Todas as Musas Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017)

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

TODAS AS MUSAS Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte

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TODAS AS MUSAS Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN-2179-1937

DOSSIÊ: Escritas do medo: horror e sobrenatural na literatura Michel Silva (org.), Fernanda Verdasca Botton (org.) e Flavio Felicio Botton (org.) Toda forma de arte é, em determinado momento, expressão de um homem e de uma sociedade. Se as artes confundem-se com a história e encadeiam-se com as nossas vidas, são também irmãs e merecem um espaço que não as discrimine. A revista nasceu com a intenção de ser um ponto de encontro para todos aqueles que queiram discutir as diferentes manifestações artísticas, seja a Literatura, o Teatro, a Pintura, a Escultura, o Cinema e a Música, além das relações que essas artes travam muitas vezes entre si e com a História. Todas as Musas é uma publicação semestral.

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Editores: Flavio Felicio Botton – Editora Todas as Musas Fernanda Verdasca Botton – Faculdade de Tecnologia de Diadema Conselho Editorial: Alfredo Oscar Salun - Universidade Nove de Julho António Manuel Ferreira - Universidade de Aveiro Arthur Correia de Freitas - Universidade Estadual do Paraná Carlos Francisco de Morais - Universidade Fed. do Triângulo Mineiro Cláudia Falluh Balduino Ferreira - Universidade de Brasília Claudio Umpierre Carlan - Universidade Federal de Alfenas Demétrio Alvez Paz - Universidade Federal da Fronteira Sul Enéias Farias Tavares - Universidade Federal de Santa Maria Fabricio Possebon - Universidade Federal da Paraíba Flavia Maria Ferraz Sampaio Corradin - Universidade de São Paulo Francisco Maciel Silveira - Universidade de São Paulo Graça Maria Pereira Teixeira (tut.) - Universidade Aberta de Portugal Ivair Junior Reinaldim - Universidade Federal do Rio de Janeiro Lílian Lopondo (em memória) – Universidade Presb. Mackenzie José Augusto Cardoso Bernardes - Universidade de Coimbra Marcos Júlio - Faculdade de Tecnologia de São Caetano Maria Adélia Menegazzo - Universidade Fed. de Mato Grosso do Sul Maria Aparecida Ribeiro - Universidade de Coimbra Maria Candida Ferreira de Almeida - Univesidad de Los Andes Raquel de Sousa Ribeiro – Universidade de São Paulo Renata Soares Junqueira - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Telma Aparecida Mafra - Faculdade de Tecnologia de Mauá

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Sumário Editorial ........................................................................................................ 9 Escritas do medo: horror e sobrenatural na literatura, Michel da Silva ........ 11 Dossiê Escritas do medo: horror e sobrenatural na literatura Shakespeare: a invenção do Gótico, Aparecido Donizete Rossi ................... 17 O lobo, o lobisomem e as meninas de capa vermelha, Taisi Viveiros da Rocha e Daniel Serravalle de Sá ............................................................................ 31 A representação do horror em Champavert, contes immoraux (1833), de Pétrus Borel, Fernanda Almeida Lima.......................................................... 43 Além da máscara: uma leitura de ―A máscara da morte vermelha‖, de Edgar Allan Poe, Maria da Consolação Soranço Buzelin ........................................ 53 Objetos insólitos e assombrados: da concretude prosaica à maldição, Marisa Martins Gama-Khalil ................................................................................... 61 La belle dame sans merci: a beleza e o horror em contos de Álvaro do Carvalhal, Carlos Francisco de Morais ........................................................ 73 O Lugar Discursivo do Vampiro na Literatura, Nilton Milanez e Jamille da Silva Santos ................................................................................................. 87 El monstruo y lo fantástico: Drácula, Oscar Martínez Agíss ....................... 101 O horror ameno: contos de Machado de Assis no Jornal das Famílias, Lainister de Oliveira Esteves ..................................................................... 111 Monstros Góticos nos Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa, Luciano Cabral ................................................................................................................. 121 Histérica e perigosa: a heroína do Gótico-Naturalismo, Marina Sena ........ 133 Volúpias da estesia: a prosa de ficção decadente de Raul de Polillo, Júlio França e Daniel Augusto P. Silva ................................................................ 143 Do casarão ao cemitério: o espaço e o horror em contos sertanistas de Monteiro Lobato, Bruno Silva de Oliveira .................................................. 155 A influência de Edgar Allan Poe na escrita de H.P. Lovecraft: o narrador lovecraftiano e o narrador de Poe, Daniel Iturvides Dutra ......................... 167 As minorias em evidência: o papel do outro no horror lovecraftiano, Bruno da Silva Soares............................................................................................... 177 O grotesco e a poesia de Vinicius de Moraes, Daniel Gil .......................... 187 7


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O martelo da feiticeira: a bruxa como signo de resistência em Anne Sexton, Caroline Estevam de Carvalho Pessoa; Isabela Christina do Nascimento Sousa e Sebastião Alves Teixeira Lopes.................................................... 209 Do terror à inquietação: o sobrenatural em dois contos de Lygia Fagundes Telles, Kelio Junior Santana Borges ............................................................ 219 Mal de criança: sobre Monster, de Naoki Urasawa, Alexandre Linck Vargas ................................................................................................................. 229 Artigos Fragmento do meio - leitura de um conto surrealista de Mário Saa, Marcelo Pacheco Soares ......................................................................................... 243 El Lado Oscuro de la Globalización, Gilbert Shang Ndi ............................ 261 Manuel bandeira: a poesia no beco, Jean Pierre Chauvin .......................... 275 A arte historicizada: um viés de leitura para a peça Lição de botânica, de Machado de Assis, Míriam Zafalon ............................................................ 285 Meia-noite em Paris: uma interpretação dos cartazes (brasileiro e europeu) do filme de Woody Allen, Dafne Di Sevo Rosa ........................................... 299 Resenhas Walter Benjamin: crítica, história e política, Fernando Aparecido Poiana .. 307 Revisitando o cancioneiro de Pero Mafaldo, Henrique Marques Samyn ..... 313

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Editorial A nova edição de Todas as Musas propôs um dossiê sobre os temas de horror nas artes e na literatura. Para a tarefa de organizar esse trabalho foi convidado o pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Catarinense e doutor em História pela UFSC, Michel Silva. O sucesso da empreitada foi tamanho que foi preciso dividir o resultado em dois volumes. O primeiro deles chega agora às mãos de nossos leitores. A partir de fevereiro de 2018, o segundo virá à luz. Como sempre fazemos, evitou-se a delimitação, deixando as escolhas para os estudiosos de cada assunto. Ninguém melhor que o especialista para escolher o rumo dos temas propostos. Para mais palavras sobre o tema do dossiê, o organizador abre o volume com um texto próprio para isso. Os artigos da seção aberta trazem grandes contribuições no estudo dos autores consagrados e outros que ainda têm muito a revelar. Mario Vargas Llosa e Manuel Bandeira com certeza integram a primeira categoria e Mário Saa e o teatro de Machado de Assis colocam-se na segunda acima descrita. Além disso, destacamos o artigo que trata dos cartazes de um conhecido filme de Woody Allen como um trabalho de diálogo que precisa sempre estar presente em nossa publicação. A seção de resenhas traz excelentes dicas de leitura para os pesquisadores, professores e interessados em literatura. Agradecemos imensamente ao doutor Michel Silva por gentilmente ter aceitado o nosso convite para a organização desse volume e, ainda mais, pelo belo resultado alcançado. Desejamos a todos uma boa leitura, lembrando que estamos abertos a sugestões, reclamações e debates pelo nosso endereço eletrônico.

Os Editores. 9


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Escritas do medo: horror e sobrenatural na literatura Michel Goulart da Silva1 Este dossiê reúne um conjunto de textos que apresentam, a partir de perspectivas bastante diversas, reflexões das mais variadas acerca do horror e do sobrenatural na literatura.2 A literatura de horror se baseia fundamentalmente na construção do medo, ou melhor, na narrativa de acontecimentos que provocam medo no leitor. O medo, ―inerente à nossa natureza, é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente à morte‖ (DELUMEAU, 1993, p. 19). Na construção das narrativas, o medo é ―uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação‖ (DELUMEAU, 1993, p. 23). O medo foi um tema bastante recorrente ao longo de toda a história da literatura, sendo utilizado na construção de narrativas das mais variadas. Nessas obras, o horror e o desconhecido, ou o estranho, mantêm sempre uma relação muito estreita, de modo que é difícil pintar um retrato convincente do esfacelamento das leis naturais ou da estranheza ou singularidade cósmica sem destacar a emoção do medo‖ (LOVECRAFT, 2009, p. 151).

Entendendo o horror em sentido amplo, pode-se identificar seus precursores em diferentes momentos históricos, como nas epopeias e nas tragédias clássicas gregas, bem como na obra medieval Divina Comédia, de Dante, considerado ―um pioneiro na captura clássica da atmosfera macabra‖ (LOVECRAFT, 2008, p. 23). Na obra de Willian Shakespeare o medo e o sobrenatural são elementos que aparecem em diferentes narrativas, sendo possivelmente os mais emblemáticos as bruxas em Macbeth e a aparição do fantasma do pai de Hamlet. Nesse sentido, também os contos de fadas, que proliferaram nos séculos XVII e XVIII, mantém relação com a produção de 1

Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC). Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua no Instituto Federal Catarinense (IFC). 2 Nesta breve apresentação, será feita a indicação bastante panorâmica de algumas obras e escritores associados ao horror, sem a pretensão de realizar uma história pronta e acabada desse gênero literário. 11


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horror, na medida em que ―traziam seres bizarros que representavam o mal que eram confrontados pelo herói antes de vencer no final‖, em tramas que envolviam ―magia, metamorfoses, encantamentos ou animais falantes‖ (MELO, 2011, p. 22). O medo e o sobrenatural deixam de ser apenas elementos narrativos eventuais e passam a ser o centro das obras somente no final do século XVIII, por meio de obras associadas ao gótico. Essas obras ―representaram uma volta ao passado feudal, provocada pela desilusão com os ideais racionalistas e pela tomada de consciência individual frente aos dilemas culturais que surgiram na Inglaterra a partir da metade final do século XVIII‖ (SÁ, 2010, p. 35). Nessa perspectiva, a obra gótica normalmente apontada como precursora do horror moderno é o romance O Castelo do Otranto (1764), de Horace Walpole. Nessa obra são apresentados elementos estéticos que viriam a ser utilizados em obras posteriores: Essa nova parafernália dramática consistia, antes de tudo, do castelo gótico com sua antiguidade espantosa, vastas distâncias e ramificações, alas desertas e arruinadas, corredores úmido, catacumbas ocultas insalubres e uma galáxia de fantasmas e lendas apavorantes como núcleo de suspense e pavor demoníaco (LOVECRAFT, 2008, p. 28).

Nessas obras também são delineadas as características de alguns dos principais personagens, podendo-se destacar, entre outros, o nobre tirânico e perverso como vilão; a heroína santa, muito perseguida e geralmente insípida que sofre os maiores terrores e serve de ponto de vista e foco das simpatias do leitor; o herói valoroso e sem mácula, sempre bemnascido, mas frequentemente em trajes humildes (LOVECRAFT, 2008, p. 28).

O romance gótico viria a ganhar uma rápida difusão, destacando nomes como Ann Radcliffe e Matthew Gregory Lewis. Em meio ao grande sucesso de público, ―o furor desencadeado pela ficção gótica ocasionou uma produção enorme, em sua maioria direcionada para a venda e com pouca preocupação pela inovação literária‖ (SÁ, 2010, p. 43-4). Posteriormente, essas produções, incorporando elementos mais complexos, como a influência do desenvolvimento da ciência ou a presença de monstros sobrenaturais, não demoraram a ganhar alguns dos seus mais conhecidos clássicos. Em 1818, Mary Shelley publicou o romance Frankenstein, uma obra que viria exercer enorme influência não apenas na literatura de horror, mas também na ficção científica. No ano seguinte, John Polidori pulicou o romance O Vampiro, considerado um ―divisor de águas na literatura de 12


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vampiros‖, na medida em que ―estabeleceu importantes elementos que foram aproveitados ou modificados em subsequentes criações artísticas‖, como o fato de o vampiro não atacar ―simplesmente visando o sangue, pois há a presença de um elemento erótico entre ele e sua vítima e os elementos eróticos ou libertinos ganham mais destaque na narrativa do que a necessidade de sangue‖ (SILVA, 2012, p. 26). Nos Estados Unidos não demora a surgir nomes influenciados pelo gótico europeu, dos quais se destaca Edgar Allan Poe. O poeta e contista estadunidense trabalhou um conjunto de temas que viriam a ser comuns na literatura posterior de terror, como a loucura, e definiu muitas das características estéticas da literatura de horror, como o suspense (SILVA, 2011, p. 147-154). Essas expressões literárias influenciaram as primeiras manifestações do gótico no Brasil. Essa influência é percebida na obra de Álvares Azevedo, como em Noite na taverna, onde, entre outros aspectos, se pode ver ―relatos de ações violentas e imorais, românticas em suas dimensões trágicas, envolvendo adultério e crimes passionais, incesto e canibalismo" (CAUSO, 2003, p. 104). Embora a obra não apresenta elementos sobrenaturais suficientes para projetá-la do alcance do horror, ―seus componentes essenciais e suas propostas de efeito estão ali embrionárias, como em outros textos românticos de tendência semelhante" (CAUSO, 2003, p. 106). Essa influência do gótico também pode ser encontrada em algumas obras de José Alencar, como O guarani, se ela for abordada ―enfocando o que há de sublime e dominicano na obra, salientando seus aspectos violentos e sexuais em detrimento da leitura que lhe destaca o traço épico e indianista" (SÁ, 2010, p. 135). O romantismo na literatura europeia aos poucos foi perdendo espaço para o realismo e, posteriormente, para o naturalismo. Com isso, ainda que parte das principais obras do período em certa medida não tenham se valido do sobrenatural, não se deixou de lado o medo na literatura. Associadas especialmente ao naturalismo, foram produzidas algumas obras que colocavam em cena a crueldade manifesta pelos seres humanos, tendo no própria homem uma manifestação de monstro. Uma das obras mais lembradas desse período é A besta humana (1890), e Emile Zola. No Brasil, também se produziram obras que parecem ter influência dessa corrente, como alguns textos de Medeiros de Albuquerque. No final do século XIX que se se encontram alguns dos maiores clássicos europeus da literatura de terror. Em 1872, o escritor irlandês Joseph Sheridan Le Fanu deu vida a Carmilla, uma vampira lésbica, que personificava alguns dos maiores medos das famílias burguesas e 13


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aristocráticas do período. Nessa obra, ―o ataque de Carmilla a meninas e moças pode ser interpretado como um ataque direto ao futuro da comunidade no sentido de que ao matar pessoas do sexo feminino a vampira priva esse grupo social daquelas responsáveis pela geração de novos membros‖ (SILVA, 2010, p. 26). Contudo, o vampiro ganharia sua personificação definitiva com a obra Drácula (1897), de Bram Stoker, com o qual ―toda a produção vampírica do século passado e deste início de século ainda dialoga‖ (SILVA, 2012, p. 31). Drácula colocava em cena uma criatura sobrenatural que atacava as estruturas e o futuro das famílias tradicionais, ou seja, com o passar do tempo e o gradual predomínio da ideologia patriarcal em detrimento de culturas onde a mulher exercia papel central, o mito do vampiro passou a ficar mais associado à transgressão das normas sociais (fundamentadas em um pensamento cristão e, por conseguinte, masculino). Suicidas, vítimas de morte brutal, filhos bastardos ou pessoas excomungadas eram candidatos a se tornarem vampiros (Silva, 2010, p. 25).

Contemporâneas aos dois grandes clássicos vampíricos, são as obras O Médico e o Monstro (1886), do escritor escocês Robert Louis Stevenson, e O retrato de Dorian Gray (1890), do irlandês Oscar Wilde. No primeiro, um experimento científico faz com que o médico se transforme em um perigoso monstro. No segundo, um belo jovem troca sua alma pela possibilidade de não envelhecer. Durante todo o século o horror e o sobrenatural aparecem em numerosas obras literárias. Possivelmente um de seus maiores nomes é H. P. Lovecraft, que construiu uma mitologia própria de monstros, tendo escrito suas principais obras nas décadas de 1920 e 1930. Nas últimas três décadas do século XX, alguns escritores do gênero se tornarem best sellers, com destaque para o estadunidense Stephen King. Outro nome que se tornou bastante notável foi o inglês Clive Barker. Outros nomes também se destacaram nessas últimas décadas, como Peter Straub e William Peter Blatty. Segundo Causo (2003, p. 101), nessas últimas décadas, ―o horror se voltou para o cotidiano, disposto a assumir a função de um espaço metafórico para os horrores mais reais que caminhavam em nossa rua‖. Em função disso, uma das formas mais modernas do horror é a dark fantasy. São narrativas que partem de um cotidiano contemporâneo, onde à primeira vista nada ocorre fora do normal. Paulatinamente um elemento fantástico - mágico, sobrenatural ou até mesmo pertencente aos temas da ficção científica - se intromete e vai construindo uma atmosfera de horror (CAUSO, 2003, p. 101). 14


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Por este panorama pode-se verificar a vitalidade do gênero, hoje popularizado e difundido, construindo características e particularidade artísticas e estéticas. Por outro lado, o entrelaçamento com o cinema, que se dedicou a fazer numerosas adaptações das obras de maior sucesso, em grande medida ajudou a fortalecer o gênero. Pode-se afirmar que ―o horror tornou-se um artigo básico em meio às formas artísticas contemporâneas, populares ou não, gerando quantidade de vampiros, duendes, diabretes, zumbis, lobisomens, crianças possuídas pelo demônio, monstros especiais de todos os tamanhos, fantasmas e outros‖ (CARROLL, 1999, p. 13). Contudo, persiste certa compreensão de que se trata de um gênero menor, como a literatura policial ou erótica, ainda que alguns escritores considerados canônicos tenham escrito obras do gênero e, inclusive, seja recorrente a citação de obras de horror em listas de obras literárias clássicas. Os textos reunidos no presente dossiê mostram, por um lado, a complexidade histórica da literatura de horror, esboçada nesta apresentação, discutindo desde cânones como Shakespeare até produções do século XX, incluindo não apenas contos e romances, mas também manifestações do gênero na produção de histórias em quadrinhos. Por outro lado, ao tomar essas obras como objeto para o debate acadêmico, os textos mostram a complexidade dessas produções, seja por seus elementos estéticos, seja por encará-la como representação de momentos socioculturais específicos. Bibliografia CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Papirus, 1999. CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, horror e fantasia no Brasil (1875-1950). Belo Horizonte: UFMG, 2003. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2008. LOVECRAFT, Howard Phillips. Notas sobre a escrita de contos fantásticos. In: ______. O chamado de Cthulhu e outros contos. São Paulo: Hedra, 2009. MELO, Marcelo Marques. Autópsia do horror: a personagem de terror no Brasil. São Paulo: LCTE, 2011. SÁ, Daniel Serravalle de. Gótico tropical: o sublime e o demoníaco em O guarani. Salvador: UFBA, 2010. SILVA, Alexander Meireles da. Introdução. In: LE FANU, Sheridan. Carmilla: a 15


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vampira de Karnstein. São Paulo: Hedra, 2010. SILVA, Alexander Meireles da. Introdução. In: Contos clássicos de vampiros. São Paulo: Hedra, 2012. SILVA, Michel Goulart da. Edgar Allan Poe e a Modernidade. Revista Espaço Acadêmico, Vol. Nº10, Nº 118, p. 147-154, 2011.

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Shakespeare: a invenção do Gótico Shakespeare: The Invention of the Gothic Aparecido Donizete Rossi3 Resumo: Em um dos prefácios de O castelo de Otranto (The Castle of Otranto, 1764), primeiro romance gótico e primeira obra da ficção gótica, o autor Horace Walpole afirma que ―o grande mestre da natureza, Shakespeare, foi o modelo que copiei‖. A menção direta a Shakespeare na obra que funda a ficção de terror e horror ao articular medo e sobrenatural maligno em uma arquitetura artística convida, de pronto, em razão de seu peculiar gesto ilocutório-iterativo, a buscar a interação entre duas perspectivas: quais as (im)possíveis razões que levaram Walpole a imputar a Shakespeare (autor e obra) o modelo-chave do gênero-modo ficcional inventado em O castelo de Otranto? E quais seriam as (im)possíveis relações entre o gótico e a obra do Bardo? Perseguir as conjunções, disjunções e injunções entre esses dois ângulos, por meio de uma breve análise da história crítica da peça Tito Andrônico, constitui o objetivo do artigo que aqui se propõe. Palavras-chave: Shakespeare. Gótico. Terror. Tito Andrônico. Abstract: In one of the prefaces to The Castle of Otranto (1764), the first Gothic novel and the first work of Gothic fiction, author Horace Walpole states that ―That great master of nature, Shakespeare, was the model I copied‖. The direct mention to Shakespeare in the work that lays the foundations of the fiction of terror and horror in articulating fear and the evil supernatural in an artistic architecture promptly invites, because its peculiar illocutionary-iterative gesture, to look for the interaction between two perspectives: what (im)possible reasons led Walpole to impute to Shakespeare (author and oeuvre) the key-model of the fictional genre-mode invented in The Castle of Otranto? and what would be the (im)possible relations between the Gothic and the works of the Bard? Follow the conjunctions, disjunctions, and injunctions of these two angles, by the means of a short analysis of the critical history of the play Titus Andronicus, is the objective of this paper. Keywords: Shakespeare. Gothic. Terror. Titus Andronicus. cada novo aspecto de Shakespeare será tão verdadeiro quanto qualquer um outro. Anthony Burgess (2002, p.89).

1. Shakespeare e o Gótico No segundo prefácio a O castelo de Otranto (The Castle of Otranto, 1764), primeiro romance gótico e obra fundadora do que atualmente se entende por ficção de terror, ficção de horror ou ficção gótica, o autor, Horace Walpole, afirma, com uma serenidade que beira o teatral, que ―o grande 3

Doutor em Estudos Literários pela UNESP – Araraquara. É professor de literatura inglesa na UNESP – Araraquara, onde também atua no Programa de Pós-graduação em Estudos Literários como professor efetivo, pesquisador e orientador. É líder do grupo de pesquisas (CNPq/UNESP) Vertentes do Fantástico na Literatura e membro do grupo de pesquisas (CNPq/UERJ) Estudos do Gótico. 17


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mestre da natureza, Shakespeare, foi o modelo que copiei‖ (WALPOLE, 1996, p.21). Nesse prefácio, Walpole discute teórica e criticamente os pressupostos literários, artísticos e filosóficos que o levaram a escrever sua obra. Em meio a reflexões sobre as escolhas na composição de caracteres, o autor invoca Shakespeare como ―uma autoridade mais alta do que a minha‖ (ibid.) na articulação entre personagens mais simples (secundárias) e personagens mais sublimes (principais) para a composição dos efeitos de suspense e patético: Deixei-me perguntar se suas [Shakespeare] tragédias de Hamlet e Júlio Cesar não perderiam uma porção considerável de seu espírito e de suas maravilhosas belezas, se o humor dos coveiros, as parvoíces de Polônio e as pilhérias desajeitadas dos cidadãos romanos fossem omitidas ou então travestidas de tons heroicos. Não são a eloquência de Antônio e a ainda mais nobre e comovedoramente simples oração de Bruto estrategicamente exaltadas pelas bruscas expansões de natureza que brotam da boca de seus ouvintes? (ibid.).

Shakespeare é a influência declarada de Walpole na elaboração da técnica narrativa de O Castelo de Otranto, em cuja textualidade se verifica um jogo de múltiplas significações entre o sublime burkeano e o tragicômico, a natureza como mundo e como ontologia, jogo esse pautado por excessos e transgressões, induzidos ou indutores de uma atmosfera de medo, que visam impressionar os leitores/espectadores por meio dos efeitos de terror e horror, de passados mal resolvidos e futuros esquecidos que retornam em presentes líquidos, de repressões e recalques que afloram inesperadamente, da manifestação ou da mera ameaça da monstruosidade e irracionalidade congênitas à condição humana, envolvendo-os em uma teia de sentidos e sensações que têm por objetivo proporcionar experiênciaslimite emocionais-racionais e tomada de consciência existencial e sóciopolítica. Gothic signifies a writing of excess. It appears in the awful obscurity that haunted eighteenth-century rationality and morality. […] Gothic atmospheres — gloomy and mysterious — have repeatedly signalled the disturbing return of pasts upon presents and evoked emotions of terror and laughter. […]. Not only a way of producing excessive emotion, a celebration of transgression for its own sake, Gothic terrors activate a sense of the unknown and project an uncontrollable and overwhelming power which threatens not only the loss of sanity, honour, property or social standing but the very order which supports and is regulated by the coherence of those terms (BOTTING, 1996, p.1 e 7).

Se, por um lado, ao instigar o autor da primeira obra gótica na estruturação de sua narrativa, Shakespeare estabeleceu e disseminou sua 18


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influência, consciente ou inconsciente, sobre toda a ficção de terror e horror, visto que O castelo de Otranto é a chave-mestra, a raiz de onde ramificam e proliferam as manifestações do Gótico, na forma e no conteúdo, e um olhar atento sobre os desenvolvimentos históricos e artísticos dessa estética desde o século XVIII até a atualidade se deparará, como espectralidade e de algum modo pouco ortodoxo, com o legado do Bardo de Stratford — mas esse legado não é e nunca deve ser confundido com uma ideia de Origem — ; por outro, a obra de Shakespeare, anterior ao Gótico, a ele se vincula ao constituir sua pré-história, sua fonte nomeada de contaminação e disseminação, sua sombra, o unheimlich que o caracteriza, a causa da angústia da influência ou da inspiração mais tênue de seus autores, a razão de seu sucesso, de suas sobrevidas, de sua originalidade em permanente renovação e reinvenção. Shakespeare, como Dante, Virgílio e Homero, é o passado do Gótico — e possivelmente o futuro também —, seu reprimido que a todo momento retorna. ―Articulating different, popular and often marginalised forms of writing in periods and genres privileged as Romanticism, Realism and Modernism, Gothic writing emerges as the thread that defines […] literature. […] Gothic can perhaps be called the only true literary tradition. Or its stain‖ (BOTTING, 1996, p.16). Algo semelhante já foi escrito sobre Shakespeare. Cinquenta anos antes de Harold Bloom transformar o legado shakespeariano em bardolatria, um complexo obscuro, idiossincrático, miticamente inatingível e de propriedade particular, Edmund Wilson, um crítico literário à moda antiga e surpreendentemente simpático às manifestações literárias e artísticas góticas4, fez as seguintes considerações sobre o dramaturgo: I dare say that no other national poet presents quite the same problem as Shakespeare to the academic critics who study him. Goethe and Dante were great writers by vocation: they were responsible and always serious; they were conscious of everything they did, and everything they did was done with intention; they were great students and scholars themselves, and so always had something in common with the professional scholars who were to work over them. And this was hardly less true of Pushkin. But Shakespeare was not a scholar or self-consciously a spokesman for his age as Dante and Goethe were; he was not even an ―intellectual.‖ He was what the sports-writers call a ―natural,‖ and his career was the career of a playwright who had to appeal to the popular taste. He began by feeding the market with potboilers and patching up other people‘s play, and he returned to these trades at the end. In the 4

Veja-se o ensaio ―A Treatise on Tales of Horror‖ (1944), no qual Wilson analisa o revival dos contos de terror nas décadas de 1930 e 1940, além de fazer inferências e sugestões ainda pertinentes e atuais para se pensar a ficção gótica, especialmente do século XX. 19


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 meantime, he had followed his personal bent by producing some extraordinary tragedies which seem to have got rather beyond the range of the Elizabethan theater and by allowing even his potboiling comedies to turn sour to such a degree as apparently to become unpalatable to his public. But he displayed all along toward his craft a rather superior and cavalier attitude which at moments even verged on the cynical—a kind of attitude which a Dante, or a Dostoevsky, could hardly have understood. He retires as a serious artist—in Cymbeline and The Winter‘s Tale—before he has stopped writing and says farewell to his audience, in The Tempest, through a delightful and rather thoughtful masque (WILSON, 2007, p.601).

É o popular e o marginalizado que aproximam Shakespeare e o Gótico de modo inexorável. A proposital e cínica falta de ―intelectualidade‖ e de ―vocação‖ por parte de Shakespeare é o que consolidou seu grande apelo junto ao gosto popular de todas as épocas. Isso gerou um efeito colateral, qual seja o de colocar sua obra sob suspeita da academia por quase duzentos anos, até que Samuel Johnson, arguto crítico da crítica, a resgatasse do limbo do esquecimento e restabelecesse sua crucial importância em ―Preface to Shakespeare‖ (1765), texto que veio a público, curiosamente, um ano depois de O castelo de Otranto. Ainda assim, o fato das obras do Bardo, em particular as tragédias, manterem o apelo popular nos séculos XX e XXI permanece motivo de embaraço para a academia, sempre hostil e pernóstica a tudo que seja pop — e Shakespeare é pop, ou seja, midiaticamente popular entre as assim denominadas massas. Talvez porque a academia tenha, intencionalmente, se esquecido das palavras de um outro escritor — e são os(as) escritores(as) e artistas, além do público, quem, tradicionalmente, melhor compreendem Shakespeare e seu legado —, Anthony Burgess, que, em finais dos anos 1950, formulou considerações sobre o Bardo até hoje perturbadoras àqueles que insistem em intelectualizá-lo e canonizá-lo. É possível que o principal objetivo de Shakespeare na vida fosse receber o grau de cavalheiro e não ser um artista, que suas peças fossem meios para um fim. Shakespeare queria ter propriedades — terras e casas —, e isso quer dizer ganhar dinheiro. Escrever peças era basicamente um meio de ganhar dinheiro. O teatro era um meio tão bom de ganhar dinheiro como qualquer outro, se a pessoa tivesse recebido boa educação e um certo talento verbal. Shakespeare era esse homem. Seu olho nunca esteve na posteridade [...]; estava voltado para o presente. [...] Shakespeare parecia ter pouco interesse em deixar uma versão exata de sua obra para o futuro desconhecido. Shakespeare também não parecia pensar em suas peças como literatura: não se interessava pelo leitor, mas pela plateia no teatro. [...]. Shakespeare é cinematográfico [...]. [...]. 20


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte Shakespeare mostra-se sempre muito consciente em relação à sua plateia elisabetana, uma mistura de aristocratas, letrados, almofadinhas, gatunos, marinheiros e soldados de licença, estudantes e aprendizes, que se assemelha muito mais à moderna plateia de cinema do que moderna plateia de teatro. Ele tenta estabelecer uma intimidade com essa plateia, envolvê-la na peça, e seus solilóquios não são falas em que o ator finge estar se dirigindo a si mesmo, mas comunicações íntimas com a plateia. [...]. Essa plateia tinha de receber o que queria e, sendo uma mistura, queria coisas variadas — ação e sangue para os iletrados, belas frases e engenho para os almofadinhas, humor sutil para os refinados, palhaçada escandalosa para os não-refinados, assuntos amorosos para as damas, canção e dança para todos. Shakespeare dá todas essas coisas; nenhum outro dramaturgo jamais conseguiu dar tanto (BURGESS, 2002, p.90-92).

Já o Gótico, se constitui como uma afronta às altas literaturas e artes ditas elevadas, aos cânones, a um entendimento estreito e engessado do realista e do poético, ranço do Iluminismo e do Positivismo ainda hoje reinantes no mundo acadêmico. Denúncia das ilusões formal-conteudísticas da razão e do conhecimento científico, é o Gótico, em sua certidão de nascimento, que vilipendia as convenções do nascente gênero romance ao agregar-lhe o que, atualmente, é aclamado como uma das suas principais características: o hibridismo. Afirma Walpole, ainda no segundo prefácio a O castelo de Otranto, que sua obra máxima é uma ―tentativa de mesclar duas formas de romances, a antiga e a moderna‖ (WALPOLE, 1996, p.19), o emergente romance, no entendimento moderno do termo, e o romance de cavalaria, então em ocaso. Walpole é bem-sucedido em sua tentativa, pois O castelo de Otranto, uma das obras mais populares das literaturas em língua inglesa, é um romance que se utiliza da técnica realista para narrar um enredo ditado pela manifestação do sobrenatural. Além disso, como Shakespeare, a obra é cinematográfica, e mistura, em sua temática, religião, incesto, paixão, divórcio, usurpação, terror e horror. Ambos, Shakespeare e o Gótico, são rebeldes que não se deixam submeter aos gostos e caprichos sensaborões da academia. São livres das convenções por desde sempre prezarem — e por isso terem se tornado —, sem preconceitos, a convenção, o clichê, a metáfora desgastada. São protocolos ficcionais por nunca se deixarem contaminar pela falácia de quaisquer protocolos. É por isso que continuam vivos passados, respectivamente, quatrocentos e cinquenta e duzentos e cinquenta anos de seus virem a ser. Permanecem por demais produtivos em todos os âmbitos das artes e da cultura, e crises estéticas, metafísicas, sócio-políticas, históricas, econômicas, vanguardistas, modernistas, pós-modernistas, estruturalistas, pós-estruturalistas, de gênero e éticas em nada os afetaram. 21


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Ao contrário, só os fortaleceram ainda mais como indecidíveis tradições anti-tradicionais, cânones contracanônicos, questões de vida e de morte que fazem oscilar a própria liminaridade, Textos — como diria Barthes (2004) — por oposição à ideia newtoniana, dogmática, iluminista-positivista e estruturalista de obra. Mas, afinal, em que momento, onde e como Shakespeare inventou o Gótico? E em que medida o Gótico (re)inventou e mantém Shakespeare mortalmente vivo? As duas perguntas confluem para as mesmas possibilidades de respostas. Pode-se, se assim se desejar, fazer coro a Walpole no segundo prefácio de O castelo de Otranto e se tomar Hamlet e Júlio César como respostas, o que de pronto gera a confortável — e falsa — impressão de que estão resolvidas as problemáticas suscitadas pelas duas questões; ou pode-se aceitar o convite à rebeldia e à insubmissão enviado tanto por Shakespeare (via Gótico) quanto pelo Gótico (via Shakespeare) e se tentar trilhar um caminho talvez menos previsível, pouco seguro, e certamente perigoso — o caminho Gótico por excelência. Nesse último caso, uma dentre as várias respostas possíveis às interrogações levantadas poderia ser arquitetada a partir de breves considerações sobre uma peça que causa perplexidade ao mundo acadêmico há pelo menos trezentos anos: Tito Andrônico. 2. Tito Andrônico: a ascensão do Gótico Desde o século XVII, com a declaração colérica do dramaturgo Edward Ravenscroft de que "'tis the most incorrect and indigested piece in all his Works; It seems rather a heap of Rubbish then a Structure" (2005, p.IV), e principalmente a partir do século XVIII, quando o mesmo Samuel Johnson que resgatou o mérito artístico das obras do Bardo sentenciou ―That Shakespeare wrote any part [...], I see no reason for believing‖ (1908, p.166, grifo do autor), passando pelo século XIX, em que o influente poeta e crítico Samuel Taylor Coleridge, em suas palestras sobre Shakespeare, afirmou, concordando com Johnson, que ―The metre is an argument against Titus Andronicus being Shakspeare‘s [sic]‖ (1907, p.88), Tito Andrônico (Titus Andronicus, c.1588-1593) vem mantendo o posto de mais controversa e polêmica das obras shakespearianas. A opinião atualmente predominante, sustentada pelos vereditos derrogatórios do próprio Johnson (1765) — ―the barbarity of the spectacles, and the general massacre which are here exhibited, can scarcely be conceived tolerable to any audience‖ (1908, p.166) —, de Schlegel (1811) — ―framed according to a false idea of the tragic, which by an accumulation of cruelties and enormities, degenerated into the horrible and yet leaves no deep impression behind‖ (1965, p.442) —, 22


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T. S. Eliot (1927) — ―one of the stupidest and most uninspired plays ever written, a play in which it is incredible that Shakespeare had any hand at all, a play in which the best passages would be too highly honoured by the signature of Peele‖ (1950, p.67) —, John Dover Wilson (1948) — ―seems to jolt and bump along like some broken-down cart, laden with bleeding corpses from an Elizabethan scaffold, and driven by an executioner from Bedlam dressed in cap and bells‖ (1948, p.XII) — e Harold Bloom (1998) — ―atrocidade poética‖, ―uma grande asneira‖, ―Para os que têm tendências sadomasoquistas‖ (2000, p.115), ―A despeito da força escabrosa que emana do texto, não reconheço em Tito Andrônico qualquer valor intrínseco. A importância da peça advém apenas [do fato] de ter sido, infelizmente, escrita por Shakespeare‖ (2000, p.123) —, é a de que provavelmente não foi escrita por Shakespeare, ainda que conste do First Folio (1623), a primeira edição de suas obras, mas pelo contemporâneo e colaborador George Peele, e que se trata de uma peça menor, passível de indulgência por ser de início de carreira, mas inteiramente desconsiderável, mesmo repugnante, se comparada ao que a academia optou por ler em Macbeth, Othelo ou Hamlet. Fora do mundo anglófono, a apreciação crítica usual sobre Tito Andrônico não é diferente. Por exemplo, no prefácio que escreveu à sua tradução da peça ao português, o respeitado tradutor Carlos Alberto Nunes, que transpôs ao vernáculo o que a academia brasileira, em coro com Harold Bloom, reconhece como os inquestionáveis alicerces do cânone ocidental — Homero, Platão, Virgílio e Shakespeare —, diz o seguinte: Porque muitos poetas, em suas obras de estreia, se comprazem na descrição de cenas de horror [...] [,] quiseram alguns comentadores, principalmente alemães, ver em Tito Andrônico mais uma prova de que os poetas, em sua mocidade, passam necessariamente pela fase denominada Sturm und Drang, de exagero e mau gosto literário. Mas, ainda assim, fala contra essa generalização a própria data geralmente aceita como sendo a da composição da peça. Seria um retrocesso inconcebível, na evolução artística do poeta, escrever ele uma tragédia sanguinária deste tipo, depois de haver escrito a trilogia de Henrique VI e, mais do que isso, as primeiras comédias de feitura tão leve: A Comédia dos Erros, Os Dois Cavalheiros de Verona. A peça Tito Andrônico mareja sangue por todas as páginas, cheira a sangue, quase que nos suja de sangue, causando-nos muitas passagens verdadeira repugnância (1971, p.148).

Uma rápida passada d‘olhos nos vereditos que fundamentam a corrente proscrição da peça resultará em uma interessante lista de impressões: indigesta, incorreta, lixo, barbárie, massacre generalizado, acumulação de 23


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crueldades, degenerada, horrível, estúpida, não-inspirada, atrocidade poética, grande asneira, sadomasoquista, de mau gosto, sanguinária, retrocesso, repugnante. O conjunto de sentidos delineado por esses adjetivos opõe-se frontalmente ao que a tradição cristalizou, entre os públicos acadêmico e não-acadêmico, em torno do conjunto da obra do Bardo. Os contos da coletânea Os livros de sangue (Books of Blood, 1984-1985), de Clive Barker, ou os filmes da franquia Jogos mortais (Saw, 2004-?) suscitam tais opiniões, não uma peça de Shakespeare, o poeta e dramaturgo que ―inventou o humano, o que hoje entendemos por humano‖ (BLOOM, 2000, p.20). Entretanto, Tito Andrônico está aí, sanguinária, horrível, um deleite para o público; desagradável, incômoda, um problema para a academia. Seu enredo inicia com o filho mais velho de Tamora, rainha dos godos vencida em batalha pela personagem-título e trazida à Roma como prisioneira junto de sua prole e servos, sendo trucidado para ―acalmar as sombras que partiram‖ (SHAKESPEARE, 1971, p.156): Lúcio – Levai-o logo [o primogênito de Tamora, Alarbo] e acendei presto a chama. Após, com nossos gládios, na fogueira os membros lhe cortemos, atém serem consumidos de todo. [...]. (Voltam Lúcio, Quinto, Márcio e Múcio com as espadas ensanguentadas.) Lúcio – Vede, pai e senhor, como cumprimos os costumes romanos. Decepamos de Alarbo os membros todos; as entranhas dele as sagradas chamas alimentam (SHAKESPEARE, 1971, p.156-157).

A partir dessa primeira cena, as seguintes vão progressivamente se configurando em quadros de carnificina e degeneração até se tornarem explícitas no palco e não mais apenas sugeridas pelo uso da técnica dos bastidores. Já na didascália da cena IV do segundo ato lê-se ―Entram Demétrio e Quirão [os outros filhos de Tamora], conduzindo Lavínia [a filha de Tito], violada, com as mãos e a língua decepadas‖ (SHAKESPEARE, 1971, p.190). No início do terceiro ato ocorre a cena que levou vários expectadores ao hospital na montagem dirigida por Peter Brook em 1955 (PETER BROOK‘S..., 1955), que tinha Laurence Olivier interpretando o papel-título: Tito tem sua mão decepada, no palco, por imposição do imperador (SHAKESPEARE, 1971, p.198-200). Na cena I do quinto ato, Aarão, a mais sádica das personagens concebidas pela pena sangrenta de Shakespeare, ao listar a variedade de atrocidades que cometera por puro prazer, afirma que ―Muitas vezes desenterrei dos túmulos os mortos, colocando-os de pé, junto das portas dos amigos queridos, justamente quando a dor já se achava quase extinta, na pele dos cadáveres gravando com minha faca [...]: ‗Não deixeis que a dor se extinga, conquanto eu já morresse‘‖ (SHAKESPEARE, 24


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1971, p.235), o que nada deixa a desejar — e certamente inspirou — a The Walking Dead (2003-?). Por fim, a famosa cena do banquete canibal — claramente baseada na cena macabra do Tiestes (I d.C.), de Sêneca, ainda que T. S. Eliot, furioso e categórico, indiscretamente equivocado, declare que ―There is nothing like this in Seneca‖ (1950, p.67); e sem dúvida uma paródia sardônica ao Banquete (III a.C.), de Platão —, na qual Tito, para vingar-se das afrontas que recebera de Tamora e da realeza depois que a primeira, em um coup démoniaque, se tornara imperatriz de Roma, mata os outros dois filhos da rainha dos godos, prepara com eles uma iguaria e os serve de comida à própria mãe e ao imperador: Tito – [...]. Apara o sangue, e, após terem morrido, a poeira lhes reduzo os ossos todos, porque a misture neste odioso líquido e as vis cabeças coza nessa pasta. Vamos! Vamos! Que todos se azafamem no aprestar o banquete, pois pretendo mais sinistro deixá-lo e sanguinário que o festim dos Centauros. Carregai-os... Assim... Assim... Vou ser o cozinheiro, para arranjar as coisas de maneira que, ao vir a mãe, eles estejam prontos. [...]. Ora, ora! Ambos [os filhos de Tamora] estão naquela torta com que a mãe deles tem-se regalado, comendo, assim, a própria carne que ela mesma engendrou (SHAKESPEARE, 1971, p.243-244 e 246).

É assustador, apavorante, obsceno, um insulto a mera possibilidade de que o humano inventado por Shakespeare, em quaisquer de suas peças e não só na em questão, não seja o belo, profundo, sensível, filosófico e arguto da versão romantizada que a academia idealizou — e que nada tem de Shakespeare —, mas sim um emaranhado de perversões hediondas travestido com a estulta e ardilosa máscara do Logos. Tito Andrônico mostra exatamente isso: um conjunto pouco afeito à organização e à História de eventos pavorosos, violência gratuita e barbárie degenerada que, sem nenhum decoro, respeito ou moralidade, ―deixa à mostra a essência humana como irracionalidade congênita‖ (CHAUI, 1987, p. 44) ao leitor/expectador, obrigando-o a encarar uma versão de si desprovida das ilusões patéticas de fama, grandeza, ordem, progresso ou racionalidade e a olhar para o seu pérfido retrato, no qual se delineia a aviltante ―quintessência do pó‖ (SHAKESPEARE, 1976, p.87). Ainda assim, a imagem pintada, a impressão geral que se assenta no imaginário do leitor/expectador, seja por meio do texto, seja por meio da encenação, é bela em suas tintas horríveis, hipnotizante e assustadora, encantadora e hedionda em sua indecidibilidade, e mesmo o faccioso e possessivo Harold Bloom, com sua opinião álacre e absolutamente discutível sobre a peça, reconhece que nela há uma ―força escabrosa que emana do texto‖ (2000, p.123), o que só 25


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aumenta o impacto sobre a subjetividade do leitor/expectador enquanto lança anátemas à estética falogocêntrica do Belo e Bom, concepção grecoromana atualizada por Kant e Hegel e desatualizada por Heidegger e Derrida, tão antiquada e ultrapassada quanto a dialética ou as ombreiras dos anos 1980, mas tão apreciada pela academia. O conjunto de adjetivos outrora listado descreve o óbvio que o mundo acadêmico a todo instante, incomodado, procura negar, tenta apagar ou apressa-se em mascarar: Tito Andrônico — como Macbeth, Hamlet, Othelo ou A Tempestade — não é um floreio poético a la Sonho de uma noite de verão, nem um mergulho nos melodramas mexicanos da existência a la Romeu e Julieta, nem o discutível tratado filosófico que se insiste em ler em Hamlet. Tito Andrônico é um poderoso ensaio artístico sobre o horror que constitui a condição humana, entendido horror como a manifestação imagética, impactante e psicofisicamente ameaçadora do medo e como uma experiência que ―signals an excessive proximity and indistinctness of negative, overpowering things‖ (BOTTING, 2014, p.7); é um estudo de estética negativa realizado quase duzentos anos antes de Edmund Burke teorizar a respeito, um experimento transgressor com os limites mutuamente permeáveis e dinâmicos entre razão e emoção, perda e ganho, salvação e perdição, luz e trevas. Dentro do argumento que incita estas reflexões, Shakespeare inventou, em Tito Andrônico, o horror — o horror, grafismo do medo, desprezado como inferior pelos estetas, e não o terror, a psicologia do medo, ainda que o Bardo também o tenha inventado em Hamlet e Macbeth —, e com isso inventou o próprio Gótico, ao mesmo tempo em que inventou a si mesmo e inaugurou seu próprio fazer ficcional, já que, em termos sequenciais e de acordo com a tradição, essa é, provavelmente, a primeira peça que escreveu, ainda que não seja a primeira peça que encenou. Por certo que o Bardo estava em busca de reconhecimento, sucesso e dinheiro ao compô-la (recorde-se aqui as palavras clarificadoras de Anthony Burgess citadas em outro momento), por isso ―copiou‖ o modelo teatral popular em sua época — assim como Walpole também o ―copiou‖ como modelo para a primeira obra de ficção gótica, o que gera um pós-moderno jogo de cópias sem originais no que concerne à relação entre Shakespeare e o Gótico —, marcadamente o estabelecido por Thomas Kyd e Christopher Marlowe, então dramaturgos do mainstream e especialistas no que é conhecido como as ―revenge tragedies‖ (―tragédias de vingança‖) do teatro elisabetano, peças nas quais reinava a carnificina e o macabro, cujo objetivo principal era o entretenimento. Todavia, as grandes tragédias shakespearianas, aquelas que a academia afirma serem as únicas verdadeiras obras artísticas do autor, 26


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todas, sem exceção, trazem o horror como elemento estético de alto impacto e importância. Observe-se, como exemplos, a cena final de Macbeth, em que a cabeça decepada do protagonista é apresentada como um troféu à audiência; a cena final de Hamlet, em que todas as personagens, inclusive o protagonista, morrem em uma batalha sangrenta inteiramente encenada no palco; ou A Tempestade, em que Caliban, uma das personagens principais, é composto e descrito como uma monstruosidade. Em Tito Andrônico está, portanto, o vir a ser de Shakespeare como Shakespeare, do Gótico como gênero/modo ficcional, de Shakespeare como precursor do Gótico e do Gótico como invenção shakespeariana. Do mesmo modo que Walpole atribui textualmente ao Bardo sua cópia-inspiração, a qual formaliza o Gótico como fazer ficcional, Shakespeare abre o seu fazer dramático colocando em cena, literalmente, o próprio Gótico: a nefanda Tamora, uma das personagens centrais da peça, e seus filhos são godos, o povo gótico, dos quais a ficção gótica herdou suas raízes culturais. Como desenvolvimento desse gesto de abertura — que se repetirá em quase todas as suas peças, especialmente nas grandes tragédias —, Shakespeare constrói, na primeira cena do quinto ato de Tito Andrônico, a irônica metáfora que expressa até hoje o sentimento da academia em relação ao Gótico: Lúcio, um dos filhos de Tito, invade Roma à frente de um exército de godos desejosos de vingança tanto contra a própria Roma quanto contra Tamora, a rainha que os traiu. É desse modo que a academia vê o Gótico: como um tenebroso exército de bárbaros a invadir o murado, racional, organizado, falogocêntrico e iluminado universo do Logos; como um simplório embate dialético entre trevas e luz, bárbaros e cidadãos romanos, lumpesinato massificado e doutos acadêmicos, no qual o lado da luz, de Roma, da academia deve prevalecer a qualquer custo, mesmo que isso implique em taxar uma peça do dramaturgo eleito por lúmpenes e eruditos ―o maior de todos os tempos‖ de indigesta, incorreta, lixo, barbárie etc. sem maiores questionamentos ou aprofundamentos. Mas o Bardo, sábio já na juventude, não recai nas ilusões ineptas e espúrias do pensamento dialético. Antes, porém, faz de uma rainha dos godos imperatriz de Roma, e do filho de um general romano líder dos godos, o que de pronto coloca em xeque o próprio embate entre esses dois povos, consequentemente entre essas duas formas de pensar. Enquanto a academia, em pleno século XXI, ainda insiste em opor, por exemplo, Gótico e Realismo, alocando o primeiro em posição inferior ao segundo em razão do segundo ser o herdeiro do greco-romano Iluminismo, Shakespeare já os havia colocado em produtiva indecidibilidade, geradora de múltiplas significações, desde o século XVI, pois o múltiplo, o plural, o jogo são os 27


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preceitos que regem a textualidade e a concepção onto-epistemológica do Bardo. Assim, sem o horror e o Gótico inventados em Tito Andrônico, as grandes tragédias do Bardo não seriam grandes, pois perderiam muito de sua força emocional e estética; Horace Walpole talvez não tivesse escrito O castelo de Otranto e o Gótico, se existisse, seria algo outro; os grandes romances ingleses do século XIX, todos góticos — Frankenstein, O morro dos ventos uivantes, Jane Eyre, A casa soturna, Drácula etc. —, ou não teriam sido possíveis ou seriam pouco importantes; e o cinema certamente não existiria. Desse modo, desconsiderar ou desvalorizar Tito Andrônico equivale a desprezar os elementos-chave sobre os quais se estabelecem tanto o teatro shakespeariano enquanto fazer artístico quanto o Gótico enquanto tradição estética. Ao fazê-lo, a crítica acadêmica reproduz e tenta reforçar sua atitude em relação à ficção e às artes góticas: relegar aquilo que difere do cânone estabelecido, compulsoriamente, sem nenhuma ponderação, à marginalidade, ao sub-literário e sub-artístico, ao pejorativo ―massificado‖, como se o fato de uma obra deter apelo popular entre públicos tão distintos quanto o contemporâneo de Shakespeare — o mesmo Samuel Johnson que afirma que Tito Andrônico ―can scarcely be conceived tolerable to any audience‖ também assegura que os grafismos dessa peça ―were not only born but praised‖ (1908, p.166) — e o do século XXI — uma das recentes e marcantes montagens de Tito Andrônico nos palcos foi realizada pela companhia de teatro sul-coreana Seoul Shakespeare Company em 2015, e obteve grande sucesso de público — fosse um problema temático-estrutural intrínseco aos objetos estéticos que apresentam tal característica. Tito Andrônico é uma crítica sem misericórdia ou afetações, um golpe com manopla de ferro, ao excludente esteticismo acadêmico realizada por aquele que a academia exalta como um dos maiores estetas e um dos maiores pensadores da condição humana — o que Shakespeare de fato é —, exaltação essa feita com o objetivo mendaz de tornar o Bardo um escudo para justificar a parcialidade negligente com que essa mesma academia trata as diferenças, todas as diferenças — exclusão, parcialidade e negligência são aspectos inexistentes em Shakespeare e sua obra. As cenas sangrentas, imagens grotescas, ritmo alucinante, absoluta falta de poeticidade, completa e proposital ignorância quanto aos fatos históricos flagrantes em Tito Andrônico compõem um quadro apavorante que, se por um lado permanece pautado e representante de uma estética negativa, já que elaborado de modo artístico com o resoluto propósito de ser avassaladoramente horrendo na exposição do lado mais sórdido e abjeto do 28


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humano; por outro constitui uma advertência aos acadêmicos e públicos de todas as épocas: juízos estéticos norteados por oposições e hierarquizações são parciais e avessos à diferença, logo, são discutíveis e não-confiáveis, já que, em sua maioria, procuram se sobrepor ao objeto que analisam esquecendo-se que há arte e literatura sem eles, mas que eles não existiriam sem a arte e a literatura. A própria academia, que tanto inferioriza Tito Andrônico e o Gótico ali inventado, cobiçosa do imenso sucesso que fazem junto ao público em geral — o que não acontece com os modernistas ou Guimarães Rosa, por exemplo —, tornou, por tanto enfatizar uma pretensa falta de qualidades estéticas de ambos, tanto um quanto o outro assuntos dos mais populares em suas fileiras, efeito colateral inesperado que merece louvor, pois detém o mérito de ter despertado a atenção e o interesse das novas gerações de acadêmicos. Estes, menos intolerantes e mais inclinados a novos olhares e perspectivas, a tentar compreender, sem prejulgar, a capacidade de geração infinita de significados que caracteriza toda a boa ficção e a boa arte, têm (re)descoberto e trazido à tona um Shakespeare diferente do canônico, outrora enterrado a sete palmos, mas não menos prolífico e inovador; e têm também (re)descoberto o Gótico como fazer estético múltiplo, gênero/modo artístico intertextual, interdiscursivo, transmidiático e atemporal, praticado tanto por Shakespeare, Dante, Virgílio e Homero quanto por Umberto Eco, George Lucas, os irmãos Wachowski e Neil Gaiman em razão de seu grande potencial inovador e crítico. Foi o que se pretendeu, brevemente, fazer aqui ao se propor pensar Shakespeare e o Gótico por meio de Tito Andrônico: contribuir para esses novos olhares e perspectivas. Bibliografia BARTHES, Roland. Da obra ao texto. In: _____. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.65-75. BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O‘Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. BOTTING, Fred. Gothic. London; New York: Routledge, 1996. _____. Gothic. 2. ed. London; New York: Routledge, 2014. BURGESS, Anthony. William Shakespeare. In: _____. A literatura inglesa. Trad. Duda Machado. São Paulo: Ática, 2002, p.89-99. CHAUI, Marilena. Sobre o medo. In: NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.35-75. COLERIDGE, Samuel Taylor. Notes on Titus Andronicus. In: _____. Coleridge’s Lectures on Shakspeare and Other Poets and Dramatists. 29


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O lobo, o lobisomem e as meninas de capa vermelha The wolf, the werewolf and the red-capped girls Taisi Viveiros da Rocha5 Daniel Serravalle de Sá6 Resumo: O presente artigo pretende discutir as transformações dos personagens Lobo e Chapeuzinho Vermelho nas narrativas de Charles Perrault (―Le Petit Chaperon Rouge‖, 1697), dos irmãos Grimm (―Rotkäppchen‖, 1812) e de Angela Carter (―The Company of Wolves‖, 1979) a fim de entender mudanças históricas de atitudes em relação às mulheres na sociedade Ocidental, com o objetivo de debater assuntos como sexualidade, moral e transgressão social. Palavras-Chave: Contos de fadas; Chapeuzinho Vermelho; Lobo; Monstro; Transgressão social. Abstract: This essay discusses the transformations of the Wolf and Little Red Riding Hood Characters in the narratives by Charles Perraul (―Le Petit Chaperon Rouge‖, 1697), by the Grimm Brothers (―Rotkäppchen‖ , 1812) and by Angela Carter (―The Company of Wolves‖, 1979) in order to understand historical atitude changes towards woman‘s demeanor in Western society, with the aim of debating sexuality, moral and social transgression. Keywords: Fairy tales; Little Red Riding Hood; Wolf; Monster; Social transgression.

Segundo Jack Zipes, em seu livro The Trials and Tribulations of Little Red Riding Hood (1993), os contos de fadas exerceram uma importância crucial na formação de processos de socialização e de integração nacional em determinados países europeus. Por meio desses discursos literários se consolidaram funções, regras e comportamentos, tanto coletivos quanto individuais, em relação a práticas sexuais, moralidade e condutas sociais a serem seguidas. Nesse sentido, as mudanças históricas ocorridas nas diferentes versões dos contos de fadas analisados aqui (Perrault, irmãos Grimm e Angela Carter) podem ser entendidas à luz de transformações das regras sociais que regem cada um dos grupos para os quais essas leituras estavam dirigidas e que ainda se fazem presentes, direta ou indiretamente, na atualidade. Partindo desse princípio, este artigo desenvolve uma 5

Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pesquisa na área de contos de fadas e intermidialidade, tendo como objeto de estudo a Rainha Má do conto da "Branca de Neve" nas versões dos irmãos Grimm e da série televisiva "Era uma Vez" (2011). 6 Professor Adjunto do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras (DLLE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua nas linhas de pesquisa Intersecções Teóricas e Culturais e Literaturas de Língua Inglesa. É Editor-Chefe da série Gothic Digital Series@ UFSC, hospedada no Repositório Institucional da Universidade. 31


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discussão sobre as personagens do lobo e da chapeuzinho vermelho em diferentes versões narrativas do conto de fadas A Chapeuzinho Vermelho com o intuito de analisar como o monstro ou a monstruosidade é representada e ressignificada historicamente, salientando questões de sexualidade, moralidade e transgressão social. Na versão de Charles Perrault, intitulada ―Le Petit Chaperon Rouge‖ (1697), parte do livro Contes de ma mère l'Oye, o conto apresenta uma moralité explícita que faz com que os leitores possam extrair uma lição por meio das ações e reações das personagens. Maria Tatar afirma que ao escrever essa história, cuja origem remonta o folclore e a tradição oral, Perrault deliberadamente articulou ―um modo discursivo racional e uma economia moral‖7(1999, p. 4) para o grupo a que se dirigia, a emergente burguesia francesa do final do século XVII. Nessa versão, chapeuzinho vermelho é convidada pelo lobo para subir na cama, onde a história acaba com um final feliz para aquele que é o monstro. Mais de um século depois, os irmãos Grimm reescreveram o conto da menina de capa vermelha que vai ao encontro da avó. Nessa versão de 1812, intitulada ―Rotkäppchen‖ (1812), consuma-se o ato de violação, mas, diferentemente de Perrault, a moral da história tem a forma de uma contranarrativa na qual o lobo morre e a chapeuzinho sai vitoriosa, sugerindo que a menina havia aprendido a reagir após o primeiro encontro com o monstro. A versão dos irmãos Grimm se tornou a mais conhecida no mundo ocidental, sendo a mais adaptada para o cinema e para outras mídias. Em 1979, Angela Carter publica uma versão moderna dessa história que, de certa forma, retoma a origem folclórica do conto de fadas e, ao mesmo tempo, transforma o encontro entre menina e lobo em uma relação com um alto nível de erotismo. Na narrativa intitulada ―The Company of Wolves‖, parte do livro The Bloody Chamber and other Stories, ao encontrar o lobo disfarçado de avó, despe-se para entrar na cama, tira a camisa do lobohomem, faz sexo com ele e termina a história dormindo ―entre as patas do lobo afetuoso‖ (CARTER, 1999, p. 213). Em 1885, o folclorista Paul Delarue publicou o que ele identifica como a legítima versão folclórica do conto Chapeuzinho Vermelho. Segundo Delarue, a chamada ―The story of grandmother‖, ou ―A história da avó‖, precede a narrativa de Perrault e, devido a sua linguagem característica, seria mais próxima de uma narrativa oral (TATAR, 1999, p. 3-4). As versões de Paul Delarue e de Angela Carter 7

No original: ―a rational discursive mode and moral economy‖. Doravante todas as traduções serão dos autores. 32


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apresentam semelhanças no que diz respeito ao poder que chapeuzinho exerce sobre o lobo, na primeira com a sua esperteza e sagacidade, na segunda com sua sensualidade. Nesse sentido, por meio das diferentes representações e significações que tanto o lobo quanto chapeuzinho vermelho assumem no decorrer dos séculos, ressaltam-se princípios que regem os grupos sociais e as transformações no conceito de monstro ou monstruosidade. Sobre monstros e monstruosidades Quando se pensa em antagonistas, os monstros ocupam um lugar de destaque, tenham eles a forma de animais, humana, metamorfos, alienígenas ou máquinas. Segundo Seve Calleja, no livro Desdichados monstruos: la imagen deformante y grotesca de ―el outro‖, um monstro seria ―a visão deformante e aterradora [...] que causa repulsa e incômodo com sua presença estranha no nosso espaço vital‖ 8 (CALLEJA, 2005, p. 11). No livro Da fabricação de monstros, Julio Jeha aponta que o monstro existe por causa de acordos sociais que permeiam determinadas comunidades, pois ―os grupos precisam manter seus membros unidos dentro de fronteiras e proteger-se contra os inimigos externos‖ e ―o monstro é um artifício para rotular as infrações [de] limites sociais‖ (JEHA, 2009, p. 19). O monstro ou a monstruosidade é então um elemento estranho que desperta um estranhamento ou incômodo, recebendo sobre si uma projeção extremada. Esse intruso adentra o território geográfico ou cultural de um determinado grupo social tornando-se uma presença transgressiva e má para aquela comunidade, pois, impõe algum tipo de ruptura à estabilidade do grupo. Ainda segundo Jeha, ―representar o mal tem sido uma pedra no meio do caminho de filósofos e teólogos que os escritores tentam contornar usando metáforas‖ (JEHA, 2009, p. 19) que tem como função manter a coesão social. Aristóteles acreditava que o monstro era na realidade uma raridade na natureza, um prodígio, e que a percepção de determinada monstruosidade tende a desaparecer através do conhecimento que se adquire acerca da diferença e conforme tal raridade se torne mais presente e comum. Na teologia medieval de Santo Agostinho, o monstro é marcado pela divergência em relação à norma, trata-se de uma classificação estrutural e formal, que tenta explicar como o monstro é fabricado com base em quatro 8

No original: ―la visión deformante y aterradora [...] que nos repele e incomoda com su presencia extraña em nuestro espacio vital‖. 33


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tipos de deformação (por excesso, por falta, por deslocamento e por hibridismo), existindo para afirmar categorias de normalidade. Sérgio Luiz Prado Bellei afirma que o monstro e o discurso da monstruosidade ―constituem uma linguagem reveladora daquilo que, não podendo ser representado, pode apenas, como sugere a origem etimológica da palavra ‗monstro‘, ser mostrado ou demonstrado (monstrare)‖ (BELLEI, 2000, p. 15). Nesse sentido, as transgressões do monstro podem ser entendidas como a anormalidade de um corpo ou de um comportamento não usual dentro de um círculo social, isto é, uma estética ou uma ação divergente em relação à norma classificatória, que não está necessariamente errada, mas, por não ser comum ou bem aceita pela maioria do grupo torna-se indesejável e passível de punição. Todavia, as regras desses círculos sociais não são intransponíveis ou imutáveis, e o próprio conceito de monstro é algo mutável. A partir do momento em que um ato deixa de ser considerado estranho e monstruoso, passando a fazer parte do cotidiano da comunidade, o que era tido como transgressão torna-se parte do comportamento padrão e o monstro deixa de existir ou começa a ser aceito pela comunidade em questão. Transgressoras de vermelho: inocência, trapaça e sedução No caso de ―Chapeuzinho Vermelho‖ de Perrault, a tragédia acontece porque ela transgride as regras do grupo, de modo que, o monstro surge aqui em conexão com o comportamento da menina em relação a pessoas desconhecidas. A pedido de sua mãe, Chapeuzinho leva uma torta e um pote de manteiga para a avó, que mora às margens da floresta. Quando a garota adentra a floresta, logo se depara com o lobo que sente vontade de devorála, o que ele não faz apenas por medo dos lenhadores que estavam por perto. O lobo engana a menina, direcionando-a para o caminho mais longo, no qual ela se distrai com as belezas naturais, permitindo ao lobo chegar primeiro na casa, devorar a avó, vestir-se como ela e esperar pela menina de capa vermelha. Ao chegar na casa da avó e deparar-se com o lobo disfarçado, Chapeuzinho tira as roupas e deita-se com a suposta avó. Percebendo que havia algo estranho com a senhora, pergunta-lhe sobre sua aparência, levando ao conhecido diálogo sobre o corpo, que culmina com a frase ―Minha avó, como você tem dentes grandes!‖, ao que o animal responde ―É pra te comer‖ e devora a menina, terminando assim a história. O encontro da menina com o lobo no caminho da floresta é o elemento que marca a primeira mudança na história, da garota que simplesmente vai levar quitutes para a avó para a da menina que se depara com um monstro, o 34


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lobo. Dessa forma, a culpa do lobo saber sobre a avó, bem como de poder preparar um lugar em que seguramente poderia devorar a menina longe dos lenhadores passa a ser da própria garota e não propriamente do vilão. Para enfatizar que o fim tão trágico da garota – enganada e devorada por um lobo, além de ser responsável pela morte da avó – deve-se ao fato de ela ter parado no caminho da floresta e conversado com o lobo, tornando-a assim transgressora de uma simples regra social que é não conversar com estranhos, pois não é possível saber sua índole, Perrault acrescenta uma moralité. A lição de moral, esse elemento recorrente em fábulas, determina que as jovens, especialmente as bem-nascidas, não devem escutar qualquer pessoa ou ―não será de se estranhar se um lobo as devorar‖9 (PERRAULT, 2010, p. 11). A responsabilidade do estupro que está metaforizado no devorar do lobo, apesar de esse não ser desejado, é colocada sobre Chapeuzinho, pois, ao transgredir as regras estabelecidas pelo seu grupo deu a oportunidade para o lobo-monstro agir. Por não ter seguido as regras e assim evitado a possibilidade da violência sexual, é a menina que recebe a punição no desfecho e não o monstro. Jack Zipes argumenta que tanto Perrault quanto os irmãos Grimm, ao adaptarem a história da menina da capa vermelha para seus respectivos contextos sociais, fizeram com que esta se tornasse ―uma narrativa sobre estupro na qual a heroína é obrigada a suportar a responsabilidade pela violação sexual‖10 (1983-84, p. 78). Partindo desse princípio, entende-se que a monstruosidade não é a imposição de um ato sexual não consensual, mas sim a regra que foi quebrada pela menina que não deveria ter conversado com a pessoa errada, propiciando a oportunidade para que tal ato ocorresse. Na versão dos irmãos Grimm identifica-se um princípio muito semelhante em relação a quem carrega a culpa para o surgimento do monstruoso. Todavia, eles se utilizaram de um elemento diferente na construção narrativa, o princípio de proibição/violação. No livro The Hard Facts of the Grimm‘s Fairy Tales (1987), Maria Tatar discute como esse princípio, muito comum em contos de fadas, opera como um alerta sobre condutas sociais, ―o que originalmente funcionava como motor para o enredo e como um meio para introduzir a vilania, torna-se um parâmetro geral de comportamento‖11 (TATAR, 1987, p. 166). Na versão dos irmãos

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No original: ―Et que ce n‘est pas chose étrange, /S‘il en est tant que le Loup mange‖. No original: ―a narrative about rape in which the heroine is obliged to bear the responsibility for sexual violation‖. 11 No original: ―what originally functioned as a motor of the plot and as a means of 10

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Grimm (1812), apresenta-se o comando inicial da mãe que, ao enviar a filha com quitutes para a casa da avó, orienta-a com as seguintes palavras ―quando você estiver indo, caminhe direito e não saia do caminho. Senão você cairá e quebrará o vidro e não restará nada para a Avó‖12, ficando clara a proibição ―não saia do caminho‖, ao que a garota promete ―eu farei tudo direitinho‖13 (GRIMM, 1989, p. 971). Contudo, por ser um elemento motor do enredo, independente da resposta que a menina tenha dado, tão logo aparece uma proibição, imediatamente sabe-se que esta será descumprida. Após ouvir as instruções da mãe, a menina vai ao encontro da avó, porém no meio do caminho encontra o lobo, a quem não teme. Enquanto conversam, o lobo fala para a jovem que as flores ao redor são lindas e, maravilhada, ela deixa o caminho e entra na floresta para poder colher um buquê para a avó. Enquanto Chapeuzinho Vermelho se distrai na floresta, o lobo corre até a casa da avó, devora a senhora, disfarça-se e espera pela chegada da menina. Ao chegar à casa da avó, Chapeuzinho sente-se desconfortável e nervosa, mas, adentra a residência. Semelhante à personagem em Perrault, quando vê o lobo vestido de avó, também acha sua aparência estranha, porém não reconhece o perigo nem foge, e faz as famosas perguntas sobre as partes do corpo do monstro. Após comentar sobre a enorme e assustadora boca da pseudo-avó, o lobo diz que aquela boca é para comê-la e a devora. Todavia, Chapeuzinho e a avó escapam da morte, pois, são salvas por um caçador que ao ouvir o ronco do animal, entra na casa da avó, corta a barriga do lobo e salva as duas mulheres. Chapeuzinho, vinga-se do lobo enchendo-lhe a barriga de pedras, o que o leva à morte. Na introdução do capítulo sobre as versões de Chapeuzinho Vermelho no livro The Classic Fairy Tales (1999), Tatar argumenta que, em contos de fadas, os acontecimentos desditosos são frutos de uma falha moral que levou as personagens àquela situação. Enquanto em Perrault a transgressão ou falha moral foi conversar com estranhos, no caso dos irmãos Grimm isso se apresenta como a desobediência às orientações da mãe. Na versão dos irmãos Grimm, novamente a culpa recai sobre a jovem e a consequência por transgredir a regra é ―uma aterradora punição por uma infração relativamente pequena‖14 (TATAR, 1999, p. 7). Assim, é como se o desejo do lobo, antes mesmo da desobediência da garota, e ainda que ele seja o introducing villany becomes a general behavioral guideline‖. 12 No original: ―wenn du hinauskommst, so geh hübsch sittsam und lauf nicht vom Weg ab, sonst fällst du und zerbrichst das Glas, und die Großmutter hat nichts‖. 13 No original: ―Ich will schon alles gut machen‖. 14 No original: ―a frightening punishment for a relatively minor infraction‖ 36


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instigador da desobediência ao sugerir que colhesse um buquê de flores para a avó, não fizesse dele um monstro canibal. A sobrevivência das duas mulheres só é garantida com a aparição da figura redentora do caçador – ausente no conto de Perrault – que possibilita a Chapeuzinho a possibilidade de arrepender-se de seus atos de desobediência e possa continuar viva para propagar a lição aprendida. Inclusive, não é o caçador que mata o lobo, mas sim a menina ao encher a barriga do animal com pedras, metaforicamente substituindo a maciez do corpo feminino pela dureza do mineral e, assim, subjugando o monstro por meio do aprendizado da regra da obediência. Tal lição de moral fica ainda mais evidente no epílogo, quando a menina encontra outro lobo quando está indo para a casa da avó, porém, desta vez, já tendo aprendido sobre monstros e maldades, não lhe dá atenção e chega à casa da avó com antecedência suficiente para inclusive avisar à idosa sobre o perigo que lhes ronda. Quando o lobo surge, a porta já está trancada e as duas mulheres ficam em silêncio, sem respondê-lo. O lobo então decide esperar até que saiam da casa, mas, percebendo a intenção do monstro, elas enchem uma tina com água em que linguiças haviam sido cozidas e, não resistindo ao cheiro de comida, o lobo mergulha no líquido e acaba se afogando. Assim, Chapeuzinho pôde voltar para casa em segurança, sem que ninguém lhe faça mal. Nesse epílogo, o lobo não chega a se tornar um verdadeiro monstro, pois a presença estranha que incomoda o espaço vital das duas mulheres, que Seve Calleja aponta como característica monstruosa, não é intensa o suficiente para caracterizar uma monstruosidade. Esse de-monstramento não ocorre devido à diminuição do nível de periculosidade do lobo, pois, como demonstra a narrativa, a astúcia do animal continua a mesma, mas sim na adequação da menina aos princípios do grupo: a obediência às regras da mãe, que permitem que ela possa chegar com antecedência à casa da avó e que ambas possam se preparar para enfrentar o lobo. O contato anterior com uma situação semelhante fez com que o conhecimento de mundo da menina aumentasse e assim, retomando o princípio de Aristóteles, o monstro tende a desaparecer, quanto mais se aprende sobre ele, mais previsível e pouco ameaçador ele se torna. No conto ―The company of wolves‖ ou ―A companhia dos lobos‖ (1979), Angela Carter utiliza as versões do conto de fadas para criar uma narrativa na qual a personagem do lobo não apenas perde seu potencial monstruoso, mas, também é reabilitado. A história começa contextualizando o lobo enquanto um animal feroz que rodeia as terras frias onde a narrativa se situa. A fim de exemplificar a ferocidade da criatura, relata-se diversos casos de 37


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ataques, assim como a capacidade do lobo de transformar-se em homem, mantendo toda sua selvageria e bestialidade. A transformação de lobos em pessoas e vice-versa é algo historicamente relacionado ao mal, assim como maldições de bruxas e pactos com o diabo, elementos de um passado supersticioso que Carter se utiliza para então transcendê-los, já que, no final, a criatura é totalmente controlada pela menina. Todavia, durante o processo de construção do terror e da tensão narrativa, são oferecidos conselhos sobre como evitar o mal: ficar atentos aos olhos das pessoas, a fim de identificar o brilho fosforescente dos olhos do lobo, e, correr ―como se o Diabo estivesse perseguindo‖ (CARTER, 1999, p. 204) caso se avistasse um homem nu entre os pinheiros. Dessa forma, o que se tem não é exatamente uma proibição, mas sim uma recomendação de fuga porque a vida estaria em perigo. Após apresentar as possíveis formas de identificar um lobisomem, iniciase a narrativa que é normalmente associada à Chapeuzinho Vermelho, que nessa versão não veste uma capa, mas um xale. Desde o princípio a personagem é apresentada como destemida, pois ―ela sempre foi por demais amada para sentir medo‖ (CARTER, 1999, p. 205). Tal característica corrobora a compreensão sobre a reação da garota no final da história, ―uma vez que o medo não a ajudava em nada, deixou-o de lado‖ (CARTER, 1999, p. 211), ao manter-se serena consegue lidar com a criatura que a ameaçava. Além disso, ela carrega consigo uma faca dentro do cesto com os alimentos, como todas as crianças da região faziam. Outra característica enfatizada pela história é a virgindade da menina e o fato de já ter começado seus períodos menstruais, indicando que estava em processo de transformação para a idade adulta. Esses elementos encaminham a história para um inevitável desfecho sexual, como também ocorre nas versões de Perrault e dos irmãos Grimm, contudo, a forma como isso ocorre, as suas causas e consequências, fazem com que o contexto de transgressão social seja diferente, refletindo ―atitudes em transformação em relação a mulheres e sexualidade na sociedade Ocidental‖15 (ZIPES, 1993, p. 64). Em outras palavras, as funções e parâmetros a serem seguidos pelo sexo feminino apregoados nos contos literários do século XVII e XIX foram sendo modificados, permitindo uma outra concepção tanto da sexualidade quanto das atitudes das mulheres. No conto de Angela Carter, a transgressão não ocorre por culpa da menina, mas, devido à inevitabilidade da situação, pois, mesmo seguindo 15

No original: ―The changing attitudes towards women and sexuality in Western society‖ 38


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todos os conselhos culturalmente estabelecidos, ela não é capaz de identificar o lobisomem até que seja tarde demais para correr. Isso acontece porque quando ela encontra o lobo transformado em homem, este está vestindo trajes de caçador, expressando-se de modo educado e lisonjeiro, muito diferente das características ferozes que ela esperava encontrar em um licantropo; nem mesmo seus olhos fosforescentes brilhavam, como ela esperava que seria. Outro fator de diferenciação entre a releitura de Carter e as histórias anteriores é que aqui não há uma proibição explícita que impeça a menina de entrar na floresta. A menina do xale vermelho sabe dos perigos que corre, então, em vez da garota, quem entra por meio das árvores é o próprio homem-lobo, que faz uma aposta com a menina dizendo que poderia chegar primeiro à casa da avó e caso o fizesse receberia um beijo como prêmio. A moral do conto de Perrault, que preconiza que moças jovens não devem conversar com estranhos, poderia ser retomada aqui, já que esse lobo se apresenta tão sedutor e enganador quanto o personagem do século XVII. Contudo, a atitude da protagonista diante da adversidade é muito diferente da garota inocente dos primeiros contos de fadas, aproximando-se muito mais da versão folclórica ―A história da avó‖, que possivelmente deu origem às versões literárias subsequentes. Publicada por Paul Delarue em 1885, na Inglaterra, essa versão se proclama a legítima versão folclórica desse conto popular, precedendo a versão de Perrault. O folclorista inglês afirma ter se esforçado para capturar a prosódia e o vernáculo do recontar camponês, características conservadas através dos séculos pela força da tradição das narrativas orais (TATAR, 1999, p. 3-4). Nessa versão, a menina entra na casa e depara-se com o lobo disfarçado de avó, que lhe fala para despir-se e deitar-se com ele na cama. A garota, porém, menos ingênua do que suas representações posteriores, retira peça por peça de suas roupas em uma atitude provocativa diante do lobo e, quando está pronta para se deitar, pede para fazer as necessidades fisiológicas do lado de fora da casa. O lobo atende sua vontade, mas não sem antes atar-lhe uma corda à perna; já do lado de fora, a garota amarra a corda em uma árvore e aproveita a oportunidade para fugir. A Chapeuzinho do folclore demonstra uma astúcia que foi negada às meninas de capa vermelha de Perrault e dos irmãos Grimm, em que as protagonistas foram intelectualmente enfraquecidas e expostas a um lobo contra o qual não tinham a possibilidade de enfrentar sozinhas, a não ser que seguissem estritamente as regras que ambos autores queriam incutir socialmente. Isso fez com que elas carregassem a culpa de sua violação sexual, como apontado por Zipes (1983, p.78). As ações da protagonista do conto folclórico revelam uma personagem que se aproxima 39


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dos enganadores (tricksters), como aponta Maria Tatar (1999, p. 3), e a distância da imagem de vítima indefesa e portadora da culpa pelo que ocorre com ela. Se a personagem folclórica não se depara com um monstro que a aterroriza o suficiente é porque a transgressão social não foi grande o suficiente, e se ela é capaz de enganar tal monstro através de sua própria esperteza, ela também é capaz de burlar as regras sociais sem sofrer danos irreparáveis. No caso do conto de Carter, a menina segue um princípio muito próximo ao de sua antepassada folclórica, mas, diante da impossibilidade de fuga, porque a casa da avó está cercada por uma quantidade tão grande de lobos que ela não consegue contar, Chapeuzinho não se torna a enganadora (trickster), mas sim a sedutora (femme fatale), capaz inclusive de tornar o famigerado homem-lobo em um ―lobo afetuoso‖ (CARTER, 1979, p. 213). A jovem realiza uma ação similar à do conto folclórico, na cena do strip-tease; contudo, ela vai ainda mais além do que apenas se despir, retirando também as roupas que cobrem o lobisomem, revelando assim o controle não apenas sobre o próprio corpo, mas também sobre o corpo do outro. Esse domínio é ainda mais evidenciado quando ela o beija, de livre vontade, concedendo-lhe o prêmio pela aposta de chegar primeiro à casa da avó. Além disso, ao comentar sobre os dentes do lobo, e ouvir a resposta ―é para te comer melhor!‘‘, ela ri um riso que não é de nervoso, mas sim baseado na certeza de saber ―que não era carne para ninguém comer‖ (CARTER, 1999, p. 212), ou seja, com base no conhecimento da finalidade do próprio corpo e do que ela permitiria que lhe fizessem. Se a sedução começou na floresta por parte do homem-lobo, com seu trejeito lisonjeiro e beleza encantadora, ela se consumou apenas por causa das atitudes da garota que ao se entregar ao lobo, também faz com que ele se entregue a ela. Dessa forma, o lobo/lobisomem não é mais o monstro da superstição do passado, mas sim o parceiro reabilitado do relacionamento do presente, o que torna possível o final da história com a menina dormindo ―em paz e docemente na cama da vovozinha, entre as patas do lobo afetuoso‖ (CARTER, 1999, p. 213). Conclusão Ao escrever essa versão moderna de ―Chapeuzinho Vermelho‖, Angela Carter aproveita-se de uma mudança cultural naquilo que o grupo social considerava como aceitável para desmistificar o conceito de monstruosidade representado pelo lobo através dos séculos. Se anteriormente o lobo representava as consequências desastrosas da 40


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desobediência e do contato com pessoas inadequadas, dando a entender que as meninas seriam responsáveis pela violência sexual; agora o lobo é domado pela menina de capa vermelha, conhecedora da própria sensualidade e sexualidade, que conhece as regras e que, quando não mais há como ou por que as seguir, domina a situação conforme sua própria vontade. Nesse contexto, as regras sociais cultivadas pelos contos de Perrault e dos irmãos Grimm foram modificadas de tal forma que não é mais necessária a presença de um monstro como representação do mal, nem como punidor da menina infratora. Pelo contrário, ele se torna cúmplice amoroso das escolhas da menina de capa vermelha, fazendo com que as percepções tanto sobre o monstro quanto sobre a culpada possam ser revistas. Se antes conversar com estranhos ou desobedecer a mãe levava ao encontro de um lobo-monstro que devorava a menina (a metáfora do estupro como punição pela transgressão da norma); no século XX a menina usa o sexo para domar o lobo e tirá-lo da condição de monstro, demonstrando a possibilidade redentora para este que, como representação do mal ocasionado pela quebra do contrato social, deixa de ser necessário quando nenhuma regra foi transgredida. Bibliografia BELLEI, Sergio Luiz Prado. Monstros, índios e canibais: ensaios de crítica literária e cultural. Florianópolis: Insular, 2000. CALLEJA, Seve. Desdichados monstruos: La imagen deformante y grotesca de ―el outro‖. Madrid: Ediciones de La Torre, 2005. CARTER, Angela. A companhia dos lobos. In: ______. O Quarto do BarbaAzul. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 197- 213. DELARUE, Paul. The Story of Grandmother. In: TATAR, M. (Ed.) The Classic Fairy Tales: texts, criticism. New York, London: Norton & Company. 1999. p. 10 -11. GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Rotkäppchen. In: ______. (Ed.) Kinder- und Hausmärchen. Stuttgart: Thienemann-Esslinger Verlag, 1989. p. 971-975. JEHA, Julio. Das origens do mal: a curiosidade em Frankenstein‖. In: JEHA, J.; NASCIMENTO, L. (Org.) Da fabricação de monstros. Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 11- 22. PERRAULT, Charles. Le petit chaperon rouge. In: ______. (Ed.) Histoires ou contes du temps passé, avec des moralités. [S.I.] Quillfire studios. 2010. p. 9-11. TATAR, Maria. Taming the Beast: Bluebeard and Other Monsters. In: ______. 41


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The Hard Facts of the Grimm’s Fairy Tales. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1987. p. 156-178. ______. Little Red Riding Hood. In: TATAR, M. (Ed) The Classic Fairy Tales: texts, criticism. Norton Critical Edition. New York, London: W.W. Norton & Company. 1999. p. 3-10. ZIPES, Jack. Second Gaze at Little Red Riding Hood‘s Trials and Tribulations. The Lion and the Unicorn. Baltimore: John Hopkins University Press, v. 7/8, 1983-84. p. 78-109. ______. The Trials and Tribulations of Little Red Riding Hood: versions of the tale in sociocultural context. New York, London: Routledge. 1993.

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A representação do horror em Champavert, contes immoraux (1833), de Pétrus Borel The representation of horror in Champavert, contes immoraux (1833), by Pétrus Borel Fernanda Almeida Lima16 Resumo: O presente trabalho põe em questão a representação do horror em Champavert, contes immoraux (1833), de Pétrus Borel. A obra destaca-se como uma das produções mais significativas do romantismo frenético de 1830, vertente marginal e exacerbada do romantismo francês. A filiação de Champavert ao romantismo frenético legitima a valorização das cenas de horror e de violência que permeiam o volume de contos enquanto potência estética e índice de competência descritiva do autor. Palavras-Chave: Horror; Romantismo frenético; Champavert; Pétrus Borel. Abstract: The present work calls into question the representation of the horror in Champavert, contes immoraux (1833), by Pétrus Borel. The work stands out as one of the most significant productions of the frenetic romanticism of 1830, a marginal and exacerbated strand of French Romanticism. Champavert's affiliation with frantic romanticism legitimates the valorization of scenes of horror and violence that permeate the volume of stories as aesthetic power and index of descriptive competence of the author. Keywords: Horror; Frenetic romanticism; Champavert; Pétrus Borel.

