Quilombola - Carrapato de Tabatinga

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Caracterizacão da Comunidade Quilombola Carrapatos de Tabatinga Município de Bom Despacho – MG

QUI LOM BOLA Itamar Silva


Caracterizacão da Comunidade Quilombola Carrapatos de Tabatinga Município de Bom Despacho – MG

EXPEDIENTE

Realização: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas / IBASE Consultor Técnico: Itamar Silva Edição e Redação: Itamar Silva Revisão: Renata Mattos / Avril Traduction Projeto Gráfico Flávia Mattos Fotos: Itamar Silva

Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas Avenida Rio Branco, 124, 8 ° andar , Centro CEP: 20040-916 Rio de Janeiro / RJ Tel. (21) 2178-9400 Fax: (21) 2178-9446 E-mail: ibase@ibase.br www.ibase.br

QUI LOM BOLA


SUMARIO 04 Apresentação 04 Caminho Metodológico 06 Comunidade Quilombola 06 Contextualizacão do território 07 Comunidades Quilombolas no Estado de Minas Gerais 08 Comunidade Quilombola Carrapato de Tabatinga 08 Origem da Comunidade 09 Desafios / Potencialidades / Questões mais evidentes 09 Trabalho e Renda 11 Infraestrutura 12 Esporte e Lazer 12 Saúde 13 Educação 13 Organização Comunitária e Participacão 16 Manifestações Culturais e Religiosidade 18 Questão Fundiária 19 Fontes Consultadas 20 Anexos 20 Dona Fiota: a letra e a palavra 21 Associação Quilombola 22 D. Sebastiana explica a origem do Moçambique

Sumário


Carrapato de Tabatinga - Itamar Silva

apresentacao

Apresentacão

A elaboração de uma Caracterização nas Comunidades Quilombolas localizadas na Área de Influência Indireta (AI) da Linha de Transmissão (LT) em 500 kV Bom Despacho 3 – Ouro Preto 2 surge como resposta à necessidade do Departamento de Engenharia Ambiental da empresa Eletrobras Furnas de obter mais informações a fim de elaborar um breve estudo sobre a localidade, através da qual, uma vez obtidas todas as licenças, passará uma Linha de Transmissão de energia. Neste caso, mais especificamente, a LT 500 kV Bom Despacho 3 – Ouro Preto 2. A anuência 013/2010 da Fundação Cultural Palmares (FCP), emitida em 21 de outubro de 2010, estabeleceu algumas condicionantes. O referido documento informa sobre a existência de mais 5 comunidades na Área de Influência do futuro empreendimento não identificadas no Estudo de Impacto Ambiental a ele correspondente, solicitando, assim, uma caracterização e um estudo aprofundado para todas elas com o objetivo de formar um painel sobre as comunidades localizadas na AI. Na reunião do dia 23 de novembro de 2010, ficaram definidos os detalhes das condicionantes da referida Anuência da Fundação Palmares. Na ocasião, ficou acordada a elaboração de uma caracterização para três comunidades quilombolas localizadas na Área de Influência Indireta (AI) da Linha de Transmissão (LT) em 500 kV Bom Despacho 3 – Ouro Preto 2, a saber: - Comunidade Quilombola de Carrapatos de Tabatinga (Bom Despacho – MG), certificada em 06 de dezembro de 2005; -

Comunidade Quilombola de Ribeirão (Brumadinho – MG), certificada em 07 de julho de 2010;

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Comunidade Quilombola de Coqueiro (Moeda – MG), em processo de certificação.

É importante observar que, no processo exploratório, a comunidade de Coqueiro foi visitada, não tendo sido identificado nenhum interlocutor ou interlocutora que tivesse conhecimento da certificação da área junto à Fundação Palmares, apesar da exaustiva pesquisa feita pela consultoria contrata, acompanhada de dois representantes de Furnas Centrais Elétrica. Este procedimento foi informado à FCP, que autorizou o seguimento dos trabalhos nas outras duas comunidades identificadas. O presente documento visa construir, em diálogo com a comunidade, um breve levantamento do território quilombola da comunidade de Carrapatos de Tabatinga, em Bom Despacho. O primeiro passo para a construção deste estudo foi a pesquisa e coleta de informações secundárias sobre o território. Posteriormente, foram realizadas reuniões com a Coordenação de Responsabilidade Social e o Departamento de Engenharia Ambiental de Furnas, juntamente com a Fundação Cultural Palmares – importante ator no processo de concessão de Licenças necessárias à implementação e funcionamento de empreendimentos que têm impacto direto ou indireto em uma comunidade tradicional ou quilombola.

CAMINHO METODOLÓGICO CAMINHO METODOLÓGICO Escolhemos um caminho de aproximação e qualificação do território a partir das falas de suas lideranças, privilegiando a interpretação de quem vive o cotidiano do local. Buscamos identificar lideranças locais com vínculos históricos com o território. Nossa conversa teve um viés claro: buscar compreender a trajetória do grupo que vive naquela comunidade e sua compreensão da temática quilombola aplicada ao território. Em Bom Despacho, realizamos 3 entrevistas com diferentes gerações de quilombolas. D. Sebastiana, 73 anos de idade, matriarca e líder espiritual e cultural do quilombo, ativa liderança que está na origem da organização política 4


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dos Carrapato de Tabatinga. Sandra, 52 anos, filha de D. Sebastiana, presidente da associação local. expressão política desta localidade e reconhecida na dinâmica de articulação nacional dos quilombolas. Cleberson, 17 anos, neto de D. Sebastiana, estudante do 2º ano do ensino médio. O objetivo do diálogo com esse grupo foi o de compor um painel de lembrança e identificar as ausências e as demandas locais. Como a tarefa não era a construção de um texto etnográfico sobre o quilombo Carrapatos da Tabatinga, o caminho escolhido dá conta de preencher a demanda da Caracterização como está definida no escopo do contrato com Furnas, suficiente para um mapeamento inicial da comunidade e com uma aposta indisfarçada na “experiência subjetiva da fonte”, selecionada por deter informações privilegiadas sobre aquilo que desejávamos conhecer. O contato inicial foi feito inicialmente com Sandra, que, prontamente, se dispôs a colaborar e apresentar os outros entrevistados. As entrevistas foram realizadas na sede da associação quilombola da qual Sandra é presidente, no Centro em que D. Sebastiana realiza suas atividades religiosas umbandistas, e na casa do Cleberson, que mora igualmente no quilombo.

