História da Sexualidade III

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Hist贸ria da Sexualidade III: o cuidado de si

Michel Foucault


A cultura de si

“Existe no pensamento dos filósofos e dos médicos, no decorrer dos dois primeiros séculos, toda uma severidade.”



A cultura de si desconfiança face aos prazeres  insistência sobre os efeitos do seu abuso para o corpo e a alma  valorização do casamento e das obrigações conjugais 

austeridade sexual reprovação da “imoralidade”


Marble grave stele with a family group


Marble grave stele of a little girl


A cultura de si Esforços de moralização feitos pelo poder político: medidas legislativa protegendo o casamento, favorecendo a família, regulamentando a concubinagem e condenando o adultério.


“O que se marca nos textos dos primeiros séculos – mais do que novas interdições sobre os atos – é a insistência sobre a atenção que convém ter para consigo mesmo; é a modalidade, a amplitude, a permanência, a exatidão da vigilância que é solicitada; é a inquietação com todos os distúrbios do corpo e da alma que é preciso evitar por meio de um regime austero; é a importância de se respeitar a si mesmo.”


A cultura de si

A intensificação da relação consigo pela qual o sujeito se constitui enquanto sujeito dos seus atos.



A severidade da moral: motivações •

O individualismo A atitude individualista A valorização da vida privada A importância atribuída às relações de si para consigo: exaltação da singularidade individual


A cultura de si A arte da existência: é preciso ter “cuidados consigo” 

“o que convém fazer com o objeto dos próprios cuidados”: o cultivo da alma e os cuidados com o corpo FORMAR-SE, TRANSFORMAR-SE, VOLTAR-SE “Acorre em(Sêneca) tua própria ajuda, lembra-te de ti PARA SI O homem deve, livremente, fazer uso de si mesmo.” (Marco Aurélio) próprio. Por isso os deuses o dotaram de razão. (Epicteto)


A cultura de si A arte da existência I: é preciso ter “cuidados consigo” “o que convém fazer com o objeto dos próprios cuidados”: o cultivo da alma e os cuidados com o corpo;  os cuidados consigo não pressupõem ruptura com o mundo; e  não há idade para aplicar-se consigo: “Aprender a viver a vida inteira.” 

Sêneca


A cultura de si A arte da existência II: deve-se fixar, no decorrer do dia ou da vida a parte que convém consagrar ao cuidado de si  este

tempo deve ser ocupado com exercícios, tarefas práticas, atividades diversas;  há os cuidados com o corpo, os regimes de saúde, os exercícios físicos sem excesso , a satisfação (medida) das necessidades, a leitura, as meditações, as anotações e a rememoração da verdade.


A cultura de si A arte da existência II: deve-se fixar, no decorrer do dia ou da vida a parte que convém consagrar ao cuidado de si. Finalidade: “Não deixar-se irritar com os outros, nem com os acidentes e tampouco com as coisas.” Marco Aurélio


A cultura de si A atividade consagrada a si mesmo não constitui um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social.

o trabalho de si para consigo

a comunicação com outrem

intensificação das relações sociais


A cultura de si A arte da existência III: o cuidado de si está em relação estreita com o pensamento e a prática médica.  Nos

Preceitos de saúde, Plutarco diz que a

filosofia e a medicina lidam com “um único e mesmo campo.”  Elemento central: o conceito de pathos paixão

doença física

males do corpo e da alma


PATHOS MEDICINA FILOSOFIA

(males do corpo e da alma) corpo: afecção que perturba o equilíbrio dos humores alma: movimento capaz de arrebatá-la apesar dela própria


O esquema nosográfico dos estóicos Graus crescentes de desenvolvimento e de cronicidade dos males proclivitas disposição para males que expõe à doença

pathos; affectus

afecção, perturbação

nosema; morbus

a doença

aerogatio; arrhostema

estado de doença e de fraqueza

kakia; inveterata; vitium malum

mal inveterado que escapa a qualquer cura possível


“É, a partir dessa aproximação (prática e teórica) entre medicina e moral, o convite feito para que se reconheça como doente ou ameaçado pela doença. A prática de si implica que o sujeito se constitua face a si próprio, não como um simples indivíduo imperfeito, ignorante e que tem necessidade de ser corrigido, formado e instruído, mas sim como indivíduo que sofre de certos males e que deve fazê-los cuidar, seja por si mesmo, ou por alguém que para isso tenha competência. Cada um deve descobrir que está em estado de necessidade, e que lhe é necessário receber medicação e socorro.”