Do romantismo frenético Cabe a Charles Nodier o estatuto de primeiro decodificador da literatura frenética, definindo-a como uma ramificação perniciosa e deformada do romantismo, produtora de obras ultrajantes e excessivamente bizarras. Esta definição inicial de Nodier foi apresentada em um artigo de crítica literária, publicado no periódico Annales de la Littérature et des Arts, em 20 de janeiro de 1821 (artigo reproduzido em Tablettes romantiques (1823), com o título Du genre romantique). O que Nodier define como gênero frenético consiste em narrativas que retomam a matriz estética do romance gótico, também conhecido na França como roman noir ou roman terrifiant (romance de terror). Este constitui uma produção literária tipicamente inglesa, iniciada oficialmente por Horace Walpole, com a publicação de The Castle of Otranto (1764). Na Inglaterra das últimas décadas do século XVIII, o desenvolvimento e a fortuna do romance gótico atingem seu ápice com a 16

A autora possui doutorado em Letras Neolatinas, opção Literaturas de Língua Francesa, pela Faculdade de Letras da UFRJ. Atualmente, está em fase de conclusão de estágio pós-doutoral (bolsa CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. E-mail: felima.letras@gmail.com 43


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publicação de The Old English Baron (1785), de Clara Reeve, The Mysteries of Udolpho (1794) e The Italian (1797), de Ann Radcliffe, The Monk (1796), de Matthew Gregory Lewis. No início do século XIX, desponta o último grande representante do romance gótico, o escritor irlandês Charles Robert Maturin, autor de Melmoth the Wanderer (1820). O gênero iniciado por Walpole se caracteriza pela presença e valorização da arquitetura da Idade Média, de modo que monastérios e castelos, preferencialmente em ruínas, figuram não só como o cenário por excelência do gênero, mas constituem elemento primordial na intriga romanesca. Os subterrâneos dos castelos e monastérios aparecem como o espaço mais importante na fundamentação da trama ficcional, visto que escapam ao controle social, moral e às leis religiosas, legitimando-se como lugar de liberação de instintos primitivos e manifestação de forças obscuras. A intriga do romance gótico se particulariza, igualmente, pela presença de personagens estereotipados e pela recorrência de certas situações, como a inocente perseguida, o traidor, o justiceiro, a órfã raptada e trancafiada em conventos de aparência nefasta, dirigidos por religiosos corruptos e libertinos; manifestações sobrenaturais, espectros ou bandidos foragidos se fazendo passar por fantasmas ou entidades diabólicas; cenas de suspense e de violência, geralmente tortura ou flagelação, estupro e assassinatos, por vezes, praticados ao som de gargalhadas satânicas (Cf. LEVY, 1995). A voga do romance gótico eclode, na França, por volta de 1797, ano em que são publicadas as traduções das obras The Mysteries of Udolpho, The Italian e The Monk. Verifica-se que esse movimento inicial de descoberta e tradução do romance gótico inglês acabou por desencadear uma expressiva prática de traduções livres, adaptações concorrentes e falsas traduções. Por volta de 1815, às vésperas do advento do romantismo francês, se percebe uma nova voga do romance gótico. Assim, a primeira geração de românticos franceses, Victor Hugo, Philarète Chasles, Honoré de Balzac, entre outros, investe significativamente em narrativas baseadas no modelo estético do romance gótico, dado que o gênero proporciona sucesso editorial fácil e certo. Estas narrativas do romantismo francês receberão a etiqueta de frenéticas pela crítica literária da época. Por volta de 1826-1827, percebe-se que a voga da prosa frenética perde impulso e intensidade, uma vez que perde o caráter inovador e o público já começa a se mostrar saturado de narrativas sangrentas e assustadoras. Assim, esta primeira geração de românticos franceses passa a recusar os excessos e crueldades do roman noir, elegendo novos modelos estéticos, como o romance histórico, para legitimar suas produções em prosa. Tomada de posição que correspondia aos movimentos de defesa e configuração de um romantismo mais lúcido e 44


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moderado. Desse modo, será no ano de 1830, com a subida dos ―pequenos românticos‖ à cena literária, que a França conhecerá o mais ousado investimento na prosa frenética. Este grupo de jovens românticos, também conhecido como Jeunes-France ou Bousingos, é composto por escritores como Pétrus Borel, Théophile Gautier, Gérard de Nerval, Charles Lassailly, etc. Considerando a participação dos ―românticos menores‖, Alice Killen abala a noção do romantismo frenético como estética inscrita na tradição do romance gótico, como indica esta passagem: Em muitas obras românticas, mais ou menos esquecidas atualmente, o ―noir‖ e o fantástico dominam, sem que, no entanto, se possa dizer que elas derivam da influência inglesa. Para Philarète Chasles, Paul Lacroix, [...] Pétrus Borel, o licantropo, e toda a sua escola nada é horrível o bastante, para ser oferecido a seu público, mas eles vão buscar seus temas, preferencialmente, nas penitenciárias, nos hospitais, aos pés da guilhotina, etc., mais do que nos romances de Lewis ou de Anne Radcliffe. Alguns traços, aqui e ali, lembram estes precursores na arte de causar arrepios. (KILLEN, 2000, p. 174-175)17

Os Pequenos românticos são igualmente reconhecidos por um tom peculiar na expressão da literatura frenética, adicionando à representação do horror e da violência nuanças de ironia picante, satânica ou sepulcral, chegando a atingir os códigos do humor negro. Segundo Anthony Glinoer, ―os Jeunes-France, de forma quase conjunta, mas não teorizada, realmente fundaram uma ―escola frenética‖. [...] eles tomaram parte na revolução romântica e, de certa maneira, representaram sua versão mais absoluta‖ (GLINOER, 2009, p. 129-130). Os jovens românticos de 1830 teriam, então, protagonizado uma experiência literária de primeira ordem, na qual as excentricidades, subversões e o paroxismo estético do frenesi literário fundamentam o desenvolvimento de uma sorte de ―romantismo existencial‖. Os contos imorais de Champavert Pela representação ousada dos postulados frenéticos, assim como pela maestria em conjugar o escárnio Jeune-France, a autoparódia, tiradas de humor negro e os efeitos do horror, os contos imorais de Pétrus Borel figuram entre as produções mais completas e legítimas do romantismo frenético de 1830. Champavert, obra feita para ―aterrorizar‖ a burguesia da Monarquia de Julho (1830-1848), anuncia em seu prefácio o objetivo de pôr em evidência o ―escândalo do Mal‖, justificando a hipertrofia de cenas de assassinato, infanticídio, suicídio, roubo e estupro que permeiam o volume. 17

As traduções do francês são da autora. 45


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Em um julgamento lúcido e seguro, Jules Claretie, primeiro biógrafo de Borel, afirma que ―um dos livros mais curiosos, mais bizarros, mais excessivos desta geração de 1830, é certamente Champavert de Pétrus Borel, livro sem equivalente, mistificação lúgubre, pilhéria de uma terrível imaginação‖ (CLARETIE, 1865, p. 61). A narrativa inaugural do volume, intitulada Monsieur de l‘Argentière, l‘Accusateur, se desenrola durante os primeiros anos do Império napoleônico e apresenta o sofrimento e a injustiça que recaem sobre a heroína Apolline. Esta é enganada e violentada por Argentière, amigo de seu noivo Bertholin, prefeito da cidade. Em uma noite escura e ciente de que Bertholin estava viajando, Argentière finge ser o noivo de Apolline, altera o tom de voz e, jurando-lhe amor eterno, a estupra. Pela manhã, Apolline descobre que foi enganada e conhece a face de seu malfeitor, caracterizada por olhos cavernosos e cabelos cor de fogo. Em consequência deste estupro, a heroína engravida e, em seguida, é desonrada, agredida e abandonada por seu noivo, que, ao retornar da viagem, a encontra grávida. Sem nenhum tipo de amparo, Apolline vive na mais profunda miséria, enlouquece e ao dar à luz, lança o bebê nas águas de um esgoto. Seguindo o rastro de seu sangue, os policiais encontram a bela jovem desfalecida em seu apartamento, conduzindo-a, em seguida, a um asilo psiquiátrico. Após se recuperar física e mentalmente, Apolline é encaminhada à justiça e condenada, com requintes de frieza, por um acusador de olhos cavernosos e cabelos ruivos. O epílogo do conto é marcado pela decapitação da heroína em praça pública, acontecimento descrito como um grande espetáculo esperado pela multidão. A trama de Jaquez Baraou, le charpentier, ambientada em Cuba (Havana), figura como a mais simples de todo o volume. Trata-se do fim da amizade entre dois negros, Baraou e Juan Cazador, já amargurados pela condição de escravos. O desentendimento é motivado pelo feroz ciúme de Baraou por sua mulher Amada. Disputando o amor da bela negra, os dois amigos, exaltados pela embriaguez e em posse de facões agrícolas, lutam até a morte, animados por uma ferocidade bestial. Ao fim da narrativa, os corpos dos negros, abandonados na rua e já em estágio de putrefação, constituem objeto de uma descrição grotesca e nauseabunda. À noite, um comerciante tropeça nos corpos e, constatando que eram apenas cadáveres de negros, passa adiante. Don Andréa Vésalius l‘anatomiste reconstitui, de forma carnavalizada, a história do célebre anatomista do Renascimento que, sob a proteção do rei da Espanha, Filipe II, contribuiu expressivamente para o avanço da medicina, sobretudo no que concerne às técnicas de dissecação. O velho e 46


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impotente anatomista se casa com a jovem Maria, que o trai, diversas vezes e com homens diferentes, visto que, após o primeiro encontro, seus amantes desaparecem. Ciente da traição de sua mulher, Vésale proporciona-lhe uma morte lenta, adicionando pequenas doses de veneno em suas refeições e, na cena final da narrativa, arrasta a jovem até o seu laboratório, mostrando-lhe os corpos dos seus amantes, em pedaços, em baús de formol. Após a morte de Maria, que não suporta este teatro de horrores e sofre uma crise cardíaca, Vésale utiliza o corpo da mulher em experiências científicas. O narrador conclui que o casamento do anatomista contribuiu bastante para o avanço da ciência, citando, em seguida, a grande obra deixada por ele: De corporis humani fabrica (1562). Three Fingered Jack, l‘obi se passa na Jamaica, por volta de 1832, época da colonização inglesa. Para compor o herói Jack, um negro fugitivo e feiticeiro, Borel reelabora dados factuais, visto que a história deste negro é relatada pelo desconhecido Doutor Mosely, no Treatise of Sugar, escrito por volta de 1780. Os colonizadores, temendo revoltas e ataques liderados por Jack, oferecem uma alta quantia por sua cabeça. Movidos pela cobiça, os próprios negros caçam e matam Jack, desfilando pela ilha com sua cabeça fincada em uma lança. Em seguida, os assassinos são mortos pelo personagem feminino da trama, Abigail, uma negra dócil e sonhadora, mas que, ao tomar posse do patuá do herói, adquire sua ferocidade e seus poderes de feitiçaria. Em Dina la belle juive, Borel nos apresenta a atmosfera de castelos, crimes e vinganças da Idade Média. O nobre Aymar de Rochegude se apaixona e se casa com a bela judia, mas, logo após a cerimônia, deve voltar ao castelo do pai, para resolver questões legais e pedir a benção para sua união. O pai tirânico do protagonista não aceita o casamento do filho com uma herética e, inventando pendências e problemas sucessivos, mantém o filho, durante meses, em sua companhia. Abatida e melancólica pela ausência do amado, Dina, após meses de clausura e solidão, decide fazer um passeio de barco, seguindo o conselho de seus pais. Neste passeio, o remador rouba suas joias, lhe põe uma mordaça, amarra pés e mãos com cordas, a estupra e, em seguida, lança a vítima no lago, submergindo, por várias vezes, seu corpo com um arpão, até que o afogamento se conclua. Quando consegue fugir do castelo de seu pai, Aymar retorna à cidade de Dina, Lyon, exatamente no dia em que os judeus realizam a cerimônia de sepultamento da heroína. Aymar pede que o coveiro alargue a cova e estoura os miolos com a pistola que trazia. Passereau l‘écolier constitui a narrativa mais longa do livro e se desenrola na França, em torno dos anos de 1830, época contemporânea à publicação. 47


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O protagonista Passereau desencadeia uma crise de spleen, ao descobrir que a amada Philogène o trai com um coronel. Certa noite, Passereau leva Philogène a um bosque, que conduzia ao cemitério, e a lança em um poço, assistindo a seu afogamento e morte. Desejando, ardentemente, encontrar a morte também, mas sendo fraco, desajeitado, míope e preguiçoso demais para se suicidar, o herói procura um célebre carrasco de Paris e implora para ser levado à guilhotina. O carrasco recusa a proposta, afirmando que só agia dentro dos padrões da lei, então, Passereau deveria primeiro passar pela polícia, pelo tribunal, ser condenado e esperar a data marcada para ser guilhotinado. Não podendo esperar os trâmites legais, Passereau procura o amante de Philogène, o coronel Vogtland, entretanto, em vez de propor o clássico duelo, os dois apostam suas vidas em um jogo de dominó, realizado em uma mesa de bar, após comerem e beberem bastante. Passereau perde o jogo e exige que seja morto com tiros na cabeça e no coração. O último conto do volume, Champavert le lycanthrope, consiste em um funesto caso de amor, protagonizado pelo casal Champavert e Flava. Esta se entrega ao amado antes de oficializar o casamento, contrariando as conveniências e a moral cristã. Os amantes tornam-se, então, vítimas da própria paixão, pois, para salvaguardar a honra da heroína perante a sociedade, afastando qualquer suspeita quanto à sua castidade, o casal decide sacrificar o fruto desta união ilegítima. A partir deste infanticídio, o pessimismo e a revolta de Champavert contra a sociedade são acentuados, e Flava, por amor, desespero ou remorso, obriga o herói suicida a jurar que a mataria antes de ir ao encontro da morte. O leitor só tomará conhecimento do infanticídio ao final da narrativa, até então, a morbidez manifestada pelos amantes pode ser interpretada como um forte mal de vivre ou spleen, proveniente do drama de uma união impossível. O epílogo do conto é marcado por uma crise de fúria de Champavert, que o impulsiona a pôr fim à vida de Flava, cravando um punhal em seu peito e, em seguida, a acabar com a própria vida, através do mesmo procedimento. O herói deste conto, alter ego de Pétrus Borel, personifica a nuance fóbica e revoltada do frenesi boreliano. Com base neste breve resumo das narrativas, conclui-se que, tendo por cenário diferentes épocas e países, e animado por protagonistas de várias raças, profissões e culturas, Champavert põe em cena a atrocidade do real, a prosperidade do vício, logo, o triunfo do mal. Verifica-se a opressão brutal e irremediável da virtude, bem como a instauração de uma aristocracia ―às avessas‖, composta por corruptos e devassos representantes da lei. Uma das imoralidades denunciadas nos contos de Pétrus Borel consiste na impunidade da qual desfrutará, na maioria dos casos, o executor do mal. 48


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Outra imoralidade denunciada é o uso dos privilégios sociais para facilitar a consumação do Mal. Desta forma, no volume de contos imorais, o mal encontra justa personificação na figura do comerciante ou do burguês, malfeitor caracterizado pela frieza e pelo egoísmo, assim como nos corruptos representantes da lei como rei, juízes, acusadores públicos, inspetores de polícia, prefeitos, notários, colonizadores e religiosos. Contudo, Borel não se limita a apresentar exemplos do ―escândalo do Mal‖, pondo em discussão preocupações típicas de sua época, como a pena de morte, as políticas de colonização e a união livre. Representação do horror e frenesi literário A literatura romântica põe em cena angústias e emoções vinculadas à História recente (Revolução, Terror, batalhas do império napoleônico), de modo que a energia figura como pedra angular do sistema estético proposto pelo romantismo. Analisando a persistência de cenas de crime e rituais de guilhotina na composição do romance romântico, Christine MarcandierColard18 sustenta que o romantismo empreende uma redefinição da beleza, em sua relação com a violência, interpretada como potência estética, e o homicídio, cena privilegiada para a exibição de requinte e competência descritiva do autor. Tal renovação estética e temática busca inspiração na imprensa da época, uma vez que o fait divers e o folhetim transformam o crime em objeto de prazer, no sucesso dos melodramas encenados no Boulevard du crime, bem como nos personagens estereotipados e nos cenários típicos do romance gótico. Champavert encerra em sua composição uma série de ―lugares comuns‖ do romantismo, como a atração por cenas violentas e rituais de execução (destaca-se a guilhotina, como instrumento capital de grande fortuna), descrição de cenários exóticos e personagens que ilustravam uma ―pureza original‖ ou ―autenticidade primitiva e violenta‖, bem como o interesse ou paixão pela era medieval. No que concerne às peculiaridades da estética romântica da violência, Christine Marcandier-Colard passa em revista o catálogo de cenas capitais e de crimes sangrentos representados pelos escritores. Dentre as variantes da beleza redefinida pela violência, proposta pelo romantismo, a autora sugere uma subdivisão entre crimes de sangue e cenas de homicídio. Os crimes de sangue podem ser hiperbólicos, caracterizados pela crua exposição do sangue, como assassinatos, 18

Cf. MARCANDIER-COLARD, Christine. Crimes de sang et scènes capitales. Essai sur l‘esthétique romantique de la violence. Paris: P.U.F., 1998. 49


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execuções capitais, torturas, mutilações, carnificinas, etc., ou implícito (fundamentado na litotes), como o caso do incesto e das raças ou genealogias malditas. As cenas de homicídio podem ser trágicas, épicas, cômicas, grotescas, abrangendo também os crimes planejados, aguardados ansiosamente, mas não consumados ou cuja descrição foi omitida, devido a determinada estratégia do autor. A representação do homicídio compreende uma gama de variáveis, como duelo, guerra, guilhotina, esquartejamento, tiros à queima roupa, que se estende à escolha da arma do crime. Entretanto, alguns imperativos estéticos esboçam os contornos deste romantismo da violência: a criminalidade brutal suplanta a criminalidade astuta e dissimulada; a arma branca é privilegiada (punhal, faca, espada), viabilizando descrições mais elaboradas e teatralizadas, em detrimento da arma de fogo e do veneno, a não ser quando este provoca um espetacular suor sanguinolento; armas antigas ou arcaicas (lanças, machados, espadas, facões) dispõem de um significativo valor simbólico e são descritos como obras-primas; a fúria e o perfil do criminoso são descritos em relação à escolha de uma arma ricamente ornada, imponente, rudimentar ou, até mesmo, prosaica, como um utensílio doméstico. ―Assim, uma regra estética, e não moral, fixa o valor do crime, declinado em todas as suas variações sangrentas‖ (MARCANDIER-COLARD, 1998, p. 5). Em comparação à profanação máxima desenvolvida nas obras do Marquês de Sade, Marcandier-Colard avalia: ―os escritores românticos, talvez, nunca chegarão tão longe no excesso, no entanto alguns volumes formam, por si só, um repertório de cenas atrozes: Les Contes Bruns, Champavert ou Les Diaboliques acrescentam os corações devorados ou profanados, as genitálias lacradas, os corpos degradados‖ (MARCANDIER-COLARD, 1998, p. 145). Com base nessas peculiaridades estéticas, conclui-se que as cenas de crime e violência que fervilham em Champavert constituem espaço privilegiado para o autor exibir minúcia descritiva na representação do horror, bem como conhecimento do repertório das cenas capitais consagradas e os estudos de anatomia realizados para a composição do livro. Desse modo, Pétrus Borel apresenta a competência enunciativa requerida para a filiação aos excessos e horrores do romantismo frenético. Finalmente, esta breve análise do frenesi romântico representado em Champavert, de Pétrus Borel permite elencar propriedades estéticas que constituem índices de distinção entre a prosa frenética e o romance gótico canônico. Diferentemente do romance gótico, que associa a representação do mal à manifestação do sobrenatural, o paroxismo estético da prosa frenética estaria relacionado à exposição das chagas sociais e fundamentado no funcionamento do sistema sociopolítico, considerado como desumano e 50


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injusto. Outra particularidade é a composição ―deslocada‖ da prosa frenética, com mudanças bruscas de tempo e de espaço, rompendo com a tradição do romance gótico, marcado pela continuidade espacial, temporal e narrativa. A composição das obras frenéticas também é qualificada como insólita, pela utilização de múltiplas técnicas narrativas, abismamentos, longas intervenções do narrador e pluralidade de instâncias narrativas. Outro traço distintivo se refere ao caráter antimonárquico, anti-tirânico e anti-burguês da literatura frenética, que indicia posições políticas, geralmente vagas, e uma forte intenção provocadora, manifestada em um nível temático ou estrutural, visando chocar a moral e os bons costumes. A fusão entre sarcasmo e representação do horror, a manifestação do tom irônico ou paródico em obras que retratam quadros de sofrimento físico e moral constitui outra singularidade do romantismo frenético. Outro traço distintivo diz respeito à emoção de terror ou horror suscitada pelos textos. ―Enquanto o terror [...] repousa sempre sobre a expectativa e o suspense, o horror será amplificado se o confronto com o objeto atroz é brutal, quer dizer, se ele acontece de surpresa‖ (PÉZARD, 2013, p. 47). Assim, a representação do horror por alusões ou preterições, bem como o triunfo do bem sobre o mal no romance gótico, caracterizaria uma ―literatura de reconforto‖. No caso da prosa frenética, a irrupção brutal das cenas de violência, a minúcia na descrição do horror e império do mal sobre a virtude, configuraria uma ―literatura de choque‖. Finalmente, pode-se dizer que, a partir deste momento, se começa a considerar útil reservar o termo ―literatura frenética‖ a uma produção que ultrapassa o enquadramento do romance gótico e, por consequência, torna-se um gênero independente da literatura romântica. Bibliografia CLARETIE, Jules. Pétrus Borel le Lycanthrope. Sa vie, ses écrits, sa correspondance. Poésies et documents inédits. Paris : Pincebourde, 1865. Disponível em: http://gallica.bnf.fr. Acesso em: abril de 2017. GLINOER, Anthony. La littérature frénétique. Paris: P.U.F., 2009. KILLEN, Alice M. Le roman terrifiant ou roman noir de Walpole à Anne Radcliffe et son influence sur la littérature française jusqu’en 1884. Genève: Slatkine, 2000 (1924). LEVY, Maurice. Le roman « gothique » anglais, 1764-1824. Paris: Albin Michel, 1995. MARCANDIER-COLARD, Christine. Crimes de sang et scènes capitales. Essai sur l’esthétique romantique de la violence. Paris: P.U.F., 1998. 51


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PEZARD, Emilie. La vogue romantique de l‘horreur: roman noir et genre frénetique . In: Romantisme, n. 160, 2013/2, p. 41-51.

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Além da máscara: uma leitura de “A máscara da morte vermelha”, de Edgar Allan Poe Beyond the mask: a lecture of ―The masque of the red death‖, by Edgar Allan Poe Maria da Consolação Soranço Buzelin 19 ―Em conluios sutis a alma vamos usar, E vamos demolir muita forte armadura, Antes de contemplar a grande Criatura Cujo infernal desejo nos faz soluçar!‖ (BAUDELAIRE) Resumo: O objetivo desse artigo é investigar no conto supracitado, além do caráter de mistério, a aproximação relativa à época da retórica de Giovanni Boccacio em Decameron. Para tanto estaremos ancorados na obra A retórica da ficção, de Wayne C. Booth; O ponto de vista na ficção, de Norman Friedman e outros estudiosos da área. Palavras-chave: Mistério. Retórica. Ponto de vista. Ficção. Abstract: The objective of this work is to investigate in the story, beyond the mystery of nature, the relative approach to the rhetoric‘s time of Giovanni Boccaccio in Decameron. For that we will be anchored in the work The rhetoric of fiction by Wayne C. Booth; The point of view in fiction by Norman Friedman and other intellectuals of the area. Keywords: Mystery. Rhetoric. Point of view. Fiction.

Introdução Edgar Allan Poe em seus relatos fantásticos e de terror é capaz de ao mesmo tempo em que narra situações que ocorrem na vida cotidiana, transformá-las, e com isso, por meio do suspense, desestabilizar a mente do leitor. Enquanto percorre os meandros da trama, a sinuosidade dos temores se acentua e expõem ao mesmo tempo, reflexões que levam a compreender muito mais que o simples terror e mistério existente na narrativa. Para nossa análise foi escolhido o conto ―A máscara da morte vermelha‖, e como proposto em nosso resumo, às possíveis semelhanças com a obra Decameron, de Giovanni Boccaccio. Ao confiar nas personagens que compõem a narrativa somos levados a detectar a verossimilhança encontrada em Decameron e ―A máscara da morte vermelha‖ além de perceber, que ela faz parte de uma estrutura histórica reforçando as influências advindas de partes mais antigas da literatura ocidental. 19

Mestre em Teoria da Literatura pelo Centro Universitário Campos de Andrade UNIANDRADE. 53


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Essa opção se mostra interessante principalmente pelo cunho histórico da obra de Boccaccio, usado com maestria por Poe, ao descrever personagens envoltos em mistério e em um ambiente gótico de tensão e de mistério. De Boccaccio a Poe: Giovanni Boccaccio, escritor italiano, escreveu os contos de Decameron entre 1348 e 1353. Os contos são divididos em dez jornadas com dez histórias em cada uma delas. Os narradores das histórias são jovens que se refugiam em um castelo, em Florença, para fugir da devastação da peste que atingiu a Europa, e ali passam a narrar suas histórias. Edgar Allan Poe, escritor estadunidense, escreveu ―A máscara da morte vermelha‖ em 1842. Escritor que mereceu muitas alcunhas de tristezas e desgraças transformou-se em símbolo do terror mundial. O conto que vamos analisar está reunido a vários outros do mesmo teor no volume: Contos de Imaginação e mistério. Como em Decameron o enredo do conto também se passa em um castelo, provavelmente da Idade Média, pois também traz a peste como tema. A protagonista, o príncipe Próspero, um rei tirano, reúne em sua abadia damas e fidalgos de sua corte, imaginando assim estarem protegidos da epidemia de peste que assolava o seu reino. Dessa forma temos aqui o mesmo momento histórico dos dois contos: a época em que a peste assolava a Europa e a fuga para um castelo. Em Decameron o isolamento dos narradores no castelo dá-se em razão do medo da peste negra. Em ―A máscara da morte vermelha‖ a fuga e o confinamento na abadia, assim como o medo são características da narrativa. O estranhamento que é estabelecido diante do desconhecido, de não saber o que as espera, leva as personagens da narrativa a buscar o real por trás do sobrenatural que as assombra. Veremos como esse medo é manifestado em ―A máscara da morte vermelha‖, mais adiante, ao analisarmos a narrativa. A divergência entre Poe e Boccaccio é a forma como é tratado o tema da peste. Em Boccaccio alguns contos também giram em torno da morte, porém, em sua maioria são escritos para elevar a mulher em um patamar até antes não visto na literatura, já que sua obra é considerada o marco do realismo, rompendo com a literatura medieval. Boccaccio termina seu proêmio com a seguinte frase: As já referidas mulheres, que estas novelas lerem, poderão obter prazer e útil conselho das coisas, reconfortantes que as narrativas mostram. (...) Se forem 54


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte obtidos sem aborrecimentos (e apraza a Deus que assim ocorra), aquelas mulheres rendam graças ao Amor, que, por me libertarem dos próprios laços, permitiu que eu atendesse aos prazeres dela. (BOCCACCIO, 1970, p. 11)

Do real ao irreal: Além da semelhança histórica com Decameron, a escolha de ―A máscara da morte vermelha‖ se faz pertinente pelo caráter de comunicação de mistério empregado no conto. Com a descrição de um ambiente lúgubre, Poe apresenta uma narrativa de medo e suspense. O conto inicia-se no momento que a peste assola um país, o qual não é especificado o nome. O príncipe Próspero assim que vê os seus domínios ameaçados, reúne alguns nobres em sua abadia julgando que poderá vencer a peste em sua fortificação, enquanto a população é exterminada fora dos muros da abadia. Partindo de uma realidade (o advindo da peste), Poe constrói uma narrativa de suspense e terror. Para estruturar essa forma de abordagem citamos Wayne C. Booth: Um dos processos mais obviamente artificiais do contador de histórias é o truque de passar além da superfície da acção, de modo a obter uma visão fidedigna do que vai na mente e coração do personagem. Seja qual for nossa idéia de modo natural de contar uma história, não podemos deixar de notar o artifício, quando o autor nos diz aquilo que na chamada vida real, ninguém poderia saber. (BOOTH, 1980, p. 22)

Em ―A máscara da morte vermelha‖, Poe estrutura a sua narrativa ao apresentar a fuga de um príncipe, da peste, que assola seu país. Começa dessa forma a compor a ficção além da superfície da realidade De acordo com Juan José Saer, em seu ensaio sobre o conceito da ficção: ―(...). Podemos afirmar que a verdade não é necessariamente o contrário da ficção e que, quando optamos pela prática da ficção não o fazemos com o propósito turvo de tergiversar a verdade‖ (SAER, 2012, s/p). O limiar entre o medo, o real e a ficção se mesclam em um cerne oscilante que vai se desenrolando até o desfecho fantástico da narrativa. Dessa forma Poe estabelece um pacto com o leitor para que juntos possam testemunhar o final trágico de suas personagens. Na primeira parte, o narrador traça um perfil psicológico e moral desse príncipe e desses nobres que alheios a tudo se escondem da própria morte dentro de uma fortificação. Dessa forma o medo se torna fator primordial da vida daquelas pessoas. Frente ao desconhecido da moléstia que assola o país reforçam a sua fraqueza se isolando. 55


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Howard Phillip Lovecraft, escritor estadunidense aponta o desconhecido como a melhor maneira de proporcionar o medo: ―A emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido‖ (LOVECRAFT, 1987, p. 1). Poe, por sua vez, explora medos mais contundentes, os quais se refletem em nosso processo psicológico. Seus contos trazem uma forte descarga de emoções diante do sobrenatural e desconhecido levando ao leitor à proximidade de seus próprios medos. Ao usar a proposta de mecanismos dos contos curtos, Poe proporciona ao leitor uma leitura ininterrupta de efeito acentuado e duradouro. Sobre esse aspecto, relembramos Ricardo Piglia em seu ensaio sobre formas breves em algumas de suas teses. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias. Segunda tese: o conto clássico (Poe e Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2 (...). A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário. O efeito surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície. (PIGLIA, 2004, p. 89- 90)

Assim temos em ―A máscara da morte vermelha‖ a história 1 em que são apresentados as personagens que fogem da peste que assolava o país. Fato esse real na Europa, na Idade Média e do qual Poe lança mão para construir a sua história. Logo no início do conto o narrador onisciente apresenta o motivo da reclusão dos nobres na abadia: ―A ‗Morte Vermelha‘ devastava havia muito tempo o país. Nenhuma pestilência jamais fora tão fatal, ou tão hedionda‖ (POE, 2012, p. 143). Após descrever os sintomas que acometiam as pessoas infectadas por tal moléstia o narrador continua: ―(...) A abadia estava amplamente aprovisionada. Com tais precauções, os cortesãos podiam assim desafiar o contágio. O mundo exterior que tomasse conta de si mesmo (...)‖ (Ibid). A seguir temos a história 2, o início da ficção, quando são apresentadas as personagens. Foi próximo ao final do quinto ou sexto mês de sua reclusão, e enquanto a pestilência assolava com o auge da fúria do outro lado, que o príncipe Próspero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras da magnificência mais extraordinária. (POE, 2012, p. 144)

Na apresentação do baile, a resistência perante o desconhecido até o 56


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elemento surpresa na perturbadora aparição desvenda o horror da narrativa: Mas agora havia doze badaladas a soar no sino do relógio; (...). E assim, também, aconteceu talvez de, antes que os últimos ecos do último toque houvessem mergulhado completamente no silêncio, haver inúmeros indivíduos na multidão que lentamente se deram conta da presença de uma figura mascarada que não chamara a atenção de um único indivíduo antes. (Ibid., p. 147)

Nesse parágrafo, conforme expõe Lovecraft sobre o medo, é introduzido por Poe a catarse diante do inusitado. Nas badaladas do relógio que marca a meia noite, o suspense inseri o leitor na atmosfera de mistério que está por vir. O narrador enfatiza esse mistério: E tendo o rumor dessa nova presença se disseminado aos sussurros pelos salões, enfim surgiu em toda comitiva um burburinho, ou murmúrio, expressando desaprovação e surpresa- e depois, finalmente, terror, horror e aversão. (Ibid., p, 147)

Ao usar as expressões: sussurros, burburinho, murmúrio, o narrador introduz o desconhecido, antecipando o ―terror, aversão e horror‖ que acontecerão mais adiante. O Clímax do conto é atingido com a aparição do visitante alheio: A figura era alta e descarnada, e amortalhada da cabeça aos pés nas roupagens do túmulo. A máscara que ocultava as feições era feita de modo tão próximo a se assemelhar ao semblante de um cadáver enrijecido que um escrutínio mais detido teria tido dificuldade em detectar o embuste. (POE, 2012, p. 147)

Até aqui somos levados a acreditar que tudo não passa de uma farsa. Estamos pactuados com o narrador em acreditar na história que está nos contando e só descobriremos se há ou não embuste seguindo a narrativa. A partir da presença desse elemento estanho, que ultrapassa a convicção das personagens pela farsa, aumenta o estranhamento da narrativa. Nessa incerteza o conto chega ao seu final quando o incrédulo príncipe tomba mortalmente ferido pela aparição: ―Houve um grito agudo – e a adaga tombou cintilando sobre o tapete cor de sable, no qual, instantaneamente depois disso, caiu prostrado em morte o príncipe Próspero‖ (Ibid., p. 148). Após a incredulidade os convivas descobrem com horror que a máscara não era ocupada por nenhum ser concreto.

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Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 (...) e agora era reconhecida a presença da morte vermelha (...). E, um a um, tombaram os festivos convivas nos salões orvalhados de sangue de sua festa, e morreram um a um na posição de desespero em que tombaram. (Ibid., p. 150) A maestria narrativa de ―A máscara da morte vermelha‖, fazem de Poe o grande ícone do medo, suspense e terror, que perduram até os nossos dias.

Considerações finais A fronteira entre a arte, a realidade e ficção traspassa o conto ―A máscara da morte vermelha‖. Durante nossa leitura e análise, ao comparar o conto supracitado, com Decameron, em seu sentido histórico, foi possível perceber de como o estilo literário de uma obra escrita no século XIV alcançou de forma contundente o conto de Poe, escrito no século XIX. Essa condição é percebida nos detalhes temporais presentes nas duas obras. Em seu ensaio sobre ―O ponto de vista na ficção‖, Norman Frideman afirma: O ponto de vista vem se tornando uma das distinções críticas mais úteis disponíveis hoje ao estudioso da ficção (...). A arte da literatura por oposição às outras artes, é, em virtude de seu médium verbal a um só tempo amaldiçoada e abençoada com uma capacidade fatal de falar. (FRIEDMAN, 2002, p. 167168)

Observamos esse conceito de Friedman na descrição minuciosa sobre a abadia, nos trajes das personagens e no relato do que acontece no baile de máscaras. Por meio das palavras, tais aparatos são como pinceladas artísticas construídas habilmente pelo autor. Para a literatura, como arte, o ponto de vista na ficção faz parte de um todo absoluto. Como leitores, somos conduzidos pelas artimanhas do escritor pelo uso da palavra e da descrição do ambiente que faz com que essas palavras ultrapassem todo o limite do texto. Na forma estilística do texto, nas suas certezas e incertezas, e, nas minúcias da escrita, o leitor mais atento vai construindo o seu próprio texto. ―A máscara da morte vermelha‖, não é apenas um conto de suspense e terror. Situa-se entre a narrativa real e a ficção. Nesse construto o destino das personagens se encontra no entrelaçamento de suas convicções, suas farsas e o encontro da dura realidade que se lhes apresenta. Diante da morte súbita que selou o destino das personagens nos questionamos se o narrador nos mostrou isso, pouco a pouco, ao delinear a 58


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angústia das mortes fora dos muros da abadia, a incerteza encoberta no fausto da festa e o caos diante do inevitável: a morte. Cabe a nós, leitores, refletir e recriar as nossas personagens, e nas entrelinhas deixadas na narrativa, juntos, chegar a novas indagações que irão nortear essa história de acordo com o nosso ponto de vista. Bibliografia BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo. Martin Claret, 2011. BOCCACCIO, G. Decameron. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Abril Cultural, 1970. BOOTH, W. C. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa, Portugal, 1980. FRIEDMAN, N. O ponto de vista na ficção. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, n. 53. São Paulo, 2002, p. 166-182. LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987. PIGLIA, R. Formas breves. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. POE, E. A. A máscara da morte vermelha. In Contos de imaginação e terror. Tradução de Cássio de Arantes Leite. São Paulo: Torsesilhas, 2012, p. 143-150. SAER, J. J. O conceito de ficção. Revista FronteiraZ, n. 8. São Paulo, 2012 Tradução de Luís Eduardo Wexell Machado. s/p.

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Objetos insólitos e assombrados: da concretude prosaica à maldição Unusual and haunted objects: from prosaic concreteness to curse Marisa Martins Gama-Khalil20 Resumo: Nos estudos literários, são infrequentes os trabalhos que investigam as projeções dos objetos na literatura e essa carência de pesquisas provavelmente pode ser atribuída à significação habitual que as pessoas delegam às coisas, como elementos simplesmente acessórios que povoam o espaço em que vivem. No entanto, nem sempre a literatura projeta esteticamente os objetos de forma subalterna; alguns autores evidenciam, por meio da polissemia literária, o quanto as coisas que fazem parte do nosso ambiente podem ter enorme influência na formação de identidades individuais e culturais. No caso da literatura fantástica, muitas vezes os objetos são o foco da ambiência insólita e/ou de terror na trama. Portanto, o objetivo deste artigo é evidenciar, a partir de alguns contos, essa hipótese, como em ―A Vênus de Ille‖, de Prosper Mérimée; ―A mão do macaco‖, de W.W. Jacobs; e ―Os barcos suicidas‖, de Horácio Quiroga. Palavras-chave: Literatura fantástica; objetos; medo. Abstract: In literary studies, works that investigate the projections of objects in the literature are infrequent, and this lack of research can probably be attributed to the usual meaning that people attribute to things as simply accessory elements that populate the space in which they live. However, literature does not always project aesthetically objects subalternly; some authors evidence, through literary polysemy, how much the things that are part of our environment can have enormous influence on the formation of individual and cultural identities. In the case of fantastic literature, objects are often the focus of the unusual ambience and/or terror in the plot. Therefore, the purpose of this article is to evidence, from a few short stories, this hypothesis, as in ―The Venus of Ille‖, by Prosper Mérimée; "The Monkey's Hand", by W. W. Jacobs; and "The suicidal boats", by Horácio Quiroga. Keywords: Fantastic literature; objects; fear. Mundo substantivo do Homem, mundo adjetivo das coisas. (BARTHES, 2009, p. 31)

A ideia central do projeto que abarca o presente artigo ancora-se nas seguintes palavras do escritor e ensaísta Italo Calvino (1990, p. 47), em Seis propostas para o próximo milênio: ―a partir do momento em que um objeto comparece numa descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força especial, torna-se como um polo de um campo magnético, o nó de uma rede 20

Doutora em Estudos Literários pela UNESP; pós-doutorado pela Universidade de Coimbra/CAPES; professora da Universidade Federal de Uberlândia, atuando no Curso de Letras, no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários e no PROFLETRAS; coordenadora do GT/ANPOLL Vertente do Insólito Ficcional; líder do Grupo de Pesquisa em Espacialidades Artísticas/CNPq; bolsista Produtividade em Pesquisa/CNPq. 61


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de correlações invisíveis‖. Calvino insere essa afirmação, no capítulo intitulado ―Rapidez‖, logo após argumentar sobre a importância de um objeto para o enredamento da antiga lenda de Carlos Magno. Conta a referida lenda que esse imperador amava tanto a sua esposa, a ponto de ordenar que, após a morte dela, seu corpo fosse embalsamado e o caixão depositado em seu quarto. O arcebispo Turpino, desconfiado de que a paixão macabra fosse fruto de algum feitiço ou maldição, examinou o cadáver e acabou encontrando um anel embaixo da língua do cadáver; depois o retirou de lá e guardou-o consigo; contudo a partir desse momento a paixão do imperador passa a ser dirigida a Turpino. Este, sem saber mais o que fazer, atira o anel ao lago e o imperador apaixona-se por esse espaço, nunca mais se afastando de suas margens. Italo Calvino nos explica que há dois liames importantes ao encadeamento dos vários acontecimentos dessa narrativa, sendo um deles o liame verbal, relacionado à palavra amor/paixão e responsável pelas várias formas de atração; e o outro, o narrativo propriamente dito, que é o anel, o qual estabelece uma relação lógica de causa e efeito entre os acontecimentos que ocorrem num ritmo veloz ao longo do enredo. Por esse motivo, Calvino argumenta sobre a potencialidade de um objeto, o anel, nessa lenda, a ponto de ele funcionar como protagonista da trama. As duas narrativas consideradas como marcos do romance moderno ocidental colocam em evidência a relação dos sujeitos com os objetos. No clássico romance de Miguel de Cervantes, objetos prosaicos ganham vida pela lente imaginosa e fantástica de Dom Quixote, por isso o que é uma simples bacia de barbeiro ou um mero moinho transformam-se no elmo de Mambrino ou em gigante, redimensionando-se a funcionalidade das coisas. No romance de Daniel Defoe, os objetos constituem a subjetividade de Robinson Crusoé, seja aqueles que ele salva do naufrágio, seja os que ele fabrica. As narrativas literárias operam uma reinvenção no tocante à funcionalidade dos objetos, fazendo-nos repensar o seu lugar no nosso cotidiano, onde eles são considerados especialmente a partir de sua função ou de seu estatuto decorativo. Vivemos rodeados por objetos e muitas vezes não nos damos conta de que eles, situados externamente a nós, constituem a nossa subjetividade. Os objetos que temos em nossas casas falam muito daquilo que somos e da nossa compreensão de mundo. Nessa linha de entendimento, ―[n]ão se pode falar de processo de subjetivação sem referirse a dobras, mas não se pode falar de dobras sem referir-se ao objetual‖ (DOMÈNECH; TIRADO; GÓMEZ, 2001, p. 128). Nossa subjetividade, composta por dobras, é, pois, construída igualmente por meio de exterioridades, isto 62


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é, o ―fora‖ nos constitui; portanto o que imaginamos compor o nosso interior tem sua forte e imprescindível relação com o exterior, com os objetos que povoam o espaço habitado por nós. Para o filósofo Emmanuel Levinas, os objetos devem ser entendidos por intermédio da relação de fruição que mantemos com eles: ―As coisas, na fruição, não se afundam na finalidade técnica que as organiza em sistema. Desenham-se num meio onde as vamos buscar‖ (LEVINAS, 2014, p. 122). Venho defendendo em meus atuais estudos que os objetos articulam duas perspectivas: a denotativa e a conotativa (GAMA-KHALIL, 2015, p. 177). O uso do objeto, sua funcionalidade, situa-o no plano da perspectiva denotativa, já a sua fruição abarcaria uma função acusativa, que o situaria numa perspectiva conotativa, estando esta relacionada à assunção da participação dos objetos na constituição da subjetividade dos sujeitos. Quando trato da função acusativa, relaciono à compreensão que o poeta Francis Ponge enunciou sobre as coisas: A relação do homem com o objecto não é de todo apenas de posse ou de uso. Não, seria demasiado simples. É muito pior. Os objetos estão fora da alma, é certo; contudo eles são também os fusíveis do nosso juízo. Trata-se de uma relação no acusativo. (PONGE, 1996, p. 133)

A relação no acusativo, em meu ponto de vista, segue a lógica do caso acusativo do latim, a de complementação, ou seja, os objetos atuam na complementação do homem. Nessa linha de entendimento, o homem é afetado pelos objetos, como o próprio Ponge (1996, p. 133) observa - ―A nossa alma é transitiva. Precisa de um objeto que a afecte como seu complemento directo‖ -, sendo essa relação de afecção fundamental para o cruzamento entre dois polos aparentemente separados (objeto e sujeito). Cabe à arte desvelar as conexões algumas vezes invisíveis entre sujeitos e objetos. Anniela Jaffé trata da relação da pintura e dos pintores com a revelação das facetas invisíveis dos objetos: Os pintores começaram a pensar a respeito do ―objeto mágico‖ e da ―alma secreta‖ das coisas. O pintor italiano Carlos Carrà escreveu: ―São as coisas comuns que nos revelam as formas simples através das quais podemos alcançar esta condição mais elevada e significativa do ser, onde se encontra todo o esplendor da arte.‖ Diz Paul Klee: ―O objeto expande-se além dos limites da sua aparência pelo conhecimento que temos de que ele significa mais do que o que vemos exteriormente, com os nossos olhos.‖ E escreve Jean Bazaine: ―Um objeto desperta o nosso amor simplesmente porque parece ser portador de forças maiores que ele mesmo.‖ (JAFFÉ, 2008, p. 342) 63


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Essa alma secreta das coisas também é observada pelo pintor italiano Giorgio de Chirico, que apontava dois aspectos do objeto: o comum, que é o visível, isto é, pode ser visto por todos seus observadores; e o aspecto fantasmagórico ou metafísico, visto apenas por alguns observadores mais atentos e em momentos de clarividência ou de concentração metafísica. O aspecto visível pode ser entendido como a perspectiva denotativa das coisas e o aspecto fantasmagórico relacionado à perspectiva conotativa. De acordo com Chirico: ―Uma obra de arte deve exprimir algo que não apareça na sua forma visível‖ (Apud JAFFÉ, 2008, p. 343). E, nessa mesma direção, o pintor alemão Franz Marc afirma que uma das metas da arte é revelar a face sobrenatural das coisas. Uma conexão que pode ser realizada acerca do aspecto fantasmagórico dos objetos é com a noção de ―objetos selvagens‖, desenvolvida por Michel de Certeau e Luce Giard, porque, para esses autores, os pintores e escritores conseguem ver e revelar esses poderes locais, os espíritos dos objetos. Quanto mais antigos, os objetos revelarão experiências humanas e incorporarão um espírito, ou uma alma secreta, se relacionarmos, nesse caso, à leitura de Jaffé. Na visão de Certeau e Giard (1996, p. 192-3), os objetos atuam como atores na cidade ―não por causa do que fazem ou dizem, mas porque sua estranheza é muda e sua existência subtraída da atualidade‖. Mudos, muitas vezes eles nos dizem o inesperado e nos fazem ver o que não é aparentemente visível. Essa face mágica (CALVINO, 1990) dos objetos, sua alma secreta (JAFFÉ, 2008), sua face selvagem (CERTEAU; GIARD, 1996) ou sua perspectiva conotativa (GAMA-KHALIL, 2015) é potencializada pela literatura, especialmente por aquela que tem o horror ou o terror como sua base, que é o caso dos contos aqui selecionados como objetos de análise. Em ―A Vênus de Ille‖, conto escrito pelo escritor francês Prosper Merimée, uma estátua é o objeto que se localiza no centro da narrativa, protagonizando-a de certa forma. A estátua fora encontrada nas cercanias de Ille pelo antiquário Monsieur de Peyrehoade, que a assentara no jardim de sua residência. A história começa com a chegada do narrador, um arqueólogo, que havia ido ao local para examinar a preciosidade descoberta. Eventos inexplicáveis e insólitos, relatados ao narrador ou presenciados por ele, ocorrem na narrativa, todos eles atrelados à enigmática e assustadora estátua. O primeiro deles foi o fato de a estátua ter sido responsável pela gravíssima fratura da perna de um dos trabalhadores que a estavam desenterrando do lugar em que fora encontrada. Além disso, há o sinistro e inquietante olhar da estátua: ―Ela fixa na gente os grandes olhos brancos ... Parece que está encarando a gente. É, ao olhar para ela a gente baixa os olhos‖ (MÉRIMÉE, 2004, p. 243). Por último, o assassinato do 64


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filho de Monsieur de Peyrehoade atribuído, por muitos, à estátua. O narrador chega à cidadezinha de Ille dias antes do casamento do filho de Monsieur de Peyrehoade. Ao saber que o casamento seria numa sextafeira, o narrador ironiza, dizendo que esse dia da semana é considerado por muitos como um dia nefasto e não propício a uma cerimônia de casamento, entretanto, Monsieur de Peyrehoade rebate com outra ironia, afirmando que seria um dia excelente por ser o dia dedicado à Vênus. Um pouco antes do casamento, o noivo retira o anel de brilhantes do seu dedo para poder jogar uma partida de péla e o insere no dedo da Vênus, esquecendo-se dele depois do jogo. Após o casamento, durante a festa, o insólito e o terrível começam a irromper. O noivo procura o narrador e, aterrorizado, revela que a estátua não quer devolver-lhe o anel. Mais tarde barulhos estrondosos pela casa e depois o corpo morto do noivo é encontrado em seu leito nupcial. Após o início das investigações, o procurador conta ao narrador a versão insana da noiva sobre o episódio: e viu, diz, seu marido ajoelhado junto à cama, a cabeça na altura do travesseiro, entre os braços de uma espécie de gigante esverdeado que o abraçava com força. Ela disse, e me repetiu vinte vezes, pobre mulher! ... disse que a reconheceu ... adivinhe! A Vênus de bronze, a estátua de Monsieur Peyrehorade ... Desde que essa Vênus foi achada aqui, todo mundo sonha com ela. (MÉRIMÉE, 2004, p. 265)

O procurador busca argumentos coerentes e racionais para desfazer o mistério que circunda a estranha morte do rapaz. O narrador é outra personagem que do início ao fim da narrativa serve como um equilíbrio aos deslocamentos provocados pela ambientação de mistério e terror instaurada pela simples presença da estátua. Sua posição de arqueólogo já lhe confere uma sobriedade comum aos representantes da ciência. Para Filipe Furtado (1980), o narrador cético é adequado à narrativa fantástica; ele serve para facilitar a identificação do leitor com o material narrado, balanceando a ambiguidade dos possíveis fenômenos metaempíricos. No conto de Mérimée, é esse narrador cético quem relatará ao leitor, no fim da trama, em uma nota de rodapé, que, após a morte de Monsieur Peyrehorade, a sua esposa mandou derreter a estátua e transformá-la em um sino. E a nota termina com uma afirmação que reaviva a ambiguidade e a ambivalência da história: ―Desde que o sino bate em Ille, os vinhedos gelaram duas vezes‖ (MÉRIMÉE, 2004, p. 266). A narrativa, portanto, encerra-se em plena afirmação da ambiguidade, colocando em suspenso a certeza das personagens e dos possíveis leitores. Para Jacques Finné (1980), há, na narrativa fantástica, dois vetores desencadeadores de uma trama pautada no 65


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mistério: o vetor da tensão, responsável pela irrupção dos mistérios, que tem como efeito a perturbação do leitor, e o vetor de distensão, o qual anula a tensão. No caso da narrativa de Mérimée, a trama centrada ao redor da enigmática e terrífica estátua, tem o vetor de distensão bem fraco; ela baseia-se quase que exclusivamente no vetor da tensão e encerra-se com ele, fazendo culminar o clima de mistério. Na narrativa, dois objetos são responsáveis pela irrupção do terror, a estátua, que se investe da função de noiva; e o anel, objeto responsável pela figuração de noiva assumida pela estátua. Os dois objetos perdem o seu valor funcional prosaico e assumem um valor conotativo, desvelando a alma secreta de ambos; eles se investem na figuração como objetos selvagens. Todo o clima de terror é desencadeado pelo jogo entre os dois referidos objetos; as personagens humanas que povoam a trama prestam-se à figuração necessária para que a inquietante história da estátua-noiva se desenrole. Refiro-me, nesse caso, ao terror e não ao horror gerado na narrativa em análise, com base nas distinções realizadas por Ann Radcliffe, por Robert Hume e por Stephen King. Ann Radcliffe compreende o terror como a forma mais refinada do trabalho com o medo, na qual o uso de variadas indeterminações é fundamental para as incertezas que possivelmente afligem o leitor: Terror e Horror são opostos diametrais, o primeiro expande a alma e desperta as faculdades para um grau mais alto da vida; o outro contrai, congela e quase as aniquila. Concebo que nem Shakespeare nem Milton em suas ficções, nem o Sr. Burke em seu raciocínio, jamais consideraram positivamente o horror como uma fonte do sublime, entretanto, todos eles concordam que o terror é uma forma elevada; e, onde reside a grande diferença entre o terror e o horror, senão na incerteza e obscuridade, que acompanham o primeiro, respeitando o mal temido? (RADCLIFFE apud SÁ, 2017, p. 89)

Robert Hume concorda com a distinção forjada por Radcliffe, todavia adiciona ―à discussão a ideia de que o romance de horror enfatizaria elementos físicos e corporais, ao passo que o romance de terror atuaria de modo mais sugestivo e psicológico‖ (SÁ, 2017, p. 90). Stephen King (2003; 2006) distingue três níveis de trabalho com o medo. O nível mais apurado seria o terror, desencadeado por intermédio de sugestões e não de forma direta, cabendo ao leitor inferir aquilo que a narrativa não diz, mas apenas sugere. O horror situa-se em um nível abaixo do terror e se caracteriza por demonstrar o sobrenatural de uma forma mais direta. Na repulsão, o último nível, tem-se o trabalho estético com cenas e/ou seres perturbadores e repugnantes, possivelmente provocando a repulsa e o nojo do leitor. Com 66


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base nesses pressupostos, podemos dizer que a narrativa de Merimée situase entre o terror e o horror, uma vez que no enredamento não há indício concreto de o assassinato do noivo ter sido provocado pela estátua, ainda que haja o depoimento da noiva, sugerindo que a estátua tenha sido de fato a assassina. Outro conto que se situa no âmbito do terror mais refinado e sugerido é ―A mão do macaco‖, de W.W. Jacobs, tanto que ele é citado por King para exemplificar a narrativa aterrorizante, pois nesse conto ―a imaginação é estimulada por si só. O leitor faz o trabalho sozinho‖ (KING, 2003, p. 30). Temos, então, o horror psicológico, o terror, conforme veremos a seguir, e tudo como efeito advindo de um objeto maligno: um amuleto indiano, a mão/pata mumificada de um macaco. A clássica história do escritor inglês W.W. Jacobs começa com uma cena que retrata o cotidiano da família White: em uma noite, pai e filho jogam xadrez enquanto a mãe faz tricô junto a uma lareira, até que são interrompidos pela visita de um antigo amigo, o Primeiro-Sargento Morris. Eles falam sobre a vida de viagens e aventuras de Morris por terras estranhas e exóticas até que o Sr. White pede ao amigo para retornar à história que um dia deixara suspensa, a da mão de um macaco. Relutante, Morris revela que há nesse amuleto um encantamento forjado por um velho faquir; um homem muito santo. Ele queria mostrar que o destino rege a vida das pessoas e que aqueles que interferem nele correm o risco de se arrepender amargamente. De acordo com o encantamento, três pessoas diferentes podem ter, cada uma, três desejos atendidos. (JACOBS, 2005, p. 16).

Inquirido por Herbert White, Morris revela que, sim, já fizera seus três pedidos e que obtivera a mão do macaco de uma pessoa que havia alcançado seus três desejos, tendo sido o último a morte. Revela que ainda carrega a mão do macaco consigo talvez por um capricho, tira-a do bolso e resolve jogá-la no fogo da lareira, mas o Sr. White é mais rápido, alcança-a antes que ela comece a queimar, depositando-a em seu bolso. Eles jantam e, após o Sr. Morris ir embora, pai, mãe e filho retornam ao assunto do objeto encantado, predominando na conversa o tom de ironia. O filho, Herbert White, atiça no pai a possibilidade de pronunciarem desejos e até de ficarem ricos. Sr. White revisita rapidamente a sua vida e chega à conclusão de que tem tudo aquilo que quer, mas o filho traz à memória a liquidação da hipoteca da casa, a qual tinha o valor de duzentas libras, incitando o pai a desejar essa quantia, o que acontece, pois o pai naquele momento deseja o 67


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referido valor. O pai, aterrorizado, revela que, enquanto ele fazia o pedido, a mão do macaco mexera-se: ―Quando fiz o pedido, ela se contorceu na minha mão como uma cobra‖ (JACOBS, 2005, p. 18). Mas, no fundo nenhum dos três acreditava no poder encantado do objeto, instigando-os a fazer piadas, como a que Herbert dirigiu a seu pai antes de este ir deitar-se: ―Espero que encontre o dinheiro em um pacote bem no meio da cama‖ (JACOBS, 2005, p. 18). Na manhã seguinte, o filho vai trabalhar e algumas horas depois um homem chega à casa dos White trazendo a trágica notícia de que Herbert White morrera no trabalho, preso à maquinaria com a qual lidava, e acrescenta que a firma, em agradecimento aos serviços prestados por ele, envia uma quantia aos seus pais: duzentas libras. Sendo coincidência ou não, o fato é que de certa forma o desejo se cumprira, comprovando o poder encantado do maligno objeto. Após dez dias do enterro do filho, a mãe lembra-se dos outros dois desejos ainda não formulados e força seu marido a fazer o segundo pedido: ―Eu peço que o meu filho viva novamente‖ (JACOBS, 2005, p. 23). Naquela mesma noite, os dois ouvem batidas na porta de entrada da casa. A mulher vai abri-la com a certeza absoluta de que seu filho estaria lá do outro lado da porta. Aterrorizado, o pai formula um terceiro pedido antes que a porta se abra: o de que a coisa do outro lado da porta suma e, quando ela se abre, a mulher só encontra um vento frio que percorre toda a casa. Justificando a classificação dessa narrativa como terror, Stephen King argumenta: É a desagradável especulação que vem à mente quando começam as batidas na porta, na história da pata do macaco, e a velha triste e adoentada corre para atendê-la. Não há nada além do vento quando ela finalmente abre a porta ... mas a nossa mente especula o que poderia ter estado lá se seu marido tivesse demorado um pouco mais para fazer aquele terceiro pedido? (KING, 2003, p. 29-30 - grifos do autor)

O que de fato aconteceu? O recebimento das duzentas libras foi uma coincidência ou teria sido mesmo a realização do primeiro pedido? As batidas na porta seriam consequências físicas da força do vento sobre ela ou seria, na verdade, o filho renascido a bater à porta de sua casa à procura de aconchego, ou seja, seria a concretização do segundo pedido? O terceiro pedido se cumprira mesmo? A assombrosa coisa desaparecera e deixara somente o vento em seu lugar? Restam ao leitor, como defende King, apenas especulações em torno dos vazios deixados na trama e das incertezas geradas por estes? O medo que avulta no enredo é de uma alta densidade psicológica e por isso pode-se caracterizar esse conto como uma exemplar 68


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narrativa de terror. A mão do macaco, assim como a estátua da Vênus de Ille, deixa sugerida sua alma secreta, seu valor conotativo, desvelando-se como um objeto selvagem. Tanto no caso de ―A Vênus de Ille‖ como no de ―A mão de macaco‖, há o trabalho intenso com a hesitação. Nesse sentido, se os dois contos forem lidos pela lente da teorização de Todorov (2004), a qual tem a perspectiva genológica, pode-se afirmar que eles são exemplos do fantástico puro, na medida em que não há, de forma explícita e decisiva, uma explicação lógica para os fatos insólitos ocorridos; pelo contrário, o leitor pode optar por uma explicação racional ou por uma explicação com base no sobrenatural. Em ―Os barcos suicidas‖ (2010), encontramos também objetos que oscilam entre uma concretude prosaica e uma configuração sobrenatural, amaldiçoada. O conto, escrito pelo escritor uruguaio Horacio Quiroga, põe em evidência o objeto como centro da sua trama desde o seu título, causando possivelmente estranhamento no leitor, na medida em que o adjetivo conferido a barcos faz irromper certa contradição. O substantivo ―barcos‖ se refere convencionalmente à ideia de objeto, coisa inanimada; e o adjetivo a ele relacionado, ―suicidas‖, evoca uma ação animada, humana, o que suscita a sensação de paradoxo. O título, assim, anuncia ao leitor atento que haverá na trama uma ambientação que romperá com o discurso pautado numa lógica realista e que se pautará pelo insólito, por aquilo que não sói acontecer. O gesto do suicídio não remete só a uma ação humana, mas a um ato disfórico e negativo na ótica de uma sociedade que prima pela vida, portanto, o citado adjetivo sugere uma ação sombria e, por que não dizer, terrífica. Lembremo-nos de que Horacio Quiroga é considerado o grande discípulo de Edgar Allan Poe na América Latina, em virtude de sua predileção pela escrita de contos macabros e de terror, e a atmosfera lançada pelo título remete sugestivamente a uma estética sombria. As primeiras palavras do conto reiteram a atmosfera soturna do título: ―Na verdade, existem poucas coisas mais terríveis que encontrar no mar um navio abandonado‖ (QUIROGA, 2010, p. 63). Tais palavras funcionam como um mote para o enredamento do conto, uma vez que, no restante da narrativa, o narrador procurará mostrar ao leitor a verdade dessa afirmação inicial, justificando com argumentos e especialmente figurativizando-a com histórias de barcos abandonados. Os motivos que põem esses barcos à deriva são desde os mais racionais, como as tempestades e os incêndios, aos mais sobrenaturais, como os que o narrador passa a relatar no quarto parágrafo do conto. O primeiro caso relatado é o do Maria Margarida, o qual foi encontrado por um vapor, dois dias depois de ter zarpado, completamente abandonado de gente. O que havia no barco eram indícios 69


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de ações humanas que estavam sendo realizadas minutos antes de o barco ser encontrado: As camisetas dos marinheiros secavam na proa. O fogão ainda estava aceso. Uma máquina de costura tinha a agulha suspensa sobre a costura, como se houvesse sido deixada um momento antes. Não havia o menor sinal de luta nem de pânico, tudo estava na mais perfeita ordem. E não havia ninguém. O que aconteceu? (QUIROGA, 2010, p. 64)

Ao relatar esse fato, o narrador relembra o momento em que ouviu essa história do Maria Margarida: ele estava em um convés de um navio e era noite. Faço aqui a observação de o período da noite ser bem propício à narração de histórias de assombramento e de maldição. As mulheres que ouviram a história conjecturaram a possibilidade de serem águias o motivo do desaparecimento dos marinheiros do Maria Margarida, contudo os outros ouvintes advertiram sobre a impossibilidade de águias levarem uma tripulação inteira. O narrador informa que, dentre os ouvintes, havia um homem, sério e de poucas palavras, que se mostra entendedor de fatos sobrenaturais envolvendo embarcações. Instado a falar, o homem passa a narrar o que sabe sobre o assunto e, nesse momento, uma narrativa se encaixa à narrativa primeira, na qual ele se coloca como narrador personagem, ou seja, como um narrador que viveu os acontecimentos sobre os quais irá relatar, conferindo, pois, um tom maior de fidedignidade à trama narrada. O homem narra que viajava em um barco à vela quando sua tripulação avista uma escuna abandonada. Não havia ninguém a bordo; para cuidar da embarcação o capitão decide deixar oito de seus homens na escuna; contudo, no dia seguinte esses oito novos tripulantes também haviam desaparecido da escuna. Decide-se que mais homens devem ir à escuna ―preencher o vazio‖ (QUIROGA, 2010, p. 65) e o homem narrador da história em questão estava entre eles. Conta que, depois da sesta, um a um os homens foram pulando ao mar, como que tragados por um sonambulismo doentio. Um pulava e os outros ficavam olhando a princípio surpresos, mas logo depois voltavam a um estado de apatia absoluta. E assim foi um por um, até que o narrador fica sozinho, todavia não pula, sobrando como sobrevivente para narrar o inexplicável. Os ouvintes de sua narrativa o indagam se ele não havia sentido nada; ele explica que sentiu um grande tédio e não sabe o porquê não seguiu os outros, porém dá uma razão ao desarrazoado: ―em vez de esgotar-me numa defesa angustiosa e a qualquer preço contra o que sentia, como devem ter feito todos os outros [...], sem 70


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perceber, simplesmente aceitei aquela morte hipnótica, como se já estivesse anulado‖ (QUIROGA, 2010, p. 67 - grifos do autor citado). Mais uma vez, como no caso dos outros contos, temos objetos que se alçam à condição de protagonistas da narrativa, dada a importância que assumem no enredamento dos fatos. O teórico francês Michel Viegnes (2006) argumenta sobre o valor dos objetos na construção da ficção literária e, indagado sobre a presença de uma alma nos objetos inanimados, ele assevera que, quer se trate de um objeto benéfico ou de um objeto amaldiçoado, distorcendo e degenerando a realidade, o objeto sempre será o suporte de uma projeção do próprio sujeito, o qual investe no objeto seus desejos, seus sonhos ou seus pavores e seus medos. Nessa linha de compreensão, o inexplicável dos objetos seria invocado por aquilo que há de inexplicável no próprio sujeito. A estátua com vida, a mão mumificada de um macaco ou os barcos suicidas representariam, portanto, a face terrífica, complexa e inexplicável dos sujeitos que se iludem ao pensar que possuem esses objetos. Afinal quem possui e quem é possuído? Bibliografia BARTHES, Roland. Ensaios críticos. Trad. António Massano; Isabel Pascoal. Lisboa: Edições 70, 2009. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce. Os fantasmas da cidade. In: CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano – 2. Morar, cozinhar. Trad. Ephraim Alves; Lúcia Orth. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. DOMÈNECH, Michel; TIRADO, Francisco; GÓMEZ, Lucía. A dobra: psicologia e subjetivação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org. e Trad.). Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. FINNÉ, Jacques. La littérature fantastique: essai sur l‘oeganisation surnaturelle. Bruxelles: Editions de l‘Université de Bruxelles, 1980. FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. GAMA-KHALIL, Marisa Martins. J.J. Veiga e seus turbulentos objetos: espaços de inquietação e de medo. In: GARCÍA, Flavio; PINTO, Marcelo de Oliveira; MICHELLI, Regina. Vertentes do fantástico no Brasil: tendências da ficção e da crítica. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015, p. 173-87. JACOBS, W.W.. A mão do macaco. Trad. Rubem Fonseca. In: MANGUEL, Alberto (Org.). Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 13-24. 71


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JAFFÉ, Aniela. O simbolismo nas artes plásticas. In: JUNG, Carl G. (Org.). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2008, p. 309-67. KING, Stephen. Dança macabra. Trad. Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. KING, Stephen. Danse macabre. London: Hodder & Stoughton, 2006. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2014. MÉRIMÉE, Prosper. A Vênus de Ille. Trad. Rosa Freire D‘Aguiar. In: CALVINO, Italo (Org.). Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 241-66. PONGE, Francis. Alguns poemas (Antologia poética). Org. e trad. Manuel Gusmão. Lisboa: Cotovia, 1996. QUIROGA, Horacio. Os barcos suicidas. In: QUIROGA, Horacio. Contos de amor, de loucura e de morte. São Paulo: Abril, 2010, p. 63-7. SÁ, Daniel Serravalle de. Walter Hugo Khouri e José Mojica Marins: terror e horror no cinema brasileiro. ROSSI, Cido; ZANINI, Claudio. Vertigo: vertentes do gótico no cinema. Porto Alegre: UFCSPA, 2017. (prelo) TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. VIEGNES, Michel. Le fantastique. Paris: Éditions Flammarion, 2006.

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La belle dame sans merci: a beleza e o horror em contos de Álvaro do Carvalhal La belle dame sans merci: beauty and horror in Álvaro do Carvalhal‘s short stories Carlos Francisco de Morais21 Resumo: O objetivo deste artigo é investigar como a experiência do horror em contos de Álvaro do Carvalhal está vinculada à obsessão pela beleza feminina, que marca vários de seus protagonistas. Dessa forma, aqui se explorará a influência, na literatura do autor português identificado com o Ultrarromantismo, do tema gótico da ―Belle dame sans merci‖, tratado literariamente, entre outros, por John Keats, grande nome do Romantismo inglês. Palavras-chave: Literatura de horror; conto português, Álvaro do Carvalhal, Os canibais; La belle dame sans merci. Abstract: This paper aims to study how, in Álvaro do Carvalhal‘s short stories, the experience of horror is linked to an obsession with feminine beauty on the part of many of their protagonists. In this regard, here we will look into the influence, in the writings of the Portuguese ultraromantic, of the ―Belle dame sans merci‖ gothic theme, in the vein it was previously treated, among others, by John Keats, one of the great names in English Romanticism. Keywords: Horror literature; Portuguese short stories; Álvaro do Carvalhal; Os canibais; La belle dame sans merci.

As temáticas do fantástico, do sobrenatural, do horror e do terror não são estranhas à Literatura Portuguesa, embora não se possa afirmar que lhe pertençam ao veio principal, como registra Maria Cristina Batalha ao examinar o assunto: Na escrita portuguesa, a experiência do mistério e a presença de almas do outro mundo manifesta-se muito cedo. (...) Entretanto, o certo é que, na série literária portuguesa, a literatura fantástica marca timidamente a sua presença (...) As razões, segundo Maria do Nascimento Oliveira, são a forte censura e o cerceamento de traduções de obras estrangeiras com seu potencial subversivo, a presença, no país, de um movimento romântico específico, tardio em relação ao resto da Europa, o que acarretou uma certa precariedade na assimilação de alguns valores e conteúdos que foram amplamente utilizados pelos românticos franceses, alemães e ingleses. (BATALHA, 2011, p. 158)

Essa situação marginal da literatura de cunho fantástico em Portugal também é marca daquela especificamente voltada para o horror. Ao

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Doutor em Literatura Portuguesa (USP), docente do curso de Letras e do ProfLetras Mestrado Profissional em Letras da UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro. 73


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comentar a tardia penetração da literatura de temas góticos ou negros, como identifica essa produção, Maria Leonor Machado de Sousa também explica as razões para a escassa produção nessa linha ao longo do século XIX, ao contrário do que acontecia em países como Inglaterra, França e Alemanha: a profunda agitação da vida nacional nas três primeiras décadas do século XIX continuou a impedir um amplo intercâmbio com a cultura de além-Pirineus e foi causa de que recebêssemos simultaneamente Pré-Romantismo e Romantismo. O romântico português conheceu, sem transição, a literatura nocturna e sepulcral e a de evocações góticas: a meditação, reforçada por um temperamento saudosista, levou a encarar os tempos passados de um modo especialmente ―romântico‖, tendendo mais para um negro melancólico e suavemente triste do que para os lances arrepiantes da escola alemã, por exemplo. Por estas razões, quase não existem entre nós novelas de aventuras tenebrosas (SOUSA, 1979, p. 12-13).

Nesse panorama, de maneira semelhante ao gênero, Álvaro do Carvalhal (1844-1868), também não pertence ao veio principal dos autores canônicos de Portugal. Tendo vivido tão pouco, seus contos, sua principal produção, só apareceriam postumamente, publicados por seu amigo J. Simões Dias. Em que pese tais condições, sua escrita se destaca pela originalidade de linguagem e temas e pela ampla penetração do macabro e do insólito como recursos do terror, como aponta Maria Leonor Sousa: Mas a verdade é que Carvalhal escreve ―contos‖ (...) onde trabalha conscientemente todos os requintes da escola, desde o sobrenatural até ao erótico (...) e que com certeza pertencem ao que de mais representativo existe na literatura portuguesa. (...) Creio não errar ao dizer que Carvalhal não desdenhou qualquer elemento da literatura de terror: o manuscrito (Os canibais), o espectro (O punhal de Rosaura, A febre do jogo), o artifício fatal do embuçado (Honra antiga), a obsessão lúgubre (J. Moreno), o erotismo doentio (A vestal). Até o motivo do juramento de fidelidade para além da morte é utilizado. Em Os canibais, trata-se de uma afirmação impensada, que a heroína não tem a coragem de assumir (...). (SOUSA, 2011, p. 61)

Acabam de ser nomeados os seis contos que compõem o livro Contos, de 1868. Como se vê, uma de suas marcas é a variedade temática, traço que também se confirma em termos de espaço (há contos passados em Lisboa e no interior de Portugal, outros em Itália e Espanha ou em lugar indeterminado), assim como há aqueles narrados em 1ª. Pessoa e outros em 3ª.; há aqueles passados em ambientes aristocráticos, enquanto outros criam uma cena burguesa ou popular. Em que pese essa constância da variedade, o foco do presente estudo é a presença de uma extraordinária marca de 74


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unidade entre as narrativas de Contos. Referimo-nos ao fato de que é constante nessas narrativas a utilização da beleza como motivação originária das experiências de terror. Excetuado o do primeiro conto do livro, ―A febre do jogo‖, todos os protagonistas dos demais contos se envolvem com mulheres dotadas de rara beleza. Em ―J. Moreno‖, assim é descrita Petra, a jovem espanhola por quem o personagem-título se apaixona à primeira vista: Esbelta, bem torneada, fresca como uma açucena, leve e travessa como uma fantasia airosa, Petra irradiava luz, animação e júbilos em torno de si. Ninguém melhor do que ela, nem com mais subtileza de donaire, rojava a seda abundante dum vestido, ou se envolvia na estofa transparente do seu pequeno xale. (CARVALHAL, 1990, p. 59)

Em ―Honra antiga‖, chama-se Petronilha a jovem plebeia que atrairá os olhos do ―conde novo‖, filho da família mais aristocrática da região; sua descrição é feita nesses termos de absoluta admiração: Petronilha (...) viçava como uma flor que fresca desabrocha. Todas as pompas da juvenilidade se abrilhantavam nela. Também mais requestada nunca foi beleza campesina. Nem se viu moça linda tão esquiva e avessa ao santo matrimônio. (Idem, p. 95).

Florentina, a prima e paixão de L. Gundar, protagonista de ―A vestal‖ já é chamada de ―encanto‖ e ―milagre‖ na primeira vez em que ele, depois de muito tempo passado da convivência na infância, a encontra como moça feita; eis o relato que ele faz desse reencontro a seu amigo Fausto: não era menor a curiosidade de ver minha prima, linda e afectuosa criança, que, debulhada em lágrimas, me vira partir, e que devia desabotoar agora em todos os atractivos graciosos com que a mulher aponta na juventude. (...) De repente (...) que ilusão! que encanto! – Viste?... – Um milagre. Era ela. – Tua prima? – Minha prima. As tranças loiras, o jaspe da cútis, o alvor das vestes lançavam não sei que resplendores vermelhos. Eram como uma auréola... (Idem, p. 125126)

A primeira visão que o leitor tem de Rosaura já o alerta de que também em ―O punhal de Rosaura‖ a beleza da mulher terá um papel de destaque. Nem a tristeza que a personagem está sentindo no início do conto é capaz de ensombrecer sua formosura, comparável aos exemplos poéticos e escultóricos da era clássica, aos olhos de Everardo, o narrador-protagonista 75


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que é também seu amante: Descansava o corpo mórbido nos coxins elásticos dum rico divã e o estofo macio e flácido de seu amplo roupão não furtava a meus olhos nenhuma das airosas curvas, nenhum dos peregrinos contornos dum talhe que logo recordava a voluptuária negligência da ideal formosura grega. (Idem, p. 177).

Por fim, a força da beleza de Margarida, principal personagem feminina de ―Os canibais‖ e grande paixão do Visconde de Aveleda, pode ser medida por meio da observação de seus efeitos sobre os homens: Margarida é uma das mulheres fatais, que atraem irresistivelmente. Solteira, homem que por desgraça a fitou quer ser um Romeu; casada, não lhe faltariam Werthers que rebentassem o crânio para lhe merecer uma saudade. No cortejo brilhante não faltava desde o primeiro titular, ao brasileiro sem títulos, coisa rara em sublunares regiões. Ela era o ídolo acatado de todos os crentes. (Idem, p. 209).

―La beauté n‘est que la promesse du bonheur‖, escreveu Stendhal em L‘Amour, de 1822. Em contos em que, volta e meia, se revela a formação literária de seus narradores, por meio de frequentes alusões a Camões, Shakespeare e Byron, não será de estranhar que estejam presentes personagens que comungam da esperança de que a beleza feminil seja uma promessa de venturas, como acontece em bibliotecas inteiras de obras em prosa e verso influenciadas pelo motivo da idealização da mulher. Entretanto, ainda que não deva ser lido fora do contexto do Romantismo, as marcas mais eloquentes de estilo de Álvaro do Carvalhal se identificam com o horror, o insólito e o macabro. Dessa forma, nos contos de que aqui tratamos, do encontro marcado com a beleza pelos personagens não advirá para eles a felicidade prometida por Stendhal, mas, inexoravelmente, a experiência do terrível. Dados os limites de extensão deste estudo, registraremos de maneira sumária a presença dessa temática em três dos contos mencionados acima, reservando um exame mais aproximado para dois deles , ―A vestal!‖ e ―Os canibais‖. Em ―J. Moreno‖, o personagem-título, depois de uma vida de glórias mundanas e devassidão, lembra-se de Petra, sua amada da juventude, para quem prometera voltar depois de uma ausência forçada; quebrada a promessa, ele gastou a vida antes de se lembrar da bela moça como sua última esperança de felicidade, afinal, ―A mulher é o único milagroso bálsamo para as incuráveis amarguras‖ (CARVALHAL, 1990, p. 79). Ao 76


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reencontrá-la, entretanto, e consumar o amor guardado e esquecido por tantos anos, a morte, terror dos amantes, será seu prêmio. Já em ―Honra antiga‖, o narrador, que se considera um filho do pecado, assim se refere aos perigos da beleza da mulher: ―E qual é o anjo que não tem na esplêndida madeixa o selo duma passageira mácula?‖ (CARVALHAL, 1990, p. 94). Ele está aludindo a Petronilha, sua mãe, cuja beleza levou um conde a desprezar os preconceitos e as hierarquias sociais, apenas para ser, em pagamento disso, assassinado pelo pai da moça, que em seguida também a matou; por esses crimes, o avô do narrador terminou na forca. Em ―O punhal de Rosaura‖, Everardo levará a bela jovem ao suicídio, ao desprezar-lhe os atrativos, uma vez saciado seu apetite inicial. Anos depois, porém, se encantará por sua beleza novamente ao pensar que ela retornou da morte. Na verdade, se trata de um irmão dela, sequioso de vingança, e Everardo morrerá pelo mesmo punhal antes usado pela moça. O clímax de ―A vestal!‖ é um dos mais aterrorizantes da contística de Carvalhal. Diante dos olhos do leitor, as ações se desenvolvem mediante recurso a alguns dos principais elementos de construção da literatura de horror, tais quais as descreve Maria Leonor Machado de Sousa em seu livro O “horror” na literatura portuguesa: ―traições, vinganças‖ (p. 45), ―a escolha de ambientes nocturnos para cenário de factos sinistros‖ (p. 58), os ―enredos misteriosos, tenebrosos, emaranhados (...) as sedes de sangue‖ (p. 59), a ―obsessão pelo estranho, pela loucura, pela morte‖ (p. 74), a ―tortura moral‖ (p. 75), ―quartos fechados‖ (p. 80), ―infâmias mais adivinhadas que contadas‖ (p. 80). No referido conto, tais elementos se apresentam para fazer levar ao desenlace as desconfianças de L. Gundar, que julga estar sendo traído pela mulher, Florentina, a prima que reencontrara depois de muito tempo. Sem ter nenhum tipo de prova material, mas pleno da certeza de sua condição de marido enganado, ele tenta resolver o mistério escondendo-se numa noite no quarto dela; enquanto espera, febril, insone, faminto, ―numa crispação de nervos‖ (Carvalhal, 1990, p. 172) tortura-se profundamente ao vislumbrar na cama o corpo desnudo da mulher, o que o abala em suas convicções de que ela merece morrer. O que o retira de seu alheamento é a emergência do horror, numa forma absolutamente imprevista tanto para ele quanto para o leitor: Senão quando, Florentina começa a espreguiçar-se com voluptuosidade asfixiante. Descerram-se as pálpebras e mostram uns olhos velados, que logo derramam faúlas incendiárias. – Níger! – murmura com voz singular, tremente, horrível.

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Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 O cão ergue-se de galope e, de um gracioso pulo, acerca-se dela. Poisa-lhe nos ombros finos de cetim as patas calejadas e mergulha nos seios transparentes o gélido focinho. L. Gundar esfrega os olhos apressados. Estava feito a sonhos de energúmeno e equilibrava-se na esperança de que podia ser aquilo um mau sonho. – Oh não, não! Quis fugir. Impossível. Ouviu-se um grito. A porta estala, quebrando-se. E o espectro da loucura aparece de súbito. (CARVALHAL, 1990, p. 173-174)

Sim, o amante de Florentina era Níger, seu cão, o mesmo que sempre se portou de maneira agressiva com L. Gundar, mas que agora, surpreendido em pleno ato libidinoso, vem, matreiramente, arrastar-se ―humilde aos pés de seu dono‖ (idem, p. 174), apenas para ser atingido por um tiro fatal. Revelada em seu bestialismo, Florentina também pede a morte, mas o marido prefere matar a si mesmo, tão insuportável lhe tinha sido descobrir a verdade. Em vez de arrancar-se os olhos, eis seu ―crânio esmigalhado por uma bala‖ (idem, p. 174). Como L. Gundar chegou a essa situação? Levado pela mão da beleza. Na introdução de seu estudo sobre as relações da literatura de Carvalhal com o gênero fantástico, Maria do Nascimento Oliveira Carneiro discorre sobre como, nesse tipo de obra, as figuras e seres conotados com o mal resguardam sua verdadeira identidade sob uma máscara de beleza: Figuras de um outro mundo, movendo-se na estereotipia cotidiana, elas podem, contudo, apresentar-se como criaturas sedutoras ao revestir-se de extraordinária beleza que, usada como uma máscara, consegue sabiamente e, por momentos, encobrir, aos olhos das personagens seduzidas, os inquietantes sinais de monstruosidade. (OLIVEIRA, 1992, p. 7)

Acreditar devotamente nas promessas da beleza foi a perdição de L. Gundar. No dia de seu reencontro com ela, princípio de um relacionamento que os levou ao casamento, o primeiro abraço que recebeu dela já lhe sinalizou a penetração numa existência de bonanças: ―Que abraço, que longo abraço e que séculos de ventura, vividos num instante!‖ (Carvalhal, 1990, p. 127). Com pouco tempo de convivência, ele já considera a companhia dela ―este paraíso terreal‖ (idem, p. 132); a confissão dos sentimentos dela basta para que a devoção dele assuma contornos de culto religioso, com direito a mencionar (num sincretismo sui generis que justificará o título do conto) Vesta, a deusa virgem, protetora dos lares e das famílias na religião antiga romana. Mas que veneno de Circe faz transformar de tal forma o pensamento de 78


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L. Gundar? Não podem ser os dons intelectuais ou os da vida prática, já que ele mesmo assim descreve as limitações dela nesses campos num momento pertencente à época em que a cortejava: ―não compreendia a estranha timidez que uma rapariga de medíocre cultura, de nenhuma experiência e de superior ingenuidade me despertava‖ (idem, p. 129). Resta, portanto, o que o exame dos efeitos causados por Florentina sobre todas as personagens com quem convive no conto testemunha: sua beleza avassaladora. Ninguém está mais sob sua influência do que Gundar, como ele revela neste trecho em que a beleza e a sensualidade da moça manifestam-se, aos olhos dele, integradas, de tal modo que se afastam até mesmo de seu retrato anterior como vestal: Florentina não era dessas donzelinhas das baladas e dos romances, etéreas e impalpáveis, que se alimentam com uma lágrima, que se confortam com um suspiro, e que pouco mais duram do que essa lágrima ou esse suspiro. Protuberantes seios, docemente arredondados; largas espáduas; dilatados quadris; confluía nela, enfim, todo o luxo dos frutificantes dons que fazia respeitada a virgem lacedemónia. Virtuosa era sem dúvida. Mas, à perspectiva de um tálamo de esposa não resiste a enérgica severidade de feminino estoicismo, nem resistira a sacra devoção duma vestal piedosa. (CARVALHAL, 1990, p. 153)

Mesmo próximo ao final do enredo, quando a espreita cheio da intenção de matá-la, é a beleza de Florentina que se ressalta aos olhos dele, levando-o a compará-la aos exemplos de beleza feminina mais bem conseguidos da arte clássica e renascentista: Dir-la-iam, à primeira vista, estátua de alabastro, gloriosa fantasia dum grande artista, Proserpina dum Fídias iluminado. Porém, melhor considerada, facilmente se conhecia que fora surpreendida de olhos cerrados e marmorizada naquela divina postura por algum travesso pensamento que a amortecia na morbidez dum desejo. Como a Vénus de Praxíteles, como as imagens da ardente imaginação de Ticiano, como a Vénus do nosso adorado Luís de Camões, Florentina ostentava aos olhos do marido preciosa nudez, finamente escultural. (Idem, p. 173)

Para o deleite dos sentidos de L. Gundar, a beleza de Florentina é uma realidade evidente; para seu terror, ela é apenas a máscara que encobre os apetites bestiais da mulher, que, afinal, foi fiel apenas ao seu primeiro amor: quando Gundar, que a conhecera menina, a reencontrou no ardor da juventude, Níger já era o companheiro inseparável dela. Para seu terrível azar, estando cego pelo resplendor da plástica da moça, Gundar não foi capaz de perceber a tempo que esse vínculo se estendia aos direitos de 79


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alcova que eram concedidos ao cão também. O motivo da mulher bela que leva o homem por ela apaixonado à perdição é típico na literatura de muitas épocas e línguas, apesar de geralmente ser identificado por meio de duas expressões em francês: ―La femme fatale‖ e ―La belle dame sans merci‖. Uma visada sumária em direção apenas à época antiga da cultura ocidental revela uma profusão de personagens reais e mitológicas que se enquadram nesse arquétipo: Lilith, Eva, Afrodite, Circe, Medeia, Clitemnestra, Helena de Tróia, Cleópatra, Messalina, Dalila, Jezebel e Salomé. Mais próximo à época de Carvalhal, a representação mais emblemática dessa figura aparece num poema de John Keats (1795-1821, protótipo do poeta do Romantismo e um dos principais cultivadores do gótico na literatura inglesa), justamente intitulado ―La Belle Dame sans merci‖. Em seu estudo sobre uma pintura do também inglês Arthur Hughes inspirada pelo poema de Keats, do qual tomou emprestado igualmente o título, Robyn Cooper registra não só o tratamento que o tema da mulher fatal recebe no referido poema, mas também como a bela dama sem piedade era uma das representações da mulher mais frequentes na arte do século XIX: Keats‘s ballad tells the story of a knight‘s enthralment by a ‗faery child‘ which condemns him to wander forever, lost to the world. First published in 1820 the poem is an early example of the 19th century fascination with the femme fatale which was to culminate in a veritable invasion of European culture by fatal women in the last two decades of the 19th century – in literature, the visual arts, painting, fashion, design and advertising. There were evil women from history, the Bible, mythology, folklore and literature – such as Cleopatra, Lucrezia Borgia, Lilith, Salome and Lamia. There were witches and sorceresses, like the Medusa, Circe, Nimüe and Morgan-le-Fay. And there were demonic creatures, half-human, half-animal, like the sphinx, sirens, mermaids, harpies and vampires. Cruel, lustful and evil these femmes fatales lured men to their doom and destruction through their beauty, enchantments and erotic power. (COOPER, 1986)

A fascinação a que se refere Cooper é corroborada pelo fato de que, apenas no campo de influência da escola Pré-Rafaelita inglesa, à qual Arthur Hughes estava associado, apresentam-se, além da dele, obras pictóricas sobre ―La Belle Dame sans merci‖ da autoria de Dante Gabriel Rossetti, Franck Dicksee, John Melhuish Strudwick, John William Waterhouse, Frank Cadogan Cowper e Henry Meynell. Como se observa na relação estabelecida entre Florentina e L. Gundar em ―A vestal!‖, os contos de Álvaro do Carvalhal comungam dessa fascinação com o motivo da mulher bela, mas perigosa. Em ―Os canibais‖, o mais conhecido deles, tanto que foi levado às telas em 1988 pelo mais 80


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famoso cineasta português, Manoel de Oliveira, o padrão se mantém. Nele, a perdição do Visconde de Aveleda é a beleza de Margarida. O Visconde de Aveleda tem um segredo, um ―mistério‖ (Carvalhal, 1990, p. 216), como ele mesmo diz. Para protegê-lo, evita ao máximo circular no meio aristocrático a que pertence; quando é obrigado a isso, indo a um baile de gala, tem um comportamento excêntrico, conversando muito pouco, mostrando de si apenas sua melancolia e sua estranha forma de caminhar, com passos mecânicos e que produzem um ruído muito forte mesmo nos ambientes atapetados da alta sociedade. Envolto nessa aura de mistério, que o torna uma exceção na sociedade, o Visconde será tentado a sair dela pelas formosuras de Margarida. As amarguras refletidas no rosto do Visconde, se saberá quando do desenlace do conto, estão intimamente ligadas ao aspecto mecânico de seus movimentos e ao barulho fora do comum que ele faz ao andar. Adiante nestas páginas, se esclarecerá a natureza dessas particularidades do personagem. Em mais um sentido, o Visconde se comprova exceção: de todos os pretendentes de Margarida, é o único a atrair o interesse dela, para imensa frustração dos demais, principalmente D. João, um dos jovens elegantes daquele círculo social. Mais que interesse: Margarida vai ao baile exclusivamente para ver o Visconde e passa significativa parte do conto devotada a conquistá-lo e demovê-lo de seu apego à solidão, o que, afinal, conseguirá, casando-se com ele. A arma de sedução de Margarida é sua beleza, que se converterá numa promessa de felicidade a qual o Visconde, para seu pesar, não terá forças para resistir. Páginas atrás, quando sumariávamos os tipos de beleza feminina presentes nos contos de Carvalhal, tivemos ocasião de registrar como o narrador de ―Os canibais‖ dizia que os apaixonados de Margarida se arriscavam, diante de seus múltiplos atrativos, a se tornar novos Romeus ou Werthers; agora, registramos o trecho em que ela verbaliza as promessas de felicidade a que o Visconde tenta resistir, na longa conversa íntima que ambos tem durante o baile (no total, são trinta e cinco falas deles, distribuídas em três páginas): ―— De que servem, continua ela, de que servem certos enigmas, que inventa quando me fala, como se quisesse martirizar-me? Depende de mim a sua felicidade? Venha recebê-la, que é toda sua‖ (Carvalhal, 1990, p. 216). Essas palavras da moça tornam impossível a resistência do Visconde, fazendo-o esquecer do que ele mesmo observara momentos antes: o perigo da beleza de Margarida. Veja-se como, em dado momento do diálogo entre eles, as próprias palavras de Aveleda mostram que sua consciência lhe 81


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estava dizendo que a jovem era uma manifestação da ―Belle Dame sans merci‖ da tradição literária: ―(...) para que me dá veneno nessa mão formosa e branca como a inocência? — Eu?! — V. Ex.ª. Vejo-lhe o mel nos lábios e o travor do absinto, consinta-me que o diga, na voz angélica, no gesto, na formosura‖ (idem, p. 214-215). A referência à bebida conhecida como a ―fada verde‖, considerada, devido a seu poder alucinógeno, como musa do Simbolismo, Surrealismo, Impressionismo, Pós-Impressionismo, Modernismo e Cubismo, tem o condão de presentificar no texto sua má fama, como aponta Jane Ciabattari: (...) this was an aperitif capable of creating blackouts, pass-outs, hallucinations and bizarre behaviour. (...) Contemporaries cited absinthe as shortening the lives of Baudelaire, Jarry and poets Verlaine and Alfred de Musset, among others. It may even have precipitated Vincent Van Gogh cutting off his ear. Blamed for causing psychosis, even murder, by 1915 absinthe was banned in France, Switzerland, the US and most of Europe. (CIABATTARI, 2014)

Como se a mistura de mel e absinto de sua metáfora se tivesse tornado uma realidade para ele, o Visconde, contra seu melhor conselho, sucumbe à tentação, ao ouvir de Margarida a promessa suprema: a de que ela se casaria com ele em qualquer circunstância, mesmo se as bodas tivessem de ser celebradas no cemitério: ―Seja o leito nupcial no cemitério, que lá mesmo o aceito, lá mesmo o apeteço‖ (Carvalhal, 1990, p. 221) Proféticas palavras. Sem demora, o casamento é contratado e realizado, assim como a festa de gala correspondente. Quando ela termina, à meianoite, Margarida se encaminha para seu quarto de núpcias com sua beleza intacta, assim como a antecipação dos prazeres prometidos pelo amor que nasceu dela; prazeres esses refletidos tanto no refinamento artístico do ambiente preparado para a consumação da felicidade do casal quanto na beleza da paisagem natural que o circunda e com ele se harmoniza: À meia-noite estava o salão deserto. E Margarida, derramando lágrimas de pudica... de inefável doçura, abraçou seu velho pai e seus irmãos, que logo se retiraram aos aposentos que lhes estavam preparados. Ao transpor o limiar do seu encantado aposento, Margarida estremeceu, dando com os olhos tímidos nos brancos cortinados de fina seda com grandes bordaduras de ouro puríssimo, que velavam o misterioso tálamo. Através das janelas abertas viu a Lua no céu, infalível em tais casos, e viu também a folhagem compacta do laranjal, rescendente ao sopro ligeiro da embalsamada viração. (CARVALHAL, 190, p. 226-227)

O Visconde não aguarda Margarida na cama, mas sentado numa poltrona. Segue-se então uma conversa em que será revelado o mistério do Visconde, 82


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abrindo espaço para a manifestação do horror. A beleza da moça levou o Visconde fugir da sua própria verdade e a se abandonar à ilusão de que poderia ser feliz no casamento, mas neste momento a realidade não pode mais ser negada. O que deveria ser a noite de núpcias do casal se torna, então, um verdadeiro desfile dos elementos que, a partir do estudo de Maria Leonor Sousa, já mencionamos como dos essenciais na literatura gótica ou de horror: os enredos misteriosos, tenebrosos, emaranhados, as sedes de sangue, as traições e vinganças, a obsessão pelo estranho, pela loucura e pela morte, o erotismo doentio, a tortura moral, os quartos fechados, as infâmias, a obsessão lúgubre, o erotismo doentio, o juramento de fidelidade, a escolha de ambientes noturnos para cenário de factos sinistros. O Visconde sempre soube ser impossível a consumação de seu amor por Margarida; só mesmo o encantamento obsessivo produzido nele pela beleza dela é que pode explicar seu desvio dessa certeza. Na tensa conversa que tem com ela, fechados no quarto à meia-noite, desenrola então o enredo misterioso de sua vida, revelando a causa de sua intensa tortura moral, nascida do desejo que expressa por Margarida mesmo sendo sabedor de que não há como realiza-lo: — Mas quem és, quem serás tu? — Vem perguntá-lo ao contacto do meu corpo inanimado e frio, como o de um defunto? Receias? (...) — Pois que és, desgraçado? — Uma estátua. (CARVALHAL, 1990, p. 239)

Ao registrar, páginas atrás, a entrada do Visconde no baile de gala em que se encontrou com Margarida pela primeira vez no conto, nos referimos à amargura que seu semblante expressava, a qual seria, posteriormente, suplantada pela esperança de felicidade que a beleza da moça inspirou nela. Agora, tal amargura alcança o nível do paroxismo, pois, na noite de núpcias, o Visconde não tem mais como disfarçar a origem dela: o fato de que é uma pessoa deformada, dotada apenas de um tronco e cabeça naturais, pois que seus membros superiores e inferiores são feitos de mármore, verdadeiras próteses avant la lettre; por isso o seu caminhar mecânico, o estrondo de seus passos e as luvas que jamais retirava, mesmo durante as refeições: Fez um movimento. Ressoaram estalos como de molas. Horror! Sobre a poltrona caiu um corpo mutilado, disforme, monstruoso. Pernas, braços, os pró83


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 prios dentes do visconde, brancos como formosos fios de pérolas, tombaram sobre os felpudos tapetes da Turquia, e perderam-se nas dobras de seu robe de chambre , que naturalmente se lhe desprendeu dos ombros. O infeliz era um fenômeno, um aborto estupendo, que em nossos dias valeria muito dinheiro a quem quisesse especular. Era ele poeta de mais para isso. (CARVALHAL, 1990, p. 240)

O movimento do Visconde a que se refere a passagem acima tinha sido feito por ele no afã de chamar Margarida para junto de si. Mesmo nessa hora, ele ainda a queria da mesma maneira. Mas a resposta dela pôs o ponto final nas promessas que ele vira nela: ―Margarida sentiu-se como petrificada. Mas, de repente, fulgurou-lhe a loucura nos olhos. Comprimiu com violência o coração, e, veloz como o pensamento, desapareceu por uma janela, desprendendo um grito agudo, dolorido, que se perdeu à distância‖ (idem, p. 240). Em ―Os canibais‖, a beleza única é a de Margarida, mas suas promessas são vazias; quando ela se recusa a cumprir o juramento de fidelidade eterna e se mata, preenche-se então o conto pelos sinais do horror pintado com as cores mais tétricas: o Visconde ―sopesara a queda de suas sonhadas aspirações‖ (idem, p. 240) e, desmontado de suas partes pétreas, rola suas parcas partes carnais na direção da lareira que há no quarto e lá arde, mas não sem antes que, por outra janela, irrompa no aposento o jovem D. João, tão loucamente apaixonado por Margarida que nutrira em segredo a decisão de impedir a consumação do casamento, mesmo que por meio do assassinato dos noivos. O rapaz vê os restos do Visconde a queimar e conclui que o vulto que vira se lançando janela afora era o da bela; desce então pela mesma árvore pela qual subira até o quarto, apenas para confirmar o que antecipara: lá embaixo está Margarida morta, o que o faz perdão a noção de si e do tempo por largas horas. O emaranhado enredo de horror não termina aí: no dia seguinte, o pai e os irmãos da noiva, dando por falta dela e do Visconde ali pelo horário do almoço, entram em seu quarto e não encontram ninguém, mas têm seu sentido do olfato despertado por aquilo que julgam ser cheiro de carne assada. Incontinentes, decidem saciar a fome com ela, apenas para descobrir-lhe um sabor insosso, viscoso e adocicado. Momentos depois, são atraídos pelo som de um tiro e pelo alvoroço dos criados, são conduzidos a uma cena dantesca: ao pé da árvore próxima ao quarto do casal, está Margarida morta e D. João agonizante do tiro que deu em seu próprio coração. Como é de se ver, a beleza de Margarida não originou apenas a perdição do Visconde, pois também a de D. João, que, como o primeiro, sonhou em ser feliz com ela tão somente para receber o sofrimento e a morte como paga. 84


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Assim como em ―A vestal!‖, também em ―Os canibais‖ a beleza e o horror estão inextricavelmente ligados: o encantamento que a formosura feminina promete é apenas a máscara da morte, revelada sempre por meio dos recursos góticos por excelência: a loucura, o crime, a traição, as trevas e a morte. Bibliografia BATALHA, Maria Cristina. Álvaro do Carvalhal: o que pode nos informar um ―autor menor‖? Itinerários, Araraquara, n. 33, p.157-170, jul./dez. 2011. CARVALHAL, Álvaro do. Contos. Lisboa: Relógio d‘Água, 1990. CARNEIRO, Maria do N. O. O fantástico nos contos de Álvaro do Carvalhal. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1992. CIABATTARI, Jane. Absinthe: How the Green Fairy became literature‘s drink. Disponível em http://www.bbc.com/culture/story/20140109-absinthe-a-literary-muse. Acesso em 15.04.2017. COOPER, Robyn. Arthur Hughes‘s La belle dame sans merci and the femme fatale. Art Bulletin of Victoria. Victoria, n. 27, 1986. Disponível em http://www.ngv.vic.gov.au/essay/arthur-hughess-la-belle-dame-sansmerci-and-the-femme-fatale/. Acesso em 10.04.2017. SOUSA, Maria L. M. de. O “horror” na literatura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979. STENDHAL. De l’amour. Paris: Garnier, 1906. Disponível em file:///C:/Users/WinUser.User/Downloads/De_l'amour_(%C3%89dition_rev ue_et_[...]Stendhal_(1783-1842)_bpt6k5550781f.pdf. Acesso em 10.04.2017.