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CONTEXTUALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO CONTEXTUALIZACÃO DO TERRITÓRIO O município de Bom Despacho está localizado no centro oeste de Minas Gerais entre as cidade de Nova Serrana e Luz, encontrando-se a 141 Km de Belo Horizonte. Fundado em 30 de agosto de 1911, carrega uma controvérsia em relação à origem de seu nome, como encontrado no site da Prefeitura da cidade:

Uma vertente o atribui à devoção do fundador da capela, Luiz Ribeiro da Silva, que como outros portugueses povoadores do oeste mineiro, era procedente da Província do Minho, norte de Portugal, onde era fervoroso o culto a Nossa Senhora do Bom Despacho. Outra corrente afirma que a denominação surgiu na ocasião de uma seca prolongada, ocorrida entre 1767 e 1770, penalizando pessoas, animais e lavouras. Então os devotos de Nossa Senhora do Bom Despacho fizeram súplicas e orações pedindo chuva. Certos de que suas preces foram ouvidas, pois a chuva não demorou chegar, ergueram a capela em honra à Santa1.

Segundo os dados de 2010, do IBGE, a cidade está com uma população de 45.624 moradores – 49,52 homens e 49,7 mulheres –, dentre estes, 55% são brancos e 45% são negros e pardos.

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COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO ESTADO MINAS GERAIS COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO DE ESTADO DE MINAS GERAIS

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Dados produzidos pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES), uma Organização Não-Governamental, com sede e foro na cidade de Belo Horizonte, atestam que existem aproximadamente 400 comunidades quilombolas no Estado de Minas Gerais, distribuídas por mais de 155 municípios. As regiões do Estado nas quais tal concentração é maior são a norte e a nordeste, com destaque, nesta última, para o Vale do Jequitinhonha. Embora a maioria dessas comunidades se encontre em contexto rural, Minas Gerais se destaca pela presença significativa de quilombos em áreas urbanas. Grande parte dos quilombos rurais ocupa atualmente pequenas extensões de terras devido a um intenso processo de grilagem. A falta de terras acaba por provocar problemas de geração de renda. Além disso, o pouco espaço dificulta a vivência de algumas práticas culturais. A religiosidade, a música, a dança e o trabalho coletivo são práticas que proporcionam a base da existência desses grupos étnicos. Sem a garantia de um espaço coletivo, como um terreno ou um espaço cultural, muitas manifestações e práticas tradicionais ficam inviáveis de ser realizadas. Segundo informações coletadas no Projeto sobre Comunidades Quilombolas realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo3, que abrange comunidades de todo o país, podemos dizer que a garantia dos direitos territoriais, a implantação de alternativas de geração de renda e o acesso à água compõem os principais desafios vividos pelos quilombolas em Minas Gerais. Após o 1º Encontro das Comunidades Negras e Quilombolas de Minas Gerais, organizado pela Fundação Cultural Palmares e pelo Instituto de Defesa da Cultura Negra e Afro-descendentes (Fala Negra), em 2004, as comunidades quilombolas de Minas Gerais Fonte: http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/brasil/mg/mg_mapa.html perceberam a necessidade de se articularem para fortalecer a defesa de seus direitos, que vinham sendo amplamente violados. Em 2005, criaram uma Organização Não Governamental (ONG): N’golo - Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais. Desde então, a organização vem mobilizando quilombolas de todo o Estado. Em dezembro de 2009, aproximadamente 300 quilombolas ocuparam a Superintendência Regional do INCRA, em Belo Horizonte, como forma de protestar e exigir agilidade no processo de demarcação e titulação dos territórios quilombolas no Estado. Na época, existiam 465 comunidades quilombolas identificadas. No entanto, nenhuma delas encontravase titulada. Os quilombolas apontavam ser esta uma explícita violação de seus direitos garantidos no artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tribais e do Decreto Federal nº4887/2003. Denunciavam, ainda, que a morosidade do processo contribui para a perpetuação da vulnerabilidade das comunidades quilombolas, deixando-as desprovidas de saneamento básico, de acesso às políticas públicas governamentais, o que gera insegurança alimentar e habitacional4.

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COMUNIDADE QUILOMBOLA CARRAPATOS DA TABATINGA COMUNIDADE QUILOMBOLA CARRAPATO DE TABATINGA

Quilombo urbano localizado no bairro Ana Rosa da cidade de Bom Despacho, região Centro-Oeste de Minas Gerais. Certificada pela Fundação Palmares como território quilombola em 2005. A população geral do bairro, segundo depoimento de Sandra, liderança local, é de quatro mil pessoas.

ORIGEM DACOMUNIDADE COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CARRAPATOS ORIGEM DA QUILOMBOLA DE CARRAPATOS DA TABATINGA DA TABATINGA Sandra nos conta que a origem da comunidade quilombola da Tabatinga está em Bom Sucesso, localidade onde, outrora, vivia sua família:

Na época, por volta de 1890, houve uma discussão no então quilombo Carrapato. Homens, mulheres e crianças foram colocados em um buraco e fechados com uma tampa. Mas houve sobreviventes, os negros saíram do buraco, como carrapatos. Uns permaneceram no local e outros buscaram reconstituir a vida em outros lugares.

