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O moço Anníbal e o sonho de ter o próprio pedaço de chão
Corria o ano de 1952. A cidade não passava de um amontoado de casas de madeira e ruas descalças, tomadas por caminhões, ônibus, automóveis, carroças, gente para todo lado. Em meio ao grande burburinho dos que chegavam em busca de oportunidades, Maringá recebia um jovem paulista determinado a radicar-se na terra vermelha, cujo nome faria história na vida do pujante município fundado pouco antes, em 1947: o engenheiro agrônomo Anníbal Bianchini da Rocha, que acabava de diplomar-se pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo, em Piracicaba.
Quis o destino que esse moço nascido a 17 de outubro de 1928 em Santos, filho do comerciante português Anníbal Lourenço da Rocha e da professora brasileira Júlia Bianchini da Rocha, declinasse de assumir o comando do bem estabelecido armazém de secos e molhados “Flor da Mocidade”, situado em Vila Matias, naquela cidade praiana, como pretendiam os seus, para enveredar pelo incerto e desafiador sertão paranaense. Firmemente decidido, acalentava o sonho, ainda quase criança, de conquistar o próprio pedaço de chão, onde pudesse dedicar-se ao ofício de agricultor. Queria lidar com terra, plantas, lavouras e safras, tudo o que não poderia oferecer aquele rincão à beira-mar. Diante da vontade do filho, disse-lhe certa vez o pai, em tom irônico e desolado, não possuir ao derredor nenhuma fazenda de bananas. Sim, pois era só o que se podia avistar, até então, pelas cercanias do município.
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O pequeno Anníbal estaria, de alguma forma, reproduzindo a aventura vivida pelo próprio pai que, de família humilde, decidiu em 1921 trocar Portugal pelo Brasil, país onde, solitário, desembarcaria com apenas 16 anos. Para isso, contou com a ajuda de um padrinho radicado no Rio Grande do Sul, que lhe emprestou o dinheiro destinado a custear a viagem, e para quem trabalhou até quitar a dívida. De lá, tempos mais tarde, migraria para Santos, onde após alguns anos atuando como empregado, chegaria ao próprio armazém de produtos ao varejo. Foi nessa cidade que conheceu Júlia, filha de uma família italiana que, como tantas outras, chegara ao País no começo do século. A menina nasceu em Santos depois de atravessar o Atlântico no ventre da mãe. Casados, tiveram um casal de filhos: Anníbal e Regina Helena, esta quatro anos mais nova.
“Por que esse interesse do menino pela terra?”, inquiriam, com certa perplexidade, os familiares, eles próprios, de parte de pai e mãe, descendentes de camponeses na Europa. C
Quando a família, seguindo pelos trilhos da estrada de ferro São Paulo Railway - construída por ingleses e inaugurada em 1867, com incentivo do Barão de Mauá, ligando Santos a Jundiaí -, partia para reencontrar parentes em outras cidades, o pequeno Anníbal, debruçado à janela, demonstrava fascínio ao avistar a paisagem a perder de vista, a sinuosidade do relevo, o casario das fazendas, a beleza dos rios, o colorido das matas, os rebanhos espalhados nos pastos.
Reunido com os primos e outras crianças nessas viagens, em vez de ater-se a folguedos comuns da idade, ocupava ele quase todo o tempo à feitura de hortas. Era o que mais apreciava. .....
A estrada de ferro levaria o café para o interior paulista, cuja produção era limitada pelo escoamento ineficaz até Santos, ainda em lombos de mulas. Também foi com a inauguração da ferrovia que o porto de Santos ganhou maior importância e a cidade teve impulso.
Até então, a primeira fase da produção de café no Estado estava concentrada na região do Vale do Paraíba.
Reza a lenda que as primeiras mudas chegaram ao País em 1727, pelas mãos do sargento-mor Francisco de Mello Palheta. Designado a resolver questões de fronteira na Guiana Francesa, Palheta foi presenteado com o café pela esposa do governador da Guiana, madame D'Orviliers. O sucesso do grão em solos brasileiros não demorou a se expandir. Foi plantado primeiro no Pará e depois no Maranhão, descendo em seguida para o Rio de Janeiro. Em São Paulo, sua entrada foi pelo Vale do Paraíba.
Não demorou muito para que o porto de Santos alcançasse a dianteira nos embarques de café, desbancando, a partir de 1880, o Rio. O porto santista jamais deixaria a liderança na exportação mundial de café em volume.
Em São Paulo, o produto financiou por muito tempo a cultura e influenciou a política nacional. Mas, a partir da década de 30, com o crack da bolsa americana, muitos dos cafeicultores paulistas se desfizeram de suas terras, os preços do grão atingiram baixas recordes e os cafezais perderam espaço. Os velhos casarões foram demolidos e, na Avenida
Paulista, começaram a ser semeados os arranha-céus.
Também foi em Santos que o hábito de tomar cafezinho fora de casa começou a ser cultuado, com a inauguração do Café do
Porto, depois Café Floresta, próximo ao cais, ponto atrativo para os turistas da cidade à época. Até então, o café tinha seu forte consumo em casa. O torrado e moído começou a ser vendido em feiras, nos antigos carros da Café Tiradentes, tradicional empresa no Estado.
Cafezais a perder de vista no Paraná. Abaixo, a ESALQ, em Piracicaba-SP
Até os 16 anos, Anníbal viveria em Santos. Em 1947, entraria para o curso de Agronomia na tradicional Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em Piracicaba, cidade servida pelo histórico rio do mesmo nome, um dos quais, há mais de duzentos anos, tropas da Coroa, desbravadores, posseiros e barcos com víveres e armamentos seguiam até a divisa com o Paraguai. Em uma primeira fase, o café e outras culturas contribuíram para a prosperidade da região. A cidade tornou-se um importante centro econômico, de onde o aplicado estudante Anníbal sairia formado quatro anos mais tarde.