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O Lugar Discursivo do Vampiro na Literatura The discursive place of the vampire in liretature Nilton Milanez 22 Jamille da Silva Santos 23 Resumo: Este artigo tem como objetivo verificar a construção do sujeito vampiro, suas transformações, relações sociais e estéticas, considerando um esquema genealógico a partir dos estudos de Michel Foucault. Portanto, voltamos o nosso olhar para o estudo de uma literatura específica do gênero. Delineamos como corpus três narrativas literárias: Drácula, de Bram Stoker; O vampiro, de J. Polidori e Carmilla, de S. Le Fanu. De maneira geral, investigaremos nessas obras recorrências da posição ocupada pelo personagem vampiro, como também evidenciaremos nessas recorrências uma construção corporal e psicológica desses seres que habitam o mundo das sombras. A fim de pensarmos as construções míticas e como elas se reatualizam na sociedade, tomaremos André Jolles como suporte. E para ambientarmos essas obras que se colocam em um entre lugar, entre a realidade e a fantasia, tomaremos a noção cunhada por Carpentier de real maravilhoso, mais especificamente aquela na qual a condição para existência de seres sobrenaturais está na crença. Também será articulada a noção de monstro, com base nos estudos de Foucault em Os Anormais, para demonstrar as facetas da anormalidade que o vampiro apresenta nas narrativas selecionadas como corpus. Palavras-chaves: vampiro, literatura, sujeito, monstro, Michel Foucault. Abstract: This article has the goal to verify the vampire construction as a subject, his transformations, social and aesthetics relations, considering a genealogical scheme from Michel Foucault studies. Therefore, we turn our view to the study of a specific gender literature. We outline as corpus three literary narratives: Drácula, by Bram Stoker; The vampire, by J. Polidori e Carmilla, de S. Le Fanu. In general, we investigate in those works the recurrence of the position placed by the personnage as a subject, as well we highlight within these recurrences a corporal and psychological construction of these beings who inhabit hte shadow world. In order to think over their mythical constructions and understando how they reword themselves in our Society, we will take André Jolles as support. Besides, to harden off these elements situated inbetween, between reality and fantasy, we will consider the notion coined by Carpentier, the marvelous real, most specifically that one for which the existence condition is based on belief concerning supernatural beings. Also, we will articulate the notion on monster through Michel Foucault studies in his work Abnormal, in order to demonstrate the facets of abnormality presented by the vampire in the selected narratives. Key-words: vampire, literature, subject, mosnter, Michel Foucault. 22

(UESB/LABEDISCO) Pós-doutor em Discurso, Corpo e Cinema pela Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Professor Pleno na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia em Análise do Discurso. Líder do LABEDISCO/CNPq – Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo. 23 (UFU/ GPEA/ LABEDISCO) Doutoranda pelo programa de Pós Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Mestre pelo programa de Pós graduação em Linguística pela Universidade Estadual do Sudoeste da Baia – UESB. Membro dos grupos de pesquisas; GPEA/CNPq e LABEDISCO/CNPq. 87


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Introdução Desde que se conhece a história da humanidade sempre houve a existência do bem e do mal, luz e trevas. É esse duelo de forças que mantém o equilíbrio do mundo e que é uma das possibilidades para a existência da civilização. Apesar de sabermos da importância desse duelo, não temos a menor intenção nesse artigo de definir o que é o bem ou mal, nem mesmo dizer que tal ação ou outra fazem parte de um lado específico, nem quais criaturas pertencem a qual lado, ou ainda se vampiros existem ou não, pois acreditamos que, segundo Alejo Carpentier (2009), - em sua noção de real maravilhoso, mais especificamente aquela na qual a condição para existência de seres sobrenaturais está na crença, - o autor afirma que só podem ser curados por santos aqueles que acreditam nos santos e em seus milagres. Essa mesma crença transportamos para o universo dos vampiros. Apenas saberão de sua existência ou não aqueles que neles acreditam. O que faremos é observar e apresentar, de forma breve, a historiografia de um único ser, que não nos cabe dizer se pertence ao bem ou ao mal, deixando isso a critério dos leitores. O ser que, aqui, nos interessa é o vampiro – ser mitológico que habita as profundezas da noite e que de lá emerge em nossa literatura, cada vez com maior frequência nesse mundo de letras e imagens que constroem e armazenam uma série memorial e histórica para todos nós sujeitos. Isso nos leva a perguntar: que sujeito é esse? Para discutir tal pergunta, buscaremos estabelecer um padrão para a construção desse sujeito. Assim sendo, utilizaremos os postulados de Michel Foucault para pensar quais condições de possibilidade fizeram com que o sujeito vampiro emergisse em nossa sociedade. Para tal busca, voltaremos os nossos olhares especialmente para uma gama de elementos que são recorrentes no universo literário. Pensando sobre a construção desse ser, que de forma regular vem tomando lugar na literatura, compreendemos que sua existência vem de longe e se confunde até mesmo com a existência dos seres humanos. Desde as civilizações mais remotas, ouvimos falar de alguma forma de aparições de vampiros ou de espécies que se alimentam de sangue de outros seres. No entanto, como nos afirma André Jolles (1930), o mito se constitui em uma forma, se estabelece e se reatualiza seguindo os anseios de uma determinada sociedade. Assim, o mesmo ocorre ao mito do vampiro como vamos poder observar.

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Vampiros e fio histórico Sabemos que as histórias de vampiros são há muito tempo propagadas pela tradição popular que as transmitem. Para podermos pensar em tais histórias, vamos tomá-las no âmbito de uma genealogia, segundo Foucault (2013), escavando no fundo das histórias para descobrir os estratos históricos em suas entranhas, procurando ―um fio histórico que funciona como uma regularidade‖ (MILANEZ, 2014, p.167). É esse fio que regularia os nós que interligam os acontecimentos em uma rede de memória. Observaremos, de forma breve, as construções genealógicas da história dos vampiros e como as emergências de tais discursos foram peças importantes nesse quebra-cabeça para chegarmos à construção de um sujeito vampiro. Iniciaremos nosso estudo genealógico por uma criatura de nome Lilith que, segundo os contos antigos, foi a primeira mulher de Adão, rejeitada por ele por não se submeter às suas vontades, enraivecendo-o e fazendo-o prometer se vingar de todos os seus filhos. Segundo Melton (1995), a Lilith para a mitologia hebraica era um ser possuidor de poderes mágicos, que se utilizou deles para amaldiçoar toda a dissidência de Adão. Acreditava-se que Lilith era um demônio feminino que se alimentava de corpos mortos e de crianças, sugando toda sua vitalidade. De acordo com Torrigo (2009), existiu na tradição muçulmana seres muito parecidos com Lilith, tais seres eram chamados de Ghouls, descritos como seres femininos que costumam habitar cemitérios violando tumbas para se alimentarem de corpos mortos e de crianças. Outra característica marcante desse ser é o fato de se transformarem em sua última alimentação, ou seja, os Ghouls se metamorfoseiam nos seres que foram mortos por eles, como crianças, mulheres, homens e outros. Continuando nosso estudo genealógico pela Grécia com toda sua mitologia rica em histórias sobrenaturais, é vasto o número de contos que relatam aparições de vampiros. Tendo em vista que, desde muito tempo, a volta do mundo dos mortos é algo conhecido, como também o poder do sangue como um materializador para a construção de rituais ligados ao mundo sobrenatural, a mitologia é vasta de casos assim, mas aquele que nos chama atenção entre tantos casos é o da Lâmia. Sua história é muito parecida coma de Lilith, uma espectro feminino voltado para sedução, que quando rejeitada se volta contra a humanidade, alimentando-se do sangue de crianças, descrita com características muito próximas às da Lilith. É claro que em uma cultura tão rica quanto a grega, Lamina não seria o único vampiro, de tal modo que, para Torrigo (2009), o vampiro grego mais conhecido é o Vrykolakas, um morto-vivo, pelo fato de se parecer como um 89


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vivo, de possuir a mesma aparência de quando estava vivo e, no entanto, já se encontrar morto. Possui o poder de entrar no corpo de um animal, ou se transformar em um, sendo que aqui temos as primeiras menções que vão ligar os vampiros com animais. Torrigo (2009) aponta a China como outro lugar no qual verificamos vários mitos de vampiros, tendo como principal figura Chiang-shih, que como os vampiros gregos, tinha a capacidade de se metamorfosear em animais, sendo que o de sua preferência é o lobo. Essa preferência faz aparecer, aqui, uma ligação entre os vampiros e os lobisomens, uma vez que o povo chinês acredita que os vampiros são lobisomens que morreram e que ressurgem como vampiros. Nessa linha, sem dúvida nenhuma, o lugar de maiores aparições de vampiros foi o leste europeu, o que nos leva a um questionamento de perspectiva foucaultiana: por que esse lugar e não outro? Assim, por muito tempo o leste europeu povoava o imaginário do lugar do não civilizado, o lugar das plantações das grandes fazendas em oposição à Europa, que se reconhecia como um espaço do civilizado no âmbito dos grandes centros e da cultura. Dessa forma, o leste era colocado como o lugar do outro, o lugar do excluído, no qual toda a sorte de coisas poderia acontecer. Consequentemente, é lá também o lugar das superstições das crendices populares, o lugar de grandes aberturas de circulação para esses mitos. Tais mitos contribuíram para o surgimento do vampiro propriamente dito. Para Argel e Neto (2008), o vampiro propriamente como o conhecemos hoje se consolidou no leste europeu por volta do século XVII, por meio da circulação de casos de mortandade de formas estranhas, onde os mortos eram encontrados sem uma única gota de sangue em seus corpos. Assim, tais mortes eram atribuídas ao vampirismo que ganha força total em sua circulação. Torrigo (2009) chama atenção para a existência de uma infinidade desses seres mudando apenas a forma de chamá-los. Entre os nomes mais conhecido estão: Kukuthi, Kukudhi, Lugat, VorKolaka, Obour, e outros mais. Apesar de possuírem nomes diferentes, eram sempre descritos de formas parecidas como mortos-vivos, ou seja, seres que se levantam do túmulo após sua morte, mas que possuem a mesma aparência de quando estavam vivos, e assombram a população a sua volta se alimentando de sangue geralmente de pessoas jovens. Saídas do mundo dos mitos, a oralidade das histórias de vampiros é transpostas para o universo da literatura, o que contribuiu para um outro modo de circulação e de recepção dessas histórias e, de certa forma, garantindo uma maior permanência das mesmas pela palavra impressa. 90


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Apesar de se tratarem de veículos de circulação bastante heterogêneos em suas regras, podemos fazer uma aproximação de tais histórias considerando a possibilidade da transcrição de enunciados distintos: [...] o que pertence propriamente a uma formação discursiva e o que permite delimitar o grupo de conceitos, embora discordantes que lhe são específicos, é a maneira pela qual esses diferentes elementos estão relacionados uns aos outros (FOUCAULT, 2008, p. 65-66).

Assim, apesar de constituírem veículos de propagação distintos, os discursos promulgados no interior da mitologia de vampiro compõem um quadro análogo, que emerge interligando os discursos a sua volta, mesmo que tais discursos sejam trazidos para um veículo de propagação distinto da escrita. Três narrativas, três nós em uma rede de memória Quando se fala de literatura de vampiro, emergem estratos de uma memória histórico-social do personagem Drácula, aquele dos romances de vampiro, o de maior fama, devido a sua larga e ampla circulação, povoando nossas histórias sociais de terror, ou ainda por todo o glamour que foi dado a esta obra genial dentro da história literária. No entanto, não queremos iniciar nosso percurso genealógico pela literatura com o Drácula, até porque estaríamos deixando de lado toda uma escrita que atravessa os mitos mais antigos, sobre os quais, infelizmente, não será possível traçar uma historiografia literária tão detalhada como desejamos, por possuirmos um tempo limitado para tal trabalho. Sendo assim, focalizaremos nossa atenção em dois contos que em uma rede de memória fazem parte da constituição de toda uma literatura de vampiro e que serviram de suporte para Bram Stoker escrever Drácula, a saber: O vampiro, de John Polidori, e Carmila, de Sheridan La Fanu. O conto O vampiro (2009)24, de John Polidori, foi o primeiro conto de grande circulação desse tipo de literatura no qual o autor mesclava elementos do fantástico com o horror. Tais obras fizeram parte de um período conhecido como Novel gothic (TORRIGO, 2009), que buscava, por meio de narrativas bem parecidas com as telenovelas, contar histórias trazidas em capítulos que eram publicadas em sua maior parte em jornais 24

Segundo Melton (1995), o conto de Polidori, The Vampire, foi a primeira obra completa sobre os vampiros. Publicado pela primeira vez em 1819 na revista New Monthly Magazine. 91


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semanais, prendendo a atenção dos leitores por meses em tais narrativas. O Vampiro é um desses tipos de narrativa. É um conto com a função de entreter o leitor enquanto passa alguma forma de ensinamento. A história narra a vida de um casal de irmãos órfãos que são criados por tutores que não lhes davam nenhuma atenção ou cuidado, se importando apenas com seu dinheiro. Os irmãos vão morar em Londres, onde conhecem o Lorde Ruthven, que está de partida pela Europa, instigado com a possibilidade de uma viagem de conhecimento. Aubrey convence seus tutores a deixarem ele ir. No entanto, no decorrer de sua viagem descobre que seu companheiro não se trata de um indivíduo comum, mas de um vampiro. Carmila (2010)25, de Sheridan Le Fanu, narra a história de uma moça que é deixada por sua mãe em uma fazenda aos cuidados do seu dono. Depois de sua chegada, acontecimentos estranhos se iniciam e a filha do fazendeiro começa a ter sonhos estranhos, ficando cada vez mais pálida, fraca, até a chegada de um amigo que, por sinal, teria perdido sua filha há pouco tempo com o mesmo problema que estão enfrentando ali. Já conhecendo os motivos que causam tal doença, o amigo se dirige ao cemitério onde encontra a tumba de Carmila, colocando fogo no local, e acabando com sua maldição. A narrativa O Drácula (2011)26 tem como base para sua obra os contos anteriores e a lenda do conde Vlad Dracul, conhecido por fazer parte da ordem do dragão, setor pertencente a igreja católica responsável por sua defesa como também por suas batalhas. Vlad era conhecido como sendo um dos mais valentes e cruéis membros da ordem, em virtude do seu hábito de empalar seus inimigos e deixá-los expostos, fato que reafirmava a sua fama e o transformava em alguém a ser temido. Outra característica marcante do Vlad também utilizada pelo Bram Stoker é a fama de se alimentar de carne humana e sangue. Assim, a obra de Bram Stocker traz em seu âmbito o romantismo com os contos de horror, narrando a saga de um conde que defende a igreja nas cruzadas e que, ao retornar para casa, depara com sua esposa morta por uma trama do inimigo, fato que levou sua esposa acreditar que o conde, seu marido, tivesse morrido em batalha. Com a dor de sua morte ela se joga da torre do castelo cometendo suicídio. Quando o Drácula retorna da batalha descobre que sua amada está morta e que a igreja se recusa a sepultá-la em solo sagrado, condenando-a a vagar pela eternidade. O conde se revolta 25

Para Melton (1995), surge em 1872 uma nova imagem para a figura do vampiro com Carmila, de Sheridan Le Fanu, que é publicado pela primeira vez na revista The Dark Blue. 26 O romance o ―Drácula‖ foi publicado pela primeira vez em 1897. Segundo Melton (1995) tal obra inaugura toda uma era de ficção sobre os vampiros. 92


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contra a igreja e realiza um pacto de sangue, o que vai fazer com que ele viva eternamente em busca de sua amada. Essa procura acaba alguns anos depois quando ele a encontra em Londres. O conde vai ao seu encontro para transformá-la em uma vampira, a fim de que possam ficar juntos. Vampiros: o que os constituem como sujeitos Até aqui, fizemos uma breve genealogia das histórias de vampiros para, a partir de tais estudos, traçarmos a construção de um sujeito vampiro. Para tanto, buscaremos olhar mais de perto, em close, algumas dessas histórias buscando as repetições e dispersões que as constituem. Em muitos dos relatos de mitos, contos, livros e filmes encontramos várias recorrências como o fato de os vampiros se alimentarem de sangue, de mortos ou de seres vivos preferencialmente jovens ou crianças. Tais seres geralmente são descritos como maléficos, de pele pálida, unhas compridas, olhos vermelhados, dentes grandes. Outra repetição que verificamos nos mitos é a forma na qual esses seres são transformados em vampiros, ou seja, demônios que querem se vingar de seres humanos ou humanos que cometeram suicídio ou crimes que os transformem em pessoas incapazes até para irem para o inferno, sendo condenados a vagarem pela terra. Mas uma forma de transformação em vampiros ocorre por meio do contágio que se dá através da ingestão de sangue de vampiro. Outro fato que chama atenção por sua regularidade é como os vampiros são destruídos em sua maior parte. Eles possuem as mesmas fraquezas, sendo uma delas a exposição à luz do sol. Como os vampiros são seres noturnos a luz do sol pode matá-los, mas a maneira mais rememorável de eliminar um vampiro é cravando uma estaca em seu peito. Nos registros que buscamos, encontramos algumas variações em alguns dos mitos, principalmente nos mais antigos, quando as estacas não são capazes de matar um vampiro, apenas imobilizando-o, até que o mesmo possa tomar um banho de luar o que fará com que ele retorne a vida. Segundo Torrigo (2009) a forma mais eficiente de se matar um vampiro é cortando sua cabeça e queimando junto com o seu corpo, sendo a modalidade preferida pelos antigos, que gostavam de decapitar e queimar qualquer ser suspeito de vampirismo. De acordo com Bearber (1988), alguns povos antigos acreditavam que a alma ficava no corpo até a decomposição. De forma que, para alguns desses povos, fazia parte do ritual de morte o processo de decapitação, com isso deixando a alma do morto partir livremente. Assim, Melton (1995) relata que alguns povos acreditam que o vampiro não pode ser morto porque sua alma 93


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está presa a seu corpo que o chama de volta, sendo possível se especular que a alma dos seres amaldiçoados, incluindo os vampiros, sejam incapazes de sair do seu corpo por sua própria conta. Por isso, acreditam ser a decapitação a forma mais eficiente de se eliminar um vampiro. Como citamos anteriormente, há uma gama de elementos que se repetem e é por meio deles que buscamos delinear uma construção para o sujeito vampiro. Assim, olharemos para as diversas séries enunciativas, da forma como pensou Michel Foucault (2008), procurando determinar a forma de relação que pode ser legitimamente descrita entre diferentes séries, bem como os elementos que figuram simultaneamente conjuntos distintos. Logo, o nosso gesto de descrição indicará ―[...] não somente que séries, mas que ‗séries de séries‘ – ou, em outros termos, que ‗quadros‘ – é possível constituir‖ (FOUCAULT, 2008, p. 11). Colocadas as características principais da constituição mítica dos vampiros, vamos encadeá-las com suas historicidades para compreender quais modificações ocorreram com o tempo e o que possibilitou suas condições de existência para ―fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado‖ (FOUCAULT, 2008, p.31) criando, assim, um feixe de relações entre os discursos que emergem. Para a construção do nosso quadro, retomaremos as narrativas de vampiros, observando como os discursos que ali se materializam são inscritos e retomados em outros momentos. Assim, em nossas análises, não nos ateremos a uma linearidade dos mitos e contos para a construção desse sujeito, mas tomaremos o postulado foucaultiano da descontinuidade histórica para investigarmos as microcamadas existentes no interior das histórias já citadas, analisando os acontecimentos que vão e voltam, atravessando as linhas de nosso quadro. Monstruosidades corporais na Literatura Verificaremos nos contos como se constitui um sujeito vampiro e como os discursos que emergem a sua volta o configuram nesse lugar. Para isso, recorreremos aos mitos e às narrativas literárias, observando seu léxico para, por meio da emergência de regularidades, podermos traçar um perfil desse sujeito. Para tal estudo, seguiremos os pensamentos de Foucault (2008), que afirma a necessidade de descrever o léxico para análise e compreender as formas de encadeamentos em suas formulações. Para Foucault (2008, p. 213) descrever não é isolar termos, é sobretudo pensar ―as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos [...] uma existência específica‖. É pensar como se dá a relação entre 94


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termos, pois para o autor descrever significa verificar as condições de emergência e sentidos possíveis para tal léxico. Assim, analisar o léxico em uma perspectiva foucaultiana é dar conta dos discursos que estão imbricados nele. É pensar as construções sócio-históricas que os constituem, ou seja, é compreender como tais construções lexicais se constituem como práticas discursivas. De tal modo observamos que nas três narrativas em questão, como também nos mitos estudados, há uma regularidade para a descrição da figura do vampiro. Ele é sempre descrito como alguém que possui boa educação e daí emerge sua reputação de lord, sempre causando boa impressão em sua forma de se apresentar, o que não acontece com suas feições corporais, sempre descritas como tendo a pele pálida, olhos bem marcados, unhas afiadas e dentes grandes e pontiagudos como podemos notar a seguir: Aconteceu que, em meio às dissipações costumeiras no inverno londrino, surgiu, nas muitas festas dos senhores da alta sociedade um nobre mais conhecido por suas peculiaridades do que por seu status. Ele observava a alegria ao seu redor como se dela não pudesse participar. Aparentemente, o riso despreocupado dos demais só lhe atraía a atenção para que pudesse com um olhar sufocá-lo e lançar o medo [...]. Os que experimentavam aquela sensação de pavor não conseguia, explicar de onde vinha: alguns a atribuíam aos olhos cinzentos e frios que, fixando-se no rosto do indivíduo, não pareciam penetrar num relance chegar até as profundezas do coração. [...] A despeito do tom cadavérico de seu rosto, que jamais adquiria um matiz mais intenso (POLIDORI, 2009, p.181-182. Grifos nossos.).

O trecho acima é retirado do início da obra O Vampiro, de Jhon Polidori, e nos mostra uma descrição do personagem Ruthven, que vem sendo composto no interior da narrativa como um vampiro. Assim, para tal composição o narrador inicia com a descrição de um senhor nobre, que chama a atenção por suas distinções aos outros a sua volta, fazendo com que seu estatuto de nobre seja colocado em segundo plano, não tendo importância para narrativa, ou ainda, para a descrição do personagem, dando a ele uma áurea alienígena de alguém que está presente, mas que não faz parte do todo. Ele é descrito como sendo um ser sombrio – distante de qualquer possível alegria – que tem o poder de apavorar a todos em sua volta com um simples olhar. Além de possuir uma das características marcantes para a literatura de horror, segundo Lovecraft (2005), que é a pele pálida. A palavra utilizada pelo narrador para iniciar a descrição do personagem é ―peculiaridades‖, indicando a existência de alguma outra coisa que vai 95


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além do que ele pretende descrever nesses primeiros parágrafos da narrativa, dando espaço para futuras inclusões. Assim, o narrador vai construindo uma formação de horror com descrições que vão além das características físicas. O personagem descrito abomina a alegria, extraindo satisfação apenas no ato de acabar com ela, instalando o pavor nas pessoas, pois o mesmo possui o poder de ―com um olhar sufocá-lo e lançar o medo‖ e, com certeza o toque mais sutil, enxergar as profundezas do coração. Essa situação nos remete a um velho ditado popular que afirma que os maiores monstros estão escondidos no fundo das almas humanas e a exposição desses é aterrorizante, é como se despir diante de um espelho. Assim, é dado a Ruthven o maior poder sobre as almas humanas, de colocá-las diante de seus maiores monstros. Essas características descritas já foram atribuídas ao vampiro desde muito. Torrigo (2009) apresenta o vampiro como sendo um ser pálido, de dentes longos, e mãos finas. Em O Vampiro, Ruthven é descrito como tendo ―os olhos cinzentos e frios‖ um tom ―cadavérico‖ em suas feições e tais características também são apresentadas em Carmilla, que é colocada como uma mulher de traços finos e bonitos, com dentes pontiagudos, como podemos notar abaixo: Ela era mais alta do que a média das mulheres. Começo por descrevê-la. Era esbelta, e extremamente graciosa. Exceto que seus movimentos eram lânguidos – sumamente lânguidos; é verdade que nada em sua aparência sugeria invalidez. A pele saudável e viçosa; os traços eram delicados e belamente delineados; os olhos eram grandes, escuros, e brilhantes; os cabelos eram maravilhosos – [...] Eram extraordinariamente finos e macios, e exibiam um ardente tom castanho-escuro, com mechas douradas (LE FANU, 2010, p.67. Grifos nossos.).

O trecho acima foi retirado do conto Carmilla, de Le Fanu, no qual Laura inicia a descrição de sua nova hóspede, que possui características de uma mulher bela, porém com traços que a diferencia das demais mulheres a sua volta. Carmilla, pois, era ―mais alta do que a média das mulheres, possuía movimentos lânguidos – sumamente lânguidos‖, que nos remete a algo fora do lugar. Perrot (2012), ao problematizar uma história das mulheres e seu estatuto social em determinados períodos, explica que as mulheres possuem uma estatura mediana para baixa, e devem ser delicadas em seus movimentos, o que não acontece com Carmilla, que possui uma estatura maior que a média. No entanto, na maior parte da descrição de Carmilla, ela é colocada como sendo uma mulher bonita de ―pele saudável [...] e traços 96


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delicados‖, uma companhia agradável, extremamente graciosa encantadora. O único traço que a liga com a linhagem dos vampiros são seus dentes, descritos como tendo ―um dente dos mais afiados... longo, fino, pontudo, como uma sovela, como uma agulha.‖ (LE FANU, 2005 p.77), remetendo-nos a dentes de predadores – como leões, ursos, lobos – e finos como uma agulha capazes de perfurarem qualquer superfície. Nesse ínterim, temos um padrão de repetição nos estratos que constituem as características corporais do sujeito vampiro, colocando esse sujeito próximo à animalização. Vemos descrito por meio desses traços as características de um predador, por suas feições pálidas e por seus dentes pontiagudos, o que parece colocar o leitor diante de um animal em caça que deve ser temido. Destarte, vemos sendo traçadas as características primordiais para o vampiro. Em O Vampiro tem um misto dos vampiros mitológicos como seres repugnantes tanto em suas feições como em suas atitudes. No entanto, em Carmilla já existe uma modificação de suas feições, deixando poucos traços que possam distingui-la de uma mulher de seu tempo. Em contrapartida, suas ações continuam dignas de qualquer vampiro mitológico. Tais modificações vão ser melhores representadas em Drácula, que traz um misto de traços monstruosos com sua pose de lord. O que não modifica ainda são suas atitudes, que são tão cruéis como qualquer vampiro de qualquer tempo. Vejamos: Seu conjunto facial era do tipo fortemente – aliás muito fortemente – aquilino, emprestando um destaque muito característico à arcada nasal, que era bastante fina, em contraste com os orifícios das ventas, peculiarmente arredondados. A testa apresentava uma sensível proeminência, e os cabelos, que mostravam-se particularmente escassos em torno das têmporas. As sobrancelhas formavam um traçado compacto, encobrindo virtualmente a convergência do nariz, e delas sobressaíam muitos fios mais ásperos que pareciam enroscar-se em sua própria profusão. A boca, até onde permanecia visível sob a densidade do bigode, era dura e de aspecto cruel e fazia às vezes de uma moldura forçada a dentes estranhamente brancos e aguçados. [...] Quanto ao resto, suas orelhas eram estranhamente descoradas e de formato pontiagudo no lóbulo superior. [...] O efeito geral causava a impressão de uma profunda palidez (STOCKER, 2011, p.31. Grifos nossos.).

O trecho acima é um extrato da obra Drácula, de Bram Stocker, que apresenta a descrição do próprio Drácula pelo olhar de John quando chega ao castelo do conde. Temos como característica de tal narrativa as descrições detalhadas de seus personagens como podemos observar na citação acima. Assim, o narrador traz em sua descrição dois pontos distintos 97


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para a composição do personagem. O primeiro é composto pelas atribuições físicas, pois, como podemos notar, ele é descrito como sendo um ser ―fortemente aquilino‖; com sua ―arcada nasal bastante fina‖; tendo em sua testa uma ―sensível proeminência‖; com pouco cabelo; com dentes ―estranhamente brancos e aguçados‖; com orelhas de ―formato pontiagudo‖, reenviando-nos à imagem de uma ave de rapina, ou seja, a um predador, servindo tanto para desumanizar o personagem, criando em volta dele um aspecto animalesco, como também para atribuir um certo temor, de encarar um predador, para quem encara o personagem. O segundo aspecto que verificamos é atribuído à personalidade do personagem quando é descrito possuindo ―a boca [...] dura e de aspecto cruel‖. Isso sinaliza que o personagem possui o controle de suas emoções, mas isso transparece em sua boca. De tal modo, que por mais amigável que ele se apresente a sua boca revela sua personalidade. Além da boca outro lugar marcado para composição física do vampiro é a palidez de sua pele, que é sempre apresentada antes dos relatos de morte de suas vítimas, o que modifica o tom de sua pele. Por meio de uma composição de traços corporais, vemos funcionando a construção de uma anomalia, na qual o lugar do anormal é o lugar do monstro para Foucault (2010d). E o lugar de ―referência do monstro humano é a lei‖ (FOUCAULT, 2010d, p.48). É na ruptura com as leis que temos a criação do monstro. Assim, verificamos através da breve genealogia percorrida pelas histórias de vampiros, a apresentação de um sujeito que é colocado como metade humano, metade monstro. Tal verificação nos remete ao pensamento de Courtine e Harroche (1988, p. 32), ao afirmarem que ―o homem possui duas faces, das quais uma escapa ao olhar‖. O autor divide o homem em dois, um que é exterior, e se evidencia, e outro que é interior, aquele que se esconde do olhar. Verificamos uma duplicidade entre o humano e o monstro que é marcada por uma deformidade corporal. Assim, nas narrativas de vampiro descritas vemos a interioridade sendo mostrada por características corporais, que apesar de aparentarem serem humanos, os vampiros deixam transparecer em seu corpo traços monstruosos. Tais lugares são evidenciados nas narrativas de tal forma a causar um estranhamento no leitor. Um breve retorno Procuramos fazer uma breve genealogia do sujeito vampiro, buscando olhar sua construção em um período específico. Iniciamos nosso percurso 98


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pelos mitos que nos mostram quão antiga é a existência de tais histórias no âmbito da sociedade. Com isso, verificamos, por meio da genealogia das histórias de vampiro, a existência de recorrências que vão determinar a sua constituição como sujeito por meio de características corporais, como a cor da pele, que tem como marca a palidez, evidenciando, assim, a condição de morto, como também, os traços animalescos, descritos por meio dos seus olhos, mãos e dentes, que são representados como alongados, descrição que acentua a sua semelhança com os animais. Observamos na mitologia e nas três obras que tratam de uma literatura de vampiro que, mesmo em lugares distintos, a forma de criação e de destruição do vampiro se dá de maneira análoga. Assim, verificamos que há um enquadramento do imaginário popular, por meio do real maravilhoso que perpassa uma rede de memória por toda nossa sociedade, na qual esses mitos possuíam uma função didático-pedagógica de demonstrar por meio da exemplificação o que deve e pode ser feito dentro da sociedade. Para melhor exemplificação, toma-se a criação de um monstro que tem o conhecimento sobre a morte e o poder de modificá-la. No entanto, tal conhecimento é tido por muito tempo como sendo uma maldição infringida a todo aquele que transgredir as leis sociais e religiosas, devendo pagar para purgar seus pecados na terra. Acredita-se, pois, que aquele que se transformou em vampiro tem pecados tão graves que não o torna indigno de descanso nem no céu e nem no inferno. Por isso, é condenado a vagar eternamente entre os humanos, sendo punido por meio de uma transfiguração corporal. Vimos, ainda, que a recorrência das características físicas do sujeito vampiro, enquanto aquele que possui feições empalidecidas, unhas largas e compridas, olhos arregalados, e dentes pontiagudos, cria um monstro jurídico-biológico. Em outros termos, a construção de um ser que rompe com manuais de conduta de uma sociedade, por meio das leis naturais que determina que a vida se estabelece por meio de um ciclo e seu fim é a morte. O vampiro, ao romper com esse círculo, se coloca no lugar de um monstro-jurídico. Como tal infração da lei é evidenciada por meio de traços corporais, compreendemos que aí irrompe o aparecimento de um tipo de monstro-jurídico-biológico. Portanto, o vampiro exerce sobre suas vítimas um governo na medida que há um domínio corporal e psíquico, que lhe dá o lugar de soberano, dispondo, assim, de suas vidas, pois como um rei possui o direito de dar ou tirar a vida de suas vítimas, no sentido que ele tem o governo da morte, ou seja, o conhecimento sobre ela. Assim, ele pode escolher a quem dar esse conhecimento, impondo-lhe a vida eterna. 99


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El monstruo y lo fantástico: Drácula The monster and the fantastic: Dracula Oscar Martínez Agíss27 Resumen: Desde hace casi dos siglos uno de los monstruos que mayor relevancia ha adquirido en la narrativa es el vampiro y el más representativo, sin duda, es Drácula. El presente trabajo explora sus características como figura predominante en la literatura de horror a partir de su origen en la novela de Stoker, dentro del canon fantástico, así como su influencia e importancia en el desarrollo del vampiro como personaje literario hasta nuestros días. Palabras clave: Drácula, fantástico, vampiro, horror. Abstract: For almost two centuries one of the monsters that has reached upmost relevance in the narrative it‘s the vampire, and without a doubt the most recognizable is Dracula. The present text explores the characteristics of this character as prevailing figure in horror literature from its origin in Stoker‘s novel, and as part of the fantastic canon, as well as its influence and importance in the development of the vampire as literary character until this days. Keywords: Dracula, fantastic, vampire, horror.

El monstruo, casi por definición, representa uno de los principios del texto fantástico, su aparición establece el rompimiento del orden de la naturaleza. El mundo conocido se ve confrontado por un ser que no debería existir porque violenta, con su sola presencia, lo cotidiano y por tanto pone en riesgo la base sobre la que descansa el raciocinio humano, aquello que creíamos cierto e inamovible se pone en duda ante un ser que no obedece las leyes naturales como las entendemos. Este hecho es suficiente para que el concepto de monstruo tenga implicaciones ominosas sin importar, en primera instancia, los actos o motivos del ser que está fracturando la realidad. A lo largo de la historia de la literatura el monstruo ha asumido varias formas dependiendo de los marcos de definición de la naturaleza en las sociedades que los crean, así, estos seres, al ―existir‖, definen también los límites de lo humano. Uno de los monstruos que mayor relevancia ha adquirido en la narrativa es el vampiro. A pesar de que podemos encontrar personajes con ciertas características vampíricas desde muy atrás en la literatura, no será sino hasta finales del siglo XVIII cuando comience a cobrar relevancia el vampiro con toda una serie de rasgos específicos y definitorios que se irán

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Licenciado en Literatura Dramática y Teatro, Maestro en Artes Visuales por la Universidad Nacional Autónoma de México, Profesor en la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM. 101


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consolidando a partir de ese momento tanto en el imaginario colectivo como en los textos literarios; incluso Rousseau llega a afirmar que ―si ha habido en el mundo una historia garantizada, es la de los vampiros. No falta nada: informes oficiales, testimonios de personas atendibles, cirujanos, sacerdotes, jueces: ahí están las pruebas‖ (Quirarte, 49). Sin embargo, en los primeros relatos populares de seres que regresan de sus tumbas, los ―revenant‖ tienen una apariencia horrorífica, huelen mal y se alimentan de la sangre, principalmente, de sus familiares, según Calmet, éstos son men who have been dead for some considerable time, it may be for a long period or it may be for a shorter period, and these issue forth from their graves and come to disturb the living, whose blood they suck and drain (citado en Summers, 29).

Estas criaturas del folklore irán evolucionando durante el siglo XVIII hasta llegar al vampiro aristócrata y seductor de la literatura romántica, el cual será representado por primera vez por John Polidori en The Vampyre; a Tale (1819). Si bien el texto de Polidori logra crear una reacción inmediata, y cambia la visión popular que se tenía del vampiro, aún tardará más tiempo este personaje en concentrar todas sus posibilidades. Así, el vampiro, que había rondado la literatura por mucho tiempo como sombra siniestra, logrará su consolidación con la publicación de la novela Drácula (1897), de Bram Stoker, hasta finales del siglo XIX; a partir de ese momento el personaje protagónico será la principal referencia del vampiro, y punto de partida y/o comparación para las creaciones de innumerables escritores durante ya más de un siglo. Al mismo tiempo la literatura fantástica gana un personaje que inquietará a los lectores desde su época y hasta la fecha; es preciso señalar que un personaje no define por sí mismo lo fantástico sino el mundo literario que lo cobija y que se sacude por su presencia, ya que Lo fantástico pareciera crearse siempre en el territorio evanescente y limítrofe en el que conviven dos órdenes que, al ponerse en contacto, conjuran una franja conflictiva dentro de cuyos estrechos límites se crea la sola oportunidad posible para hablar de fantástico (Morales, ix).

En este sentido, la novela de Stoker también plantea posibilidades de lectura que abren la puerta para entrar en los territorios de lo fantástico pero que parecen, al mismo tiempo, permitir alejarse de éstos. A pesar de que Drácula no es el primero de los vampiros que tiene las características que más se identifican a lo largo del tiempo con el vampiro 102


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(ese lugar le corresponde a Lord Ruthven, el personaje creado por Polidori), sí es este personaje de la novela de Stoker el que representará toda una serie de elementos simbólicos, de imagen y de construcción narrativa que se perpetuarán en la figura del vampiro. Vicente Quirarte, en Sintaxis del vampiro, señala que lo que vuelve inolvidable y emblemática la novela de Stoker es estar inspirada en un personaje histórico, que sus hechos se desarrollen en fechas precisas y contemporáneas a los años de aparición de la novela y la presencia de argumentaciones científicas a todo lo largo de la obra. En su exploración de la figura del vampiro, Stoker sistematiza los elementos del monstruo y los vuelve plausibles (58).

Son precisamente estas características las que crean un marco de referencia concreta, extratextual, a los principios del mundo donde se desarrolla la acción de la novela, intratextual, y así estas contradicciones entre un mundo que se presenta como coherente y sin fisuras y la evidencia de una segunda naturaleza oculta bajo lo visible sirven de piedra de toque para lo fantástico. La incertidumbre respecto a los límites de lo real hace vacilar las perspectivas que hasta ese momento se creían inamovibles (Rotger, 241).

La novela está construida con un andamiaje de verosimilitud, tratando de establecer una realidad no sólo intratextual sino también extratextual, desde la presentación del cuerpo del texto, como era frecuente en la narrativa popular victoriana, cuenta con un prefacio de una voz anónima en donde se advierte al lector How these papers have been placed in secuence will be manifest in the reading of them. All needless matters have been eliminated, so that a history almost at variance with the possibilities of later day belief may stand forth as simple fact. There is throughout no statement of past things wherein memory may err, for all the records chosen are exactly contemporary, given from the standpoints and whithin the range of knowledge of those who made them (Stoker, 5).

Así que lo que sigue son, efectivamente, relatos subjetivos de una serie de acontecimientos en donde Jonathan Harker, en principio, después John Seward y Mina Murray, predominantemente, se establecerán a sí mismos como paradigmas de la realidad, y es a través de ellos que se presentará, primero, la relación mimética con el mundo del lector para, después, introducir gradualmente la percepción de Drácula como subversión de esa realidad. 103


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Harker será el encomendado para emprender el viaje de Londres a Transilvania, viaje en donde enfrenta el cambio de todo a su alrededor, transformación cada vez más evidente conforme se aleja de la civilización para adentrarse en tierras primitivas, el incumplimiento de los horarios del tren, las supersticiones, todo ello siempre en comparación con su perfecto y ordenado mundo inglés; en este proceso llegará al punto de ya no poder reconocer dónde se encuentra en relación al mundo de donde él proviene, a pesar de que refiere al lector un último lugar constatable su destino es desconocido: I was not able to light in any map or work giving the exact locality of the castle Dracula as there are no maps of this country as yet to compare with our own Ordnance Survey maps; but I found that Bistritz, the post town named by Count Dracula, is a fairly well-known place (Stoker, 10).

Pero a partir del momento de subir al carruaje que lo llevará al castillo todo aquello que rodea a Harker no sólo mostrará un atraso en términos de civilización sino que también lo acercará a elementos que comienza a denominar como excepcionales en su escrito, del cochero dice I could only see the gleam of a pair of very bright eyes, which seemed red in the lamplight [...] As he spoke he smiled, and the lamplight fell on a hardlooking mouth, with very red lips and sharp-looking teeth, as white as ivory […] The strange driver […] his strength must have been prodigious‖ (Stoker, 17).

La parte final del viaje, el camino al castillo, se ve rodeada por eventos extraños, lobos que cercan el transporte, flamas que aparecen a la vera del camino y que motivan al conductor del carruaje a que se detenga para ir hasta ellas, las cuales incluso parecen traspasar el cuerpo del conductor mismo. Todo esto comienza a crear la duda en el narrador, Harker, sobre si es verdad lo que está viendo: ―I think I most have fallen asleep and kept dreaming of the incident for it seemed to be repeated endlessly, and now looking back, it is like a sort of awful nightmare‖. (Stoker, 19) El castillo mismo parece surgir de un momento a otro y Harker nuevamente lo explica con haberse quedado dormido. A partir de ese momento comenzará una lucha entre la mente racional de Harker y los hechos insólitos que acontecen en el castillo. El narrador constantemente se pregunta o teme por su salud mental y / o sobre el efecto que tiene el entorno sobre él: ―God preserve my sanity‖ (Stoker, 41) ―The very thought drove me mad‖ (Stoker, 54), ―God knows that there is ground for my terrible fear in this accursed place!‖ (Stoker, 38-39) ―I 104


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feel the dread of this horrible place overpowering me‖ (Stoker, 39). Otro aspecto en el que Stoker apoya la creación de verosimilitud en la figura del vampiro reside en tomar como referencia a un personaje histórico; en el capítulo III Drácula narra a Harker parte de la historia de Transilvania, y este último nota que ―in speaking of things and people, and especially of battles, he spoke as if he had been present at them all‖ (Stoker, 33), aún cuando un poco más adelante Drácula explica que ―to a boyar the pride of his house and name is his own pride, that their glory is his glory, that their fate is his fate‖ (Stoker, 33), ya estableció cierta ambigüedad que ha ido desarrollando el texto. La utilización de datos históricos medianamente verídicos28 da al lector la ilusión de contacto entre su realidad y la de la obra, de tal manera que la sensación de inquietud del personaje Harker, pueda tener un eco más allá de las páginas en que habita. La creación de Stoker fue tan eficaz en este aspecto que, a partir de la novela, la vida de Vlad Tepes, el referente histórico, ha sido reconsiderada y estudiada, llegando a ser necesaria, por ejemplo, la advertencia de RalfPeter Märtin, en su libro biográfico Los ―Dracula‖. Vlad Tepes, el Empalador, y sus antepasados, de no caer en los errores de Harker: ruego al lector, en particular aquel que no desee repetir la equivocación de Harker, que suba al ascensor de la historia, a menudo incómodo, cuyos botones indican los siglos en lugar de las plantas y que realice desde él una inspección ocular (13).

Harker se encuentra de este modo caminando en la frontera de su mundo ordenado, conocido y estable que está desapareciendo para ser consumido por la oscuridad que lo rodea, que aunque tiene cercanía con su realidad cada vez es más ajeno y, por lo tanto, inquietante. La batalla que está librando Harker incluso puede decirse que se traslada hasta sus valores victorianos y sus impulsos en el momento que se encuentra con las vampiras: I was afraid to raise my eyelids, but looked out and saw perfectly under the lashes. The fair girl went on her knees, and bent over me, fairly gloating. There was a deliberate voluptuosness wich was both thrilling and repulsive, and as she arched her neck she actually licked her lips like an animal […] I closed my eyes in a languorous ecstasy and waited – waited with beating heart (Stoker, 42-43).

La conducta de estas mujeres es contrapuesta a la figura de Mina, la 28

Nina Auerbach y David J. Skal establecen en las notas de su edición crítica las libertades que se toma Stoker al referir los hechos históricos para que se ajusten a su necesidad literaria y no a otros factores. 105


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prometida de Harker, quien, es ―verdaderamente el ideal de la mujer moderna: un virtuoso taburete dispuesto a cumplir las órdenes del hombre‖ (Dijkstra, 346). Así, también este aspecto de su realidad es confrontada y lo aleja de las costas seguras por las que ha transcurrido su vida anterior. Todos estos cuestionamientos de Harker con relación a lo que vive en el castillo y con Drácula serán rematados con un colapso nervioso una vez que logra escapar. Los acontecimientos relatados que parecen ser presentados objetivamente no están libres de duda, aún por parte del mismo escritor del diario: ―I do not know if it was all real or the dreaming of a madman. You (se refiere a Mina) know I have had brain fever and that is to be mad‖ (Stoker, 99-100). Esta forma de referenciar los hechos será más o menos repetida con los demás personajes: el diario de Lucy es el de una joven enferma que sufre radicales cambios de ánimo; Mina poco a poco se va convirtiendo en una relatora de lo que los hombres que la rodean creen conveniente decirle, el doctor Seward se cuestiona ocasionalmente la lucidez de su misión (acabar con Drácula), incluso llega a mencionar el temor de que algún día todos despierten en camisas de fuerza, además de que cerca de la mitad de la novela transcurre dentro o en las cercanías de la institución mental de Seward; por último, Van Helsing, personaje también ajeno a la Inglaterra invadida por el monstruo, de Ámsterdam, como especifica Seward, y por tanto puente entre occidente y oriente, entre realismo y superstición, será el que defina las características del vampiro y de quien Seward advierte: ―we most accept his wishes. He is a seemingly arbitrary man, but this is because he knows what his talking about better than anyone else‖ (Stoker, 106). Van Helsing no está para ser cuestionado sino para ser obedecido, y así es como dirigirá al grupo hasta acabar con el monstruo pues es él quien ha logrado tener claridad sobre la nueva realidad en la que se encuentran, en su primer intento de explicación a Seward, éste confiesa: At present I am going in my mind from point to point as a mad man, and not a sane one, follows an idea. I feel like a novice blundering through a bog in the mist, jumping from one tussock to another in the mere blind effort to move on without knowing where I am going (Stoker, 172).

La novela expone cómo se violenta la realidad concreta, la naturaleza misma, de un pequeño grupo de individuos (muestra del imperio) ante un personaje ajeno que irrumpe en ese mundo perfectamente estructurado. Lo fantástico está latente en esa constante inquietud de los personajes que no dejan de preguntarse si lo que están viendo en verdad está sucediendo o si han perdido la razón, cumpliendo así lo que señala Morales: 106


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En lo fantástico […] al aparecer las manifestaciones del sistema alternativo, las reglas de ambos ordenes se entrelazan en un solo sistema que deviene inestable, y cada fenómeno anómalo se convierte en un invasivo revés que altera la confianza en que el sistema de leyes aceptado sea suficiente para explicar el mundo (viii).

Y durante todo esto, ¿dónde está Drácula? Precisamente éste es uno de los elementos singulares de la novela, la presencia de Drácula sólo es sugerida o intuida por el lector con algunas apariciones breves dispersadas por el texto, Leonard Wolf (350-351) señala que en un total de 390 páginas de la edición original Drácula sólo se encuentra en 62. Drácula, el personaje que da nombre a la novela, es una presencia ausente en la misma, esa característica le permite, por tanto, ser identificado a partir de lo que la sociedad inglesa del momento encuentra atemorizante; y a pesar de las contadas apariciones de Drácula en la novela, deja una fuerte huella en la imaginación del lector, tanto así que hasta nuestros días el concepto del vampiro está íntimamente ligado al personaje creado por Stoker. Esta construcción singular del vampiro tiene mayor fuerza gracias a que incorpora toda la información que se encuentra dispersa en la imaginería popular de la época y la ordena en un solo discurso en la conferencia sobre vampiros y Drácula en particular dictada por Van Helsing (210-213), muchas de las características, reconoce el orador, son ―traditions and superstitions‖, pero les da mayor peso de influencia en la historia al declarar que These do not at the first appear much, when the matter is one of life and death […] Yet must we be satisfied; in the first place because we have to be –no other means is at our control- and secondly, because, after all, these things – tradition and superstition- are everything (Stoker, 210).

Si, como dice Van Helsing, la tradición y superstición lo son todo, el mundo visto a través de los ojos de la razón se encuentra constantemente en peligro de ser violentado cuando lo que forma parte de la superstición cruce el umbral de nuestra cotidianeidad, de esta forma el texto continúa alimentado la ambigüedad del personaje, así pues se mantiene la afirmación de Van Helsing de que la fuerza del vampiro reside en que nadie cree en él. El final de la novela busca reafirmar la incertidumbre en el lector, ya que así como al inicio del libro tenemos el aviso de una voz anónima sobre las características de los textos recopilados, al término de ellos encontramos, en una nota de Harker, el reconocimiento de que: 107


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 That in all the mass of material of which the record is composed, there is hardly one authentic document; nothing but a mass of typewriting, except the altter notebooks of Mina and Seward and myself, and Van Helsing‘s memorandum. We could hardly ask anyone, even did we wish to, to accept this as proofs of so wild a story (Stoker, 326-327).

Y es a partir de esta ambigüedad que se dará la maleabilidad de Drácula para incorporarse a los monstruos de diferentes épocas y encajar como personificación de los miedos, y muchas veces los deseos, de las diversas sociedades hasta nuestros días. Así como Drácula en la novela de Stoker parece ir asumiendo la imagen de Harker, vistiendo sus ropas para dejar el castillo, o luciendo joven en las calles de Londres, con el paso del tiempo Drácula también asumirá los elementos que le sean necesarios en cada época para mantenerse con vida, el vacío que representa se llenará con los códigos del momento a través de la literatura misma, multiplicándose en cuentos y novelas, o, en primera instancia, con su adaptación al teatro para saltar después al cine y casi todo otro medio al alcance de modo tal que hasta la fecha sigue no muerto y vigente, pues We all know Dracula, or think we do, but […] there are many Draculas –and still more vampires who refuse to be Dracula or to play him. An alien nocturnal species, sleeping in coffins, living in shadows, drinking our lives in secrecy, vampires are easy to stereotype, but it is their variety that makes them survivors (Auberbach, 1).

La influencia de la novela de Bram Stoker se ha hecho evidente con el paso de los años, a más de un siglo de su publicación el personaje es aún referencia obligada tratándose de vampiros, ya sea como principio de investigación para Neville en I am Leyend (1954) de Matheson, el motivo de recontar la historia desde el punto de vista de Drácula en The Dracula Tape (1975) de Saberhagen o explorar las posibilidades de un vampiro viajando a Estados Unidos en la segunda mitad del siglo XX siguiendo los mismos principios de Drácula en ‗Salem‘s Lot (1975) de Stephen King, por citar sólo unos cuantos ejemplos. Sin embargo, como ya anoté anteriormente, un personaje por sí mismo no define un texto, por lo que la presencia de Drácula o alguno de sus descendientes de sangre no implica a priori lo fantástico, así, en muchos casos el vampiro es motivo del desmoronamiento de una realidad intratextual configurada de forma mimética a la de la sociedad que genera el texto; en otros casos, la voz del vampiro generalmente conlleva la explicación de sí mismo, incluyendo su naturaleza en la del mundo que la 108


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rodea anulando así la confrontación de realidades. Por otro lado, entender las características y secretos del monstruo, extender con él los límites de la naturaleza conocida seguramente nos aparta de lo fantástico pero no hace al monstruo menos terrible porque, como señala Vicente Quirarte ―cuando de vampiros se trata, lo doméstico no quita lo siniestro‖ (17). Más el vampiro nació como monstruo y para que tenga esta categoría es necesario que violente el orden del mundo que lo enfrenta, que su sola aparición acerque a quienes lo rodean al borde de la locura porque están mirando el abismo, representa sus temores más profundos saliendo de la oscuridad para encontrarlos y alimentarse de ese miedo que provocan, que nos haga cuestionarnos la seguridad en la que vivimos y de que la realidad cumple con lo que nos han enseñado que es… y, en buena medida, esas son las aportaciones de Dracula de Bram Stoker, es una novela que nos recuerda que aún cuando los monstruos no existen, a veces, esas cosas pasan. Bibliografía AUERBACH, N. Our vampires, ourselves. Chicago: The University of Chicago, 1995. 231 p. DIJKSTRA, B. Ídolos de perversidad: la imagen de la mujer en la cultura de fin de siglo. Madrid: Editorial Debate, 1994. 452 p. MÄRTIN, R-P. Los “Drácula”. Vlad Tepes, el Empalador, y sus antepasados. Barcelona: Tusquets Editores, 1993. 223 p. MORALES, A.M. México fantástico. Antología del relato fantástico mexicano. El primer siglo. México: Oro de la noche ediciones, 2008. 158 p. QUIRARTE, V. Sintáxis del vampiro: Una aproximación a su historia natural. México: Verdehalago, 1996. 141 p. ROTGER, Neus. Fronteras rotas: Una aproximación a la literatura fantástica. En: MORALES, A.M.; SARDIÑAS, J.M. (Edit.) Rumbos de lo fantástico: Actualidad e historia. Palencia: Ediciones Cálamo, 2007. 233-244 pp. STOKER, B. Dracula. London: W.W. Norton & Company, 1997. 488 p. SUMMERS, M. The Vampire, His Kith and Kin. New York: E.P. Dutton & Co., 1929. 349 p. WOLF, L. Apendixes. En: STOKER, B. The annotated Dracula: Dracula by Bram Stoker with an introduction, notes, and a bibliography by Leonard Wolf. New York: Ballantine Books, 1976. 333-362 pp.

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O horror ameno: contos de Machado de Assis no Jornal das Famílias The mild horror: tales of Machado de Assis in the Jornal das Famílias Lainister de Oliveira Esteves29 Resumo: O objetivo do artigo é analisar os contos de horror escritos por Machado de Assis no Jornal das Famílias. Publicados entre seções de dicas de economia doméstica e sugestões de decoração, esses contos trazem para as práticas cotidianas de leitura o universo do pecado, do crime e do sobrenatural sem abrir mão da proposta de literatura amena. Palavras-chave: contos de horror, Machado de Assis, Jornal das Famílias. Abstract: The aim of this article is to analyze the tales of horror written by Machado de Assis in the Jornal das Famílias. Posted between sections of home economics tips and decorating suggestions, these tales bring to the everyday practices of reading the universe of sin, crime and the supernatural without giving up the proposal of mild literature. Keywords: horror tales, Machado de Assis, Jornal das Famílias.

O Jornal das Famílias, periódico do Rio de Janeiro fundado em janeiro de 1863 para substituir a Revista Popular, tinha como proposta editorial ―o recreio e utilidade das famílias‖. A assinatuta garantiria ao leitor, no fim de um ano, um elegante volume de 384 páginas cujo conteúdo seria, fundamentalmente literatura amena algumas ilustrações, muitas gravuras sobre aço, desenhos a aquarela coloridos, ditos de trabalho de crochê, lã e bordados; moldes de enfeites para senhoras, figurinos e peças de músicas inéditas. O repertório oferecido é voltado para o público feminino e a publicação de literatura amena seria uma forma de seduzir leitoras interessadas em formas leves de passar o tempo. Porém, curiosamente, essa literatura amena também assumiria expressão macabra em alguns contos escritos por Machado de Assis. O primeiro conto de Machado de Assis publicado no Jornal das Famílias foi ―Frei Simão‖, em junho de 1864. A frequência de sua participação no periódico aumentaria com o tempo, e no que tange ao problema do horror, ―O capitão Mendonça‖, publicado em 1870, é o marco inicial. A história começa quando Amaral, querendo fugir da solidão, decide ir a um espetáculo no teatro São Pedro sem saber exatamente qual peça seria apresentada. Ao se sentar tem seu nome chamado por um desconhecido que se apresenta como o Mendonça e que diz ter sido amigo de armas de seu

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Doutor em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS - UFRJ). Professor Adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (INHIS - UFU). 111


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falecido pai. Diante da peça enfadonha e pelo fato de o capitão parecer uma figura interessante, Amaral aceita o convite para cearem em sua casa. Ao chegar à casa o jovem se depara com um cenário sinistro: a entrada parecia o corredor do inferno. Mesmo tremendo de medo e desconfiando tratar-se de uma emboscada, decide continuar. O sentimento de horror é apaziguado pela presença de Augusta, moça de belos olhos verdes que Amaral julga ser filha do capitão. O jantar transcorre bem, a jovem passa a ser seu laço com a realidade naquele cenário fantástico que o próprio dono da casa define como purgatorial. Os três conversam descontraidamente quando Mendonça comenta a beleza dos olhos de Augusta e obtém total concordância de Amaral. Surpreendentemente, o capitão oferece os olhos da moça ao rapaz, que se assusta. De maneira tragicômica, Amaral descobre que a moça era uma criação de Mendonça, sua obra-prima, esforço de anos de dedicação ao conhecimento científico, especialmente à química e à alquimia. Assustado, mas ainda atraído por Augusta, decide ir embora, porém, ameaçado de morte, promete voltar no dia seguinte. O acontecimento fantástico o faz lembrar de um conto fantástico de Hoffmann em que um alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir criaturas humanas. Intrigado Mendonça se pergunta se ―a criação romântica de ontem não podia ser a realidade de hoje?‖ (ASSIS, 2008, p.970). Perdido entre os limites da razão e a loucura, Amaral se apaixona por Augusta assim como Natanael se apaixonara por Olímpia, autômato do clássico O Homem da areia de E.T.A. Hoffmann. Dando vazão ao absurdo, Amaral a pede em casamento, obtendo o consentimento do seu criador, mas a aquiescência de Mendonça acompanha um estranho pedido: o rapaz deveria ser cobaia em uma experiência que visava transformá-lo em gênio – afinal, a perfeição de Augusta exigia um par à altura. Quando acorda imaginando que lhe fora introduzida determinada quantidade de éter no cérebro, Amaral se encontra sozinho deitado na cadeira do teatro São Pedro. Tudo não passara de um sonho. Ao sair, o bilheteiro lhe entrega um bilhete do capitão: ele estava dormindo quando o capitão o encontrou e, para não incomodá-lo, deixou nas mãos do funcionário o convite para uma visita. Zombar das perspectivas românticas é uma forma de jogar com os limites da ficção. Quando, comentando Hoffmann, Amaral se indaga sobre a possibilidade da criação romântica de ontem ser a realidade de hoje, ele suspende o sentido fantástico para tentar lhe atribuir verossimilhança. Orienta seus atos entre a crença e a desconfiança, perdido entre aquilo que seus olhos veem e o que determinado princípio de realidade define como possível. Quando acorda do pesadelo anuncia uma resolução: ―Não mais 112


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recorrer, em casos de arrufo, aos dramas ultrarromânticos: são pesados demais.‖(ASSIS, 2008, p.973).Tão pesados e enfadonhos que lhe fizeram sonhar uma história fantástica que ri de seus princípios e por isso torna-se interessante. O universo onírico e do medo é explorado também em ―A vida eterna‖, publicado em 1870, sob o pseudônimo de Camilo da Anunciação. O conto apresenta a história de um homem que, depois de jantar com um amigo, estando quase a dormir, recebe a visita de um estranho chamado Tobias, que lhe fala do pressentimento de que morreria no dia seguinte. Seu último desejo seria que Camilo, o dono da casa, se casasse com sua filha Eusébia. Depois da recusa inicial, é forçado a aceitar o convite sob a mira de uma arma. Chegando à estranha mansão de Tobias, o noivo é saudado pelos convidados que o aguardavam. O mais estranho, porém, viria a seguir, quando Camilo se depara com a jovem noiva. A paixão inusitada parece correspondida. Depois do casamento, Eusébia revela o segredo por trás daquela história absurda. Seu pai havia descoberto, no Egito, o elixir da eternidade e, para que funcionasse, foi necessário organizar uma associação secreta, e cear todos os anos no dia de S. Bartolomeu, um velho maior de sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por cima. Conta que inúmeras vítimas já haviam sido sacrificadas, e ele seria a próxima. O banquete que se segue é narrado em tons de comédia grotesca até Camilo descobrir que tudo não passara de um pesadelo. No outro dia, Camilo sai para jantar com o amigo, que lhe sugere que escreva e mande a história ao Jornal das Famílias, comprometendo-se a entregá-la pessoalmente ao editor Garnier. O jogo de pistas falsas que cria a atmosfera de horror se dá logo no início do texto. O narrador deixa claro que se encontra naquele incomparável estado de espírito entre o sono e a vigília. É como se dissesse de antemão para o leitor que os acontecimentos que se seguirão não são de todo confiáveis. Um narrador duvidoso torna toda a trama isenta de grandes responsabilidades com a verossimilhança. O leitor é convidado a seguir um caminho turvo, avisado de que o que está por vir deve surpreendê-lo. Todavia, algumas estratégias são utilizadas para encobrir a fantasia. Quando Camilo se apaixona por Eusébia, toda a falta de sentido como que se desfaz. Novamente aqui, o tema romântico do amor incondicional é utilizado para injetar realidade no absurdo. Por um momento o amor imediato de Camilo parece dar rumo à trama sem nexo. O inverossímil é quase coerente pela lógica de uma hipótese sentimental igualmente difícil de acreditar. Tais contradições deixam permanecer um clima de incerteza resolvido pelo final anedótico. A incerteza, no entanto, 113


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não polariza realidade e ficção, mas níveis ficcionais distintos. Em nenhum momento se duvida do caráter irreal da narrativa, haja vista que, durante o clímax, o protagonista morto é capaz de ouvir as vozes daqueles que o esquartejam. A dúvida gira em torno do desfecho, da expectativa pelo momento em que o absurdo ficcional encontrará seu limite. O retorno ao verossímil é garantido por uma metalinguagem humorística, quando o conto se anuncia como tal – ele chega a ser assinado pelo protagonista. O pseudônimo nesse caso reforça a piada, o jogo, que não chega de fato a iludir o leitor, mas o coloca em uma situação curiosa, na qual o mais deliberadamente ficcional é sobrepujado pela ficção verossímil. Trata-se de um conto publicado no jornal que esse leitor tem nas mãos. O fantástico está a serviço da verossimilhança absoluta, e a ilusão se completa quando um narrador-autor se transforma no relator de uma história ao mesmo tempo insólita e real. A tensão entre o simples relato e a ficção reaparece em ―Sem olhos‖, que Machado de Assis publicou em 1876. O conto se inicia na sala de chá onde o casal Vasconcelos recebe quatro convidados. Quando a conversa passa a ser sobre almas do outro mundo, o Sr. Bento Soares se diz surpreso quanto ao fato de um adulto levar crendices a sério; ele entende histórias sobrenaturais como coisa de criança. A certa altura, o desembargador Cruz revela ter vivido uma experiência extraordinária que levaria todos a rever seus conceitos sobre tais almas de outro mundo. Mesmo relutante, depois dos convivas muito insistirem, decide contar a história. Ela começa quando Cruz, jovem estudante da capital paulista, visita a fazenda do pai no Rio de Janeiro. Certa noite um vizinho lhe bate a porta perguntando se o rapaz sabia ler hebraico, pois estava às voltas com uma passagem bíblica. No outro dia, ao buscar informações sobre o vizinho misterioso, descobre se tratar de um médico que algumas pessoas da comunidade local julgavam ter pacto com o diabo. Interessado no que poderia se transformar em uma anedota romântica a ser contada em São Paulo, o jovem vai visitar o médico identificado como Damasceno Rodrigues. Rapidamente começam uma amizade. Cruz descobre em Damasceno uma figura fascinante e excêntrica o suficiente para afirmar que a Lua não existe, é apenas uma ilusão de óptica. Em uma das visitas à casa de Damasceno Cruz encontra o velho adoecido que, pressentindo a morte lhe conta uma terrível história de quando, no interior da Bahia, se apaixonara por Lucinda, mulher casada com um médico da região que ousou lhe retribuir os olhares apaixonados e foi punida pelo marido. Narrando a história macabra Damasceno se debate ao olhar para um canto do quarto: ―Seus olhos resumiam todo o terror que é possível conter a alma humana‖ 114


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(ASSIS, 2008, p.1203). Assustado, Cruz olha na mesma direção e vê ―uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos […] Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensanguentadas‖(ASSIS, 2008, p.1204). O desembargador diz que depois de se refazer da experiência, e do médico ter morrido, fez uma pesquisa para escrever a história para um jornal acadêmico. Descobre que Damasceno nunca fora a Bahia, e a foto que lhe dera era de uma sobrinha morta. No entanto fica a dúvida: quem seria a mulher sem olhos que ele vira no quarto? Não é dada nenhuma resposta definitiva ao mistério, e o conto termina com Maria do Céu com os olhos baixos, estremecida com as palavras do desembargador enquanto o bacharel Antunes vai para janela tomar um ar. Não é muito difícil imaginar que a história não passe de uma anedota inventada pelo desembargador Cruz a fim de repreender o discreto flerte entre Maria do Céu e Bento Soares. Também não é difícil imaginar que esse tipo de mensagem condenando o flerte com mulheres casadas seja conveniente em um jornal voltado para ―damas da boa sociedade‖. Moralismos à parte, o que sobressai é o efeito persuasivo de uma história aparentemente fantástica que se resolve como alucinação psicológica, uma vez que um dos convidados tenta solucionar o mistério, o que sugere que a visão fantasmagórica de Cruz teria sido condicionada pelos desvarios do moribundo. O desembargador chega a concordar, resignado: a história seria melhor se Lucinda de fato tivesse existido. É preciso lembrar que, logo no início do conto, Bento Soares afirma que a crença no sobrenatural é coisa de criança, ilusão imprópria para homens feitos. Em um texto de 1927 sobre o humor Freud diz que o humorista trata a plateia como criança, pois ri de seus dilemas e sofrimentos e os tratas como triviais. Com ares de superioridade, zomba: ―Olhem! Aqui está o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas que se faça dele uma pilhéria!‖ (FREUD, 1980, p. 63). É esse tipo de humor que o desembargador Cruz mobiliza. O narrador apresenta uma história sobrenatural e tenta torná-la factível na medida, por exemplo, em que ressalta o ar de sanidade do médico, mas logo a desmonta ao revelar a inexistência de Lucinda. Literalmente infantiliza sua plateia, manipulando-a em um jogo de pistas que se contradizem. No final, ao expressar sua frustração com o fato de a história não ser de todo real, apresenta sua feição sarcástica. A astúcia fica ainda mais evidente se lembrarmos que, no início da conversa, é justamente ele que defende a possibilidade da crença no sobrenatural, quando afirma que a vida do homem não passa de uma série de infâncias. Defende matreiramente a 115


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fantasia para garantir o ar de verossimilhança a uma história que se revela falsa. Assim como ―Sem olhos‖, ―Um esqueleto‖, conto de 1875, começa com uma conversa sobre assuntos variados que envereda pelo caminho do estranho. A figura exótica, nesse caso, é Dr. Belém, e quem narra a história é Alberto, seu aluno de alemão. Alberto diz que um dia, no fim de uma das aulas, conversando sobre casamento o professor, que era viúvo, subitamente decide se casar com uma jovem viúva chamada Marcelina. Perguntado sobre a esposa anterior, sem grandes cerimônias, Dr. Belém convida Alberto para ir vê-la. Já dentro de seu gabinete, arranca o pano verde de um armário e mostra o esqueleto da ex-mulher, surpreendendo o estudante. Dr. Belém se revela o assassino de sua primeira esposa, em um crime passional por suspeita infundada de traição. Diz ainda que o esqueleto funciona como um alerta para que a atual esposa não dê margens a suspeitas. Depois de ameaçar matar Marcelina, sua atual esposa e Alberto, por suspeita de traição, o doutor desaparece carregando o sinistro esqueleto. Diante do clima de horror instaurado entre os convivas, Alberto anuncia que a história não passava de uma anedota. O excêntrico Dr. Belém nunca existiu. A articulação do sentido duvidoso do conto se manifesta, basicamente, na representação de Dr. Belém como homem extremamente singular, cuja bondade é sempre destacada pelo narrador, que chega a justificar a presença do esqueleto como desdobramento possível do amor que o doutor sentia pela esposa. A incerteza em relação a seu caráter faz com que Alberto nutra uma relação de atração e repulsa. Ele tenta deixar de visitar a casa, sempre sem sucesso. Seu retorno constante é um traço marcante das histórias de horror nas quais o protagonista insiste em voltar para o lugar onde será vítima de alguma situação macabra. É o caso, por exemplo, de ―O barril de amontilhado‖, de Edgar Allan Poe. Fortunato insiste em entrar na catacumba sinistra onde será assassinado, apesar das irônicas tentativas de dissuasão de seu assassino. Alberto, por sua vez, retorna para surpresas cada vez mais assustadoras: primeiro vê o esqueleto no armário, depois na mesa de jantar e no final ainda é levado a uma emboscada, da qual sobrevive graças a um arrependimento de última hora. Construindo um personagem entre a loucura e a razão, com motivações sinistras e precariamente explicadas, o narrador consegue prender a atenção da plateia sem ser interrompido. A relação entre o crível e o absurdo garante o prolongamento satisfatório da narrativa, mas o instrumento de persuasão mais eficaz aparece antes mesmo de a história começar. Vale lembrar que Alberto chora ao começar a falar do personagem 116


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inventado. As lágrimas são sua mais expressiva piada e o mais poderoso mecanismo de fazer crer. Com o truque ganha o auditório, que se frustra ao se descobrir enganado, não sem antes manifestar-se revoltado contra o tal Dr. Belém. A malícia do narrador é o próprio motor dramático do horror. Este, por sua vez, só funciona graças à articulação de diferentes níveis de ficção. A frustração da plateia antecipa a do leitor e o que era crença parcial no absurdo transforma-se em convicção absoluta nos limites da realidade. O horror desaparece quando o artifício é escancarado; desaparece sem nunca se completar perfeitamente porque o artifício nunca se camufla por completo, está presente como um pressuposto da chave da amenidade. Talvez a lógica de circulação dos textos ajude a explicar o dispositivo anedótico de retorno a um sentido ficcional verossímil. Escritos em uma proposta editorial de literatura amena, os contos são compostos em torno de uma autoexplicação. As cenas perturbadoras e os mistérios dramatizados encontram solução, resolvem-se para que o sentido de amenidade seja preservado, ainda que parcialmente. As conclusões preestabelecidas garantem certa segurança à tecedura das tramas, resolvidas entre a satisfação precária da explicação fácil e a frustração contraditória de um perigo que se perde. Na articulação entre níveis ficcionais distintos, mais ou menos verossímeis, a segurança parece garantida pela aproximação da ficção com determinado sentido de verossimilhança. O curioso é que nesse retorno a ficção potencializa seu efeito de realidade simplesmente por ter sido posta diante de uma versão mais radical de si mesma. Na restituição da verossimilhança, o literário ganha força como imaginação segura ao consagrar a ficção como artefato de consumo cotidiano. O fantástico aparece como dispositivo controlado contra o tédio, marca de uma ficção que faz uso objetivo da fantasia para fins de entretenimento. A noção de literatura amena que Carlos Augusto Ferreira classificou no prefácio de suas Histórias cambiantescomo ―leitura fácil‖, contos lidos de ―um sorvo, duas horas antes de a leitora adormecer‖ (FERRREIRA 1974, p. 21) implica uma lógica de recepção baseada na relação de confiança entre texto e leitor. Ao se pronunciar como amenidade, essa literatura antecipa a recusa de qualquer aspecto mais potencialmente perigoso. Vendida de antemão como produto aprazível para horas de lazer, a literatura amena garante seu espaço no jornal, pois convive harmoniosamente com artigos sobre moda e culinária. A estranha presença do horror ficcional alude à demanda por um tipo particular de ficção, entendida como repertório anedótico de casos pitorescos e engraçados. 117


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O narrador estabelece certo grau de intimidade com o leitor, sobretudo no tom jocoso dos finais. Frequentemente representando sua própria plateia, essas histórias apontam o lado perturbador e tenso das dramatizações do insólito, mas ao serem resolvidas como amenidade, zombam dos crédulos eventualmente seduzidos pelo narrador. Nesse jogo os lugares-comuns do horror literário anunciam a troça pregada em seus consumidores. O paradigma dessas tramas é o tratamento infantil dado ao leitor e consequentemente o próprio horror, que, anunciado como o fantástico, não passa de uma fabulação despretensiosa para passar o tempo. Nessa chave, a ficção se estabelece ao mesmo tempo como invenção parcial de um medo pueril e verossimilhança absoluta de um narrador transformado em contador de histórias. O universo doméstico, com tramas reais e imaginárias sobre matrimônios e traições, é o cerne dessas histórias de toucador, sem que isso implique necessariamente uma constante preocupação moralizante. As conclusões que restituem a verossimilhança são marcas de uma proposta ficcional que faz ver o estranho, o pecado e o mal para depois rir de suas próprias formulações. Ao brincar com o leitor, o narrador apresenta um universo que flerta com o horror sem ter de se aprofundar em seus termos e que resolve como anedota os suspenses construídos ao longo do processo. No entanto, e talvez paradoxalmente, o fim não pode ser o objetivo principal, sob o risco de perda do efeito desejado, mas o mecanismo de afirmação de uma estabilidade parcialmente perdida nas insinuações do fantástico. Se o pacto se reproduz na certeza da promessa de amenidade, o jogo se configura como uma via de mão dupla em que o autor e seu público vão a cada atualização testando os limites da crença e da descrença que viabilizam a configuração do horror. Nos lugares-comuns que as tramas evocam as técnicas narrativas configuram uma espécie de retórica do horror que deve sobreviver à certeza de sua precariedade e previsibilidade. A contínua publicação dessas histórias revela a persistência de um sistema dramático menos articulado em uma suposta suspensão da descrença do que no interesse pelo jogo lúdico que o horror propõe. As bases de negociação entre o texto e sua recepção são dadas de antemão, restando apenas o princípio do prazer, expresso como delicado gesto cotidiano. O horror na chave amena da literatura obedece a um certo princípio apaziguador, expresso na figura de um narrador declaradamente jocoso que ressalta a dimensão artificial como fundamento: um narrador francamente embusteiro se transforma em referência e garantia de amenidade. O funcionamento desses textos depende de um pacto de boa-fé que deixa claro o papel do narrador, que fatalmente revelará a farsa. São narradores 118


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relativamente confiáveis cuja restituição da verossimilhança é contratualmente garantida na promessa de entrega de literatura amena. Ao mesmo tempo que deseja vitimar seus leitores – pois do contrário a narração perderia um pouco de sua razão de ser –, o arranjo prévio garante um pacto de confiança que reafirma o estatuto artificial da fantasia. Mais do que qualquer imposição moralizante, é a relação franca que garantirá a possibilidade de exploração do horror e que poderá levar este a assumir formas mais abruptas e dificilmente categorizáveis como amenas. Nos contos de horror de Machado de Assis publicados no Jornal das Famílias a quebra do sentido fantástico ou sobrenatural representa um pacto que possibilita a exploração do horror como mercadoria literária amena. Esse acordo prévio não significa uma amarra definitiva, mas torna viável a representação do horror para um público previamente demarcado. Do grotesco banquete de canibais à convivência mórbida com esqueletos e à presença de autômatos sedutores, o horror literário explora a loucura e o assassinato sem perder o caráter gentil; transforma-se em hábito literário das famílias como o perigo possível e o prazer desejado. Se há alguma lição a ser aprendida é que a ficção, disfarçadamente, sorrateiramente, exploraria aquilo que poderia parecer vedado e talvez aí se expresse a última troça do narrador. O horror ameno traz o universo do pecado, do crime, do mistério, do desejo e do desconhecido na forma segura da anedota. Inscreve-se nas práticas cotidianas de leitura, punindo as pequenas perversões para também lembrar que existem. As insinuações de traição e as inusitadas possibilidades do amor se articulam em cenários sinistros, o que assegura a promessa do deleite na fabulação de uma diferença familiar proporcionada pelo sonho e pelo delírio. No fim, o flerte moderado com o insólito mantém o controle sobre o fantástico, o que indica a sedução de uma literatura que fabrica o perigo controlado e faz do horror um produto atrativo no mercado literário oitocentista. Bibliografia ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. FERREIRA, Carlos Augusto. Histórias cambiantes. Rio de Janeiro: Editora Três, 1974. FREUD, Sigmund. O humor. [1927]. Rio de Janeiro: Imago, 1980, p. 68. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, vol. XXI.) HOFFMANN, E.T.A. O homem da areia. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. POE, Edgar Allan. Tales of grotesque and arabesque. London: Worth Press, 2009. 119


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Monstros Góticos nos Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa Gothic Monsters in Inglês de Sousa‘s Contos Amazônicos Luciano Cabral30 Resumo: Sendo a versão mais extremada do Realismo, o Naturalismo intitulou-se a escola literária que representou, com maior precisão, a realidade humana. Porém, os escritores naturalistas brasileiros valeram-se de elementos góticos para compor certa gama de histórias. Os Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa, oferecem três narrativas cujos monstros presentes parecem atestar este fato. Palavras-chave: Monstros Góticos, Contos Amazônicos, Inglês de Sousa, Naturalismo. Abstract: As the most radical version of Realism, Naturalism has called itself the most precisely representative of the human condition. Nonetheless, the Brazilian naturalist writers made conspicuous use of gothic strategies to give life to some of their accounts. Contos Amazônicos, by Inglês de Sousa, offers three short stories whose monsters may make such statement to be true. Keywords: Gothic Monsters, Contos Amazônicos, Inglês de Sousa, Naturalism.