Não fica claro a origem deste conflito; no entanto, no depoimento de D. Sebastiana, mãe de Sandra, esta faz referência a um desentendimento com fazendeiros da região: “Até hoje a cidade lá é muito atrasada... e a vizinhança lá, lá só dá fazendeiro. Inclusive a nossa terra lá foi toda tomada. Eu estive lá depois de setenta e três anos, eu estive lá, até o muro que era da divisão do território nosso lá foi jogado no chão, desmanchado...”. Este acontecimento provocou uma “diáspora” que espalhou os “carrapatos” pela região, como indica Sandra: “uns ficaram e outros saíram... E aí minha tia ficou lá em Bom sucesso, meu avô rodou, rodou e parou lá em Contagem, minha mãe ficou aqui em Bom Despacho. Aqui não tinha nada, só tinha mato.” Quando chegaram na Tabatinga, já encontraram os negros da costa e, ali, conviveram as duas etnias. Nesta localidade, se desenvolveu um dialeto: 8


Carrapato de Tabatinga - Itamar Silva a “gira”, ou Língua do Negro da Costa, é uma espécie de dialeto até recentemente muito falado pelos moradores da Tabatinga. Em 1981, havia cerca de 200 pessoas que falavam a língua. Mas hoje, a pesquisadora Sônia Queiroz identificou apenas duas mulheres que ainda a falam5.

O desuso da língua pelos mais novos é relacionado ao medo, à perseguição e ao preconceito, como Sandra afirma:

E como era proibido... não podia falar porque era marginal, era marginalizado e era proibido, porque a polícia prendia e levava e não tinha jeito. Mas sempre tinha os mais velhos que conversavam escondidos, né? Mas, mesmo assim, os mais velhos; agora ninguém quer falar mais, porque tem muito desgosto, fica chateado...

Além disso, conforme estudos do CEDEFES6, a “gira” era um importante elemento de identidade coletiva, um código de comunicação que buscou um unidade a partir das diferentes línguas com as quais tinham que se relacionar.

A “gira” usa a estrutura do português com a introdução de palavras do grupo banto, quimbundo e umbundo, faladas até hoje, em Angola. A língua, surgida quando os escravos começam a realizar trabalhos domésticos, foi uma forma particular que eles encontraram para se comunicarem.

Houve a tentativa de levar o ensino deste dialeto para as escolas, porém, segundo Sandra, sem sucesso. Hoje, existe talvez uma ou duas pessoas mais velhas7 que ainda falam este dialeto, mas têm vergonha. O registro disponível da “gira” aconteceu graças ao trabalho da pesquisadora Sonia Queiroz, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que produziu, segundo Sandra, um livro, Pé preto no barro branco8: “O livro da Sônia esgotou. É só na UFMG que tem, a gente não acha ele pra comprar. É uma pesquisadora, Sônia Queiroz.”

DESAFIOS / POTENCIALIDADES/ QUESTÕES MAIS EVIDENTES DESAFIOS / POTENCIALIDADES / QUESTÕES MAIS EVIDENTES

A seguir serão detalhados alguns itens relevantes apontados nas entrevistas.

TRABALHO E RENDA

TRABALHO E RENDA

O desafio de conseguir se inserir no mercado de trabalho local, como em outras comunidades quilombolas estudadas, se repete também em Carrapatos da Tabatinga. A condição de quilombola, ao mesmo tempo em que os coloca formalmente na condição de prioritários na orientação de políticas públicas, não acaba com o preconceito que ainda os discrimina no mercado de trabalho. Nas palavras de um dos entrevistados desta pesquisa:

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(...) e aí as condições de vida e de trabalho são quase as mesmas, porque os negros aqui não têm ... porque se você olhar na comunidade, você não vê um negro na loja, você não vê um negro no banco, você não vê um negro no supermercado. A não ser trabalhar em fazenda, ou em construção civil. As condições ainda são dadas pela cor.

As alternativas no mercado de trabalho reproduzem, ainda, as velhas relações étnico-raciais da sociedade brasileira, como nos diz Sandra:

As mulheres trabalham na roça ou em casa de família. E muitos homens vão pra São Paulo cortar cana, trabalhar na roça de café, o que já está difícil nas fazendas. Levam as pessoas pra trabalhar, mas na hora de pagar que é o problema. Se for preto é pior ainda, né? Querem pagar aquela mixaria. Aí o pessoal vai trabalhar fora, você vê aqui mulher e criança.

Uma vez em São Paulo, muitos não voltam, acrescenta Sandra, “arrumam outras famílias, outro emprego e ficam por lá. Aí ficam as mulheres aí, viúva de marido vivo e cheio de filho... e é assim”. Também são restritas as alternativas para jovens a partir dos dezesseis anos que querem trabalhar. As poucas brechas empregam um número reduzido e o preconceito racial segue sendo percebido pelos quilombolas como um entrave para o acesso ao mercado de trabalho, como é o caso apresentado por Sandra:

Tem dificuldade. O meu sobrinho, ele está

trabalhando

como monitor lá na

comunidade.

Conseguiram lá pra ele. Como o povo não é daqui, é de fora, eles não tem esse preconceito como o povo daqui. Mas não dá pra todo mundo, né? Então é um ou dois no máximo que a gente consegue.

A saída imediata vislumbrada pelos quilombolas é o investimento em iniciativas próprias, como projetos que possam empregar e gerar renda, principalmente para os mais jovens. No entanto, encontram muitas dificuldade nos apoios. De acordo com Sandra:

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Carrapato de Tabatinga - Itamar Silva Meu sonho, que é o sonho das minhas irmãs, das outras moradoras, que é conseguir montar essa cooperativa, pra nós trabalhar. Porque se parar de trabalhar a gente vai ter que ir embora daqui e a gente não quer... (...) Então pra gente conseguir consolidar esse projeto que a gente começou em dois mil e... foi dois mil e oito, nove... porque eles sabem desenhar... então pra produzir camiseta... pra vender em loja, mas não daqui, mas levar pra algum lugar...

