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um ensaio sobre a cidade e um projeto de uma escola Flavio A. D. Bragaia



um ensaio sobre a cidade e um projeto de uma escola trabalho final de graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo Flavio A. D. Bragaia orientador_Antonio Carlos Barossi

novembro_2012



obrigado Meus anos de aluno do curso da graduação em arquitetura e urbanismo foram mais do que o tempo durante o qual eu aprendi sobre desenho e sobre projeto. As questões enfrentadas ao longo desses anos vão muito além da arquitetura e fazem parte da formação do arquiteto, do cidadão e do indivíduo. Esse enfrentamento foi, em diversos momentos, um trabalho coletivo, que inclui o esforço no sentido de, ao mesmo tempo, me sentir mais seguro e saber que sempre existe uma maneira diferente e desconhecida de encarar o que temos como fato. Meus humildes agradecimentos à minha família; aos professores com os quais eu tive a chance de conviver, em especial aos membros da banca Carlos Ferrata e Angelo Bucci, e ao orientador deste trabaho, Antonio Carlos Barossi; e aos amigos que direta ou indiretamente colaboraram com este trabalho: Anna Beatriz Lorens, Ana Paula Kajihara, Bartira B. Ataliba, Bhakta Krpa, Camila Gascon, Christian Kawashita, Cíntia Kobayashi, Daniela Carasco, Eric Nishimura Kiyomoto, Everton Rossete Junior, Fábio Teruo Kase, Fernanda B. T. Aguiar, Fernando Shoiti Ito, Geroges Boris, Gustavo Rodrigues Galvão, Juliano Ijichi Machado, Leonardo Klis, Luís Fernando Z. Tavares, Marcela Fukue, Maria Fernanda Miserochi Dias, Maria Gabriela Nascimento Bozolan, Marina Barrio, Marinho Velloso, Mauricio Mikami Akio, Pamela Bassi, Rafael de Barros Novaes, Ricardo Nucci, Julia Farkas e Ticiante T. Todo.



índice pág. 07_sobre pág. 21_o projeto pág. 67_ensaio sobre a cidade pág. 69_parte 01_base teórica pág. 77_parte 02_breve passagem pelas origens da cidade contemporânea enquanto idéia pág. 83_parte 03_breve passagem pela história de São Paulo até o início do processo de industrialização pág. 85_parte 04_breve passagem pela história de São Paulo entre o início do processo de industrialização e o final do século XX a partir da leitura de textos cujos autores encaram a cidade como um fenômeno político pág. 91_parte 05_apontamentos sobre a infraestrutura como elemento articulador do tecido urbano pág. 94_parte 06_apontamentos sobre novas dinâmicas urbanas pág. 97_parte 07_apontamentos sobre o plano diretor pág. 100_parte 08_paradoxos pág. 105_parte 09_apontamentos sobre o poder público pág. 110_parte 10_apontamentos sobre o centro e a periferia pág. 117_parte 11_apontamentos sobre o acordo de respeito mútuo entre o público e o privado pág. 122_parte 12_inquietação estudantil e o papel da escola pág. 127_parte 13_diretrizes para o projeto pág. 131_bibliografia pág. 135_croquis



sobre Este caderno apresenta o resultado do meu Trabalho Final de Graduação. O trabalho em questão é composto por um texto, um ensaio sobre a cidade, e por um projeto de uma escola. Procuro explicar nos parágrafos a seguir que as duas coisas são uma. São elementos distintos de um mesmo corpo. Como idéia, este trabalho vem sendo construído desde 2010. A princípio a dúvida era se meu TFG deveria ser uma pesquisa sobre as questões que me causavam inquetação enquanto estudante de arquitetura ou o projeto de uma escola. Mais a frente eu decidi que eu queria fazer as duas coisas e a questão passou a ser a contrução da ponte. Durante a leitura de Inquietação teórica e estratégia projetual, encontrei sem estar procurando a resposta em uma frase, com a qual o autor constrói a descrição de um projeto de Aldo Rossi, e a partir daí, em tudo que eu lia eu buscava relações entre o desenho do edifício e o projeto da cidade:

1.MONEO, Rafael. Inquietação teórica e prática profissional na obra de oito arquitetos contemporâneos. São Paulo: Cosac Naify, 2008. pág. 109

“Rossi deleita-se mais tarde em pensar como as crianças chegam a ela em procissão, através de uma série de pórticos, e em imaginar como chegam às classes e aos espaços abertos onde começarão a entender o que significa a ida social.” (1) A idéia de escrever um ensaio sobre a cidade nasceu como uma forma de desenvolver um estudo sobre as questões que são colocadas diante dos alunos da graduação do curso de arquitetura e urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Eu estabeleci como objetivo criar um panorama teórico sobre as questões que se destacaram diante de mim como estudante, colocá-las uma do lado da outra e buscar as relações entre essas questões, e com isso construir uma postura diante da cidade a partir da qual os projetos de arquitetura podem se tornar parte de um esforço no sentido de construir uma cidade mais justa. Isso significa que esse texto é, em parte, uma coletânea de textos escritos ao longo dos últimos anos em função de determinadas disciplinas mas também é o resultado de uma pesquisa sobre as relações entre projeto de arquitetura e cidade que começou antes mesmo de eu estar inscrito na disciplina do TFG. Esse trabalho também é um trabalho de projeto - é preciso investigar a forma no espaço de certas idéias. Um dos aspectos deste exercício é a vontade de desenhar um conjunto de edifícios que estabeleça relações com a cidade que vão além da analogia. Para isso é preciso construir uma postura diante do


Viela entre a Cidade Universitária, à direita, e a área de intervenção, à esquerda. FADB, 2012.

projeto a partir da qual a cidade está sempre visível e em perspectiva. Pesquisa e projeto da maneira como são encarados neste trabalho, não poderiam existir separadamente. A justificativa teórica para a escolha do programa do projeto está contida no texto. O programa foi sendo construído ao longo do desenvolvimento do projeto, ao longo do exercício do desenho. Este processo incluiu a leitura de textos e a visita a escolas que construiram projetos pedagógicos que rompem com o ensino tradicional. Tal processo foi tão importante que é possível dizer que se este trabalho tivesse que ser redesenhado ou se o desenvolvimento o projeto começasse hoje, o resultado seria muito diferente deste apresentado. Mas esta também é uma escolha bastante pessoal. As questões que vinham sendo construídas diante de mim sobre a educação quando eu ainda era um estudante do Ensino Médio – professores em um tablado despejando seu conhecimento sobre os alunos sentados em fileiras, de frente para a lousa, de costas para as janelas – foram as primeiras questões que eu pensei a partir do seu espaço. O texto e o projeto são duas maneiras distintas de investigar os mesmos temas.


Rua Aquianés, esquina com a rua Baltazar Rabelo, favela São Remo. À direita, uma escola de circo e uma série de espaços públicos improvisados na fronteira entre a favela e a Cidade Universitária. No térreo do lado edificado da Rua Aquianés existem diversos pequenos estabelecimentos comerciais. FADB, 2012.

Por trás da construção da cidade que conhecemos existe a idéia de que um determinado espaço consegue ser autônomo em relação à cidade. Essa idéia é uma ilusão - a mão é distinta em relação ao braço, mas não é autônoma, ou seja, autonomia e distinção são coisas diferentes. A distinção é boa ou ruim – ruim se ela for a base da desigualdade de direitos. A idéia ilusória de autonomia é oposta à propria natureza da cidade, que é uma associação de indivíduos que em algum momento perceberam que o todo é maior que a soma das partes. Uma cidade construída a partir da idéia de autonomia só pode ser uma cidade esquizofrênica. A questão é: como os edifícios podem aprofundar ou romper a idéia de autonomia? O que deve ser entendido é que o projeto deve ir além da analogia. “O corredor é como a rua.” Não é, um corredor é um corredor e uma rua é uma rua, mas ambos fazem parte da cidade. O que define esses princípios que unem a rua e o corredor é o acordo de respeito mútuo entre os indivíduos e o coletivo – chamado por russeau de corpo político ou povo. Na cidade na qual vivemos a expressão do indivíduo é a propriedade privada e a expressão do coletivo é o domínio público – mais uma vez, se o domínio público se comporta como a propriedade privada, ou se os indivíduos negam o coletivo (isso pode acontecer de diversas formas inclusive como tentativas de conferir autonomia