A poética naturalista pode ser definida como a vertente radical do Realismo. Um escritor pioneiro deste movimento, Émile Zola, compreendia sua própria produção como fidedignas representações da realidade. No prefácio à segunda edição de Thérèse Raquin, Zola defende-se de seus detratores ao afirmar que a imoralidade e a pornografia presentes em seu romance seriam nada mais do que resultados de seus estudos do temperamento humano. Seu objetivo era mostrar personagens dominados pelas inexoráveis leis da natureza (ZOLA, 1868, p. 5-6). Ainda que ficcionalizada, era a realidade, isenta de idealismos ilusórios, que ele cobiçava converter em texto. De fato, o romance naturalista foi frequentemente interpretado como um estudo científico. Seu estilo narrativo, aparentemente objetivo e impessoal, utilizava narradores oniscientes que baseavam-se nos determinismos e atavismos biológicos propagados pelo discurso positivista do século dezenove: Quando se liam romances como O Homem de Aluísio Azevedo ou A Carne de Júlio Ribeiro a associação a monografias médicas sobre a histeria era inevitável. O que se lia como ficção, se dizia também ciência. Ler O Homem equivalia a um estudo sobre os sintomas histéricos. Assim como ler O Cortiço, segundo a crítica da época, talvez fosse o mesmo que ―ver‖ um cortiço. O que se representava como ficção se apresentava também como documento. Como numa proporção matemática, nas repetições naturalistas, dominadas pela or30

Doutorando em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ) e membro dos grupos de pesquisa Estudos do Gótico (sob orientação do prof. Dr. Julio França) e A Voz e o Olhar do Outro (sob orientação da prof. Dra. Leila Harris). 121


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 dem das semelhanças, um discurso pode substituir outro, pode-se trocar um texto ficcional por um ensaio científico ou vice-versa [...]. (SÜSSEKIND, 1984, p. 65, aspas no original)

Esta empreitada cientificista (ou sociológica, no vocabulário de nossos dias) de ―estudar‖ a natureza humana talvez tenha atingido o ápice com Germinal (1885). Uma de suas obras mais aclamadas31, este romance resulta de uma pesquisa de campo feita por Zola, fruto dos meses em que conviveu com os mineradores de carvão de Anzin, no norte da França. Sob a proteção de Alfred Giard, um deputado radical, Zola relacionou-se com os mineradores e pôde ver com os próprios olhos suas condições de trabalho no subsolo, suas habitações precárias, o estigma da desnutrição e das doenças, e as crescentes mazelas provenientes da ordem econômica vigente (HEMMINGS, 2004, p. 21). A técnica defendida por Zola pretendia aliar o método jornalístico ao rigor científico da precisão e objetividade na análise do material observado. O processo, no entanto, devia sempre ser observado segundo a influência do meio, da educação e da herança biológica (CASTELO, 1954, p. 447). A versão brasileira do Naturalismo literário lançou mão de estratégias semelhantes. Os romancistas naturalistas ansiavam exibir ficcionalmente as teses científicas europeias em voga à época. A Carne (1888), de Julio Ribeiro, tenta concretizar na personagem Lenita as ideias de histeria propostas pelo médico francês Jean Martin-Charcot (BROUSSOLLE et al., 2014, p. 186). O Cortiço (1890), considerado pela historiografia literária um dos romances brasileiros mais característicos da poética naturalista, tenta demonstrar os argumentos de historiadores como Hippolyte Taine sobre a influência do meio e da hereditariedade na formação do caráter humano. Já O Missionário (1891), de Inglês de Sousa, almeja apontar, através do protagonista padre Morais, a fraqueza do livro arbítrio diante dos nossos ímpetos animalescos (CASTELO, 1954, p. 452). O empenho ávido pela verdade nua e crua, entretanto, não evitou que o Naturalismo brasileiro fosse contaminado por uma interpretação pessimista da realidade. Embora os naturalistas tenham pretendido construir suas narrativas sobre os alicerces da impessoalidade e do distanciamento científico (pois deste modo pensavam alcançar uma realidade autêntica), uma análise mais cuidadosa mostra que tal construção imbuiu-se de influxos góticos:

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O escritor americano Henry James, por exemplo, elege Germinal como uma das três obras memoráveis de Zola (JAMES, 1914, p. 54). 122


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte O caráter pessimista das narrativas mencionado pelos historiógrafos pode ser um ponto de partida para entender o Naturalismo brasileiro de fins do século XIX como uma forma de expressão artística que, ao invés de apenas representar fielmente a realidade, como apontam suas epígrafes e dedicatórias, caracterizar-se-ia pela ênfase em personagens monstruosos e temáticas ligadas a comportamentos limítrofes do ser humano – loucura, assassínio, transgressões sexuais e perversidade. (SENA, 2017, p. 12-3)

Quando tomado diacronicamente (e não circunscrito a um estilo de época), o Gótico vai além de castelos medievais, calabouços e donzelas em perigo. Sua poética abandona os padrões de beleza, simetria e perfeição e volta-se para a feiúra, a desarmonia e o horror como objetivos estéticos. O Gótico desconfia do discurso positivista e dos benefícios dos avanços científicos, assim como preserva uma atitude cética diante da bondade humana e da salvação divina. Seu campo semântico constantemente encerra conotações negativas. Seus temas exploram assuntos tabus, como perversões sexuais, transgressões morais, degenerações mentais e assassinatos. Seus espaços são definidos como loci horribiles, e o medo passa a ser o efeito de recepção pretendido. Em resumo, a poética gótica prioriza uma visão fundamentalmente desencantada do mundo. Elementos góticos são encontrados nos Contos Amazônicos (1893), de Inglês de Sousa. Muitas das histórias que compõem a coletânea mesclam aspirações naturalistas e tons sombrios, fazendo com que se reconheça que ―o desencantado Naturalismo brasileiro dialogou com outras convenções para além da escola de Zola‖ (SENA, 2017, p. 33). De aspirações naturalistas, contos como ―Voluntário‖, ―Amor de Maria‖, ―O Gado do Valha-me Deus‖, e ―O Rebelde‖ podem funcionar, em menor ou maior grau, como registros ficcionais de observações sociológicas de uma região vista como exótica através dos olhos do escritor com ambições cientificistas. Tais narrativas poderiam compor a lista da ―fase de consciência de país novo‖ (CANDIDO, 2006, p. 191), isto é, aquele momento literário em que certas obras assumiam o papel de documentos de descoberta da realidade do Brasil, ainda que o olhar sobre esta realidade tenha, por vezes, sido pitoresco. O conto ―O Gado do Valha-me Deus‖ ilustra este interesse pelo exotismo. Ambientado nos arredores do rio Amazonas, território pouco conhecido no século dezenove, o narrador, o vaqueiro Domingos Espalha, conta sua jornada em busca do gado perdido. Em dado momento, ele enumera os pássaros típicos da região: [...] galopando por cima do rasto da boiada, e nada de vermos coisa que parecesse com boi nem vaca, e só campo e céu, céu e campo, e de vez em 123


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 quando bandos e bandos de marrecas, colhereiras, nambus, maguaris, garças, tuiutis, guarás, carões, gaivotas, maçaricos e arapapás que levantavam o voo debaixo das patas dos cavalos, soltando gritos agudos, verdadeiras gargalhadas por se estarem rindo do nosso vexame lá na sua língua deles. (SOUSA, 2004, p. 100)

Percebe-se que a intenção desta enumeração nada mais é do que registrar as aves nativas que se encontram neste trecho amazônico. Domingos Espalha parece idealizar um interlocutor leigo sobre a fauna regional, porém ávido por conhecê-la. Assim, ele elenca mais demoradamente o que presume ser pitoresco para o interlocutor, ainda que não seja para ele mesmo. Contudo, mesmo nessas narrativas, é possível localizar traços da poética gótica. Estes traços são, inclusive, referidos de forma explícita no conto ―Voluntário‖. Ao explicar as minúcias do recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai, o narrador define o processo recrutador como ―terrível‖ (SOUSA, 2004, p. 9) e serve-se de palavras de cunho negativo, tais como ―barbaridade‖, ―tirania‖, ―suplícios‖, ―hediondez‖, ―sacrifício‖ e ―canhões vorazes‖ (SOUSA, 2004, p. 9). Ao fim da explicação, ele reconhece o quão sombrio – ou seja, o quão gótico – é o seu relato: Não pretendo carregar os tons sombrios do quadro da miséria do proletário brasileiro naqueles tempos calamitosos, em que o pobre só se julga a salvo do despotismo quando, nas mãos do senhor do engenho, do fazendeiro, do comandante do batalhão da guarda nacional, abdicava a sua independência, pela sujeição a trabalho forçado mal ou nada remunerado [...] (SOUSA, 2004, p. 9-10).

Pode-se, todavia, compreender os contos ―Acauã‖, ―A Feiticeira‖ e ―O Baile do Judeu‖ para além da escola de Zola. Estas obras afastam-se da cartilha naturalista, substituindo-a por convenções marcadamente góticas. Neste sentido, os tons sombrios presentes não são meras peças acessórias para ficções pretensamente documentais. Pelo contrário, esses elementos estão no centro das tramas. Tal observação confirma-se ao se atentar para a presença de um personagem sobrenatural que frequentemente consubstancia essa visão desencantada do mundo: o monstro. Discutir o monstro significa tratar de alteridade, palavra derivada de alteritas, em latim, e definida como ―o estado de ser outro ou diferente‖ (ASHCROFT et. al, 1998, p. 11, minha tradução). A alteridade implica uma comparação. Deste modo, o outro destaca-se como componente central das interações sociais porque sua existência é indispensável para a construção de parâmetros de normalidade e por localizar o nosso próprio lugar no 124


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mundo (ASHCROFT et. al, 1998, p. 169). A alteridade assinala então que são elementos dêiticos que moldam nossa identidade, pois só existe um eu em relação a um você, só existe um nós comparado a um eles. Daí, começa-se a reconhecer como a diferença atrela-se ao ser monstruoso. A diferença como atributo para se definir o monstro remonta a Aristóteles e seu De Generatione Animalium. Neste tratado biológico, o estagirita discute, dentre outros assuntos, o menor ou maior grau de paridade física que se observa entre pais e filhos. Em certa passagem, ele reflete sobre a razão da existência de recém-nascidos mais semelhantes a um animal do que a um ser humano – acontecimento digno de atenção por ser um fenômeno contrário à natureza. Para as premissas deste debate, é desnecessário saber os desdobramentos das reflexões aristotélicas. Contudo, interessa a definição que o filósofo oferece para o monstro, que salienta justamente a diferença como predicado: Esta é a descrição de alguns dos monstros referidos aqui; outros o são porque certos órgãos estão multiplicados, pois eles nascem com muitos pés ou muitas cabeças. O fundamento da causa das monstruosidades é muito semelhante àquela da deformidade; porque a monstruosidade é, na verdade, um tipo de deformidade. (ARISTÓTELES, 1984, 769b26-769b30, minha tradução)

Este tratado biológico, cujo intuito foi apresentar uma descrição da fauna de seu tempo, indica que, já no período clássico, a diferença – ou a deformidade, mais especificamente – era um atributo central para classificar um ser como monstruoso. Qualquer ente gerado pela natureza que apresentasse características que diferissem das de seus progenitores era tido como excepcional, imperfeito e antinatural. Para Nöel Carroll, monstros são criaturas que a ciência que conhecemos não é capaz de explicar. Em outras palavras, eles são seres extraordinárias em um mundo ordinário (CARROLL, 1990, p. 16), responsáveis por transgredir a ordem natural das coisas. Carroll acrescenta que seres monstruosos desencadeiam medo e repugnância. Mas eles não o fazem por serem monstros simplesmente. Seu poder de amedrontar e repugnar tem origem, com efeito, na ausência de ordem que, em última instância, estas criaturas simbolizam. Em ―Acauã‖, temos um exemplo de fenômeno monstruoso que surge no mundo ordinário. Neste conto, São João Batista de Faro, no Pará, é o local de aparição de uma menina-serpente. Nota-se o léxico gótico sobrecarrega a descrição da natureza, pois as noites são ―terríveis‖; a escuridão é ―pavorosa‖; os trovões são ―furibundos‖; e as matas são ―sombrias‖. A descrição da vila é igualmente negativa: 125


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Ele estava habituado à melancolia de Faro, talvez o mais triste e abandonado dos povoados do vale do Amazonas [...]. Faro é sempre deserta. [...] Nenhuma voz humana se fazia ouvir em toda a vila; nenhuma luz se via; nada que indicasse a existência de um ser vivente em toda a redondeza. Faro parecia morta. (SOUSA, 2004, p. 60-1)

É nesse espaço lúgubre e solitário que o capitão Jerônimo Ferreira, voltando de uma caçada em uma noite de sexta-feira, ouve os gemidos da cobra sucuriju: ―[...] um clamor horrível, insano, uma voz sem nome que dominava todos os ruídos da tempestade. Era um clamor só comparável ao brado imenso que hão de soltar os condenados no dia do Juízo Final‖ (SOUSA, 2004, p. 62). A cobra gemia por conta de dores do parto. Pouco tempo depois, o capitão encontra um bebê dentro de uma canoa na beira do rio. Jerônimo Ferreira, menosprezando a insólita lamúria da sucuriju, leva o bebê para casa, nomeia-o de Vitória e adota-o. Vitória, a filha adotiva, e Ana, a filha biológica, crescem juntas como irmãs, sem qualquer diferença de tratamento. Apesar disso, as duas passam a exibir comportamentos antagônicos. Enquanto Vitória é descrita como forte e musculosa, Ana é franzina e magra. O narrador torna explícita a influência que uma exerce sobre a outra, a ponto de Ana sentir-se aterrorizada: As duas companheiras afetavam a maior intimidade e ternura recíproca, mas o observador atento notaria que Aninha evitava a companhia da outra, ao passo que esta a não deixava. A filha do Jerônimo era meiga para com a companheira, mas havia nessa meiguice um certo acanhamento, uma espécie de sofrimento, uma repulsão, alguma coisa como um terror vago, quando a outra cravava-lhe nos olhos dúbios e amortecidos os seus grandes olhos negros. (SOUSA, 2004, p. 65)

O estranho comportamento de Vitória, ao longo da narrativa, prenuncia seu caráter extraordinário. As ausências por longas horas, as sucessivas fugas para o mato e as gargalhadas assustadoras funcionam como indícios de uma monstruosidade que irromperá por completo no fim do conto. No dia do casamento da irmã, Vitória – que havia desaparecido – surge à porta da igreja. Com os olhos fixos em Ana, ela revela inteiramente suas propriedades ofídicas monstruosas: De pé, à porta da sacristia, hirta como uma defunta, com uma cabeleira feita de cobras, com as narinas e a tez verde-negra, Vitória, a sua filha adotiva, fixava em Aninha um olhar horrível, olhar de demônio, olhar frio que parecia querer pregá-la imóvel no chão. A boca entreaberta mostrava a língua fina, bipartida como língua de serpente. Um leve fumo azulado saía-lhe da boca, e 126


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte ia subindo até ao teto da igreja. Era um espetáculo sem nome! (SOUSA, 2004, p. 69)

Culturalmente, o monstro pode metaforizar certos momentos históricos, pensamentos coletivos ou sentimentos individuais, tornando concretos os medos, desejos, anseios e fantasias de uma época, de um grupo ou de um indivíduo (COHEN, 2000, pp. 26-7). Percebe-se isto mais claramente ao se analisar o monstro sob a luz da religião, visto que esta extrapola os dados biológicos. O pensamento cristão, que afetou fortemente nosso comportamento, faz com que a diferença per se, como fator para explicar o ser monstruoso, seja insuficiente. Um exame etimológico revela que a palavra latina monstrum, derivando de monere, denota não apenas uma ocorrência contrária à natureza, mas também algo funesto ou desgraçado32. Com a ascensão do Cristianismo, o monstro passa a ser também assimilado segundo parâmetros morais. A atenção dispensada por Aristóteles no estudo de seres deformados – atenção alheia a juízos de valor – perde força diante da apreciação religiosa. Como resultado, a doutrina cristã adiciona o mal à natureza do monstro. Uma presença monstruosa converte-se então em sinal de mau agouro, em uma revelação de desgraças e horrores que estão por vir. O caráter gótico do ser monstruoso ganha mais evidência no Cristianismo. No evangelho de São João, os monstros são tanto reveladores quanto perpetradores do mal. Em nenhum outro livro da Bíblia, a presença de criaturas monstruosas é tão numerosa: cavalos com cabeça de leão, gafanhotos com rostos humanos, bestas de múltiplas cabeças e chifres etc. Os monstros apocalípticos blasfemam, destroem, derramam sangue, e o resultado de suas ações é sempre a desgraça e a morte recaindo sobre os habitantes da terra. Diante de tanto horror, os monstros alcançam a posição de mal supremo, sendo igualados a Satanás: Outro sinal foi visto no céu: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres, e sete coroas nas cabeças. Com a cauda, arrastou um terço das estrelas do céu e as lançou na terra. [...] Houve guerra no céu. Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão e seus anjos. O dragão perdeu a batalha, e ele e seus anjos foram expulsos do céu. Esse enorme dragão, a antiga serpente chamada diabo ou Satanás, que engana o mundo todo, foi lançado na terra com seus anjos (APOCALIPSE, 12:3-9). 32

monstrum (moneo) n. 1. prodígio, facto prodigioso (que é uma advertência dos deuses); 2. tudo o que não é natural, monstro, monstruosidade; 3. pl. actos monstruosos; 4. desgraça, flagelo, coisa funesta; 5. coisa incrível, maravilha, prodígio; monstra narrarecic. contar prodígios, contar coisas maravilhosas (Dicionário LatimPortuguês, 2001, p. 431). 127


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As revelações de João fazem com que o dragão vermelho – o sinal visto no céu –se torne a personificação do mal por excelência. Quanto mais a cultura cristã dissemina-se, mais os monstros e Satanás unem-se em uma só figura. O ser monstruoso, portador da diferença, estaria, a partir de agora, intimamente ligado ao diabo. Assim interpretado, ele não pode oferecer nada além de maldade. Maria Mucoim, personagem fantástica de ―A Feiticeira‖, é a figura monstruosa cuja ligação com o diabo é constantemente assinalada no decorrer do conto. Estevão, o narrador, retrata Mucoim do mesmo modo que os inquisidores do século quinze retratavam as mulheres acusadas de bruxaria. Naquele período, a feitiçaria destacava-se entre outras práticas heréticas por ser compreendida como um sinal de aliança satânica. As feiticeiras não eram apenas mulheres que buscavam atingir seus objetivos através de encantos e mágicas – o chamado maleficium (BEVER, 2008, p. 65). Elas eram, na verdade, servas do diabo, recrutadas e comandadas pelo próprio Satanás. Estevão inicia a história reclamando do tenente Antonio de Sousa, que, por conta da juventude e educação recebida, costumava zombar igualmente de ocorrências sobrenaturais e dos que criam nelas: ―a mocidade de hoje, como o tenente Sousa, proclama alto que não crê no diabo (salvo seja, que lá me escapou a palavra!), nem nos agouros, nem nas feiticeiras, nem nos milagres‖ (SOUSA, 2004, p. 27). A fim de reivindicar a necessidade da crença sobrenatural, Estevão emprega recursos góticos para caracterizar a feiticeira como um monstro diabólico. O tenente, ao saber dos rumores das práticas de feitiçaria de Maria Mucoim, decide ridicularizá-la. Estevão, entretanto, afirma que somente o nome da velha mulher já ―causa o maior terror em todo o distrito‖ (SOUSA, 2004, p. 29), e esforça-se para que seus interlocutores acreditem que Mucoim seja uma criatura maldita: O tenente Sousa viu na Maria Mucoim uma velhinha magra, alquebrada, com uns olhos pequenos, de olhar sinistro, as maçãs do rosto muito salientes, a boca negra, que, quando se abria num sorriso horroroso, deixava ver um dente, um só! comprido e escuro. A cara cor de cobre, os cabelos amarelados presos ao alto da cabeça por um trepa-moleque de tartaruga tinham um aspecto medonho que não consigo descrever. A feiticeira trazia ao pescoço um cordão sujo, de onde pendiam numerosos bentinhos falsos, já se vê, com que procurava enganar ao próximo, para ocultar a sua verdadeira natureza.Quem não reconhece à primeira vista essas criaturas malditas que fazem pacto com o inimigo e vivem de suas sortes más, permitidas por Deus para castigo dos nossos pecados? (SOUSA, 2004, p. 29, itálico no original) 128


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Estevão recorre ao léxico gótico, aos adjetivos negativos, para retratar a personagem. Seu aspecto é medonho e seu olhar é sinistro. Sob a perspectiva religiosa do narrador, os olhos, rosto e boca de Mucoim são apresentados como algo indescritível. Pelo mesmo motivo, ele ressalta sua conduta, que é, ademais, vista como enganadora. O aspecto diabólico de Maria Mucoim, porém, ultrapassa seu aparência física. Nas narrativas góticas, o espaço geralmente emula as características do vilão que o habita, indicando sua malignidade. A casa de Mucoim, localizada em uma região isolada do povoado, é descrita tal qual a proprietária, carregada dos mesmos atributos góticos: ―[...] um sítio horrendo e bem próximo de quem o habita‖ (SOUSA, 2004, p. 33). A habitação, denominada de ―maldita‖ (SOUSA, 2004, p. 34), abriga animais tipicamente associados a rituais pagãos, afastando a personagem de qualquer qualidade cristã: Era um quarto singular o quarto de dormir de Maria Mucoim. Ao fundo, uma rede rota e suja; a um canto, um montão de ossos humanos; pousada nos punhos da rede, uma coruja branca como algodão, parecia dormir; e ao pé dela, um gato preto descansava numa cama de palhas de milho. [...] das traves do teto pendiam cumbucas rachadas, donde escorria um líquido vermelho parecendo sangue. Um enorme urubu, preso por uma embira ao esteio central do quarto, tentava picar a um grande bode, preto e barbado, que passeava solto, como se fora o dono da casa. (SOUSA, 2004, p. 36)

Um monstro tão diabólico quanto Maria Mucoim marca presença também em ―O Baile do Judeu‖. O boto, cujo mito é arraigado à região amazônica, apresenta-se nesta história tanto como um animal lendário quanto como um agente vingativo. Dentre as muitas versões de sua lenda, a mais comum relata-o como um animal que, em noites de lua cheia, se transforma em um homem atraente e lascivo para seduzir e copular com mulheres. O furo no alto de sua cabeça é sempre ocultado por um chapéu, camuflando assim sua identidade sobrenatural. Mas em ―O Baile do Judeu‖, o boto também funciona como um agente da moral que pune os participantes de uma festa. O narrador sem nome deste conto, pretendendo atestar a veracidade de sua crença, recorre diversas vezes ao discurso cristão: ele recrimina todos os convidados que aceitaram participar do baile do ―homem que havia pregado as bentas mãos e pés de Nosso Senhor Jesus Cristo numa cruz‖; o anfitrião é também alcunhado como ―malvado judeu‖; e o espaço é um―covil de um inimigo da Igreja‖ (SOUSA, 2004, p. 103). 129


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A atmosfera alegre da festa começa a contrair um aspecto sombrio quando, às onze horas da noite, um homem desconhecido chega à casa. Descrito de forma negativa, como ―um sujeito baixo, feio, de casacão comprido e chapéu desabado, que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do casaco‖ (SOUSA, 2004, p. 107), o misterioso personagem, sem perder tempo, tira a mulher mais bonita do baile – a esposa do coronel da região – para dançar. Seus movimentos têm algo de sensual e seus trejeitos são retratados como sinistros, pois ―dava guinchos estúrdios, dançava desordenadamente, agarrado a dona Mariquinhas, que já começava a perder o fôlego e parara de rir‖ (SOUSA, 2004, p. 108). O homem desconhecido, cujos atributos extraordinários são insinuados nos sons que emite, atesta sua monstruosidade demoníaca ao exibir, por descuido, o furo no alto da cabeça: No meio dessa estupenda valsa, o homem deixa cair o chapéu e o tenentecoronel, que o seguiu assustado, para pedir que parassem, viu, com horror, que o tal sujeito tinha a cabeça furada. Em vez de ser homem, era um boto, sim, um grande boto, ou o demônio por ele, mas um senhor boto que afetava, por um maior escárnio, uma vaga semelhança com o Lulu Valente. O monstro, arrastando a desgraçada dama pela porta fora, espavorido com o sinal da cruz feito pelo Bento de Arruda, atravessou a rua, sempre valsando ao som da varsoviana e, chegando à ribanceira do rio, atirou-se lá de cima com a moça imprudente e com ela se atufou nas águas. (SOUSA, 2004, p. 110)

O homem-boto, como uma criatura monstruosa, age como um dinamizador da ordem social. Os participantes da festa, ao aceitarem o convite do judeu, tornaram-se cúmplices de um herético, automaticamente desordenando as estruturas vigentes. A punição de dona Mariquinhas, ao mesmo tempo em que causa horror, também faz reestabelecer a normalidade, afastando os convidados do comportamento pagão e aproximando-os da prescrição cristã. As histórias de Os Contos Amazônicos têm habitualmente sido classificadas como registros da realidade brasileira. A historiografia tem julgado estas narrativas à luz do caráter documental que os críticos sugerem. Entretanto, os influxos góticos encontrados em boa parte delas podem demonstrar a capacidade de transcender tal julgamento. Nestes três contos analisados, há um apreço pelo sombrio, pelo negativo e pelo medonho. Os monstros presentes, vistos neste ensaio como entidades tanto sobrenaturais quanto diabólicas, personificam um estado em que as narrativas trazem à tona uma óptica decepcionante, uma perspectiva desiludida sobre a humanidade – em síntese, uma visão desencantada do mundo. 130


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Bibliografia ARISTOTLE. ―Generation of Animals: Book IV‖. In: The Complete Works of Aristotle. Volume One. Edited by Jonathan Barnes. Princeton: Princeton University Press, 1984. ASHCROFT, B. GRIFFITHS, G. TIFFIN, H. Post-Colonial Studies: The Key Concepts. London & New York: Routledge, 1998. BEVER, Edward. The Realities of Witchcraft and Popular Magic in Early Modern Europe: culture, cognition and everyday life. New York: Palgrave MacMillan, 2008. BROUSSOLLE, Emmanuel; GOBERT, Florent, DANAILA, Teodor; THOBOIS, Stéphane; WALUSINSKI, Olivier; BOGOUSSLAVSKY, Julien. ―History of Physical and ‗Moral‘ Treatment of Hysteria‖. In:Hysteria: The Rise of an Enigma. Frontiers of Neurology and Neuroscience. Edited by Julien Bogousslavsky, vol. 35, June 2014, pp. 181–197. CÂNDIDO, Antônio. ―Literatura e Subdesenvolvimento‖. In:A Educação pela Noite, 5º edição.Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, pp. 169-96. CARROLL, Nöel. The Philosophy of Horror or Paradoxes of the Heart. New York: Routledge, 1990. CASTELO, José Aderaldo. ―Aspectos do Realismo-Naturalismo no Brasil―. In: Pan-American Union. Panorama, Washington D.C.:, vol. III, n. 9, 1954, pp. 43756. COHEN, Jeffrey J. ―A Cultura dos Monstros: Sete Teses‖. In: Pedagogia dos Monstros – os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 23-59. Dicionário Latim-Português, 2º edição. Porto: Porto Editora, 2001. HEMMINGS, F. W. J. ―City from the Pit‖. In: Bloom‘s Modern Critical Views: Emile Zola. Philadelphia: Chelsea House Publishers, 2004. JAMES, Henry. Notes on Novelists with Some Other Notes.New York: Charles Scribner‘s Sons, 1914. SENA, Marina. O Gótico-Naturalismo na Literatura Brasileira Oitocentista. [dissertação de mestrado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, 2017. SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, Qual Romance?. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. ZOLA, Émile. Thérèse Raquin. Préface de la Deuxième Édition. La Bibliothèque électronique du Québec. Collection À tous les vents. Volume 38, version 2.01, 1868.

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Histérica e perigosa: a heroína do Gótico-Naturalismo Hysterical and dangerous: the heroine of Gothic-Naturalism Marina Sena33 RESUMO: Este artigo procura analisar a figura da histérica, criada pelos naturalistas, e pretende demostrar de que forma este arquétipo de personagem é construído e desenvolvido dentro de uma específica poética finissecular, a que chamo GóticoNaturalismo. Para tal, analisa-se o conto ―Noivados Trágicos‖ (1898), de Medeiros e Albuquerque, de forma a exemplificar o papel exercido por esta figura feminina em uma narrativa brasileira. Palavras-chave: Gótico; Naturalismo; Histeria; Literatura Brasileira. ABSTRACT: This article aims to analyze the hysterical figure, created by the naturalists, and aims to demonstrate how this archetype of this special character is constructed and developed within a specific finissecular poetic, which I call Gothic Naturalism. For this, the short story "Noivados Trágicos" (1898), by Medeiros and Albuquerque, is analyzed in order to exemplify the role played by this female figure in a Brazilian narrative. Keywords: Gothic; Naturalism, Hysteria; Brazilian literature.

Introdução Germinie Lacerteux, de Jules e Edmond de Goncourt, é considerado o primeiro livro ficcional a tratar de um caso de histeria. Seguiu-se então uma série de títulos nele inspirados: Thérèse Raquin (1867) e L‘Assommoir (1877), ambos escritos por Émile Zola; La Devouée (1878), de Léon Hennique; Les Sœurs Vatard (1879), de Joris-Karl Huysmans; e La fin de Lucie Pellegrin (1880), por Paul Alexis. (cf. BAGULEY, 1990). Este súbito interesse pelo corpo e pela mente feminina a partir da segunda metade do século XIX, especialmente no fim de século oitocentista, pode ser visto não apenas em obras naturalistas, mas também em histórias de vampiros, romances decadentes, livros de horror (Cf. PRAZ, 1951; DOTTIN-ORSINI, 1996; FRANÇA & SILVA, 2015). Contudo, este fascínio parece vir sempre acompanhado por certo desprezo, por uma necessidade de rebaixar a mulher e qualquer tipo de atributo considerado feminino. Nestes termos, a personagem feminina finissecular seria bastante diferente daquela construída pelos românticos. Nas palavras de Dottin-Orsini:

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Bacharel em Letras (Português-Literaturas) e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde atualmente é doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Integra o Grupo de Pesquisa Estudos do Gótico (CNPq). 133


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 De qualquer maneira, no final do século, a Musa sofre estranhas metamorfoses. Vulgar para os naturalistas, ela bate nas coxas, tem suas regras (ou cólicas) e, se acontece dar à luz, é no horror e na sânie; hierática para os simbolistas, assassina com um sorriso, arrasta a saia no sangue, possui impassíveis olhos de pedra preciosa. Seja como for, é perigosa. (DOTTINORSINI, 1996, p. 14)

Voltado especialmente para o arquétipo naturalista da histérica, o presente artigo pretende demonstrar de que forma essa personagem feminina tornou-se recorrente em uma específica poética finissecular, a que chamo Gótico-Naturalismo. Os encantos de uma histérica Se a heroína da primeira realização do Gótico literário era virtuosa e quase inatingível, o fim de século oitocentista vê surgir uma nova heroína: voluptuosa e independente, ela é uma ameaça física ao homem (cf. FRANÇA & SILVA, 2015). Como efeito colateral das teorias científicas da época, a mulher passa a ser caracterizada, na ficção, como um ser profundamente corpóreo, com necessidades sexuais e aspirações que, se não forem devidamente controladas pela sociedade, podem perturbar a ordem vigente. Fred Botting, ao demonstrar como o Gótico retorna na produção literária fin-de-siècle, comenta: Enquanto a ciência divulgava grandes poderes unificadores, o horror era um outro modo de reunificação cultural – uma resposta às figuras sexuais que ameaçavam a sociedade. Um dos principais objetos de ansiedade era a ―Nova Mulher‖ que, em sua demanda por independência econômica, sexual e política, era vista como uma ameaça às convencionais divisões sexistas entre o papel doméstico e o papel social. (BOTTING, 2014, p. 131)

O medo gerado pela ―Nova Mulher‖ dará origem a uma vasta produção ficcional que explorará os estragos causados pelo poder do corpo feminino sobre o homem e que voltará sua atenção para a ―capacidade [feminina] de destruição de um mundo racional e previamente organizado‖ (FRANÇA & SILVA, p. 57, 2015). Por tal razão, a mulher será, frequentemente, caracterizada como um ser monstruoso. Seja ela insana, como Magdá, em O homem (1887), de Aluísio Azevedo, ou sensual, como Lucy, em Drácula (1897), de Bram Stoker, a personagem feminina encontra, na ficção finissecular, quase sempre os mesmos fins: a loucura ou a morte. A propósito da recorrência da temática feminina nas obras ficcionais da virada de século, Dottin-Orsini (cf. 1996, p. 21) chama atenção para o fato de 134


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que os naturalistas não ficaram fora desta área de influência. Nas obras destes autores, o desprezo pela mulher é acompanhado de um certo tipo de insistência obsessiva pelo tema, como pode ser observado nas palavras de Joris-Karl Huysmans34 (apud Dottin-Orsini, 1996, p. 11): ―e dizem que desprezamos as mulheres! logo nós, que passamos o tempo todo pensando nelas e tentando reproduzi-las!‖. A posição de Dottin-Orsini é semelhante à de Baguley, para quem a temática da mulher seria tão frequente, na literatura naturalista, que teria gerado um novo mito – o da sexualidade feminina catastrófica: Há um extenso corpus, na literatura naturalista, que se volta para estudos de ―fatalidades da carne‖ e que tematiza o desastre que pode ser causado pelo corpo feminino. Essas obras o fazem com tal insistência obsessiva que é muito claro que estamos lidando com um mito – tão imperioso quanto qualquer um dos mitos que deram forma às tragédias antigas – o mito da sexualidade feminina catastrófica. Foi um mito estimulado por fisiologistas, médicos e psiquiatras da época, cujos escritos eruditos sobre hereditariedade, histeria e menstruação autenticaram, e algumas vezes inspiraram diretamente, dramas literários. A culpa era do corpo, do corpo da mulher, que era associado ao corpo social e ao corpo político, numa sociedade na qual os medos confinaram a mulher no papel de medidora e de guardiã dessa ordem, já que sua inviolabilidade deveria ser preservada da maneira mais vigilante possível e que o seu potencial destrutivo havia se tornado cientificamente demonstrável. (BAGULEY, 1990, p. 103. Grifos meus.)

Baguley está correto em notar a existência de um mito que embasa a produção ficcional naturalista. Tal mito explicaria a grande recorrência de obras sobre mulheres histéricas – desde Germinie, dos irmãos Goncourt, até as irmãs Vatard, de Huysmans. Porém, o que parece escapar a Baguley é que o mito da sexualidade feminina catastrófica embasa não apenas a ficção naturalista, mas a produção literária finissecular como um todo – inclusive a literatura gótica e de horror. Nestes termos, a sociedade oitocentista que gera, a partir de seus medos, personagens vampirescas como Lucy, de Bram Stoker, é a mesma que dá origem a histéricas naturalistas, como Magdá, de Azevedo. Tanto uma como outra seriam provenientes do mesmo mito (da sexualidade excessiva da mulher) e do mesmo medo (do corpo feminino), ambos atestados pela autoridade do discurso científico finissecular. Nas palavras de Nunes (2000, p. 85): ―Para o homem do século XIX, atormentado pelo medo da mulher, seria preciso aplacar essa sexualidade, submetendo-a 34

Joris-Karl Huysmans, ainda que normalmente classificado como um autor decadente, foi filiado ao Naturalismo no início de sua carreira (cf. BAGULEY, 1990), como demonstram suas primeiras obras, entre elas a já mencionada Les Sœurs Vatard. 135


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à ordem masculina‖. O que os homens da ciência e da medicina pareciam querer comprovar – e, ao menos para boa parte dos escritores finisseculares, foram bem sucedidos – é que as mulheres possuíam uma sexualidade exacerbada, sobre a qual elas não tinham quase nenhum controle; que estavam mais sujeitas aos desígnios da natureza, isto é, e que eram menos capazes de agirem racionalmente. A mulher seria, então, muito mais propensa a perder o controle sobre o próprio corpo e a fazer mal, não só a si mesma, mas também à sociedade. Assim, ela se configuraria como uma transgressora em potencial, capaz de ultrapassar os limites sociais e morais a qualquer momento. Se, na narrativa de horror, a femme fatale é a figuração mais recorrente da ameaça representada pela mulher (cf. FRANÇA & SILVA, 2015), no Naturalismo a histérica, uma mulher fatal em potencial, será a figura emblemática dos desregramentos sexuais aos quais o corpo feminino poderia se submeter (cf. DOTTIN ORSINI, 1996; NUNES, 2000). A histérica, enquanto personagem arquetípica do Naturalismo, possuirá características formulares (cf. BAGULEY, 1990, SÜSSEKIND, 198435): (i) terá tendências hereditárias para a histeria, frequentemente herdadas da mãe; (ii) será vítima de sua própria condição fisiológica; (iii) não terá um modelo feminino materno no qual se basear; (iv) frequentemente será órfã de pai ou de mãe – ou ambos; (v) terá pouco ou nenhum senso moral; (vi) frequentemente será noiva de uma casamento malogrado; (vii) possuirá uma sexualidade irreprimível; (viii) representará uma ameaça ao equilíbrio social. A trajetória de sua queda será um tópos recorrente na ficção naturalista, como aponta David Baguley: Assim, o traço predominante dos romances naturalistas, frequentemente narrado em uma dolorosa duração e com tal riqueza de detalhes, caracteriza-se como o espetáculo – ou a agonia – da mulher decaída: seu declínio, suas humilhações, a perda de seu eu e de sua identidade, depois de uma perda catastrófica de sua virgindade ou de sua honra. (BAGULEY, 1990, p. 105)

Como exemplo, tomemos o conto ―Noivados Trágicos‖, de Medeiros e Albuquerque (1867-1934), que foi publicado pela editora Garnier, em 1898, na coletânea Mãe Tapuia. A narrativa mostra-se representativa das ligações que Gótico e Naturalismo podem estabelecer numa obra de ficção. 35

Ainda que Süssekind não entenda, claramente, a histérica como personagem arquetípica do Naturalismo, a autora aponta características formulares, que podem ser encontradas em muitas das nossas obras naturalistas. 136


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A obra narra a história de Leonor, uma jovem mulher recém-casada. Ela é descrita pelo narrador, já nos primeiros parágrafos, como inteligente e resoluta, e com uma forte personalidade. Mas, até então, nossa heroína encontrava-se casada e feliz, ―entregue unicamente ao marido‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 8), sem nenhuma outra relação social – e, assim, controlada. Entretanto, seu histórico familiar – obviamente registrado pelo narrador – confere à protagonista todas as condições adequadas para que a mesma se converta na figura da histérica: Leonor possui um forte temperamento, é órfã de pai e possui uma mãe e uma irmã loucas. Tal como menciona Flora Süssekind (cf. 1984, p. 126), a orfandade parece ser uma característica comum às heroínas naturalistas. Caracterizada a heroína, o narrador volta-se para a visita que Leonor e seu marido, Augusto, fizeram às suas parentes. No bonde, os dois retornam do hospício, pela enseada de Botafogo, relembrando as duas mulheres que viram algum tempo antes: Evidentemente diante dos olhos de ambos surgiram, retratadas, as figuras das loucas que acabavam de visitar: a velha mãe de Leonor fechada no mutismo sombrio das hipocondríacas, com uma atitude de tristeza e desconfiança; a irmã, alta, clara, de cabelos muito negros, mas de uma magreza de esqueleto, onde só os grandes olhos pretos, ora lânguidos, ora de um brilho estranho, exprimiam as alternativas do abatimento e excitação da loucura erótica que a consumia. Tinha uma voz meiga, um sorriso delicioso, apesar da magreza excessiva da fisionomia. Sentia-se nela o frêmito incessante de um desejo de volúpias não sabidas. Cansada, extenuada, quase moribunda – mas nunca saciada! Não tinha gestos obscenos, frases lascivas. Era da sua pose lânguida, dos seus meneios macabros de esqueleto lúbrico, e sobretudo do seu formoso olhar, que se desprendia aquele apetite insaciável de luxúria... Parecia viver num delíquio de amor... (ALBUQUERQUE, 1898, p. 8-9. Grifos meus.)

Enquanto a mãe de Leonor é caracterizada como reservada, melancólica e ―fechada no mutismo sombrio das hipocondríacas‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 8), a irmã é descrita de forma mais complexa. Por um lado, há o emprego de um vocabulário voltado para o campo semântico da degeneração física, típico da poética gótica, para caracterizá-la: utiliza-se as expressões ―magreza de esqueleto‖, ―meneios macabros‖ e ―esqueleto lúbrico‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 9). Por outro lado, temos a ênfase na caracterização da doença da personagem, típica da poética naturalista, que sugere que a mesma esteja internada por conta de uma sexualidade irreprimível e excessiva, o que é demonstrado através de expressões como: ―loucura erótica‖, ―frêmito incessante de um desejo de volúpias não sabidas‖, além de ―[c]ansada, extenuada, quase moribunda – mas nunca saciada‖ 137


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(ALBUQUERQUE, 1898, p. 9). Em outras palavras, a descrição naturalista apela para um vocabulário gótico para dar expressão à doença e ao caráter da personagem. Ainda ecoando o princípio naturalista da hereditariedade, o narrador e o personagem Augusto, por meio do discurso indireto livre, observam a semelhança existente entre as duas irmãs: ―Eram do mesmo tipo, do mesmo porte. Através de Leonor – alta, clara, cabelos e olhos negros – via-se a fisionomia da louca‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 10). Temos, assim, um indício de uma possível predisposição de Leonor para a loucura e, consequentemente, para a monstruosidade sexual. Na sequência do episódio, ao chegarem em casa, Leonor e Augusto têm uma relação sexual, motivados pela impressão perturbadora que a sensualidade da irmã de Leonor causa em Augusto: ―Augusto trazia na imaginação o retrato da cunhada. Involuntariamente comparava-a com a mulher‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 10). Chegamos, assim, ao momento de prazer da narrativa, que é singularmente curto, pois, durante o ato sexual o marido morre sobre corpo da esposa: Precisou tirar de sobre si, com dificuldade, aquele cadáver pesado. Ele caiu na cama de costas, numa pose obscena. Os olhos estavam arregalados, a boca semiaberta, com a ponta da língua meio saída num ricto de luxúria. — Morto! Morto! (ALBUQUERQUE, 1898, p. 14)

É precisamente com a morte de Augusto que temos o movimento de perda no enredo da narrativa, que levará a heroína diretamente a um processo de obsessão. Assim descreve o narrador a personagem após o episódio traumático: De então em diante o caráter de Leonor, de grave e melancólico que era, passou a ser taciturno e sombrio. Aquele golpe brutal, quando ela estava na mais plena exuberância de felicidade, prostrou-a, desequilibrou-lhe um pouco a razão. Insensivelmente, a cada instante, a cena horrível da morte do marido desenhava-se a seus olhos. Eram então os detalhes mais torpes, mais grotescos que a impressionavam com uma nitidez maior. Lembrava-se da dificuldade que tivera para retirá-lo de sobre o seu corpo, furtando-se ao enlace dele; recordava-se da boca entreaberta, vendo-se entre os dentes a ponta da língua, numa expressão grosseira de profunda sensualidade – sensualidade ao mesmo tempo trágica e ridícula, posta assim sobre a face de um cadáver; pensava no aspecto do corpo, caído sobre a cama, descomposto, na atitude indecorosa de um ébrio em fim de orgia... (ALBUQUERQUE, 1898, p. 15-6. Grifos meus.)

Como pode ser observado, a imagem do marido morto fica 138


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profundamente fixada na mente da personagem, dando origem a uma obsessão que será exaustivamente explorada pelo narrador em seus ―detalhes mais torpes, mais grotescos‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 15), como na descrição do corpo morto: ―a boca entreaberta, vendo entre os dentes a ponta da língua numa expressão de sensualidade‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 15). Por meio desse procedimento de aproximar morte e sexo, o narrador produz, no leitor, o efeito de atração e repulsa que caracterizará a obsessão desenvolvida pela protagonista. Leonor transforma-se por completo na heroína típica do GóticoNaturalismo: uma mulher de fortes paixões, órfã de pai, com uma mãe louca, uma irmã histérica e, agora, viúva. Esta última característica é especialmente importante, pois Augusto representa, na narrativa, o elemento masculino que controlava a capacidade destrutiva da personagem feminina. A ausência de um casamento – neste caso, o esfacelamento do mesmo – é decisiva para o andamento do enredo. Sem o modelo materno e sem o elemento mediador masculino, a personagem feminina passa a representar uma ameaça ao equilíbrio social. A partir deste momento, Leonor é ―a encarnação da mulher tal como a entenderam em regra os nossos naturalistas‖ (PEREIRA, 1988, p. 145), em uma distorção das ideias de Charcot sobre a histeria feminina. Como menciona Pereira: ―Desde que, apenas formadas, não tivessem um marido para enchê-las de grilhos, todas se tornavam nervosas, desorientadas, infelizes‖ (PEREIRA, 1988, p. 145). Muito diferente das heroínas românticas, a protagonista de ―Noivados Trágicos‖ transforma-se no retrato feito por Pereira: nervosa, desorientada e infeliz. Talvez possamos adicionar, a tais adjetivos, a característica ―louca‖, já que, gradativamente, a fixação de Leonor torna-se mais forte – a personagem passa a ter uma ―visão tenaz, obsidente, quase alucinatória‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 16) de seu falecido cônjuge. Toda a vez que vê um homem, de qualquer idade, ela imagina-o no lugar de seu marido morto, com a mesma fisionomia, com a mesma postura. Durante a leitura de romances, a protagonista projeta, nas personagens ficcionais, a expressão do cadáver do marido. O ápice dessas projeções se dá quando Leonor vê a expressão de Augusto na própria imagem de Cristo: De uma vez que rezava, erguendo os olhos para o crucifixo, viu o Cristo, o Cristo, macerado e sangrento, com a face triste e lívida, desprender-se da cruz e tomar em sua imaginação o mesmo ricto lascivo, a mesma atitude libertina e cínica!... (ALBUQUERQUE, 1898, p. 17. Grifos meus.)

A exploração sensacional da imagem religiosa vista por Leonor utiliza-se, 139


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a um só tempo de recursos góticos e naturalistas: se a figura é sangrenta e macerada, também é lasciva e libertina36. Tal delírio leva a própria personagem, horrorizada consigo própria, a ponderar: ―Viu-se a dois passos da loucura – como a mãe, como a irmã... Qual, entretanto, seria a sua? A melancolia de uma ou o erotismo desregrado da outra?‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 17). Novamente a questão da hereditariedade retorna, pontuando o momento em que a própria heroína começa a reconhecer a inevitabilidade de sua queda: afinal, ela possui os traços hereditários e encontra-se em condições adversas – tudo que é necessário para levá-la diretamente ao abismo. Tem início, então, um novo movimento de enredo: a luta da heroína para fugir de seu destino, que é determinado pelas leis naturais que regem as ações nas narrativas naturalistas. Nesta luta, a heroína precisa também combater os seus instintos que se tornarão cada vez mais incontroláveis. A partir deste episódio, Leonor tenta fugir de sua obsessão, procurando distrações como o jogo. Durante este processo, a personagem é assediada por vários homens, aos quais repele seguidamente. Uma noite, porém, um homem a assedia com mais insistência, recorrendo até mesmo à violência. Leonor chega a pensar em ceder, no entanto, um pensamento a paralisa. Ao pensar que o sexo poderia livrá-la de sua obsessão, ela ouve uma voz, ―em uma fórmula clara, precisa, articulada com a força de um dogma [...]: ‗Desta vez morrerás tu!‘.‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 18-9. Grifo do autor.) Leonor não apenas está obcecada pela imagem do marido morto, como, agora, encontra-se plenamente convencida de que morrerá da mesma forma, caso venha a ter uma relação sexual. Se, antes, a protagonista possuía apenas uma vaga percepção de que não poderia fugir da loucura hereditária de sua família, a partir deste momento preciso, ela passa a ter certeza de que não escapará do mesmo destino de seu marido – a morte induzida pelo ato sexual. É também a partir desse episódio que os homens tornam-se uma ameaça para a heroína. Leonor, agora, tem medo de ser violentada e, durante o coito, falecer: ―O Homem, que era então para ela o provocador irritante das suas visões eróticas, passou a ser o perigo iminente, o assassino sempre possível‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 19). Além disso, a heroína começa a imaginar a si própria no lugar do marido: ela também nua e com a mesma expressão, deitada de costas. Em contrapartida, a personagem, ao mesmo tempo, passa a sentir um desejo sexual muito forte, depois de seis anos sem praticar o ato 36

Curiosamente, a dessacralização de elementos ou figuras religiosas, bem como o anticlericalismo, é uma característica própria tanto de obras góticas como The Monk como de obras naturalistas, como O homem. 140


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sexual. Esses dois sentimentos tornam-se um conflito para Leonor, e para fugir de sua própria loucura – e pelo medo de morrer durante o coito – decide morar numa fazenda, isolada de tudo. Na fazenda, Leonor vive sozinha, com apenas o necessário para sobreviver, e contrata um homem para cuidar de assuntos administrativos da propriedade. Destaque-se o fato de que os dias que Leonor mais teme são os dias de tempestade, pois ela supõe que, nesses dias, a loucura se intensificava, como ela já havia visto diversas vezes no hospício: nas noites de tempestade os internados ficavam impulsivos e ferozes, babavam e uivavam. Precisamente em uma tarde de tempestade, Leonor começa a se sentir mal, e tem início o processo de degradação da heroína. Ela sente uma forte influência da natureza, que põe em xeque, novamente, o seu dilema: ceder aos impulsos sexuais e morrer, ou resistir e conservar sua vida. Neste momento da narrativa, as leis naturalistas – o instinto sexual da personagem, combinado com a hereditariedade e com a situação adversa na qual se encontra – começam a vencer. Sem o menor controle de si, Leonor sai a perambular sozinha pela fazenda: ―Seu passo tinha alguma cousa de brusco, de automático, era como o andar estranho das sonâmbulas‖ (ALBUQUERQUE, 1898, p. 27). A personagem chega até uma estrada nos domínios de sua fazenda, e vê um ex-escravo caminhando em sua direção. Chegamos, assim, ao clímax do conto, onde Leonor assedia sexualmente o ex-escravo, agarrando-o, rasgando as roupas dele e as suas próprias. O episódio exemplifica o momento em que os instintos vencem e a heroína é, finalmente, dominada por eles. O descontrole leva Leonor diretamente à transgressão que é, a um só tempo, social e sexual: ela, enquanto senhora da propriedade, assedia um ex-escravo – um comportamento inaceitável para os padrões da época. Vale ressaltar que tal comportamento se torna ainda mais transgressor por ser tratar do assédio de uma mulher em relação a um homem – e não o oposto. Nesse sentido, fica evidente que Leonor se concretiza como uma ameaça à ordem social. Mas, por outro lado, a personagem é vítima das suas predisposições psicológicas, do meio, da sociedade, do histórico de sua família e da fatalidade de seu destino. Leonor é, em última instância, a heroína que não pode lutar contra a existência das leis naturais que, necessariamente, iriam levá-la à queda ou, de forma mais específica, à sua própria morte. Para ela já não há esperança de vida ou de redenção. *** 141


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A análise proposta do conto ―Noivados Trágicos‖ demonstra como o tópos da mulher fatal converte-se na personagem arquetípica da histérica e, assim, torna-se adequado aos modos narrativos do Gótico-Naturalismo. Tal poética combina a linguagem e a estetização góticos para caracterizar monstros e transgressões naturalistas. É nesse sentido, portanto, que considero ―Noivados Trágicos‖ um conto pertencente a essa poética. Bibliografia ALBUQUERQUE, Medeiros e. Mãe Tapuia. Rio de Janeiro: Garnier, 1898.
 BAGULEY, David. Naturalist fiction; the entropic vision. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. BOTTING, Fred. Gothic. 2a ed. London: Routledge, 2014. DOTTIN-ORSINI, Mireille. A mulher que eles chamavam fatal; textos e imagens da misoginia fin-de-siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. FRANÇA, Júlio; SILVA, Daniel. De perseguidas a fatais: personagens femininas, sexo e horror na literatura do medo brasileira. In. Opiniães, v. 5, n. 6/7, p. 51-66, 2015a. NUNES, Silvia Alexim. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira; prosa de ficção; de 1870 a 1920. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. PRAZ, Mario. The Romantic agony. New York: Oxford University Press, 1951. SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance?. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

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Volúpias da estesia: a prosa de ficção decadente de Raul de Polillo Voluptuousness of aesthesia: the Decadent Prose Fiction of Raul de Polillo Júlio França37 Daniel Augusto P. Silva38 Resumo: Este artigo tem por objetivo investigar as relações entre gosto estético sofisticado e crueldade sexual na prosa de ficção decadente de Raul de Polillo (1898−1979), autor desconhecido do público leitor e praticamente ignorado pelos estudos literários brasileiros. A partir da análise de seus dois romances, Dança do fogo: o Homem que não queria ser Deus (1922), e Kyrmah: Sereia do vício moderno (1924), propõe-se analisar como a combinação entre fruição estética e sadismo gera horror como efeito de recepção. Palavras-chave: Literatura decadente, Sadismo, Literatura gótica, Simbolismo, Literatura brasileira. Abstract: This paper aims at examining the relationships between sophisticated aesthetic taste and sexual cruelty in the Decadent Prose Fiction of Raul de Polillo (1898-1979), an author unknown of Brazilian reader public and practically ignored by Brazilian literary studies. From the analysis of his two novels, Dança do Fogo: o Homem que não queria ser Deus (1922), and Kyrmah: Sereia do vício moderno (1924), we analyze how the combination between aesthetic fruition and sadism generates horror as reception effect. Keywords: Decadent literature, Sadism, Gothic literature, Symbolism, Brazilian literature.

Refinados e cruéis Poucos autores da literatura brasileira produziram obras tão transgressivas como as de Raul de Polillo39. Além de personagens 37

Júlio França é Doutor em Literatura Comparada pela UFF (2006), com pós-doutorado pela Brown University (2014-2015). É Professor de Teoria da Literatura do Instituto de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ. É líder do Grupo de Pesquisa Estudos do Gótico (CNPq) e integrante do GT da ANPOLL ―Vertentes do Insólito Ficcional‖. Seus artigos mais recentes podem ser lidos no site ―Sobre o Medo‖ (sobreomedo.wordpress.com). E-mail para contato: julfranca@gmail.com 38 Daniel Augusto P. Silva é mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista da CAPES, sob orientação do Prof. Dr. Júlio França (UERJ). É também integrante do Grupo de Pesquisa Estudos do Gótico, reconhecido pelo CNPq e também coordenado pelo Prof. Dr. Júlio França (UERJ). E-mail para contato: daniel.augustopsilva@gmail.com 39 Raul de Polillo (1898-1979) nasceu em São Paulo, filho de pais italianos. Como jornalista e crítico de arte, trabalhou para a Folha da Manhã, a Folha da Noite, o Correio Paulistano, bem como para o periódico ítalo-brasileiro Il Moscone. Foi também o primeiro tradutor para o português do Decameron, de Boccaccio, e ainda traduziu 143


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dominados por desejos pedófilos e necrófilos, seus livros apresentam orgias ritualísticas, missas negras, descrições detalhadas de autópsias, assassinatos violentos e crimes variados. Publicados pela editora de Monteiro Lobato e escritos em plena efervescência dos anos 20, quando as ideias modernistas de vanguardas começavam a tomar o ambiente cultural brasileiro, seus dois romances, Dança do Fogo: o Homem que não queria ser Deus (1922), e Kyrmah: sereia do vício moderno (1924), associam-se, anacronicamente, a uma outra tradição literária: à da prosa de ficção decadente. Cultivada na França fin-de-siècle por escritores como Huysmans, Jean Lorrain e Marcel Schwob, tal ficção também se desenvolveu no Brasil em obras como as de Gonzaga Duque, Medeiros e Albuquerque e João do Rio. Essa produção decadente nacional teve início nos anos finais do século XIX e se intensificou ao longo das primeiras décadas do XX, alcançando um número considerável de narrativas publicadas, ainda que fossem descritas pela crítica e pela historiografia literária como ―mero[s] produto[s] de imitação‖ (VERÍSSIMO, 1901, p. 92), ―despicienda[s] e de valor duvidoso‖ (CARVALHO, 1937, p. 360), de ―fragilidade afetada‖ e ―verbosidade difusa e pernóstica‖ (PEREIRA, 1988, p. 223), pouco mais que ―uma ‗oração‘ veleitária e narcisista‖ (BOSI, 2006, p. 282). A recepção crítica negativa, recrudescida pela posição hegemônica conquistada pelas poéticas modernistas no Brasil, ao longo de todo século XX, fez com que diversas obras de cunho decadente jamais fossem tomadas como objeto de análise pelos estudos literários brasileiros. O difícil acesso às edições – já há muito tempo esgotadas, sem reedições, e, frequentemente, ausentes dos acervos das bibliotecas públicas – contribuíram para um virtual desaparecimento dessas obras do escopo da crítica literária, mesmo da acadêmica. Como aponta Brito Broca, em artigo do final da década de 50, essa produção literária já quase não era mais conhecida pelo público e pelos estudiosos de seu tempo, ainda que tivesse constituído uma tendência no início do século: Toda essa literatura sensacionalista — e não recordamos senão algumas obras, de memória — passou sem deixar vestígio. Aliás, na maioria dos casos,

obras como O mundo perdido, de Conan Doyle, Os Assassínios da Rua Morgue e Outros Contos, de Poe, O Início e o Fim, de Asimov, e O falecido Matias Pascal, de Pirandello. Além de dois romances publicados pela editora de Monteiro Lobato, Dança do Fogo: o Homem que não queria ser Deus (1922) e Kyrmah: Sereia do vício moderno (1924), Polillo publicou ainda Retrato vertical (1936), livro sobre aviação civil e sobre a paisagem brasileira, e a biografia Santos Dumont gênio (1950). 144


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte foi apenas subliteratura. Não podemos, porém, deixar de reconhecer-lhe a significação como documento de uma época. (BROCA, 1991, p. 372)

Entre os autores que Broca diz não terem deixado vestígio está – além de Théo Filho, Benjamin Constallat, Carlos de Vasconcelos, Jarbas Andréa, Emília Moncorvo Bandeira de Melo e Sílvio B. Pereira – Raul de Polillo. As narrativas de tais autores expressariam duas tendências artísticas da época que, não raro, acabavam se confundindo: ―uma neonaturalista, outra decadente e mórbida‖ (BROCA, 1991, p. 368). Ambas as poéticas, além de apresentarem uma posição contra o Modernismo40, ―esforçavam-se por escandalizar a seu modo, narrando amores mórbidos, taras, vícios de todas as espécies (...), casos teratológicos, crimes sexuais e ingredientes do mesmo gênero‖ (BROCA, 1991, p. 369). Entre o panteão de escritores que teria influenciado tais produções, o crítico identifica Poe, Baudelaire, Wilde, Mallarmé e Lorrain. As qualificações atribuídas às obras deixam patente a ligação que a ficção decadente empreendia entre morbidez e transgressões sexuais. Um outro tema que viria a compor essa combinação é a busca por experiências estéticas sofisticadas e extremas. As narrativas decadentes visavam a explorar conteúdos artísticos raros, artificiais, surpreendentes e capazes de produzir novas e intensas sensações (cf. MUCCI, 1994). O refinamento ocorreria tanto no plano da linguagem dos textos, que apresentam uma escrita bastante trabalhada, com uso constante de neologismos e construções sintáticas pouco comuns, quanto no plano da diegese, com as personagens sendo impulsionadas por desejos sensoriais que as fazem rejeitar tudo o que lhes parece excessivamente vulgar e materialista. A concepção decadente de arte caracteriza-se por privilegiar aquilo que foge aos padrões morais e às expectativas de normalidade. A fim de gerar experiências estéticas singulares e de produzir, na recepção estética, efeitos emocionais e sensoriais intensos, essa literatura é marcada por desenvolver 40

Apesar de conhecer e frequentar o meio artístico vanguardista de São Paulo, Polillo nem sempre teceu críticas positivas a artistas identificados ao Modernismo. Em 1921, o autor é criticado por Oswald de Andrade por ter promovido comentários negativos sobre o trabalho do escultor brasileiro Victor Brecheret (cf. ANDRADE, 2013). Em 1922, em artigo atribuído a Mário de Andrade (cf. CARVALHO, 2008), publicado na Klaxon, comenta-se uma suposta posição contrária de Polillo à obra Índio Pescador, de Leopoldo da Silva. Mário de Andrade ainda faria uma anotação no rodapé de um jornal francês qualificando Polillo de ―sot‖, isto é, ―idiota‖ (cf. CARVALHO, 2008, p. 141). Já em 1929, o autor se envolve em uma polêmica com Benjamin Péret, poeta surrealista francês, ao criticá-lo severamente em uma série de artigos de jornal (cf. PUYADE, 2005). 145


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figuras criminosas que, dominadas por obsessões, chocam pela violência e amoralidade de seus atos. Elas não pautam suas escolhas a partir de valores morais partilhados pela comunidade, mas sim por princípios artísticos, o que lhes faz ter por preceito regulador de suas ações apenas o desejo de satisfazer seus próprios prazeres e anseios. É a crueldade decorrente dessa ausência de limites que será responsável, em grande parte, por despertar o horror como efeito de recepção. A atração desses protagonistas por conteúdos artísticos radicais é frequentemente transposta para suas atividades sexuais. Quando o gosto estético mescla-se ao desejo erótico, duas situações são comuns: na primeira, os personagens principais comparam suas amantes a objetos de arte, inclusive durante o coito; na segunda, eles têm relações sexuais com as próprias obras de arte, sobretudo quando produzem esculturas que parecem ganhar vida. A fruição artística, neste último caso, é descrita e vivenciada como se fosse uma experiência sexual, com contemplações que levam as personagens a reações orgásticas. As passagens que envolvem práticas sexuais são marcadas, assim, tanto por descrições e comparações que almejam a destacar o caráter artístico das pessoas e dos objetos desejados, quanto por um comportamento violento, ou mesmo sádico, por parte das protagonistas, incapazes de controlar suas compulsões. Tais cenas são forjadas por meio de um vocabulário mórbido, de modo a revelar um estado psicológico descontrolado dos personagens. Essa conjugação entre gosto estético refinado e crueldade sexual aumenta a capacidade da ficção decadente em chocar seu público-leitor e de horrorizá-lo, como nos revelam os romances de Polillo. Delírios estéticos A publicação de Dança do fogo: o Homem que não queria ser Deus (1922) não passou despercebida, para o bem e para o mal, pela crítica jornalística da época. Em geral, as avaliações apresentaram tom elogioso, ainda que contivessem algumas sugestões de revisão para o autor. No jornal O Combate (1922, p. 1), Polillo foi descrito por Raul Tiete como um ―autor mágico‖, ―um verdadeiro romancista‖, um ―grande artista‖ que teria criado ―uma belíssima obra de estesia‖ com ―a lama, o sangue a carne putrefata‖. As páginas do romance, por sua vez, são vistas como dotadas de uma beleza e de um segredo satânicos, em que a influência de D‘Annunzio, escritor decadente italiano, estaria patente no protagonista necrófilo e nos desejos sádicos das personagens. 146


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As duas apreciações críticas publicadas em A Gazeta são opostas entre si. A de Moacyr Chagas (1922, p. 5), que assina como membro da Academia Mineira de Letras, admoesta o autor pela imoralidade de sua obra: ―Estes são os maiores defeitos do livro: — loucura conceptiva e ingresso vedado no lar das senhoras excessivamente pudicas... O Brasil precisa de escolas e de moralidade‖. Alguns dias depois, Fausto Prado Penteado (1922, p. 3) discorda abertamente do primeiro crítico para defender a ―forma suntuosa de estilização‖ do livro, que confirmaria um ―culto místico ao Belo, imortalizador de Nietzsche, Wilde, Schopenhauer, D‘Annunzio e outras mentalidades poderosas‖. Penteado vale-se de passagens do prefácio de Dorian Gray, de Oscar Wilde, para defender a amoralidade da narrativa e seu compromisso único com o valor artístico. Além de identificarem diálogos intertextuais com obras reconhecidamente decadentes como as de Wilde e de D‘Annunzio, as resenhas críticas dedicam bastante espaço a debater questões éticas decorrentes do conteúdo transgressivo do livro. O romance consiste no diário de Eugênio Land Freitas, um escultor, que narra a evolução de suas obsessões estéticas e de seu descontrole sexual. Inicialmente, movido por um desejo pedófilo, ele mata uma criança; em seguida, desenvolve tendências necrófilas e parte em expedições aos cemitérios da cidade, tentando encontrar o corpo da menina ou de outra mulher; por fim, ao viajar para Europa, participa de diversas orgias, excitado pelo desejo de assassinar e depois copular com os cadáveres de suas amantes. O enredo da obra desenvolve-se de maneira lenta e, frequentemente, pouco linear, não apenas em virtude do estado psicológico agônico do protagonista, mas também pela quantidade de reflexões digressivas sobre estética e filosofia em cada capítulo. Dizendo-se vítima ora de uma superexcitação dos nervos, ora de um anátema, o narrador justifica com razões artísticas o seu ímpeto de praticar o mal. Eugênio, já no segundo capítulo da obra, demonstra que não julga seus atos como a maior parte das pessoas: ―Não posso, portanto, adotar a Moral. Amo o Belo; arranquei da Estética a razão única da minha vida. A Moral nem me pertence, nem me atinge‖ (POLILLO, 1922, p. 29). Ao visitar a escola da irmã mais nova, encontra Alina, uma órfã, pela qual se encanta. De início, o que mais lhe chama atenção são as feições da menina, descritas como sendo de aspecto rembrandtesco, tal qual um retrato do pintor holandês. Sempre ressaltando as cores, os contrastes e os reflexos luminosos das vestimentas das outras crianças do colégio, Eugênio revela uma percepção pictórica da realidade. Essas apreciações estéticas, além de seduzi-lo, geram nele uma vontade incontrolável de matar Alina, a tal ponto 147


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que a segue até o alto de uma escada, empurra-a e acaba por matá-la: (...) Sufoquei, a custo, um rugido de brutalidade satisfeita — e fechei os olhos. Notei, mesmo assim, algumas manchas vermelhas espalhadas ao redor. Reabri os olhos como se acordasse de um sonho mau; e vi, realmente, o mal sem limites. (...) A queda fora violenta, e o crâneo tenro, pequenino ainda, ao chocar-se tantas vezes contra as quinas do mármore, partira-se. A órfã estava morta! (POLILLO, 1922, p. 55)

O cadáver de Alina será ainda objeto de juízos estéticos do protagonista, que analisa o jogo de luz e cor sobre suas roupas e corpo ensanguentados. Depois desse crime, Eugênio se torna ainda mais angustiado, e torna explícita a ligação entre arte e crueldade: é necessário destruir para criar, criar para destruir, de modo incessante e circular. Levado, então, por uma ―necessidade absoluta de ensanguentar virgindades infantis‖ (POLILLO, 1922, p. 75), ele passa a invadir o cemitério da cidade em busca do corpo da órfã. Além da volúpia sexual, seu desejo é de descobrir como estaria esteticamente a menina em decomposição. Quando, uma noite, tomado por febre e por delírios, crê estar diante do cadáver, experimenta um profundo orgasmo com a mera imagem: ―rasguei-me as carnes na ânsia do prazer; (...) dobrei a espinha como pode dobrar uma serpente o corpo todo; (...) e atireime, por fim, ao chão, cansado de gozar — só por ter contemplado, momentaneamente, o corpo da criança morta!...‖ (POLILLO, 1922, p. 101). Nos capítulos seguintes, o escultor parte em viagem para a Europa, onde conhecerá aristocratas e artistas exóticos e participará de orgias variadas. Nesse intercurso, inicia uma relação com uma moça chamada Perséfone, que o amava profundamente. Eugênio, no entanto, não conseguia retribuir o sentimento, pois admitia que só conseguiria se apaixonar verdadeiramente por mulheres que estivessem mortas. De volta ao Brasil, em seu atelier, o protagonista vivencia o que chama de ―febre estética‖ e de ―loucura estética‖ (POLILLO, 1922, pp.199-200): em poucos dias, trabalhando ininterruptamente, ele transforma um bloco de pedra na figura de uma mulher. A escultura é extremamente voluptuosa e aparenta sentir extremo prazer sexual. Estimulado tanto artística quanto eroticamente pela obra de arte que ele mesmo produziu, Eugênio cede aos seus impulsos e busca copular com o bloco de mármore esculpido: E, quase de rastros, quase tornado idólatra da minha audácia criadora, avancei para a estátua. (...) e, levado pela violência inenarrável de todas as vergonhas, pela necessidade de me desafogar lubricamente, massacrando um corpo frio e inanimado, cingi a estátua, abracei-a como a uma amante, bei148


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte jei-a horrivelmente, e delirei na lubricidade feroz e sem classe que me provocava a frieza natural da pedra. (...) Mas compreendi o progresso da necrofilia, a evolução fatal do desejo para com as mulheres mortas! (POLILLO, 1922, pp. 204-205)

Observe-se, na passagem, a relação entre arte e crueldade sexual, não apenas na descrição da violência do seu ímpeto, animalesco, mas também na comparação que estabelece entre necrofilia e criação artística, com a substituição daquela por esta. Por meio de sua criação artística, Eugênio consegue mais uma vez satisfazer o impulso necrófilo e atingir um patamar de satisfação que não poderia obter com as amantes reais. A consumação do ato não satisfaz seu desejo, e o escultor torna-se ainda mais sedento por experiências sexuais e artísticas que envolvessem pessoas mortas. Em determinado momento, afirma que sua maior vontade era ―fazer sofrer sempre, sempre, implacavelmente!... É delicioso!... É quase artístico — porque já não sei como encontrar Arte na alegria. Não gozo prazer de Arte senão na Dor!‖ (POLILLO, 1922, pp. 264-265). É esse ideal que o leva a acompanhar autópsias de mulheres, narrando em detalhes os procedimentos cirúrgicos, as compleições físicas dos corpos e sua própria volúpia. Perséfone, enquanto isso, continua apaixonada por Eugênio, mas sem receber dele as mesmas manifestações de afeto. O protagonista estabelecia, na verdade, ideias e planos para conseguir assassinar a moça e assim alcançar um prazer pleno. Durante uma relação sexual, ele a estrangula, e se compraz em luxúria, por longos dias, com a beleza do cadáver que gerara. Poucas páginas depois do crime, o diário encerra-se abruptamente, com uma nota sobre a morte do protagonista: ―Eugênio Land Freitas, em março de 1918, falecia num hospital, onde fora recolhido como sofredor de moléstias nervosas e mentais‖ (POLILLO, 1922, p. 291). Vícios modernos Kyrmah: Sereia do vício moderno (1924), segundo romance do autor, foi recebida de forma mais negativa, e com críticas mais contundentes sobre o conteúdo moral do livro. Frei Pedro Sinzig (1925, p. 6), na seção ―O momento literário‖ d‘O Jornal, apresenta mesmo um pedido de restrição da circulação do livro: ―O bom senso do povo brasileiro e dos mais responsáveis por ele impedirá a propaganda desse livro essencialmente doentio, para não transformar o Brasil em hospital, escola de criminosos e hospício‖. Posteriormente, até mesmo Nelson Wernek Sodré, em crítica no Correio 149


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Paulistano (1936, p. 21) sobre Retrato Vertical, celebra que Polillo tenha se afastado ―dos exageros dilacerantes, das paixões convulsas‖ que teriam diminuído o valor de sua obra ficcional pregressa. Em anos anteriores, também no Correio Paulistano, Motta Filho (1925, p. 4) tece comentários bastante duros em relação a Kyrmah. Além de apontar na obra o ―lamentável mau gosto‖ e a ―terrível erudição‖, o crítico, apesar de se dizer a favor da liberdade da literatura de tratar de quaisquer assuntos, lamenta que os temas das obras sejam procuradas ―entre as grades dos manicômios e escolhida[s] nas alcovas da prostituição cotidiana‖. Filho (1925, p. 4) classifica a protagonista da obra como ―uma monstruosa espécie de Lucrécia Borgia ou de qualquer outra princesa endemoninhada do Renascimento‖. As poucas menções positivas na imprensa sobre o livro fazem referência à sua originalidade e às fortes emoções que propiciaria aos leitores durante a leitura. Novamente em forma de diário, o romance também é exemplar em explicitar a ligação decadente entre produção artística e horror, sobretudo no que diz respeito às transgressões sexuais. Dividido em duas partes, ―Tenebrália‖ e ―Arco-íris da nevrose‖, o enredo apresenta a história de Rodrigo, um jovem poeta que recebe cartas apaixonadas de uma mulher desconhecida. Após um longo período de correspondência, o artista acaba por conhecer Kyrmah, uma femme fatale que será a responsável por levá-lo a conhecer artistas bizarros, que promovem missas negras em louvor a Satã. Ao longo de todo o livro, Rodrigo, protagonista e narrador dos acontecimentos, revela suas predileções artísticas e literárias, fazendo citações e referências constantes a escritores como Poe, Baudelaire, Jean Lorrain e D‘Annunzio. As próprias personagens empreendem leituras de obras marcadamente mórbidas e decadentes, que, não raro, são capazes de despertar suas volúpias e suas ―nevroses‖. Nesse sentido, cria-se a impressão de que o autor desejava marcar, textualmente, à qual linhagem literária pertencia sua produção. Antes de conhecer Kyrmah, Rodrigo põe-se a imaginar como seria a misteriosa correspondente que assinava Mlle X. Sua imaginação é acompanhada por delírios doentios, como o que ocorre na noite em que, sozinho no quarto, ele crê, excitado, que a tem diante de si. A suposta visão da mulher desperta no poeta, simultaneamente, ímpetos violentos e desejos eróticos. A cena é narrada de forma grotesca e apresenta, ainda, sugestão de vampirismo da parte do narrador: (...) Acompanham-na figurações rubra de fetos humanos enlameados de sangue sem olhos e sem boca; monstros de pesadelo, de ópio; criaturas de 150


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte sacrifício e de miséria, que cantam uma canção horrível. (...) E é neste ambiente em que tudo é fantástico, e rude e sanguinário, que eu quero possuir Mlle X — porque lhe voto um amor violento, inextinguível — um amor que é sede nefanda de ódio, que é vontade imperiosa de beber sangue quente! Sangue quente a sair aos borbotões, das suas veias intumescidas de luxúria e de veneno!... (POLILLO, 1922, pp. 23-24)

Após o início do relacionamento com Kyrmah, essa postura agressiva e dominadora de Rodrigo será alterada. Em virtude de um desejo sexual intenso, a femme fatale subjugará o rapaz, deixando-o fraco. O protagonista credita aos gostos artísticos da amante parte da culpa por seu comportamento desmedido, classificando-a como ―esteta‖: ―Kyrmah é uma artista moderna (...), estupenda na encenação bizantina dos seus caprichos de esteta insuperável (...). Sua cultura artística é a que deveria ser de toda mulher do século vinte: — ampla, profunda, tenebrosa — sensual e dolorosa a um tempo‖ (POLILLO, 1922, pp. 53-54). As leituras macabras que ela fazia, Rodrigo complementa, contribuiriam para a intensificação de sua libertinagem mórbida. A segunda parte da obra apresenta o grande sabbath satânico promovido por Kyrmah e por um grupo de artistas – entre eles, várias mulheres fatais. Tão sedutoras quanto cruéis, elas apresentam pseudônimos e histórias de vida quase intercambiáveis, já que as trajetórias de todas elas foram marcadas por produção artística, desregramento sexual e crimes diversos (cf. SILVA, 2017). Madame Le Vampire, La Maja, Mater Tenebrarum, Mlle T, Mala Vita e Kyrmah participam ativamente da orgia, enquanto contam seus passados transgressivos e inebriam-se. O comportamento de Mater Tenebrarum é o que deixa mais evidente a união entre refinamento artístico e crueldade sexual. Para tentar frear seus ímpetos sexuais, a personagem dedica-se a pintar grandes quadros. Sua rotina como artista, no entanto, era bastante peculiar: envenenava seus modelos para pintá-los em agonia e, assim, retirar das imagens sensações e ideias novas. Nas palavras do narrador, ela exibia ―a volúpia das coisas macabras; tinha a ânsia perene de se enlamear, de se envilecer, de se diluir, em gargalhadas loucas e cínicas, no labirinto da brutalidade e do delito...‖ (POLILLO, 1922, p. 130). O sabbath prossegue com orgias entre os participantes, com danças bizarras, sacrifícios e até mesmo com uma carne de criança sendo comida pelas mulheres. No ápice da missa negra, Kyrmah se transforma em uma monstruosidade esquelética, com traços de Medusa. Ela revela, então, desejar ser possuída com violência por Rodrigo, a fim de que o ritual se conclua e ela alcance o orgasmo. Curiosamente, ele descreve a cena ainda 151


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de modo a destacar certa beleza no aspecto cruel e grotesco da mulher: Ossos monstruosos, articulados, descendo de uma cabeça real e perfeita, carnuda, viva, deslumbrantemente bela, coroada por uma fogueira sobre a qual cambaleava, semimorta, bêbeda de perfumes e de éter, uma enorme borboleta negra dos Pampas... (...) Queria ser possuído por mim, com violência, com brutalidade, com delito... (POLILLO, 1922, p. 174. Grifos meus)

A invocação de Satã é concluída com o assassinato sacrificial de Kyrmah, cujo sangue é espargido sobre uma hóstia negra. Nesse momento, o protagonista narra que o ambiente foi progressivamente sendo tomado por seres monstruosos, que se espalhavam pelo recinto. O clímax do ritual também trouxera consigo, além do holocausto da mulher e das figuras disformes, um incêndio de grandes proporções, que termina por destruir o local e por assassinar os participantes. Rodrigo, ao sobreviver, é internado em um manicômio, e busca, em vão, convencer os médicos do que havia se passado. Como em Dança do Fogo, Kyrmah apresenta como personagens principais artistas neuróticos, viciados, sexualmente transgressivos e motivados por ideais estéticos. As buscas que empreendem por realizações artísticas encaradas como refinadas raramente acabam bem. Ao relacionar o próprio prazer sexual a objetivos artísticos raros, eles engendram destinos que os levam, frequentemente, à morte, à loucura ou à doença. Explorando sistematicamente a crueldade de seus protagonistas e o excesso de seus desejos, os romances de Raul de Polillo são um marco do horror decadente na literatura brasileira. Bibliografia ANDRADE, G. Oswald de Andrade em torno de 1922: descompasso entre teoria e expressão estética. Remate de Males, Campinas, v. 33, n. 1-2, 2013. BOSI, A. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. BROCA, B. Naturalistas, parnasianos e decadistas: vida literária do Realismo ao Pré-Modernismo. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991. CARVALHO, L. E. A revista francesa L’Esprit Nouveau na formação das ideias estéticas e da poética de Mário de Andrade. 372 fl. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008. CARVALHO, R. Pequena história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguet & C. Editores, 1937. CHAGAS, M. Movimento literário: ―Dança do Fogo‖, Raul Polillo. A Gazeta. São Paulo, p. 5, 28 set. 1922. 152


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FILHO, M. A Semana Literária. Correio Paulistano. São Paulo, p. 4, 9 mar. 1925. MUCCI, I. L. Ruína e simulacro decadentista: uma leitura de Il Piacere, de D’Annunzio. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1994. PENTEADO, F. P. Movimento literário: o romance de Raul Polillo, Dança do Fogo. A Gazeta. São Paulo, p. 3, 4 out. 1922. PEREIRA, L. M. Prosa de ficção: história da literatura brasileira (de 1870 a 1920). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1988. POLILLO, R. Dança do fogo: o Homem que não queria ser deus. São Paulo: Monteiro Lobato & Co., 1922. __________. Kyrmah: Sereia do vício moderno. São Paulo: Monteiro Lobato & Co., 1924. PUYADE, J. Benjamin Péret: um surrealista no Brasil (1929-1931). Revista Conexão Letras, Porto Alegre, v. 1, n. 1, 2005. TIETE, R. Às quintas-feiras: ―Dança do Fogo‖. O Combate. São Paulo, p. 1, 5 out. 1922. SILVA, D. A. P. Heróis, nevrosados e fatais: os vilões decadentes. Anais do III Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, XV Painel Reflexões sobre o Insólito na Narrativa Ficcional, Rio de Janeiro, 2017 [no prelo] SINZIG, F. P. O momento literário. O Jornal. Rio de Janeiro, p. 6, 3 fev. 1925. SODRÉ, N. W. Livros novos. Correio Paulistano. São Paulo, p. 21, 29 nov. 1936. VERÍSSIMO, J. Estudos de literatura: primeira série. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901.

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Do casarão ao cemitério: o espaço e o horror em contos sertanistas de Monteiro Lobato From the mansion to the graveyard: the space and the horror in wilderness story of Monteiro Lobato Bruno Silva de Oliveira41 Resumo: O espaço é um elemento diegético que evidencia a face sobrenatural da narrativa para o leitor, possibilitando que aflore por meio dele sentimentos variados como estranhamento, empatia e medo. Neste artigo procura-se refletir sobre a relação sertão e horror, por meio dos contos ―Bugio Moqueado‖ e ―Bocatorta‖, de Monteiro Lobato, em que sertão é retratado como uma região fronteiriça, um espaço de transição, para verificar como espaço permite que o medo aflore no leitor. Palavras-chave: insólito; espaço; Monteiro Lobato; gótico. Abstract: Space is a diegetic element that reveals the supernatural face of the narrative to the reader, allowing that surface through it feelings varied as strangeness, empathy and fear. In this article, we try to reflect on the relation wilderness and horror, through the stories "Bugio Moqueado" and "Bocatorta", by Monteiro Lobato, on what wilderness is portrayed as a frontier region, a space of transition, to verify how space allows fear to surface in the reader. Keywords: unusual; space; Monteiro Lobato; gothic.