Também a cultura é vista como uma alternativa para os moradores deste quilombo, como afirma D. Sebastiana:

Meu sonho é ter nosso Centro de Cultura aqui dentro da nossa comunidade. De música, nós temos muitos músicos aqui, está faltando é espaço pra eles exibir, mas nós temos um tanto de músicos aqui. Desenhista... só vendo... Eu tenho um menino aqui, ele desenha tudo o que você quiser, sem ter estudado nem nada. É uma benção de Deus. Está precisando de quê? Apoio pra ele crescer.

INFRAESTRUTURA INFRAESTRUTURA

Não há reclamação quanto à infraestrutura da localidade. O único destaque fica por conta da iluminação pública que não é satisfatória, como evidencia Sandra:

Tem água. A única coisa que falta... é a iluminação ali do beco onde eu moro, eles iluminam até uma parte assim. A gente já foi na prefeitura... a (...) joga pra prefeitura, a prefeitura joga pro (...), ninguém sabe de quem é a responsabilidade. E tem lugar perigoso, tem gente de fora... tem uns menino que estão na droga... (...) Porque aqui estava um inferno...

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ESPORTE, LAZER E E ESPAÇOS COMUNITÁRIOS ESPORTE LAZER

O futebol e as festas nos finais de semana são a grande referência de lazer para os jovens desta localidade. Tanto para homens quanto para mulheres. A escola é também um importante espaço de socialização. Há escassez de praças e outros equipamentos públicos de agregação e alternativa para os jovens. Peguntados onde os jovens se divertem, a resposta foi direta: na quadra. E, complementa Cleberson:

O povo aqui gosta muito de futebol. Todo final de semana tem futebol. Aí é na quadra ali, a gente vai lá, treina... No final de semana, bate uma bolinha, depois vai pra casa... (...) As meninas também jogam bola. Só que elas não jogam na quadra não, elas jogam no CAIC (Centro de Atendimento Integral a Criança e ao Adolescente). Mas as outras ficam mais andando na rua. Elas vão lá na praça passeia assim... é isso. (...) Festa aqui é febre. Sexta e domingo tem.

SAÚDE SAÚDE Quando perguntada sobre o uso da medicina popular em seu trabalho, D Sebastiana faz questão de deixar claro que só trabalha no campo espiritual. “Trabalhar com erva é perigoso”. Apesar de ter aprendido alguma coisa sobre medicina alternativa com um médico que andou pela região, ela hoje prefere se concentrar no campo espiritual. Mesmo não fazendo uso do conhecimento sobre as plantas uma referência da sua atuação, não esconde o conhecimento tradicional que tem no uso delas:

O pó de mandioca é pra sífilis. As folhas da mandioca. Você colhe ela, torra, faz aquele pozinho e mistura no feijão, tira qualquer coisa do sangue...” “E o pó do inhame é pra ajudar a limpar o sangue, depois ativa o sangue... é uma beleza. Eu faço pra mim... pra minhas filhas.

Apesar de não fazerem reclamações específicas em relação ao atendimento à população quilombola, fica evidente o engajamento das lideranças na luta para ampliar e melhorar as condições de atendimento aos quilombolas. Sandra relata que:

Agora na saúde... eu fui a Brasília, no Ministério da Saúde, eles mandaram um convite... eu que levei o convite na secretaria e disse, tem que ir alguém, nem que mande um conselheiro. Tem que ir alguém. Porque aqui não chega nada! Aí um conselheiro está indo agora dia vinte e quatro, pro seminário da saúde da população negra. Porque tem que brigar... e na Secretaria de Educação tem que fazer a mesma coisa. Porque eles não tem interesse. (...) Na saúde a gente já faz parte do conselho, a gente já tem uma boa relação... tem uma agente de saúde... tem a minha irmã que trabalha no PSF, na parte do dentista. 12


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EDUCAÇÃO EDUCACÃO A lei 11645, que modifica a lei 10639, “estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” tem enfrentado resistência em sua aplicação Brasil a fora. Depende, em muito, do envolvimento e capacitação do corpo discente. Perguntada sobre a aplicação da lei naquela localidade, Sandra evidencia as dificuldades que o tema enfrenta: “na secretaria de educação tem que brigar... Porque eles não têm interesse”. A dificuldade maior nesta localidade é o acesso à faculdade. Segundo depoimentos, há creche, primeiro grau e ensino médio. A faculdade existente é particular e muito cara para o padrão dos moradores daquele território. Relata Sandra:

Os jovens estão no Ensino Médio, né?... de doze pra cima está no Ensino Médio. E os que estão terminando o Ensino Médio, a gente está incentivando eles a fazer o ENEM. Então todo ano eles fazem o ENEM... pra ver se conseguem uma bolsa pra faculdade. Faculdade aqui nós não temos... Federal só em Divinópolis, que é a mais próxima... (...) Aqui não dá pra nós, porque é particular e é cara. Eu estudava lá... eu estava fazendo, mas não tinha condições...

Apesar do estímulo a buscarem o ENEM como porta de entrada para a faculdade, os jovens ainda vêem seus sonhos limitados pelo custo alto do ensino superior, como afirma Cleberson: “Ah, como eu tô na área de informática... eu não vou fazer faculdade não, porque a faculdade que tem aqui de informática é cara, mas eu vou fazer um curso técnico de manutenção e conserto de computador”. Ainda há registro de preconceito no espaço escolar. Nas palavras de Sandra:

Uma sobrinha minha foi discriminada numa escola estadual... teve ocorrência, eu fui no Estado... a menina perdeu um ano de escola porque a professora não gostava de negro. A gente vai sim, porque onde eles vão estudar? Se não puder estudar aqui, vai estudar aonde? Então, a escola é pra todos... quem tem algum preconceito não pode dar aula na escola. Todos, preto, branco, índio, têm direito.