4 A “arte do conhecimento de si” Procedimentos de provação

capacidade de abster-se do supérfluo; soberania sobre si

Exame de consciência

refletir sobre o fracasso para assegurar uma conduta sábia

Trabalho do pensamento controle das representações sobre ele mesmo pelo exercício da discriminação a fim de só aceitar na relação consigo aquilo que pode depender da escolhe livre e razoável do sujeito


“Procedimentos de provação” exercícios de abstinência Epicuristas

Estóicos

conhecimento do limiar de privação/sofrimento

preparo para as privações eventuais


A “arte do conhecimento de si” Procedimentos de provação

capacidade de abster-se do supérfluo; soberania sobre si

Exame de consciência

refletir sobre o fracasso para assegurar uma conduta sábia

Trabalho do pensamento sobre ele mesmo

controle das representações pelo exercício da discriminação a fim de só aceitar na relação consigo aquilo que pode depender da escolhe livre e razoável do sujeito


As práticas de si Objetivo comum: princípio do bem geral da conversão a si, de uma ética do domínio. Afastando-se do exterior tem-se acesso a si próprio, ao próprio passado.

Aprende a alegria. Sêneca


substância ética sujeição

valor

moral grega

moral romana

aphrodisia

o prazer sexual

a dominação de si sobre si

a dominação de si sobre si, mas o acento é colocado na fragilidade

estilização das atitudes; estética da existência “virilidade”

a arte de viver define os critérios éticos e estéticos da existência a verdade (do que se é, do que se faz e do que se é capaz de fazer)


A nova estética da existência 1.

O papel matrimonial

“Progressivamente o casamento, no mundo helenístico, toma lugar na esfera pública. Um conjunto de medidas legislativas marca progressivamente o domínio da autoridade pública sobre a instituição matrimonial.”


“Cada um dos esposos tinha, sob a República, um papel definido a ser desempenhado e uma vez realizado este papel, as relações afetivas entre os esposos eram o que pudessem ser... Sob o Império... o próprio funcionamento do casamento supostamente repousa no bom entendimento e na lei do coração. Surge desse modo uma idéia nova: o casal constituído pelo dono e pela dona de casa”. Paul Veyne


A constituição do sujeito moral no Império Romano – III a.C. 1.

Na relação da conjugalidade

2.

Na relação com o próprio status na cidade, com as próprias funções, atividades e obrigações: atividade política e ator moral


O sujeito político 

O pensamento político grego: a arte de si

O pensamento político romano e a arte de governar segundo a razão: observância da lei e da eqüidade, coragem, assiduidade, recusa da luxúria. “A racionalidade do governo dos outros é a mesma racionalidade do governo de si próprio.”


O sujeito político 

A razão (logos) presente em sua alma submete o governante à lei.

A relação entre a vida pública e a vida privada: “ele (o governante) deve ocuparse consigo, guiar sua própria alma, estabelecer seu próprio ethos.


O ethos do governante 1. NĂŁo se identificar com o papel polĂ­tico que exerce. 2. Praticar as virtudes sob as formas mais gerais (conservar-se simples, puro, honesto, grave, natural, justo, benevolente, afetuoso, firme). 3. Guardar os preceitos da filosofia como respeitar os deuses, socorrer os homens e saber o quanto a vida ĂŠ breve.