Rua Baltazar Rabelo, favela São Remo, vista para a área de intervenção. O muro é o apoio das coberturas que protegem os carros que não entram nas ruas mais estreitas da favela. Neste trecho, pequenos estaelecimentos comerciais ocupam o térreo de algumas construções. FADB, 2012.

a um determinado espaço), a naturaza da cidade é negada e o resultado é esquizofrênico. O que o indivíduo pode oferecer para a cidade e o que a cidade pode oferecer para os indivíduos? Se o elemento individual do qual estamos falando for o edifício, a melhor maneira de trabalhar essa questão talvez seja o exercício da atividade de projeto. A área de intervenção escohida para este exercício é composta por um terreno vazio, por um pedaço de um estacionamento e por um pequeno edifício que, segundo a população local, está ha dez anos sendo construído, mas o projeto aqui apresentado não inclui. No entorno estão a Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira, a favela São Remo e a Avenida Corifeu de Azevedo Marques, ou seja, a área está no encontro de três situações urbanas distintas, e por isso parece o local ideal para a discussão de um projeto cujo objetivo é contestar a idéia de autonomia dos espaços. O estudo de cheios e vazios deixa claras as diferenças entre os três padrões de ocupação. A ocupação da Cidade Universitária é esparsa, baseada no uso do automóvel e na concentração de usos em grandes edifícios que tendem a se isolar e se fechar cada vez mais em relação à cidade que fica fora dos muros do


Rua Baltazar Rabelo, favela São Remo, vista para a área de intervenção. À direita, instalações da Sabesp. Além de ser uma passagem, a rua, neste trecho praticamente sem edifícios, é um estacionamento e um depósito de lixo. FADB, 2012.

campus. O padrão da São Remo é característico de favelas, isto é, muito denso, marcado pelas reentrâncias acessíveis somente por pedestres. Já o entorno formal do campus é marcado pelo cruzamento de três avenidas importantes, a Avenida Corifeu de Azevedo Marques, a Avenida Escola Politécnica e a Avenida do Jaguaré - as duas últimas muito desinteressantes para o pedestre. A condição é confirmada pela ocupação de suas margens, que marcadas por grandes lotes e grandes construções, em geral, ligadas a setores da indústria, isto é, configuram unidadesde produção ou de armazenamento que apontam para atividades ligadas à CEAGESP e para a histórica ocupação do bairro de Jaguaré por indústrias. Hoje, a ocupação da Avenida Escola Politécnica e da Avenida do Jaguaré também é marcada pelo contraste existente entre microregiões de classe alta como o Parque dos Príncipes e bairros de classe média e baixa como o Jardim D’Abril. Já região do entorno da Cidade Universitária vem passando por um processo de verticalização e adensamento que ainda não descaracterizou boa parte das zonas estritamente residenciais, marcadas por lotes estreitos e longos, casas baixas, recuos pequenos ou inexistentes, e em alguns casos, calçadas arborizadas e ruas cujo desenho é claramente resultado de um projeto. O


A idéia é que ao passar pelo conjunto, poderíamos escolher o caminho mais direto oferecido pelo anel, ou a “promenade” oferecida pelo terreno construído e pelos edifícios.

crescimento do distrito do Butantã vem provocando, por um lado, o aumento da diversidade de usos, por outro, o aumento do tráfego de automóveis, mas os esforços no sentido de isolar a Cidade Universitária em relação ao lado de fora fazem com que o campus sinta apenas os efeitos negativos do desenvolvimento do seu entorno, sobre o qual a universidade tem muito pouca ou nenhuma influência. A Avenida Escola Politécnica foi construída às margens do Córrego do Sapé. O relevo da região é inconstante e a hidrografia é bastante complexa e está, em geral, escondida. O programa projetado está dividido em cinco blocos construídos. Na parte mais baixa do terreno estão os dois blocos que abrigam as atividades esportivas: em um bloco contém uma quadra coberta, um espaço para escalada e ginástica e uma quadra descoberta, em outro existem vestiários, salas para atividade física, uma piscina coberta e uma piscina descoberta. Na cota intermediária do terreno está o edifício de serviços, onde estão o restaurante, uma biblioteca, um espaço de exposições, uma midiateca e a administraçao do conjunto (que inclui diretores e coordenadores da escola propriamente dita). E na cota mais alta do