ORGANIZACÃO COMUNITÁRIA ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA

E PARTICIPACÃO

O nome do bairro mudou recentemente com o novo prefeito, passou a chamar-se bairro Ana Rosa. O bairro chamava-se Tabatinga por causa da quantidade de barro branco existente em abundância no local. Os quilombolas preferem o nome antigo, que tem a ver com a identidade local e traz o resgate do próprio quilombo: Quilombo dos Carrapatos da Tabatinga. Há um desconforto com o novo nome e uma expectativa em fazer crescer o movimento para retornar o nome anterior. O bairro possui duas associações, uma do bairro Ana Rosa, que abrange a todos os moradores, atualmente sob a presidência de uma mulher, e a Associação do Quilombo de Bom Despacho, que representa somente os

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quilombolas, também presidida por uma mulher. Outrora, a associação dos moradores do bairro, que também foi fundada pelos quilombolas, dividia o mesmo espaço físico dos quilombolas; atualmente, as associações funcionam em lugares distintos. As lideranças quilombolas, aqui representadas por Sandra, justificam a separação das duas associações:

Nós separamos a associação do bairro porque tem eleição, aí entram outras pessoas de fora. Então a gente separou porque, por exemplo, quilombola, na associação, tem que ser só quilombola. Agora teve uma eleição e quem era presidente da associação do bairro é a Silvana que mora... porque na nossa associação tem que ser quilombola, porque se não for quilombola não pode concorrer...

A Associação do quilombo de Bom Despacho define sua dinâmica de funcionamento de acordo com a disponibilidade da maioria de seus associados. Explica Sandra:

A gente fazia uma reunião mensal, mas aí como estava ficando muito pesado, a gente passou a fazer reunião trimestral. Porque o pessoal que trabalha na roça, está vindo todo mês, fica difícil. Então a gente faz uma reunião trimestral aqui. A gente avisa na rádio... eles dão bastante apoio pra gente.

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Apesar da dupla representação, parece não haver disputa entre as associações. Os quilombolas têm um entendimento de que os benefícios que chegam especificamente para sua comunidade deve ser repartidos também com os mais pobres do bairro e isso garante uma boa relação com a vizinhança. Outro aspecto importante do ponto de vista da organização comunitária é a capacidade de articulação que transparece na fala de seus representantes, Sandra:

A gente faz parte do conselho adolescente como representante da comunidade quilombola... tem outras... a Pastoral da Criança... e a gente se dá bem com os conselhos, a gente se comunica bastante. Também pra poder buscar lá fora... não só na prefeitura. (...) Com o Governo Federal a gente tem uma relação boa. O Governo do Estado está criando programas específicos pras comunidades quilombolas do Estado de Minas Gerais, que é a Educação Quilombola, a Secretaria de Agricultura com programas Comunidades Tradicionais. Além de ter outros, né.?.. a assistência social do Estado também melhorou bastante. A Assembleia Legislativa também tem apoiado as comunidades muito. E no município, aos poucos... o prefeito não é muito de dialogar, mas ele deu a permissão (...). E a gente tem uma boa relação com a Secretaria de Ação Social aqui do município, a Secretaria de Cultura também, onde a gente faz parte dos conselhos, onde eu faço parte do Conselho de Política Cultural e minha mãe do Patrimônio. Agora, a gente está precisando de um conselho de educação, mas é mais difícil. (...) É complicado. Eu já fui lá muitas vezes... aí eu tentei uma professora lá da Secretaria de Educação... eu trago os documentos e você leva pro conselho, pro conselho aprovar. Porque a secretária não gosta muito de negro não.

E os quilombolas deixam claro a necessidade de maior investimento na capacitação de seus membros. A autonomia é reivindicada como elemento fundamental para seu auto desenvolvimento, como é possível ouvir na fala de Sandra:

Olha, a mensagem é que... as pessoas, ou a instituição, que têm condições de estar dando mais apoio pras comunidades quilombola e que puder ajudar a gente, porque é muito difícil a gente conseguir apoio de pessoas ou de instituição, ou até mesmo de empresa... é difícil. E se a gente pudesse ter um interlocutor pra estar nos ajudando nisso. Porque a gente não tem essa capacitação pra elaboração de projetos. Tem projetos simples, como aquele lá da Bahia, que tem que preencher ele, e tem outros que não tem condições nenhuma da comunidade quilombola fazer. Os quilombolas não mandam projeto e nem vão mandar nunca. Nessas condições... nem Internet, agora que está chegando. Enquanto não tiver uma sustentação pras comunidades quilombolas, as ONGs vão continuar dominando. E nem sempre elas fazem os projetos que as comunidades precisam.

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Além das dificuldades dos trâmites legais e preenchimento de formulários para acessar projetos, na prática também aparecem os limite da implementação dos projetos oficiais (municipais ou federais) que ou chegam pela metade ou carecem de manutenção e acompanhamento, como afirma Sandra:

Ele que dá curso de cozinheiro... nós estamos parados, porque a prefeitura... Deu uma chuva, a água caiu, quebrou tudo. Aí eu falei: você tem que ir na prefeitura pra arrumar, porque não pode estragar esses equipamentos todos. Quem disse que foi?... E eu não posso terminar o projeto porque eu não posso arrumar. Tem que ser a prefeitura. Vocês viram? Chegou a antena. (...) Aí os computadores estão ali amontoados porque está faltando chegar os móveis. Chegou os computadores e amontoou ali... isso já tem mais de um ano já. Mais de um ano que era pra vir, né?. Chegou esse ano. E aí quando foi antes de eu viajar, chegou a antena.