O ethos do governante 

Formar-se na “arte de bastar-se a si próprio sem perder a serenidade.” (Marco Aurélio)

É a modalidade do ser racional que fundamenta e deve determinar, em sua forma concreta, as relações entre governantes e governados. “a comunidade humana: a razão como princípio divino presente em nós”


Espancar um asno não é governar os homens. Governa-nos como seres racionais mostrando-nos o que é útil e nós seguiremos. Mostra-nos o que é prejudicial e disso nos afastaremos. Trata de nos tornar imitadores fervorosos de tua pessoa... Faze isso, não faças aquilo, se não te jogarei na prisão: não é assim que se governa seres racionais. Épictète, Entretiens, III


O ethos do governante 

É preciso preparar-se para os reveses e para a inquietação que eles podem suscitar, fixando, para si próprio, um limite às ambições almejadas.

A “crise da subjetivação”.


O corpo – a medicina “A medicina não era simplesmente concebida como uma técnica de intervenção que, em caso de doença, empregaria remédios e operações. Ela também devia, sob a forma de um corpus de saber e de regras, definir uma maneira de viver, um modo de refletida relação consigo, com o próprio corpo ... Com as diferentes atividades e com o meio.”


O corpo – a medicina A medicina teria a propor, sob a forma de um regime, uma estrutura voluntåria e racional de conduta:


A atenção a si O sujeito como seu próprio “conselheiro de saúde”.

A prática de saúde é uma armadura permanente da vida cotidiana, permitindo, a cada instante saber o que e como fazer: problematização constante e detalhada do meio; preocupação com o meio, lugares e momentos; perpétua atenção a si, ao estado em que se está e aos gestos que se faz.


Galeno e os aphrodisia Do uso das partes MORTE – IMORTALIDADE - REPRODUÇÃO

CORPO

OS ÓRGÃOS

O DESEJO

UMA CAPACIDADE DE PRAZER

ALMA


Galeno e os aphrodisia A fisiologia dos atos sexuais O isomorfismo desses atos nos homens e nas mulheres Identidade do aparelho anatômico nos dois sexos A “fisiologização” do desejo e do prazer Desejo e prazer decorrem de disposições anatômicas e dos processos físicos

CAUSA FINAL

Continuação das gerações


Galeno e os aphrodisia Relações entre as funções sexuais e a saúde: Dos lugares afetados Analogia particular entre epilepsia e ato sexual: CONGESTÃO ou RESSECAMENTO ESPASMOS

Ambigüidade do pensamento médico a propósito dos prazeres sexuais NATURAL X PERIGOSA


A “patologização” da atividade sexual séculos I e II 1.

Elementos que a caracterizam: violência involuntária da tensão, dispêndio infinito que esgota.

2.

A complexidade da patogenia: o temperamento dos indivíduos  o clima  o momento do dia  qualidade e quantidade do alimento que consumiu 

“longa série de sintomas polimorfos”


A “patologização” da atividade sexual séculos I e II 3. A atividade sexual se encontra no princípio de efeitos terapêuticos como também de conseqüências patológicas. 4. A tendência a atribuir efeitos positivos à abstinência sexual, embora a abstenção não seja considerada um dever, nem o ato representado como um mal.


A “patologização” da atividade sexual séculos II a IV 5. Insistência sobre a ambigüidade do efeito da atividade sexual, extensão das suas correlações orgânicas, acentuação de seu poder patogênico. Fundamentos:

Séculos I e II – violência involuntária e dispêndio exagerado Séculos II a IV - a fragilidade geral do corpo humano e seu funcionamento


O regime dos prazeres: variáveis 1.

A procriação.

Finalidade: uma bela descendência. Convém constituir-se a si mesmo como a imagem prévia do filho que se quer ter.


O regime dos prazeres: variáveis 2.

A idade do sujeito.

3.

O “momento favorável”.

4.

Os temperamentos individuais.


O trabalho da alma A alma tem um duplo papel: ela deverá fixar para o corpo regime ditado pela natureza do corpo tendo operado antes, sobre si mesma, um trabalho:

O que convém aos adultos é um regime completo da alma e do corpo... tratar de acalmar as próprias pulsões e de fazer com que nossos desejos não ultrapassem nossas próprias forças.


O trabalho da alma 1.