As pesquisas contemporâneas em Teoria Literária projetam um novo olhar sobre o espaço, um olhar menos estigmatizado e marginal, não o enxergando como um mero acessório analítico, que deve ser colocado à margem durante as análises, ele passa a figurar como um farol que indica o caminho mais seguro para um marinheiro que está em mar revolto durante uma tempestade. O espaço, juntamente com o tempo, o narrador, as personagens, o enredo e demais elementos diegéticos são fios que se enredam para tecer um tecido chamado narrativa, logo não se pode pensar o espaço fora da obra literária ou de forma isolada dos outros componentes da narrativa. Lins (1976, p. 63) afirma que ―a narrativa é um objeto compacto e inextrincável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outros‖. Além disso, o espaço é um elemento dinâmico em constante transformação, construído a partir da intencionalidade do narrador, retratando os sentimentos das personagens que ele encerra; estabelecendo uma relação de inter41

Professor efetivo da área de Letras do Instituto Federal Goiano - Campus Iporá. Aluno do Doutorado do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Grupo de Pesquisa em Espacialidades Artísticas (GPEA). Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás/ Regional Catalão (UFG/RC). Licenciado em Letras – Língua Portuguesa/ Língua Inglesa e suas respectivas literaturas pela Universidade Estadual de Goiás – Câmpus de Iporá. E-mail: bruno.oliveira@ifgoiano.edu.br 155


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dependência constitutiva entre os dois, o espaço sofre e exerce influência das/sobre as personagens. O espaço literário evola diversas informações de cunho cultural, físico e geográfico. É a partir dele que se angariam informações inerentes a costumes e tipos humanos das personagens da obra, ele proporciona um mapa sob o qual o leitor pode se orientar e agregar novas informações à sua interpretação. No tocante à relação entre espaço e personagens, é exequível depreender que a partir do primeiro o leitor pode fazer inferências sobre o último. Logo, reafirma-se que o espaço não é um acessório para a narrativa, mas um elemento importante que a compõe e revela inúmeras singularidades sobre a mesma para o leitor, influenciando diretamente a constituição do Modo Fantástico e de suas vertentes, pois eles ―[...] têm em âmago a peculiaridade de, uma maneira ou de outra, conectar, confrontar ou colocar em intersecção mundos distintos, espaços divergentes, realidades incongruentes‖ (VOLOBUEF, 2012, p. 175). Destarte, o espaço é um elemento narratológico que evidencia a face insólita da diegese ao leitor, possibilitando que aflore nele sentimentos e sensações variadas como inquietação, estranhamento, empatia e medo. Nesse sentido, pode-se evidenciar que ―o fantástico se revela, então, por uma estratégia estética que alça o espaço como desencadeador da hesitação ou da ambiguidade‖ (GAMA-KHALIL, 2012, p. 33), ou seja, a dúvida se aquilo que o leitor lê é real ou não, se aquele espaço existe ou não realmente. É comum às narrativas do Modo Fantástico que o espaço mude, alterne, se transforme, ocorrendo uma sobreposição de duas ou mais dimensões dentro da narrativa, sendo esse um procedimento recorrente, como elencado por Ceserani (2006, p. 73) e Gama-Khalil (2012, p.33). Desloca-se de um espaço que retrata o mundo prosaico para um mundo novo, onde tudo é possível, que não é regido pelas mesmas leis naturais do mundo prosaico. Ele é povoado por criaturas e seres polimorfos, é o espaço do não-real, do perturbador e do inexplicável, nele o ―[...] protagonista se encontra repentinamente como se estivesse dentro de duas dimensões diversas, com códigos diversos à sua disposição para orientar-se e compreender‖ (CESERANI, 2006, p. 73). Esse deslocamento do espaço familiar e cotidiano para o espaço do sobrenatural e fantasista, como afirma Roas (2001, p. 8), não ocasiona um processo de evasão da realidade por parte do leitor, pelo contrário, ele proporciona uma reflexão sobre seu próprio mundo e seus sentimentos perante esse, pois ―o espaço ficcional constitui-se como uma base por meio da qual 156


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o leitor será incitado a reler o ‗seu‘ espaço ‗real‘ a partir da visão que tem daquele espaço ‗irreal‘ e insólito‖ (GAMA-KHALIL, 2012, p. 37). As narrativas do Modo Fantástico, principalmente as da vertente gótica, têm a predileção das narrativas fantásticas por espaços escuros, lúgubres, sem ou com pouca luz, desbotados e fechados, espaços que remetem ao mundo noturno ou ao cronotopo da noite (CESERANI, 2006, p. 77-80; GAMAKHALIL, 2012, p. 34; FURTADO, 1980, p. 124); visto que, em espaços lúgubres, o ser humano produz menos inibidores de imaginação, ou seja, em espaços escuros, o homem, por interferência da baixa produção de inibidores imaginativos, começa a ver elementos estranhos e até mesmo sobrenaturais, o que lhe ocasiona medo, sentimento atrelado ao fantástico. O gótico pode ser considerado como sinônimo de excessos que ironizavam o pensamento racionalista do século XVIII. Essa vertente evoca em seus textos imagens do passado, suscitando no leitor sentimentos antitéticos como o terror e o riso por influência do Romantismo (BOTTING, 2005, p. 01), visto que a utilização de imagens escuras e lúgubres, visando suscitar o medo e a ansiedade no leitor, às vezes, pelo excesso de fantasia e de situações mirabolantes, provoca o riso e a zombaria. O castelo de Otranto, de Horace Walpole, é considerada a obra inaugural do Gótico, ela influenciou diversos autores da vertente, pois Walpole construiu espaços inovadores, como castelo medieval, afastado, composto por cômodos desérticos e arruinados, impregnado de lendas fantasmagóricas. O autor os povoou com arquétipos literários ligados ao folclore medieval, os quais também se tornaram recorrentes nas produções do gótico, uma vez que auxiliavam a instauração do terror no leitor, habitavam esses espaços nobres tiranos, heroínas pudicas e perseguidas e heróis humildes e honrados. O gótico transgride os valores de sua época ao: se associar com o sobrenatural; utilizar elementos insólitos em suas narrativas oriundos seja da imaginação, do delírio ou do próprio folclore pagão; e apresentar facetas ocultas do ser humano, tais como a violação social, mental e espiritual. Diversas vezes, esses elementos conferiam pensamentos negativos, primitivos, irracionais e fantásticos às obras góticas, pois a leitura de uma dessas suscitava no leitor sentimentos que ultrapassavam a razão, esboçando situações que demonstravam paixão, entusiasmo; isto é, que transgrediam ―os limites da realidade e possibilidade, elas também desafiam a razão através de seus excessos em ideias fantásticas e voos imaginativos‖ (BOTTING, 2005, p. 04)42. Os terrores e as transgressões apresentados pelas narrativas 42

―(…) the bounds of reality and possibility, they also challenged reason through their 157


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góticas são um dos meios de reafirmar valores e virtudes, transpor os limites impostos pela sociedade através da literatura. Imagens e figuras como espectros, monstros, demônios, cadáveres, esqueletos, aristocratas maus, monges e freiras, heroínas desmaiadas e bandidos povoam o imaginário gótico, em função de se configurarem como imagens ameaçadoras tanto em sua face imaginária como realista. Referente ao espaço, os autores góticos dessacralizam o mesmo. Hogle (2002, p. 02) elenca como espaços recorrentes a narrativas góticas: castelos com passagens secretas, abadias, igrejas, cemitérios e criptas, entre outros espaços que geram e perpetuam o medo, os quais são carregados de superstições e que possibilitam a barbárie. Sá (2010) aponta que esses espaços são focalizados a partir de uma lente hiperbólica, a linguagem prima pelos excessos e pela falta de comedimento na utilização de adjetivos, cria-se um cenário imponente e apavorante, no qual o pior pode acontecer. Pelas perspectivas dos estudos de Foucault sobre o espaço, pode-se designar esses espaços como heterotopias, pois são ―espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis‖ (FOUCAULT, 2009, p. 415); são espaços que incomodam porque são fragmentados, superpostos, pluriformes, justapõem e invertem planos, que representam o real e retratam a desordem e a fragmentação, desestabilizando o olhar acostumado com a ordem (GAMA-KHALIL, 2012, p. 35-36; GAMA-KHALIL, 2008, p, 6970). Nota-se que a produção gótica do século XVIII, com seus romances e aventuras, utiliza a tradição como temática e pano de fundo, narrando o salvamento de heroínas pudicas em castelos lúgubres, por heróis virtuosos e humildes, das mãos de aristocratas cruéis. Segundo Botting (2005, p. 04), o gótico perpetua valores familiares, como o sentimentalismo virtuoso, e, em função disso, as narrativas góticas eram mais consumidas pela classe burguesa, que figura, a partir desse período, como protagonista dessas. No século XIX, o espaço das narrativas, antes localizado basicamente nas zonas rurais, passa a contar também com o ambiente dos centros urbanos, o mesmo equivale para as personagens. Por mais que se tenha alterado o espaço diegético, ainda prevalecem as relações antitéticas (real/fantástico, sagrado/profano, natural/sobrenatural, racionalidade/irracionalidade, civilidade/barbárie, luz/sombra) sob as quais o gótico foi produzido, perpetuando o excesso e a ambivalência dessa vertente.

overindulgence in fanciful ideas and imaginative flights.‖ (BOTTING, 2005, p. 04, tradução nossa). 158


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Botting (2005, p. 07) aponta que a troca de ambiente nas produções góticas no século XIX se justifica pelo fato de que castelos, abadias, monastérios, fantasmas, aristocratas maus e outros elementos do imaginário gótico se tornaram clichês, elementos corriqueiros, utilizados por diversas obras, o que causou uma banalização dos mesmos, consequentemente, eles perderam a sua face fóbica, não suscitando mais o horror nos leitores. Porém, é o gótico do século XVIII que se instaura no Brasil do século XX; aqui a vertente encontra um terreno fértil em virtude do sertão e da luta de classes no país. Os autores queriam ―apresentar o Brasil aos brasileiros, ora visando à descrição das variedades e particularidades do país, ora visando estabelecer uma nítida oposição entre a elite nacional e grupos minoritários diversos, estivessem eles no sertão ou na cidade.‖ (SILVA, 2014, p. 136). O gótico que aqui se desenvolve é o colonial, que versa sobre os impactos do embate cultural entre as metrópoles europeias e as colônias nos demais continentes. A colônia é retratada como uma região atrasada, primitiva, supersticiosa e bárbara, logo espaço e personagem são vistos como manifestações insólitas e incongruentes com os valores europeus. No Brasil, o sertão e as personagens que o atravessam se enquadram nas características ―valorizadas‖ pela vertente. O espaço do sertão é visto como um espaço selvagem e bravio, onde o progresso não chegara, e a evolução e o desenvolvimento seria possível somente com a integração com a cidade, além de ser permeado por indivíduos tiranos e malvados. Os contos ―Bocatorta‖ e ―Bugio Moqueado‖ de Monteiro Lobato são exímios exemplos de manifestações góticas nas letras brasileiras. São narrativas ambientadas no interior do país, em uma região provinciana, espaço esse fronteiriço, que abarca parcos traços da cidade, mas, principalmente, mapeia descritivamente o sertão. Nos contos, o espaço é um dos elementos que evidencia a face sobrenatural e insólita, por utilizar com locações casarões abandonados, cemitérios, entre outros, os quais são povoados por necrófilos, canibais e mocinhas pudicas, suscitando no leitor estranhamento, medo, empatia e inquietação. O conto ―Bocatorta‖ inicia com a apresentação do espaço, onde transcorrerá a narrativa: A quarto de légua do arraial do Atoleiro começam as terras da fazenda de igual nome, pertencente ao major Zé Lucas. A meio entre o povoado e o estirão das matas virgens dormia de papo acima um famoso pântano. [...] Notabiliza-o, porém, a profundidade. Ninguém ao vê-lo tão calmo sonha o abismo traidor oculto sob a verdura. Dois, três bambus emendados que lhe tentem alcançar o fundo subvertem-se na lama sem alçar pé. 159


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 Além de vários animais sumidos nele, conta-se o caso do Simas, português teimoso que, na birra de salvar um burro já atolado a meio, se viu engolido lentamente pelo barro maldito. Desde aí ficou o atoleiro gravado na imaginativa popular como uma das bocas do próprio inferno. (LOBATO. 2007, p. 119)

Logo no início, é apresentado ao leitor um dos elementos recorrentes na literatura gótica: o abismo concretizado pela imagem do pântano/atoleiro. Ele é um dos espaços relacionados com o perigo, a insegurança e o desconforto. A presença do chão remete à segurança, apoio; logo, o abismo é o oposto, pois nele não se consegue enxergar o fundo, visualmente há a ausência do chão. Sá (2010) o lê como uma fonte perigo próximo, o indivíduo que caminha rumo a esse espaço, marcha para a destruição, nele a vida se finda, se esvai; a partir do abismo, a natureza revela a sua face adversa, nefasta, sombria e glutônica, visto que ela devora a sua presa. Uma das manifestações do abismo na literatura brasileiro é no conto ―Assombramento‖, de Afonso Arinos. Manuel é um arrieiro que, durante a noite, explora as redondezas de uma fazenda antiga e, aparentemente, abandona; porém, no desenrolar da narrativa, a personagem acredita que está sendo vítima das gaiatices do diabo. No final, Manuel pisa em falso em um degrau podre da escada e é tragado pelo abismo que surge embaixo de seus pés. O abismo de Lobato não diferencia o animal do vegetal, homem de bicho; traga tudo, engolindo e prendendo dentro de si todas as coisas; nem vários bambus emendados conseguem encontrar o seu fundo. Diversos animais já haviam caído no atoleiro e não conseguiram sair, apenas foram puxados para o fundo. Ele passa a ser visto como um locus horrendus, sendo considerado como uma das bocas do inferno. A escolha de palavras para descrevê-lo é relevante para o desfecho do conto, pois ali será a última morada de Bocatorta, uma vez que esse é entregue à morte, jogado ao afogamento na lama do atoleiro ao ser encontrado no cemitério violando e beijando o corpo sem vida de Cristina. Tal fato retrata a lógica maniqueísta própria da vertente gótica do século XVIII, a de que pessoas boas devem ir para o paraíso e pessoas más, com comportamentos reprováveis, devem ir para o inferno. Bocatorta é um dos elementos que suscitam horror na narrativa. Descrito como um ser monstruoso, visualmente disforme e horripilante e, no imaginário da população local, de caráter tão grotesco quanto a sua aparência. Bocatorta é uma personagem zoomorfizado, tanto por sua aparência quanto pelo espaço em que habita. Ele vive no meio do mato, na fronteira e mesmo nesse espaço é negado a ele, já que querem expulsá-lo, pois ele materializa o feio, o estranho, o caos, o diferente no meio de um espaço permeado pelo belo, normal, pela ordem. 160


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A personagem é toda disforme, relacionam-na com um pedaço de carvão para estigmatizá-la e expor a visão acerca do negro no final do século XIX e início do XX, atrelando-o ao monstruoso. Ele viola túmulos de jovens falecidas recentemente, mantendo com o corpo sem frio e sem vida delas relações carnais. Tal prática é um tabu, o qual é praticado por um ser atroz, que, aos olhos da comunidade do conto, não poderia ser praticado por um ser humano, mas por alguém que ―não é deste mundo‖. Bocatorta é descrito de forma hedionda e aterradora. Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando, sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha beiços, e as gengivas largas, violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às tontas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se lhe estampasse na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a culminância da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé humano. E olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapuçadas, veiados de sangue na esclerótica amarela. E pele grumosa, escamada de escaras cinzentas. Tudo nele quebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se a teratologia caprichasse em criar a sua obra-prima. (LOBATO, 2007, p. 126)

A feia face de Bocatorta corrobora para a construção da aura de horror no conto, pois o belo é relacionado ao virtuoso e o feio ao profano, logo o feio Bocatorta é contraposto à bela Cristina, a virgem mocinha que deve ser salva. A deformada boca da personagem título possui um grande enfoque na descrição acima, ele não possui lábios, poucos e ralos cacos de dentes, relacionando-se claramente com a concepção do grotesco e reforçando a aura de horror. Uma insana imagem que povoa pesadelos, um ser que de tão feio é inimaginável. A visão é tão assombrosa que gera pavor em todas as personagens, a imagem é tão forte que Eduardo, noivo de Cristina, não consegue manter os olhos em Bocatorta e Cristina sente o pavor da morte, como um preá diante de um predador. O encontro com o monstro é tão nefasto para a menina, a ponto de ela ficar doente e morrer, e ser enterrada no cemitério do arraial, no qual terá seu túmulo violado por Bocatorta. A casa da personagem título não é vista pelas demais personagens como um lar, mas como uma toca de animal ou de monstro. A descrição do espaço da casa de Bocatorta desencadeia a hesitação, a estranheza, a inquietação e o horror nas personagens e, possivelmente, no leitor. Utilizando a classificação espacial cunhada por Foucault, esse espaço seria enquadrado como heterotópico, pois ele está fora de todos os lugares, mas pode ser localiza161


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da, a casa e os espaços heterotópicos são ―[...] espaços que incomodam por apresentarem a multiplicidade, a justaposição e a inversão de planos, a fragmentação das perspectivas‖ (GAMA-KHALIL, 2012, p. 35). A casa de Bocatorta dá o gancho para a análise do outro conto de Lobato, ―Bugio Moqueado‖, possibilitando a análise do casarão gótico. A casa do coronel Teotônio é descrita no seguinte fragmento: Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado, diz muito bem o povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz — cheiro assim de carne mofada…(LOBATO, 2008, p. 47)

Tanto o casebre de Bocatorta quanto o decadente casarão de Teotônio remetem ao símbolo do castelo gótico. Esse pode ser lido a partir de dois vieses antagônicos: um retiro ou santuário nas montanhas afastado do contato humano ou uma monumental construção para reforçar o poderio aristocrático decadente. Na literatura gótica, o viés recorrente é o último, ele é um lugar monstruoso em que um ser tirano se insula dos ávidos e curiosos olhos da sociedade burguesa, podendo se entregar à devassidão e às práticas bacantes. Menon (2013) elucubra sobre os castelos góticos, descrevendo-os como lugares claustrofóbicos, escuros e gélidos, cortado por corredores longos e labirínticos, atravessado por diversas passagens secretas, características essas voltadas para reforçar a aura de medo e horror. O casarão de Teotônio, como descrito no excerto, é construído sob essa perspectiva, ele não tem a aparência ou a aura de um lar, não sendo um espaço topofílico, mas topofóbico, um lugar que prende e sufoca, que o penetra, que reprime os sonhos e desvela pesadelos. O casarão estampa claramente os seus habitantes e antecipa que ali não vivem pessoas de bem ou felizes. O dono da casa é o coronel Teotônio, o qual é descrito: Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entiotada de rugas, ar de carrasco… Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. Porque lá é assim. Não há soldados rasos. Todo mundo traz galões… e aquele, ou muito me enganava ou tinha divisas de general. (LOBATO, 2008, p. 46)

Ele é a metáfora do aristocrata tirano, que prende e tortura a casta e integra mocinha. A descrição física da personagem retrata a face cruel e monstruosa da personagem e a psicológica revela seu tom autoritário e tira162


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no; logo, a mescla dessas descrições caracterizam a personagem como filha do barbarismo e da autocracia, Teotônio é descrito por um conterrâneo como ―[...] a maior peste que o raio do diabo do barzabu do canhoto botou no mundo!...‘ ‖, (LOBATO 2008, p. 50), aproxima-se a personagem do satânico e do males, como filho de diabo, por suas maldades. Próximo do final do conto, o vilão conversa naturalmente com o narrador sobre bugio moqueado, que vem a ser para ele uma iguaria feita a partir da carne de macaco que passa pelo processo de secagem, mas o bugio de sua casa é um negro que se envolvera romanticamente com sua esposa; o coronel mata o negro e faz de sua carne a dita iguaria, obrigando a mulher a comer esse prato monstruoso. Sá (2010, p. 78) afirma que ―somente os vilões góticos são capazes de cometer maldades tão grandes e ainda assim manter a majestade nas atitudes‖. A personagem em momento algum se altera com o convidado ou tem um comportamento truculento com a esposa. Mas o que gera mais horror no conto é a aparência da esposa e o fato de ela comer aquela carne preta. A referida mulher é descrita no seguinte fragmento: Abriu-se devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto branco de mulher. [...] Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, cadavérica, dir-se-ia vinda do túmulo naquele momento. Aproximou-se, lenta, com passos de autômato, e sentou-se de cabeça baixa. [...] aquela morta-viva morre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num calafrio de pavor. (LOBATO, 2008, p. 47)

A caracterização da esposa de Teotônio é macabra e suscita o horror, ela lembra uma decadente vampira, uma sombra esfarrapada da mulher que um dia fora. Ela é a nítida mocinha casta e pudica que deve ser salva nos romances góticos, mas, no conto de Lobato, seu destino é a perdição e o sofrimento pelo resto de sua miserável vida. Ela assusta ao narrador e, provavelmente, o leitor. A mulher vive um estado anímico e anêmico, sua liberdade é tolhida, o desejo e a luz do sol são proibidos a ela, seus passos são controlados limitados ao labiríntico e sufocante espaço do casarão. Um fato interessante e recorrente na literatura gótica é que as mocinhas são extremamente alvas, e as personagens femininas dos contos aqui analisados têm esse perfil, a brancura da carne dessas materializa o seu caráter puro e inofensivo, elas são seres passivos e impotentes perante o homem autoritário e bravio da Europa do século XVIII e do Brasil do século XX.

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Assim, o sertão, seus desdobramentos espaciais e os elementos que o atravessam são manifestações do Modo Fantástico e da vertente gótica no Brasil, retratando a ansiedade, o exagero e a quebra da racionalidade, a partir de uma roupagem nacional, ao utilizar um macroespaço bravio e selvagem palpável ao leitor local e utilizando microespaços relacionados ao gótico e recorrentes na metrópole para instaurar a inquietação e o horror. Espaços e arquétipos recorrentes no gótico europeu como castelos, abismos, aristocratas tiranos são adaptados à realidade brasileira, passam por uma transformação e são apresentados ao leitor nacional como casarões abandonados, pântanos, boqueirões e coronéis. Logo, o Brasil consegue ser uma fonte de inspiração para o desenvolvimento da vertente gótica, e não um mero consumir daquilo que vem de fora, uma vez que aqui há espaço sombrio e decadente para serem atravessados por personagens monstruosas. Bibliografia BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 2005. CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, Manoel Barros da. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Ditos e Escritos III, p. 411422). FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. GAMA-KHALIL, Marisa Martins. A terceira margem do rio: a espacialidade narrativa como instigadora do fantástico. In: GAMA-KHALIL, Marisa Martins; SOARES, Leonardo Francisco; REZENDE, Rosana Gondim (Orgs.). Espaço (en)cena. São Carlos: Editora Claraluz, 2008. (p. 61-76). GAMA-KHALIL, Marisa Martins. As teorias do fantástico e a sua relação com a construção do espaço ficcional. In: GARCIA, Flávio; BATALHA, Maria Cristina (Orgs.). Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2012. (p. 30-38). HOGLE, Jerrold E.. Introduction: the Gothic in western culture. In: HOGLE, Jerrold E.. The Cambridge Companion to Gothic Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. (p. 1 – 20). LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. LOBATO, Monteiro. Bugio Moqueado. In.: LOBATO, Monteiro. Negrinha. São Paulo: Globo, 2008. (p. 44 – 51) 164


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LOBATO, Monteiro. Bocatorta. In.: LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Globo, 2007. (p. 118 – 131). MENON, Maurício Cesar. Espaços do medo na literatura brasileira. In.: GARCÍA, Flávio; FRANÇA, Júlio; PINTO, Marcelo de Oliveira. As arquiteturas do medo e o insólito ficcional. Rio de Janeiro, Editora Caetés, 2013. (p. 79 – 91) ROAS, David. La amenaza de lo fantástico. In: ROAS, David (Org.). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, S.L., 2001. (p. 07 – 44). SÁ, Daniel Serravalle de. Gótico tropical: o sublime e o demoníaco em O guarani. Salvador: EDUFBA, 2010. SILVA, Alexander Meireles da. O ser e o sertão: relações entre personagem e espaço no gótico colonial brasileiro. In.: BARBOSA, Sidney; BORGES FILHO, Ozíris. Espaço, literatura e cinema. São Paulo: Todas as Musas, 2014. (p. 131 – 154) VOLOBUEF, Karin. E. T. A. Hoffmann e o mundo fantástico. In: VOLOBUEF, Karin; WIMMER, Norma e ÁLVAREZ, Roxana Guadalupe Herrera (Orgs.). Vertentes do fantástico na literatura. São Paulo: Annablume; FAPESP; UNESP Pró-Reitoria de Pós-Graduação, 2012. (p. 173 – 186).

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A influência de Edgar Allan Poe na escrita de H.P. Lovecraft: o narrador lovecraftiano e o narrador de Poe The influence of Edgar Allan Poe in the writing of H. P. Lovecraft: the Lovecraftian narrator and Poe´s narrator Daniel Iturvides Dutra43 Resumo: o presente artigo visa analisar como Edgar Allan Poe foi uma influência importante no desenvolvimento do estilo literário de H.P. Lovecraft. Discutiremos como Lovecraft se apropriou dos recursos narrativos de Poe e os reinventou a sua maneira, criando assim sua própria forma de narrar. Para tanto, faremos uma análise comparativa de contos de Poe e de Lovecraft para compreender como se deu a influência. Palavra-chave: Horror, Influência, Lovecraft, Narração, Poe. Abstract: this article aims to analyze the influence of Edgar Allan Poe in the development of the literary style of H. P. Lovecraft. We will discuss how Lovecraft uses the narrative devices of Poe and reinvented them, thus creating his own story-telling style. Therefore, we will make a comparative analysis of Poe and Lovecraft short-stories to understand how such influence took place. Keywords: Horror, Influence, Lovecraft, Narration, Poe.

No âmbito dos estudos sobre o autor H.P. Lovecraft as comparações com Edgar Allan Poe geraram inúmeras análises. Robert Bloch comenta: Comparisons between Edgar Allan Poe and Howard Phillips Lovecraft are, I suppose, inevitable; seemingly, in recent years [writing in 1973] they are also interminable. […] To me, this is an untenable statement: Lovecraft, like every writer of fantasy and horror fiction subsequent to Poe, was necessarily influenced by the work of his predecessor — and to certain extent his work needs must be derivative in some slight sense. Actually, Lovecraft's homage to Poe in his essay Supernatural Horror In Literature, indicates a degree of appreciation and admiration which leaves no doubt as to the profound impression made upon him by the earlier master (BLOCH, 2016).

Conforme Lovecraft afirma em sua correspondência, Edgar Allan Poe foi uma de suas principais influências literárias. Porém, discutir o papel de Edgar Allan Poe na formação da identidade literária de H.P. Lovecraft merece uma abordagem diferenciada, pois a influência de Poe não se dá tanto no aspecto temático, mas sim no aspecto formal, visto que Lovecraft comenta, em suas epístolas, que no âmbito da temática as suas influências são autores de vertente fantástica como Lord Dunsany e Arthur Machen. Em carta a Fritz Leiber, Lovecraft afirma que Algernon Blackwood, um autor 43

Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 167


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cujas histórias seguem uma linha de horror tradicional, ou seja, de cunho sobrenatural, é quem mais se aproxima do seu ideal literário. Contudo, Lovecraft também explica, na mesma carta, porque considera Poe superior aos demais autores que lera no que tange o domínio da técnica narrativa. Next to Blackwood, Poe stands first in basic seriousness & convincingness— though his themes tend to centre in limited manifestations of the terrestrially gruesome, & in sinister twists of morbid human psychology. In total effect he probably transcends Blackwood, & indeed all rivals; that is, what he does tell is told with a potent art & daemonic force which no one else can even approach (LOVECRAFT, 2003, p. 15).

Em outras palavras, a principal influência de Poe foi no modo como Lovecraft escreve suas histórias. E esse modo é uma constante na sua carreira. Lovecraft confessa que, no âmbito da temática, há outros autores que ele prefere em detrimento a Poe. Sendo assim, para entendermos melhor a influência de Poe, se faz necessário compreender primeiro este autor. Patrícia Lessa Flores da Cunha oferece uma boa síntese das principais características da obra de Edgar Allan Poe. [....] os mistérios da mente, associados aos temores da morte, constituiriam uma preocupação obsessiva para Poe. Os terrores por ele descritos com realismo são os gerados na própria mente da personagem, e a realidade do seu ambiente através desse terror é assim deformada. O que distinguiria os seus contos dos clássicos de horror, com forte ascendência gótica, é a tônica de autenticidade que emana das suas estórias. Enquanto os antigos autores descreviam um medo exterior, provocado por um mundo sobrenatural e fantasmagórico. Poe passaria a descrever um medo real – um medo familiar, pois que estava dentro do próprio indivíduo – fruto dos seus temores, das suas fobias, dos seus recalques, tão reais, autênticos e verdadeiramente existentes, que transfundia nas suas personagens prováveis projeções dele mesmo. Isso é reforçado pelo uso da narrativa em primeira pessoa, escolha definitiva do escritor (CUNHA, 2002, p. 15).

Em suma, o que Poe fez foi transferir o horror do exterior para o interior do ser humano. Há vários exemplos deste ―horror interior‖ em Poe. Contos como ―William Wilson‖ (1839), ―O Coração Delator‖ (1843) e ―Berenice‖ (1835) partilham a característica de que o horror aparentemente é um produto da mente do protagonista – isso quando ele próprio não é a causa do horror. Bastante à vontade nos domínios da psicologia, Poe soube como poucos construir seus ―heróis‖ de forma a sempre conquistar nossa empatia, não im168


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte portando quão cruéis ou desumanos fossem. São réus confessos e advogados de si próprios, defendendo a todo custo e com violenta paixão as suas inimagináveis e perversas maquinações. É assim, por exemplo, com o narrador de O gato preto, que se nos apresenta como dócil amante dos animais desde criança. […] Porém, aos poucos o temperamento do narrador vai se assombreando, transformando-o rapidamente em um monstro capaz de atrocidades inconcebíveis. […] Abertos esses precedentes, acontece o que veremos frequentemente em Poe: as sombras devoradoras surgem e se apossam do narrador, envolvendo-o e levando-o a uma descida sem volta aos seus porões repletos de crueldade e sadismo (NESTAREZ, 2013, p.39-40).

Em ―William Wilson‖, um homem é perseguido pelo seu sósia, que, como uma espécie de manifestação da consciência, o impede de cometer maldades. Em ―O Coração Delator‖, acompanhamos os pensamentos de um louco homicida que acredita ouvir os batimentos cardíacos do homem que assassinou. Em ―Berenice‖ um homem em estado de transe ou sonambulismo arranca os dentes da falecida esposa, tomando conhecimento de suas ações apenas mais tarde. Em todos esses contos o horror é, em maior ou menor grau, o produto da própria loucura do personagem, e não de causas externas. Poe, ao utilizar a narrativa em primeira pessoa, dá ao leitor acesso direto ao mundo interior dos protagonistas, ao mesmo tempo em que gera uma dúvida sobre a veracidade dos eventos narrados. Essa técnica é chamada de ―narrador não confiável‖ – que consiste em apresentar personagens que participam diretamente da história, mas dão vários indícios, ao longo da narrativa, de que sua credibilidade como narrador é questionável. Os primeiros contos de Lovecraft, ―A Tumba‖ (1922) e ―Dagon‖ (1919), são visíveis pastiches de Poe, principalmente o primeiro. Ambos são narrados em primeira pessoa e contam com narradores não confiáveis. Em Dagon, por exemplo, o narrador declara ser viciado em morfina, o que mina sua credibilidade, enquanto em ―A Tumba‖, o narrador admite que está trancado em um hospício. Ambas as histórias relatam um evento aparentemente sobrenatural, mas ao utilizar um narrador não-confiável, Lovecraft cria uma dúvida quanto à veracidade dos eventos narrados, pois estes mais levantam dúvidas do que respostas, e possuem muitas inconsistências. Em outros termos: algo sobrenatural realmente aconteceu ou foi apenas um delírio do protagonista? É a pergunta deixada no ar pelos dois contos. Vejamos o parágrafo inicial de ―A Tumba‖ para compreendermos como o narrador sabota a própria credibilidade. Ao relatar as circunstâncias que levaram ao meu confinamento neste asilo de dementes, estou consciente de minha posição atual vai criar uma increduli169


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 dade perfeitamente natural sobre a autenticidade de minha narrativa. É lamentável que o grosso da humanidade seja tão limitado em sua visão mental, para avaliar, com calma e inteligência, os fenômenos isolados, vistos e sentidos apenas por poucos psicologicamente sensíveis, que vivem afastados da experiência vulgar. Pessoas intelectualmente mais abertas sabem que não há uma distinção nítida entre o real e o irreal, que todas as coisas só se parecem com o que parecem pela delicada maneira física e mental pela qual tomamos consciência delas. Mas o prosaico materialismo da maioria condena, como loucura, os lampejos de visão superior que penetram o véu comum do empirismo manifesto (LOVECRAFT, 2007, p. 31).

O narrador reconhece que está em uma posição duvidosa, mas, ao mesmo tempo, pede para que o leitor tenha uma menta aberta. A despeito dos esforços do narrador em fazer o leitor acreditar na sua narrativa, os eventos relatados carecem de evidências sólidas, sendo tudo no máximo circunstancial e, portanto, deixando uma lacuna para a possibilidade de tudo não passar de um delírio. Entretanto, não é apenas a circunstancialidade que deixa dúvidas quanto à veracidade da história. Vejamos a passagem abaixo: Meu nome é Jervas Dudley, e desde os primeiros anos de minha infância tenho sido um sonhador e um visionário. Rico o bastante para não depender de uma atividade comercial, de temperamento inadequado aos estudos formais e o recreção social de meus conhecidos, vivi sempre em reinos distantes do mundo visível, gastando minha juventude e minha adolescência debruçado entre livros antigos e pouco conhecidos, errando pelos campos e bosques da região próxima ao lar de meus ancestrais de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques seja exatamente igual ao que outros garotos leram e viram ali, mas não devo falar muito sobre isso, pois uma exposição detalhada só confirmaria as cruéis calúnias sobre minha mente que às vezes tenho ouvido nos cochichos dos furtivos atendentes que me cercam. Basta-me relatar os fatos, sem analisar suas causas (LOVECRAFT, 2007, p. 31-32).

O narrador, ao falar de si, já estabelece que não é uma pessoa mundana. Em suma, o que gera a ambiguidade na narrativa é a combinação da ausência de evidências concretas a favor da explicação sobrenatural (no caso o narrador supostamente seria a reencarnação de uma pessoa falecida há muito tempo) com a forma como o narrador se expõe ao leitor como uma pessoa anormal. A despeito da influência de Poe, Lovecraft não permaneceu no mero pastiche. O que analisaremos a seguir é a forma como o autor se apropriou dos recursos narrativos de Poe e os reinventou. Lovecraft, em carta a Clark Ashton Smith, explica a influência de Poe em seu estilo. 170


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Since Poe affected me most of all horror-writers, I can never fell that a tale starts out right unless it has something of his manner. I could never lungly into a thing abruptly, as popular writers do. To my mind it is necessary to establish a setting & avenue of approach before the main show can adequately begin (LOVECRAFT, 1971, p. 219)

O ―estabelecer um cenário e um modo de abordagem‖ (―establish a setting & avenue of approach‖), o qual Lovecraft se refere na carta sobre como iniciar um conto, é um recurso narrativo muito empregado por Poe conhecido como in ultima res (latim que significa ―a última coisa‖), ou seja, pelo desfecho. Tal recurso visa despertar a curiosidade do leitor, que, ao ler o narrador relatar eventos que já ocorreram, e que, no caso tanto de Poe quanto Lovecraft, tiveram finais trágicos, deseja saber como o protagonista chegou ao ponto em que encontra quando a história começa. O já citado trecho de ―A Tumba‖, em que o protagonista está em um hospício e narra como terminou preso, é um exemplo da referida técnica. O parágrafo de abertura da novela Uma Sombra Vinda do Tempo (1935) é um bom exemplo do in ultima res. Após vinte e cinco anos de pesadelos e terror, dos quais fui salvo apenas por uma convicção desesperada na origem do que julgo ter encontrado na Austrália Ocidental na noite do dia 1-18 de 1935. Tenho para crer que minha experiência tenha sido, no todo ou em parte, produto de uma alucinação – para a qual, a bem dizer, havia razões de sobra. Mesmo assim, confesso que o realismo dessas impressões foi a tal ponto horripilante que perco a esperança. Se aquilo de fato aconteceu, então a humanidade deve estar pronta para aceitar noções a respeito do cosmo e do próprio lugar que ocupa no turbulento redemoinho do tempo cuja simples menção tem um efeito paralisante (LOVECRAFT, 2011, p. 17).

A título de comparação, vejamos o parágrafo inicial de ―O Gato Preto‖ (1843), de Poe. Não espero nem solicito o crédito do leitor para a tão extraordinária e, no entanto, tão familiar história que vou contar. Louco seria esperá-lo, num caso cuja evidência até os meus próprios sentidos se recusam a aceitar. No entanto não estou louco, e com toda a certeza que não estou a sonhar. Mas porque posso morrer amanhã, quero aliviar hoje o meu espírito. O meu fim imediato é mostrar ao mundo, simples, sucintamente e sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. Nas suas consequências, estes acontecimentos aterrorizaram-me, torturaram-me, destruíram-me. [...]. Qualquer inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha encontrará tão somente nas circunstâncias que relato com terror uma sequência bastante normal de causas e efeitos (POE, 20-, p.3). 171


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Lovecraft, conforme os trechos evidenciam, se apropria do tema da loucura de Poe. Ambos os autores trabalham com o tema do narrador que enlouqueceu, ou está perto da loucura, ou duvida da própria sanidade, porque presenciou eventos inexplicáveis, ou cuja explicação é difícil de acreditar. No entanto, há um diferencial a ser notado. Embora no começo da carreira os contos de Lovecraft utilizem a estratégia do narrador nãoconfiável, em fase posterior ele utiliza-se do que pode ser chamado de um narrador não confiável às avessas. Em ―O Gato Preto‖ os eventos permanecem ambíguos. O protagonista é um alcoólatra que mata o seu gato. Após sua morte, um gato muito parecido com o falecido entra em sua vida, e o felino direta ou indiretamente desencadeia uma série de eventos macabros que arruínam o protagonista. No final, o leitor não sabe se o gato na história seria um fantasma do animal morto que veio para se vingar, ou apenas outro animal parecido com o falecido, deixando o leitor na dúvida se as desgraças que assolaram o protagonista não passam apenas de estranhas coincidências. Em Uma Sombra Vinda do Tempo, por sua vez, os eventos narrados abrem pouca margem para ambiguidade. De fato, não fosse pelo estado de choque do narrador perante sua experiência, conforme visto no parágrafo inicial, esta poderia ser uma narrativa de ficção científica típica. É a história de uma raça alienígena que vivia no passado distante da Terra, e que possui a tecnologia de viajar no tempo. O método de viagem no tempo empregado consiste em um aparato que permite que a consciência do alienígena seja transportada para o corpo de outra espécie. Na trama, um professor de economia da Universidade Miskatonic é vítima de tal tecnologia e sua consciência é transportada para o corpo de um extraterrestre. Uma vez no passado, o protagonista tem acesso a todos os detalhes acerca daquela raça e sua cultura. O grande destaque da narrativa é a forma como o protagonista, apesar de possuir informações riquíssimas, cuja veracidade será comprovada, duvida de suas próprias lembranças. Por exemplo, o narrador sonha com círculos de pedra em um deserto, na verdade um acesso para uma cidade subterrânea que, no passado remoto, fora a morada da raça alienígena. O protagonista, acreditando ser apenas um sonho, relata o caso a um psicólogo, e este termina sendo publicado num periódico acadêmico de psicologia. Pouco tempo depois, uma equipe liderada pelo geólogo William Dyer encontra, no deserto da Austrália, os mesmos círculos dos sonhos do narrador, que havia feito desenhos que foram publicados no artigo. 172


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Em resumo, todos os detalhes são explicados e poucas pontas soltas são deixadas. Ademais, ao contrário do narrador de ―O Gato Preto‖, um alcoólatra desequilibrado e sádico, o narrador de Lovecraft é um professor universitário acima de qualquer suspeita. Darrell Schweitzer afirma que uma característica de Lovecraft é a forma como os personagens custam a aceitar os fatos, por mais óbvia que seja a existência do monstro ou qualquer que seja a ameaça sobrenatural, e sempre buscam uma explicação racional. Yet there is nothing wrong with the character‘s disbelief. I would say that there is a lot right with it. […] What the jaded reader and especially the lazy writer, who wants to hurry up so he can get to the delicious (and obligatory) Doom Scene, fail to realize is that the characters in a story are supposed to be living in the ―real‖ world. […] When it becomes obvious that the monster did it and the hero is a dummy, stop and think for a minute: In the real world there are no such things as monsters. If inexplicable events happened and someone were to proclaim, ―Aha! the purple toad men of Valusia are responsible!‖ before having exhausted every possible natural explanation, no matter how remote, the person making such claims would be promptly escorted to the booby hatch, leaving the Valusian toad men to do whatever they pleased.If inexplicable events happened and someone were to proclaim, ―Aha! the purple toad men of Valusia are responsible!‖ before having exhausted every possible natural explanation, no matter how remote, the person making such claims would be promptly escorted to the booby hatch, leaving the Valusian toad men to do whatever they pleased. H. P. Lovecraft was one of the few people to realize that the weird story has to be crafted with a certain amount of subtlety, and that the characters therein must be realistic. […] The human mind is a stubborn thing, and when it is convinced of something, it isn‘t always dissuaded by mere proof (SCHWEITZER, 1995, p. 23).

Essa interpretação de Schweitzer é corroborada pelo próprio Lovecraft. O autor explica como personagens devem reagir ao confrontarem monstruosidades. Os personagens devem reagir como pessoas de verdade reagiriam caso a confrontassem na vida real, demonstrando o espanto avassalador que qualquer um naturalmente demonstraria, e não as emoções tênues, dóceis e passageiras prescritas por convenções popularescas baratas. Mesmo quando os personagens estão acostumados ao prodígio, a sensação de espanto, deslumbre e estranheza que o leitor sentiria na presença deste fenômeno deve ser de alguma forma sugerida pelo autor (LOVECRAFT, 2010, p. 91).

Lovecraft, portanto, advoga a favor de um realismo psicológico, ou seja, as reações do personagem devem ser mais próximas possíveis das reações 173


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de uma pessoa de verdade. Sob essa ótica, a não confiabilidade que o narrador de Lovecraft tenta imputar a si mesmo seria uma reação realista de uma pessoa razoavelmente esclarecida. Diante de fatos que não consegue explicar racionalmente, e a única explicação possível envolve elementos fantásticos, essa pessoa esclarecida passaria a duvidar da própria sanidade. Mas, como os eventos relatados são tão coesos e sem inconsistências, o leitor não vê razões para duvidar da história. Sendo assim, o narrador duvidar da própria credibilidade acaba reforçando a credibilidade do leitor, criando uma espécie de narrador não confiável às avessas, cujo efeito é o contrário do pretendido por histórias que se utilizam desse recurso. Vale ressaltar que, a despeito dessa peculiaridade, o tom do narrador de Lovecraft, a saber, o personagem aterrorizado que conta sua história in ultima res, é herança direta de Poe. Concluindo, Lovecraft tinha uma grande admiração pelo estilo de Poe, apesar da exploração do lado obscuro da mente humana não ser um assunto de seu interesse, conforme ele esclarece na carta citada anteriormente. O que Lovecraft aprecia realmente em Poe é a forma como ele conta suas histórias, ou seja, sua técnica narrativa. A preferência de Lovecraft pelo bizarro, pelo anormal, pelo estranho na forma de um produto externo, e não da mente do protagonista, é evidente em suas histórias, e, embora Lovecraft se esforce em emular o estilo de Edgar Allan Poe, o autor terminou por criar sua forma própria de narrar. Bibliografia BLOCH, Robert. Poe & Lovecraft. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/soft-livreedu/vaniacarraro/files/2013/04/o_gato_preto-allan_poe.pdf >. Acesso em: 30 set. 2016. CUNHA, Patrícia Lessa Flores. Lendo Edgar Allan Poe. In: Literatura Comparada e psicanálise: interdisciplinaridade, interdiscursividade. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2002. LOVECRAFT, H.P. Notas sobre Ficção Interplanetária. In: A Cor que Caiu do Espaço. Editora Hedra: São Paulo, 2011. Tradução de Guilherme da Silva Braga. _________________. A Tumba. In: A Maldição de Sarnath. São Paulo: Iluminuras, 2007. Tradução de Celso M. Parcionik. _______________. A Sombra Vinda do Tempo. São Paulo: Editora Hedra, 2011. Tradução de Guilherme da Silva Braga. _______________. Selected Letters 5. Saul City: Arkham House Publishers, Inc, 1973. 174


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NESTAREZ, Oscar. Poe e Lovecraft: Um Ensaio sobre o Medo na Literatura. Editora Livrus: São Paulo, 2013. SCHWEITZER, Darrell. Character Gullibility in Weird Fiction. In: Discovering H.P. Lovecraft. Wildside Press: New Jersey, 1995. POE, Edgar Allan. O Gato Preto. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/soft-livreedu/vaniacarraro/files/2013/04/o_gato_preto-allan_poe.pdf >. Acesso em: 30 set. 2016.

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As minorias em evidência: o papel do outro no horror lovecraftiano The minorities in evidence: the role of the other in the lovecraftian horror Bruno da Silva Soares44 Resumo: referência icônica do horror e de gêneros variantes, Lovecraft pode ser revisitado na contemporaneidade pelos estudos das novas perspectivas antropológicas quanto à ideia de Nação e Cultura o que, neste estudo sobre O chamado de Cthulhu, permite fazer uma avaliação crítica quanto ao papel das minorias étnico-raciais e sua representação, de modo a relaciona-las à condição alienante do outro freudiano. Palavras-chave: Horror cósmico; Howard Phillips Lovecraft; Insólito; Psicanálise Abstract: an iconic reference to horror and variant genres, Lovecraft can be revisited in contemporary times by studies of the new anthropological perspectives on the idea of Nation and Culture which, in this study on The call of Cthullhu, allows to make a critical evaluation regarding the role of ethnic minorities in their representation, so as to relate them to the alienating condition of the other Freudian. Keywords: Cosmic horror; Howard Phillips Lovecraft; Unusual; Pshychoanalysis

Traçando o perfil dos narradores e das personagens na novelística lovecraftiana, percebe-se quase sempre o destaque para figuras do domínio cultural, da razão e que não demonstram tendência a nenhum tipo de religiosidade. Em O chamado de Cthulhu, novela dividida em três partes, o narrador intra-diegético, Francis Wayland Thurston, descreve suas impressões sobre as anotações de seu tio-avô, George Gammell Angell - um antigo professor de línguas semíticas - relacionadas à escultura de um ser cuja descrição extrapola o senso comum de Francis: "Se eu disser que de alguma forma a minha extravagante imaginação reteve imagens simultâneas de um polvo, um dragão, e uma caricatura humana, eu não estaria sendo infiel ao espírito da coisa."(LOVECRAFT, 2011,p.356). Tal escultura seria o trabalho de Henry Anthony Wilcox, um estudante da Escola de Desing de Rhode Island, que teria embasado seu trabalho em sonhos inquietantes, ocorridos coincidentemente após um terremoto na noite anterior, sobre "grandes cidades Cíclopes de blocos titânicos e monolitos arranha-céus, tudo gotejando com um lodo verde e sinistro com horror latente" (LOVECRAFT, 2011, p. 358). A segunda parte da novela narra a investigação feita pelo detetive John Raymond Legrasse sobre uma estranha estatueta que trazia consigo, para ser 44

Doutorando em Letras Vernáculas: Literaturas Portuguesa e Africanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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avaliada por algum dos especialistas presentes no encontro anual da Sociedade Americana de Arqueologia. A busca de Legrasse é diretamente ligada a um caso que vivenciara um ano antes, pois a figura - que o enredo leva a supor ser idêntica a de Wilcox - fora apreendida durante uma incursão policial a um culto vodu e, no momento, Legrasse esperava encontrar mais esclarecimentos quanto ao artefato. Após a avaliação de alguns dos presentes, uma luz é lançada pelo Professor Webb, que alega ter encontrado inscrições semelhantes durante uma incursão na Groelândia e se deparado com: "uma tribo ou culto de esquimós degenerados cuja religião, uma forma curiosa de culto demoníaco, deixou-o apavorado com sua deliberada sede de sangue e repulsividade"(LOVECRAFT, 2011, p.363). Após essa revelação, sob os olhares curiosos dos palestrantes, Legrasse, enfim, revela os pormenores da situação que investigara: apreendidos no meio de um ritual em que assassinaram mulheres e crianças, dezenas de homens foram presos pelos policiais: homens de um tipo baixo, sangue misto, e mentalmente aberrantes. Muitos eram marinheiros, negros e mulatos, sobretudo caribenhos ou de portugueses de Brava nas Ilhas do Cabo Verde, dando um colorido ao voduísmo do culto heterogêneo.(LOVECRAFT, 2011, p.366)

Ainda, as informações do inquérito conseguem pistas sobre um mestiço de nome Castro que teria: "navegado a portos distantes e conversado com líderes imortais do culto na China" (LOVECRAFT, 2011, p.367) e deles depreendido verdades sobre o Necronomicon: "Nenhum livro nunca o mencionou, apesar dos chineses imortais terem dito haver ambiguidades no Necronomicon do árabe louco, Abdul Alhazred..." (LOVECRAFT, 2011, p.368). Na terceira parte da novela, Francis Thurton viaja para a Nova Zelândia e Austrália em busca de novas pistas para o mistério central: o caso em comum das estatuetas e as relações possíveis com o culto aos Deuses Antigos, citando Cthulhu como seu profeta. Dos boatos que lhe chegam a saber, um naufrágio parece revelar outra estatueta, nos mesmos moldes das duas versões anteriores - de Wilcox e de Legrasse - adquirida de um naufrágio que o marujo Johansen, até então único sobrevivente do acidente, morre misteriosamente: Durante uma caminhada em linha reta próxima à doca Gothenburg, um maço de papeis caiu de uma sacada de janela e o derrubou. Dois marujos Lascar 45

45

Os lascar eram um tipo de marinheiros da Índia que serviam em navios europeus do século XVI aos anos iniciais do século XX. 178


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte imediatamente o ajudaram a ficar de pé, mas antes da ambulância chegar, ele já estava morto. Médicos nunca encontraram razão adequada para o seu fim, e atribuíram-na a um ataque cardíaco e constituição frágil. (LOVECRAFT, 2011, p.374)

Essa causa inexplicável abre margem para conseguir um manuscrito da viúva de Johansen e, de porte dele, Francis Thurton parte com sua embarcação ao local misterioso, assimétrico, gigantesco, que seria a cidade perdida de R'lyeh. Lá, acidentalmente despertam o grande Cthulhu - feito curioso, pois acabam concretizando o que os rituais do culto não conseguiram - e, ao tentar fugir de sua ira, quase todos morrem. Perseguidos pelo mar, conseguem um feito colossal: ao chocar a nau contra a criatura grotesca, fazem-no adormecer novamente, sob as águas profundas do Pacífico. Apenas Francis Thurton sobrevive, mas ele mesmo conclui, ao final da narrativa, que doravante seria um alvo marcado pelos cultistas de Cthulhu para sempre. Todo o caminho do fio narrativo apresentado evidencia um lugar-comum em textos de Lovecraft: a importante representatividade da razão versus o misticismo, indicado na dialética das personagens protagonistas de cultura americano-inglesa e seus antagonistas representados por figuras das periferias do mundo, como o latino, o indiano, o chinês, o africano. Recorrendo a Furtado, percebe-se uma questão do Fantástico sobre essa tendência: para reforçar a plausibilidade da ação através das personagens, é usual no fantástico o emprego de figuras geralmente consideradas respeitáveis pela idade, pela sabedoria ou pelo estatuto social. Em contrapartida, quase nunca se verifica a utilização para o mesmo efeito de figuras pertencentes ao operariado ou, mesmo à pequena burguesia, não sendo estas camadas, em regra, consideradas suficientemente idôneas na maioria das narrativas do gênero para atestar a veracidade do acontecido. Tal reflete, de resto, a leitura marcadamente conservadora e por vezes retrógrada que a narrativa fantástica em geral faz da estrutura social e da ideologia dominante que lhe são contemporâneas. (FURTADO, 1980, p. 54-55)

Seria então possível afirmar que ao construir seu enredo centrado no padrão cultural anglo-saxão, Lovecraft estaria exercendo uma prática de xenofobia para com as nações estrangeiras, tomando-as como inferiores? Essa pergunta parece suscitar o cerne da formação do próprio Fantástico reiterando que o horror seria uma versão pertencente a este - no que se considerava práxis dos contos desse gênero. Estabelecendo uma figura de autoridade considerada de alto saber, seu antagonismo, ao menos em Lovecraft, parece ser idealizado no Outro que se considera exótico, 179


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desconhecido, não familiar, cabendo-lhe, estrategicamente ao texto, como o oposto perfeito para a dialética da razão versus a ignorância mística. Furtado ainda complementa seu raciocínio: Com efeito, como a opinião pública a que o verossímil tenta adequar a obra não passa afinal de um conjunto de padrões de conduta impostos pela classe dominante de uma dada época, que melhor escolha para garantia dessa conformidade do que a sua confirmação por parte de indivíduos geralmente considerados, a um tempo, fautores, beneficiários e guardiães da ordem social e cultural estabelecida? É em grande medida por isso que, respeitando incondicionalmente as normas cujo cumprimento lhe mantém a existência e procurando induzir o destinatário do enunciado à sua aceitação, a narrativa fantástica não pode deixar de observar um constante recurso ao argumento da autoridade e à utilização de personagens que o veiculem da forma mais conveniente. (FURTADO, 1980, p.55)

Assim, o detentor do conhecimento é construído com traços definidos em O chamado de Cthulhu: todos os que se apresentam na diegese contrários ao destino nefasto que será o despertar de Cthulhu e assumem papel de relevância na ação, apresentam nome e sobrenome, ligando-os a uma identidade familiar burguesa ou aristocrática, e desempenham alguma função social do domínio intelectual. Dessa forma, Francis Thurton é o investigador principal do enredo e herdeiro do Professor de línguas semíticas George Gammell Angell; Wilcox tem formação erudita em artes e Legrasse é um investigador policial que encontra auxílio na análise do Professor Webb, membro da Sociedade Americana de Arqueologia. Diametralmente opostos, os perigos são apresentados pela participação do Outro tomado como personalidade genérica, sem os mesmos detalhes dos investigadores, mas alocados como uma massa detentora do mal: os "muitos homens negros e mulatos", os "marujos caribenhos", os "portugueses de Brava nas ilhas do Cabo Verde", os "imortais da China", os "esquimós sanguinários" e os "lascar indianos". Salvo exceção, no caso do culto preso na história de Lestrasse, para o "Velho Castro". Porém, mesmo a este, nenhuma outra característica além do nome é dada senão que ser descrito como um marujo, "velho mestiço" (LOVECRAFT, 2011, p.367), que viaja até os líderes imortais do culto. Polarizando a trama em dois eixos, os representantes da razão e os defensores do sobrenatural, Lovecraft restringe a história em duas formas identitárias: uma, considerando o mundo anglo-saxão uma nação detentora de saber em oposição à outra, que compreende os demais países periféricos, incapazes de desenvolver por si sós, bases racionais para combater os primitivismos, representados pelos cultos ancestrais anteriores 180


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à humanidade. Considerando o contexto biográfico de Lovecraft, é compreensível que o autor demonstrasse supervalorização do seu universo conhecido, o heimlich de seu cotidiano em Providence, em suas narrativas, e tomasse todo o pavor que sentia das contradições advindas de uma mãe superprotetora, porém ausente; de uma vida enclausurada em casa, proveniente de problemas de saúde que o levaram a abandonar a escola; como também, de um casamento frustrado que o levou a Nova Iorque tendo que conviver sozinho - sua, então, esposa, Sonia H. Greene, precisava trabalhar longe de casa - em uma cidade imensa, cheia de modernidades e de estrangeiros46 e criasse uma atmosfera em que o unheimlich seja representado nas nações distantes e ermas de seu núcleo provençal da cultura norte americana e britânica. A situação econômica dos EUA fortificava-se com a industrialização daquele país no período e: "A Nova Inglaterra, entre 1890 e 1920, viu sua população estrangeira (já elevada) crescer até compor mais de 60% de sua população total" (BEZARIAS, 2010, p.59), fato histórico que indicava a tensão social e os conflitos entre os estrangeiros e mestiços numerosos o bastante para modificar o status quo das cidades incapazes de comportar esse quantitativo. O estranhamento se fez presente nas diferenças culturais, hábitos e, também, fisicamente. Trabalhadores braçais, das crescentes indústrias, oriundos de terras estrangeiras, espalhavam-se pelos centros urbanos norte americanos de forma rápida e, na prática, eram exemplos das Comunidades imaginadas (2008) de Benedict Anderson: "dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição de nação: uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana" (ANDERSON, 2008, p.32) em conflito: subalternos, sem identificação com a cultura local - bem como aceitabilidade pacífica da população - tinham seus hábitos tidos como alienígenas, cabendo-lhes apenas restringirem-se a seus nichos próprios. O imigrante era pertencente a uma nação (sua identidade primária, de sua cultura de origem) e, enquanto procuravam compreender a nova cultura do local territorial em que se encontrava, eram repelidos pela força da tradição norte americana que se via acossada pela desvalorização do campo em detrimento da industrialização e suas modernidades. Em termos mais claros, criavam-se as subcomunidades de chineses, irlandeses, e demais imigrantes, que entendiam sua alteridade primária com a nação de origem enquanto se viam pertencentes a outra identidade, ou seja, as barreiras 46

JOSHI,S.T. Introduction, p.X-XI. In: H.P. Lovecraft - The Complete Fiction. Barns & Noble, New York, 2011 181


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geográficas não seriam suficientes para a ruptura com os laços identitários desses indivíduos que se reconheciam nos EUA e eram, em contrapartida, percebidos como invasores geográficos pelo povo estadunidense. Nunca aceitos como nativos, seus filhos e netos também perpetuavam essa diáspora de várias nações distintas embricadas com a nação-estado em que viviam. Partindo apenas de seu posicionamento, o Outro é considerado um infortuito, um peso a ser carregado para o bem da industrialização e não como uma forma diferente de cultura humana. Caio Bezarias retrata essa situação lovecraftiana: Essa repulsa aos estrangeiros dotados de crenças e concepções tão estranhas que os apartavam da humanidade, hoje chamada sem pudores de racista e/ou reacionária, mas uma reação natural e previsível de um indivíduo da estirpe de Lovecraft, que como autor pouco se preocupou em descolar-se de seus narradores, pode ser identificada como uma versão moderna, ainda que expressão contra o mundo moderno e industrial, de um traço de culturas ditas primitivas ou ancestrais - considerar como humanos apenas os membros daquela cultura, ou seja, a noção de humanidade dos povos que engendraram os mais arcaicos mitos conhecidos era, segundo uma visão humanista, no sentido moderno da palavra, bastante estreita. (BEZARIAS, 2010, p.61-62)

O mesmo exotismo dado à personagem antagonista é também considerada quanto ao espaço narrativo. O ser alienígena e praticante de paganismo encontra nos ermos da sociedade, a abertura para a idolatria sem restrições da moral, ética ou racionalização. Além, é nos espaços obscuros que as divindades dos Mitos de Cthulhu se manifestam: se a cidade indica a produção de conhecimento, com suas instituições, cabe ao Oceano Pacífico comportar a pavorosa cidade perdida de R'lyeh, bem como o deserto e suas ruínas servem ao propósito de guardar os registros do Necronomicon que Abdul Alhazred redescobre. Delimitar superficialmente as personagens e espaços de ação do Horror Cósmico a que almeja para sua narrativa, restringe Lovecraft às estruturas consideradas tradicionais do gênero proposto ao mesmo passo que o faz reiterar a prática social de xenofobia. Explicando melhor o segundo ponto, é essencial para o enredo que os detalhes sejam utilizados apenas para realçar a verossimilhança falseada, colocando a razão empírica em dúvida em algum momento da diegese. Mas, para desenvolvê-la, parece ser uma regra para o Fantástico que tal verossimilhança seja acobertada num plano onde o potencial do sobrenatural seja apropriado, como ambientes cobertos de elementos góticos, obscuros e que deem margem a acontecimentos insólitos, ou seja, incomuns de ocorrer. Logo, opor a razão ontológica ao exotismo de lugares desconhecidos, aumenta as chances da tensão se 182


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ampliar quando o clímax do enredo, a supressão do real ante o sobrenatural, acontecer. Quando se analisa o contexto social, a problemática do Horror se faz notar nas funções involuntárias que o texto desse gênero pode desempenhar. Delimitando o papel do Outro como uma caricatura maléfica, descrevendo sua crença de forma vaga e tendenciosa, o narrador implica uma relação de Orientalismo ao texto. Edward Said, estudioso do tema, afirma: um estilo de pensamento baseado numa distinção ontológica e epistemológica feita entre o "Oriente" e (na maior parte do tempo) o 'Ocidente'. Assim, um grande número de escritores, entre os quais poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais tem aceitado a distinção básica entre o leste e o Oeste como ponto de partida para teorias elaboradas, epopeias, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, seus povos, costumes, 'mentalidade', destino e assim por diante. (SAID, 2015, p.29)

Said determina que essa prática representa a forma caricatural com que o Ocidente europeu imaginava sua relação com os países orientais, organizando-os em um bloco único, sem distinções específicas de cultura. Ainda, a forma caricatural estigmatizava os pormenores que se acreditavam saber do Oriente, colocando o exotismo de seu povo, a sensualidade da mulher, o grau intelectual inferior e o fascínio por misticismo como suficientes para definir toda uma parcela da humanidade. Ignoram-se as contribuições históricas e científicas, como na matemática, por exemplo, e aceita-se que o Ocidente, superior, é o credor cultural. Alegação absurda quando observada na perspectiva comparatista que os estudos pósmodernos iniciaram, descentralizando o eixo europeu e colocando em evidência outros saberes culturais, estéticos e literários mais próximos da realidade de seus respectivos povos e em nada devedores do conhecimento ocidental. Lovecraft, por meio de um Orientalismo, reitera essa tendência espelhada na sociedade estadunidense de sua época: o miscigenado, oriental, latino americano que vem em busca de emprego nas indústrias, traz consigo o malefício de seus rituais culturais que se chocam contra a tradição saxã, secular, do americano purista. Ou seja, é cômodo repercutir a alienação do Outro e seu lugar exótico, por uma prática de Orientalismo, pois o Horror Cósmico ficaria melhor representado se advindo à Terra na figura tida como ignorante e crédula das periferias do mundo. Assim, a relação do binômio heimlich / unheimlich que Freud desenvolve 183


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em seu estudo sobre O Estranho (1919) correlaciona-se a elementos que Lovecraft também reafirma sobre o Horror Cósmico. Para Freud, as raízes do desconcerto que o Estranho causa é relacionado a fatores inconscientes de uma consciência primitiva que vêm à tona de maneira abrupta: É como se cada um de nós houvesse atravessado uma fase de desenvolvimento individual correspondente a esse estágio animista dos homens primitivos, como se ninguém houvesse passado por essa fase sem preservar certos resíduos e traços dela, que são ainda capazes de se manifestar, e que tudo aquilo que agora nos surpreende como ‗estranho‘ satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhes expressão. (FREUD, 1996, p.247)

Lovecraft, que deixa pistas da influência freudiana em sua formação, traceja paralelos para com a psicanálise e o Horror, calcado também em raízes primitivas do inconsciente humano: Os primeiros instintos e emoções do homem foram sua resposta ao ambiente em que se achava. Sensações definidas baseadas no prazer e na dor se desenvolveram em torno dos fenômenos cujas causas e efeitos ele compreendia, enquanto em torno dos que não compreendia – e eles fervilhavam no Universo nos tempos primitivos - eram naturalmente elaborados como personificações, interpretações maravilhosas e as sensações de medo e pavor que poderiam atingir uma raça com poucas e simples ideias, e limitada experiência. O desconhecido, sendo também o imprevisível, tornou-se para nossos ancestrais primitivos, uma fonte terrível e onipotente das benesses e calamidades concedidas à humanidade por razões misteriosas e absolutamente extraterrestres, pertencendo, pois, nitidamente, a esferas de existência das quais nada sabemos e nas quais não temos parte. (LOVECRAFT, 2007, p. 1415)

O curioso na relação entre ambos os ensaios é a incerteza se Lovecraft teria lido O Estranho antes de compor o seu artigo ou se sequer o tenha acompanhado de fato. Os indícios apontam para uma influência presente: a versão alemã do texto freudiano foi publicada em 1919, já o texto em inglês só viria a ser disponibilizado em 1925, coincidentemente, o mesmo ano que Lovecraft estaria iniciando a composição de seu estudo, sob o título provisório de "O Recluso" e que viria a ser publicado apenas em 1927. Imediatamente após seu lançamento, Lovecraft inicia uma versão revisada que seria lançada seriadamente de 1933 a 1937. O título como é conhecido, O horror sobrenatural em literatura vem a existir, já em versão comentada, somente em 2000 (LOVECRAFT, 2011, p.1044). O que, de certo, interessa a este estudo é a relação do conhecido heimlich - presente na forma estruturada pela ciência empírica do enredo 184


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Lovecraftiano e a forma avassaladora que o desconhecido - unheimlich irrompe na trama, comprometendo as bases tidas como sólidas pelas protagonistas que representam, em seu contexto cultural, a hegemonia do saber. Ante as forças do indizível, o Horror Cósmico parece indicar que a força apocalíptica sempre se tornará vencedora e que seu principal agente , o Outro, da cultura pertinente ao eixo inferior, do lado adepto ao misticismo cego, será o causador do próprio infortúnio, enquanto que tolamente é acondicionado á crença de que os Mitos de Cthulhu o salvarão. Cabendo ao lado racional a reestruturação do paradigma "normal" da sociedade, este acaba sendo opositor e salvador do cultista que confronta. Ao derrotá-lo com a razão científica e busca normalizadora da realidade, está, em verdade, protegendo-o da própria crendice pagã e ingênua. Atuando como um cavaleiro sagrado em uma demanda para libertar o pagão de sua crença debilitante, a protagonista espera também ser capaz de instaurar-lhe a razão libertadora da ciência. Estabelece assim uma condição de credor e devedor: o agente da demanda detém o saber e poder libertador que deve ser imposto ao paciente, porque este não possui as condições necessárias para entender e aceitar a oferta dada. Ainda, o agente também reconhece que comete um autossacrifício, pois suas chances além de ínfimas, serão causa de retaliação letal doravante em sua existência, da parte daqueles que confrontou com a razão. O angustiante fator do Horror, todavia, se torna palpável quando a expectativa máxima do investigador-agente é de conseguir uma vitória parcial e invariável contra esse Outro abominável: no momento certo, as estrelas se alinharão e os Grandes Antigos ressurgirão para clamar seu lugar de dominantes da Terra. É, enfim, uma causa paliativa, cujo final trágico já fora determinado antes mesmo da humanidade caminhar pelo cosmos. Bibliografia ANDERSON, Benedict Richard O'Gorman. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BEZARIAS, Caio Alexandre. A totalidade pelo horror: o mito na obra de Howard Philips Lovecraft. São Paulo: Annablume, 2010 FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980. FREUD, Sigmund. O estranho. In: ______. História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. LOVECRAFT, Howard Philips. O horror sobrenatural em literatura. São 185


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Paulo: Iluminuras, 2007. _____ . H.P. Lovecraft - The complete fiction. Nova Iorque: Barns & Nobles, 2011. SAID, Edward Wadie. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. 1ºed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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O grotesco e a poesia de Vinicius de Moraes The grotesque and the poetry of Vinicius de Moraes Daniel Gil47 Resumo: Embora Vinicius de Moraes seja conclamado por sua poesia amorosa, sua obra possui no entanto outro lado, uma face bizarra e prolífica ainda pouco explorada pelos estudiosos. A tendência que muito de seus versos dispõe para o espectro do anômalo, do feio, do asqueroso, do putrefato é evidente e o torna, com a devida atenção, o maior herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. Essa tendência esbarra igualmente, outras vezes, no riso espontâneo do nonsense, da glutonaria, do escatológico e da incorreção. Palavras-chave: Grotesco. Poesia. Vinicius de Moraes. Abstract: Even though Vinicius de Moraes may be a poet celebrated for his amorous verse, there is another side to his work, a strange and prolific facet still largely unexplored by researchers. It is evident how much of his verse leans towards the anomalous, the ugly, the foul, and the putrid. In this sense de Moraes is, in the 20th century, the great heir of the grotesque poetry we find in authors such as Cruz e Sousa and Augusto dos Anjos. At other times, this vein runs into the spontaneous laughter of nonsense, as well as gluttony, eschathology, and incorrectness. Keywords: Grotesque. Poetry. Vinicius de Moraes.

As grutas e a desordem O hibridismo descoberto nas últimas décadas do século XV, no decurso das escavações empreendidas primeiramente em Roma e depois em outras regiões da Itália, consistia em inusitadas dissonâncias a partir de seres mitológicos como sereias e centauros ou de meio-corpos com pouca beleza que emergiam confusos do reino vegetal. Compunha uma série de motivos ornamentais que tomavam especialmente as ruínas do Domus Aurea — o palácio de festas que Nero construiu após o grande incêndio de 64 d.C. Como aponta Wolfgang Kayser, grotesco e os vocábulos que o corresponde em outras línguas são empréstimos tomados da língua italiana: derivações de grotta (gruta) que remetem, em maior ou menor grau, a composições semelhantes àquelas (2009, pp. 102-3). Fui ficando nodoso e áspero e [começou a escorrer resina do meu suor. E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar. Gritei, ergui os braços, mas eu já era [outra vida que não a minha/ (...) 47

Doutorando em Literatura Brasileira pela UFRJ; Diretor na Superintendência Geral de Políticas Estudantis/ Gabinete do Reitor (SuperEst/ UFRJ); danielgil@danielgil.com.br. 187


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 Aqui eu estou parado, preso à [terra, escravo dos grandes príncipes loucos. Aqui vejo coisas que a mente humana jamais viu /(...) Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta A conversa do meu destino nos [gestos lentos dos gigantes inconscientes Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo... (MORAES, 1935, pp. 102-3)

Eram ornamentos que diferiam dos ideais estéticos predominantes, o que não impediu que um novo estilo neles inspirado se difundisse. Tornou-se mesmo popular, além, é claro, de merecer destaque entre as obras mais famosas e curiosas do Renascimento, como as cabeças grotescas de Leonardo da Vinci ou os grotescos de Rafael Sanzio. Os artistas da maniera, na transição entre a arte renascentista e a barroca, entusiasmavam-se também pelo estilo, pelos sogni dei pittori, como ensina Anatol Rosenfeld. É o caso de Tesauro, que sugeria ao artista e ao poeta que estabelecessem ligações entre os fenômenos mais desencontrados, como ocorre no sonho e na loucura: ―um caranguejo, por exemplo, agarrando uma borboleta ou um escorpião abraçando a lua‖ (1985, pp. 64-5). O fenômeno, todavia, é mais antigo que o seu nome. Ele já ocorrera na arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga, ou mesmo em manifestações poéticas gregas. Constatou-se logo, inclusive, que o grotesco não era autóctone de Roma, e que lá chegara relativamente tarde, por volta da época da transição para o império. A possibilidade mágica de uma arte que pudesse unir conceitos e imagens antagônicas servira sobretudo de eixo à cosmologia de muitas religiões primitivas, ao imaginário medieval e ainda de épocas proximamente posteriores. Em grande medida, os obstáculos frente aos que procuram um conceito homogêneo, que compreenda todas as suas manifestações, devem-se à polissemia do vocábulo. Variando de acordo com os valores estéticos de cada período histórico, de cada artista ou mesmo da recepção estética subjetiva dos espectadores, ele se mostra como uma categoria mutável; seu conceito é um terreno movediço para os que buscam, na definição, uma sentença universal. A poesia de Vinicius de Moraes muitas vezes manifesta o ―id fantasmal‖ que Kayser nos apresenta com o intuito de decodificar o grotesco (2009, pp. 159-60). O crítico alemão se utiliza do conceito moritziano de id para falar sobre um mundo alheio à ordem natural. É preciso que estejamos no entanto de posse do conhecido e do familiar para que sobrevenha a surpresa do estranhamento, do alheado. O mundo do grotesco ―é o nosso mundo — e não é‖ (p.40). A combinação entre o risível e o horrível se fundamentaria na 188


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experiência de uma ordem confiável e firme, que se alheia devido à irrupção de poderes abismais e se desarticula, nas juntas e nas formas. O encontro com a demência e a loucura, nesse sentido, seria uma das percepções primigênias do grotesco. Me pedes para te levar a comer uma salada Mas de súbito me vem uma consciência estranha Vejo-te como uma cabra pastando sobre mim E odeio-te de ruminares assim a minha carne. E então fico possesso, dou-te um murro na cara Destruo-te a carótida a violentas dentadas Ordenho-te até o sangue escorrer entre meus dedos E te possuo assim, morta e desfigurada. Depois arrependido choro sobre o teu corpo E te enterro numa vala, minha pobre namorada... Fujo mas me descobrem por um fio de cabelo E seis meses depois morro na câmara de gás. (MORAES, 1954, pp. 246-9)

Kayser elabora em sua obra O grotesco: configuração na pintura e na literatura (1957) um panorama extenso em torno das ocorrências do grotesco, tanto na arte como na crítica. Suas reflexões partem da etimologia do termo e sua ligação com os ornamentos dos séculos XV e XVI, chegando até a literatura e as artes plásticas contemporâneas, passando por considerações sobre a pintura de Bosch, Brueghel, as caricaturas de Callot, a Commedia dell‘Arte, o teatro do Sturm und Drang, a ficção romântica e muitos trabalhos do século XIX e início do século XX. Sua obra tem importância central para a discussão do conceito. As manifestações reconhecidas pelo teórico apontam para o aspecto, em algum grau, lúgubre e sinistro. Conquanto sejam cômicas, elas não seriam observadas com leveza devido à natureza incomum e contraditória; encontra-se nelas um elemento assustador diante da instabilidade, da falta de fundamento seguro que é sentida de súbito. O id fantasmal seria uma força manipuladora do homem e do mundo, uma espécie de titereiro invisível que submete o universo a uma ordem desconfortável.

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Ariadne onírica O primeiro volume de poemas publicado por Vinicius, O caminho para a distância (1933), deixa ver um jovem poeta de abundante criatividade mas ainda imaturo quanto às possibilidades do verso. Forma e exegese (1935), com poemas antológicos como ―Ausência‖ e ―Ilha do Governador‖, cruza-se até então com composições e imagens de gosto duvidoso, e a força criativa do poeta resulta às vezes em presunção e palavrório. Esse primeiro momento difere em muitos aspectos do Vinicius que gravou o seu nome na literatura brasileira, o virtuose de uma obra popular e formalmente rigorosa — que soube sobretudo explorar com maestria modalidades múltiplas de versificação. O desenvolvimento dado pelo que o exercício, o estudo e a maturidade lhe trouxeram opôs também, muito flagrantemente, uma poesia religiosa e misteriosa a uma poesia quase sempre diáfana e mundana. O poema-livro Ariana, a mulher (1936) pode suscitar então um interesse específico. Sem dúvida tratamos de uma peça daquele primeiro momento do poeta, mas aqui as imagens cristãs se configuram com notável melodia; o despudor criativo de Vinicius se apresenta mais sofisticado e elementos grotescos protagonizam impressões bastante inusitadas. A aventura onírica de um eu-lírico solitário, ―na sala deserta daquela casa cheia da montanha em torno‖, faz lembrar que o fato de os ornamentos compostos sob a influência grotesca evocarem formas livres como nos sonhos legou-lhes o título de sogni dei pittori (sonhos de pintores). A licença para ir além dos limites estabelecidos pelos postulados clássicos, ultrapassando portanto, por meio da fantasia artística e da desordenação do mundo, a mimese do verdadeiro, estabeleceu o vínculo substancial entre o grotesco e o onírico, a subversão das leis naturais e a criação de monstros. Eu senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através [as paredes e se plantara aos meus olhos em toda a sua [fixidez noturna/ (...) Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua [deglutição monstruosa mas para mim era como se [ela estivesse morta Paralisada e fria, imensamente erguida em sua [sombra imóvel para o céu alto e sem lua (pp. 5-6)

Sua busca por Ariana — referência ao mito do desaparecimento de Ariadne — levou-o a compreender que ―só onde cabia Deus cabia Ariana‖. 190


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Mas logo uma ordem estranha o fez representar o próprio ente antagônico. Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e [mulheres desposadas Umas me diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras [eram cegas e paralíticas E os homens me apontavam as plantações estorricadas e [as vacas magras. E eu dizia: Eu sou o Enviado do Mal! e imediatamente as [crianças morriam E os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegos E as plantações se tornavam pó que o vento carregava e [que sufocava as vacas magras. (p.17)

Enquanto Deus é a representação do sublime, o Diabo se torna a do grotesco, expresso na bestialidade, nos apetites e na materialidade. Segundo a tradição antropomórfica, ele é dotado de traços humanos e animalescos. A bestialização opera a fusão entre opostos, homem versus animal, e revela o arquétipo do Mal e da ―descoberta do êxtase em todo o fenômeno, não importa quão naturalmente repugnante‖ (CROWLEY, 2000, p.104). É bom lembrar que, no carnaval, o Diabo é festivo, representa a glutonaria, o riso e a licenciosidade expressos em sua configuração híbrida e em sua presença constante em farsas como figuras burlescas. Para Charles Baudelaire, o riso seria nesse sentido uma ―ideia satânica‖ porque viria ―da ideia de sua própria superioridade‖; e ainda nos conclama a observar, com base nos manicômios, que ―o riso é uma das expressões mais frequentes e mais numerosas da loucura‖ (1998, p.14). O carnaval de Bakhtin De acordo com o estudo de Mikhail Bakhtin sobre as influências populares nos romances de Rabelais, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1977), as múltiplas manifestações e a força dos diversos temas grotescos podem ser compreendidas nas festas públicas profanas como as Asinárias, as Soities e os carnavais. 191


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O riso e a visão carnavalesca do mundo estariam ―na base do grotesco‖ porquanto destroem a seriedade unilateral, as ―pretensões de significado incondicional e intemporal‖ e liberam ―a consciência e a imaginação humana‖ (BAKHTIN, 2013, p.43). Porque, estranhas à ordem em seus motivos e práticas, as festas públicas eram a segunda vida do povo. A inversão e o rebaixamento existentes nessas ocasiões específicas, reservadas na vida do povo, dariam margem à ridicularização das instituições austeras e dos poderosos; o elevado tornava-se comum e o riso substituía o medo. O grotesco identificado nos festivais de rua da Idade Média e do Renascimento seria marcadamente alegre, uma forma de dessacralizar os aspectos graves e opressivos por meio do riso espontâneo. A abordagem kayseriana do grotesco, lúgubre e sinistro, estaria conjugada, segundo Bakhtin, a um estágio mais recente da história: ―no grotesco romântico o riso se atenua, e toma a forma do humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador positivo do riso se reduz ao mínimo‖. O grotesco romântico seria, pois, um ―grotesco de câmara, uma espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão‖ (p.33). No grotesco bakhtiniano, o movimento típico seria descendente. Seu imaginário, o baixo: a terra, o subterrâneo, o útero. O elevado submerge no baixo e se renova. O corpo teria dois polos simbólicos como representação da realidade: o elevado, constituído pelo rosto, pela cabeça, onde se localizam as abstrações e a espiritualidade; o outro, constituído pelo ventre e pelos órgãos inferiores, em que residem os apetites e a animalidade. O baixo corporal atuaria como força que arrasta o elevado ao húmus e transmuda-o pelo riso espontâneo e pela alegria. Órgãos como boca, genitálias e os orifícios que incorporam o exterior através do coito e da deglutição, e que expelem o interior pelo parto ou pela excreção, seriam figuras típicas do grotesco: neles o corpo deixa de ser único e isolado. Bakhtin considera que ―excrescências e orifícios caracterizam-se pelo fato de que são o lugar onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e entre o corpo e o mundo‖ e seria na baixeza que se efetuam ―as trocas e as orientações recíprocas‖ (p.277). O movimento de rebaixamento se relacionaria com o próprio caráter cíclico da natureza, expressada de maneira metonímica nas manifestações do cotidiano. Fico ali respirando o cheiro bom do estrume Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme E quando por acaso uma mijada ferve Seguida de um olhar não sem malícia e verve 192


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte Nós todos, animais, sem comoção nenhuma Mijamos em comum numa festa de espuma. (MORAES, 1938, p.15)

O fenômeno grotesco ocorreria das funções e partes mais íntimas e jocosas do corpo, das que remetem ao licencioso ou ao escatológico; ocorreria sobretudo daquelas que representam um ponto de conexão com os outros corpos, já que se expressa num corpo em expansão, que busca se coletivizar. Ao ser concebido em uma poesia que usufrui de certos recursos que lhe emprestam um acento popular, como redondilhas, o refrão e um sinistro ambiente folclórico, o resultado se faz interessante como o de ―Tanguinho macabro‖. — Maricota, o teu nariz São duas fossas de verdade! Maricota, o teu nariz São duas fossas de verdade! — Não é nariz não, mocinho É uma grande cavidade Para sentir o cheirinho Dessa tua mocidade. (MORAES, 1992, p.66)

A comilança do omnívoro A maioria dos nomes próprios, em Rabelais, adquire o caráter de apelido. Forjados ou legados pela tradição, esses nomes-alcunhas não são ―neutros‖, como nos ensina Bakhtin (2013, p.405). O sentido de cada um sempre inclui uma apreciação positiva, negativa ou mesmo ambivalente. Seu personagem Gargântua nasceu com um choro bastante particular: ―Beber! Beber! Beber!‖. Ao que seu pai reagiu: ―Que Garganta a tua!‖. E, por essas palavras, seu nome lhe foi dado (RABELAIS, 1957, p.57). A partir de composições narrativas como essa, em torno dos gigantes Gargântua e Pantagruel — personagens glutões e galhofeiros que seriam uma alegoria hiperbólica da vida do povo —, o crítico russo extrai o que chama de ―realismo grotesco‖. Não nasci ruminante como os bois Nem como os coelhos, roedor; nasci Omnívoro: deem-me feijão com arroz

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Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 E um bife, e um queijo forte, e parati E eu morrerei feliz, do coração De ter vivido sem comer em vão. (MORAES, 1962, p.92)

Órgãos como a boca, os dentes, a língua, a garganta, correlacionados com as funções inferiores do corpo humano como a deglutição e a produção de fluidos, são elementos importantes do realismo grotesco, especialmente quando chegam sob as formas do exagero. Esses elementos são também profícuos do ponto de vista mítico e telúrico por representarem um ambiente interior, desconhecido, associado ao baixo e ao subterrâneo. O grotesco, propenso às cavidades, à analogia entre as aberturas do corpo humano e as grutas que levam às profundezas, utiliza-se do universo corporal como representação do universo total. Temas sérios e elevados como a morte podem ser então rebaixados para que venham depois à tona, estranhos e risíveis. O que é o caso quando morrer ―feliz‖ e morrer ―do coração‖ aparecem conjugados, ainda mais se conduzidos pela hipótese da abundância: feliz do coração. Em ―Soneto ao caju‖, Vinicius de Moraes dá início ao poema colocando o amor nas ―coisas que tem sumo/ E oferecem matéria onde pegar‖. Em contradição arguta com o previsível, o poeta em seguida menciona a noite, a música e o mar; mas logo emenda: ―Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo‖. E em sua apologia poética ao caju, de ―materialismo elementar‖, enxerga-o ―a copular com o galho/ A castanha brutal como que tesa:‖, finalizando: O único fruto — e não fruta — brasileiro Que possui consistência de caralho E carrega um culhão na natureza. (MORAES, 2009, p.89)

A deglutição e o coito, assim como a excreção e o parto, expressam processos de transformação do corpo individual em partícula passível de fusão com o exterior, dados por orifícios e genitálias. Georges Bataille chama a atenção para esses ―canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade‖, afirmando que a obscenidade seria a ―desordem que perturba um estado de corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e firmada‖ (1987, p.17).

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Romantismo e feiura Do arcabouço estético recomendado em Conversa sobre poesia (1800), de Friedrich Schlegel, constam as obras compostas ao sabor da imaginação livre, engendradas como forças indômitas da natureza. Elas nasceriam do lúdico, dos contrastes e do desarmônico, ainda que perturbadores; aspirariam à expressão da totalidade e do absoluto. O poeta alemão já havia afirmado que o belo está distante de ser o princípio dominante da moderna lírica e que ―muitas das mais esplêndidas obras modernas são representações evidentes do feio‖ (SCHLEGEL apud ECO, 2014, p.275). Conversa sobre poesia, por sua vez, constitui um dos mais importantes manifestos da história do romantismo. O ―arabesco‖ seria a fórmula com a qual os artistas conseguiriam alcançar os elementos românticos, a potencialidade que definiria a poesia romântica. Seu significado seria íntimo do conceito de fantasia. Seu produto seria composições inventivas, ―espirituosos jogos pictóricos‖, que empregariam ―uma forma ou maneira de exteriorização inteiramente determinada e essencial da poesia‖ (SCHLEGEL, 1994, pp. 62-3). Não seria a nada subordinado, exceto à vontade subjetiva. Para tanto, poderia se apartar inclusive das convenções de beleza e dos gêneros fechados, e se manifestar no inverossímil e na extravagância. Schlegel assinalou em um de seus fragmentos que o gênero da poesia romântica está em evolução e que essa ―é sua verdadeira essência, estar sempre em eterno desenvolvimento, nunca acabado‖. Nenhuma teoria o esgota e apenas uma ―crítica divinatória‖ estaria autorizada a ―ousar uma característica de seu ideal‖. Só ele seria infinito, livre, e teria como sua lei primeira que ―o arbítrio do poeta não estará sujeito a nenhuma lei‖ (p.101). Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o [corpo felpudo das aranhas Ri dos touros selvagens carregando nos chifres [virgens nuas para o estupro nas montanhas/(...) E com todo esse pus, faz um poema puro (MORAES, 1938, pp. 25-8)

Outro registro que ficaria marcado também como um dos principais manifestos do romantismo é o prefácio que Victor Hugo escreve para Cromwell (1827), justificando as opções estéticas de seu novo trabalho. O prefácio tornar-se-ia mais famoso que a própria peça e seria fundamental para entender o impacto que o grotesco exerceu sobre a arte e as teorias 195


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românticas. Se Schlegel via nos arabescos um veículo de junção dos heterogêneos para que a poesia pudesse compreender o absoluto, Hugo percebia no grotesco um elemento capaz de elucidar e complementar o belo, de ampliar seu conceito, para que, enfim, o absoluto se revelasse. Desse modo, a ―musa moderna‖, com olhar mais elevado e amplo, sentiria ―que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz‖ (2010, p.26). Victor Hugo expõe ali a teoria das três idades: o gênero humano teria crescido e se desenvolvido; e alcançou a maturidade, como qualquer um de nós. ―Foi criança, foi homem; assistimos-lhe agora a imponente velhice‖. Na primeira etapa da humanidade, ―fabulosa‖ ou ―primitiva‖, a ode é a manifestação poética: ―Eis o primeiro homem, eis o primeiro poeta. É jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é toda sua poesia‖. Na Antiguidade, ―a família se torna tribo, a tribo se faz nação‖. Há choque de impérios, guerra: ―A poesia reflete esses grandes acontecimentos; das ideias ela passa às coisas. Torna-se épica, gera Homero‖ (pp. 16-8). Somente a partir do cristianismo, de acordo com o escritor, a partir do drama, a verdade almejada como ideal estético teria sido possível. Os temas e as formas da tragédia e da comédia comportariam a completude do homem, o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o divino e o terreno. O romantismo ofereceu um novo significado à estética da feiura. Quando percorremos as páginas de qualquer volume dedicado à história das artes, é muito perceptível que ali ela reemerge desassombrada. Umberto Eco deu a esse momento histórico o título de ―O resgate romântico do feio‖; e parte de uma reflexão de G. E. Lessing sobre o grupo estatuário Laocoonte para discorrer sobre o assunto (2014, pp. 270-309). Hugo, personagem visionário desse período, acabou aproximando os conceitos de grotesco e de feiura em sua teoria, dependendo do funcionamento que eles prestassem à obra artística como constituição de um polo oposto ao sublime. Baudelaire no Miramar O legado baudelairiano na poesia ocidental, desde as últimas décadas do século XIX até hoje, reincide com tal constância e de tantas formas, que não seria exagero afirmar que um norte estético, moderno, por vezes inconsciente, foi dado sob a influência decisiva de Baudelaire. O poeta francês superou um conjunto de recursos já desgastados do romantismo sem abdicar de grande atenção, no entanto, para com o sublime e o absoluto, alcançados por meio da interação ativa e desinquieta com o obsceno, a maldade, o abjeto, o grotesco. Foi precursor do simbolismo, influenciou 196


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realistas, colaborou definitivamente com os contornos da modernidade. No Brasil, a partir da década de 1870, poetas como Teófilo Dias e Carvalho Júnior pleiteavam a poesia de Baudelaire e utilizavam-na como uma suposta evidência favorável à estética realista e à negação do romantismo. Carvalho Júnior escreve à época o soneto ―Profissão de fé‖, em que se apropria de imagens de ―L‘Idéal‖ para compor um tributo ao realismo: ―Odeio as virgens pálidas, cloróticas/ Belezas de missal que o romantismo/ Hidrófobo apregoa‖ que sugere à memória ―Je laisse à Garvani, pöete des chloroses,/ Son troupeau gazouillant de beautés d‘hôpital‖. Elementos da poesia baudelairiana como o erotismo carnal e a agressividade levariam então uma parte considerável da crítica a esse entendimento que aproximava o francês da estética realista (SILVA SANTOS, 2009, pp. 420-30).48 Não era o caso de Machado de Assis. Em ―A nova geração‖, texto publicado em 1879 na Revista Brasileira, ele afirma que ―os termos Baudelaire e realismo não correspondem tão inteiramente‖ e lembra que o próprio poeta havia repugnado a classificação de realista — ―cette grossière épithète‖ (ASSIS apud CAROLLO, 1980, pp. 142-3). As reservas de Baudelaire evidenciadas em poemas como ―L‘Idéal‖ não apontavam na verdade para esta ou aquela tendência específica, mas à mediocridade de muitos artistas de seu tempo que não carregavam na poesia as dimensões da eternidade, encontradas nas grandes obras do passado. Como podemos perceber em sua teoria sobre a modernidade (BAUDELAIRE, 1997), elementos que remetem ao eterno e que se insinuam nas impressões cotidianas legitimariam a beleza moderna. A composição de imagens por meio do erotismo grotesco, encarnado na animalização de aspectos humanos e no apelo à violência e ao asqueroso, é herança desentranhada e subvertida da teoria romântica, e antecipa alguns dos componentes comuns no simbolismo brasileiro, sobretudo em Cruz e Sousa. Entre outros recursos, a abertura da poesia ao léxico de toda a estirpe, à explicitação da feiura, às minúcias materiais e brutais possibilitaria também o surgimento de uma obra extraordinária como a de Augusto dos Anjos. E os mecanismos diversos da lírica baudelairiana continuariam a abrir portas para os maiores nomes da poesia brasileira ao longo do século XX. 48

A tese de doutorado de Fabiano Rodrigo da Silva Santos, Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz de Sousa, é provavelmente o trabalho mais robusto até então entre os que relacionam literatura brasileira e grotesco. Ali encontramos um levantamento bibliográfico impressionante sobre as discussões acerca do conceito de grotesco ao longo dos tempos. 197


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937

Mantém-se extática em face Da aurora em elaboração Embora formigas pretas Que lhe entram pelos ouvidos Se escapem por umas gretas Do lado do coração. Em volta é segredo: e móveis Imóveis na solidão... Mas apesar da necrose Que lhe corrói o nariz A moça está tão sem pose Numa ilusão tão serena Que, certo, morreu feliz. (MORAES, 1954, pp. 200-1)

No poema ―Une charogne‖ (2015, 158-61), Baudelaire apresenta um espetáculo natural que vai além de um simples fascínio pelo horror. A carcaça em putrefação é de uma beleza ambígua, incômoda e com aberturas para o eterno, substâncias comuns à fruição do sublime. Os quartetos dedicados a uma carniça parecem elaborar algo inovador dentro das representações do grotesco na literatura, mais precisamente no reconhecimento das conotações telúricas latentes ao processo de decomposição: a transcendência do abjeto à esfera do cósmico; o elevado, na figura do sol, interatuando com o baixo, na figura da carniça; o ciclo implacável. Formas estereotipadas do discurso amoroso contrastam no poema com as inúmeras imagens hediondas e macabras, que levam a ironia a um extremo de pouca ou nenhuma precedência. A ―Balada da moça do Miramar‖, publicada em 1954 na Antologia poética de Vinicius de Moraes, descreve o cadáver de uma mulher, ―nua, morta, deslumbrada‖, de frente a uma janela do Edifício Miramar. Seu corpo apodrece já há alguns dias, mas ela deixou a porta trancada e ninguém sabe de sua morte. A imagem do deslumbre, que fora do contexto poderia remeter a uma grande expressividade, carregada de vida, torna-se uma fotografia precisa e tétrica no poema, resultado do contraste. O sentido de se deslumbrar que é ter a visão abalada pelo excesso de luz, aqui é tê-la abalada pelo seu inverso; ou então que se entenda a morte como iluminação. A moça está sem ―pose‖. A extensão de sentido da palavra também é provocadora e antagônica: assumir atitudes afetadas ou imitativas é uma hipótese nula para um cadáver, embora esteja ele perfeitamente parado como quem está sujeito a uma foto ou pintura — ou à poesia. Necrofilia lunar, 198


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estupro solar. Os signos mais elevados podem se transformar na matéria mais bruta quando consideramos a recepção subjetiva do interlocutor. Vida e morte vêm e vão como substâncias imiscíveis ou como mistura homogênea enquanto os ossos atravessam a pele da moça. ―Balada da moça do Miramar‖ é uma das mais belas baladas vinicianas e dialoga com uma tradição em que o grotesco sai das margens e se torna protagonista. De Gregório a Vinicius Quanto mais a sátira se acentua na poesia de Gregório de Matos, mais podemos encontrar os elementos que por ora nos interessam. Em épocas anteriores àquela estética romântica que estimularia a desordem em um ambiente misterioso e amedrontador, era mais fácil que o riso alegre fosse o principal produto do grotesco. O poeta barroco inverteu a lógica do respeito e das hierarquias para ridicularizar o poder e os postos mais prestigiosos da sociedade. Valeu-se da cultura cômica popular e compôs uma obra povoada de personagens como governadores, clerezia, fidalgos, letrados, administradores etc., bem como pessoas mais simples do povo. Todos carnavalizados em algum grau, de modo que se misturassem entre palavrões, profanações e caricaturas, como a que pintou do governador Antônio Luís da Câmara Coutinho. Nariz de embono com tal sacada, que entra na escada duas horas primeiro que seu dono. (MATOS, 1992, pp. 183-4)

Os entes religiosos, sobretudo frades, eram matéria-prima entre as mais usuais para o rebaixamento. Verá na realidade aquilo, que já se entende de uma puta que se rende às porcarias de um Frade: mas se não vê de verdade tão lascivo exercício, é, porque cego no vício não lhe entre no oculorum o secula seculorum 199


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 de uma puta de ab initio. (MATOS, 1992, pp. 264-5)

A chamada poesia pantagruélica precisa constar também em qualquer rápida retrospectiva que se faça dos principais nomes do grotesco em nossa lírica. Situada entre as décadas de 1840 e 1860, pertence a um romantismo paulistano ―marcado pelo satanismo, o humor e a obscenidade‖, como afirma Antonio Candido. O que restou dela é pouco, pois seus próprios praticantes não lhe davam importância. E, ao entrarem em suas vidas práticas e respeitáveis, os poetas pantagruélicos punham de lado ―as provas de loucura da mocidade e com certeza as destruíam‖ (1993, pp. 230-1). O mal que deitava suas sombras sobre Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e, mais especialmente, Bernardo Guimarães, ainda não era inspirado por Baudelaire, mas por Byron, Shelley, Musset e Heine, como ensina Silva Santos (2009, p.28). Bernardo Guimarães explorou praticamente todos os gêneros desviantes ou baixos e modalidades do grotesco romântico em ―A saia balão‖, ―Lembranças do nosso amor‖, ―O elixir do pajé‖, ―O nariz perante os poetas‖, ―Origem do mênstruo‖ ou ―Parecer da Comissão de Estatística a respeito da freguesia de Madre-deus-do-angu‖. Na última década do século XIX, Cruz e Sousa publicou seus primeiros poemas e prosas poéticas. Sua literatura se filiava ao simbolismo, estilo estranho à literatura nacional e que nem mesmo na França, país de origem do movimento, alcançara inteira aceitação. O poeta, oriundo da província do Desterro, assume um caráter cosmogônico, faz de sua poesia um ambiente análogo a um cosmo encerrado em si mesmo que o arrasta para o inferno das experiências sensíveis, ao paraíso de suas aspirações transcendentais, às grutas da angústia íntima e ao infinito das instâncias inteligíveis. Sua substância grotesca flerta com o sublime; o mal aparece como única e desesperada saída para a concretização das abstrações — sua busca primordial — que somente se daria com o amálgama entre os opostos. Seus versos são sonoros, performáticos; contam com elementos românticos, nevroses decadentistas, mundos invisíveis, abismos e pesadelos. Vala comum de corpos que apodrecem, Esverdeada gangrena Cobrindo vastidões que fosforescem Sobre a esfera terrena. Bocejo torvo de desejos turvos, Languescente bocejo De velhos diabos de chavelhos curvos 200


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte Rugindo de desejo. (CRUZ E SOUSA, 1961, pp. 114-5)

O simbolismo de Cruz e Sousa preconizou uma importante linhagem do modernismo brasileiro. Antonio Carlos Secchin explica, a respeito, que a hegemonia da versão paulistana do movimento modernista acabou minimizando ou excluindo suas várias vertentes. Afirmar que a geração de 22 foi iconoclasta e que a geração de 30 representou a maturidade e a reconstrução poética significa, segundo ele, ―traçar uma empobrecedora linha reta‖. Entre outras, havia a vertente que dialogava com o simbolismo, como a que resultou nas obras de Cecília Meireles e Augusto Frederico Schmidt. Esses poetas ―tampouco são ‗antimodernistas‘, a menos que o modernismo seja termo de uso privativo do grupo de 22; são, antes, outros modernistas‖. Secchin observa que é ―a essa tendência que se filia o primeiro Vinicius, em 1933, com O caminho para a distância‖ (2008, pp. 7580). Enquanto Augusto dos Anjos elaborava os mecanismos de sua poesia, o parnasianismo e o simbolismo já se haviam fixado como duas tendências atuantes. O poeta paraibano não abdicou do que as duas escolas poderiam contribuir para a sua expressão, embora tenha ido além. É em sua obra que podemos encontrar as primeiras inflexões que reorientam significativamente a poesia brasileira, quando a experiência concreta da vida e a desmistificação da realidade se impõem e se consolidam. Quanto à linguagem, Augusto cria um universo verbal influenciado pelas doutrinas que derivam do materialismo e do evolucionismo, fomentado ainda pelo rastro realista e pelas possibilidades poéticas descingidas por Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. Esse léxico muito particular normaliza composições com ―antepassados vermiformes‖, ―elefantíases‖, ―encéfalo absconso‖, ―estados prodrômicos‖, ―húmus dos monturus‖, ―morfogênese‖, ―noumenalidade‖, ―órbita elipsoidal‖, ―óvulo infecundo‖, ―protozoários‖, ―psicogenética‖ etc. O poeta realiza dentro desse universo exótico uma obra de grande manuseio formal voltada muitas vezes para as matérias minúsculas ou microscópicas, para os seres ou objetos repugnantes ou mesmo para as enfermidades. Retira-se daí a representação impressionante e concertada dos temas mais elevados como a existência e a morte. Augusto dos Anjos é o nome mais importante do grotesco na lírica brasileira. O cupim negro broca o âmago fino Do teto. E traça trombas de elefantes Com as circunvoluções extravagantes 201


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 Do seu complicadíssimo intestino O lodo obscuro trepa-se nas portas. Amontoadas em grossos feixes rijos, As lagartixas, dos esconderijos, Estão olhando aquelas coisas mortas! (ANJOS, 1976, p.113)

Sua expressão literária não busca escapar à experiência real, como analisa Ferreira Gullar; ―ao contrário, procura concretizá-la, dar-lhe o peso e a contundência da vida‖. No entanto, as ruínas ―são também a imagem do abandono e da morte‖. Augusto dos Anjos não exprime o passar do tempo, a decrepitude e a solidão ―através de conceitos ou imagens históricoliterárias‖; e sim ―com os próprios elementos dessa ruína anônima e vulgar‖. E então as lagartixas nos muros velhos do Nordeste são transformadas ―em testemunhas da história, do trabalho destruidor do tempo‖ (1976, p.23). A vasta incidência do grotesco na poesia de Vinicius de Moraes jamais encontrou proporções semelhantes entre os demais grandes poetas brasileiros de sua fase, a qual se convencionou chamar de modernismo. Inicialmente, o grotesco viniciano surge em configuração onírica, simbólica, fantástica ou infernal. São cobras saindo do corpo de uma mulher, pés que penetram ―a massa sequiosa das lesmas‖, um ―deus amarelo da imunda pomada‖, um ―mosquito gigante‖ que espalha o terror, borboletas que comem fezes verdes, faunos, anjos de toda a sorte etc. Em um segundo momento, já entre os versos maduros e prestigiados, o grotesco permanece, se não nos horrores hiper-realistas, exortado no folclore, na glutonaria ou na comicidade. Surgem cadáveres, mortos-vivos, fantasmas variados, um enterrado-vivo, a própria Morte personificada, quase todos os tipos de cânceres etc. A escatologia, os fisiologismos diversos e o baixo palavreado parecem cortar inteiramente todos os momentos de sua poesia. O grotesco pode assomar também no sarcasmo perante as convenções sociais mais graves. Penteiem direito Os cabelos do morto E ajeitem-lhe o olho Que está meio torto Estiquem-lhe a pele Com fita colante Para que ele fique Mais moço que antes. 202


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— Que morto mais tosco! — Que morto aberrante! (MORAES, 2008, pp. 60-3)

Atento aos mecanismos que engendram o fazer poético, Vinicius faz de ―Balada do mangue‖ (1946, pp. 87-9) uma mostra da utilização de proparoxítonas como recurso de realce à estranheza. Aliados a um vocabulário ao mesmo tempo baixo e biológico, podemos ouvir ecos de Augusto dos Anjos na balada viniciana: ―Pobres flores gonocócicas/ Que à noite despetalais/ As vossas pétalas tóxicas!‖. Lembremo-nos que a palavra esdrúxulo, adjetivo que utilizamos no mais das vezes com o sentido figurado, nominando o estranho ou o ridículo, é um termo gramatical sinônimo de proparoxítona. Candido, em um pequeno artigo sobre o poema — o qual afirma ser um ―dos mais belos da literatura brasileira‖ —, chama a atenção para a maestria com que Vinicius dominou o verso e as suas técnicas, e que assim pôde ―atualizar a tradição‖. O crítico aponta a ―Balada do mangue‖ como um exemplo dessa ―modernização‖ que lhe permite ―tratar com um toque de intemporalidade os temas aparentemente menos poéticos‖ (2008, pp. 159-62). É o caso também de ―Sob o trópico do câncer‖ (2008, pp. 29-38), em que o poeta aproveita fonemas, ritmos e tonalidades para colaborar na construção de um ambiente repugnante. Monstruosa tarântula, hediondo Caranguejo incolor, fétida anêmona Sai, Câncer! Furbo anão de unhas sujas e roídas Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo Que empesteias as brancas madrugadas Com teu suave mau cheiro de necrose

Vinicius de Moraes é, do ponto de vista cronológico, o último entre os cinco nomes mais importantes do grotesco na lírica brasileira, incluindo Gregório de Matos, Bernardo Guimarães, Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. Esses poetas que enquadram o pentagrama do grotesco da poesia nacional podem viabilizar uma leitura histórica baseada em outra perspectiva; leitura que perpasse movimentos e concepções estéticas e revele, por meio da desordem e do anômalo, invenções e reinvenções de um conjunto plausível e profuso.