MANIFESTACÕES CULTURAIS E RELIGIOSIDADE MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E RELIGIOSIDADE O conceito de remanescentes das comunidades de quilombo, à luz do Art.68º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, refere-se

aos indivíduos agrupados, em maior ou menor número, que pertençam ou pertenciam a comunidades, que, portanto, viveram, vivam ou pretendam ter vivido na condição de integrantes delas como repositório das suas tradições, cultura, língua e valores, historicamente relacionados ou culturalmente ligados ao fenômeno sócio-cultural quilombola.

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Esta definição se encaixa “como luva’ no quilombo urbano de Carrapatos da Tabatinga. Um grupo que, na origem, integrava um conjunto de matriz cultural específica, que se desloca e se reconstitui a partir de suas referências culturais, transmitindo valores que balizam sua identidade.

Em relação à religiosidade, integrada à cultura quilombola, D. Sebastiana afirma que:

Na comunidade já vai nascendo e já vai... a gente forma ele através da cultura. Então tem o Moçambique9, tem o centro espírita, porque nós somos umbandistas... (...) Aqui eu não sou mãe de santo não, eu sou Dandara, eu sou adoradora de santo e sou Dandara. A Dandara é a mãe de todos, tem que ouvir a todos... e procurar entender todo mundo, sem revolta, sem amargura e com muito amor. Porque eu tenho um povo a zelar. Eu não tenho uma família, eu tenho mil famílias ou mais.

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QUESTÃO FUNDIÁRIA QUESTÃO FUNDIÁRIA Sob o ponto de vista dos quilombolas, a questão fundamental que se coloca é a garantia do acesso à terra. A histórica concentração de terras no Brasil atinge diretamente essas comunidades, que possuem uma relação com a terra que transcende a mera questão produtiva. Assim como acontece em relação aos povos indígenas, a terra para os quilombolas é mais do que um bem econômico. Terra e identidade, para essas comunidades, estão intimamente relacionadas. A partir da terra, se constituem as relações sociais, econômicas, culturais, e são transmitidos bens materiais e imateriais10. A regularização fundiária das áreas remanescentes de quilombo é executada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/Ministério do Desenvolvimento Agrário), em parceria com os Institutos de Terras Estaduais, em diálogo com a Fundação Cultural Palmares e o Ministério Público. O caminho da titulação é complexo e demorado. Apesar de ter respaldo constitucional, ela enfrenta, na prática, nas disputas locais encontradas na dinâmica cartorial seus principais desafios. O que pode ser resumido em falas como: “Minha mãe comprou, foi comprado. Não tinha dono, mas sempre chega alguém...”. O reconhecimento da Fundação Palmares é muito importante para ampliar o diálogo com os governos locais. No entanto, a morosidade no processo de titulação, por vezes, acelera a ocupação do território por outros, como fica claro no fala de um dos entrevistados:

É. E isso demora demais. Se você viesse aqui antes, não teria essas casas... porque é muita comunidade... não tem nada e os anos vão passando. Se você chegasse aqui em 1984 não tinha nada disso aqui, era tudo casebre, todo mundo queria uma casa novinha. Veio tanta gente de fora. Veio gente de São Paulo, gente de tudo quanto era lugar da cidade.

O depoimento acima faz referência à construção de um conjunto de casas que ocupou parte do terreno reivindicado pelos quilombolas.

NOTAS Disponível em http://www.bomdespacho.mg.gov.br/sobre-a-cidade/ Fonte: Comissão Pró-Índio de São Paulo. 3 Disponível em http://www.cpisp.org.br/comunidades/ e, mais especificamente, sobre o Estado de Minas Gerais, em http://www.cpisp.org. br/comunidades/html/i_brasil_mg.html 4 Segundo notícia elaborada pela própria N’golo e por Frei Gilvander. 5 Fonte: CEDEFES.O CEDEFES é uma Organização Não-Governamental, sem fins lucrativos, filantrópica, de caráter científico, cultural e comunitário, de âmbito estadual, com sede e foro na cidade de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil – www.cedefes.org.br 6 Disponível em www.cedefes.org.br. 7 Ver texto de José Ribamar Bessa Freire, em anexo, que sobre fala sobre D. Fiota. 8 QUEIROZ, Sônia. Pé negro no barro branco. A língua dos negros da Tabaginha. Belo Horizinte: Editora UFMG, 1998. 9 Ver texto anexo, fala de D.Sebastiana sobre a origem do Moçambique. 10 Tal como é possível observar a partir do Programa Brasil Quilombola. 1 2

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ENTREVISTAS ENTREVISTAS Entrevistas realizadas por Itamar da Silva: Cleberson Luiz Epitônio de Oliveira D. Sebastiana Geralda Ribeiro Silva Sandra Maria da Silva Entrevista de Sandra Maria da Silva no Boletim Gênero, Raça e Etnia, Ed. 14, Novembro de 2010.

SITESSITES BOM DESPACHO – Cidade da Senhora do Sol www.senhoradosol.com.br Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva www.cedefes.org.br Comissão Pró-Índio de São Paulo www.cpisp.org.br Prefeitura de Bom Despacho/MG www.bomdespacho.mg.gov.br Programa Brasil Quilombola – Governo Federal http://www.seppir.gov.br/acoes/pbq

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Carrapato de Tabatinga - Itamar Silva