terreno estão o edifício do teatro e o bloco didático, que abriga o equivalente a 36 salas de aula e nove estúdios, além de uma creche. A principal diferença entre as salas de aula e o estúdio é a possibilidade de subdivisão do espaço e, portanto, a escala de apropriação desses espaços: as salas de aula oferecem a possibilidade de compartimentação e, mesmo quando nenhuma sala está fechada, ainda existem nichos nos quais grupos pequenos podem se reunir e desenvolver atividades. A sala de aula é “um ninho seguro”, um lugar para o qual “cada criança poderá trazer sua própria planta”, um lugar que ofereça condições de isolamente sem sacrificar a dimensão coletiva do espaço. O estúdio, por outro lado, que olha para a rua e para a cidade, é o local da escala coletiva. Nesses espaços podem acontecer experiências de biologia, aulas de arte, reuniões políticas, aulas com um quadro negro, podem ser simplesmente espaços de trabalho para diversos grupos pequenos, ou isso tudo pode acontecer ao mesmo tempo. A relação entre o indivíduo e o mundo no qual ele vive deve ser uma relação de troca, e o papel da escola não deveria ser “moldar o indivíduo” e sim dar a ele as ferramentas para participar dessa troca.


Avenida Corifeu de Azevedo Marques, vista para a Rua Pangaré. Ao fundo à direita, um fragmento da favela São Remo e o Hospital Universitário; ao fundo à esquerda, a área de intervenção. Os dois lados da avenida e a avenida propriamente dita têm características bastante distintas. FADB, 2012.

No bloco didático não há diretoria, sala dos professores e nenhum outro espaço “administrativo/burocrático”. A diretoria e a secretaria ficam na administração do conjunto, no bloco de serviços, e os professores ficam com os alunos. Eles podem ter suas mesas, seus armários, mas não constituem um grupo à parte. Os blocos estão no alinhamento do terreno configurando a rua e liberando o espaço interno da quadra. Essa praça interna é o local onde estão os principais acessos aos edifícios, é aonde acontece a transição entre a escala da cidade e a escala do edifício, e portanto é um espaço de passagem importante, mas também é um espaço de estar que oferece possibilidadesde apropriação em diversas escalas. É um conjunto de praças nas quais a principal atividade é o encontro. Entre a cota mais alta e a mais baixa do terreno existe um desnível de quase 30 metros. Esse desnível sugeriu a compartimentação do programa e o desenho de diversas praças. Sugeriu também o desenho de uma estrutura que costurasse todo o terreno e que oferecesse uma maneira de vencer o desnível mais direta que a promenade oferecida pelo piso. Esta estrutura se tornou o anel de circulação que parte da cota mais alta, aonde ele é somente uma cobertura, se


Rua Pangaré, Hospital Universitário. À direita, a área de intervenção. A fronteira entre a favela e a Cidade Universitária é controlada. FADB, 2012.

liga aos edifícios e, por torres de circulação, à pontos importantes do centro da quadra. Alguns trechos são levemente inclinados para facilitar a descida e a subida no ponto de maior desnível. Todo processo abriu um número tão grande de questões que o que não foi feito e o que não foi desnehado é tão importante quanto o que está aqui.


Avenida Corifeu de Azevedo Marques, vista para Cidade Universitária. Ao fundo à direita, um fragmento da favela São Remo e o Hospital Universitário; ao fundo à esquerda, a favela São Remo; ao centro, atrás do supermercado, a área de intervenção. FADB, 2012.