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É feia a bomba atômica? Reflexões sobre o tempo e a morte inspiradas em relógios e ampulhetas já não eram, desde muito, novidade na história da arte. Mas é no século XX que se inicia uma era definitiva quanto à estética industrial. As máquinas já não precisavam representar um padrão de beleza alheio a seus mecanismos como aquela de James Watt, que escondia sua funcionalidade com arremates de linha clássica. A partir de então, foram possíveis, além de produtos com uma estética atraente por si mesma, outros que traziam a ideia de uma estética essencial em que ―a forma segue a função‖, cuja beleza seria tanto maior quanto mais eles fossem capazes de ―exibir a própria eficiência‖ (ECO, 2013, p.394). É interessante lembrar que, a respeito do lançamento de um novo citroën, Roland Barthes ofereceu aos automóveis o status de mito contemporâneo, comparando-os de início às grandes catedrais góticas: ―uma grande criação de época, concebida apaixonadamente por artistas desconhecidos, consumida por sua imagem‖. O novo carro seria o melhor mensageiro do sobrenatural porque nele haveria ―perfeição e ausência de origem‖ e a ―transformação da vida em matéria‖. Barthes observou que outros modelos atinham-se mais ―ao bestiário da potência‖ enquanto o Citroën D.S.49 foi ―da alquimia da velocidade para a gula do ato de conduzir‖ (2009, pp. 152-4). Filippo Tommaso Marinetti, em seu manifesto de 1910, L'uomo moltiplicato e il regno della macchina, sensualizou a relação de um maquinista com a sua locomotiva ao considerar os modos como efetua a limpeza de seu ―gran corpo possente‖. Seriam ―le tenerezze minuziose e sapienti di un amanteche accarezzi la sua donna adorata‖. O futurista italiano parte dessas imagens para explicar por que lhe pareceu absolutamente natural o fato de os organizadores da grande greve dos ferroviários não conseguirem induzir um único maquinista a sabotar sua máquina, ―che tante volte aveva brillato di voluttà sotto la sua carezza lubrificante‖ (1968, 255-6). É muito característico na poesia de Vinicius de Moraes esse recurso que transforma ideias, coisas e lugares em figuras femininas, tornando-os antropomórficos e prestes a uma interação encarnada, apaixonada. No caso d‘―A bomba atômica‖, o poeta utiliza o que Marinetti chamava de inútil velharia poética, ou seja, símbolos tradicionais como ―estrela vespertina‖, para se reportar no entanto a um objeto desenvolvido no intuito do extermínio em massa.

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Com a pronúncia de ―D.S.‖, no francês , faz-se Déesse (Deusa).

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Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte Bomba atômica, eu te amo! és pequenina E branca como a estrela verspertina (MORAES, 1954, p.211)

Contrastes tão inconcebíveis talvez encontrem paralelo em algumas descrições de ―Na colônia penal‖, de Franz Kafka. Enquanto o objeto no poema de Vinicius é um veículo de genocídio, o do escritor tcheco, no conto, é um instrumento de tortura. As engrenagens do ―rastelo‖ são por vezes descritas pelo oficial com um capricho muito particular. Sua admiração pelo aparelho é uma criatura grotesca: ―Ele se posiciona automaticamente de tal forma que toca o corpo apenas com as pontas; quando o contato se realiza, este cabo de força fica imediatamente rígido‖. E continua: ―O não iniciado não nota por fora nenhuma diferença nas punições. O rastelo parece trabalhar de maneira uniforme‖ (2011, p. 74). Por outro lado, o eu-lírico viniciano quer conquistar com romantismo o objeto de destruição — para que ele não mais se opere: ―Que emoção não me dá ver-te suspensa/ Sobre a massa que vive e se condensa/ Sob a luz! Anjo meu, fora preciso/ Matar, com tua graça e teu sorriso/ Para vencer?‖. Nos dois casos o estranhamento se perfaz, não pelo rebaixamento de um objeto, mas pela elevação do horrendo em beleza possível. Ao longo das três partes de ―A bomba atômica‖, a aparente desordem na disposição dos significados é extensa, ainda que, ao mesmo tempo, o conjunto seja eloquente e bem delimitado. Seu arcabouço técnico e imagético passa pelo emprego de aliterações, assonâncias, rimas, manuseio melódico e rítmico, polissemias, ambiguidades e referências externas. Eucanaã Ferraz, em artigo publicado na Revista Língua Portuguesa, afirma que ―o poema desfaz limites de toda ordem‖ e discursos de diferentes tons estariam combinados; o vocabulário, por sua vez, seria heteróclito: ―palavras oriundas de campos científicos vários (física, química, geometria, matemática, biologia), termos diretamente ligados às artes, e imagens e artifícios retóricos caros às poesias parnasiana e simbolista.‖ Observa ali ―operações sutis‖ que levariam a uma atualização do potencial da língua, ―como se vê nas alterações de pares mínimos que transformam a ‗bomba atômica‘ em ‗pomba atônita‘‖ (FERRAZ, 2008). O acordo inseparável entre forma e conteúdo n‘―A bomba atômica‖ trabalha na expressão de uma heterogeneidade ostensiva. Além de constituir por meio dessas isomorfias e de recursos multifacetados uma bela representação do feio, o poema leva à pergunta sobre a beleza em si mesma do objeto representado; se ela poderia se dissociar inteiramente do corpo monstruoso por ele concebido.

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Considerações Embora Vinicius de Moraes seja conclamado por sua poesia amorosa, sua obra possui no entanto outro lado, uma face bizarra e prolífica ainda pouco explorada pelos estudiosos. A tendência que muito de seus versos dispõe para o espectro do anômalo, do feio, do asqueroso, do putrefato é evidente e o torna, com a devida atenção, o maior herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. Essa tendência esbarra igualmente, outras vezes, no riso espontâneo do nonsense, da glutonaria, do escatológico e da incorreção. A ideia de que Vinicius é um poeta do grotesco se fundamenta a partir de exames interessados nas numerosas e persistentes ocorrências da substância grotesca verificáveis ao longo de toda sua obra poética. Junto à leitura analítica de alguns dos poemas em que ela ocorre, é possível consultar um rol de teóricos que, direta ou indiretamente, contribuem de maneira decisiva para com os conceitos que a circundam. Reflexões estéticas que aproximam e contrastam textos de Bakhtin, Baudelaire, Burwick, Friedrich, Hugo, Kayser, Schiller, Schlegel e outros podem oferecer a linha condutora para uma análise que, porém, não prescinde da atenção majoritária sobre os poemas e os seus mecanismos particulares. Figuram entre tais alguns dos mais expressivos do poeta, como ―História passional, Hollywood, Califórnia‖, ―Soneto de intimidade‖, ―Balada da moça do Miramar‖ e ―Sob o trópico do câncer‖. Bibliografia ANJOS, A. dos. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013. BARTHES. R. Mitologias. Trad. de Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. _____. Escritos sobre arte. Trad. Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Imaginário, 1998. _____. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 206


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O martelo da feiticeira: a bruxa como signo de resistência em Anne Sexton Hammer of the witch: the witch as a sign of resistance in Anne Sexton Caroline Estevam de Carvalho Pessoa50 Isabela Christina do Nascimento Sousa 51 Sebastião Alves Teixeira Lopes 52 Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a função da bruxa no processo de construção do eu lírico na poesia de Anne Sexton (1999) utilizando, para isso, os poemas ―Her kind‖, ―Ghosts‖ e ―The witch‘s life‖. Através de uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico, com base em Ferguson (1991), Zordan (2005), Funck (2011), entre outros. A bruxa como representação fornece ao eu lírico significados durante o processo de identificação, sustentando o caráter transgressor de sua fazendo deles signos de resistência. Palavras-chave: Anne Sexton. Bruxa. Identidade. Gênero. ABSTRACT: The goal of this article is to analyze the function of the witch in the process of construction of the persona in the poetry of Anne Sexton (1999), through the poems ―Her kind‖, ―Ghosts‖ and ―The witch‘s life‖. The methodology was the qualitative bibliographic research, grounded on Ferguson (1991), Zordan (2005), Funck (2011), among others. The witch as a representation provides meanings to the persona during the process of identification, supporting the transgress character of her identity turning into sings of resistance. Keywords: Anne Sexton. Witch. Identity. Genre.

1 Introdução No imaginário social, a figura mitológica da bruxa desperta fantasias múltiplas acerca de mulheres com poderes sobrenaturais, podendo ser muito belas ou muito feias, malignas e implacáveis, solitárias, de hábitos noturnos. A típica imagem da bruxa que cozinha em seu caldeirão e voa na vassoura em noites de lua cheia. A literatura e o cinema estão repletos dessa figura fantástica, auxiliando a fomentar a aura de sedução e magia em torno da imagem da bruxa suscitando fantasias, histórias, como, por exemplo, o conto de Perrault ―A bela adormecida‖ em que uma terrível bruxa enfeitiça uma princesa e a faz dormir eternamente ou outro conto popular ―Branca de Neve e os sete anões‖ em que 50

Graduada em letras com habilitação e língua inglesa pela UERN, mestre em letras pela UESPI, atualmente professora do quadro temporário na UFERSA. 51 Graduada em letras com habilitação em língua inglesa pela UERN, mestre em letras pela UFPI, atualmente professora do quadro temporário na UERN. 52 Mestre em letras pela UFSC, doutorado em letras na USP, pós-doutorado Universidade de Winnipeg, Canadá (2007) e Pós-Doutorado na Universidade de Londres/School of Oriental and African Studies, Inglaterra (2014). Atualmente, professor associado da UFPI, atuando na graduação e pós-graduação. 209


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mais uma vez uma bruxa invejosa envenena a Branca de Neve com uma maçã. Histórias como essas direcionadas ao público infantil têm caráter moralizante, mas usando para isso, a bruxa como antagonista. Dentro dessa perspectiva, entendemos a tessitura da bruxa como um ser extraordinário dos contos de fadas, dos enredos fílmicos e literários que povoam a imaginação do público ávido pelo consumo de narrativas do gênero. A Idade Média profundamente marcada pelos dogmas da Igreja Católica, era uma época de ações religiosas rigorosas que caracterizava a mulher como o meio do pecado entrar no mundo: a inebriante lascívia da bruxa enfeitiçava e perdia os homens. Dentro dessa ótica, as poesias da escritora Anne Sexton (1928-1974) têm uma relação profunda com o protótipo das bruxas que transitam entre as mulheres marginalizadas socialmente e, assim, descritas como criaturas ―à parte‖, estranhas e más. Nesse sentido, selecionamos três poemas ―Her kind‖, ―The witch‘s life‖ e ―Ghosts‖ com o intuito de abordar a temática voltada para o aspecto negativo das bruxas e em como estas estão diretamente relacionadas às mulheres consideradas de alguma forma transgressoras. 2 O mito da bruxa na poesia de Anne Sexton A poesia de Sexton aproxima-se da caracterização do grotesco da bruxa que causa repulsa quando velha e encantamento misturado ao horror quando jovens. Mais que isso, a poeta se vale da simbologia da bruxa para designar um perfil de mulher que se sobressai às amarras da dominação, ―as bruxas encarnam tudo o que é rebelde, indomável e instintivo nas mulheres‖, (ZORDAN, 2005, p. 332). Em ―Her kind‖, esse ―feminino selvagem‖ (Ibidem, p. 332) se manifesta quando o eu lírico, na primeira estrofe, se assume bruxa, ―I have gone out, a possessed witch‖, declarando ser também ela demoníaca, uma mulher fora de controle que sai pelas noites ―haunting the black air, braver at night‖ (SEXTON, 1999, p. 15 ), atividade tal atribuída às práticas de feiticeiras. Essa bruxa maligna percorre os espaços noturnos esbanja sua liberdade e insubordinação. Ao sair à noite, o eu lírico viola as regras de conduta social, por ser este momento o horário das trevas, associado à ideia de mal (MARTONI, 2011). Além disso, a noite era o momento da realização dos sabás: rituais demoníacos que envolviam orgias, ingestão de carne humana e bebidas alucinógenas (ANCHIETA, 2011). A bruxa de Sexton é também solitária e diferente em sua estrutura corporal, hedionda e fora de controle: ―lonely thing, twelve-fingered, out of mind‖. Da mesma forma, o eu lírico do poema é simbolicamente deformada e desarticulada da noção de mulher, de feminino, portanto ―A woman like that is not a woman, quite/I have been her kind‖ (SEXTON, 1999, p. 16), o que indica não somente a ideia de coisa abjeta que vai contra o ideal feminino pensado pela 210


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cultura, mas que representa um ideal de mulher para o eu lírico. No processo de identificação o reconhecimento do eu lírico em relação à bruxa acontece por meio dos signos produzidos pela cultura, como o mito da mulher perversa, fora de si e histérica, ―out of mind‖. Em termos de história, esses signos ficaram atrelados como patologias quase eminentemente femininas. Em sequência, na segunda estrofe o comportamento do eu lírico se aproxima da bruxa, no entanto age como a mulher doméstica voltada aos afazeres do lar: ―rearranging the disaligned‖. Em particular, esta estrofe descreve a proximidade com a natureza e com o grotesco desse ambiente fantástico, por exemplo, visto na passagem ―I have found the warm caves in the woods‖. Bruxas são personagens intimamente vinculadas ao natural, a história explica que essas figuras excêntricas que moravam sozinhas nos bosques eram mulheres que realizavam trabalhos como parteiras, curandeiras, que detinham certos conhecimentos considerados perniciosos. O eu lírico completa com a ideia de que ―a woman like that is misunderstood‖ (SEXTON, 1999, p. 16). O sujeito feminino ―[...] precisa negociar sua experiência dentro de construções discursivas que podem ou não comprometer seu completo desenvolvimento como indivíduo‖, (FUNCK, 2011, P. 71), nesse sentido, ainda que todo o comportamento da bruxa nessa estrofe seja semelhante ao do ideal de ―mulheridade‖ ela permanece sendo incompreendida. A bruxa de Sexton não teme a morte, ―A woman like that is not ashamed to die./I have been her kind‖ (SEXTON, 1999, p. 16), no sentido de que apesar de todas as imposições ela prefere ser bruxa, até mesmo morrer como uma a viver da maneira imposta. Para tanto, a identificação com a bruxa é uma forma de resistência, visto que essa imagem que era antes negativa passa a ser positiva. Destacamos, assim, a identificação do eu lírico com a figura da bruxa com o ideal de liberdade. Dessa forma, pela maneira que a cultura, o senso comum e a história teceram suas formas e a construiu incompreendida, observamos neste poema a heroicização da bruxa e sua figura como ser ideal, de forma que o eu lírico desconstrói a carga de ignomínia da mitologia medieval. Assim, a bruxa passa a ser ressignificada, saindo de uma visão grotesca, hedionda, obscura e passa a ter um sentido honroso que beira ao heroico. Em outras palavras, a bruxa deixa de representar o demoníaco, a tentação, a perversidade, para ser significado de transgressão, de liberdade, de barreiras rompidas, de ideal a ser alcançado. No segundo poema, ―The witch‘s life‖, inicialmente o eu lírico fala sobre uma senhora que chamava de bruxa durante a infância, que sempre espiava pela janela e aparentemente morava sozinha ―When I was a child/ there was an old woman in our neighborhood whom we called The Witch‖. A primeira estrofe nos apresenta um quadro de isolamento dessa mulher de idade avançada que se 211


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assemelha a uma bruxa velha. Apesar de o espaço do poema ser localizado dentro da civilização, a casa dela se torna esse ambiente que causa estranhamento dentro microcosmo do bairro. Durante a Idade Média, as feiticeiras também eram mulheres idosas, geralmente viúvas e não mais produtivas, ―sem chances de casar, ter filhos, ou seja, um peso para parentes ou vizinhos – que muitas vezes eram os autores das denúncias‖, (ANCHIETA, 2011, p. 59). No entorno dessas mulheres construía-se a lenda da ―bruxa velha‖ praticante das artes das trevas sentenciadas à fogueira: no poema, o destino é o ostracismo, o isolamento. O comportamento da senhora é introspectivo: ―All day she peered from her second story window/ from behind the wrinkled curtains‖; também era rude com as crianças: ―Get out of my life!‖. É também descrita com aspecto desagradável: ―She had hair like kelp/and a voice like a boulder‖ (SEXTON, 1999, p. 423). Essas características reunidas constroem o protótipo da feiticeira velha de aparência abjeta que vive solitária e se relacionam com o mal e o feio. Isto é, um apêndice social, pois ―histórica, a bruxa modifica-se dentro das eras, ficando em sua imagem as marcas que a sociedade lhe impôs‖, (ZORDAN, 2005, p. 332). Flagelada pelo tempo, essa mulher marginal não é parte do ethos social normativo estando dentro e, ao mesmo tempo fora, é duplamente marcada. A partir da segunda estrofe, a antiga bruxa funciona como uma autoimagem, pois, à medida que o eu lírico pensa nessa bruxa velha ridicularizada pelas crianças, passa a ver em si alguns dos mesmos aspectos: ―I think of her sometimes now/and wonder if I am becoming her/My shoes turn up like a jester‘s‖. Aos poucos o eu lírico começa a agir como a velha bruxa que enxotava as crianças com gritos: ―I am shoveling the children out,/scoop after scoop‖. Sua aparência também muda, ―Clumps of my hair, as I write this,/curl up individually like toes‖, tornando-se mais insólita, mais próxima da velha senhora de sua infância. Diferente do poema anterior, a exaltação à liberdade feminina acontece de outra forma: essa bruxa anuncia sua libertação em troca da exclusão social, assim esse insulamento é o ―castigo por sua insubmissão: forca, fogueira, solidão‖, (ZORDAN, 2005, 333). A partir do 9º verso, o eu lírico, cada vez mais isolado, cerca-se da presença de seus livros: ―Only my books anoint me (...)/ Maybe I am becoming a hermit‖. Além disso, cita elementos que fazem analogia à prática da bruxaria como a presença de animais especiais, ―opening the door for only/ a few special animals?‖ (SEXTON, 1999, p. 423). Anchieta (2011, p.61) aponta que as bruxas ―são frequentemente representadas junto de animais especiais peçonhentos ou de hábitos noturno, como as corujas‖, o que confere o tom de maravilhoso e místico à passagem. Assim esse eu lírico, aos poucos, vai tomando o lugar da velha senhora alvo da alcunha de bruxa do grupo de 212


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crianças que fazia parte. A primeira estrofe é reflexo da segunda: a visão do passado é a visão do futuro do eu lírico. O processo de formação do ―eu feminino‖ e/ou da identidade, envolve conflitos entre o que fora pré-estabelecido pelo meio cultural como ideal de mulher e a compreensão pessoal daquilo que o sujeito se identifica e a consciência que constrói de si como ideal, ―a identidade, como a de gênero, a sexual, ou qualquer outra, é produto tanto da cultura e do discurso, quanto da natureza que nos identifica na materialidade do corpo‖, (FUNCK, 2011, p.67). Nesse sentido, ao tentar formar essa identidade o eu lírico rompe com esse entendimento essencializador de mulher padrão e torna-se isolada como consequência. Ao passo que o eu lírico se encontra mergulhada dentro desse mundo melancólico, solitário e seja ela alguém que vai se identificando como uma bruxa, alguns aspectos de retomada de infância aparecem como últimos estágios para a cisão com um ―eu‖ infantil e alegre do passado, ―Maybe, although my heart/ is a kitten of butter,/ I am blowing it up like a zeppelin‖, do qual o eu lírico rompe. Nesse sentido, o ato de subir ou escalar é uma metáfora para essa ruptura cada vez mais acentuada entre ―nós‖ (sociedade) e o ―outro‖ (o eu lírico, bruxa, mulher deslocada). Por fim, o verso 22 revela a natureza da vida de uma mulher que chegou à velhice e fez escolhas diferentes: ―It is the witch's life‖. Dessa maneira, a vida de uma bruxa também se refere ao ostracismo social aonde são relegadas às mulheres que rompem com o padrão, levando em consideração a época de profundos questionamentos e contestações do papel essencializador do sujeito feminino. 3 Empoderamento feminino através do protótipo da bruxa em Sexton A teoria saussuriana do signo, indica que signos linguísticos têm seus significados convencionados, ou seja, eles não são dados pela natureza ou por alguma essência, mas pelo próprio homem que em acordo com um grupo social atribui um significado a um signo (BARBOSA, 2013). Todavia, o significado está sempre escapando de nós, sempre escorregando (DERRIDA, 2005). Esses significados não são se engessam, eles são abertos, isto é, podem ser transformados. A figura da bruxa, antes de conotação negativa, passou a ser resignificada e atualmente é utilizada como forma de empoderar as mulheres. Os estudos da história contribuíram para tal transformação, ou ainda, agregação, tendo em mente que ainda há algo de negativo ao evocar a imagem da bruxa. Muito do que fora escrito na história da Idade Média foi desmitificado na Idade Moderna, quando o movimento Racionalista apontava para razão como forma de regular a consciência, deixando de lado a religião que por muito tempo foi base para leis tanto no âmbito jurídico, como no âmbito social. Inúmeros trabalhos 213


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apontam para as crueldades praticadas com as mulheres nos Estados Unidos puritano do período colonial. Jogadas nas fogueiras por não estarem de acordo com as normas socioculturais e/ou se atreverem a viver de uma forma diferente da tradição, entre outras coisas que hoje têm menos impacto, mas antes bastavam para sentencia-las à morte. Tomando como alicerce as histórias das mulheres que foram condenadas, quando não com a morte, mas com exclusão social, por transgredirem com padrões impostos pelas sociedades. A figura da bruxa ganhou características como desafiadora, transgressora e destemida e hoje há um grito do movimento feminista que, se apossando dessa nova imagem, diz que: ―somos netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar‖ (ZELIC, 2014). É essa imagem de bruxa empoderada que encontramos na última estrofe de ―Her kind‖ (SEXTON, 1999, p. 15-16): ―I have ridden in your cart, driver,/waved my nude arms at villages going by,/learning the last bright routes, survivor/where your flames still bite my thigh/and my ribs crack where your wheels wind./A woman like that is not ashamed to die./I have been her kind‖. A septilha que encerra o poema, tem em seu primeiro verso uma ação que indica a tomada de poder por parte do eu lírico. Pode-se entender que o poema está ambientado em um mundo medieval, o cocheiro, as vilas, e a chama de fogo mencionada, remetem às fogueiras da Idade Média, a maneira mais popular de se oprimir uma mulher transgressora. Ela dirige a carroça do cocheiro. Logo, ela se apossou de uma atividade que lhe era inapropriada, visto que dirigir sempre foi uma atividade considerada masculina, embora hoje com menos ênfase. Assim, ao tomar para si a carroça, pode-se concluir que ela tomou o poder de decidir a direção da própria vida. Em seguida, o eu lírico acena os braços nus para as vilas que passam. Esse verso faz referência a sexualidade da mulher, que muitas vezes é tratada como algo demoníaco. O fundamentalismo cristão que serviu como base para o desenvolvimento dos Estados Unidos propagou ideias de repressão à sexualidade fermina associando-a ao Diabo, através da imagem de Eva, cuja tentação sexual seria responsável por trazer o pecado ao mundo: ―Sexual lust originated with her and men were merely the victims of her wanton power. Socialization of white men to regard women as their moral downfall led to the development of an anti-woman sentiment.‖ (HOOKS, 1990, p. 29). Não à toa, uma das imagens mais tradicionais da bruxa do ocidente configura-se como uma mulher bonita e de sensualidade exacerbada. Nosso corpo é um lugar prático de controle social, pois existem normas socioculturais de comportamento e de aparência que visam torna-lo, em termos foucaultianos, um ―corpo dócil‖ (BORDO, 1997). A mulher é criticada pela sociedade quando resolve mostrar seu corpo. É importante mencionar que as normas divergem de acordo com a cultura e com o momento histórico. É comum, 214


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por exemplo, em algumas tribos indígenas que mulheres não cubram seus seios. No entanto, nos Estados Unidos ainda em formação, exigia-se que todo o corpo feminino estivesse coberto, isso incluía braços e até mesmo os cabelos. As mulheres que desobedecessem estavam sujeitas à serem despidas até a cintura e chicoteadas até que as costas se cobrissem de sangue (MACLEAN, 2007). Todo esse contexto histórico faz com que o ato de simplesmente acenar com os braços descobertos torne-se um ato de rebeldia. Nas estrofes que se seguem, o eu lírico se descreve como uma sobrevivente, mas com muitas marcas, como as coxas chamuscadas que fazem alusão à prática da fogueira medieval, e também as costelas lesionadas que indicam agressão física. Oliveira descreve a bruxa de Sexton como um ser cômico e inofensivo: ―[...] a bruxa de Sexton é essencialmente inofensiva e vulnerável, tem um papel de mártir comunitário que domestica o terror tornando-o menos ameaçador e até agradável para o resto das pessoas, e rejeita o ódio em favor do humor, da autodepreciação.‖ (OLIVEIRA, 2004, p. 220). Todavia, embora não cause danos materiais, a bruxa do poema ao ignorar as normas socioculturais – como o faz na última estrofe, através do ato de dirigir a carroça e exibir os braços nus – ataca toda uma estrutura institucionalizada de opressão feminina. O que faz dela, não só uma mártir, mas também uma resistente, o que a relaciona com uma bruxa distinta daquela que era pintada como comedora de recémnascidos, representante do Diabo na terra, por exemplo. A bruxa de Sexton faz parte de uma tradição que transformam em poder as transgressões femininas que culminaram em castigos severos. Quando a mulher era associada com poder ou autonomia, que representasse perigo à estrutura social já estabelecida, buscavam-se estratégias para reprimi-la. Assim, as bruxas queimadas eram curandeiras, ou qualquer mulher que mostrasse atitudes de insubmissão, sendo assim rotuladas de monstros e penalizadas (ZORDAN, 2005). Afirmar que elas eram monstros, seres enviados pelo demônio, legitimava as práticas cruéis. Anne Sexton volta a associar a bruxa ao poder em ―Ghosts‖ (1999, p. 65): ―Some ghosts are women,/neither abstract nor pale,/their breasts as limp as killed fish./Not witches, but ghosts/who come, moving their useless arms/like forsaken servants‖. Na primeira estrofe transcrita acima, Anne Sexton não descreve bruxa alguma, mas põe essa figura em contraste com a do fantasma, o que nos permite inferir algumas coisas sobre ela. Para que o processo de identificação existe é preciso que haver a Diferença, a ―(...) marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social‖, (WOODWARD, 2000, p. 39). Dentro dessa ótica, a comparação reforça a diferença, pois para que o ―eu‖ se configure como tal é necessário que algo de fora forneça essa possibilidade de reconhecimento de si. Em outras palavras, o outro precisa fornecer o parâmetro 215


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da diferença para que, assim, esse ―eu‖ se legitime, pois sem esse reconhecimento o ―eu‖ não passa de uma forma avulsa. Embora fantasmas sejam destituídos de corpos físicos, a poeta lhes confere corpos de mulheres (CRIBBS, 2003). Sexton afirma que algumas mulheres são fantasmas que não são abstratos ou pálidos. Segundo Oliveira (2004), Sexton tenta desmitificar a imagem romantizada ou etérea dos fantasmas. Contudo, se pensarmos no fantasma como um sujeito incompleto, uma vez que foi destituído de sua humanidade, nos deparamos com um paradoxo, pois a instituição familiar ao invés de conferir a completude idealizada socialmente ao sujeito, torna-o inconcluso. A poeta dedica cada uma das estrofes a um membro da família – primeira estrofe para mulher/esposa/mãe, segunda estrofe para o homem/marido/pai e a última para as crianças/filhos –, nos parece mais significativo apontar para o poema como a desmitificação da fantasia do casamento. Enquanto a sociedade idealiza o casamento como objeto de desejo de toda mulher, Sexton alerta para o que acontece com algumas delas: se tornam fantasmas. Sobre a idealização da imagem de esposa: Feminine has association with weakness, passivity, and dependence, all of which are pejorative terms; strength, aggressiveness, and independence are admirable since they describe the members of society who have power. Paradoxically, the traits associated with feminine came to be not only expected but admired in women, the vast majority of whom throughout history have been wives. (…) Women are admired not for their own individual characteristics but for those appropriate to the role of wife. (FERGUSON, 1991, p. 20, grifo da autora).

No entanto, as esposas de Sexton tem seios flácidos como peixes mortos, o símile aponta para uma deserotização do corpo feminino, ―a phrase that provides physical description yet avoids portraying the breast as part of an idealized representation of the female body‖ (CRIBBS, 2003, p. 24). Em seguida, seus braços inúteis, mais uma vez associando características negativas que aludem à passividade e fraqueza. E por fim, mas um símile que dessa vez as compara as mulheres a servas. Assim, as esposas/mães que a poeta descreve são mulheres que são transformadas em fantasmas pelo casamento, que as destitui da beleza do corpo e que as torna servas. Essas mulheres são postas em contraste com bruxas, assim Sexton suscita a imagem de uma mulher empoderada que, ao contrário das mulheres fantasmas, não se resigna a servir. Mulheres que não possuem corpos inúteis, ou lânguidos, mas talvez sejam seus corpos também instrumentos de transgressão e insubordinação.

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4 Considerações finais No contexto dos movimentos sociais por políticas sexuais igualitárias, a bruxa renasce como signo de força para protestar contra os grilhões da tradição social demarcada por essencialismos e fixações das categorias do masculino e feminino em papéis engessados. Esses aspectos mais correntes da aparência e da personalidade do mito da bruxa são amplamente usados na poesia sextiana como forma de representação do sujeito feminino e de identificação do eu lírico. Com efeito, em ―Her kind‖ essa liberdade é anunciada pelo eu lírico, logo na primeira estrofe, que sai pelas noites como uma ―possessed witch‖. Ainda que esse protótipo de mulher selvagem e independente permaneça sendo incompreendida, vivendo na floresta com seres fantásticos e asquerosos, novamente o eu lírico ergue-se para dizer que aquele é o tipo de mulher que ela é, reforçando ao fim de cada estrofe a identificação com essa figura deslocada através do refrão: I have been her kind. Em ―Ghosts‖ o eu lírico é um observador crítico das personagens em seu processo de objetificação resultante do casamento, diferenciado a mulher doméstica da bruxa. O eu lírico ao criticar o posicionamento fragilizado e não atuante do sujeito feminino contrapõe essa identidade à da feiticeira, ao dizer que algumas mulheres não são bruxas, mas fantasmas. O terceiro poema analisado, ―The witch‘s life‖ traz a figura da bruxa velha e solitária que acaba se tornando a projeção futura do eu lírico, ―uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida‖, (HALL, 2014, p. 16). Assim, o eu lírico por não se adequar ao esquema de sujeito feminino imposto usa o arquétipo da feiticeira da sua infância como forma de resistir a essa imposição e prefere viver a vida da bruxa, conservando, assim a sua natureza indomável, selvagem. Bibliografia AL-WATTAR, Shaymaa Zuhair. The witch as self-representation in the Poetry of Anne Sexton, Sylvia Plath, and Eavan Boalnd. Adab Al-Rafidayn Journal, vol. 68, 2013, p. 131-177. ANCHIETA, Isabella. As bruxas e as faces do feminino. Revista Mente Cérebro, ano XIX, dezembro, 2011, nº 227, p. 56-61. BARBOSA, José Roberto Alves. Linguística: outra introdução. Mossoró: Queima-bucha, 2013. 217


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BORDO, Susan R. O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminista de Foucault. In: JAGGAR, Alison M.; BORDO, Susan R. Gênero, corpo, conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1997. CRIBBS, Jennifer. Darkness in the vicious kitchen: an analysis of feminist themes and suicidal imagery in Anne Sexton and Sylvia Plath's poetry. The booth prize for excellent writing, Palo Alto, spring 2003. Disponível em: < http://bootheprize.stanford.edu/0304/PWR-Cribbs.pdf>. Acesso em: 8 jun. 2016. DERRIDA, Jacques. Writing and difference. London: Routledge, 2005. FERGUSON, Mary Anne. Images of women in literature. 5. ed. Boston: Houghton Mifflin Company, 1991. HOOKS, Bell. Ain’t I a woman? Black women and feminism. London: Pluto press, 1990. MACLEAN, Maggie. Puritan women‘s right. History of american women, out. 2007. Disponível em: <http://www.womenhistoryblog.com/2007/10/puritan-women.html>. Acesso em: 8 jun. 2016. MARTONI, Alex. A Estética Gótica na Literatura e no Cinema. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC, 2011, UFPR, Centro, Centros: Ética e Estética I (Anais do XII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada), Curitiba: ABRALIC, 18/22 jul. OLIVEIRA, Renato Marques de. Anne Sexton e a poesia confessional: antologia comentada. Campinas: Unicamp, 2004. SEXTON, Anne. The complete poems. Boston: Houghton Mifflin, 1999. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.), Stuart Hall, Kathryn Woodward. Petrópolis: Vozes, 2000. ZELIC, Helena. Somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar. Capitolina, São Paulo, 7 ed., out. 2014. Disponível em: < http://www.revistacapitolina.com.br/somos-netas-de-todas-bruxas-que-vocesnao-conseguiram-queimar/>. Acesso e: 8 jun. 2016. ZORDAN, Paola B. M. B. G. Bruxas: figuras de poder. Estudos feministas, Florianópolis, v. 13, n. 2, mai-ago. 2005. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104026X200500020007/7827>. Acesso em: 8 jun. 2016.

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Do terror à inquietação: o sobrenatural em dois contos de Lygia Fagundes Telles From the terror to restlessness: the supernatural in two short stories by Lygia Fagundes Telles Kelio Junior Santana Borges53 Resumo: Este trabalho busca promover uma análise estrutural e semântica do universo sobrenatural na obra de Lygia Fagundes Telles. Nosso estudo almeja descrever uma trajetória evolutiva na abordagem do universo insólito, para isso serão considerados dois textos da escritora, os contos ―As formigas‖ (1967) e ―O crachá nos dentes‖ (1995) a partir dos quais exporemos os traços que diferenciam o sobrenatural contemporâneo daquele tradicional pertencente aos séculos XVIII e XIX. Palavras-chave;Sobrenatural. Neofantástico. Terror. Lygia Fagundes Telles. Abstract: This paper has as its main objective the promotion of a structural and semantical analysis of the supernatural universe in Lygia Fagundes Telles‘ literary work. It tries to describe an evolution in the universe of the unusual and supernatural so it considers two narratives, the short story As formigas (1967) and ―O crachá nos dentes‖ (1995). Through these stories the different types of fantastic are explored the traditional fantastic from the XVIII and XIX centuries and the contemporary supernatural. Key words; Sobrenatural. Neofantastic. Terror. Lygia Fagundes Telles.

Dentre os traços estilísticos tão caros à escrita de Lygia Fagundes Telles, buscamos abordar aqui o tratamento concedido ao sobrenatural, expediente que tende a ser chamado pela crítica e pelo público leitor de fantástico54. O metaempírico é um recurso bastante explorado pela autora, não só essa recorrência, mas, em especial, a mestria com que ele é trabalhado, tornam a escritora dona de uma das mais representativas obras do gênero, ao lado de outros escritores já reconhecidos como Murilo Rubião, J.J. Veiga, Guimarães Rosa e Marina Colasanti. Na obra lygiana, o sobrenatural tende a se manifestar mais intensamente em narrativas curtas, isto é, em contos, entretanto há manifestações também nos romances ─ ainda que neles isso ocorra de maneira mais tímida ou velada. Um olhar panorâmico sobre a escrita lygiana nos mostraria que, apesar da recorrência constante, é possível identificar formas diferenciadas com que a atmosfera insólita é trabalhada. A nosso ver, os contos de Lygia 53

Aluno regular do Curso de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás. Professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Goiás, Campus Aparecida de Goiânia. 54 -É muito comum que o termo fantástico seja usado, tanto pela crítica quanto pelos leitores em geral, para se referir a todas as manifestações de caráter sobrenatural. O próprio Todorov, em Introdução à literatura fantástica, evidencia que se trata de um equívoco, já que o gênero fantástico compreende aquela literatura específica produzida entre o final do século XVII e final do século XVIII. 219


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podem testemunhar as transformações ocorridas no interior do gênero fantástico, mudanças que, alterando o sentido e a estrutura desse gênero, acabaram por engendrar uma evolução no interior dessa forma narrativa, tendo como resultado uma espécie outra de sobrenatural, aquele que foi nomeado neofantástico, termo cunhado pelo estudioso argentino Jaime Alazraki (1990), a quem faremos alusões mais adiante. Sobre essa trajetória evolutiva perceptível na obra lygiana, podemos dizer que, ao lado de narrativas notadamente marcadas por preceitos fantásticos tradicionais ─ inspiradas nos mestres Edgar Allan Poe e Machado de Assis ─, figuram outras bem diferenciadas, seguindo as técnicas e concepções de também grandes escritores do século XX como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, autores que contribuíram para as novas concepções de abordagem do sobrenatural. Textos como ―As formigas‖, ―Natal na barca‖, ―A mão no ombro‖ e ―Noturno amarelo‖ são apenas alguns exemplos de contos escritos ainda sob a influência da estética propagada pelas narrativas oitocentistas; por outro lado, ―Lua crescente em Amsterdã‖, ―Seminário dos ratos‖, ―O crachá nos dentes‖ e ―Anão de jardim‖ são narrativas que dialogam diretamente com o sobrenatural pertencente ao neofantástico, estética própria do século XX. A partir de dois contos, buscaremos aqui promover uma análise modesta dessa trajetória evolutiva55 do sobrenatural ocorrida no tecido literário dessa Dama das Letras. Para isso, determinamos como objeto de estudo os textos ―As formigas‖, de 1977 e ―O crachá nos dentes‖, de 1995. Em ambos os casos, temos dois enredos em que se instaura uma manifestação sobrenatural cujos elementos constitutivos, assim como seu valor ideológico, mostram-se bastante diferenciados. Enquanto o primeiro conto deve ser lido tendo como referência as tendências fantásticas do século XVIII e XIX, o segundo pode ser entendido como uma manifestação literária que, em vez de retomar uma estética do passado, contribui para a construção e para a propagação de uma outra, isto é, um novo sobrenatural ainda em desenvolvimento, não promovendo a negação do fantástico do passado, mas sendo uma espécie de continuidade dele num outro momento histórico norteado por outra consciência de mundo. Em 1970, Tzvetan Todorov (1939-2017) publica a Introdução à literatura 55

-Em mais de um momento, usamos a palavra ―evolução‖ com o objetivo apenas de nos referir a um processo de mudança/transformação no decorrer do tempo. Não se deve entende-la como termo que busque designar preceito valorativo, concedendo maior crédito à forma literária atual e inferiorizando aquela do passado, incorrendo no erro que C.S. Lewis denomina ―esnobismo cronológico‖, crença segundo a qual tudo o que é novo, por ser considerado novo, é valorado como melhor. 220


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fantástica, trabalho que é considerado o primeiro a promover uma análise mais sistematizada sobre essa vertente literária56. Sob a égide de princípios metodológicos estruturalistas, o estudioso buscou traçar os primeiros passos de uma teoria daquilo que ele chamou de ―gênero fantástico‖. Segundo Todorov, tal gênero surge a partir de um elemento que não se fazia presente nos demais gêneros marcados pelo sobrenatural. Em vez da aceitação, do questionamento ou da explicação em relação aos eventos insólitos, o fantástico seria o gênero que tem como marca a ambiguidade. Baseado em análises de outros críticos, o pesquisador explica que a estrutura narrativa fantástica é aquela que empreende um choque entre duas realidades distintas: um universo familiar − com que estamos acostumados − e um outro de origem desconhecida. No entanto, em vez de determinar tal traço como a espinha dorsal do gênero, atitude comum entre outros estudiosos ─ como Louis Vax, por exemplo ─, o teórico acrescenta que, mais importante do que o processo de aproximação entre essas duas diferentes realidades, é o resultado desse choque, ou seja, a perspectiva ou a impressão por ela gerada. Para Todorov, o elemento diferencial dessa nova estrutura é a promoção de um sentimento de hesitação: ―O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural‖(2004,p. 31). Refutando o que acontece no maravilhoso e no estranho, Todorov estabelece como elemento diferencial entre o fantástico e os outros dois uma realidade que não se fazia presente neles: ―Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico‖ (2004, p. 31). É a incerteza sobre a origem dos fatos ou dos elementos sobrenaturais que gera uma situação que tem como consequência essa hesitação. Personagem e leitor se encontram em dúvida, permanecem hesitantes entre verdade ou ilusão e, diante desse contexto, é que ―[s]omos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar‖ (2004,p. 30). Além desses traços, o estudioso retoma as palavras do escritor e pesquisador H. P. Lovecraft para quem o critério primordial do gênero constituía uma experiência particular do leitor,

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-Houve muitos outros estudiosos que também se debruçaram sobre estudos da produção fantástica, entretanto a investida promovida por Todorov se mostra mais sistematizada e ampla já que parte de uma seleção de textos mais abrangente, além de promover uma perquirição mais teórica do que crítica, como outros o fizeram. 221


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situação da qual decorreria o medo e o terror. Todorov concede grande importância ao traço de terror presente nas narrativas sobrenaturais oitocentistas, mas, outra vez, relativiza sua manifestação nesses textos: ―O medo está frequentemente ligado ao fantástico mas não como condição necessária (TODOROV, 2004, p. 41). Cada um dos traços aqui expostos, não são definidos como imprescindíveis à narrativa oitocentistas, o pesquisador deixa clara a possibilidade de variação quanto aos lugares comuns do gênero, por isso, nosso ver, a teorização de Todorov não se encontra engessada e, muito menos, fundamentada em elementos extratextuais, a entendemos como coerente, não sendo tão justas as críticas contra ela desferidas. Hesitação, identificação com o leitor e a promoção de medo, tais marcas constituiriam os lugares comuns do fantástico tradicional oitocentista, mas eles podem ainda ser encontrados ─ mesmo que em diferentes intensidades ─ em escritores do século XX. Lygia Fagundes Telles é uma autora que, em muitos de seus escritos, mantém vivos certos preceitos da estética fantástica, explorando, dos mais diversos modos, os limites de tais expedientes. Em ―As formigas‖, narrativa originalmente publicada no livro Seminário dos ratos (1977), temos um exemplo de enredo notoriamente marcado pela estética fantástica. O conto tem como protagonistas duas moças estudantes ─ uma de direito e outra de medicina ─, elas são primas e, para estudar, alugam um quarto numa pensão cuja descrição retoma os ambientes escuros e misteriosos, típicos do estilo gótico tão caro à estética oitocentista. Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima. — É sinistro. (TELLES, 2004, p.11).

Ao definir o que vê como ―sinistro‖, a personagem deixa clara sua impressão a respeito do lugar. Trata-se apenas de uma das situações impactantes que serão promotoras do sentimento de medo que sofrerá uma gradativa intensificação. Depois de instaladas, as duas personagens se deparam com outros eventos amedrontadores. No quarto alugado, havia um caixote com ossos humanos, eles formavam o esqueleto de um anão, tratavase de algo deixado pelo antigo inquilino, rapaz que também cursava medicina. A dona da pensão achou por bem oferecer aquilo a uma das novas moradoras, aquela que estudava para ser médica. Não bastasse essa diferente situação de ter no quarto o esqueleto de um anão dentro de uma caixa, durante a noite assomam-se a isso outras 222


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manifestações terrificantes. Primeiro surge um cheiro estranho que toma o pequeno quarto. Em seguida, a narradora descreve o sonho que teve naquela noite. Ela tinha sonhado com um anão que se punha sentado na cama da prima, a estranheza do sonho a desperta. Ao acordar, a moça se depara com a companheira de quarto ajoelhada no chão. Ao perguntar por que motivo a outra ainda estava acordada e o que ela estaria fazendo, a narradora se depara com outro indício de anormalidade. — Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? [...] — São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida — estranhei. — Só de ida. Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama (2004, p.14).

Daí em diante, estão relacionadas às formigas e ao anão todas as demais manifestações estranhas. Elas vão, aos poucos, compondo todo o crescente sentimento de estranhamento e de medo que perpassa todo o texto. Dentre os fatos, aquele que se faz gerador de maior impacto é a constante montagem dos ossos promovida pelas formigas. — E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. — Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... Estão se organizando (TELLES, 2004, p.11).

Do início ao fim do texto, o que temos é uma estrutura gradativa que visa à instauração do preceito de hesitação e, sobre isso, Vera Maria Tietzmann Silva, num estudo em que analisa esse conto, faz o seguinte comentário: Para que essa hesitação seja partilhada simultaneamente por protagonista e leitor, possibilitando a instauração do fantástico, é preciso mais do que o fato insólito, é preciso que o escritor construa um clima de instabilidade, de hesitação, que começa no protagonista e se estende até o leitor (TIETZMANN, 2009, p.95).

Para a pesquisadora, em muitos pontos, a obra de Lygia Fagundes Telles retoma aspectos estruturais e concepções estéticas defendidas e propagadas por Edgar Allan Poe que, como ela mesma explica, ―lançou as 223


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bases do conto moderno ao postular o princípio do ‗efeito único‘, que consiste em fazer convergir todos os elementos do texto para a obtenção de um efeito emocional previamente escolhido‖ (TIETZMANN, 2009, p.95). No caso da narrativa em estudo, percebe-se essa preocupação com a unidade buscada para a promoção de uma hesitação oriunda de uma atmosfera de caráter aterrorizante, trata-se de uma ambientação muito bem arquitetada, marca registrada da escrita lygiana. Lygia é uma exímia criadora de atmosfera e suas narrativas reafirmam os princípios prescritos pelo escritor americano, levando muitas de suas narrativas aos domínios do fantástico, ao somar aos acontecimentos insólitos a hesitação de seus protagonistas em interpretá-los. ―As formigas‖ é um bom exemplo dessa sua mestria [...](TIETZMANN, 2009, p.95).

Da mera descrição de uma casa escura, no início do texto, até o suposto retorno à vida de um esqueleto, o que se tem é uma crescente intensidade na atmosfera de medo, mas sem nenhuma certeza, tudo o que se tem são impressões que podem também ser fruto da imaginação ou da loucura. Ainda assim, são essas imprecisas impressões que levam as moças a abandonarem o lugar durante a madrugada, deixando para trás a casa, a dona da pensão e uma dúvida: aquilo tudo estaria mesmo acontecendo? Percebe-se que a força motriz a incentivar as duas personagens a saírem da casa não se trata de uma certeza, mas uma dúvida, e esta é compartilhada com o leitor. Assim como as personagens, ele se sente inseguro para discernir sobre a veracidade ou não dos acontecimentos. Na linha dos grandes escritores do passado, a contista paulistana recria enredos e ambientações que, em muitos pontos, retomam as narrativas que marcaram o final do século XVIII e todo o século XIX. Apesar dessa aproximação de caráter situacional entre as duas estéticas, o texto lygiano se distancia daqueles do passado por possuir uma linguagem e um tratamento humano por demais diferenciados. Mesmo vivenciando experiências de terror semelhantes às de outrora, as personagens de Lygia Fagundes Telles experienciam o impacto desses eventos de outro modo, além de representálos também a partir de prismas distintos, isso porque essas personagens expressam uma consciência de mundo própria do século XX, como se verá a seguir ao abordarmos um outro momento do fantástico na obra dessa escritora. O conto ―O crachá nos dentes‖ surpreende o leitor assim que é feita a explicação acerca de quem narra a história: ―Começo por me identificar, eu sou um cachorro. Que não vai responder a nenhuma pergunta, mesmo porque não sei as respostas, sou um cachorro e basta‖(TELLES, 2004, p. 243). 224


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O surgimento desse cachorro narrador, logo no início do texto, faz-nos perceber uma primeira ruptura com o fantástico tradicional teorizado por Tzvetan Todorov. Assumindo a narração logo nas primeiras linhas e mantendo-a até fim, essa voz inusitada engendra uma ruptura com a antiga organização estrutural fantástica marcada pelo seu caráter gradativo que culminava com um choque entre universos opostos. Tal aspecto inovador vincula-se ao modus operandi da estética neofantástica. Jayme Alazraki (1990) explica que as narrativas contemporâneas trazem em si um elemento fantástico, entretanto este se diferencia daquele do passado por apresentar uma ―visión‖, uma ―intensión‖ e um modus operandi diferenciados. De acordo com o estudioso, no fantástico canônico, a ―visión‖ parte da solidez de um mundo real e, em oposição a ele, insurgem os elementos sobrenaturais; dessa colisão é gerado um choque entre universos bem distintos e pouco conciliáveis. Enquanto isso, no neofantástico, a relação entre os acontecimentos e o mundo real é alterada já que ―lo neofantástico assume el mundo real como una máscara, como un tapujo que oculta una segunda realidad que es el verdadeiro destinatario de la narración neofantástica‖57 (ALAZRAKI, 1990, p.29). Para essa estética, o ―real‖ seria uma mera ―máscara‖ para uma realidade outra que se faz eclipsada e mais complexa, nesta estaria a tônica da narração neofantástica, isto é, no que se mostra velado pela aparência do real. Aqui não há oposição ou choque, os dois universos encontram-se simultâneos, um sofrendo a intervenção do outro sem se promover nenhum tipo de colisão ou hecatombe. Em ―O crachá nos dentes‖, o sobrenatural não acontece enquanto evento em si, ele emana da linguagem e se realiza a partir dela. Ao falar sobre sua vida de cão, o narrador não nos coloca diante de um acontecimento sobrenatural que tenha sido percebido pela visão, em vez disso, apenas nos apresenta um discurso sobre sua condição de cachorro. Se por um lado a fala de um animal nos pareceria estranha, o conteúdo dela nos soa bastante semelhante: Aqui onde estou posso passar quase despercebido em meio de outros que também levam os crachás dependurados no pescoço como os rótulos das garrafas de uísque. Que ninguém lê com atenção, estão todos muito ocupados para se interessar de verdade por um próximo que é único e múltiplo apesar da identidade (TELLES, 2004, p. 243).

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-―o neofantástico assume o mundo real como uma máscara, como um subterfúgio que esconde uma realidade que é o verdadeiro referente da história neofantástica‖. Tanto esta quanto as demais citações do teórico constituem traduções livres feitas por nós. 225


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Tanto os valores quanto os comportamentos do animal mostram-se por demais humanizados, o cão se torna porta-voz de uma vivência própria dos humanos e isso estabelece a empatia entre a personagem e aquele que promove a leitura do texto. Narrador e leitor, diante do enunciado, se aproximam ─ não questionando ou hesitando como acontecia no discurso do fantástico oitocentista ─, o sobrenatural contemporâneo permite um amálgama entre as ordens antes divergentes e conflitivas. Mesmo pertencentes a mundos opostos, os envolvidos experienciam vivências internas semelhantes. Na realidade, a narração feita pelo cão encontra-se tão sobrecarregada de humanidade que ele, enquanto animal, consegue tornar explícitas áreas que, enquanto humanos, teríamos ―medo‖ ou receio de visitar e expor. Aqui se faz notória a ressignificação do medo no decorrer do século XX, um momento rico em conquistas, mas marcado pelo absurdo de grandes guerras, algo que mudará para sempre o modo como os indivíduos passarão a lidar com o sentimento de medo e de terror. É na vida cotidiana e em suas vicissitudes que se encontra todo o insólito e o absurdo de nossa condição, nenhum evento pode amedrontar mais do que isso. Em vez de temer o exterior, é em nosso íntimo que vivenciamos nossas maiores inquietações, elas regem nossa vida interna, alterando valores e intensidades de nossos sentimentos e ações. Devo lembrar que eu varava feito uma seta salivando de medo os grandes arcos de fogo e eis que o medo desapareceu completamente quando me descobri em liberdade, todo o fogo vinha apenas aqui de dentro do meu coração… fiquei flamejante. Penso agora que flamejei demais e o meu amor que parecia feliz acabou se assustando, era um amor frágil, assustadiço (2004, p. 243).

Se a apreciação do sobrenatural mudou, isso se deu porque os valores estéticos usados na sua composição, assim como seus objetivos, também se tornaram outros. Mas se tais mudanças aconteceram, isso se deu porque o homem também passou por uma profunda transformação e sua arte precisa expressar as novas concepções desse indivíduo, um ser estranho a si mesmo. Podemos dizer que o fantástico se detinha sobre eventos externos ao homem e, ao testemunhar esses eventos, a consciência humana se deparava como um mundo que lhe causava espanto pelo fato de ―esse exterior‖ não poder ser reduzido a um conhecimento seguro, não podendo ser compreendido em sua totalidade. Alazraki diz que a intenção do conto neofantástico não é a de provocar medo ou terror; ao contrário, o que vemos nas obras é uma perplexidade, ou inquietude, causada pelo insólito das situações narradas: 226


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Son, en su mayor parte, metáforas que buscan expresar atisbos, entrevisiones o intersticios de sinrazón que escapan o se resisten al lenguaje de la comunicación, que no caben en las celdillas construidas por la razón, que van a contrapelo del sistema conceptual o científico con que nos manejamos a diário58(ALAZRAKI, 1990:29).

No conto de Lygia Fagundes Telles, o traço de neofantástico nos aponta para uma internalização dessa incompreensão e dessa incompletude. O fugidio, que antes era o exterior, agora se encontra dento do indivíduo, regendo sua relação consigo mesmo e com o mundo que o cerca. Em vez das figuras desconhecidas e insólitas que nos causavam terror – monstros, fantasmas, vampiros e lobisomens −, lidamos agora com um inimigo ainda mais incompreensível e ameaçador, isso porque ele se encontra dentro de nós. Como se percebe, a manifestação sobrenatural perdeu sua aura de fenômeno, de acontecimento, para assumir ares de forma de conhecimento, modo de sabedoria, ligando-nos ao nosso íntimo existencial. Todorov já chamava a atenção para a complexidade da literatura do século passado, se ela era mais literatura que as de outras épocas isso de se deu por esse caráter tautológico assumido pela arte contemporânea, promovendo uma imersão profunda em seu próprio universo, debruçando-se sobre si mesma, num processo de autorreferenciação. O fantástico foi um exemplo claro desse processo, já que ― tem uma função à primeira vista tautológica: permite descrever um universo fantástico, e este universo nem por isso tem qualquer realidade fora da linguagem; a descrição e o descrito não são de natureza diferente‖ (TODOROV, 2004, p. 101), traço mais intensificado no neofantástico. Recorrer ao sobrenatural é optar por uma vertente estética em que a relação entre a linguagem e o real se torna mínima, o que se narra não é imitação, cópia ou espelhamento. Aqui o discurso literário alcança seu valor máximo de literariedade, já que sua única referência é seu próprio sistema, com suas próprias regras e sentidos. Se há um compromisso bem definido, ele está centrado na busca por narrar mundos possíveis, não o mundo real. Em sua escrita, Lygia Fagundes Telles demonstra quão ampla pode ser a exploração dos limites do expediente sobrenatural. Em contos e romances, de modos diferenciados e em diferentes intensidades, o metaempírico se faz 58

-Eles são, em sua maior parte, as metáforas que procuram expressar vislumbres, entrevisiones ou interstícios de irracionalidade que escapam ou resistem a linguagem de comunicação, que não se encaixam nas células construídas pela razão, indo na contramão do sistema conceitual ou da ciência com qual lidamos no cotidiano". 227


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presente concedendo ao tecido literário lygiano uma aura de discurso mítico, de universalidade e de ambiguidade, sem nunca abrir mão do compromisso com a elegância e com a profundidade. Nesse compromisso com os mistérios de nossa condição, a escrita lygiana não se assemelha ao discurso científico ─ com suas respostas precisas e verificáveis ─, ela retoma muito mais o discurso oracular que, em vez de respostas, respondia a perguntas em forma de enigmas, sempre abertos a um número infinito de interpretações. Bibliografia ALAZRAKI, Jaime. ¿Qué es lo fantástico?. In: Mester, vol. XIX, n. 2. 1990, p. 2133. SILVA, Vera Maria Tietzmann. Dispersos & inéditos: estudos sobre Lygia Fagundes Telles. Goiânia: Cânone Editorial, 2009. TELLES. Lygia Fagundes. Meus contos preferidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Tradução de Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo: Martins Fontes, 1980. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. 3.ed.São Paulo: Perspectiva, 2004. (Debates; 98) VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. Trad. João Costa Lisboa: Arcádia, 1974.

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Mal de criança: sobre Monster, de Naoki Urasawa Evil of child: about Monster by Naoki Urasawa Alexandre Linck Vargas59 Resumo: Monster, mangá de Naoki Urasawa, retoma um personagem caro à modernidade: a criança má. Duas narrativas foram popularizadas pela literatura, cinema e quadrinhos: (1) a criança pura que, corrompida pela sociedade, torna-se um monstro e (2) a criança que, apesar de todo investimento, é naturalmente monstruosa. A criança surge, portanto, como sintoma de uma indecisão sobre a origem do Mal. Diante de uma solução impossível, Monster procura adentrar o sintoma em sua radicalidade, e faz isso a partir do inominável da criança. Deste modo, é objetivo do seguinte artigo fazer uma investigação da criança como assunto, desenredar os caminhos de sua demonização e chegar até Monster no estudo da criança-sem-nome. Palavras-chave: Criança, Monstro, Demônio, Mal, Nome. Abstract: Monster, manga made by Naoki Urasawa, returns to a complex character in modernity: the evil child. Two narratives have been popularized by literature, cinema, and comics: (1) the child that is pure, but corrupted by society, becoming a monster, and (2) the child that despite all investment is naturally monstrous. The child emerges, consequently, as a symptom of an indecision regarding the origin of Evil. Facing an impossible solution, Monster seeks to insert the symptom in its radicality, starting it with the unnameable of the child. Therefore, this paper proposes to research the child and unfold the ways until its demonization, bringing it to Monster in the study of the nameless child. Keywords: Child, Monster, Devil, Evil, Name. Olhe para mim! Olhe para mim! Veja como ficou grande o monstro dentro de mim! (URASAWA, 2013, p. 51)

1. Da criança-assunto à criança-monstro. Se na antiguidade os deuses eram o sintoma de nossas aflições, na modernidade a criança ocupa esse espaço. Antes, os mais antigos e mais fortes soavam-nos ameaçadores, hoje é o que há de mais novo e frágil que nos perturba. O destino, outrora a força motriz e dialética que acusa nossa impotência e, ao mesmo tempo, exige-nos uma luta, foi substituído, nos últimos 250 anos, pela monstruosidade da promessa, que, incerta e porventura esvaziada, tragicamente nos ameaça à morte por invalidez (Somos capazes de sustentar a promessa de que toda criança encerra? Se 59

Linck Vargas é graduado em cinema (Unisul), mestre em ciências da linguagem (Unisul) e doutor em literatura (Ufsc). Atualmente é professor do programa de pósgraduação em ciências da linguagem (Unisul). 229


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não formos, o que nos restará fazer em vida e pela vida do gênero humano?). Essas vagas inquietudes ganharão sua radicalidade poética com o mangá Monster, de Naoki Urasawa. Contudo, é necessário antes desenhar uma narrativa. Aceitemos o simbólico começo eurocêntrico: foi com Emílio, ou Da educação, de Rousseau, em 1762, que a criança se tornou o grande assunto da literatura e da filosofia. Isso se daria na órbita gravitacional do autor de o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social – este publicado no mesmo ano de Emílio. A criança, enquanto um ser puro, seria de natureza boa, cabendo à educação (aqui, especificamente, a salvaguarda do sentimento diante da razão) evitar que ela se degenere diante de uma sociedade corrupta. Essa tensão, denunciada por Rousseau, serviria de base para o romance social do século XIX adotar a criança como um personagem crítico, aquele que, capaz de operar um olhar puro, seria inconscientemente o delator de uma sociedade corruptora que deve, assim, ser problematizada. Oliver Twist (1837), de Charles Dickens, L'Enfant (1879/79), de Jules Vallés, O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, entre outros, valeram-se dessa estratégia (ÁRTICO, 1989). Deste modo, a criança serviria para possibilitar uma condição moral (entre o Bem e o Mal) e, a partir dela, tornar palavra aquilo que a sociedade representa ao espírito. Esse mesmo expediente triunfaria, por sua vez, nos quadrinhos do século XX. Mafalda de Quino, Titeuf de Zep, Nancy de Ernie Bushmiller, Luluzinha de Marge e posteriormente John Stanley, Annie, a pequena órfã, de Harold Gray, Calvin & Hobbes, de Bill Watterson, O menino maluquinho, de Ziraldo, alguns personagens de Mauricio de Sousa, entre tantos outros. Umberto Eco, de modo muito tributário à Rousseau, diria sobre Peanuts, de Charles Schulz: As crianças de Schulz não são o instrumento malicioso para contrabandear os nossos problemas de adultos; esses problemas são nelas vividos segundo os modos de uma psicologia infantil, e justamente por isso nos parecem tocantes e sem esperança, como se de repente reconhecêssemos que os nossos males poluíram tudo na raiz. E ainda: a redução dos mitos adultos a mitos da infância (de uma infância que já não vem antes da nossa maturidade, mas depois – mostrando-nos as suas gretas) permite a Schulz uma recuperação: e essas crianças-monstros tornam-se, de súbito, capazes de canduras e genuinidades que recolocam tudo em questão... (ECO, 2008, p. 286, 287).

A criança-monstro a que Eco alude, em 1964, como força poética, será, exatamente uma década antes, o real medo da sociedade do pós-guerra diante da crescente delinquência juvenil. Como resultado, as campanhas anti-quadrinhos que aconteceram em países como EUA, França, Austrália, 230


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Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas, Brasil, entre outros (LENT, 2009). Com o advento das revistas em quadrinhos a partir dos anos 1930 nos EUA, aos poucos, a criança que antes lia as tiras no jornal sob a supervisão do adulto passaria a ter uma publicação voltada exclusivamente para ela, num mundo em alguma dose blindado dos mais velhos. Por sua vez, nas outras nações, somada à uma leitura que era muitas vezes desconhecida dos pais e professores, estava a sensação de que uma nação estrangeira (no caso, a estadunidense), sem qualquer mediação, fazia circular sua ideologia. Portanto, esse mundo secreto infantil, violento e de ―mau gosto‖, segundo pais e professores, foi rapidamente acusado de ser uma das grandes causas da delinquência juvenil. De modo que, em 1954, o psiquiatra Fredric Wertham, nome mais significativo das campanhas antiquadrinhos, lançou seu livro Seduction of the innocent, acusando de degeneradoras da infância as revistas em quadrinhos de horror, de crime, românticas, de super-heróis, entre outras. O medo de uma criança-monstro era patente e cabia aludir de forma cínica à uma pureza rousseauniana para, então, por meio de uma virada, recorrer a uma sensibilidade pré-Rousseau. Isto é, a Hobbes, de modo a subtrair o infante do mundo selvagem e ingressá-lo na boa cultura civilizadora. 2. Da criança-monstro à criança-demônio. A presença de Hobbes e seu Leviatã, ou seja, a necessidade de utilizar os aparatos político-culturais para a reorientação da infância do homem, nunca saíra por completo de cena. Nos quadrinhos, antes da chegada de personagens infantis críticos à sociedade, entre a segunda metade do século XIX e início do XX prevaleceria a tradição hobbesiana. Max und Moritz, do alemão Wilhelm Busch, publicado originalmente em 1865, contava as travessuras de dois meninos endiabrados. Bastante famosas, ―seu sucesso internacional foi imenso, e se difundiu por toda a Europa – sendo inclusive o primeiro livro infantil estrangeiro publicado no Japão, em 1887. (...) Nos Estados Unidos também seria uma referência fundamental‖ (GARCÍA, 2012: 58). No Brasil, Max und Moritz sairia como Juca e Chico – História de dois meninos em sete travessuras, traduzida por Olavo Bilac. Indo da catarse da travessura infantil à punição severa civilizadora, Max und Moritz conta-nos como o sadismo e a crueldade dos dois meninos que jamais aprendem nada encerra-se ao terem seus corpos postos num moedor de carne e dados de comer aos gansos. A obra de Busch seria decisiva para Rudolph Dirks na criação de Os sobrinhos do capitão (The katzenjammer kids), longeva tira em quadrinhos de 231


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grande sucesso, sendo publicada de 1897 a 2006. Desta vez, os dois capetinhas eram Hans e Fritz, meninos maliciosos cheios de artimanhas que não raramente abusavam daqueles que viam neles crianças puras e inocentes (isso se personifica principalmente na ingênua Mama Chucrutz). Também de grande sucesso seria Buster Brown, de Richard. F. Outcault, (1902-1921), a criança inventiva e travessa, ainda que rica, inteligente e de ―boa família‖, era o terror dos pais, dos professores, dos empregados e da comunidade. Buster Brown seria um exemplo precoce de transmidialidade, com adaptação para o teatro, cinema, rádio e TV. No Brasil, a tira sairia na revista O Tico-Tico, de 1905, sob o nome de Chiquinho, sendo bastante adaptada para o público brasileiro e igualmente popular (MOYA, 1986). Portanto, como se pode facilmente notar, o imaginário de uma criança incorrigível, monstruosa ainda que com leveza, permanecia forte a despeito de qualquer pureza presumida. Porém, em 1954, a criança-monstro conquistaria definitivamente sua pesada ameaça no mundo anglófono. Se nos quadrinhos acontecia o caça às bruxas, na literatura duas publicações seriam significantes. Nos EUA, The bad seed (Menina Má), de William March, contaria a história de Rhoda Penmark, uma psicopata de oito anos de idade, dando a entender que sua condição fora herdada da mãe biológica. Contra a pureza original, apresenta-se o mal genético. The bad seed foi um grande sucesso de público, rendendo, no mesmo ano, uma adaptação para a Broadway e dois anos depois uma outra adaptação cinematográfica hollywoodiana. Por sua vez, na Inglaterra, William Golding lançaria O senhor das moscas (Lord of the flies), obra que dispensa qualquer apresentação, cabendo apenas ressaltar que a origem do Mal se coloca de modo menos decisivo do que em March, mas nem por isso mais reconfortante. Afinal, o que o drama dos meninos ingleses isolados na ilha paradisíaca provoca é uma indecidibilidade entre cultura e natureza, entre nurture e nature, entre Hobbes e Rousseau. Talvez seja essa indecisão cifrada um dos motivos que fez O senhor das moscas ser reconhecido apenas anos depois de seu lançamento. Contudo, em outro aspecto O senhor das moscas foi crucial. Trata-se da aproximação entre a maldade infantil e o Mal cristão, este já tão debatido e notável no romance, inclusive no título aludido a Belzebu. Esse tipo de associação seria a tônica sublimada das inquietações a respeito da criança nas décadas seguintes. O cinema hollywoodiano, principalmente nos anos 1960 e 1970, produziria filmes em que a criança e o demoníaco se combinam fatalmente: O bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, faria da promessa que a criança representa o signo do Mal; O exorcista (1973), de William Friedkin, acusaria a incursão do Mal na criança a partir de uma 232


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sociedade que perdeu a fé; A profecia (1976), de Richard Donner, retornaria a ideia de um Mal natural que não pode ser contornado por cuidado ou amor. Acaba por ser irônica essa demonização da criança, ou infantilização do demônio, afinal, no século XIII, quando a criança passou a reaparecer na arte europeia em sua graça e rotundidade da era helênica, isso se deu, em partes, por imagens angelicais ou do menino Jesus e da infante Maria (ARIÈS, 1986). Contudo, não é de se estranhar essa inversão de polos. Conforme o antropocentrismo avançava, a criança, esse objeto produzido em série, não deveria mais ser desperdiçado (daí a contemporaneidade da revolução industrial e Thomas Malthus). O cuidado sobre a criança, o investimento em sua vida, no que ela tem de promissor, através do combate à alta mortalidade e controle natal, impeliu-se toda a sociedade a um planejamento necessário que, quando fracassado, era o signo de ruína dessa mesma sociedade. Já a moral cristã, cada vez mais esvaziada de sua força metafísica, perduraria mecanicamente na pragmática civilizatória das crianças e dos ―primitivos‖ (supostamente tão ingênuos quanto as crianças). Por isso, se a criança que não é boa, apesar da moral cristã e todos os aparatos modernos nela empregados, nada é realmente bom e estamos todos perdidos. Daí a chegada do demônio infantil. Indiretamente, Rousseau, ao falar da criança naturalmente boa, estava nos mandando o seguinte aviso: apostem na natureza, porque se apostarem na sociedade como produtora de bem, na hora em que surgir um monstro (e eles sempre surgem), tudo irá ruir. Porém, a boa natureza também é uma aposta perigosa. No que se segurar quando o Mal é natural? O aparecimento da criança demoníaca ganha um sentido particular na ―pós-modernidade‖. Os altos custos crescentes de uma criança (implicando na noção de autossacrifício), o cinismo perante a própria modernidade (de Auschwitz a Hiroshima), o avanço tecnológico-cultural acelerado (que faz os mais velhos terem pouco a ensinar ou participar do mundo dos mais novos, cada vez mais tornados estranhos) e o hedonismo ligado ao culto à juventude (de modo que diante de uma criança automaticamente se reproduz o Velho perante o Novo) são fatores determinantes para fazer da criança um Mal potencial na origem60. Evidentemente, não um Mal cristão, mas um mal-estar original que faz da demonização seu sintoma.

60

Peter Sloterdijk, em Regras para o parque humano é quem destaca a maioria dos fatores listados, embora não estabeleça essa conexão com a criança demoníaca. 233


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3. Da criança-demônio à criança-sem-nome. De onde vem o Mal cristão? Agostinho de Hipona sustenta que não há substancialidade no mal, já que a substância do ser integra o uno, o inteligível, o bem – em última instância, compactua com Deus em sua verdade. Deste modo, o mal seria um Nada, uma distância ôntica entre o criador e a criatura, de modo que, eventualmente, os homens e os anjos poderiam inclinar-se para o nada, para longe do ser. Todo o sofrimento do gênero humano, portanto, estaria justificado pela incursão do nada a partir do pecado original. Seguindo essa linha ontoteológica, a nadificação sintomatizada na criança-demônio seria uma afronta mítica a um mundo moderno cheio de dispositivos, sejam eles conceituais como os de Rousseau, sejam eles aplicados como quer Hobbes. Seria, então, a criança-demônio uma sobrevivência semiagostiniana no século XX? Nesse mesmo tempo, Karl Barth partiria igualmente da ideia do nada, mas por outro caminho: o nada também é obra de Deus, porém é o que Ele não elege, o que Ele rejeita. O Nada é o que Deus não quer, por isso é objeto de sua cólera. Deste modo, o mal seria a ―mão esquerda‖ de Deus. Ao propor um Deus em certa porção também ―demoníaco‖, Barth distancia-se do princípio de não-contradição da teodiceia de Leibniz (do mal justificado a partir do excedente de bem no melhor dos mundos possíveis) e aproxima-se da defesa do paradoxo de Kierkegaard (contra uma síntese hegeliana, contra o absoluto) (RICOUER, 1988). Essa pressuposição recoloca completamente o problema do jovem anticristo. Embora anunciador (e enunciador) do nada, o pequeno demônio não é o inimigo do Deus que deixou de triunfar na modernidade, mas, pelo contrário, o ato afirmativo de Deus, sempre triunfante, ainda que num mundo que virou as costas ao que Ele elegeu. Difícil não lembrar de Nietzsche, na indicação de um Deus vingativo e ressentido. A criança-demônio seria, assim, a sobrevivência mítica da religião no século XX não a partir de uma ausência, mas da presença do próprio Deus ambivalente encarnado. Parafraseando Joseph de Maistre: toda era tem o messias que merece. É de se esperar, por tudo isso, que uma segunda geração de artistas, crescidos na poética das crianças-demônio, estaria sensível às convenções do gênero, arranjos míticos e sintomas patentes. É o caso do mangaká Naoki Urasawa61; sua história em quadrinhos Monster, publicada originalmente no Japão em 162 episódios, entre 1994 e 2001, recupera a narrativa da criança 61

Não existe a informação se Urasawa, nascido em 1960, teria assistido os filmes estadunidenses sobre crianças-demônio dos anos 1960 e 70. Contudo, foram filmes com circulação no Japão. Dificilmente, ele não teria tido algum contato com eles. 234


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malvada no limiar de sua própria ficção. Monster conta a história do médico Kenzo Tenma, um japonês que vive na Alemanha Ocidental dos anos 1980. Sendo um dos neurocirurgiões mais habilidosos do mundo, Tenma descobre que o diretor do hospital, também seu sogro, está usando-o para atender somente pacientes ilustres (ficando de subtexto, também, a predileção por compatriotas ricos em vez de estrangeiros pobres). A afirmação de sua noiva, Eva, de que ―as pessoas não nascem iguais‖ perturba-o profundamente. Em outro dia, já pronto para atender de emergência o pequeno Johan, filho de refugiados da Alemanha oriental com uma bala alojada no crânio, Tenma é mais uma vez realocado, desta vez, para atender o prefeito que chegou minutos depois. Pondo em risco seu emprego, relação e morada, Tenma desobedece às ordens da direção e salva o garoto. O caso de Johan é bastante peculiar. No dia anterior, o casal Liebert e seus filhos, os gêmeos Johan e Anna, foram notícia na TV. Porém, na madrugada, os pais acabaram brutalmente assassinados, o menino alvejado na cabeça e a menina, apesar de ilesa, em estado de choque. A mídia interessa-se pelo caso, o que de alguma maneira assegura o emprego de Tenma, porém, ele é prontamente rebaixado e seu noivado chega ao fim. Revoltado e sozinho, ao lado do inconsciente Johan, Tenma pragueja pela morte dos diretores do hospital e agradece ao menino por exigir o autossacrifício necessário, de modo a relembrá-lo do que é ser um médico. Nesse meio tempo, Anna começa a dar pequenos sinais de vida, sua única palavra é: ―mate‖; Johan desperta. Então uma reviravolta: a direção do hospital é encontrada assassinada, os gêmeos desaparecem e Tenma é, para a sua surpresa, promovido. A história avança em aproximadamente uma década, Tenma fica sabendo, por meio de um paciente, suspeito pelo assassinato de um casal abastado de meia-idade, que existe um ―Monstro‖ temido e idolatrado no submundo. Johan ressurge, agora com 19 anos. Ele assassina a sangue frio o seu ex-comparsa na frente de Tenma, revelando-se. O que se segue é o que guiará toda a trama: Johan é o monstro e, desde sua infância, ele tem matado pessoas de todo tipo, cumprindo um plano obscuro e grandioso. E ele só está vivo, saudável e adulto, graças a Tenma, que, após incriminado por Johan e consumido pela culpa, abandona tudo em nome de uma cruzada pelo assassinato do monstro. Esse extenso resumo, que dá conta apenas de um pouco mais que o primeiro volume (de dezoito no total) do mangá, em diversos momentos associa Johan ao demônio: seja pela maneira como a ele elipticamente se referem (―terror absoluto‖, ―obra do demônio‖, ―mal absoluto‖), seja pelo traço de seu rosto (quando criança, os olhos são círculos vazios, quando adulto, sua beleza é andrógena e angelical), seja pela imagem e citação da terceira página (de um homem soturno, de 235


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cabelos encaracolados, sob o trecho do Apocalipse de João). Vi emergir do mar uma besta que tinha dez chifres e sete cabeças e, sobre os chifres, dez diademas e, sobre as cabeças, noves de blasfêmia. [...] E adoraram o dragão porque deu sua autoridade à besta; também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra ela? (APOCALIPSE 13, 1.4 apud URASAWA, 2012a, p. 7).