ANEXO 1 DONA FIOTA: A LETRA E A PALAVRA DONA FIOTA: A LETRA E A PALAVRA

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José Ribamar Bessa Freire

Dona Fiota. Ela é dona Fiota e pronto. Ninguém a conhece pelo nome de Maria Joaquina da Silva. Mas também quem é que chama Tiradentes de Joaquim José da Silva? Basta uma única conversa para perceber que dona Fiota é uma mulher poderosa, um personagem da história do nosso país. Tive o privilégio de ouvi-la em março de 2006, em Brasília, durante o seminário sobre as línguas faladas no Brasil, organizado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e pelo IPHAN. Com seu charme e sua inteligência, ela cativou a todos. Dona Fiota contou, naquele seminário, que seu pai era um baiano que vivia andando pelo mundo, no tempo do final da escravidão, que ele passou pelo centro-oeste de Minas Gerais, que foi passando e viu sua mãe no cativeiro trabalhando, fiando fio de algodão, que acenou para ela e perguntou se não arrumava uma ocupação para ele, que acabou conseguindo um serviço na roça de mandioca, que foi ficando e namorando, ficando e namorando, até que os dois se casaram, tiveram filhos, netos, bisnetos. Os descendentes do andarilho baiano com a ex-escrava se organizaram depois de abolida a escravidão: “Quando rebentou a liberdade, minha mãe saiu lá de Engenho do Ribeiro caçando um lugar. Chegou aqui. Tudo era mato. Na subida, havia um barro branquinho. Ai foi minha mãe que deu o nome de Tabatinga. Toda vida foi Tabatinga. Desde o tempo da escravidão. Só agora é que o nome mudou pra Ana Rosa. Quero tirar esse nome de Ana Rosa”. A história da comunidade Tabatinga – hoje uma área quilombola, situada no bairro Ana Rosa, periferia da cidade de Bom Despacho (MG) – foi contada por Dona Fiota aos participantes do seminário do IPHAN, mas teve de ser traduzida, porque ela falou, não em português, mas numa língua afro-brasileira, de origem banto, chamada Gira da Tabatinga, ainda hoje usada por um grupo de moradores. Foi a primeira vez que o plenário da Câmara Federal ouviu o som de uma língua minoritária de base africana, reconhecendo sua riqueza, sua função histórica e sua legitimidade.

A fala da senzala

A Gira da Tabatinga era falada nas antigas senzalas das fazendas do interior de Minas Gerais. Com ela, os escravos podiam se comunicar livremente sem o patrão entender o que diziam. A língua libertava. Dona Fiota conta: “A gente não podia falar o nome do trem. Tem assango? Não, não tem assango. Tem cambelera? Não, cambelera também não. Tem caxô? Nada de caxô. Então, minha mãe falava: ‘Catingueiro caxô. Caxô o quê? No Curimã’. Ela tava avisando que o patrão havia chegado”. Numa entrevista a Lúcio Emílio, Dona Fiota dá detalhes sobre a formação da Gira da Tabatinga, produto do sincretismo de várias línguas africanas misturadas ao português: “Aprendi essa língua com a minha mãe. Ela falava todo dia para mim até eu aprender. Isso traz toda uma história pra gente, tanto das partes alegres, como das tristes”. Recentemente, os moradores perceberam que aquela língua que os havia libertado, estava ameaçada de extinção, porque não é mais usada por crianças e jovens, diz dona Fiota: “Aqui no bairro é muito difícil quem fala a língua”. Foi aí que a comunidade decidiu fortalecer na sala de aula a língua denominada Gira da Tabatinga, 20


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aproveitando a lei sancionada em 2003 que torna obrigatório o ensino de História e Culturas afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio. Duas pesquisadoras – Celeuta Batista Alves e Tânia Maria T. Nakamura – acompanharam a luta pela revitalização da língua, que no passado foi um poderoso instrumento de resistência dos escravos e hoje é uma marca da identidade de seus falantes. A comunidade conseguiu a promessa de que a Secretaria Municipal de Educação remuneraria uma professora da Gíria da Tabatinga. A questão era: - quem daria aulas? Os moradores não duvidaram: - dona Fiota. Afinal, ela era o Aurélio, o Antônio Houaiss daquela língua quilombola. Acontece que após um mês de trabalho, quando foi receber, o funcionário lhe disse:- “Ah, a professora é a senhora? Então, não vou pagar. Como justifico o pagamento a uma professora que é analfabeta?”. Dona Fiota deu uma resposta de bate-pronto, que só os sábios podem dar: - Eu não tenho a letra. Eu tenho a palavra.

A dona da palavra

Com isso, derrubou a postura quase racista que discrimina os que vivem no mundo da oralidade. Ensinou que existe saber sem escrita; que na situação em que ela, dona Fiota, se encontra, não precisa da letra, porque usa a palavra para transmitir seus saberes, trocar experiências e desenvolver suas práticas sociais. Foi nessa língua de forte tradição oral que ela criou e educou seus filhos. É nela que hoje pensa, trabalha, narra, canta, reza, ama, sonha, sofre, chora, reclama, ri e se diverte. Dona Fiota deixou claro que não é carente de escrita, como dizem alguns letrados. Ela é independente da escrita. Cerca de um milhão e meio de brasileiros para quem o português não é a língua materna estão, hoje, na situação de dona Fiota. Falam uma das 210 línguas existentes dentro do território nacional, 190 das quais são línguas indígenas, ágrafas, sem tradição escrita, mas que são depositárias de sofisticados conhecimentos no campo das chamadas etnociências, da técnica e das manifestações artísticas. - Esses cidadãos não são menos brasileiros que os outros – defende o lingüista Gilvan Muller, que além dos direitos das minorias, chama a atenção para a diversidade cultural e lingüística, tão importante para o país e para a humanidade. Por isso, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), atendendo encaminhamento do então presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, Carlos Abicalil, organizou o seminário em 2006 para discutir como proteger essas línguas e o rico patrimônio intangível que elas representam. Desse seminário participaram técnicos, especialistas e falantes de diversas línguas, entre as quais o Guarani, o Nheengatu, a Língua de Sinais (Libras) e até uma variedade do alemão falada no sul do Brasil chamada Hunsrückisch. Na ocasião, foi criado um Grupo de Trabalho Interinstitucional, formado por cinco ministérios, uma ONG e uma entidade internacional, que produziu um relatório sobre como registrar essas línguas e proteger a diversidade lingüística do país. Agora o relatório vai ser discutido. Nessa próxima quinta-feira, 13 de dezembro, em Brasília, haverá uma Audiência Pública da Diversidade Lingüística do Brasil, organizada pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados e pelo IPHAN. Tomara que dona Fiota, a dona da palavra, esteja lá outra vez. Em caso afirmativo, voltarei a ouvi-la e conto tudo no próximo domingo12.

