso é fácil, pois nós as letras, nos movemos sem o menor ruído. E então o homem-que-escreve nos sonha! Ele sonha as estórias que criamos para ele. E depois ele acorda. E, daí, ele pensa que foi tudo um sonho. Um longo sonho cheio de letras, de palavras, de frases e de períodos. Cheio de páginas com o que ele ia escrever... já escritas. Isso mesmo! Aí ele acorda, continuou o “M”, tomando de novo a palavra. E ele acorda, e pensa que tudo o que ele lembra das estórias que nós criamos e colocamos na mente dele é um sonho só. Ou é uma “sonharada”. Um sonho atrás do outro, que ele sonhou. E então ele escreve aquilo que ele esqueceu e nós lembramos pra ele.

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Apoiado! Apoiado! Gritou com entusiasmo um “O”! Vamos tentar! Vamos fazer isso mesmo. Afinal... alguma outra letra tem alguma outra ideia? Ninguém. Porque de “A” a “Z” (eu) ninguém disse, falou, bradou ou gritou outra ideia nenhuma.

o final E, então, em menos de um minuto fomos nos organizando... letralmente. As letras de cada página voltaram para a sua página. Cada grupo se colocou em um grande círculo logo debaixo do “título” de cada conto escrito no alto da página. E, então, começamos a criar nossos contos... ou os contos dele, através

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de nós, as suas letras. Criar palavras, frases, parágrafos, páginas, livros inteiros é coisa tão simples para nós, vocês já sabem. E assim começamos a nos escrever, escrevendo desde palavras até páginas inteiras. Em pouco tempo conseguimos escrever o que o homem-escritor não conseguia escrever de jeito nenhum. E quando acabamos, veio a segunda parte. E então já era quase de manhã, pois da janela vinha até nós o começo do claro do dia. Essa outra parte de nossa aventura parecia mais difícil, mas acabou sendo bem fácil. Como vocês sabem (ou deviam saber) nós, letras, podemos tomar várias formas. Afinal, é com a gente que se pensa, que se fala, que se escreve. Somos tinta no papel, energia e imagem eletrônica num computador, som em uma fala. Somos quase tudo o que se pode ser. E assim foi.


Em ordem, letra por letra, palavra por palavra, frase a frase, uma página depois de outra página, fomos entrando passo a passo (e passo de letra, sem ruído e sem peso nenhum, lembrem bem!) pelo ouvido dele adentro, lá dentro do homem chamado Carlos, que dormia então um sono profundo e triste. Dormia e nem sabia o que estava acontecendo. Ou será que sabia sem saber? Formamos um longo rio (longo para o tamanho de letras!) rio-de-letras pelo caminho. E fomos navegando, viajando no rio de nós mesmos de onde estávamos até lá. Chegamos lá e, conto a conto, fomos contando pro homem cada conto que ele não conseguia escrever. E ele, dormindo, sonhava com a gente. Claro, isso é o que a gente imaginava estar acontecendo. E eu acho que aconteceu mesmo, porque ele começou a se virar na cama de um lado pro outro, mesmo dormindo “a sono solto”, como quem vive grandes aventuras dentro do sono. Achamos que estava dando certo. Que o nosso homem-escrito sonhava com as histórias, as estórias, os contos que as letras de “A” a “Z” foram contando pra ele, lá... bem dentro dele. E no meio do sono dele. Depois que tudo acabou... ou quase, ficamos ainda lá por dentro do mundo das palavras e das ideias dele. Dos sonhos também, eu acho. Vocês bem podem imaginar como do lado de dentro de um homem há uma infinidade de letras, de palavras, de ideias, de saberes aprendidos, de imaginações, de fantasias, de teorias, de contos, de poesias. Afinal, um mundo de tudo o que cabe em palavras e em mais do que palavras. Um misterioso mundo misturado de um sem fim de ideias com um sem-fim de imagens. Tudo isso estava dentro do nosso homem. E está

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também agora mesmo, dentro de cada uma e de cada um de vocês que estão lendo isto agora. Mesmo dormindo e sonhando, quando no sonho alguém fala, lá está um bando de letras como nós. E nós encontramos lá dentro da cabeça do nosso homem um mundo de outras letras e palavras. Algumas descansando e esperando a sua vez de se reunirem para serem pensadas, sonhadas, faladas ou escritas. Outras já em plena atividade. Nem dormindo a cabeça de uma pessoa descansa. E, de repente, nós levamos um susto enorme. O nosso homem que dormia profundamente... acordou! Ele se mexeu, abriu de-va-ga-ri-nho os olhos, virou de-barriga-pra-cima. Olhou pro teto e coçou a cabeça.