Ainda em 1949, inicialmente à procura por terras no Estado de São Paulo, descobriu que teria poucas chances ali, dado que já eram, quase todas as regiões, bastante valorizadas em razão do ciclo da cafeicultura. Sensibilizado pela intensa propaganda que se fazia das terras férteis do Norte do Paraná, próprias para o plantio de café, que podiam ser compradas em condições facilitadas junto à Companhia Melhoramentos, Anníbal não teve dúvidas em tomar os caminhos que o levariam a este novo mundo.
Trabalhadoras envolvidas na colheita de café; o campo era um formigueiro humano
Chegando à região em plena colheita de café, despertou-lhe atenção o porte avantajado das plantas, resultado do solo extraordinariamente fértil, a generosidade da produção, o intenso movimento de trabalhadores, a confortante sensação de prosperidade que nenhum outro lugar lhe havia proporcionado. O Paraná começava a conquistá-lo. Conheceu primeiramente Londrina, onde manteve contato com o corretor Raimundo Durães, da Companhia Melhoramentos, e fez amizade com o espanhol Celso Garcia Cid, este já dono de uma pequena empresa de ônibus que, no futuro, seria uma das maiores do País, a Viação Garcia.
Partindo do escritório da Companhia, sugeriram-lhe que fosse ver um loteamento agrícola mais ao Noroeste, onde poderia comprar terras e formar a sua própria lavoura de café. Ao redor de cidades emergentes como Londrina e Maringá, já naquele tempo, quase tudo estava vendido e sendo desbravado. Em sua jornada, ora por estradas poeirentas, ora barrentas, o jovem vislumbrou o frenético trabalho de homens derrubando a mata, o fogo - muito fogo - devorando rapidamente os matos, e o plantio de cafezais em terras que, por seu elevado teor de matéria orgânica, dispensavam fertilizantes. Havia também muitos cafezais em crescimento, plantados por jovens igualmente obstinados, e caminhões que cruzavam os caminhos, transportando safras abundantes.
Tudo, até então, era precário, sem nenhum conforto. Muita gente abrigava-se em toscos ranchinhos construídos com troncos de palmito, não havia energia elétrica, água só com a perfuração de poços, as estradas eram precárias, repletas de atoleiros durante grande parte do ano. As cidades não passavam de amontoados de casas, apenas com uma, nem sempre convincente, perspectiva de futuro. Parecia um despropósito acreditar que valeria a pena investir nesse novo lugar. Mas, a despeito disso tudo, o engenheiro agrônomo estava resoluto do que pretendia para si. Não cogitava, de forma alguma, rever sua decisão e tomar o caminho de volta, conformar-se em assumir os negócios da família em Santos, onde a vida certamente seria bem mais fácil e previsível.
Anníbal aprovaria as terras que lhe foram apresentadas em uma gleba situada no nascente patrimônio de Uniflor, município de Capelinha, hoje Nova Esperança. Adquiriu 35 alqueires paulistas ao preço de 24 contos, pagáveis em quatro anos com juro fixo de 7% ao ano. Ali, já em 1950, com recursos emprestados pelo pai, derrubaria a mata e plantaria o seu cafezal. O futuro parecia começar a definir-se. Não contava, contudo, com um convite que lhe fora formalizado nessa mesma época para prestar serviços de engenheiro agrônomo ao escritório da Companhia Melhoramentos em Maringá, a qual estruturava equipe de funcionários e preparava-se para novos desafios. Com certeza, a escolha pelo Paraná havia sido acertada e estava ele agora, recémformado, com propriedade para cuidar e uma ocupação em que poderia aplicar o conhecimento adquirido na faculdade.
Para aceitar a função, entretanto, impôs uma condição, feita diretamente ao diretor-gerente da empresa em São Paulo, Hermann Moraes Barros, com quem encontrou-se para uma entrevista: embora contente com os rumos de sua vida, só viria em definitivo para Maringá quando estivesse casado. Aguardava-lhe em Piracicaba a noiva Apparecida Thereza Azevedo, que, igualmente decidida, havia assegurado a Anníbal a disposição de deixar para trás as regalias de casa e o conforto em sua cidade para acompanhá-lo. O diretor não só aprovou a atitude do jovem engenheiro como elogiou-a. Solteiro, concordou Barros, dificilmente conseguiria aquele moço permanecer em Maringá, cidadezinha de escassos atrativos.
Anníbal e Apparecida casaram-se e foi no bissexto 1952, exatamente a 29 de fevereiro, depois de uma longa viagem de jipe, que o casal chegaria à cidade. Lembra o engenheiro que durante quase todo o percurso a esposa suportou sem reclamar o cansaço e a demora, mas já próximo de Mandaguari, perguntou ao marido, aflita, se Maringá ainda estava muito longe...
Na cidade, ocuparam inicialmente uma casa próxima ao escritório da Companhia, numa rua poeirenta, que viria a ser a Avenida Duque de Caxias, e assim começaram a vida de casados. Quatro filhos nasceriam dessa união: Carmen Lúcia, Antonio Carlos, Júlio e Anníbal.
O engenheiro Anníbal fora contratado para trabalhar no Horto Florestal, mas, em 1953, a empresa já começava a investir na formação de pequenas lavouras de café, com o máximo de 100 mil pés cada uma, que foram plantadas sob a responsabilidade do engenheiro agrônomo nas fazendas Pitanga, município de Uniflor, Ipiranga e Fartura, em Paranacity, Mururê, Pau d'Alho e Boa Esperança, em Terra Boa, e Tuneiras, em Tuneiras do Oeste.