Avenida São Remo. À esquerda, a área de intervenção; à direita, um fragmento da favela São Remo e investimentos pontuais do mercado imobiliário. FADB, 2012.




o projeto


implantação



cheios e vazios



planta cota 741.325



planta cota 744.825



planta cota 749.200



planta cota 753.575



planta cota 758.650



planta cota 760.575



planta cota 766.000



planta cota 769.500



planta cota 773.000



planta cota 776.500



planta cota 780.000



corte BB/AA



corte CC



corte DD/EE/FF



corte GG/HH/II



vista 1/3



vista 2/4



modelo eletr么nico


Pรกteo do bloco didรกtico.


Vista para o edifício de serviços. Ao fundo o edifício do Teatro.


Vista para o bloco de esportes de quadra, ginรกstica e escalada.


Vista para a esquina da Rua Baltazar Rabelo com a Avenida S達o Remo.




ensaio sobre a cidade



parte 01_base teórica No primeiro semestre de 2011 o governo do Estado de São Paulo desistiu de construir uma estação de metrô em Higienópolis porque se sentiu pressionado por um documento contendo 3500 assinaturas (menos de 0,02% da população da área metropolitana de São Paulo) de pessoas que queriam que o acesso ao bairro não fosse facilitado. Sem perceber a esquizofrenia do seu próprio discurso, essas pessoas querem se manter isoladas do resto da população, mas perto de tudo o que a cidade oferece, querem que o governo resolva o problema do trânsito, mas não quer andar de transporte público. É preocupante pensar que essas pessoas acreditam que o metrô traria mais problemas do que soluções. E é ainda pior perceber que o governo do estado decidiu atender às vontadesde uma pequena elite em detrimento das necessidadesde todos os outros moradores da região metropolitana e, principalmente, da cidade como um todo. De onde vem essa noção deturpada da classe média-alta paulistana a respeito de o que é viver bem?

2.KOOLHAAS, Rem. Para além do delírio. In: NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2a ed. rev., 2008. pág. 363

“O lamentável nessa situação – de um lado, uma ilusão de poder desligada de qualquer eficácia operativa, e, de outro lado, a despreocupação com toda revindicação de eficácia operativa – é o abandono de um território completamente devastado que nossa geração descobriu em retrospecto, mas com o qual foi incapaz de encontrar uma forma significativa de relação. Esta é, sem dúvida, uma situação trágica.” (2) Este parágrafo do texto Para além do delírio, de Rem Koolhaas, é um trecho de uma conferência que o arquiteto apresentou na Escola de Arquitetura da Universidade de Toronto em 1993 e descreve a incapacidade dos arquitetos de agir sobre a cidade e a falta de justificativas sobre a sua forma contemporânea, deixa claro o tom de crítica à cidade contemporânea do livro Nova York Delirante, editado pela primeira vez em 1978. Os próximos parágrafos foram escritos como uma tentativa de esboçar um breve panorama teórico na base do qual os escritos de Koolhaas estão presentes, a partir do qual algumas afirmações são feitas mais a frente ao longo do texto. O quadro montado por Koolhaas sobre a cidade contemporânea descreve esta cidade a partir de seus arranha-céus. Os arranha-céus, construções genéricas, lugares sem lugar, que começaram a ser desenvolvidos no final do


séc XIX graças ao elevador de Elisha Otis apresentado em 1853 na Exposição Internacional de Nova Iorque, representam a inversão na qualidade dos pavimentos de um edifício. Antes do elevador, os pavimentos mais baixos de um edifício eram os mais valorizados. A introdução desse mecanismo representa a possibilidade de multiplicar infinitas vezes a área de um terreno, e cada pavimento de um edifício traz a possibilidade de construir um novo mundo, absolutamente separado de todos os outros e sem as falhas do mundo exterior, diferente, climatizado, privatizado. O elevador separa o homem do chão e o coloca em contato com a natureza, com luz e com o ar puro. Com isso, a cidade se torna um conjunto de realidades autônomas justapostas, e um conjunto de lógicas independentes sobrepostas.