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E, mais de repente ainda, imaginem que ele deu um pulo da cama. Era então bem o começo da manhã. Mas lá dentro do quarto dele estava escuro ainda. Estava escuro, e lá de dentro dele, olhando o mundo através dos olhos do Homem-Carlos, as letras que de susto saíram por um instante das suas palavras e foram até lá, como eu, viram que ele acendeu a luz depressa. E no quarto agora claro ele se sentou numa cadeira em frente de uma mesa com uma dessas máquinas em que nos existimos sem-fim, e nos mais diferentes estilos, chamada “computador”, como vocês bem sabem. E ele ligou aquilo e o escuro da tela clareou. E então ouvimos ele dizer para ele-mesmo, usando algumas letras (nós), e mais palavras e frases que saíram pela boca espantada dele: Então é isso? É isso mesmo, então?


É isso mesmo ou eu estou ainda sonhando. Será que eu já acordei ou estou ainda no sono sonhando com o que eu acho que eu sonhei? E se foi isso... como é que tudo isso foi? Pois agora eis que me vêm nas ideias e na minha lembrança tudo o que eu pensei que havia esquecido. E tudo me chega de uma vez só! Todas as estórias que eu queria escrever e não conseguia nem começar estão aqui agora, dentro de mim! E imaginem que o-homem-que-ia-nos-escrever ao mesmo tempo ria e falava alto. Ele se ria todo pra ele mesmo e pra ninguém. Acho que ele ria de alegria pra nós... sem saber. E antes de começar a escrever com a gente, as letras que dentro dele formaram palavras, frases e páginas de estórias, e todas as estórias de um livro, ele ainda falou assim: Zap! Eu que andava zerado de ideias, agora parece que estou com elas todas falando e zoando dentro de mim. Agora sim! Vai ser uma zorra sem fim! Num zás-trás de um instante eu vou escrever de uma vez, como num zumbido só, tudo o que eu queria e não sabia. E quando eu ouvi um “Z” tantas vezes repetido na fala dele, achei até que aquele homem antes triste e agora alegre falava pra mim. Será que foi assim mesmo? E agora a gente (gente-letras, claro!) pode dizer que o que vocês vão ler daqui em diante foi tudo o que nós, as letras esparramadas pelas folhas em branco, escrevemos. Tudo o que entre o sonho e o pensamento nós colocamos com carinho lá dentro do homem que nos escreveu, com aquilo que nós, num sonho, escrevemos pra ele. E antes de eu me despedir de vocês, minhas amigas, meus amigos, amigos, acho bom lembrar que até aqui, só nas páginas que vão do título deste capítulo até o ponto de interrogação logo adiante, nós já somos:

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13 páginas (em completa ordem letral), 77 parágrafos. 367 linhas. 4.135 palavras. 18.298 caracteres (isto é, nós, as letras e mais pontos, vírgulas e tudo o mais que vocês colocam entre as palavras. E somos 220.000 caracteres e mais os espaços entre as palavras. Dá pra acreditar? Aqui eu, um “Z”, despeço-me de vocês. Mas por um pouquinho de tempo só. Pois se vocês forem continuar lendo este livro, chamado Um rio como um pássaro, vão encontrar de novo todas as letras, “de A a Z”. Se eu aparecer poucas vezes em cada página, não se preocupem. Já estou acostumado a existir numa “língua” em que só muito poucas palavras precisam de um “Z”, como eu. Mas no conto que vem longo na outra página, na palavra “treze”, olha lá eu de novo! Até lá, minhas amigas e meus amigos!

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ISBN 978-85-8054-188-5

9 788580 541885

Você que está lendo isto agora, imagine um menino que desaparece dentro do sonho de um outro menino, que some lá dentro do sonho dele. Imagine um outro que de repente descobre que da varanda ao muro do quintal de sua casa pode viajar... até o fim do mundo. E um outro menino que descobre um pote do ouro debaixo da ponta de um arco-íris. E um homem que finalmente constrói uma máquina do tempo e volta ao passado. E encontra o quê? Quem? Estas e outras estórias pra se ler e pensar, e pra se acreditar ou não, é o que você vai encontrar neste livro com este nome: Um rio como um pássaro. Um livro que quer que você navegue nele. E um livro que sonha voar entre as suas mãos, os seus olhos, a sua mente e o seu coração.


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