Não se trata, no regime médico, de eliminar o desejo, mas da subordinação tão estrita quanto possível do desejo da alma às necessidades do corpo

”...uma ética do desejo que se molda sobre uma física das excreções”


O trabalho da alma 2.

A “técnica da imagem”: a luta contra as imagens internas ou externas como condição e garantia da boa conduta sexual.

3.

Para um regime racional, a tarefa é a de elidir o prazer como fim procurado. O único fim que a razão deve se dar é aquele indicado pelo estado do corpo, em função de suas próprias necessidades de purgação.


Os regimes e os prazeres 1 “É um traço comum a toda medicina grega e romana conceder muito mais espaço à dietética da alimentação do que à do sexo. Para ela a grande questão é comer e beber.”


Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Rubem Alves


Cena do filme A Festa de Babette (1987, Gabriel Axel)


Cena do filme A Festa de Babette (1987, Gabriel Axel)


Os regimes e os prazeres 2 “Nesses regimes médicos vemos produzir-se uma certa “patologização” do ato sexual ao inscrever o ato sexual num campo onde ele corre o risco de ser a cada instante afetado e perturbado por alterações do organismo; e onde inversamente ele corre o risco de induzir diversas doenças.(...) O ato sexual não é um mal; ela manifesta um núcleo permanente de males possíveis.”


Os regimes e os prazeres 3

Uma tal medicina exige uma extrema vigilância para com a atividade sexual. A atenção exigida é aquela que faz com que estejam sempre presentes no espírito as regras a que deve ser submetida a atividade sexual.


Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977, Luis Bu単uel)


Os regimes e os prazeres 4 “Entre essas recomendações dietéticas e os preceitos que se poderá encontrar mais tarde na moral cristã e no pensamento médico, as analogias são numerosas.” (...) “Mas isso seria desconhecer diferenças fundamentais que dizem respeito ao tipo de relação consigo e, portanto, à forma de integração desses preceitos na experiência que o sujeito faz dele próprio.”



A “arte de ser casado” “A ética do comportamento matrimonial surge sob um ângulo bem diferente numa série de textos que se distribuem dos dois primeiros séculos a.C. até o segundo século de nossa era.”


O vínculo conjugal: mudanças 1.

De técnica de governo da família à estilística do vínculo individual: a valorização da relação pessoal entre os dois esposos, o comportamento de um para com o outro.

2.

O princípio de moderação de conduta num homem casado se situa nos deveres da reciprocidade mais do que no domínio sobre os outros.

3.

A problematização das relações sexuais entre os esposos: de uma doutrina do monopólio sexual a uma estética dos prazeres compartilhados.


O vínculo conjugal

“Esta arte de viver casado define uma relação dual em sua forma, universal em seu valor e específica em sua intensidade e força.”


O vínculo conjugal 1. Uma relação universal “Se existe uma coisa conforme a natureza, essa coisa é casar-se.” Mufonio Rufos

“...casado, fica-se amarrado pelos deveres privados que sobrecarregam o sábio e o impedem de ocupar-se de si mesmo.” Epíteto


O vínculo conjugal: uma “arte de estar junto” “O vínculo conjugal serve para definir uma forma de existência.”

•A complementaridade e a especificidade dos papéis de marido e mulher. •A identidade do objetivo: a prosperidade da casa •A constituição, a partir de dois, de uma nova unidade.


“ Nessas condições compreende-se aquilo que foi um dos traços mais particulares nessa arte de ser casado; é que a atenção para consigo e os cuidados da vida a dois puderam associar-se estreitamente. A arte da conjugalidade faz parte integrante da cultura de si.” Michel Foucault


O monopólio: a “conjugalização das relações sexuais” A conjugalidade torna-se, para a relação sexual, a condição de seu exercício legítimo. A condenação da contracepção e dos “desregramentos”.

CIDADE

vínculo conjugal

ato progenitura sexual família

COMUNIDADE HUMANA


Hera, deusa do casamento


Eros, o deus do amor


O nascimento de VĂŞnus (1482, Boticelli)


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