3.BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 143

Em cada uma das construções, cada um dos diferentes espaços apresenta para a sociedade, a partir de uma contestação, uma versão invertida e aperfeiçoada dela mesma. Todos os elementos da sociedade são representados dentro de cada um dos espaços. Para Michel Foucault, vivemos em uma época de simultaneidade, herdeira, primeiro do espaço medieval de localização, segundo do espaço renascentista infinito, de expansão, aberto por Galileu. O espaço de hoje é o espaço da ocupação, isto é, se ocupa um vazio em uma estrutura classificatória construída a partir de um conjunto de redes sobrepostas pensadas, por sua vez, a partir das relações que os espaços contém e estabelecem entre si. “Mas todo o arranjo é uma cena fechada e independente, com um equilíbrio finito em si próprio: a cidade é o conjunto desses ambientes destacados, e para seu próprio benefício não é nem fechada nem equilibrada: cobre um trecho do território, desfigurando a forma natural do terreno, e rechaça o campo para longe.” (3) Aos poucos, a cidade se torna um conjunto de condomínios ligados por ruas sem dono pela exploração da idéia de que cada espaço é um mundo autônomo, diferenciado, reservado, especializado, que contém sua própria lógica, independente de todas as outras e que ao mesmo tempo reproduz e nega todas as lógicas que organizam e reproduzem o conjunto que é a cidade. Nesta cidade, o ato de se reunir como uma comunidade dá lugar à abdicação da identidade e à composição de massas disformes nos lugares aonde a população necessariamente está parcialmente reunida, cada indivíduo ignorando e sendo ignorado por todos os outros.


“O elevador é a grande profecia que se autorrealiza: quanto mais alto ele vai, mais indesejáveis são as circunstâcias que deixa para trás. Ele também estabelece uma relação direta entre a repetição e a qualidade arquitetônica: quanto mais alto o número de andares empilhados ao redor do poço, mais espontaneamente eles solidificam uma única forma. O elevador gera a primeira estética baseada na ausência de articulação.” (4) De certa forma, o arranha-céu é herdeiro do parque de diversões, mas, apresentando um conjunto de realidades paralelas, essas construções não se sustentam, como idéia, perante a cidade. Para sustentar o arranha-céu como idéia existe a necessidade mais ou menos legítima (isto é, hora mais, hora menos legítima) de adensamento, inserida em um conjunto de relações entre a infraestrutura e as construções a ela ligadas, que muitas vezes parecem não fazer sentido.

4.KOOLHAAS, Rem. Nova York Delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008. pág. 106 5.KOOLHAAS, Rem. Nova York Delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008. pág. 157

Tal processo é descrito tanto por Koolhaas como por Robert Venturi e Denise Scott Brown sob a idéia de adensamento isolado, isto é, cada edifício concentra dentro dele mesmo a maior diversidade de usos possível, estando tão separado quanto possível dos demais edifícios. A relação entre as construções é pautada pela competição. Perante os cidadãos, cada edifício quer ser, dentro e fora, um espetáculo único e fantástico, ainda que sem enredo. A intensão parece ser criar uma cidade de torres, e dentro de cada torre uma cidade com todos os seus programas - a congestão do edifício descongestionaria a cidade, segundo Koolhaas. “O Baile à fantasia é a única convenção formal em que os desejos de individualidade e de extrema originalidade não colocam em risco a atuação coletiva, sendo, pelo contrario, condição para que ela se dê.” (5) Robert Venturi e Denise Scott Brown em Aprendendo com Las Vegas descrevem uma cidade cujo principal elemento é o corredor comercial, uma longa rodovias como um suporte para os edifícios comerciais, que por sua vez se relacionam com o espaço envolta à medida que oferecem suas fachadas como suporte para algum tipo de informação. Os autores comparam o corredor comercial – a strip norte-americana – aberta e caótica, com a piazza romana que ilustra um meio urbano fechado, além de estabelecerem relações entre estacionamentos de supermercados e o paisagismo de Vesalhes. Segundo Kate Nesbitt, organizadora do livro Uma nova agenda


Elevado Presidente Costa e Silva, São Paulo. FADB, 2012.