Contudo, apesar das constantes referências ao Mal cristão, ele permanece no plano mítico: jamais é explicitada qualquer sobrenaturalidade em Johan, nem mesmo o demônio é pontualmente caracterizado. Os clichês do gênero: superpoderes, seitas satanistas, guerras santas, bestas infernais, o número 666 etc. jamais aparecem literalmente. A citação do Apocalipse no primeiro episódio, inclusive, é a única em toda a história. Propriamente, Monster é uma biografia do demônio sem que o mesmo apareça62. O jogo entre Mal natural e Mal produzido, entre nature e nurture, mantém-se aberto, indeciso, em eterno giro sobre si mesmo. Primeiramente, descobrimos que Johan, antes de ser adotado pelos Liebert, estava no precário 511 Kinderheim, um orfanato da Alemanha oriental mantido secretamente pelo governo socialista para experimentos com crianças (entre elas, estudo do ódio partilhado, da destruição da moralidade e do estímulo à razão calculada). Johan acabou provocando um grande conflito no orfanato que culminou em um sangrento massacre; conforme acontecia, ele, sentando numa destoante cadeira Luís XV no alto da escada, assistia a tudo impassível. Tenma chega à conclusão que o orfanato moldou a monstruosidade de Johan (Mal produzido), mas o antigo monitor, um dos poucos sobreviventes, confirmou que Johan já era assim (Mal natural): ―Não fomos nós que criamos aquela obra-prima. Desde o início, ele sempre foi mais do que humano... Ele é um monstro‖ (URASAWA, 2012b, p. 119). Seguindo em suas investigações, Tenma vai à Praga onde descobre que a mãe dos gêmeos, uma engenheira genética, apaixonou-se pelo pai, um militar que, na verdade, fora mandado pelo governo. A missão era aproximar casais por critérios de raça, inteligência, porte físico e reflexos, algo que ocorreu com dezenas de pessoas. Por serem frutos de uma experiência genética, a educação dos gêmeos foi acompanhada de perto. Tanto Johan quanto sua irmã, Anna, foram expostos a outro experimento educacional, semelhante ao do Kinderheim 511 – porém, se este em precariedade visava 62

Algo não incomum naquele momento. Em 1996, nos EUA, era lançado o filme Os suspeitos, de Bryan Singer, que, de modo semelhante, conta a história do demônio sem especificamente apresentá-lo. 236


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soldados, o experimento da antiga Checoslováquia, a ―sessão de leitura‖ ocorrida na elegante mansão da rosa vermelha forjava líderes. Assim, retornamos à ideia de Mal produzido, só que, desta vez, sem a mesma convicção de antes: afinal, Anna não se tornara igual a Johan. Para complicar ainda mais, descobrimos que foi Anna, não Johan, que foi levada para a mansão da rosa vermelha, onde um outro assassinato em massa ocorreu. Johan só soube do que aconteceu por Anna, porém aditou essas lembranças como se fossem suas, assim como Anna, passou a acreditar que não foi ela quem sofreu tudo aquilo (escondida, a mãe dos gêmeos, de modo a disfarçalos, vestia ambos de menina, o que inclusive confundiu as duas crianças). Ademais, o final surpresa que o mangá reserva acrescenta o seguinte detalhe: no momento em que os homens do experimento resolveram levar apenas uma das crianças para a mansão, a mãe, sem escapatória, optou por uma, mas pareceu pensar de novo e indicou a outra. Johan pergunta-se se a mãe queria poupá-lo ou se apenas estava igualmente confusa; já nós, leitores, indagamo-nos também se a mãe já desconfiava do gênio de Johan, e por isso achou melhor mandar Anna, pois ela seria mais resistente à monstruosidade provocada. Havia, então, um Mal natural em Johan, de modo que tudo o que aconteceu na sua vida foi apenas o resultado da atração gravitacional que essa força produz? Não há como responder. Para além de um final ambíguo, o que Monster poeticamente opera é a nadificação do Mal. Ora, se o Mal é o Nada, o lugar de seu nascimento, de um começo cronológico, estará para sempre perdido. Ou ele é transcendente (surge por Deus, mas a partir de um salto, depois de um intervalo, sem transição, pois é de uma matéria negativa completamente diferente) ou é imanente (surge pelo Diabo ou pelo próprio nada que se basta em si mesmo). Ao longo do mangá, o nascimento do Mal em Johan escapa-nos. Porém, isso não se restringe a ele. Com Tenma ou Anna, o Mal, que seria a corrupção de ambos a partir do assassinato de Johan (ato que ele mesmo provoca sua irmã e o ex-médico a fazerem), nunca chega. A todo momento que surge a oportunidade, Tenma ou Anna precisam interromper suas buscas para ajudar alguém ou fraquejam diante de algum sinal positivo de bondade nos outros. Sendo o Mal o Nada, é a insensibilidade para o outro, ou seja, a nadificação do sensível, a maldade possível. Outro exemplo é o de Franz Bonaparta, um dos pseudônimos entre tantos de um escritor de sombrios livros ilustrados infantis e ideólogo da ―sessão de leitura‖ na mansão da rosa vermelha. Quando, ao final do mangá (antes de sabermos da ―escolha de Sofia‖ da mãe dos gêmeos), encontramos Bonaparta, descobrimos que ele se arrependeu profundamente de tudo o que fez e hoje é um homem gentil para as crianças. Mais uma vez uma decepção: o que 237


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seria o Monstro original é ―nada‖ do que esperávamos. Deste modo, a página final do mangá, a cama vazia de hospital, onde outrora Johan se recuperava, graficamente reitera essa tese: há nada lá – e essa é a imagem do Mal, a sua não-imagem. Contudo, esse lugar vazio do Mal, a sua nadificação, ganha radicalidade em Monster pela criança-sem-nome. Bonaparta é o autor da história O monstro sem nome, o livro ilustrado usado nas sessões de leitura em Praga e que Johan ficou lendo, sozinho, enquanto Anna estava na mansão. Quando o adulto Johan se depara, sem querer, com o mesmo livro, ele entra em crise (a única cena de vulnerabilidade do personagem em toda a história em quadrinhos). O monstro sem nome, de Bonaparta, é um conto medieval de horror sobre um monstro que não tinha nome. Na ânsia por encontrá-lo, o monstro se divide em dois: leste e oeste. O monstro do leste passa a propor para diferentes pessoas que se elas derem para ele o seu nome, o monstro entrará nelas e as fortalecerá. O acordo é fechado, porém, sempre depois de algum tempo o monstro acaba ficando faminto e devorando a pessoa de dentro para fora, perdendo o nome. Essa situação muda quando o monstro entra no corpo de um príncipe menino doente. Por causa da boa vida, o monstro tenta suportar a fome o máximo que pode, porém, para que não precise devorar o menino e perder o nome, o príncipe-monstro devora o rei e todos os súditos. O príncipe-monstro do leste está sozinho quando o monstro do oeste ressurge, relatando que não encontrou um nome, mas que é feliz assim, afinal, é isso o que ele é, um monstro sem nome. O príncipe-monstro então devora também sua contraparte. ―Apesar de finalmente ter conseguido um nome, não havia mais ninguém para chamá-lo pelo nome. E ‗Johan‘ era um nome tão bonito...‖ (URASAWA, 2013, p. 58). Conforme Monster nos conta, o nome de Johan fora retirado desse livro quando ele e sua irmã, após os eventos da mansão da rosa vermelha, vagavam famintos e com frio na fronteira desértica entre a Alemanha e a Checoslováquia. Tanto Johan quanto Anna jamais foram propriamente nomeados. Quando nasceram, os agentes do regime checoslovaco impediram que sua mãe os nomeasse. Isso prevaleceu por anos. Apenas na Alemanha que as crianças ganharam nomes provisórios. Isso tudo não se dá sem grandes consequências: a falta de um nome concebido desde cedo afetará profundamente os gêmeos. É de se pensar que relação a ausência do nome pode ter com uma nadificação. Para isso, precisaríamos olhar para a teoria clássica da linguagem. ―Nomear é, ao mesmo tempo, dar a representação verbal de uma representação e colocá-la num quadro geral. Toda a teoria clássica da linguagem se organiza em torno desse ser privilegiado e central‖ (FOUCAULT, 2007, p. 164). Para a tradição europeia 238


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do século XVII e XVIII, o nome é o que vincula a representação das coisas com o seu lugar de representação na linguagem – em outras palavras, o que amarra o pensar das coisas com o discursar sobre as coisas numa relação essencialista. ―A tarefa fundamental do ‗discurso‘ clássico consiste em atribuir um nome às coisas e com esse nome nomear o seu ser‖ (FOUCAULT, 2007, p. 169). Seguindo essa linha de raciocínio, Johan, ao não ganhar um nome, não consegue constituir para si mesmo o sujeito humano que ele é; falta à criança-sem-nome fazer a complexa operação (para nós tão simples) de que objetivamente existe, em cada um, uma subjetividade nomeada pelo/no ―eu‖. Isso nos ajuda entender, para além das explicações místicas, o porquê de Johan e Anna lembrarem-se de eventos como se tivessem passado por eles quando, na verdade, apenas escutaram isso do irmão. Se não há um Lá, se o Lá é apenas um pré-objeto, um nobjeto, o Aqui não angaria condições para se constituir. É isso que ilustra O monstro sem nome de Bonaparta. Sem o Lá para chamar pelo meu nome, o Aqui perde a sua posse. Da mesma forma, é por isso que o jovem Johan, quando pede para Anna atirar em sua cabeça (o que ela de fato faz, ocasionando que cruzem com Tenma), ele diz ―você é eu... eu sou você‖ (URASAWA, 2014, p. 94). O nomear é um gesto de identificação e diferenciação; sem ele, o mundo torna-se uma massa esvaziada, já que não se constitui como representação, seja duplicado em pensamento, seja reduplicado em linguagem. Johan chamará este lugar de ―cenário do fim do mundo‖. Porém, bem que poderia ser o lugar que antecede o início do mundo: afinal, essa terra vazia, semelhante à fronteira onde os gêmeos foram encontrados (um mundo sem nomes), é o que o monstro pretende exibir à Tenma (e parece finalmente conseguir no clímax do mangá) (URASAWA, 2015, p. 171, 172). Durante toda a história em quadrinhos, Johan procura eliminar as pessoas que podem reconhecê-lo. Para aquém do perigo de ser identificado pela polícia, Johan almeja ser, conforme anunciado pelo monitor do Kinderheim 511, ―o último homem vivo na face da Terra‖ (URASAWA, 2012b, p. 120). Ora, o último homem sequer é homem num mundo nadificado. Por isso seu interesse por crianças (de modo a frequentemente levá-las ao suicídio, fazêlas desacreditar da razão de terem vindo ao mundo), por estudar direito (o lugar de nascimento vinculativo entre as palavras e as coisas), por não reconhecer qualquer sentido afirmativo na condição humana (muito menos nas vagas do humanismo). Johan é, em essência negativa, um Nada, o que antecede o Nome e, por isso, jamais chega ao Ser63. 63

Cabe notar que infante, etimologicamente, é o ―sem fala‖, o que novamente nos remete ao lugar do antes da linguagem. Giorgio Agamben partiria dessa constatação 239


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Cabe notar que Anna, esse monstro do oeste no conto de Bonaparta, lida de forma diferente com a ausência de nome. Ainda fator de aflição, o nãonome não chega a produzir nela a nadificação provocada em Johan. Ou melhor, o nada nela não adentra o Mal moral. Franz Bonaparta, a caminho de se arrepender de suas ações, diz para a jovem Anna, após o assassinato em massa causado por ele na mansão da rosa vermelha: ―o ser humano pode ser tornar qualquer coisa‖. Essa frase é repetida constantemente ao longo do mangá. No começo, achamos que se trata de uma lembrança de Johan e uma justificativa para as suas ações; depois, descobrimos ser uma lembrança de Anna, mas ainda sinal de uma doutrinação; por fim, descobre-se que Bonaparta matou todas aquelas pessoas para deixar os gêmeos livres, que o seu desejo era que eles fugissem, esquecessem o horror que passaram. Então, para uma Anna ainda em choque, ele faz sua apologia ao devir: ―o ser humano pode ser tornar qualquer coisa‖ (URASAWA, 2015, p. 162). Diferentemente do irmão, Anna lida com o Nome da linguagem clássica de uma maneira moderna, filológica, ao modo do século XIX. Anna realoca a linguagem, abandona a representação e se deixa envolver pela história, a sua própria história textual. Filosoficamente, podemos dizer que Johan é agostiniano, Anna é nietzschiana. Por tudo isso, Monster, de Urasawa, mostra-se uma radical poética sobre o medo da criança e o Mal cristão nas sobrevivências míticas que chegam à modernidade. Uma narrativa que adentra o sintoma, não para encontrar sua razão, mas para expô-lo na sua dispositividade nua. De Émile a Johan, a criança é o tracejo inquietante do mundo vazio que se insinua para nós em todo ato (auto)criativo. O problema ético é, enfim, estético. Bibliografia ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. ÁRTICO, Durval. A criança na literatura francesa e na brasileira. Travessia, Florianópolis, n. 16, 17, 18, p.114-123, 1989. Semestral. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/17459/16030> . Acesso em: 27 fev. 2017. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007. GARCÍA, Santiago. A novela gráfica. São Paulo: Martins Fontes, 2012. para pensar a experiência na modernidade em Infância e história. 240


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LENT, John C.. The comics debates internationally. In: HEER, Jeet; WORCESTER, Kent (Ed.). A comics studies reader. Oxford: University Press Of Mississippi, 2009. MOYA, Álvaro de. História das histórias em quadrinhos. Porto Alegre: L&PM, 1986. RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas: Papirus, 1988. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio; ou, Da educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. URASAWA, Naoki. Monster vol. 1: herr doktor Tenma. Barueri: Panini, 2012a. URASAWA, Naoki. Monster vol. 3: 511 kinderheim . Barueri: Panini, 2012b. URASAWA, Naoki. Monster vol. 9: a nameless monster. Barueri: Panini, 2013. URASAWA, Naoki. Monster vol. 14: that night . Barueri: Panini, 2014. URASAWA, Naoki. Monster vol. 18: scenery of the doomsday. Barueri: Panini, 2015.

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Fragmento do meio - leitura de um conto surrealista de Mário Saa Middle fragment - reading a surrealist tale of Mário Saa Marcelo Pacheco Soares64 Resumo: Publicado em 1929 na revista modernista Presença, o conto de Mário Saa O José Rotativo (fragmento do meio) é produzido sob a égide de movimentos literários de vanguarda, como o Surrealismo. Pouco observada pela crítica, a narrativa ganha neste artigo um olhar mais minucioso a respeito das teses sócio-filosóficas que encerra sobre as relações humanas na sociedade moderna do século XX. Palavras-chave: Presencismo; Mário Saa; Surrealismo; Sociedade. Abstract: Published in 1929 in modernist magazine Presença, the tale of Mario Saa O José Rotativo (fragment do meio) is produced under the auspices of the literary avantgarde movements, such as Surrealism. Read less by criticism, this article gets a thorough look about the socio-philosophical theses which keeps about human relations in modern society of the twentieth century. Key words: Presencismo; Mário Saa; Surrealism; Society. ―Em luz abundo! Relâmpagos há, nestes meus olhos loucos! É luz, é o Mundo! Ébrios, ó troços, ó caroços loucos!‖ (―A canção dos olhos‖, Mário Saa)

Em 2017, a Revista Presença, publicação idealizada por José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões que marca o movimento modernista em Portugal, completa noventa anos desde que Coimbra testemunhou o lançamento do seu primeiro exemplar. A iniciativa editorial perdurou por treze anos e cinquenta e quatro números, nos quais encontraram abrigo obras portuguesas fomentadas pelas vanguardas europeias. No entanto, não obstante a reconhecida importância da publicação e do tempo já passado desde o seu aparecimento, não foi ainda mais vastamente privilegiada pela crítica toda a variada produção que teve lugar na Presença. Ocorrência desse silêncio percebemos, por exemplo, em relação a um conto de Mario Saa, presencista mais conhecido por uma trajetória literária de poeta (o que talvez explicasse, ainda sem justificar, essa pouca atenção), intitulado ―O José Rotativo (fragmento do meio)‖, narrativa de influência surrealista que figurou no número 20 da revista, em 1929. 64

Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro; Doutor e Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com Pós-Doutorado na Universidade Federal Fluminense. 243


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Considerado ―um dos mais significativos da nossa novelística de vanguarda‖ (SOUSA, 2006, p. 15), segundo a avaliação do crítico português João Rui de Sousa, o texto, não obstante esse juízo, ganhou em seu quase um século de existência pouquíssima leitura da academia. Tal olvido quiçá se dê por seu simbolismo relativamente hermético ou seu discurso surrealista, que impede que se toque algum sentido seu mais concreto, fim aparentemente sempre tão almejado pela teoria crítica; quiçá ocorra mais especialmente por sua sintaxe difícil, a reforçar esse mesmo hermetismo, mais até do que a própria semântica dos fatos narrados. Ou talvez a preterição ainda decorra das controversas posições políticas, que Saa defendeu em obras teóricas: antirrepublicanas, ultranacionalistas e mesmo antissemitas. É de sua autoria A invasão dos judeus, livro de 1925 em que adjetiva como purificadora a inquisição e ―acusa‖ a República de ser a invenção judia para dar direitos aos judeus. Ora, essas ideias e doutrinas são justamente as que culminaram na Europa e em Portugal em governos totalitários de extrema direita (o nazismo e o fascismo e, mais especificamente ao contexto português, o salazarismo) em décadas seguintes que marcaram (e esperávamos até pouco tempo que indelevelmente) a sociedade ocidental. Uma vez que, em fins da década de 1930, a literatura portuguesa volta-se mais fortemente para o neorrealismo e, em paralelo, a crítica literária adota um viés ideológico marxista, pareceria natural que esse conto não estivesse em seu corpus de interesse acadêmico-científico. Mas a verdade é que outros intelectuais também flertaram com ideias similares nesse tempo, que afinal é anterior ao da Segunda Grande Guerra, e nem por isso deixaram de ser acolhidos pelos estudos críticos, como Fernando Pessoa65 por exemplo, autor contudo de envergadura literária evidentemente muito superior, o suficiente para que tais questões, nas quais além de tudo parece-nos que militou menos do que Saa (embora tal volume não seja efetivamente mensurável), viessem a se tornar mais insignificantes diante da sua obra. Seja qual for a hipótese mais coerente que o justificasse (o hermetismo 65

Acerca de Pessoa e sua posição no espectro político, disserta Manuel Vilaverde Cabral: ―Para além dos paradoxos que cultivou tão deliberada como brilhantemente, nem por isso deixa de sobressair, na sua visão de Portugal, a dupla perspectiva de um nacionalismo redentor, inicialmente associado ao Partido Republicano, e do elitismo conservador, por seu turno associado aos movimentos autoritários cada vez mais numerosos após o advento da República em 1910. É sabido como as duas vertentes vieram a convergir, não sem que Pessoa para isso tenha contribuído com a sua quotaparte, na ditadura militar que pôs termo ao regime liberal em 1926. A consecutiva tomada de poder por Salazar conduziria, finalmente, à institucionalização do Estado Novo Corporativo do início da década de Trinta, a tempo ainda de Pessoa se distanciar do rumo que a ditadura tomara.‖ (CABRAL, 1988, p. 25-6) 244


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do texto, algum desprezo por seus posicionamentos políticos adotado pela crítica pós-II Guerra, uma menor relevância literária de sua obra como um todo, o espaço mais diminuto que as letras portuguesas construíram para o fantástico e suas variações em oposição ao domínio das obras realistas...), o fato é que o silêncio que acerca desse seu conto persiste não é pertinente a um dos mais significativos da novelística de vanguarda em Portugal (o que enfatizamos para corroborar nossa eleição por uma leitura crítica sua mais pormenorizada, especialmente por nela não encontrarmos as controvertidas ideias citadas, as quais realmente julgamos não merecerem eco nos dias presentes). E menos coerente será tal silêncio se, mais do que isso, pensarmos que esse texto figura, a distância de apenas cinco anos do Manifesto bretoniano, como uma das obras inaugurais do surrealismo português, movimento tardio no país que somente se consolidaria sob a liderança de Mário Cesariny cerca duas décadas mais tarde. Por fim, cremos que o desconhecimento dessa narrativa encontra par, ao que parece, sobretudo no público. Esse conto de Saa propõem-se, como verificamos em seu subtítulo, um ―(fragmento do meio)‖. Ora, esse sintagma que secundariamente o identifica sugeriria a narrativa como parte de um todo, o qual, porém, jamais chegara a público — e talvez (ou, antes, muito provavelmente) o seu hipotético restante nunca tenha aspirado à existência e não passasse de um fingimento poético que explicasse a fração que o relato exibe do repetitivo cotidiano em que seus personagens circulam, notadamente o protagonista, que afinal poderia, em certa medida (e ainda que forjadamente, conforme veremos), representar a todos eles (daí que fosse, então, batizado pelo comuníssimo nome português de José). A narrativa, por isso, inicia-se precisamente com reticências, mas não se encerra, como se poderia conjecturar, com o mesmo sinal gráfico que reforçaria a sua condição de fragmento do meio. Mesmo assim, o breve período final — E fui. — sugere o retorno a um originário espaço sub-urbano e configura um convite à continuidade de cariz circular do texto, o qual principiara na terceira classe de um comboio a levar passageiros à cidade grande, o protagonista dentre eles. Ora, tal percurso cíclico está indicado no próprio epíteto que o personagem-título e narrador do conto assume como sobrenome: O meu nome é José Rotativo, o que sobe para descer por o outro lado! — segundo ele se apresenta. Essa afirmativa permitiria diversas leituras, dentre as quais a que se elabora agora sobre a própria estrutura do conto e autorreflete-se em seu herói, ao dar conta de um movimento pendular que José (e outros personagens anônimos semelhantes a ele, duplos seus) empreende entre os ambientes de pequenas povoações periféricas e provincianas e o da grande 245


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metrópole do litoral, espaços que se diferenciam sobretudo por manifestações opostas de um mesmo signo: o da velocidade. Atentemos para o fato de que a gradativa aceleração do comboio (uma velocidade excitação-igualdade de que o texto fala) é responsável pela produção da sucessão de imagens incansavelmente repetidas à janela da carruagem, como as tabuletas dos banheiros das estações que, tal qual o personagem, especularmente se multiplicam (paisagem monótona das estações no amarelo sulfúreo das paredes — Senhoras — Homens, Senhoras — Homens, Senhoras — Homens...) ou os diversos letreiros de redes hoteleiras ou de jornais impressos locais (duzentas vezes hotel e Correio da Noite) a denotar o mesmo conceito de que as pequenas cidades no caminho são todas semelhantes, ou, em termos práticos, a mesma cidade — como insistiria em defender, décadas mais tarde, Italo Calvino, conclusão a que se chega através das descrições que Marco Polo promove para o Kublai Kan d‘As cidades invisíveis. Tal rapidez, celeridade de movimentos e da passagem do tempo nos grandes e povoados espaços urbanos, será, além disso, justamente o que permite abandonar a vida na Província, que é tão vagarosa, para alcançar essa área metropolitana (provavelmente a capital Lisboa, como sugere a menção a Sintra nas recorrentes conversas dos passageiros). Mas esse êxodo é apenas o início do caminho, a parte inaugural do conto, que na verdade é composto por três blocos: o primeiro transcorre entre o dia e o crepúsculo e descreve a chegada à cidade grande dos passageiros dos comboios, dentre os quais aquele que traz José. Esse personagem, assim como os seus duplos, viajantes outros, logo se dirige aos bordéis, numa inserção voluntária na artificialidade das relações humanas do meio urbano. Ali, a hipocrisia que caracteriza o convívio social, tema basilar da narrativa, surge já potencializada, em meio a outros traços, pela descrição dos cafetões: Cruéis por dentro e elegantes à superfície da pele, os souteneurs são uma delícia a cativar o imprevisto à doce vida. O segundo bloco da narrativa mostra já a madrugada do protagonista, após a saciedade em seus excessos fálicos: se concentrava todo e explodia depois em ansiedade concentrada até de novo encher a grossa abóbada... e até tombar como um balão apagado! A terceira parte se passa nas horas diurnas do dia seguinte, momento de reencontro com a sociedade, quando José procura ignorar os acontecimentos das duas primeiras partes, intenção que fica manifesta no discurso do personagem-narrador ao ironicamente se referir, por exemplo, ao desejo enjoado a mudar de opinião com muito juízo, pôr um ponto final num fim de escândalo, desgosto-povo, com mulheres pague cá, no Governo Civil. Atentemo-nos agora à segunda parte do texto. 246


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É certamente em razão dessas elucubrações do narrador, que se desenrolam justamente nesse movimento do conto e cujas bases se fundam na descrição da epifânica noite quase insone de José, que Fernando Guimarães define ―O José Rotativo‖ como um ―encontro de uma sabedoria aforística com um delírio que se solta do sonho e nos visita cheio de inesperada fantasia‖ (GUIMARÃES, 1971, p. 42). Ficam assim expostos nesse segundo bloco do conto determinados conceitos que se mostrarão valiosos (mesmo fundamentais) para a leitura da narrativa em sua inteireza — e talvez assim nós leitores é que estejamos, nessa etapa, a testemunhar uma epifania críticoliterária, a enxergar repentinamente o viés de compreensão de todo o texto. Por conta disso, é mesmo bastante razoável pensar que o subtítulo da narrativa afinal — fragmento do meio — mereça um olhar mais atento, já que apontaria dessa maneira à parte do conto que deveria assumir papel de sua força motriz teórica. Quanto a isso, valeria a pena mais bem investigar uma alternativa à leitura do ―fragmento do meio‖, pensando nele menos como o ponto médio de um segmento de reta e antes como um centro (em oposição à margem), referindo-nos agora a um espaço circular, óbvio está, imagem sugerida mesmo pela ideia que nos chega a partir do adjetivo ―Rotativo‖ que designa o protagonista. Ideia semelhante, aliás, encontra-se em outro texto de Saa, dessa vez em versos, designado precisamente ―Poema do centro‖, o qual nos permite alguma aproximação semântica do subtítulo do conto em análise, cuja leitura que fazemos pode ser corroborada pelas suas três estrofes finais, em que elementos da narrativa surgem em espelhamento: Nas eléctricas tempestades das furiosas capitais onde há rugidos brutais d‘elegantes ansiedades os automóveis cantavam, rouquejavam, perfuravam os ares que há muitos paravam na sua monotonia, os comboios assobiavam pelos silêncios das noites, como terríveis açoites dos silêncios d‘algum dia? (SAA, 2006, p. 207)

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Para além das aproximações possíveis de imagens das elegantes ansiedades das furiosas capitais (centro aqui que é também o espaço do centro urbano, como o da capital portuguesa Lisboa) ou a referência à monotonia quebrada (perfurada) pela velocidade de automóveis e mesmo o comboio a assobiar pelos silêncios das noites, chama-nos a atenção a interrogação final do último verso, a inesperadamente problematizar um discurso que parecia ter tom afirmativo, pondo em dúvida as percepções tão concretas da realidade e do seu espaço mais racional — a cidade. Nesse sentido, é preciso destacar que, em tal momento central da narrativa de Saa, deparamo-nos com acontecimentos que efetivamente alçam ―O José Rotativo‖ à esfera de uma literatura que poderíamos classificar como fantástica, modo de escrita que tem a precisa competência de desestabilizar o racional e o real. É certo que já estaríamos desde o início diante de um discurso marcado por um aspecto insólito, entretanto, esse atributo parece antes promovido pela sintaxe algo aleatória que se identifica na narração, recurso que desfavorece a comodidade da leitura ao estabelecer relações de coesão textual intricadas em períodos normalmente extensos. Tal característica estética, marcante por todo o texto, é uma das que, a propósito, aproxima, como dizíamos, o seu autor da escola surrealista que claramente também o influenciara, sendo digno de nota que, em sua meritória pesquisa a respeito do Surrealismo em Portugal, Maria de Fátima Marinho aloca o nome de Mário Saa dentre os que ela chama de autores de ―um Surrealismo sem escola‖, ao lado de figuras como Vitorino Nemésio e Jorge de Sena (MARINHO, 1987, p. 157-86). O trecho do conto, porém, que exibe a noite do herói é o que proporciona a constituição semântica de imagens efetivamente fantásticas, com a aparição da mais clássica das suas figuras — um ser espectral, isto é, um fantasma. E não será permitido ao leitor crer que os episódios aí narrados decorram em um ambiente onírico, porque o próprio discurso se encarrega de apresentar textualmente determinados índices de textualidade que levam à negativa dessa hipótese. A cena se desenvolve entre uma primeira frase que se mostra ambígua em seus propósitos (Ia quase a adormecer com pesadíssimo sono mas faltou-me o quase, que é do tamanho da completa ausência do sono.) e uma derradeira com desígnios semelhantes (E adormeci com pesadíssimo sono...), que se situam opostamente como marcos extremos a evidenciarem o estado de efetiva vigília do personagem durante o segundo bloco da narrativa. A chegada do ser espectral, curiosamente, assemelha-se à do corvo que procura também de madrugada o poeta Edgar Allan Poe em seus mais celebrados versos, uma vez que igualmente em ―O José Rotativo‖ a aparição precede de pancadas que soavam não se sabe de onde. Em ―O corvo‖, o po248


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eta tenta saber de onde vêm as pancadas que lhe acordam à exata meianoite, chegando a abrir a porta para verificações, logo depois descobrindo que as batidas soavam à janela. O fantasma de Mário Saa encontra-se, porém, destituído das características que tal visita noturna exibiria na literatura fantástica do século XIX, de que Poe é indubitável expoente, qual seja, a função do gênero de provocar o terror — e os mais eméritos teóricos da literatura fantástica, como Tzevetan Todorov e Jaime Alazraki, para ficar em apensas dois exemplos mais convenientes no momento, reconhecem que o medo é uma característica de sua manifestação oitocentista que, entretanto, perdeu força a partir do século seguinte, deixando de ser um traço distintivo seu fundamental. Aqui, de modo algum testemunhamos um fantasma que suscita pavor, mesmo em cenas escatológicas com aquela em que a sua língua se desprende da boca e cai no prato em que comia ou outra na qual a mão derrete sobre o fogão ou ainda quando revira os olhos como bolas com os próprios dedos. Pelo contrário, provavelmente o excesso caricatural das cenas colabore para essa ausência de efeito atemorizante em seu resultado, de algum modo em um processo semelhante aos causados pelos exageros estéticos dos filmes de Quentin Tarantino (como o sangue que jorra feito chafariz de corpos decapitados em Kill Bill, para citar exemplo mais radical, cujo intuito é cunhar a sua função de caricatura de películas de artes marciais sem com elas se confundir, evidenciando a sua condição de exercício explícito de um gênero de referência irônica, ironia aqui registrada como linguagem que refere outra linguagem). Tudo isso se dá de tal modo que o fantasma do conto de Saa, que já não assusta os leitores, sofra ainda de males tão corriqueiros e comezinhos, a lhe diminuírem ainda mais enfaticamente o poder de atemorizar, dadas as suas fragilidades, como problemas estomacais, por exemplo — Já não vinha lembrado da vida real à custa do forrado por dentro e por fora. Queixava-se sobretudo da vida do estômago, fugia do sol curvado dentro dum envólucro enorme. Por essa razão, o impacto de terror que a sua aparição poderia suscitar se esvazia diante de um procedimento o qual, no máximo, institui uma paródia voluntária das figuras oriundas do além-vida que apavoravam os leitores em obras literárias vastamente produzidas décadas antes, no século anterior, consciência exposta na descrição de um episódio lugar-comum dessas obras, o desabamento de um armário de louça na cozinha tal qual como nos episódios dos livros espíritas, como então essa literatura fantástica se vê pejorativamente classificada pela narrativa. Por isso mesmo, o protagonista, sem nenhum traço de pavor, encontra liberdade para tripudiar do ser espectral, quando lhe puxa o pescoço até a porta e o larga... E aquela 249


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cabeça recolheu ao ponto de partida e... por largo tempo baloiçou!, numa cena de evidente comicidade. Ao invés de medo, portanto, (e mesmo, ao contrário, a partir de um registro de humor) o espectro recém-chegado serve de pretexto para as reflexões filosóficas do narrador. Funciona, assim, mais do que como uma aparição que a economia do conto pudesse sugerir ser factual e antes como uma metáfora que virá a propósito para que sejam tecidas considerações sobre os estados de evolução cultural dos homens, teoria de ordem ontológica e sociológica defendida por José: Há apenas três estados: o Estado Metafísico, que é a negação da Humanidade, negação do conjunto, para ser apenas a delirante afirmação do único (a impressão de ser único — o único que existe!); Estado Selvagem, que de qualquer modo é já afirmação de Humanidade, impressão de que há mais individualidades além do próprio, espécie de repouso no encosto do Múltiplo até mesmo à projecção do próprio em figuras de deuses. Esta é a verdade: o Homem selvagem acredita na individualidade do cada um, não vê que o cada um é ilusão de si mesmo, criou a multidão de todos, e não contente com isso criou até a multidão dos deuses. Vem por último o Estado Civilizado, tentativa da redução do número, redução do Múltiplo começando pela redução dos deuses a um só Deus, e a acabar na redução dos homens a um só Homem com a sensação de que os outros homens são múltiplos aspectos de si próprios, fantasmas projectados de si próprio! É a delirante sensação do único! É o hipercivilizado, o monge-Tudo que alcança esse delírio da Sensação. (SAA, 2006, p. 260-1)

O trecho aponta o caráter alegórico do conto de Mário Saa, uma vez que discursa efetivamente a respeito da tese-alegoria que o autor pretende defender em ―O José Rotativo‖: a dificuldade de o homem integrar-se totalmente à massa ao se permitir alcançar uma individualidade e expor as suas especificidades. Essa narrativa de Saa apresenta-se como ―símbolo da perturbação do homem ao captar-se plenamente, na expressão da sua totalidade‖ (LIMA, 1984, p. 249), como reconhece Isabel Pires de Lima. E, nela, exibe-se o conceito de que a solidificação da civilização moderna baseia-se no rechaço de duas ideias: (1) a de que o homem é um ser único e só — o Homem Metafísico — e (2) a de que o homem pode viver entre outros mantendo suas características singulares — o Homem Selvagem. Somente aquele que é reprodução em série dos seus pares alcança o estatuto socialmente reconhecido de Homem Civilizado. Civilizar-se é, nesse sentido, agir, ainda que artificialmente, segundo a imagem e a semelhança dos demais componentes de uma coletividade — como os passageiros do comboio, cada um a contemplar o silêncio dos outros, a pensar o pensamento dos outros, a ter as mesmas impressões e as mesmas opiniões portanto, o que mais à frente re250


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sulta simbolicamente na confusão das individualidades nas sombras projetadas pela cidade: No claro-escuro dos candeeiros da rua aquele vulto gordo ao lado dum magro desdobrava-se precisamente em duas porções, de modo que ao todo eram três vultos magros. Ao denominar o Homem Metafísico como a delirante afirmação do único e o Civilizado como a delirante sensação do único, o narrador põe em dúvida (porque afinal as considera, ao menos segundo a lógica que rege a sociedade, delírios) as legitimidades desses dois estados que pressupõem excepcionalidades ou singularidades do ser humano, chegando à tese principal: o homem real é o Homem Selvagem, estado do qual o fantasma — que alcançara a sua condição espectral por se ter tornado hiperbolicamente um hipercivilizado — esquecera, já que não vinha lembrado precisamente da vida real. Tal Homem, no entanto, pejorativamente definido como Selvagem apenas por ação da ironia que permeia todo o discurso do narrador (que, nessa escolha de nomenclatura, finge coadunar com a opinião pública geral), será vítima de uma sociedade que insiste em domá-lo, alvo de incansáveis tentativas de civilizá-lo em prol do funcionamento da cidade, da garantia dos giros da suas engrenagens em função dos comportamentos que lhe foram automatizados, tornando-o assim alguém ou algo que ele não é verdadeiramente. Mas a percepção de que parecer pode substituir o ser traz a hipocrisia como saída possível da condição de Civilizado que o Selvagem pode forjar. Daí a metáfora dos chapéus elaborada na terceira parte do texto, segundo a qual os acessórios que parecem pertencer a artistas ou escritores, por exemplo, são usados na realidade apenas por estudantes das respectivas áreas que procuram criar de si uma imagem que não possuem mas almejam alcançar, culminando na figuração do chapéu coco, que por sua falta de traços distintivos tem função escamoteadora e, no fim das contas, acaba por ser vasta e indiscriminadamente adotado, tornando-se signo desse Homem Civilizado, que é igual a todos os demais. Embora de posse desse conhecimento quanto ao sentido verdadeiro da apregoada selvageria do homem, que ele então contempla, José tem por objetivo maior atingir o Estado Metafísico (que significa alcançar grande posse interna, ou seja, largo conhecimento). Aliás, em descrição muito pertinente a esse estado de homem único e só na madrugada, o autor, em poema em prosa de estilo francamente aforístico intitulado ―Regulamento‖ (não publicado mas encontrado em manuscrito, especulando-se que produzido em torno de 1922, anteriormente portanto ao conto em análise), afirma, de certo modo corroborando essa sua outra obra: ―Cada um é tão profundamente diferente dos outros que basta 251


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que cada um se recolha profundamente a si próprio para que se manifeste diferente dos outros.‖ (SAA, 2006, p. 252) Sob essa acepção, a identificação da urbe novecentista com a selva permite acreditar em duas rotas possíveis, como se pode concluir das considerações do narrador: para conduzir a tão grande posse interna tanto podem servir as veredas das selvas como as ruas das cidades ultra-excitadas: o Estado Metafísico alcança-se por esses dois caminhos. Eis então outro significado para o apelido Rotativo: os três estados expostos formam, na verdade, um ciclo: ...METAFÍSICO - SELVAGEM - CIVILIZADO - METAFÍSICO - SELVAGEM - CIVILIZADO – METAFÍSICO - SELVAGEM - CIVILIZADO..., de modo que se pode alcançar o primeiro estado no sentido horário (passando pelo terceiro) ou, pelo contrário, no sentido anti-horário (passando pelo segundo). Assim, seguindo a lógica do Homem Selvagem, o Estado Metafísico é passível de obtenção porque já se possui naquelas circunstâncias o conceito de individualidade, restando apenas a percepção da inexistência do restante da Humanidade; seguindo, entretanto, a lógica do Homem Civilizado, desenvolve-se o mesmo estado caso se alargue o conceito de que não existem outros homens (mas apenas reduplicações do mesmo homem). Desse modo, José é Rotativo além de tudo por ser ainda capaz de alterar o seu estado — primeiro de Civilizado, aquele exigido pelo meio, para Selvagem, dentre os que agem segundo sua autonomia independente dos julgamentos erigidos pela sociedade, sendo verdadeiramente ele mesmo (mas onde se vive não necessariamente cônscio de tal condição, operando antes por instinto); e depois, a completar o ciclo, finalmente evoluir para o estado Metafísico, na madrugada em que reflete sobre o espaço urbano e a dialética que trata da interação de seus elementos, e, por força das convenções sociais que efetivamente o moldam (e que a aparição espectral vem ratificar), mostrar-se engenhoso ainda para retornar, logo após, em um percurso perimétrico, à condição original. Isto lhe permite ser de dia o reflexo daquilo que a coletividade especularmente dele espera, ainda que à noite alcance outros níveis de evolução até chegar à madrugada-metafísica, sem precisar optar por outra solução mais radical, qual fosse, um absoluto apartamento social. Destarte, fica claro que os três movimentos do conto correspondem a cada um destes estados: respectivamente, o Selvagem, o Metafísico (o ―do centro‖, o do fragmento do meio) e o Civilizado. E a expressão e fui que encerra o texto significa o reinício do interminável ciclo e um novo processo de selvagerização... No terceiro bloco, portanto, José, que em função da visão que é capaz de elaborar sobre o meio poderia se isolar da sociedade, recua e opta por se disfarçar, sob uma máscara que o integra provisoriamente a essa mesma 252


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sociedade. Se muitas décadas mais tarde Zygmunt Bauman concluirá que ―não há outro caminho para buscar a libertação senão ‗submeter-se à sociedade‘ e seguir as suas normas‖, enfatizando que ―a liberdade não pode ser ganha contra a sociedade‖ (BAUMAN, 2001, p. 28), poderemos dizer que o personagem de Mário Saa havia precipitado, em certa medida, essa conclusão. O papel escolhido por José não será, todavia, interpretado impunemente. A irônica afirmação que o narrador fizera no comboio (Que a vida na Província é tão vagarosa que andam todos mais gordos que na véspera, mais gordos e mais mal calçados.) será finalmente compreendida a partir da tese de que as pessoas que não apresentam conteúdo significativo em suas conversas é que permitem que se lhe reparem os pés, sina que parece acometer mesmo o próprio protagonista — e eis a punição à qual nos referíamos — que logo terá a preocupação de engraxar os sapatos, para o caso de não conseguir despertar o interesse de outras pessoas, sobre o que José discursa: Que sabor antipático a conversas de estudantes pobres com muitas vírgulas no ‗mas‘... a dar tempo nos olhos de lhes olharmos os pés! Ai daquele que é reparável do pescoço para baixo. Ora eu tinha reparado em demasia no nó da gravata do primo do amigo do Luciano precisamente porque no primo do amigo do Luciano nada havia a reparar do pescoço para cima. Mas não há possibilidade de me lembrar do feitio das pernas ou das botas dum indivíduo inteligente. (SAA, 2006, p. 262-3)

Enquanto a noite dos bordéis tolera que o homem, manifestando-se em sua condição selvagem, volte-se na verdade para si próprio (e as pertinentes referências ao onanismo, explícitas ou sutis, não são por isso mesmo escassas no texto) para depois, no ápice do processo evolutivo, nos momentos reflexivos da madrugada, alcançar a sua metafisicalidade, o amanhecer do dia seguinte provoca a reestruturação das aparências e um ritmo desacelerado que contrasta com o da narração das duas primeiras partes do conto (velocidade que distinguia a tarde anterior, na qual os rápidos de todos os lugares do mundo vinham chegando às grandes capitais, um desaguar de barulho noutro barulho de tempestades eléctricas) e se mostra marcado pela alusão ao trabalho burocrático e ao detalhe ordinário do funcionamento precário do encanamento do banheiro da repartição pública: A cidade tinha agora de manhã o aspecto de limpeza das casas de jogo com serradura no chão e as cadeiras em pilha. E mais o sono pesado das repartições do Estado com um pingo de água a cair no W. C.; e o escarrador de areia do contínuo. Ratifica-se, assim, no conto de Mário Saa, a falsa sensação de limpeza da cidade, representada pela serragem a cobrir o chão sujo da casa de jogos e 253


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pela caixa que esconde as secreções bucais do contínuo, expondo um meio urbano assinalado pela hipocrisia, pela valorização das exterioridades e pelas relações sociais forjadas (que fazem de todos os homens, na verdade, nada mais do que fantasmas de si mesmos, figuras que perdem a individualidade para se entregarem a uma massa pretensamente uniforme e contínua). Destaca-se, no entanto, que o fato de organizar essas ideias conscientemente não impede que José se articule com a sociedade, jogando de modo esclarecido o jogo que lhe é proposto, sem optar pela antissociabilidade, rendendo-se às regras, isto é, submetendo-se à sociedade e seguindo as suas normas como Bauman ratifica ser necessário, o que será um importante passo para, nos termos tratados em ―O José Rotativo‖ — e eis a sua denúncia pessimista e distópica do futuro da humanidade — efetivarse o processo civilizatório dos cidadãos, a fim de, em algum momento, transformar todos os homens também em fantasmas que de nada se lembram de suas vidas reais, que sobre nada deliberam, formando sociedades compostas apenas e comodamente por hipercivilizados. Bibliografia ALAZRAKI, Jaime. Hacia Cortázar: aproximaciones a su obra. Barcelona: Antrophos, 1994. ------. ¿Qué es lo neofantástico? In: ROAS, David. Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros, 2001. p. 265-82. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. CABRAL, Manuel Vilaverde. Fernando Pessoa na sociedade do seu tempo. In: LOURENÇO, Eduardo. OLIVEIRA, António Braz de (orgs.). Fernando Pessoa no seu tempo. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1988. CALVINO, Italo. Le città invisibili. Milão: Arnoldo Mondadori, 1993. GUIMARÃES, Fernando. Linguagem e poesia em Mário Saa ou uma estranha hierarquia. Revista Colóquio/Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, no 3, setembro de 1971. p. 37-43. KILL Bill. Direção: Quentin Tarantino. Produção: Lawrence Bender. Los Angeles: Miramax Films, c. 2003-2004. 2 DVD‘s (250 min.). LIMA, Isabel Pires de. Mário Saa - uma presença surrealizante na ―Presença‖. In: MOURÃO-FERREIRA, David (org.). Afecto às letras - homenagem da literatura portuguesa contemporânea a Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984. p. 243-52. MARINHO, Maria de Fátima. O Surrealismo em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1987. 254


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POE, Edgar Alan. O corvo. In: ------. Ficção completa, poesia & ensaios. Tradução: Oscar Mendes; Milton Amado. Rio de janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 895-9. SAA, Mário. Poesia e alguma prosa. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986. SOUSA, João Rui de. Mário Saa, um poeta do Modernismo. In: SAA, Mário. Poesia e alguma prosa. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986. p. 11-62. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução: Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2004. ANEXO: O José Rotativo (fragmento do meio) ...o barulho com cinemas nos vidros, e a achar-se bonita no espelho do W. C. Aquele barulho, e cada um a contemplar o silêncio dos outros, a pensar os pensamentos dos outros. Mulheres suadas com calor nos olhos dos homens iguais à vontade dos homens nas olheiras das mulheres e filhas magras coladas às mães gordas cheias da nossa vontade na grossura das mães no compartimento a arder com a velocidade dum raio por dentro e por fora! A velocidade excitação-igualdade a digerir com os olhos toneladas de carvão na 3.a classe, e por toda a parte a paisagem monótona das estações no amarelo sulfúreo das paredes — Senhoras — Homens, Senhoras — Homens, Senhoras — Homens... As conversas do Castelo de Sintra — a Sintra em esmalte de souvenir-lembrança. E a Batalha, nunca foste à Batalha?! Ah, isso é um crime! Que a vida na Província é tão vagarosa que andam todos mais gordos que na véspera, mais gordos e mais mal calçados. Que grande vida aquela das cidades com cinemas nos vidros e a achar-se bonita no espelho do W. C.! A mulher da frente era um cabelinho nervoso que rolaria na ponta dos meus dedos, a contorcer-se em ébano cintilante como um cabelinho obsceno! Ó que doce vitória de vencido, era um capricho de estação de inverno!... O poeta da frente roía as unhas, estremecia-lhe ao lado, vorazmente estendido na fome dela rebentando para lá dos vidros corridos os olhos injectados de fogo encarnado! A carruagem corria. Esta é a terra da pêra carapinheira, uva bastardinha e figos lampos, vocábulos nacionais que sabem a sorva! O poeta da frente chupava os dedos. O cão ia preso por uma correia: com pêlo era do tamanho do regalo duma senhora, e sem pêlo cabia dentro do buraco do dito regalo. O sujeito de idade queria que se lhe pudesse o nome de Gaio, mas o Jorge que era aluno do 3. o ano dos liceus queria antes que se chamasse Diogo Cão. Vai aqui de propósito o nome de Jorge, que eu bem sei que se usa muito nas novelas, e infalível, então, nas pornográficas... mesmo mais ainda que o de Alberto! O comboio entretanto chegava ao cais. Duzentas vezes hotel e Correio da Noite. Cá estamos outra vez, mais do que nunca. Acendiam-se as luzes nas casernas. É a hora em que os rápidos de todos os lados do mundo vêm chegando às grandes capitais da vida do sonho, um desaguar de barulho noutro barulho de tempestades eléctricas. As mulheres enroladas ao dos homens põem em liberdade o brilho dos olhos que vi cravar-se nas caras dos homens distan255


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 tes: os que se encontram ao seu lado são veículos da vontade por os outros distantes. No claro-escuro dos candeeiros da rua aquele vulto gordo ao lado dum magro desdobrava-se precisamente em duas porções, de modo que ao todo eram três vultos magros. Das vielas do fado vem um cheiro pronunciado a cravo da Índia, rosmaninho queimado do século XVIII. Ora os bordéis não tinham portas. Como a própria noção de mulher adúltera se seguiu à descoberta das portas das casas! Revolteavam-se lá dentro os souteneurs parasitando ao redor das folhas de parra. Cruéis por dentro e elegantes à superfície da pele, os souteneurs são uma delícia a cativar o imprevisto à doce vida. São como ainda os marinheiros dos mares que quando abordam aos cais das cidades estrangeiras é como se abordassem a cais de luxúria, e de noite andam a fazer distúrbios nas ruas, distúrbios de luxúria, de vinho e de espuma! Ora os bordéis não tinham portas. Lá dentro o coração romântico tornou-se-me em folgosa narina tal qual como dantes no tempo do feno; e as mãos remexiam, e o gosto supurava-me na boca tal qual como dantes no tempo da febre. Do brilho das estrelas desci ao brilho dos olhos a ponto que as estrelas me pareciam olhos e os olhos me pareciam estrelas. E ora por fim eu já não entendia senão de coxas, conchas alongadas e sedosas que terminavam justamente onde deviam terminar. Eu jurava-me cavalo e a vida toda se me jurava égua! Da cavalaria veio à luz um potro que era o nosso gosto e o nosso potro — um potro de abóbada que se concentrava todo e explodia depois em ansiedade concentrada até de novo encher a grossa abóbada... e até tombar como um balão apagado! E a lavar, a lavar as mãos, ficava vago e perdido a olhar o espelho para cá do vidro... Ia quase a adormecer com pesadíssimo sono mas faltou-me o quase, que é do tamanho da completa ausência do sono. Pus-me então a refluir em círculos concêntricos, e de cada vez recolhia mais ao centro a ponto de não saber se recolhia pois que comigo tinham também recolhido todas as coisas. Agora eram fantasmas de mim mesmo, todos os olhos, todos os narizes — as pessoas agudas e as que eram redondas do tamanho duma esfera indiferente. Só então é que o meu mar de calamidades se esfumou em doce e passou a envolver-me como a um peixe que aí soubesse nadar melhor que nenhum — como a um peixe que fosse todo o aquário em que nadasse! Tinha alcançado o delírio da [transcendência] — a posse externa pela posse interna! Com um grãozinho de loucura e esta belíssima coisa — a embriaguez — toda a existência é um rolar de patins. Tudo está no interior. A realidade é essa mesma intensidade de recolhimento ao centro. E tanto me tinha eu recolhido ao centro que do mundo de fora apenas me ouvia o barulho das próprias artérias: soavam assim como injecções de pesadelos! Soava o silêncio! Atordoado, ou não sei quê, eu estava assim como uma pequena esfera isolada no Espaço, de modo que as pancadas soavam-me não sei donde — se de cima, se de baixo; mas era sobretudo do centro que elas sovam! Abriu-se de repente a porta: era o hipercivilizado, era um fantasma, escuro como a noite que o trouxe, e os olhos encarnados de fogo longínquo. Trazia nas mãos gestos longínquos, e em todos os seus gestos um ar de gastar! Já não vinha lembrado da vida real à custa do forrado por dentro e por fora. Queixava-se sobretudo da vida do estômago, e fugia do sol curvado dentro dum envólucro enorme. A força do passado aquém do sol ardia agora como um sol de noite. Tudo tinha recolhido. Passava-se 256


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte tudo lá dentro; era a hora em que já a realidade é o pensamento! Tinham alcançado o reino da transcendência, o delírio dos fantasmas: que eram tudo fantasmas de si próprios, e vice-versa — os fantasmas de si próprio eram tudo! E que para conduzir a tão grande posse interna tanto podem servir as veredas das selvas como as ruas das cidades ultra-excitadas: o Estado Metafísico alcança-se por esses dois caminhos. Há apenas três estados: Estado Metafísico, que é a negação da Humanidade, negação do conjunto, para ser apenas a delirante afirmação do único (a impressão de ser único — o único que existe!); Estado Selvagem, que de qualquer modo é já afirmação de Humanidade, impressão de que há mais individualidades além do próprio, espécie de repouso no encosto do Múltiplo até mesmo à projecção do próprio em figura de deuses. Esta é a verdade: o Homem selvagem acredita na individualidade do cada um, não vê que o cada um é ilusão de si mesmo, criou a multidão de todos, e não contente com isso criou até as multidões dos deuses. Vem por último o Estado Civilizado, tentativa da redução do número, redução do Múltiplo começando pela redução dos deuses a um só Deus, e a acabar na redução dos homens a um só Homem com a sensação de que os outros homens são múltiplos aspectos de si próprio, fantasmas projectados de si próprio! É a delirante sensação do único! É o hipercivilizado, o monge-Tudo que alcança esse delírio da Sensação. À custa do recolhimento à sombra chega a brilhar como um sol de noite! E outra vez, da embriaguez da Existência Transcendente descende-se em espiral à vida real, à vida selvagem. Civiliza-se a caverna pouco a pouco, e ascende-se em espiral à vida do Sonho, outra vez ao Exis-Transcendente!... O meu nome é José Rotativo, o que sobe para descer por o outro lado!... E o hipercivilizado, o monge-Tudo, negro como a noite que o trouxe, psalmodiava a ventura de só no Estado Transcendente, no de lá do real, haver coisa possível: a Possibilidade! E revirava os olhos com os próprios dedos como se os seus dedos fossem torqueses e os seus olhos bolas de virar; e aguçava os dedos com os próprios dedos. Caía-lhe a língua no prato quando comia. A língua caía e desfazia-se imediatamente em língua de fogo, lavramente a fugir-lhe. E eu, solitário, naquela noite mais comprida que o escuro do interior das coisas, abraçava-o ao pescoço, encarquilhado de frenética sensação! Aquele pescoço era um tubo de cautchu, e eu horrorizado, encarquilhado de frenética sensação, arrastava-o entre os braços, de recuas, até limiar da porta em que o larguei!... E aquela cabeça recolheu ao ponto de partida e... por largo tempo baloiçou! Aquela carcaça ria, ria, igual à seriedade pavorosa que tomam para nós as risadas distantes dos que morrem!... Todo a rir-se gargalhadas de cinema assentava a mão sobre o fogão; e aquela mão derreter-se-lhe toda até ao pulso. Foi-se encostando todo a pouco e pouco, e derretendo todo a pouco e pouco até lhe ficarem unicamente os tornozelos líquidos dentro dos sapatos! Pedaços de fumo baloiçavam ainda no ar a retomar indefinidas posições. O pavoroso da noite asfixiava o cinturão do silêncio! Ouvi assobios! Aqui, e ali, e por toda a parte, flutuavam flocos de fantasmas, e ora fugiam trovões de trovoadas distantes! E cães a ladrar nos corredores das casas, com pessoas invisíveis a tossir. Desaba, entretanto, um armário de louça na cozinha tal qual como nos episódios dos livros espíritas!... À custa de suspenso por dentro e por fora, eu próprio me tinha transformado em cortiça. E derretia-me agora a quatro e quatro, todo movente, os lábios a verterem-se-me de dentro cachos de lágrimas! Passavam caixões transportados por mãos que não tinham corpos, e passavam corpos 257


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 sem cabeças e cabeças sem corpos; e eu próprio me havia contemplado em duplicado — tal como sou, e virado do avesso. Aquele que era eu virado do avesso era justamente aquele peixe que nadasse no aquário que ele fosse todo! Tinha alcançado o reino do onanismo que é entre o meu chapéu e o meu calçado! Ah, em verdade, à custa de me civilizar, à custa da sombra, ardia agora como um sol de noite!... E ora, agora, eu fazia o elogio da vida da noite, da luxúria do escangalhar universal. Quando vier o escangalhar universal eu e a minha morte estamos de acordo: vida e morte é a lata expressão da totalidade; nada pode existir ao de lá de Lá! Ai o gosto de rebolarme em dias de nuvens, embrulhado em café, e encharcado por dentro de electricidade! Como o escangalhar-se é saboroso!... Lambo com prazer as próprias chagas. A luxúria do escangalhado-mor é mais para dentro que a conjunção dos sexos. Se há diferença no caminhar dos homens, e gostosamente diferenças, é na direção do escangalhar!... E adormeci com pesadíssimo sono... A cidade tinha agora de manhã o aspecto de limpeza das casas de jogo com serradura no chão e as cadeiras em pilha. E mais o sono pesado das repartições do Estado com um pingo de água a cair no W. C.; e o escarrador de areia do contínuo. E tudo isto à volta da minha cabeça azoada, à procura dum quarto dos que vêm nos jornais para cavalheiro só, e a dona da casa absolutamente só a dizer-me com os olhos por dentro dos beiços que não havia de ser para cavalheiro só... e o pescoço a cair-lhe por cima das tetas, as tetas por cima da barriga, a barriga por cima das coxas, as coxas por cima dos joelhos, e tudo isto por cima do meu desejo enjoado a mudar de opinião com muito juízo, pôr um ponto final num fim de escândalo, desgosto-povo, com mulheres pague-cá, no Governo Civil!... E a cabeça a desmanchar-se-me em lençol de abandono. E agora na rua andavam todos tão devagar que até estavam mais gordos que na véspera — mais gordos e mais mal calçados! Engraxei o calçado, e engraxei os nervos com café! Que sabor antipático a conversas de estudantes pobres com muitas vírgulas nos ―mas‖... a dar tempo nos olhos de lhes olharmos os pés! Ai daquele que é reparável do pescoço para baixo. Ora eu tinha reparado em demasia no nó da gravata do primo do amigo do Luciano precisamente porque no primo do amigo do Luciano nada havia a reparar do pescoço para cima. Mas não há possibilidade de me lembrar do feitio das pernas ou das botas dum indivíduo inteligente; que todo aquele que derrame espírito some em penumbras as formas do seu corpo. Realmente só há fatos e botas dentro das cabeças que são já de si mesmo fatos e botas; porque não há corpos, nem fatos, nem botas, há apenas cabeças. O espírito amolda as casacas e os chapéus à sua imagem e semelhanças. Fiz uma vez psicologia diante dum cabide de chapéus, e vi coisas espantosas: um chapéu antipático classifiquei-o imediatamente de mau carácter. Dos mais inocentes havia um que coleccionava estampilhas; isto é, dedicava-se também a bugigangas eléctricas, e umas vezes por outras à descoberta do motu continuo, e às marcas de motores da aviação. Havia um chapéu que parecia um artista — um grande artista, um pintor ou um músico — mas que afinal era um aluno das Belas-Artes, dos que derramam a poeira na [caspa] de veludo preto. Havia outro que me parecia um homem de letras, mas era um aluno do Curso Superior de Letras. Havia também chapéus vadios dos que tomam café à nossa custa, chapéus velhos, e até havia um chapéu à alentejana! E mais um coco... como se o coco, pelas 258


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte rígidas formas inolvidáveis, pudesse escamotear-se ao observador. Mas quando outra coisa se não visse no coco via-se o dissimulado, o escamoteador de si próprio. Falo, é claro, da predilecção fundamental por o coco, que não da eventual que já revela outro espírito. O coco é perfeitamente igual à sotaina dos padres com a sua poderosa influência de asseio impossível e aos óculos de aro de ouro dos jesuítas, nas caras espapaçadas, gordurosas, rapadas, frias e onanísticas do clero. O coco foi sempre para mim um grave desgosto social porque eu sempre tive um grande pesar de chegar a ocupar um dia uma invejável posição social. Quando houver menos coco e for maior a bebedeira do amarelo lúcido de fogo, hão-de apagar-se as quinas da matéria, e retinintes e dormentes não mais nos saberemos do lado de fora! Mas agora por toda a parte só via cocos. Fora dos cocos estava um dia bonito e quase pardo todo a azumbir borbulhas de padeiro. Era domingo. A Cacilhas não por causa dos bêbados. Não há dúvida pró jardim zoológico. O carro não vem. Veja lá se percebe o letreiro daquele: respondeu-me que não sabia línguas. Que tinha vinte e cinco ou vinte e seis anos e que se não tinha mais é porque não queria. Perguntei-lhe o que queria: — que queria ser homem, mas que lá bigode isso é que não! E era assim mesmo; o que uma mulher quer ter dum homem é aquilo que tanto pode ser dum homem como duma mulher: pretende ser mulher de cada vez mais à custa do existir do próprio homem: quase que se é aquilo de que se gosta para ser de cada vez mais aquilo que se é. Portanto os pederastas devem ser de todos os homens aqueles que mais gostam de mulheres. Não é paradoxo; gostam tanto de mulheres que até se contentam com os homens. E, na verdade, nada há de mais semelhante a uma mulher que um homem. Aquele vício é o de tomar a imagem pelo objecto à custa do excessivo amor objecto — ficandolhes, depois, é claro, o vício da imagem. Tudo é onanismo, tudo é o vício do pelomenos! Até o gosto por uma vez incompleta é ainda o mesmo vício do pelo-menos, como me dizia um comilão de mamilos. Até o grande Amor é ainda onanismo... e, na mais remota causa... narcisismo! A vida mental, as aberrações sexuais e aquele gosto amoroso por maltrapilhos e até por mulheres com meias de seda (e muito mais por as meias que por as mulheres) é onanismo, é possuir a barriga dentro do crânio, é tomar a parte pelo todo, o objecto pela sua imagem! Nesta altura da conversa um sujeito que passava puxava um escarro a valer; mas como entre o puxá-lo e o cuspi-lo usa felizmente um intervalo que é do tamanho do escarro que se puxa, o meu Leandro, amigo do tenro, o comilão de mamilos, pôde precaver-se com a mão na boca. Mas isto é ainda uma conversa anterior àquela do Terreiro do Paço à espera do eléctrico, e admirar os pombos de São Marcos. Já lá estava no Jardim Zoológico, junto à jaula dos orangotangos, disposto a gozar a tarde de domingo ao lado da minha querida orangotango. Envergonhava a luxúria dos macacos e por sua parte disfarçava o melhor que podia. Mas isto não vai só de disfarçar! Aí, eterna, saborosa porcaria, a tessitura da carne é toda a mesma, quer pelada ou peluda! E senti-me enormemente desarreigado, a tremerem-me as pernas e os pulmões, a derreter-se-me o interior da caixa torácica — e por fim já oco e todo líquido na base, para aí descia o centro de gravidade como aqueles bonecos sempre em pé — de modo que se por acaso quisesse deitarme era sempre à vertical que tornava!... E vorazmente estendido na fome dela atiravaa para lá daquele tapume. Cada perna é um gosto, cada costela um entrecosto. Carne de alho a baixo a arder como um nervo nas mãos, segurá-la ali, quente, vibrátil, esca259


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 pulinte*, esguichadamente de cima a baixo, a consumar-se no meio, a puxar-se para cada centro de homem como um gosto de olfacto, tacto, paladar e vista, todo em redondo, por o lado de dentro em bola: língua-bola, olhos-bola a rebolar uma bola de vidro vermelho, encarnado-e-verde, transparente-luzerna a rebolar nas órbitas — mãos-bola, coxas-bola, sexo-bola, cebolada-bola, tudo bolas por dentro e por fora lubrificadas! O próprio infinito em pequeno e em grande é também uma bola em pequeno e em grande a rebolar-se em gosto doloroso de bola! Abençoado o rebolar da loucura que é por dentro e por fora o delírio duma bola! ....................................................................................................................................... . ...Mas sucedia imediatamente ficar chateado, mais vago e sozinho que um jogador da bola, mais falsete que o barulho falseado das carambolas no gosto corcovado dos espectadores do Bilhar!... e a lavar... a lavar as mãos, ficava vago e perdido, a olhar o espelho para cá do vidro!... E sempre no outro dia tinha a cidade um aspecto de pernas para o ar com o escarrador de areia contínuo. E deu positivo! E a cabeça já sem força nos pés a cair desabada em todo o redondo, a desmanchar-se em lençol de abandono na lagoa dos sifilíticos que andam pelados, amarelos e gastados, como marmelos pelados, a saborearem o farelo pesado da vida com borbulhas no coirão e no gosto, um ar de [couté]-consultório n.o 914, dor-de-cabeça andar. E a turbamulta a divertir-se chateada de noite com automóveis e outras vezes a cavalo com algodão nos urinóis de viva a República. E mais os pós d‘arnica detrás das orelhas, com a barriga a desafiar as leprosas para a sombra e a ver os sexos das crianças pequenas. E tive saudade dos caminhos velhos com sua velha crista de erva ao meio. E fui. (SAA, 2006: 258-65)

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El Lado Oscuro de la Globalización: Una lectura intertextual de El Sueño del Celta (2010) de Mario Vargas Llosa y de Congo Inc. Le Testament de Bismarck (2014) de In Koli Bofane. The Dark Side of Globalisation: An Intertextual Reading of The Dream of the Celt (2010) by Mario Vargas Llosa and Congo Inc. The Will of Bismarck(2014) by In Koli Bofane. Gilbert Shang Ndi66 Resumen: Con las novelas El Sueño del Celta (2010) del autor peruano Mario Vargas Llosa y Congo Inc. Le Testament de Bismarck (2014). en la novela del autor congoleño In Koli Bofane, este artículo subraya la pertinencia de una lectura interconectada de los textos literarios producidos desde los espacios separados, pero impulsados por las injusticias de un sistema enredado y trans-territorial - la globalización. La ponencia plantea que en estos dos textos, el sistema de globalización juega no solamente un papel temático pero también estético y estructurador. Palabras Claves: Congo, Perú, violencia, caucho, cuerpo, producción. Abstract: Through The Dream of the Celt by Peruvian author Mario Vargas Llosa and Congo Inc. The Will of Bismarck. In by Congolese author Koli Bofane‘s this article underlines the pertinence of an interconnected reading of literary texts produced in separate spaces by instigated by the injustices of an interwoven and trans-territorial system- globalization. It argues that in these two texts, the system of gloabalization does not only figure as a theme but also as an aesthetic and structuring trope. Keywords: Congo, Peru, Violence, rubber, body, production.

En este artículo, se intenta analizar la poética del exceso y de la escasez con respecto a dos nociones críticas importantes para comprender los regímenes económicos representados en las novelas de Vargas Llosa y de In Koli Bofane: la colonialidad del poder y la noción del sistema-mundo. Estas dos nociones interconectadas son importantes para discutir la violencia ligada al sistema del trabajo y de la economía, emanaciones de la herencia colonial representadas en El sueño del celta (2010) de Mario Vargas Llosa y Congo Inc. El Testamento de Bismarck (2016) de In Koli Bofane. Los dos textos, aunque separados por sus espacios geográficos y temporales, pertenecen a la misma lógica: el cuerpo del súbdito frente al cálculo económico de las potencias globales. Mientras que Vargas Llosa sondea la acumulación primitiva en la economía cauchera y sus efectos en las comunidades del Perú, en el Congo, In Koli Bofane se centra en el Congo ―posguerra‖ y la violencia económica como una continuación de la lógica colonialista 66

Profesor del Departamento de Literaturas de Lenguas Romanas/Literatura Comparada Universidad de Bayreuth, Alemania, ndishang@yahoo.co.uk 261


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elaborada en Berlín a finales del siglo 19. Congo Inc. puede ser, en este sentido, una reflexión sobre el territorio congoleño cien años después de la publicación del informe histórico de Casement sobre la industria del caucho rojo de Leopoldo II. Este territorio ha cambiado considerablemente, pero la lógica mortífera de avaricia sigue siendo válida. El exceso y la escasez en la condición (pos) colonial En su texto Transatlantic Translations (2006), el crítico peruano Julio Ortega plantea que las literaturas producidas a partir del contacto colonial en América Latina y en las islas caribeñas se pueden considerar como tentativas para saldar cuentas con la coexistencia compleja del exceso y de la escasez como la paradoja inherente a la condición colonial y su herencia. Los análisis de Ortega se basan en los cuadernos y cartas de los conquistadores y en las crónicas y escritos de los escritores mestizos de la primera generación después de la conquista como Guamán Poma de Ayala y el Inca Garcilaso de la Vega. Estos escritores desvelaban las situaciones límites experimentadas por diferentes comunidades nativas atrapadas entre la inmensa riqueza de sus tierras y la miseria impuesta por el gobierno colonial. Según Ortega, De Colombo a Guamán Poma, de las primeras relaciones a las crónicas de México y Chile, la abundancia y la escasez se interpolan mutuamente, se contrastan como dos maneras de ver y de interpretar, de traducir y de evaluar. Para el Inca Garcilaso está claro que la pérdida del sentido, aquel horizonte de la falta donde la realidad nativa se vuelve disuelta, debe ser confrontada por su reconstrucción (2006,13).

La condición fundamentalmente contradictoria de la escasez en la abundancia, característica de la primera fase de la conquista y reproducida en los sucesivos gobiernos coloniales y republicanos, se vuelve un motivo capital en las novelas latinoamericanas. Ortega describe el imaginario típico de las narrativas latinoamericanas como situado entre la ―figura de la abundancia nativa‖ y ―un súbdito víctima de esta misma abundancia transformada en la escasez y la falta‖ (2006, 29). Ello subraya que tales narrativas: Contienen una tensión particular. Ellas comienzan desde una posición retórica del jardín y del desierto en una tradición que incluye el locus amenus y las regiones del infierno. Estos pertenecen a la cultura popular milenarista con sus topos de fertilidad y de plaga, de banquete y de hambruna (2006,10). 262


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Las condiciones de precariedad que caracterizaban la vida de los nativos, yuxtapuestas con la excesiva avaricia material de los invasores colonizadores, las clases dominantes y los gamonales han dado la luz a una escritura basada en la extravagancia, la ironía, la paradoja y la representación surreal de la realidad. Por otro lado, más allá del exceso de la desigualdad material y la pobreza, que caracterizan a las clases consideradas inferiores, se debe también tomar en cuenta el exceso de la disparidad entre la realidad y el discurso colonial, entre el principio y la práctica. El exceso discursivo colonial fue evidente, sobre todo en cuanto a los principios grandilocuentes de civilización, evangelización y educación que ocultaban la realidad del sufrimiento, de desesperación y de desilusión generalizada entre las poblaciones nativas. A continuación, se analizará El Sueño del Celta (2010) y Congo Inc. El Testamento de Bismarck (2014) como dos textos cuyas éticas y estéticas se basan en la relación contigua entre el exceso y la escasez. Se plantea que la poética del exceso y de la escasez se puede aplicar no solamente en la condición histórica y en las narrativas latinoamericanas, sino que también puede reflexionar las realidades económicas coloniales y neocoloniales en otras esferas geográficas, incluyendo el caso del Congo en África. Las novelas postcoloniales en el Congo constituyen medios evocativos para la representación del pasado violento de este país y la búsqueda ardiente de un futuro de convivencia pacífica, como se observa en el caso de Congo Inc. En esta discusión, las cuestiones que se plantean casi naturalmente son las siguientes: ¿qué justifica la coexistencia flagrante entre el exceso y la escasez en los regímenes coloniales y neocoloniales? ¿Cómo se puede explicar el hecho de que las donaciones y riquezas naturales de los países postcoloniales han tenido por consecuencia una historia de violencia y de deshumanización sistemática y casi interminable? Las respuestas preliminares a estas interrogaciones invitan a tomar en cuenta dos principios teoréticos que han explicado el régimen laboral en un mundo globalizado: la colonialidad del poder y el sistema-mundo. La colonialidad del poder La colonialidad del poder es un concepto propuesto y desarrollado por el sociólogo peruano Aníbal Quijano que constituye también la base de las obras teoréticas y analíticas de autores como Walter Mignolo, Enrique Dussel y Nelson Maldonado-Torres. La colonialidad del poder hace 263


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referencia a los tipos de relaciones del poder entre los europeos y los ―otros‖ (indígenas latinoamericanos, asiáticos y africanos) que surgieron de la conquista basados en los preconceptos raciales y sus implicaciones prácticas en la organización del sistema colonial. Sin embargo, la colonialidad no se limita a la época colonial, sino caracteriza también las relaciones de poder entre fuerzas políticas más allá de la colonización stricto sensu. En su obra, La Idea de América Latina, Walter Mignolo elabora las diferentes dimensiones de la colonialidad del poder en los términos siguientes: La lógica de colonialidad se puede comprender a través de cuatro campos generales de la experiencia humana: (1) la apropiación económica de la tierra, la explotación del trabajo, el control de las finanzas; (2) el control político: control de la autoridad; (3) el cívico: control del género y de la sexualidad; (4) el epistémico y el subjetivo/personal: control del conocimiento y de la subjetividad (2005, 11).

Estos cuatro funcionan de manera muy interconectada y se influyen mutuamente. Mignolo considera el factor económico/laboral como primordial en la colonialidad del poder. La conquista colonial fue, antes que nada, motivada por el beneficio económico y todos los conceptos raciales fueron galvanizados como medios para alcanzar esta meta. A través de los medios laborales, la violencia colonial fue normalizada y se tornó una realidad permanente de la vida indígena. El carácter primordial del factor económico es subrayado por Aníbal Quijano cuando plantea que: El enorme genocidio de los indios en las primeras décadas de la colonización no fue causado principalmente por la violencia de la conquista ni por las plagas traídas por los conquistadores, sino porque los indios americanos fueron utilizados como mano de obra desechable y forzado a trabajar hasta la muerte (2008:186).

Por consiguiente, la colonialidad del poder surgió en las condiciones laborales no basadas en la remuneración proporcional, dado que la vida de los indígenas, considerados como infrahumanos, tenía solo un valor económico. El trabajo no fue considerado como una elección liberal del trabajador, sino como una deuda existencial pagada por una raza a la otra para su integración en le modernidad occidental. La realidad es que al principio de la colonización los europeos habían vinculado el trabajo noremunerado con las razas dichas inferiores. En una discusión en torno a la organización laboral como parte de la violencia estructural, Aníbal Quijano plantea lo siguiente: 264


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Este fue basado, sobretodo, en la casi-exclusiva asociación del hombre blanco con los salarios y, por supuesto, con las posiciones de jefe en la administración colonial. Por eso, cada forma del trabajo fue ligada con una raza específica. Por consiguiente, el control de una forma específica del trabajo significaba, al mismo tiempo, el control de un grupo específico de las poblaciones dominadas (2008, 185).

El control del trabajo implicaba la regulación del conducto económico, social y cultural. En algunos casos, la nobleza indígena fue excluida de los aspectos más cruentos del sistema laboral colonial (Quijano 2008, 184). Por eso, ellos fueron los vectores principales en el reclutamiento de sus poblaciones en los campos de trabajo. El trabajador fue considerado como entidad desechable, asimilado al orden de las cosas, sin ningún derecho humano ni tratamiento digno. Oficializado en su forma más brutal en la economía esclavista, la colonialidad del poder/trabajo sobrevive bajo diferentes formas en el régimen actual del sistema neoliberal. (Quijano 2008, 185). En la economía moderna mundial, las diferencias en torna a los pagos y la exposición de algunas poblaciones a las condiciones mortificadoras del trabajo son pruebas latentes de la lógica persistente de la colonialidad del poder y del trabajo. Roger Casement frente al sistema laboral colonizador y al trauma del sistema civilizador El Sueño del Celta es una novela biográfica/histórica sobre la vida del diplomático británico del origen irlandés, Roger Casement. Vargas Llosa traza con detalles los viajes de Roger Casement en el Congo y después en el Putumayo (entonces parte del Perú amazónico) para investigar las acusaciones de prácticas deshumanizantes en las plantaciones de caucho, en una época donde este producto conocía un boom de producción debido a la fuerte demanda por las compañías de llantas de bicicletas y de carros en Europa y en Norteamérica. Después de publicar sus informes, que tenían por efecto la movilización de la sociedad civil británica y mundial contra los regímenes empresariales en los dos espacios, Casement se radicalizó gradualmente en su adhesión a la causa independentista irlandesa. Desafortunadamente para él, esta causa fue aplastada por el gobierno británico y Casement (tal como otros protagonistas del movimiento) fue ejecutado en 1916. Mientras tanto, su nacionalismo irlandés y su homosexualidad provocan, hasta el día de hoy, todo tipo de controversias. Sin embargo, es cosa irrefutable el rol de Roger Casement en la caída de la 265


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empresa Peruvian Amazon Company de Julio César Arana en el Putumayo y en la retirada del rey belga Leopoldo II de su imperio personal en el Congo. La novela de Vargas Llosa restablece el legado de Casement como uno de los grandes luchadores contra la violencia del sistema laboral colonial a un nivel transcontinental, a pesar de sus contradicciones personales. Al mismo tiempo, mientras que respeta la línea histórica de la vida de Casement, Vargas Llosa toma la libertad novelística para infundir más vivacidad y expresividad a una situación histórica bastante lejana. Esto recrea las condiciones psicológicas de los personajes en circunstancias específicas, con libertad de imaginación y de expresión. El diario de Casement le ofrece un medio de expresión adecuado para describir las condiciones inhumanas en Putumayo y en el Congo. Entonces, la intimidad con la que Vargas Llosa relata la frustración de Casement transgrede el modo casi glacial y distanciado de la comunicación diplomática que debería normalmente caracterizar la expresión de un cónsul. En otras palabras, el Casement vargasllosano es presentado más como un ser humano agonizando por la cosificación del ser humano en razón de la codicia insaciable de las manos de este mundo que como diplomático/cónsul. Las opciones narrativas elegidas por Vargas Llosa dan un sentimiento de actualidad a los episodios de violencia que relata Casement, gracias a la compresión de tres temporalidades distintas: el tiempo de testimonio de los hechos, el tiempo de la escritura de la novela y el tiempo de la lectura. El autor presenta la reacción emotiva de Casement frente a los testimonios, no como un signo de debilidad, sino como la capacidad de sentir de Casement, calidad que les falta a Leopoldo II, a Julio César Arana y a sus ayudantes, para quienes la piel blanca es un símbolo del libertinaje en el espacio colonial. Casement teme volverse loco si continúa su investigación en el Congo o, al contrario, que podría volver a considerar estas prácticas violentas como normales (70). En Putumayo, sufre depresión después de sus visitas a las estaciones de La Chorrera, Occidente y Matanza, al punto de perder el equilibrio mental (146). Sus anteriores experiencias en el Congo no le han permitido aceptar el choque de la violencia y cada situación de tortura contra los indígenas lo llena de una agonía existencial. Establece, entonces, una conexión entre las condiciones de trabajo en el Congo y en el Putumayo, a pesar de la distancia que separa a los dos: Pese a estar tan lejos, pensó una vez más Roger Casement, Congo y la Amazonia estaban unidos por un cordón umbilical. Los horrores se repetían, con mínimas variantes, inspirados por el lucro, pecado original que acompañaba 266


Todas as Musas – Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte al ser humano desde su nacimiento, secreto inspirador de sus infinitas maldades. ¿O había algo más? ¿Había ganado el diablo la eterna contienda? (97)

No encuentra respuestas ciertas a estos cuestionamientos retóricos. La ironía subyacente a este texto es que el tratamiento del indio amazónico en el Perú independiente no se distingue del maltrato del negro en el Congo colonial. Aquí hay un punto importante que se debe subrayar en los trabajos comparativos entre estos dos continentes: el margen ancho de diferencia en la temporalidad (post) colonial entre los dos continentes. Aunque las prácticas de hegemonía, de otredad y de marginalización en algunos contextos se relacionan, estos fenómenos se realizan en temporalidades asimétricas en la historia de los dos continentes. Mientras tanto, la temporalidad impuesta por el régimen del imperialismo económico queda el factor armonizador, cuya lógica conecta a estos dos espacios. El sistema de producción en Putumayo se realiza en un espacio donde el diktat de las ganancias supera todas las otras consideraciones. Armando Normand, el jefe de estación de las Matanzas mata, estrangulando personalmente, a los indios Andoques por no cumplir sus cuotas de caucho (141). La crueldad de Normand está motivada por el hecho de que él recibe veinte por ciento del exceso de producción en su estación. Si la producción del año en curso supera aquella del año anterior, gana dos cientos chelines más su salario (150). La política de otorgar primas a los jefes de estaciones y a los capataces barbadenses los empuja a imponer tasas inalcanzables a los indígenas para conseguir la más alta producción cauchera posible. En la estación de Occidente, por ejemplo, las autoridades manipulan la escala de medición, de tal manera que ninguna cantidad de caucho es suficiente para cumplir las cuotas impuestas. Cuando Casement y Seymour Bell miden sus respectivos pesos con esta escala, se dan cuenta de que miden mucho menos que sus pesos normales (137). Este método fraudulento es reminiscente del mismo fenómeno en la novela La Ciudad Cruel (1953) del autor camerunés Eza Boto67 sobre el régimen económico francés en Camerún. Cuando el protagonista del texto, Banda, lleva cacao para venderlo a la empresa colonial, los agentes franceses pretenden que el cacao no sea de buena calidad. Pretenden quemarlo, pero lo quemado no es en realidad el cacao declarado de mala calidad, es una farsa para engañar al nativo. Banda, huérfano de padre, desea casarse ante todo para satisfacer a su madre, quien siente venir su muerte, pero la falta de sustento económico 67

Pseudónimo de Alexandre Biyidi, mejor conocido como Mongo Beti (otro pseudónimo suyo). 267


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no se lo permite. Contra el peso y las intrigas de los colonialistas, el súbdito no podía hacer mucho para defender sus derechos. En el Congo, Casement se percata de la terrible relación entre las riquezas naturales en los territorios indígenas y el fenómeno del genocidio que caracteriza a la empresa colonial y sigue caracterizando al régimen neoliberal: Roger Casement se dijo muchas veces que si había una sola palabra que fuera la raíz de todas las cosas horribles que ocurrían aquí, esa palabra era codicia. Codicia de ese oro negro que, para desgracia de su gente, albergaban en abundancia los bosques congoleños. Esa riqueza era la maldición que había caído sobre esos desdichados y, de seguir así las cosas, los haría desaparecer de la faz de la Tierra. A esa conclusión llegó en esos tres meses y diez días: si el caucho no se agotaba antes, serían los congoleños los que agotarían con ese sistema que los estaba aniquilando por cientos y millares. (61)

El pasaje subraya una ecuación importante en la poética del exceso y la abundancia en el contexto de economía de explotación neoliberal. Según la lógica capitalista, la coexistencia de la población indígena con la enorme riqueza natural es incompatible. Cuando eso ocurre, la solución es muy simple: la población debe perecer en el proceso de la explotación para satisfacer la codicia capitalista. La abundancia del caucho se vuelve la causa de la escasez en la sociedad indígena, la escasez de los productos de subsistencia y, por siguiente, la hambruna en territorios donde la naturaleza siempre ha sido generosa. La muerte es un componente imprescindible del sistema económico capitalista, la manifestación más visible de la colonialidad del poder. De acuerdo con la lógica de las plantaciones caucheras, la muerte es parte integral de la vida indígena dado que sus cuerpos solo tienen valor con respecto a la cantidad del caucho que generan bajo la presión amenazante de los gerentes, los coaccionaros y los jefes de estaciones. En este sistema regido únicamente por la lógica de las ganancias, la muerte de los nativos no suscita ningún remordimiento, sino una confirmación de la omnipotencia de la raza blanca. Congo Inc.: El Testamento de Bismarck y la Violencia de la Globalización La novela toma lugar en el Congo en el siglo XXI, dado que bastantes episodios evocados en el texto son reminiscentes del pasado próximo de este país, tales como la segunda guerra congolesa (1998-2002) y la formación del gobierno de transición de 2002. Sin embargo, un aspecto 268


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importante de la novela es su alcance histórico y globalista. La novela está escrita con una mirada a la trayectoria histórica de una nación congoleña llena de dolor y de horror. La dimensión histórica del texto se ve al nivel más obvio en el subtítulo del texto: El Testamento de Bismarck. La imagen del Congo contemporáneo se concibe por siguiente como la voluntad del antiguo canciller alemán, el Príncipe Otto von Bismarck, quien organizó la famosa conferencia de Berlín en 1884, donde el territorio congolés fue reconocido como propiedad personal del rey belga Leopoldo II. Sin embargo, este reconocimiento tenía una retribución importante: Leopoldo II debía abrir este territorio a los otros poderes coloniales para la práctica del libre comercio. Aunque el respeto de esta condición por Leopoldo II fue mínima, el Congo fue convertido en un espacio generador de los productos imprescindibles para la mercancía global, no necesariamente en interés de su población. En El Sueño del Celta, el sistema de producción en el Congo sacrificaba las vidas de millones de nativos para servir la codicia del rey belga y al sistema neoliberal mundial. La novela de In Koli Bofane trata de un muchacho medio-pigmeo de veintiséis años llamado Isookanga, quien deja su pueblo selvático para aprovechar las oportunidades de la globalización en la ciudad capital, Kinshasa. La globalización le parece no solamente una palabra de moda sino una oportunidad concreta que le va a permitir liberarse de la pobreza de su aldea natal para enriquecerse lo más rápidamente posible. Sin embargo, en Kinshasa, el protagonista se encuentra en medio de un mundo cruel y sin consideración. Para tener éxito, debe ensuciarse las manos. Estamos en una narrativa de ―posguerra‖ llena de los shegués (los sin domicilio fijo), niñossoldados, políticos corruptos y soldados de la misión de paz de Naciones Unidas involucrados en explotaciones sexuales. A través de las desaventuras y los desencuentros de Isookanga en Kinshasa, el escritor nos pone frente a la memoria histórica de una nación destruida por la explotación y saqueada por guerras, según parece, sin fin. El Congo se presenta como un territorio hipotecado de antemano a través de pactos ilícitos, de redes ocultas y de obligaciones secretas de un sinnúmero de peones internos y regionales. A pesar de su tonalidad humorística, Congo Inc. es la historia de la avaricia deshumanizante enterrada en un proceso globalizador, cuyos ganadores no son los pobladores locales sino los empresarios de la mercancía mundial. Desde la conferencia de Berlín en 1884, en el Congo deviene la fuerza locomotriz de la economía neoliberal. En la epigrafía de esta novela, Bofane cita una frase del canciller Bismarck en la conferencia de Berlín (1884-5) cuando presagió: ―El nuevo estado del Congo está destinado a ser uno de los más importantes ejecutantes de la obra que queremos 269


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realizar…‖. La pregunta lógica a esta afirmación de Bismarck sería: ¿cuál es la naturaleza de este proyecto que los líderes europeos de aquella época querrían realizar en el Congo? ¿Por qué un territorio africano debió estar sujeto a cualquier proyecto extranjero? Las respuestas a estas preguntas no son definitivas, pero el rol de el Congo en el neoliberalismo provee algunas pistas de reflexión. Según la declaración de Bismarck, se entiende que el rey belga no fue más que un representante del espacio congolés concebido como un proyecto conjunto por las potencias europeas. De la misma manera, Bélgica, en el Congo colonial y poscolonial, no ha sido más que una pasarela para diferentes intereses occidentales. La novela de Bofane utiliza los sucesos del presente como un túnel para observar el juego de interés de las diferentes potencias en el Congo, lo que ha convertido este país en un sangriento campo de batalla de intereses ocultos a niveles regional, nacional y global. Aunque la globalización se concibe de manera idealista, como sinónimo de oportunidad, del intercambio comercial e intercultural y de prosperidad, sus materializaciones, en algunas partes del mundo, siguen las líneas de desigualdades en relación de poder, cuyos fundamentos se sitúan en la larga historia del colonialismo con sus rasgos de violencias estructurales enraizadas (Quijano 2008: 181). En uno de los pasajes de este texto, el narrador establece un paralelo entre la situación en el Congo y el ―algoritmo‖ de la globalización a través de diferentes momentos históricos: Durante la guerra fría, el algoritmo queda quemante. El combustible garante de su buen funcionamiento podría también ser constituido por seres humanos. Los guerrilleros de Ngwaka, Mbunza, Luba, Basakata o Lokele de Mobutu como punta de lanza en los campos de batalla de África, iban a derramar su sangre desde Biafra hasta Aouzou pasando por la Front Line – frente a Angola y Cuba -, en Ruanda del lado de Biyumba, en 1990. Los consumibles humanos podían también tomar parte en las tareas innobles de Bismarck. Congo Inc. fue recientemente nombrado como vector de la globalización, responsable del espacio, de la fabricación de armas sofisticadas, de la industria petrolera y de la producción de materia de telecomunicación high-tech. (272)

El narrador representa la historia nacional del Congo como parte de la historia del neoliberalismo y la carrera armamentista de las potencias globales. Debido a su situación geográfica y a la riqueza de su subsuelo, el Congo se volvió una de las fronteras de la lucha ideológica entre la Unión Soviética y los Estados Unidos y sus aliados europeos. En el Congo, esta confrontación se resolvió con el asesinato del primer ministro ejecutivo congolés democráticamente elegido, Patrice Lumumba, por los neocolonialistas belgas y la CIA. Así, se abrió la puerta para un largo 270


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periodo de colaboración entre el dictador Mobutu Sese Seko y sus aliados occidentales, dado que el Congo es un gigante mundial en recursos minerales y en elementos cruciales para la fabricación de las armas letales, incluso la bomba atómica. Congo Inc. (abreviación de ―Congo Incorporated‖), el título de la novela, designa un territorio nacional transformado en una gran empresa por diferentes fuerzas internas, regionales e internacionales, bajo pactos sospechosos hasta con señores de guerra con manos manchadas de sangre. Respecto al papel central de los minerales del Congo, Renton et al afirman que: Su economía mineral en particular creció muy rápidamente en la época que Europa contemplaba la guerra. Gran parte de sus recursos naturales fue necesaria para la manufactura de las municiones. Mientras tanto, el desarrollo de la industria aceleró la necesidad de reformas sociales (2007: 58).

El destino del Congo se encuentra involucrado en procesos globales de una manera trágica. Esta novela deconstruye la idealización de la globalización, desvelando las condiciones inhumanas en este territorio, donde las materias primeras y los minerales son producidos para galvanizar la globalización y la militarización del mundo. El sistema neoliberal es indiferente al grito de aquellos ―consumibles humanos‖, y a los daños colaterales hacia los congoleños que resultan de la competencia brutal entre múltiples redes locales y regionales para asegurar las ofertas de los minerales a sus socios externos. En esta novela, el señor de guerra, Kiro Bizumungu juega un papel importante. Su banda es responsable de crímenes atroces en Norte Kivu. En una analepsis, el narrador ilumina su trayectoria como guerrillero al este del Congo. Bizimungu se involucró en el pillaje cuando pertenecía a la milicia Banyamuelenge (originarios de Ruanda que viven en el este del Congo) que combatía en contra de los rebeldes Hutus y las fuerzas de defensa civil, los llamados milicianos Mai-Mai. En esta guerra, Bizimungu amasa una inmensa riqueza vendiendo minerales a las multinacionales y también a los miembros de la fuerza de preservación de la paz enviados por las Naciones Unidas. En retribución, sus socios le proveen de armamientos para continuar con la guerra. Haciendo una cartografía de la región de Ituri, en el este del Congo, donde combatió Bizimungu, el narrador señala que: Esta parte del Congo se volvió una zona de non-derecho donde el cuerpo humano se cortaba como si fuera la carne en un matadero. Allí solo reinaba el polvo. Aquellas personas nacidas en la región debían saber que sus campos, sus casas, sus mujeres, estaban a disposición de los nuevos conquistadores y 271


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 de las multinacionales que trabajaban en el sector de la tecnología avanzada y de minas… (80).