NOTAS Disponível em: http://www.senhoradosol.com.br/tabatinga.php#dfiota. O texto em questão é um importante registro que deve ser compartilhado, tendo sido feita aqui sua transcrição integral, conforme postado no referido site BOM DESPACHO – Cidade da Senhora do Sol. 12 Postado em 10/12/2007 ás 11h39. 11

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ANEXO 2 ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA ASSOCIACÃO QUILOMBOLA

Telefone de contato: (37) 3522-3324 Endereço: Rua Tabatinga, 520. Ana Rosa – Bom Despacho/MG

ANEXO 3 D.D.SEBASTIANA EXPLICA A ORIGEM DO MOCAMBIQUE SEBASTIANA EXPLICA A ORIGEM DO MOÇAMBIQUE Sebastiana: O Moçambique? Eu vou contar a história do tempo da escravidão. O Moçambique, ele veio através do sofrimento. Então tinha um fazendeiro, mas muito ruim, mas ruim... e sumiu uma marrua, a marrua mais cara que ele tinha, porque animal pra eles, dizem que valia mais do que o negro, né?, tinha mais valor do que o negro. E mandou o Juruna na mata e falou: você não volta aqui sem minha novia, ou eu vou te degolar, te levar pro tronco. Aí ele saiu tadinho... entra numa mata, sai noutra, entra numa mata, sai noutra. Andou três dias e três noites. Quando foi na última noite, ele falou: oh, meu Deus, eu vou ser morto mesmo, eu to com fome, sem comer, sem nada... eu vou voltar, mas eu vou morrer mesmo. Aí ele entrou na grota. Quando ele entrou na grota tinha água, aquela água clarinha. Aí ele abaixou pra beber água, porque ele estava com aquela fome, né? Quando ele olhou, ele viu aquele clarão tão bonito no meio das pedras. Ele olhou, coçou o olho, tornou a pegar a água, aquele clarão aumentou, tornou a pegar a água e olhou aquele clarão. Aí foi andando devagarzinho e... a Nossa Senhora do Rosário sentada lá na pedra com o rosário na mão. Aí ele: oh, meu Deus ele veio pra nos salvar. Quando ele olhou do outro lado, a vaca deitadinha do outro lado. Aí ele: oh, Graças a Deus. Aí ele voltou correndo, chegou lá: senhor, eu encontrei a vaca e encontrei a Nossa Senhora lá na gruta de pedra. Aí ele falou: é mentira. Aí ele: não é não senhor. Aí ele arrumou banda de música, arrumou aquele povo da corte e foi lá buscar a Nossa Senhora. Aí chegou lá, pegaram, fizeram uma capela muito bonita. Colocou ela lá no altar e a vaca veio acompanhando. Aí fechou tudo e quando amanheceu o dia, eles foram abrir a capela, cadê a santa? Aí pegaram os negros... ah, senhor, volta lá que ela voltou pro mesmo lugar. Aí eles foram olhar, estava lá no mesmo lugarzinho. Aí arrumou outra banda de música. Foi lá buscou ela, colocou lá na capela. Depois, os guardas tudo em volta da capela, tudo armado, né? Quando eles abrem a capela, cadê ela? Aí o Juruna chegou perto do senhor e falou: oh, senhor já foi todo mundo buscar ela. Deixa nós negros ir lá buscar ela. – Eu mandei banda de música, mandei soldado da corte e ela não quer ficar. Agora vocês negros vão buscar ela de pé no chão, é que ela vai vim? Ah, então vão vocês buscar... Aí ele chegou lá na senzala... aí a vovó Conga que estava sentada lá no chão, pai Joaquim do Congo, Pai João de Aruana, Pai Carrero, pai Joaquim Carrero, Pai Jacó. Aí chegou lá: oh, pai Carrero, vamos lá buscar nossa mãe. Ela quer nós. Já foi toda corte lá buscar ela, e ela não quer. Vamos lá buscar ela. Aí eles arranjaram um pedacinho de pau, e foi montando até virar uma coroa... (...) Aí arrumou umas latinhas no pé e subiram... aí cantaram: Moçambique lá nas matas ê; Ô Moçambique, lá nas matas ô; Nossa Senhora lá nas matas, numa gruta de pedra; Nossa Senhora lá nas matas, numa gruta de pedra; Mas os negros cantou pra ela, eu vim buscar a senhora... Aí ela vei flutuando. Eles vieram cantando, ela veio acompanhando... Aí os índios tudo peladão lá no meio do mato olhando aquilo. Aí os índios vieram quebrando o penacho de Moçambique e ela veio flutuando e os negros vieram cantando... veio cantando, chegou na igreja, pôs ela lá. Aí o senhor bateu o joelho no chão, aí libertou eles, mandou desmanchar, mandou quebrar a senzala, mandou cortar os troncos. Aí deu liberdade pra eles levantarem a bandeirinha deles e fazer a festa do Moçambique, todo ano na fazendo dele. Então foi pelo sofrimento, pela prova da fé, né?... e libertou o patrão também da maldição, né? porque ele era ruim demais. Aonde tem o Moçambique hoje, Moçambique da Nossa Senhora do Rosário... Entrevistador: Não... ela ficou de mostrar pra gente. Nós vimos uma parte do Moçambique chegando, quando a gente teve aquela audiência pública, lembra? Vocês estavam chegando com o Moçambique. S.: Então, eu tenho meu Moçambique, tenho muita história do meu Moçambique mesmo. Consegui a fome zero através do meu Moçambique, fui lá no Palácio do Governo, dentro do Palácio do Governo, graças a Deus. A gente está conseguindo as coisas através da fé. 22


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