La representación de Ituri en este pasaje es muy parecida a aquella hecha por Renton et al cuando afirma que: ―Ninguna región simboliza el saqueo en el Congo en los cinco años pasados con la misma eficacia que Ituri. Esta provincia es al fondo una creación de la guerra, dado que obtuvo su independencia solo en 1999… rico en oro, coltan y en madera‖ (Renton et al 2005: 196). En esta zona, existe una relación simbiótica entre las multinacionales y los señores de la guerra, quienes tienen la tarea sucia de la limpieza étnica para liberar los territorios, mientras que las multinacionales corruptas llevan a cabo la explotación. Los perdedores eternos en esta situación son los congoleños desplazados por sucesivas guerras, sin ninguna posibilidad de conseguir la seguridad básica para la sobrevivencia de sus familias. Las provincias de Norte y Sud Kivu en la región son sintomáticas de la paradoja de la escasez y del exceso como producto de una economía de guerra: ―Kivu representaba la violencia pero también la riqueza en profusión‖ (183). Según una misión de investigación de las Naciones Unidas, la explotación ilícita de los recursos minerales al este del Congo se evalúa en $1.25 billones por año. Las condiciones en las que la explotación ocurre son muy similares a la esclavitud. En el caso de Katanga, ―cada minero gana unos dos o tres dólares al día. La mayoría trabaja sin los vestimentos protectores ni equipos y buen número de ellos mueren cada día en accidentes evitables‖ (Turner 2007:48). Una comisión de Naciones Unidas para analizar el papel de las multinacionales en la guerra en el Congo publicó la lista de 100 compañías que siguen comprando el oro, diamante, coltan, cobalto y otros minerales ‗de sangre‘, en contravención a las reglas vigentes del comercio internacional. La mayoría de estas empresas provienen de naciones como Reino Unido, Estados Unidos, Bélgica, Sud África, Gana, Suiza, Canadá, Zimbabue, Emiratos Árabes Unidos y el Congo mismo.68 Entonces, los nuevos centros de la economía globalizada han entrado también en este espacio congolés que sigue siendo, de diferentes modos, el espacio donde los cálculos económicos siempre predominan a las consideraciones éticas. Irónicamente, la mayoría de las empresas pertenece a los países involucrados en los diferentes procesos de paz en el Congo,

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―Annex 7 of UN Security Council. Final Report of the Panel of Experts on Illegal Exploitation of Natural Resources and Other Forms of Wealth of the Democratic Republic of the Congo, October 2002.― 272


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quienes al mismo tiempo no hacen bastante presión para que estas empresas respeten las normas internacionales y así eliminar o por lo menos bajar el nivel del tráfico clandestino por parte de los señores de la guerra. En este texto, hemos analizado dos novelas que tratan la violencia en Perú y en el Congo a través de estilos narrativos y de temporalidades diferentes. Nuestro enfoque principal ha sido la dimensión laboral de la violencia en un mundo globalizado que siempre está menos analizado en comparación con el aspecto puramente político de este fenómeno. La teoría de la colonialidad del poder planteada por Quijano fusiona lo económico con lo político de la violencia, representada en las obras mencionadas de Vargas Llosa e In Koli Bofane. Los dos textos se pueden considerar como Bildungsroman, novelas de aprendizaje, en las que dos protagonistas idealistas toman consciencia progresivamente de las realidades oscuras detrás de los discursos románticos de la civilización y la globalización. Casement deja el Reino Unido lleno de esperanza, pretendiendo llevar la luz de la civilización europea a África. Sin embargo, su experiencia en este país y ulteriormente en el Putumayo va completamente en contra de sus preconceptos primordiales. Isookanga deja su aldea remota para experimentar la globalización en la ciudad capital del Congo. Allí descubre el lado oscuro de la globalización y el papel ambiguo que juega su país en este fenómeno. En los dos casos, la civilización y la globalización ocultan crímenes de responsabilidad en un orden económico en donde lo puramente material tiene ascendencia sobre lo humano. Bibliografia Bofane, In K. Jean. Congo Inc.: Le Testament de Bismarck. Pa: Babel, 2014. Boto, Eza. Ville Cruelle. Paris: Présence Africaine, 1954. Llosa, Mario Vargas. El Sueño del Celta. Lima: Santillana, 2010. Ortega, Julio. Transatlantic Translations: Dialogues in Latin American Literature. Trad. Philip Derbyshire, London: Reaktion Books, 2006. Quijano, Aníbal. Coloniality of Power, Eurocentrism and Latin America. Coloniality at Large: Latin America and the postcolonial Debate. Eds. Mabel Moreña et al. Duke, Duke University Press, 2008. pp. 181-225. Renton, David et al. The Congo: Plunder and Resistance. London/New York: Zed Books, 2007. Turner, Thomas. The Congo Wars: Conflict, Myth and Reality. London: Zed Books, 2007. Walter D. Mignolo. The Idea of Latin America, Malden: Blackwell Publishing, 2005. 273


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Manuel bandeira: a poesia no beco Manuel bandeira: poetry in the alley Jean Pierre Chauvin69 Resumo: ―Poema do Beco‖ é uma das composições mais enigmáticas de Manuel Bandeira. Ele revela um poeta menos otimista, frente a sua outrora entusiasmada relação com o movimento Modernista. Marcado pela absoluta concisão, o poema revela muitos sentidos, cuja interpretação pode ser favorecida pela análise de seus elementos fonéticos, em especial. Esta leitura recupera a contribuição de diversos ensaístas que se dedicaram ao estudo da poesia, com destaque para Antonio Candido de Mello e Souza, Davi Arrigucci Júnior e Alfredo Bosi. Espera-se averiguar em que medida o poema reflete diferentes perspectivas a respeito da cidade, percebida tanto como cenário de idealização quanto espaço de intervenção. Palavras-chave: Manuel Bandeira; Poema do Beco; versificação. Abstract: ―Poema do Beco‖ its one of more enigmatic Manuel Bandeira‘s compositions. It reveals a poet less optimistic in his past and enthusiastic relation to the Modernism movement. Marked by an absolute conciseness, the poem shows many senses whose interpretation may be favored by analysis of their phonetic elements, in particular. This lecture recovers the contributions by various essayists whom have been dedicated to the poetry‘s study, especially Antonio Candido de Mello e Souza, Davi Arrigucci Júnior e Alfredo Bosi. It intends to examine in such measure this poem reflects different perspectives concerning the city, realized as an idealized scenery such as an intervention space. Keywords: Manuel Bandeira; Poema do Beco; versification.

Em memória de Joaquim Alves de Aguiar Contrastes Em 1984, Antonio Candido de Mello e Souza publicou um livro conciso e didático que continha seis análises de poemas de escritores brasileiros, situados em um dilatado tempo histórico (e ligados, portanto, a diversos movimentos de nossa literatura). Dentre os estudos compilados pelo crítico, ―Carrossel‖ é uma sensível e percuciente análise do poema ―O rondó dos cavalinhos‖, de Manuel Bandeira, escrito na década de 1930. Uma das conclusões de Antonio Candido era de que, naquele poema haveria ―um cruzamento de ações e tributos, que no plano semântico suscita uma contradição, cuja existência já estava inscrita pelo ritmo no plano estrutural‖ (MELLO E SOUZA, 1993, p. 73). Isto é, o aspecto material (significante) do poema refletiria o contraste que também acontecia no nível do significado.

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Professor de Cultura e Literatura luso-brasileira na USP. 275


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Acompanhando de perto o método analítico de Antonio Candido, a intenção deste artigo é propor uma leitura de ―Poema do Beco‖, que, a exemplo de ―O rondó dos cavalinhos‖, integrou a mesma coletânea Estrela da manhã, publicada em 1936. ―Poema do Beco‖ é um dos textos mais breves de Bandeira, considerando-se a numerosa produção legada pelo poeta. Lembremos que ele se compõe de título e um dístico, que dizem o seguinte: POEMA DO BECO Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco.

Escrito em 1933, quando Bandeira beirava os cinquenta anos, a composição esperou até 1936 para ganhar as páginas do livro. Informação das mais relevantes, o compêndio reunia poemas das formas mais díspares e assinalava o segundo estágio do poeta pernambucano – já amadurecido pelo vendaval sociocultural e estético do primeiro Modernismo. Desde sempre, o escritor fora identificado por seu alto grau de refinamento; pela forma discreta e despretensiosa com que tratava as matérias mais diversas. Segundo Alexei Bueno, o volume: [que foi] publicado em uma tiragem mínima para subscritores, e ornado com uma gravura de Portinari, no ano de seu cinquentenário, representa uma espécie de momento fulcral, de ponto de gravidade de toda sua obra, fase que se estenderá sem alteração até o livro seguinte, Lira dos cinquet‘anos. (BUENO, 2007, pp. 292 – 293).

A crítica se mostra praticamente unânime ao afirmar algumas características a respeito da longa produção de Manuel Bandeira: 1) foi um poeta de notável talento (e menor alarde) que os demais modernistas, especialmente se comparado aos companheiros da chamada Primeira Fase do movimento; 2) tendo ele navegado entre o Simbolismo e o Modernismo, transformou o cotidiano em matéria poética, num de meio de sutileza, sensibilidade e técnica que contagiaram fortemente a poesia de Carlos Drummond de Andrade, para citar um dentre os herdeiros de Bandeira; 3) foi um escritor igualmente hábil, tanto na composição de sonetos quanto nos poemas de formas soltas, recheados de versos brancos e livres. De início, poderíamos empregar a ―Poema do Beco‖ a análise que Cláudia de Arruda Campos dedicou a ―Peregrinação‖ (Lira dos cinquent‘anos), um poema que tem ―no tecido sonoro e, particularmente, em certas ocorrências gramaticais, as chaves que apontam, para além da 276


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superfície, o tom, a atitude do eu lírico diante do tema‖ (CAMPOS, 2001, p. 11). Especialmente nesses versos, a concisão constitui um elemento a refletir o aparente emudecimento do poeta, o que se manifesta na própria composição do dístico. À extensa pergunta em verso bárbaro, numericamente falando, pospõe-se uma brevíssima resposta. Para Nara Foresti: O contraste marcado no ―Poema do Beco‖, entre o que oferecia a janela (a beleza do cenário carioca) e o que retinham os olhos (o beco), aproveita, para desenvolver-se, da condição contraditória do espaço, a Lapa: zona de prostituição cercada pelas paredes conventuais. Além disso, o dístico que forma o poema condensa muitos outros contrastes e significados, mostrando o seu poder de ―síntese‖ (FORESTI, 2000, p. 144).

Refletindo-se na estrutura do poema, é como se o segundo verso compensasse, em sentido, som e brevidade, o acúmulo de informações, a reprodução do senso comum, o aparente destempero do primeiro. Os versos estão marcados por sonoridades um tanto diversas. No primeiro, o acento recai especialmente nas vogais o (duas abertas; duas fechadas) e i. Além disso, o a aparece em nove dos treze termos que constituem a indagação. Na resposta, sugerida pelo segundo verso, ―ouvimos‖ mais as vogais /e/ e /o/ [u]. Lá, temos sete palavras, sendo que o e aparece em cinco delas: uma vez, apenas, como vogal aberta: é – precisamente o segundo verbo. Ao lado das recorrentes vogais há duas aliterações, provocadas devido à repetição das surdas ―p‖ e a sucessão das nasais ―m‖ e ―n‖, no primeiro verso. No verso de resposta, o efeito sofre sensível mudança. Ele é, de um ponto de vista sonoro, mais ―seco‖ que o primeiro: vem pontuado pela presença, uma única vez, de diversas consoantes (q, v, j, b e c). Em meio às assonâncias, percebem-se dois movimentos: a) a oposição entre as vogais abertas e fechadas; b) a alternância entre sons longos e breves. Algo de análogo se dá no manejo das consoantes pelo poeta: a) intercala-se a rigidez (provocada pelas surdas e linguodentais) e a brandura, esta acentuada pelas sílabas alongadas com as nasais. Pode-se dizer que o primeiro verso é mais longo, solto e derramado, enquanto o segundo se constitui como brevidade e síntese – e que não se limita ao enunciado poético. Em outras palavras, à distensão do verso inicial em palavras e imagens se opõe a contenção emocional do segundo. À visão algo idealizada e comumente aceita, da paisagem urbana, contrapõe-se a objetividade do mundo, ao menos como ele era percebido pela persona 277


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poética. Dito de outro modo: São dois versos apenas e que contrastam entre si pela extensão e pelo tema. O primeiro, longo, fala daquilo que é vasto (a paisagem, a baía, a linha do horizonte). O segundo, curtíssimo, fala do beco. O contraste na extensão dos versos é muito útil e tem força expressiva: verso longo, para tema ―longo‖, verso curto para tema ―curto‖ (PEREIRA; ZAMPIERI, 2007, pp. 1 – 2)

Ciente da mudança de tom, som e ritmo, entre um verso e outro, o poeta distancia-se de sua habitual candura. No verso/resposta (em sua reduzida métrica), a brusquidão converte-se em um expediente a conferir maior sentido ao título e enunciado, como um todo. A aparente rudeza com que o poema é concluído pode denotar a aversão do eu lírico a determinadas frases comuns, longas e pomposas, recorrentes no vocabulário de um leitor cuja perspectiva da paisagem fluminense fosse divorciada do dado concreto. Manifesto Em lugar da cidade/espetáculo, a reflexão em torno da concretude. Mais que forma e encanto, no beco da Lapa mal cabe a cidade grande e o cotidiano, ainda que apequenado. Repare-se que a pergunta que o eu lírico faz (para si mesmo? para nós?) é iniciada pelo incisivo par Que importa. De início, o leitor tende a tratá-lo como poema/enigma; depois, como um poema em tom de protesto. Protesto, manifesto contra o quê – pode-se perguntar? Contra o discurso extenso e oco eivado de senso comum, dos seres pouco acostumados à densidade das coisas mais óbvias. Posicionamento contra a noção geral que se apropria artificialmente dos elementos da paisagem urbana, idealizandoa: abstração até certo ponto mistificada pelos próprios habitantes da capital do país, na virada para a Nova República. Ou manifesto em prol de uma perspectiva mais realista, rente ao solo e refratária à visão romanceada, idealizada e altaneira dos demais leitores da cidade. O poema dá voz à solidão do(s) homem(ns) e desnuda as contradições da cidade do Rio de Janeiro: capital de solenidade e carnaval; de natureza e ilusão. Neste ponto, seria oportuno lembrar que Manuel Bandeira nasceu no Recife (1886) – ―Recife sem história nem literatura/Recife sem mais nada/Recife da minha infância (1925)‖ (BANDEIRA, 1993, p. 134) - e veio para o Rio de Janeiro na adolescência. 278


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Apesar de sua longa e renhida luta contra a tuberculose, declarada em diversos versos, o poeta viveu longos anos (1968). Ele foi jornalista e tradutor; também lecionou Português no tradicional Colégio Dom Pedro II – estabelecimento onde ele mesmo concluíra seus estudos, quando chegara à capital. Além disso, chegou a lecionar Literatura Hispano-americana em nível superior. Acresce que o poeta também foi músico, o que provavelmente contribuiu para a complexa sonoridade de seus versos. Outro dado relevante, em especial no ―Poema do beco‖, é que Bandeira residiu boa parte da vida em hotéis ou casas alugadas. Esse fato parece atestar a sua reconhecida ―simplicidade‖ e o caráter prosaico de sua poesia, de que fala Davi Arrigucci (1990). Recorde-se que, em 1932, um ano antes de escrever ―Poema do Beco‖, Manuel Bandeira deixa uma casa no bairro do Curvelo, para se ―meter num apartamentozinho de quarto e banheiro à rua Morais e Vale‖ (BANDEIRA Apud FORESTI, 2000, p. 138). Esse elemento biográfico é constantemente mencionado em sua obra. No já citado Lira dos cinquent'anos há uma ―Última canção do beco‖, escrita em 25 de março de 1942. Trata-se de evidente releitura dos versos publicados em Estrela da manhã: Beco que cantei num dístico Cheio de elipses mentais, Beco das minhas tristezas, Das minhas perplexidades (Mas também dos meus amores, Dos meus beijos, dos meus sonhos), Adeus para nunca mais! [...]

Retomemos o ―dístico/Cheio de elipses mentais‖, conforme o descreveu o próprio Bandeira. Em ―Poema do beco‖, a pergunta em forma provocativa antecipa a resposta da mesma voz: O que eu vejo. Que importam os devaneios alheios, a visão panorâmica, a confirmar a ―cidade maravilhosa‖, timbrada nas marchinhas de carnaval da época? O que eu - (indivíduo) posso ver ou permito-me ver – vejo é o beco. O eu lírico parece argumentar: ―– A minha realidade é de contraposição ao lugarcomum repetido pela coletividade deslumbrada, que de tudo ver nada enxerga; que de tanto idealizar, desajusta o próprio foco em contato com o cotidiano‖. Estamos diante de um enigma. Entre a prolixidade do verso inicial e a concisão do verso que encerra o texto, em sua extensão e sonoridade transparecem oposições no nível do significado e do significante, sugeridas 279


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pelas assonâncias e aliterações. O tom aparentemente incisivo e contestatório, instaurado pela indagação Que importa?, tem como alvo os lugares-comuns (verbais ou não): a paisagem aberta, o distante bairro da Glória, a baía que invade o oceano, o horizonte a que nunca se chega, senão pela concepção utópica. No primeiro verso, a persona poética se apropria da fala ordinária com o propósito de relativizar determinado discurso piegas, como aquele de um turista deslumbrado, por exemplo. O poema manifesta uma luta pelo estatuto extraordinário da palavra, tanto em conteúdo, quanto em forma e expressão. A perspectiva do poeta se revela pelo avesso da lisonja mais corriqueira e banal. Coexistiriam o Rio de Janeiro dos homens com a percepção do óbvio e a capital dos homens sensíveis, capazes de novas perspectivas. O primeiro verso parece questionar o chavão embutido no amor cego compartilhado pelos habitantes ou visitantes da cidade. As impressões do poeta relativizam a visão romanesca da capital e cartão-postal, a sugerir que a urbanização acelerada convertesse o Rio em território de seres estranhos – cimentados e distantes –, separados uns dos outros pela linguagem artificial e a autêntica falta de solidariedade. Face à descrição ufanista que caracteriza a percepção superficial de outros sujeitos, a contra-argumentação do poeta, posicionando-se à revelia no segundo verso: verso/beco, enxuto e seco que contrasta e completa o sentido do texto. Nas palavras de Alfredo Bosi: ―O que é uma imagem-nopoema? Já não é, evidentemente, um ícone do objeto que se fixou na retina; nem um fantasma produzido na hora do devaneio: é uma palavra articulada. A superfície da palavra é uma cadeia sonora‖ (BOSI, 1993, p. 21). ―Poema do Beco‖ problematiza a idealização gratuita da paisagem natural/urbana. Pressupõe que a verborragia fácil do homem deslumbrado é repetitiva e tem por estofo o senso comum. O Rio de Janeiro, como capital, funciona como escala de um Brasil imagético, produto para exportação. Daí a antítese contida no golpe de vista do eu lírico: a perspectiva não se refere apenas ao beco. Ela relembra a necessidade de aderência dos seres com o real e o que o ele representa. O tom interrogativo do primeiro verso confirma-se no verso abrupto. Não há tempo para extrapolações. É um poema em que o comentário é estimulado a partir do efeito estético. Dessa forma, parece justificar-se a redução do número de sílabas métricas: O que eu vejo é o beco. De sua parte, o que vislumbraria o leitor do Rio de Bandeira, irmanado (ou não) à angústia do eu lírico? Por que nomear o brevíssimo manifesto como poema? Sendo o dístico 280


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aceito formalmente como elemento poético, o que permite considerá-lo como um (ou o) poema do beco? Teria ele sido escrito para ou em função do beco? Composto a partir de uma visão privilegiada do beco? Trata-se de refletir a situação da poesia, como se estivesse num beco, rua semsaída? Concretude O segundo verso começa com um travessão, índice formal de diálogo: entre o poeta e seu leitor? Entre o segundo verso, resposta, e o primeiro verso, pergunta? Poema-enigma, para protesto e reflexão. Versos aparentemente despretensiosos de Manuel Bandeira, caracterizado por ―seu não-me-importismo irônico, e no fundo, melancólico, que lhe deu uma fisionomia tão cara aos leitores jovens desde os anos de 30‖ (BOSI, 2001, p. 362). O eu lírico se posiciona. Entre a idealização e a mediação do concreto, prevalece a segunda opção. Face à aparente alegria mantida na superfície e no deslumbramento ou na lisonja citadina – amplitude que engana (paisagem, Glória, baía) – o sabor amargo, a feição imediata do concreto. O beco assoma graças à mediação pela experiência. Da janela do hotel a perspectiva parece reduzir-se visualmente, mas ganhar em densidade. Isso se revela na própria sonoridade, como se as palavras reforçassem a musicalidade em melodia e ritmo: Poema do beco / O que eu vejo é o beco. O título e o segundo verso estão emparelhados pelo ritmo similar: ―aquilo que nos impressiona quer a vista, quer o ouvido, pela sua repetição frequente com intervalos regulares. Condição essencial deste conceito é que os nossos sentidos possam perceber com facilidade a reiteração‖ (ALI, 1999, p. 29). Os mesmos sons (especialmente as vogais o e e) e praticamente o mesmo número de sílabas métricas. Seria um poema/homenagem ao beco? O enigma parece estar no ―beco‖. O que seria o ―beco‖ para o poeta? A luta do Autor contra a tuberculose? A realidade imediata do ―eu‖ versus a realidade mediada pela marchinha de carnaval, só-festa? A restrita visão de um beco através da janela do quarto de hotel? A consciência do poeta, frente à situação da poesia modernista, num momento em que arrefece o ímpeto da primeira geração (1922 – 1930)? Em Poema do beco, o enunciado se fecha abruptamente, favorecido pelo ritmo, que nele ―tece uma teia de coesão‖ (PIGNATARI, 1991, p. 21). Além disso, o som liso e quase sem barreiras (importa, paisagem, Glória), converte-se em aspereza e oclusão (linha do horizonte). Daí a resposta, sob a forma de pseudodiálogo, talvez sem mirar sequer o leitor/destinatário. Não 281


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se trata de expectativa: o poeta não espera continuidade ou solução. Trata-se mais de uma exposição que um diálogo; mais uma forma poética de impasse, que exercício formal de interação. Questionamento dos mais profundos – e encoberto pela brevidade do enunciado –, esse diálogo pela metade anuncia e encerra o próprio horizonte, negaceado pelo poeta. Nesse sentido, caberia a definição de Péricles Ramos, para quem: ―O clima geral da poesia de Manuel Bandeira é de bondade triste‖ (PAES, 1967, p. 49). Afinal o que implica ver o beco? Significa não apenas que isso se deva a um estreito (ou amplo) campo de visão, mas à lucidez de quem percebe o limite da própria vista, contrária ao deslumbramento alheio. Ver é sentir. O poeta, afinal, revela-se evidentemente infenso ao elemento só-paisagem. Eis que um novo dado se pode somar à evidente sonoridade e a disposição das letras. Atente-se para o aspecto gráfico; para o desenho que ilustra e faz o poema: ___ _______ _ ________, _ ______, _ ____, _ _____ __ _________? — _ ___ __ ____ _ _ ____.

Versos de métrica irregular: imagem de contorno estreito e irregular; ambiente escuro, aceitando-se o sugestivo acúmulo de vogais fechadas. Poema-símile do beco que nele se desenha, espelha e inscreve. Concluídas as sucessivas leituras, porventura devêssemos nos concentrar novamente no título. Isso nos levaria a perceber que o poema não se dirige apenas ao beco em si, ou às formas da cidade – estas, inacessíveis à percepção dos transeuntes. A leitura, claro está, pode não se limitar ao beco: formato. Ela tanto contempla o largo quanto o estreito. Reexaminemos. No plano do conteúdo, o poema combate a linguagem enfática. É possível que a pergunta – ―Que me importa?‖ – acumule uma segunda expressão. A indagação reproduz a fala casual e despeitada de que fazemos uso no plano do diálogo. Num primeiro sentido, ela poderia ser traduzida em uma assertiva das mais espontâneas: ―Pouco ou nada me importo‖ com os encantos da cidade ou os apelos de uma geografia distante. Por outro lado, a mesma pergunta poderia ser interpretada em função de outro sentido. Neste caso, teríamos de recorrer ao segundo significado do verbo ―importar‖. A questão proposta pelo eu lírico ultrapassaria o elemento formal e o próprio alcance do discurso poético. Poderíamos assimilar o primeiro verso desta maneira: ―A paisagem, a Glória, a baía e a linha do horizonte não me aportam uma visão mais concreta, se comparada àquela 282


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que tenho da humilde realidade a que estou circunscrito.‖ O título do poema, por sinal, esconde (ou revela) uma concisão ainda maior, a exemplo do próprio dístico que contrapõe abstração à concretude, e metáfora à conclusão. Se há um enigma, há que se decifrá-lo? Tal investigação também envolveria considerar as agruras do poeta? Ora, não se trata apenas de um poema redigido em nome do beco. Os versos dão-lhe a forma, a sonoridade e a obscuridade. O nó reside no próprio dístico sem saída. Trata-se de poema-beco: desprovido de artigo, preposição e nulo horizonte. Para Norma Goldstein, há que se ―captar no poema o ritmo e o significado como uma unidade indissolúvel‖ (GOLDSTEIN, 1986, p. 12). Sabemos: a poética supõe o pacto entre poema e leitor, de modo a que as palavras do poeta encontrem o melhor abrigo na vista míope de seus leitores. Porventura se possa lançar uma derradeira pergunta: haveria sentimentalismo ou tão somente constatação, nesses versos de Manuel Bandeira? Por ora, releve-se: no chamado mundo pós-moderno, há muito a noção de tempo foi atomizada e contaminada pelo universo ditado pelos relógios, e estes alçados a acessórios da moda. Davi Arrigucci constatou que: As relações entre o Eu e as circunstâncias se tornam o eixo de uma questão de poética: a da construção do poema, em que mudam os fatos e muda o sujeito, na alquimia da linguagem, sempre em busca de um despojamento, que, na verdade, corresponde a uma inserção do poeta na existência real, no mundo misturado do cotidiano. (ARRIGUCCI, 1987, p. 11)

Certamente, ―Poema do Beco‖ poderia ser reescrito em acordo com o contexto sociocultural e econômico em que vivemos. Neste caso, porém, talvez nos faltasse uma nova métrica com que aferir quão distante fica este outro beco – no plano individual ou coletivo – e o relativo alcance da linguagem. Bibliografia ALI, M. S. Versificação em língua portuguesa. São Paulo: Edusp, 1999. ARRIGUCCI JÚNIOR, D. O humilde cotidiano de Manuel Bandeira. In: _____. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. _____. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. 22ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 283


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1993. BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1993. _____. História concisa da literatura brasileira. 39ª ed. São Paulo: Cultrix, 2001. BUENO, A. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff, 2007. CAMPOS, C. de A. Emoção e contenção na lírica moderna In: BOSI, V. et al. O poema: leitores e leituras. Cotia (SP): Ateliê, 2001, p. 11 – 20. FORESTI, N. B. Dos espaços poéticos em Manuel Bandeira: o beco. Anuário de Literatura, Florianópolis, n. 8, p. 137 – 156, 2000. GOLDSTEIN, N. Versos, sons, ritmos. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1986. MELLO E SOUZA, A. C. de. Na sala de aula. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1993. RAMOS, P. Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho. In: PAES, J. P. & MOISÉS, M. Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967, p. 48 – 49. PEREIRA, R. S.; ZAMPIERI, A. C. Ideias e instituições: imagens do intelectual na poesia de Manuel Bandeira. XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2007, São Leopoldo. Anais do XXIV Simpósio Nacional de História da ANPUHRS. São Leopoldo, Unisinos, 2007, p. 1 – 12. PIGNATARI, D. O que é comunicação poética. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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A arte historicizada: um viés de leitura para a peça Lição de botânica, de Machado de Assis Art historicised: a reading mode for the text Botany lesson, by Machado de Assis Míriam Zafalon70 Resumo: Este artigo teoriza, em linhas gerais, a historicização do objeto artístico, com o intuito de localizar o texto teatral. Em relação à obra de dramaturgia de Machado de Assis, percebe-se que o autor marcou o gênero teatral sob um viés reflexivo da condição humana. Machado engajou-se na empreitada de modernizar a sociedade carioca e brasileira, por intermédio da arte teatral. Na peça Lição de botânica, encontra-se o esforço da comunicação dentro da variedade de concepções relativas a uma época, extrapolando o texto puramente local, e abarcando realidades de novos espaços e tempos, por meio da dinâmica linguagem artística teatral. Palavras-chave: Teatro. Historicização. Machado de Assis. Abstract: This article theorizes, in general lines, the historicizing of the artistic object, with the aim of finding the theatrical text. In relation to the Machado de Assis‘dramaturgy work, it becomes clear that the author marked the theatrical genre under a reflective bias of the human condition. Machado was engaged in the job of modernizing the Carioca and Brazilian society, through the theatrical art. In the text Botany Lesson, there is the communication effort within the variety of concepts relating to a season, extrapolating the text purely local, and embracing realities from new spaces and times, through dynamic theatrical artistic language. Keywords: Theater. Historicizing. Machado de Assis.

Introdução Só se entende teoria com a aproximação do contexto histórico. Essa assertiva conduz à ideia de que a forma e conteúdo são sociais e históricos. É importante, ainda, ressaltar que a forma é um conteúdo precipitado, ou seja, ela é dada de antemão, sendo, em si mesma, conteúdo. Para Szondi (2011), teorizar o drama significa verificar como o tempo reflete a si mesmo, e de que maneira o desdobramento histórico se revela no âmbito formal do gênero artístico. A crise do drama se instaura quando ele se afasta dos moldes traçados sob o viés da poética clássica, rompe com o estilo romântico e passa a ser instrumento de denúncia da realidade social, em fins do século XIX. A tentativa de salvamento da forma dramática, segundo Szondi, na verdade enfatiza suas cisões:

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Doutora em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá. Integrante do Grupo de Pesquisa "Identidade e sujeito(s) na literatura", do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá. 285


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 Justamente por tentarem unificar o que irremediavelmente já se cindira, estas ―salvações‖ do drama permitirão tornar mais patente a contradição insolúvel que se desdobra ao longo de toda a Teoria do drama moderno: o ―naturalismo‖ se revelará uma escolha finalmente conservadora, mesmo regressiva, por abrigar-se, na representação compassiva do proletariado como última instância da ―naturalidade‖, contra a fratura que cindia igualmente todos os indivíduos e o conjunto da sociedade (SZONDI, 2011, p.13).

Com a evolução da dramaturgia moderna, o drama foi perdendo seu espaço. A forma dramática de enunciar a existência humana por meio do diálogo passa a ser substituída quando o foco artístico é levado para o externo do homem, buscando as condições objetivas e a temática social que causam conflito no interior do drama. As formas do teatro, despidas de suas inter-relações históricas, tendem a ser entendidas como eternas e puras; tal conceito absolutiza o gênero teatral, desvinculando-o das origens que fazem parte de sua construção. O processo de historicização torna-se essencial para uma interpretação real da evolução do teatro. O teatro brasileiro não possui cânones à altura como têm a poesia e o romance. Infelizmente não se dá o devido valor à profícua obra teatral produzida por grandes autores da arte nacional. Entre os nomes que compõem o seleto grupo de dramaturgos brasileiros, Machado de Assis (1839 – 1908) não é considerado pelos estudiosos em geral como um grande autor do teatro nacional: ―As experiências teatrais de Machado de Assis, quase todas de mocidade, parecem, à simples leitura, desprovidas da centelha que permite num texto prever o bom espetáculo‖ (SOUZA, 1980, p.117); todavia, é respeitado como um crítico teatral de peso. A partir de sua análise lúcida das representações artísticas de seu tempo, o mestre das letras busca novos caminhos para o teatro brasileiro: Machado foi um crítico teatral preocupado com todos os aspectos do espetáculo. Suas observações voltavam-se igualmente para a interpretação dos artistas, a decoração, os figurinos, de modo que sempre valorizava a harmonia conseguida pelo ensaiador, quando era o caso (FARIA, 2001, p. 109).

As peças machadianas começaram a aparecer no cenário brasileiro quando o teatro iniciava um período de mudanças, uma vez que o teatro realista florescia, rompendo com as formas do teatro romântico e as comédias populares. Machado publicou treze peças entre os anos de 1860 e 1906. Para ele, a linguagem teatral é tão transformadora quanto o texto; por meio de um teatro que se voltou com maior intensidade ao panorama nacional, o mestre das letras escreve de maneira insinuante, embora tenha 286


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sido acusado por Quintino Bocaiúva71 de produzir textos maçantes que deveriam se prestar à leitura, em detrimento da representação. É inegável, no entanto, que as composições teatrais machadianas trazem em seu bojo um evidente conhecimento de dramaturgia, reiterado igualmente em suas produções de crítica teatral. Em especial, o repertório teatral de Machado insiste na construção de enredos pouco complexos que privilegiam tipos e costumes específicos do contexto de sua época, por intermédio de um recorte da sociedade vigente. Em se tratando disso, deve-se reforçar a necessidade premente de relacionar as peças machadianas com o contexto histórico de sua produção, fazendo, dessa forma, uma análise que privilegia o viés histórico e estético do período. Em grande medida, a expressividade das peças de Machado pode ser observada quando o sistema teatral da época é levado em consideração, momento em que o teatro realista iniciava sua trajetória, mais especificamente pelos palcos cariocas. Com o realismo, veio a predileção por uma temática que reproduz a sociedade burguesa, conforme Décio de Almeida Prado (1999, p.80), o qual reitera que o teatro da época ―[...] devia não apenas retratar a realidade cotidiana, mas julgá-la, aprovar ou desaprovar o que estaria acontecendo na camada culta e consciente da sociedade‖. Com isso, o teatro brasileiro passou a praticar uma arte moralizadora que veio suprir a necessidade dramatúrgica da referida época, construindo a estética que caracterizaria um novo cenário cultural brasileiro. 2 A historicização da forma artística É basilar o respeito ao processo de historicização de obras artísticas de variadas naturezas, localizando-as no contexto e, obviamente, buscando os elos com o mundo contemporâneo. Em sua obra Teoria do drama moderno, o teórico Peter Szondi permanece nesse terreno historicizado, afirmando que não há compreensão e reflexão acerca do objeto artístico se não houver a noção de que a teoria tem desdobramentos na história e tal procedimento

71 Em resposta à carta do amigo Machado de Assis, Bocaiúva critica as duas comédias de estreia do já consagrado escritor: ―[...] mas, até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma. Debaixo desse ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura calma e refletida‖. In: OBRAS ilustradas de Machado de Assis – Memorial de Aires – Iaiá Garcia – Teatro. São Paulo: Linográfica Editora, s/d. 287


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não se limita, em hipótese alguma, a simplesmente localizar ano e século historicamente. Na contramão da teoria absolutizada, totalmente estanque das motivações externas, a aproximação com o contexto histórico determina o elemento teórico-cultural. Segundo Szondi (2011), o drama burguês deve ser historicizado. Para que esse objetivo seja alcançado faz-se necessário contrapor o ―enunciado da forma‖ e o ―enunciado do conteúdo‖, propiciando que, abordando suas diferenças, historicizem-se mutuamente. É naturalizado o estudo histórico quando se trata de narrativa. Tal procedimento não se materializa no estudo do drama. Entender o drama burguês, desde suas primeiras investidas, com Gil Vicente, chegando ao século XVI, com Shakespeare, é uma forma de delinear os caminhos que formalizam o teatro ocidental. Segundo Adorno (2003), a forma é conteúdo sócio-histórico sedimentado, ou seja, o fator estético não permanece alheio ao contexto histórico; o que realmente comunica algo é a forma, isso é o inteligível cultural. A linguagem não é um instrumento que pretende chegar ao conteúdo. Para Flory (2010, p. 18), o teatro [...] tem no texto dramático uma dimensão crucial, sendo muitas vezes tomado como o seu aspecto artístico por excelência, onde estaria depositado seu valor estético, o que garante a ele lugar cativo como gênero literário, com direito a foro próprio, ou seja, com formas e temas específicos.

Souza (1980) explica que há diferença entre a forma de ler o texto teatral pelo indivíduo leigo e por um especialista. A linguagem é interpretada de maneira variada, sendo para o perito um enunciado vibrante, vivificando a personagem por intermédio da expressividade das palavras. Para o mero espectador, o texto é observado com linearidade, dando um tratamento superficial e estático à trama. Importa esclarecer que a linguagem teatral não é apenas transmissora; ela representa uma ideologia e se faz num espaço para a criação dos sentidos, sendo agente, em especial, do pensamento das classes dominantes, embora, ao longo da história, se preste a propagar diferentes ideias. Em se tratando de linguagem, o drama burguês tem a pretensão de unir características próprias da tragédia e da comédia, buscando alcançar o público por meio da substituição dos tipos universais, conferindo às personagens condições sociais individuais como de cidadãos comuns, além de identificá-las com uma densidade psicológica que lhes explica o caráter e seus comportamentos. Fazendo um retrospecto sobre a presença da forma do drama no contexto artístico moderno, Szondi (2011) afirma que tal estilo tenha surgido 288


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a partir do Renascimento, conforme se observa na apresentação de José Pasta Jr.: Para ele, o drama da época moderna surgiu no Renascimento – quando uma forma dramática, após a supressão do prólogo, do coro e do epílogo, concentrou-se exclusivamente na reprodução das relações inter-humanas, ou seja, encontrou no diálogo sua mediação universal. O drama que surge daí é ―absoluto‖, no sentido de que só representa a si mesmo – estando fora dele, enquanto realidade que não conhece nada além de si, tanto o autor quanto o espectador, o passado enquanto tal ou a própria convizinhança dos espaços (SZONDI, 2011, p. 11).

É importante ressaltar que a absolutização do drama afasta o entendimento sobre as dimensões teórico-epistemológicas, críticas e históricas que são peculiares ao teatro. As interpretações conceituais dependem da historicização da obra de arte em sentido amplo. Do Renascimento até o século XVIII, o nascimento da burguesia e de novas formas político-econômicas revelam no teatro a propensão aos conflitos domésticos e que revela a subjetividade própria da vida burguesa. No drama burguês, a posição coletiva, universal é substituída pelos embates privados e domésticos. Embora o Naturalismo rompa em parte com essa posição do sujeito, os aspectos típicos do drama burguês tentaram ainda manter-se em pé, ainda que o contexto de fragmentação do sujeito tenha apontado as limitações desse gênero. Com Ibsen, percebe-se a derrocada da expressão burguesa, indo além do drama intersubjetivo e promovendo perspectivas épicas em relação ao texto teatral. Szondi (2011) também salienta que o teatro buscou diminuir a distância estética a partir da epicização do narrador, de tal forma que conteúdo e forma tencionaram-se mutuamente, buscando uma expressividade artística peculiar. Segundo o teórico, Ibsen e Tchékhov mostram em suas obras a necessidade insistente desse ponto de vista narrativo épico, que observa e analisa o passado. Rosenfeld (1965) refere-se ao elemento épico como uma tentativa bem sucedida de abstração das situações históricas que conduzem a novas maneiras de produzir temas e enxergar o mundo. Todavia, Rosenfeld alerta para o drama ―ideal‖ que se caracteriza: Esta breve caracterização do gênero e estilo dramáticos – que em seguida será enriquecida por dados históricos – é naturalmente uma abstração; referese a um ―tipo ideal‖ de drama, inexistente em qualquer realidade histórica, embora haja tipos de dramaturgia que se aproximam dese rigor. Na medida em que as peças se aproximarem desse tipo de Dramática pura, serão chamadas de ―rigorosas‖ ou puras, por vezes também de ―fechadas‖, por motivos que se evidenciarão. Na medida em que se afastarem da Dramática pura, 289


Ano 09 - Número 01 (Jul - Dez 2017) ISSN 2179-1937 serão chamadas de épicas ou lírico-épicas, por vezes também de ―abertas‖, por motivos que igualmente se evidenciarão (ROSENFELD, 1965, p. 25-26).

Outro prisma épico vem da obra de Brecht, que reflete tanto o contexto histórico de sua produção quanto leva a uma criticidade reflexiva, por meio do estabelecimento da dialética forma x conteúdo. Nas palavras de Flory (2010, p. 30): Os fundamentos épicos, assim como a trama e a composição dos personagens, passando pelo trabalho dos atores e, mesmo do público, estão a serviço, num todo coeso, da quebra da ilusão e identificação, levando à reflexão crítica, especialmente pelo efeito de estranhamento. Sua prática teatral promove a ação reflexiva, negando tanto a arte engajada (como instrumento político) como a arte pela arte (auto-referente, drama burguês).

A partir da obra de Brecht percebe-se que a historicização é fundamental para compreender a mutabilidade dos seres humanos, do mundo; afinal, as ações humanas são sociais e não naturais, e tal fato justifica a necessidade de privilegiar o viés histórico da obra artística. Além disso, a estética permanece atrelada a esses conceitos de historicidade, não sendo de modo algum isolada do conteúdo em sua predisposição para cada época distinta. Tratar o texto artístico sob um viés ontológico desconstrói todas as possibilidades de que uma obra realmente faça sentido e expresse as concepções de sujeito e de mundo numa certa época. Em respeito ao histórico do teatro brasileiro, há de se relembrar a trajetória que incorporou o teatro realista no Brasil, canalizado a partir da produção dramática francesa do século XIX. Faria (1998) refere-se à cena realista francesa como um ambiente prosaico da vida cotidiana, representando a sociedade daquele período. As mudanças ocorridas no contexto sócio-político europeu, na segunda metade do século XIX, motivadas pelas lutas de classes e transformações políticas e científicas, propiciaram uma mudança de foco da arte, em especial da literatura, removendo o culto do ―eu‖, e o escapismo da realidade que caracterizavam o Romantismo. Portanto, fazia-se necessário que a arte suprisse o intento de criticar e transformar a realidade. Delinear a totalidade das relações humanas passou a ser o objeto dos escritores realistas; eles quiseram a retratar os defeitos humanos e a condição humana diante do poder e das regras sociais, em detrimento da idealização do mundo e do homem. Substitui-se, para tanto, a tensão própria do romantismo sentimentalista, pelo debate acerca dos problemas sociais, por meio do detalhamento dos 290


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valores e costumes da sociedade burguesa. O assunto comum às peças francesas do período oitocentista é a defesa da família, das virtudes burguesas, com fundo moralizador. Embora os autores realistas tenham buscado a ruptura com o drama romântico, as características da antiga estética ainda perduraram, não se pôde romper com elas totalmente, assim como não se pode simplesmente descartar um legado artístico que foi repassado durante gerações. Houve uma convivência pacífica entre as duas tendências artísticas, demonstrando as diferentes preferências do público. Além de delinear a realidade a partir das encenações era preciso também refletir sobre ela e transformá-la, torná-la condizente aos padrões aceitos como ideais pela burguesia. Tais argumentos foram reforçados por Machado de Assis, que declarou-se simpatizante e adepto das preocupações morais que embasavam a escola realista. Em seu artigo Ideias sobre o teatro, publicado no jornal O espelho, numa das edições do ano de 1859, Machado critica o teatro romântico: ―Aqui há um completo deslocamento; a arte divorciou-se do público. Há entre a rampa e a plateia um vácuo imenso de que nem uma nem outra se apercebe‖ (FARIA, 2008, p.132). Tendo como inspiração as peças francesas, os palcos brasileiros também quiseram mostrar o mundo burguês. Essa estratégia adotada pela produção teatral do período demonstra que o Brasil queria adotar o modelo dos franceses para a sociedade daqui. Para tanto, construíam-se protagonistas que retratavam a classe social emergente do momento, formada por profissionais liberais. No entanto, a realidade brasileira não deixou de ser avaliada e retomada nas peças; a vida da sociedade carioca fez-se evidente, os problemas sociais (e entre eles a escravidão) foram abordados e criticados, formalizando um retrato sócio-econômico-cultural da época. Os ―dramas de casaca‖72 viajaram do realismo francês para atracar em terras brasileiras, discutindo questões sociais que diziam respeito à burguesia, classe a qual também era voltada a produção artística do período. O casamento, a prostituição, o dinheiro eram as questões relevantes que foram levadas ao palco, com o intuito de discutir os valores e a ética burguesa, valorizando-a. O Ginásio Dramático representou esse novo estilo da dramaturgia, a partir de 1855, instaurando maneiras inusitadas de escrita e representação, para marcar e prestigiar o realismo artístico nos palcos cariocas. Machado de Assis não se furtou às especificidades do drama realista, e mostrou em 72―Dramas de casaca‖ é a nomenclatura popular usada para descrever os textos teatrais que descreviam os costumes da época, nos quais as personagens apareciam vestidas com roupas modernas. 291


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suas peças a obra artística com fundo moralizador, identificando e refletindo acerca dos costumes de seu tempo. 3 Lição de botânica: a dialética do enunciado da forma x enunciado do conteúdo Distanciando-se de uma teoria absolutizada e estanque do contexto, pode-se analisar a peça Lição de botânica, de 1906, dialogando com a historicidade da forma e também do conteúdo. Para Décio de Almeida Prado, no texto A evolução da literatura dramática, publicado no livro A literatura no Brasil, de Afrânio Coutinho, a peça constitui um texto de raro valor, em detrimento da visão geral sobre a escrita teatral de Machado: ―Ao contrário, uma peça como Lição de botânica, por exemplo, é uma pequena obra-prima de humor romântico, de ironia e delicadeza sentimental‖ (COUTINHO, 1955, p. 271). Tal ponto de vista acerca da obra teatral de Machado de Assis demonstra uma comparação entre a produção do Bruxo de Cosme Velho e as peças que eram feitas no Brasil, em meados do século vinte, destacando as qualidades do autor, também nessa vertente artística. Além disso, o autor não negava seu apreço pelo realismo teatral, pensamento que propagou em artigos e pareceres que escreveu para o Conservatório Dramático. Acerca das especificidades localizadas na dramaturgia machadiana, Faria (1998, p. 43) explica: [...] Machado queria um teatro que não fosse mero passatempo das massas. Favorável ao teatro de cunho utilitário, ao palco transformado em espaço para o debate de questões sociais, afirmou: ‗O teatro é para o povo o que o Coro era para o antigo teatro grego; uma iniciativa de moral e civilização‘.

Sobre Lição de botânica, pode-se afirmar que a peça, elaborada em um único ato, apresenta alguns elementos recorrentes na obra artística de Machado: a astúcia feminina nas questões amorosas, personagens até certo ponto caricatas, como comprova o Barão Sigismundo de Kernoberg, um cientista sueco com pensamentos exagerados em relação à ciência. Tendo como cenário o Rio de Janeiro do começo do século XX, o texto começa quando D. Leonor, tia de D. Helena, jovem viúva, e de D. Cecília, recebe uma carta do Barão, na qual ele solicita permissão para visitá-la. Enquanto Helena pensa que a visita tem objetivo de pedir a mão de Cecília para o sobrinho do barão, Henrique, na verdade o tio vai pedir a D. Leonor que não permita mais a presença do rapaz em sua casa, a fim de não atrapalhar seu futuro 292


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promissor na Botânica, e uma vida dedicada exclusivamente aos estudos científicos. Para auxiliar a irmã, D. Helena, de maneira sagaz, finge interessar-se em ter explicações sobre botânica com o Barão. Despertando seu entusiasmo, a desembaraçada viuvinha machadiana, além de convencêlo a permitir que os enamorados desfrutem de seu amor, ainda angaria a paixão do cientista para si. Ao final, ocorre a transformação dos sentimentos do tio, que passa a reconhecer uma relação saudável entre o amor e a ciência. A peça humaniza a figura do cientista, extirpando o excesso de racionalidade através da sedução, sobrepondo o amor à ciência. Na peça em questão, Machado incorpora um intuito civilizador, em detrimento da preocupação com o enquadramento nas vertentes teatrais estéticas do período de produção, conferindo uma conotação com altos índices de modernidade. Em Lição de botânica, encontra-se o início, ainda tímido, da discussão acerca da aproximação entre as fronteiras culturais, ainda que como pretexto para a valorização da nacionalidade. No trecho a seguir, o botânico explica, a propósito de seu comportamento atípico, que as divisões de território são universais e não espaciais: ―Na geografia intelectual não há Suécia nem Brasil; os países são outros: astronomia, geologia, matemáticas; na botânica são obrigatórios‖ (ASSIS, 1982, p. 348). O autor apresenta críticas aos valores daquela sociedade, por meio de uma linguagem irônica, apesar de privilegiar uma temática amorosa, fator reiterado em nove de suas treze peças. Reitera-se que a perspectiva histórica está amalgamada ao objeto artístico. Tal assertiva não deixou de fazer parte dessa comédia realista de costumes escrita por Machado de Assis. O discurso irônico é um dos pontos altos nessa e em outras peças, indo ao encontro do propósito didático que o autor sempre privilegiou nos textos teatrais, viabilizando o jogo de sedução representado pela personagem Helena. Cite-se um trecho do diálogo entre a viuvinha e o cientista sueco: DONA HELENA (À parte) – O mestre é perigoso. (Alto) Tinham-me dito exatamente o contrário; disseram-me que o Senhor Barão era... não sei como diga... era... BARÃO – Talvez um urso. DONA HELENA – Pouco mais ou menos. BARÃO - E sou. DONA HELENA – Não creio. BARÃO – Por que não crê? DONA HELENA – Por que o vejo amável. BARÃO – Suportável apenas (ASSIS, 1982, p. 354).

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Brayner (1981) afirma que o Machado apresenta uma visão distanciada e abrangente da sociedade do Segundo Império e da Primeira República, destilando sua ironia e partilhando suas observações com o leitor. Essa ironia aparece na reflexão sobre os hábitos sócio-culturais da sociedade do Rio de Janeiro e também na análise da própria natureza humana, dotada de limitações e vícios. É visível a preferência de Machado pela descrição do psiquismo humano e pela exposição dos valores sociais que são promotores de comportamentos equívocos. As personagens femininas, D. Leonor, Helena e Cecília compõem a negação ao discurso misógino do barão, numa atitude direta de contraposição aos preceitos positivistas, lançados a partir do discurso científico que, paulatinamente, é desequilibrado diante da situação afetiva. A interessante Helena da peça machadiana faz lembrar outra, também estonteantemente sedutora. Assim como todo um exército sucumbiu ao poder da eleita do príncipe Páris, o cientista Sigismundo de Kernoberg também pôs-se aos pés de sua paixão avassaladora. O texto de Homero, A Ilíada, de certa forma justifica o motivo que faz de Páris um apaixonado por Helena de Troia. A beleza da moça encanta a todos, e na fala dos chefes troianos: ―Não é de se admirar que por essa mulher os troianos e os aqueus bem armados tantas provações venham sofrendo há tanto tempo. Seu rosto é belo como o das deusas imortais‖ (HOMERO, s/d, p.36). Note-se, entretanto, que a Helena de Troia é atemporal, como mito internalizado pelas gerações passadas. Já a astuta Helena da peça machadiana é historicizada, representando a independência conferida à maioria das viúvas da sociedade oitocentista carioca. Historicizando, comprova-se que à época em que Lição de botânica foi escrita, o universo científico brasileiro passava por um significativo processo de crescimento nas pesquisas e na fundação de institutos científicos. Dessa forma, pode-se afirmar que o texto artístico colaborou com a propagação da ciência junto à sociedade, por meio das representações sociais sobre o fato científico. Ainda que a linguagem metaforizada não demonstre plena objetividade, é possível verificar que o texto fertiliza a discussão a respeito do fato científico, ironicamente privilegiado na peça. O texto representa a necessidade da época, que primava por capturar a realidade e esmiuçá-la, tal como faria um cientista. O desenvolvimento humano, nesse ínterim, exige explicações lógico-racionais que são construídas por meio da observação. Mais que um pretexto para estabelecer contato, formalizar relações, o conteúdo científico é trazido ao contexto da obra para demonstrar o pensamento característico do modo de pensar Realista, elucidador da situação histórica que se apresentava. No trecho que segue, o diá294


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logo vivifica a inclusão do assunto científico como elo para as relações humanas: DONA HELENA (Interrompendo) – Pedirei licença à minha tia. Quando será a primeira lição? BARÃO – Quando quiser. Pode ser amanhã. Tem certamente notícia da anatomia vegetal... DONA HELENA – Notícia incompleta. BARÃO - De fisiologia? DONA HELENA – Um pouco menos. BARÃO - Nesse caso, nem a taxonomia, nem a fitografia... DONA HELENA – Não fui até lá. BARÃO – Mas há de ir... Verá que mundos novos se lhe abrem diante do espírito. Estudaremos, uma por uma, todas as famílias, as orquídeas, as jasmíneas, as rubiáceas, as oleáceas, as narcíseas, as umbelíferas, as... (ASSIS, 1982, p. 354).

A linguagem científica que permeia o texto transmite na forma um conteúdo temático que vai além de uma bucólica relação amorosa: tem-se na atitude realista estética o estabelecimento dos valores privilegiados na época, a sobreposição da ciência sobre os conhecimentos informais, como qualificação para um ―real‖ entendimento da vida. Vê-se em Lição de botânica o estilo que representa aspectos da vida burguesa que resplandecia na segunda metade do século XIX, no Rio de Janeiro, bem como percebe-se a predileção do mestre das letras pela nova escola, o Realismo. As personagens simbolizam os ideais da sociedade da época, revelados através de diálogos e situações cômicas vivenciadas no decorrer do texto. Dá-se especial atenção à temática do casamento, visto que as sobrinhas de D. Leonor têm nesse assunto um interesse devotado. Ora, nada mais natural para uma sociedade na qual a mulher provavelmente não teria outro modo mais rápido e eficiente de ascensão social que não fosse o matrimônio. Por meio da focalização da classe média, camada social afeita à construção dos conflitos psicológicos, o escritor de Lição de botânica retrata a vida presente das personagens, realçando as características humanas, por vezes de forma estereotipada. O texto evidencia, entre outros pontos importantes, a demarcação do território teatral como espaço de construção da linguagem, representado pelos artifícios retóricos, estabelecendo um diálogo entre a civilização europeia e o texto teatral brasileiro.

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Conclusão A obra de arte pode alcançar a posteridade dependendo da maneira como manuseia a estética e o conteúdo. Ainda que não se tenha convivido com as vicissitudes de um tempo, as lutas sociais, os progressos e ideologias, ainda assim, é possível participar da obra de arte e senti-la, provar de sua variedade e estabelecer contato com as concepções que outrora guiavam os propósitos artísticos. Há, portanto, a necessidade da historicização da obra artística, como forma de investigar a estética e as ideias surgidas através das transmutações da sociedade, delineando as interlocuções sociais formadas, esmiuçando os detalhes de construção e analisando como se relaciona com o mundo externo. É urgente dessacralizar o texto artístico e questioná-lo em todas as suas inter-relações, em detrimento de reducionismos estéticos. O objeto de arte historicizado permite também o reconhecimento da cultura sobre a qual fixou suas bases; a forma literária apreende a sociedade. A necessidade de perceber os desdobramentos históricos na arte, fez com que o épico questionasse a forma do drama. O homem cuja postura era imutável, inserido num mundo em que as relações intersubjetivas davam o tom do discurso, passa a ser visto como mais objetividade, numa contraposição entre sujeito e objeto. O formato dos textos teatrais realistas pôde colocar em prática uma tentativa de ―civilização‖ por meio da arte. Reitera essa ideia, o próprio Machado, quando admite ―a crença no teatro como termômetro da civilização de um povo‖ (FARIA, 2001, p. 24). A influência dos clássicos franceses e a adaptação a um estilo estético diverso do drama histórico foram a maneira encontrada para formar o ideário burguês brasileiro, afastando o repertório nacional dos dramas, melodramas e tragédias neoclássicas. A prosa do cotidiano é assunto que abrange o teatro realista; tal característica está presente na peça Lição de botânica, na qual Machado escolheu construir com naturalidade a ação, abolindo altas tensões representativas do drama romântico, e dando formas à vida social de meados do século XX. Os modelos franceses, amplamente utilizados pelos dramaturgos brasileiros durante esse período, formaram o assunto tanto para a crítica teatral quanto para a escrita das peças, desenhando o ponto de vista evolutivo do teatro brasileiro, tanto na forma quanto no conteúdo. Revisitar o ―tom‖ machadiano nessa análise foi uma tentativa de demonstrar que a estética do teatro não é a-histórica; ao contrário, a forma é histórica e social. Machado adapta a estética teatral em voga na Europa ao 296


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contexto sócio-histórico-cultural brasileiro, dando-lhe um caráter nacional, refletindo a sociedade na qual a arte está inserida. Bibliografia ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Teatro completo. Rio de Janeiro – Ministério da Educação e Cultura, Serviço Nacional de Teatro, 1982. BRAYNER, Sônia (org.). O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Sul Americana, 1955. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Biblioteca Universal) FARIA, João Roberto. Ideias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2001. ______ (org.). Machado de Assis do teatro: textos críticos e escritos diversos. São Paulo: Perspectiva, 2008. ______. O teatro na estante: estudos sobre dramaturgia brasileira e estrangeira. São Paulo: Ateliê editorial, 1998. FLORY, Alexandre Villibor. Literatura e teatro: encontros e desencontros formais e históricos. In: Revista Jiop nº1. Departamento de Letras Editora. Disponível em: www.dle.uem.br/revista_jiop_1/artigos/villibor.pdf. Acesso em: 15 dez. 2016. HOMERO. A Ilíada. Tradução e adaptação de Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro: 1570 – 1908. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1965. SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. Raquel Imanishi Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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Meia-noite em Paris: uma interpretação dos cartazes (brasileiro e europeu) do filme de Woody Allen Midnight in Paris: an interpretation of the posters (Brazilian and European) of Woody Allen's film Dafne Di Sevo Rosa73 Resumo: Com o presente artigo pretende-se analisar os cartazes brasileiro e europeu do filme Meia-noite em Paris como seus paratextos. Para tanto, serão primordiais não só as contribuições de Gerard Genette, mas também as de Irina Rajewsky, para a compreensão do significado de paratexto e da construção desse por meio da transposição midiática, respectivamente. Ainda será fundamental a aplicação da teoria da adaptação, desenvolvida por Linda Hutcheon. Palavras-chave: Meia-noite em Paris. Intermidialidade. Paratexto. Adaptação. Abstract: This article intends to analyze the Brazilian and European posters of the film Midnight in Paris as its paratexts. The contributions of Gerard Genette, but also those of Irina Rajewsky, to the understanding of the meaning of paratext and the construction of it through mediatic transposition, respectively, will be paramount. The application of the theory of adaptation developed by Linda Hutcheon will still be fundamental. Keywords: Midnight in Paris. Intermediality. Paratext, Adaptation.

I Introdução Para a divulgação do filme Meia-noite em Paris, escrito e dirigido por Woody Allen (2011), foram produzidos dois cartazes: um brasileiro e outro europeu. Com diferenças significativas, os paratextos do filme transmitem ao leitor ideias extremamente opostas sobre a temática do longa-metragem. A partir da análise da construção dos banners, por meio da transposição intersemiótica, pretende-se, no presente artigo, salientar os efeitos de sentido provocados no leitor através dos elementos constitutivos dos dois textos. Gerard Genette (2006) define paratexto como: tipos de sinais acessórios que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. (p. 9).

Em outras palavras, o paratexto pode ser entendido como todo discurso secundário que circunda uma obra principal. Dessa forma, o cartaz de 73

Professora Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, atualmente leciona no Colégio Nossa Senhora de Sion. Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. 299


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divulgação cinematográfica (discurso secundário) é um paratexto do filme (obra principal) e, por ser uma peça publicitária, tem como principal objetivo promover o filme, cativando o público, por meio da curiosidade e do interesse no enredo, brevemente antecipado no banner. O cartaz cinematográfico é construído, como salienta Quintana (1995), de três partes principais: título, ilustração e créditos e, cada uma delas, desempenha papel fundamental na caracterização do cartaz como subproduto do filme, pois enquanto o título apresenta o conteúdo, a ilustração revela a essência do enredo e os créditos são usados como indicador da credibilidade. II Análise do cartaz brasileiro O cartaz de Meia-noite em Paris divulgado no Brasil, como não poderia deixar de ser, apresenta suas três partes constitutivas. Há a ilustração, retirada de uma das cenas iniciais do longa-metragem: o casal formado pelo protagonista Gil Pender (Owen Wilson) e, por aquela que ao longo do enredo se revelará sua grande antagonista, sua noiva, Inez (Rachel McAdams) está em pose sugestiva de romance, diante do lago tão característico do Jardim de Monet. O título da obra aparece centralizado, em letras grandes, mediando os créditos dos atores e diretor. Há ainda, no canto esquerdo, os dizeres ―Tudo pode acontecer na Cidade Luz‖ e, no canto direito, a indicação de que o filme abriu o festival de Cannes daquele ano. A fotografia usada como ilustração do cartaz foi retirada de uma cena do filme e, por isso, é uma transposição da ação retratada para outra mídia. Irina Rajewsky (In: Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. 2012, p. 20) diz que a transposição midiática é um ―modo de criação de um produto, isto é, com a transformação de um determinado produto de mídia‖. Desse ponto de vista, a transposição midiática passa a ser uma adaptação, definida por Linda Hutcheon como ―um ato criativo e interpretativo de apropriação/ recuperação; um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada‖ (2013, p.30). Ou seja, a partir do momento em que a ilustração da cena foi retirada do contexto do filme e transposta para o cartaz, há não só o deslocamento de uma imagem performática para uma mídia estática, como também a elaboração de um novo texto, com nova sintaxe e novos significados. Na cena Gil e Inez estão no Jardim de Monet dialogando sobre os significados de Paris para cada um deles. Enquanto Gil afirma sua paixão pela cidade e seu desejo em morar lá, Inez nega poder viver fora dos 300


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Estados Unidos e afirma que seu noivo ―ama uma fantasia‖. A cena de romance transposta no cartaz é breve e ocorre quando Gil responde ao comentário de Inez dizendo que a ama. A grande problemática envolvendo o cartaz brasileiro é que nele o destaque é dado para o romance entre os dois personagens (principalmente pela fotografia, que ao destacar em primeiro plano o perfil dos personagens, induz o namoro entre eles), quando, na realidade, o filme não aborda o relacionamento amoroso com tanta ênfase e destaque. O envolvimento de Gil e Inez é apenas a contextualização da situação inicial do enredo e ao longo da narrativa vai perdendo a relevância, até se tornar um conflito secundário e sem importância. A expectativa criada no observador do cartaz é de que o filme é do gênero romance, mas ele é classificado primeiramente como comédia. O próprio título não é suficientemente explicado pela ilustração, pois se a função dele é expor a temática do enredo, a incoerência entre o termo ―meia-noite‖ e a claridade da imagem, confunde o leitor tanto a respeito do tema do filme como de qual é a associação feita entre o título e a imagem. A frase ―Tudo pode acontecer na Cidade Luz‖ também não é justificada, pois só pode ser compreendida por quem já assistiu ao filme e percebeu seu caráter fantástico e onírico, tão bem caracterizados no cartaz divulgado na Europa. III Análise do cartaz europeu O segundo cartaz também é construído por meio de uma adaptação de uma cena do filme, porém é elaborado a partir de dois processos de transposição midiática. Uma das práticas mais frequentemente realizadas por Gil é caminhar por Paris, como é um apaixonado pela cidade, ele sente um prazer particular em andar e observar as ruas, os cidadãos, a arquitetura, enfim, todos os aspectos característicos da capital francesa. É exatamente esse cenário do protagonista caminhando pela cidade que é transposto para o cartaz. Gil está centralizado na imagem passeando às margens do Senna contemplando, com um leve sorriso nos lábios, a paisagem a sua esquerda. Ao fundo há a segunda transposição midiática elaborada no cartaz: a foto de Paris é sobreposta ao quadro Noite Estrelada (1889) de Vincent van Gogh. Apesar de não haver referência a van Gogh no filme, a adaptação da tela no cartaz contribui para a sua interpretação e sua natureza se torna explícita para o leitor atento. Da mesma forma que Noite Estrelada manifesta um devaneio diante da imagem do vilarejo à noite, marcado principalmente 301


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pelas cores primárias (azul e amarelo) e pelo movimento circular atribuído ao céu e aos astros, Meia-noite em Paris também aborda o tema do sonho. Como afirma Cristina Azra Barrenechea: Van Gogh teve o propósito de destorcer a natureza, para comunicar um estado subjetivo, e isso foi muito, muito original naquele ponto da história da arte. Ele criou uma semiose para comunicar uma coisa diversa daquilo que estava pintando, ou seja, para comunicar uma realidade interior, além da realidade exterior que era o tema da composição. [...] (2016, p.339)

Da mesma forma que van Gogh criou uma semiose para extrapolar os significados daquilo que pintava, o cartaz, por meio da sobreposição dos recortes do quadro e do filme, também cria uma semântica análoga. Enquanto van Gogh aborda a subjetividade dos sentimentos e emoções, em Meia-noite em Paris, Gil sonha com uma cidade utópica. Para ele a Paris perfeita é dos anos 1920, vivenciada por grandes artistas e escritores americanos, é esse cenário ideal que ele deseja encontrar e, por meio de sua fantasia, descobre a impossibilidade de concretude de seus desejos. O hábito de caminhar praticado pelo protagonista está diretamente relacionado com essa busca incessante por essa cidade tão almejada, o que o torna, na definição de Charles Baudelaire, um flâneur. Segundo Baudelaire, o flâneur se caracteriza por ser um personagem andarilho e observador que tem na multidão o seu universo. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. (2007, p. 21)

Baudelaire afirma também que todo flanêur é curioso como uma criança, pois ele: goza, como a criança, da faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais. [...] A criança vê tudo como novidade; ela sempre está inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor. (Idem, p. 19).

É exatamente a postura definida por Baudelaire que Gil apresenta ao 302


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longo de todo enredo. Somente graças as suas andanças e sua curiosidade é que os aspectos fantásticos tão característicos do filme e do seu cartaz ocorrerão. Outros aspectos relevantes envolvendo a sobreposição da tela e da foto são os encontrados na combinação de cores e aqueles relativos aos nomes das duas obras. A forte presença do tom azul que segundo Chevalier (2009, p. 107) ―desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se transforma em imaginário‖ reitera a divagação do personagem. Por conta desse arranjo das cores a impressão que se tem é a de que Noite Estrelada é projetada na foto por meio da imaginação do personagem e, assim, ele faz parte do quadro. Já os nomes das duas obras se relacionam por fazerem referência à noite, a qual é ―a imagem do inconsciente‖ (CHEVALIER, 2009, p. 640), mais uma vez associando as obras com a manifestação dos desejos revelados no plano das ideias. Além disso, apesar de o cartaz não ser escuro como a noite, a ideia do noturno está evidente, tornando o título do filme e a ilustração complementares. A noite é caracterizada na tela, além da presença dos astros, como salienta Barrenechea, por meio da textura que: na obra de van Gogh desempenha um papel central para o envolvimento do espectador com a narrativa visual, com base no apelo para a memória sensorial do espectador, de sua experiência direta com o mundo, no uso conjugado com outros recursos semiótico tais como a cor, o ritmo, o movimento, o gesto pictórico, as associações metafóricas, por exemplo, van Gogh conseguiu produzir um poder sinestésico para a textura que confere novas possibilidades de sentidos construídos pela dissolução entre o visual e o táctil. (2016, p. 290).

Logo, é porque a noite retratada no quadro foi apresentada de maneira conotativa, que o leitor do cartaz é instruído a compreender que a Paris noturna abordada no filme será tão fantástica quanto o vilarejo retratado na tela. Em outras palavras, o leitor é levado a compreender as metáforas relativas ao noturno por meio da simbiose entre os fragmentos da tela e do filme. A parte de Noite Estrelada transposta para o cartaz é o céu exatamente para salientar que o contraste entre as experiências reais e os momentos fantásticos vivenciados por Gil acontecem à noite. O leitor tem a impressão, ao observar o banner, que algo extraordinário e inexplicável se aproxima do protagonista. Há no cartaz, então, a antecipação dos fatos principais do filme, uma vez que o fantástico transforma não só o espaço ao redor de Gil, mas 303


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também sua própria percepção da realidade. Segundo Linda Hutcheon: o que está envolvido na adaptação pode ser um processo de apropriação, de tomada de pose da história de outra pessoa, que é filtrada, de certo modo, por sua própria sensibilidade, interesse e talento. Portanto, os adaptadores são primeiramente intérpretes, depois criadores. (2013, p. 43).

As adaptações da tela de Vincent van Gogh e da cena são realizadas pelo designer do cartaz como uma nova interpretação, pois é a partir do contexto do filme que a associação com o onírico exposto no quadro é possível, mostrando assim a capacidade do adaptador em perceber os aspectos dialógicos entre as duas obras. A própria Linda Hutcheon ainda afirma que: a transposição para outra mídia, ou até mesmo o deslocamento dentro de uma mesma, sempre significa mudança ou, na linguagem das novas mídias, reformatação. [...] Em vários casos, por envolver diferentes mídias, as adaptações são recodificações, ou seja, traduções em forma de transposição intersemiótica de um sistema de signos para outro. Isso é transcondificação, ou seja, como necessariamente uma recodificação num novo conjunto de convenções e signos. (2013, p. 40).

Por se tratar de uma fotomontagem, há no cartaz a combinação das convenções e signos das duas mídias (fotografia e pintura). Enquanto o código da pintura usa, sobretudo, as cores e traços, já anteriormente analisados, a fotografia utiliza do posicionamento da câmera para causar efeitos de sentido. O grande plano geral da fotografia, em que se encontram os elementos característicos da cidade, levemente desfocado contrasta com o personagem em foco no primeiro plano, revelando a grandeza da cidade que deslumbra Gil e a importância das ações dele em Paris, para o desenrolar da narrativa. O efeito tridimensional da imagem, causado principalmente pela perspectiva da câmera e a distância entre fotógrafo e personagem, e entre esse e a cidade, enfatiza o percurso percorrido por Gil e o caminho que ainda será trilhado por ele. A postura do personagem (com o olhar perdido e as mãos nos bolsos) faz com que o leitor note sua despreocupação e contemplação diante de Paris.

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IV Conclusão São esses aspectos em conjunto que fazem com que o cartaz europeu produza efeitos de sentindo tão diferentes daquele divulgado para o público brasileiro. Entretanto, apesar das diferenças no processo de composição das mídias, é necessário considerar que, como bem salienta Linda Hutcheon: uma adaptação, assim como a obra adaptada, está sempre inserida em um contexto – um tempo e um espaço, uma sociedade e uma cultura; ela não existe em um vazio. [...] Isso significa não apenas que a mudança é inevitável, mas que haverá também diferentes causas possíveis para essa mudança durante o processo de adaptação, resultantes, entre outros, das exigências da forma, do indivíduo que adapta, do público em particular e, agora, dos contextos de recepção e criação. (2013, p.192).

Sendo assim, apesar dos dois textos aqui analisados serem paratextos criados por meio da mesma técnica (transposição midiática) e com o mesmo objetivo (fazer publicidade do filme) as questões ideológicas de construção do discurso desempenham papel fundamental na divulgação do produto principal. Independentemente de não ser o objetivo deste artigo abordar a ideologia discursiva, é imprescindível esclarecer que muitas escolhas feitas pelos adaptadores dos cartazes e, portanto, os efeitos de sentidos criados a partir delas foram estabelecidos por meio de considerações contextuais e sociais de apresentação do filme. O público brasileiro, cujo repertório se constitui, na maioria das vezes, a partir de textos do gênero romance, não tem as mesmas características do público europeu e, por isso, recebem e interpretam tanto o filme como seus subprodutos de modos distintos. Dessa maneira, ao formular um cartaz mais adequado, segundo o ponto de vista dos adaptadores e distribuidores de Meia-noite em Paris, aos brasileiros se torna uma ação de marketing que tende a ser eficiente, pois demonstra, entre outras questões, a preocupação e o respeito com o público. Entretanto, como foi possível observar por meio das análises realizadas, a qualidade do trabalho de transposição e os efeitos de sentidos construídos a partir dos elementos constitutivos das mídias usadas na elaboração do cartaz europeu são mais convincente e coerentes com a obra de Woody Allen.

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Bibliografia BARRENECHEA, Cristina Azra. O discurso multimodal: análise da linguagem visual em sua relação com o relato da história de vida e da produção artística de van Gogh. Brasília, 2016. Tese de doutorado. Universidade de Brasília, Brasília, 2016. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANTE, Alain. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, número. Trad: Vera da Costa e Silva. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. DINIZ, Thais Flores Nogueir. (Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo Horizonte: UFMG, 2013. GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad: Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte, 2006. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad: André Cechinel. 2ª ed. Florianópolis: UFSC, 2013. QUINTANA, Haenz Gutierrez. Cinema, cartaz e imaginário. Campinas, 1995. Dissertação (Mestrado em Multimeios) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995. Referencial bibliográfico da internet. < http://www.olhar.com.br/dicas/linguagemfotografica.htm>. Acesso em: 18 de outubro de 2016.

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Walter Benjamin: crítica, história e política Fernando Aparecido Poiana74 FRANCO, R. 10 Lições sobre Walter Benjamin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. Escrever um livro introdutório não é fácil. Quem escreve precisa não só ter consciência clara de que o seu leitor em potencial não é um iniciado no assunto abordado, mas também se vê obrigado a andar no fio da navalha argumentativa que separa simplicidade estilística de simplismo conceitual. Isso, é claro, sem contar que os propósitos e o escopo de um livro introdutório impõem ao crítico/comentarista (e ao editor) escolhas que podem sacrificar nuances conceituais importantes em detrimento da prosa didática e da apresentação panorâmica do tema. Renato Franco encontra boas soluções para esses dilemas em 10 Lições sobre Walter Benjamin (2015). Seu livro enfoca, em estilo direto e sem preciosismos linguísticos, a ―[...] trajetória intelectual [de Benjamin], analisando as [suas] principais obras e conceitos, de modo a possibilitar ao estudante um esclarecimento preliminar sobre seus procedimentos, temas, itinenários‖ (FRANCO, 2015, p. 10-11). Fica claro nessa formulação que o recorte temático de Franco privilegia a análise das ideias de Benjamin em detrimento da elaboração de outro retrato da vida acidentada do filósofo, escolha, inclusive, que o próprio autor75 faz questão de enfatizar na introdução. Além do mais, durante todo o livro, Franco nunca perde de vista o aspecto político do pensamento de Benjamin. Para o autor desse livro, essa é uma chave de leitura fundamental para compreender as noções de crítica de arte, rememoração, narração, experiência como sabedoria transmissível e história nos textos do filósofo alemão. Feita essa contextualização, alguns pontos de 10 lições sobre Walter Benjamin merecem especial destaque. O primeiro deles é que Franco explica muito bem a relação entre o funcionamento da memória e as dinâmicas sociais e políticas nos escritos benjaminianos. Ao comentar Rua de Mão Única e Infância Berlinense 1900, por exemplo, o autor sugere que, no limite, a re74

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), câmpus de São José do Rio Preto, SP. É bolsista CAPES. 75 Para maior clareza estilística, ressalto que todas as vezes em que a palavra ―autor‖ é utilizada nesse texto, ela retoma Renato Franco. Portanto, o ―autor‖ não deve ser confundido com Walter Benjamin, que é sempre retomado, nessa resenha, por termos como ―o filósofo‖ ou ―o filósofo alemão‖. 307


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memoração da infância nesses livros guarda em si um acentuado etos político, no sentido amplo do termo. Para Franco, ―a reconstituição da infância, a contrapelo, implica o desvelamento do proceso brutal de adaptação à sociedade capitalista, que tampouco sai ilesa de tal movimento reflexivo‖ (2015, p. 18). O que temos aqui é o comentário sobre a constatação benjaminiana do desajuste profundo do indivíduo diante da paradoxal incivilidade do processo civilizatório burguês, calcado que é em formas arbitrárias de enquadramento. Isso, explica Franco, acaba desembocando, nos textos de Benjamin, na ―[...] defesa do intelectual autônomo, independente [...]‖ (FRANCO, 2015, p. 19). A breve análise desse tema em 10 lições sobre Walter Benjamin mostra que essa consciência da necessidade de soberania do pensamento, por sua vez, marcou profundamente o posicionamento e a atitude de Benjamin diante das formas de refletir e de agir sobre o mundo. O que emerge da argumentação e dos exemplos de Franco nesse ponto é a figura de um Benjamin que, como pensador, nunca dissociou a reflexão filosófica das condições materiais e sociais que a (im)possibilitam. É nesse sentido, sugere o autor, que o pensamento de Benjamin incorpora as contradições do mundo material e as torna ainda mais evidentes. De fato, Franco mostra em seu livro que, para Benjamin, refletir sobre a estética das obras literárias e dos bens culturais (pintura, cinema, fotografia), por exemplo, implicava assumir o compromisso mais profundo e desafiador de pensar a respeito das condições de produção e dos contextos histórico-sociais de surgimento dessas obras. Esse é um dos pontos centrais da crítica benjaminiana para Franco, e que a torna não só bastante fecunda do ponto de vista do seu alcance reflexivo, como também inegavelmente atual devido às questões de fundo que ela propõe. Franco também comenta em seu livro o interesse de Benjamin pelo Trauerspiel para explicar como é que, a partir do estudo de um conjunto de peças alemãs, o filósofo buscou pensar a mecânica da construção de sentido. Benjamin entende a figura do alegorista como aquele que ―[...] arranca o objeto de seus contextos habituais a fim de inseri-lo em contextos novos, originais, nos quais é forçado a experimentar relações inusitadas, que lhe conferem um sentido até então insuspeitado‖ (FRANCO, 2015, p. 43). Sentido, violência, deslocamento e choque, aqui, tem relação intrínseca, portanto. O autor explica que esse método subjacente ao estudo de Benjamin sobre o Trauerspiel parte do princípio de que o caminho da alegoria é, também, um percurso de ressignificação das ruínas do passado a partir de uma perspectiva interpretativa presente. Dessa maneira, a análise de Franco sugere que as semelhanças profundas entre o que foi e o que agora é podem emergir de maneira esteticamente fértil e politicamente revolucionária 308


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para o filósofo alemão. Isso porque Benjamin entende a alegoria ―como implicada a um modo determinado de experiência, em uma maneira de perceber e de sentir o mundo como transitório, que em tudo sente a ameaça do declínio‖ (FRANCO, 2015, p. 42). Essa consciência da impermanência e, no limite, da morte, bem como do potencial significativo (e transformador) dos escombros que a historiografia positivista esqueceu é outro ponto fundamental da filosofia benjaminiana, da sua crítica literária e cultural que Franco comenta com propriedade. Outro ponto importante discutido em 10 Lições sobre Walter Benjamin é o interesse do filósofo alemão pelas vanguardas europeias e como ele pensou e repensou o papel da técnica na produção cultural ao examinar a relação da arte com o seu contexto de origem. No capítulo ―Rumo à crítica materialista da cultura‖, por exemplo, o autor explica que Benjamin defendia uma crítica que, ao mesmo tempo, abarcasse a realização estética enquanto forma e o aspecto social de uma obra. Para o filósofo alemão, portanto, o crítico ―deveria investigar os modos como as obras refletem sobre sua própria inserção na vida cultural ou social, ou como os escritores manifestam uma consciência de seu papel ou função social‖ (FRANCO, 2015, p. 57). Nesse sentido, o texto de Franco mostra que, como crítico, Benjamin atentava para a estrutura imanente das obras sobre as quais ele se debruçava, sua linguagem, no caso da literatura, e suas técnicas de filmagem e montagem, no caso do cinema. O autor de 10 Lições sobre Walter Benjamin também dá certa ênfase crítica ao modo como Benjamin buscava examinar de que maneira as escolhas técnicas do artista eram capazes de flagrar nuances da vida social que escapassem à percepção do público moderno. É nesse sentido, portanto, que ―o intelectual torna-se para [Benjamin] um ser político‖ (FRANCO, 2015, p. 58), porque o alcance crítico-interpretativo dessa noção habilita o filósofo a compreender o modo intrincado ―como funciona o aparelho burguês de produção cultural, que, ao transformar tudo em mercadoria, também assimila a crítica e tudo o que aparentemente se volta contra ele‖ (FRANCO, 2015, p. 62). Benjamin percebe, o livro de Franco mostra, como esse mesmo mecanismo pode converter a técnica em tecnicismo esvaziado de qualquer humanismo, possibilitando, desse modo, a existência de uma forma de barbárie totalmente aparelhada. O texto de Franco deixa claro que é a partir dessa consciência do poder de incorporação e domesticação do conteúdo revolucionário das obras e técnicas pela dinâmica capitalista que Benjamin define o seu critério de valoração crítica da literatura, da fotografia e do cinema. Para o filósofo alemão, ―a obra de qualidade seria aquela capaz de, consequentemente, refletir sobre seu papel no processo produtivo‖ (FRAN309


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CO, 2015, p. 65), argumento que retoma a reflexão de Benjamin sobre o romantismo alemão. Segundo a explicação de Franco, portanto, é por meio dessa atitude de indagação sobre sua própria natureza que a obra poderia, no limite, fazer cessar a dinâmica de agenciamentos e domesticações empreendida pelas forças do capital e pela noção burguesa de progresso denunciada por Benjamin. Além disso, a argumentação de Franco também sugere que, ao mesmo tempo, é a partir dessa autoconsciência estéticohistórica, tanto por parte da própria obra, quanto do crítico e do público, que poderia-se quebrar a continuidade do movimento opressor da história positivista e causalista à qual, o autor sugere, Benjamin ferrenhamente se opunha. O exame da imagem dessa interrupção da história pretendida pelo filósofo alemão fecha 10 Lições sobre Walter Benjamin. No capítulo ―Tempo e história: para interromper o curso do mundo‖, o autor discute as ―Teses sobre o conceito de história‖, explicando que elas foram escritas por Benjamin no limiar da Segunda Guerra Mundial e publicadas postumamente. Em linhas gerais, o conjunto desses textos constitui ―uma crítica radical à noção de progresso e de tempo‖ (FRANCO, 2015, p. 108). O autor explica, nesse capítulo, que é a partir da crítica a essas duas concepções, em larga medida agenciadas pelo senso comum da época, que Benjamin desfere seu ataque contundente ―às correntes históriográficas que [ele] genericamente denomina historicistas, ao processo social de dominação, à ideia de história universal [...]‖ (FRANCO, 2015, p. 109). A argumentação de Franco evidencia, nesse ponto, que o papel político do pensador que Benjamin se propôs a ser aparece, portanto, não apenas na sua rejeição das formas de historiografia calcadas no registro causal e ininterrupto do passado, mas, principalmente, na radicalidade do seu modelo de historiografia materialista. Por meio dele, Benjamin buscava, no limite, ―[...] promover uma ―revolução copernicana‖ na historiografia, que desembocaria na afirmação da ―história dos vencidos‖ (FRANCO, 2015, p. 109). E esse é um dos pontos mais abertamente políticos do seu pensamento. Benjamin nunca foi um Marxista ortodoxo, explica Franco, ecoando opinião quase consensual entre os inúmeros comentaristas brasileiros e estrangeiros da obra desse filósofo, uma afirmação corroborada tanto pelos ensaios de Benjamin quanto pela sua correspondência. De todo modo, Franco tem razão ao explicar que o filósofo alemão nunca perdeu de vista o conceito de luta de classes em suas reflexões sobre a arte e história. De fato, o autor de 10 Lições sobre Walter Benjamin sugere, pertinentemente, que o próprio fato de Benjamin falar em ―vencidos‖ e ―oprimidos‖ já aponta para isso. Ademais, Benjamin defendia ―a explosão do continuum da história dos ven310


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cedores‖ (FRANCO, 2015, p. 114) como única forma de resgatar a memória dos que foram esquecidos. A imagem retomada pelo autor mostra que esse é outro traço claro da preocupação do filósofo alemão com a noção de luta de classes. Tal preocupação, o texto de Franco sugere, se manifesta quando Benjamin pensa a dinâmica da organização social e dos conflitos de interesse ou de poder que produzem sujeição e submissão na sociedade burguesa. Para Benjamin, apenas o rompimento brusco com o historicismo e com a causalidade poderia extinguir ―[...] o mecanismo que garante a opressão e o poder de uma classe sobre as demais‖ (FRANCO, 2015, p. 114), argumento que, novamente, reforça o forte teor político dos escritos benjaminianos sobre história, ao mesmo tempo em que revela a dimensão messiânica (e, em larga medida, utópica) da sua reflexão, pontos sempre discutidos com precisão e concisão por Franco em seu livro. Em conclusão, 10 Lições sobre Walter Benjamin cumpre muito bem o seu objetivo de fazer um apanhado crítico geral e introdutório das principais ideias do filósofo alemão, principalmente se considerarmos que o pensamento de Benjamin, na sua expressão, sempre foi (e ainda é) bastante arredio a generalizações e avesso a tentativas de sistematização, características que o autor nunca perde de vista, nem tampouco subestima. Do livro de Franco emerge a figura de um Benjamin dotado de uma inteligência bastante perspicaz, dono de um estilo refinado de escrita, e criticamente atento às formas de configuração das diversas manifestações da barbárie. Por todas essas virtudes, 10 Lições sobre Walter Benjamin pode interessar tanto aos não iniciados no pensamento de Benjamin quanto aos estudiosos e/ou professores experientes que queiram se aprofundar nas principais ideias desse filósofo cuja obra é indispensável se quisermos compreender o século XX e até mesmo as primeiras décadas do século XXI.

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Revisitando o cancioneiro de Pero Mafaldo Henrique Marques Samyn76 EIRÍN GARCÍA, Leticia; FERREIRO, Manuel. O cancioneiro de Pero Mafaldo: edição crítica. Santiago de Compostela: Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en Humanidades, 2014. Esta edição crítica das cantigas atribuídas a Pero Mafaldo vem a lume pouco mais de três décadas após o volume editado por Segismundo Spina, As cantigas de Pero Mafaldo (1983) – dado que já evidencia a premência de um trabalho que, incorporando as pesquisas mais atuais em torno do trovadorismo peninsular, proporcionasse uma leitura mais atualizada do variado conjunto de cantigas associado ao trovador. Desta complexa tarefa se ocuparam Leticia Eirín Garcia, professora de Filologias Galega e Portuguesa da Universidade da Corunha, e Manuel Ferreiro, catedrático de Filologias Galega e Portuguesa na mesma universidade, do que resultou uma edição cuja excelência dificilmente poderá ser ultrapassada. Pouco se sabe acerca da vida de Pero Mafaldo, o que não é inusual no que tange a parte considerável dos trovadores e jograis galegoportugueses. A documentação sugere que tenha nascido já no século XIII, e atesta sua presença nas cortes castelhanas de Fernando III e Afonso X e na corte aragonesa de Jaime I. Entre os estudiosos que mais se dedicaram à investigação em torno de sua biografia, destacam-se António Resende de Oliveira e Vicenç Beltran. Para o historiador português (1994, p. 419-421) Pero Mafaldo era filho de Men Pais Mafaldo – possuidor de diversas propriedades no norte de Portugal, mais especificamente em Souto de Rebordões. Na documentação que lhe é associada, podem-se encontrar também os nomes dos trovadores João Garcia de Guilhade (que surge, ao seu lado, como testemunha de uma doação do padroado da igreja de Santa Cruz de Leça à Sé do Porto, datada de 1239) e João de Aboim (de quem possivelmente estaria a serviço em 1265). Já dentre os diversos apontamentos de Vicenç Beltran, chamam a atenção as observações em torno do ―provençalismo‖ da produção lírica de Mafaldo, bem como sua identificação como o ―Petrum, juglar‖ documentado a serviço de Jaime I de Aragão (2005, p. 247-275). 76

Professor Adjunto de Literatura Portuguesa da UERJ, atuando na graduação e na pósgraduação. Doutor em Literatura Comparada, com Pós-Doutorado em Literatura Portuguesa. 313


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Todas as nove cantigas de Pero Mafaldo foram conservadas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no qual estão distribuídas de modo irregular: as cantigas de amor – que Giuseppe Tavani (2002, p. 433) qualifica como ―convencionais‖, com exceção da cantiga dialogada (B 371) na qual Eirín Garcia e Ferreiro percebem ―tanto características do gênero de amigo como do gênero de amor‖ (p. 42; tradução nossa) – aparecem junto das de amigo, por exemplo, sendo que uma das últimas aparece depois das de Afonso Mendes de Besteiros. Quanto às cantigas satíricas, as dirigidas a Maria Perez e a Pero de Ambroa aparecem num mesmo fólio, ao passo que a composição moralizante Vej‘eu as gentes andar revolvendo (B 374) segue-se às mencionadas cantigas copiadas de modo contínuo. Na avaliação de Eirín García e Ferreiro, ―os seus versos estão tingidos dum moderado tom provençalizante tanto no que diz respeito ao uso dos motivos e ao léxico empregado como a algumas das formas estróficas pelas quais mostra clara preferência‖ (p. 11; tradução nossa), o que, para os editores, pode ser atribuído à passagem pelas cortes castelhana e aragonesa. Trazendo informações sobre os manuscritos, edições e variantes, bem como sobre a métrica e os artifícios de cada uma das cantigas, esta minuciosa edição merece destaque também pelos comentários – que analisam as composições tanto no âmbito específico da obra de Pero Mafaldo, considerando aspectos estéticos, retóricos e lexicais, quanto no conjunto geral da poética trovadoresca; e pelas notas, que explicitam e justificam as opções adotadas pelos editores. Meramente à guisa de exemplo, destacarei alguns trechos de seções dedicadas a duas das cantigas, a fim de evidenciar a qualidade do trabalho em tela. Os comentários acerca de O meu amig‘, amiga, que me gran ben fazia [B 383] enfatizam que, embora a cantiga trate da separação – por motivos não evidenciados – entre a amiga e o amigo, topos nada estranho ao gênero, ensejando à voz poética feminina queixas e acusações que denunciam as mentiras contadas por aquele (―máis foron de cento‖!), a cantiga se singulariza por pelo menos três motivos: apresenta um topônimo (Catalonha), utiliza um léxico próprio do contexto da homenagem feudal e encerra construções características do registro oral. Já os comentários em torno de Maria Perez, and‘eu mui coitado [B 1513], cantiga dedicada à célebre ―Balteira‖ que se insere entre as paródias do gênero de amor, demonstram eficazmente como a equivocatio reside não apenas na ambiguidade semântica de alguns termos (sobretudo no que tange à antítese bem/mal), mas também no modo como o texto, por seu sentido geral, desestabiliza o horizonte de expectativa dos receptores. O volume de Eirín García e Ferreiro constitui, em síntese, uma 314


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contribuição de extrema relevância para os estudos contemporâneos acerca do trovadorismo galego-português; se há sempre alguma imprudência em considerar qualquer trabalho como definitivo, julgo possível assegurar que esta permanecerá uma referência incontornável para qualquer investigação acerca do tão singular cancioneiro de Pero Mafaldo. Bibliografia BELTRAN, Vicenç. La corte de Babel: lenguas, poética y política en la España del siglo XIII. Madrid: Gredos, 2005. OLIVEIRA, António Resende de. Depois do espectáculo trovadoresco: a estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV. Lisboa: Edições Colibri, 1994. SPINA, Segismundo. As cantigas de Pero Mafaldo: texto estabelecido, com notas e glossário. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. TAVANI, Giuseppe. Trovadores e jograis: introdução à poesia medieval galego-portuguesa. Lisboa: Caminho, 2002.

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