para a arquitetura, esse texto faz parte da construção de um argumento a favor da idéia de que os arquitetos dirijam sua atenção para determinados aspectos da disciplina da arquitetura. Em Aspectos da disciplina da arquitetura, Nesbitt faz uma referência à discussão sobre o sentido da linguagem da arquitetura e consequentemente sobre os edifícios como suporte para a comunicação. Venturi e Scott Brown declaram sua preferência pelo galpão decorado sobre a duck architecture – uma ilustração do expressionismo funcionalista, um reducionismo pejorativo do princípio modernista que diz que a forma do edifício deve expressar sua função, que aparentemente criou uma confusão entre funcionalismo e figurativismo. De acordo com os autores, os arquitetos modernistas trabalhavam com um repertorio de símbolos, imagens e analogias ligados ao universo industrial (o texto parece não saber se a linguagem modernista foi uma opção estética ou construtiva) embora tenham feito um grande esforço no sentido de desqualificar todos os determinantes da forma arquitetônica exceto a estrutura e o programa. A abstração limitaria o conteúdo que pode ser deduzido de um edifício e, portanto, são necessários meios de transmitir conteúdos de forma


mais ampla, daí a necessidade do outdoor, elemento que compõe o repertório “vernacular comercial”. Venturi e Scott Brown falam sobre a interpretação dos elementos arquitetônicos. Herman Hertzberger, por outro lado, fala sobre a interpretação sobre a forma que se manifesta em um determinado uso – a questão de Hertzberger não é sobre o repertório de elementos arquitetônicos que se unem para formular uma mensagem, e sim sobre as possibilidadesde apropriação de um determinado espaço. A cidade descrita por Robert Venturi e Denise Scott Brown é uma cidade na qual os principais elementos são a estrada e seus acessórios, que geram espaços para empreendimentos individuais, controlam o crescimento dos empreendimentos e acomodam “a ordem contrapontística e competitiva dos empreendimentos”, possivelmente o resultado da convergência entre a superioridade dos meios materiais e o prestígio da cultura. Em uma cidade como Las Vegas, o papel do Estado é fornecer a infraestrutura que os investidores precisam para instalar seus cassinos. Todos os espaços à margem das estradas são privados e controlados pelos interesses dos seus donos.

6.SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo, Cosac Naify, 2003. pág. 47

“Os elementos da estrada são cívicos. Os edifícios e letreiros são individuais. Em combinação, eles abarcam continuidade e descontinuidade, ir e parar, clareza e ambiguidade, cooperação e competição, a comunidade e individualismo feroz. O sistema da estrada dá a ordem às funções sensíveis de saída e entrada, bem como à margem da strip como um todo sequencial. Ele também gera lugares para que empreendimentos individuais cresçam e controla a direção geral desse crescimento. Ele possibilita variedade e mudança ao longo de suas margens e acomoda a ordem competitiva e contrapontística dos empreendimentos individuais.” (6) A infraestrutura é construída segundo uma lógica contrária à idéia de cidade como um evento coletivo: ela satisfaz primeiro os usos individuais, e secundariamente os usos coletivos. O poder público resolve a circulação, enquanto a habitação, o trabalho e o cultivo do corpo são problemas individuais, resolvidos pela propriedade. Certos autores entendem essa distribuição de atribuições como uma das características típicas da cidade pós liberal, cuja intensão é privilegiar as funções produtivas, acima de tudo a circulação e o comércio – representado pelos cassinos de Venturi e Scott Brown - em detrimento de todas as outras. Cada função tem que estar claramente definida e separada das outras as quais ela se justapõe no espaço. O resultado é uma cidade na qual a circulação se faz


quase que exclusivamente com carros – os automóveis substituem os pedestres, o exercício da cidadania é substituído pelo exercício do consumo, e se dá com uma condição: é preciso ter um automóvel. No processo, a arquitetura perde a função diante da propaganda e a imagem da cidade perde força de dentro dos carros. “A percepção do movimento ao longo de uma estrada está dentro de uma ordem estrutural de elementos constantes – a estrada, o céu, o espaço entre as faixas amarelas. A pessoa pode se orientar por isso, enquanto o resto simplesmente acontece!” (7)

7.SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo, Cosac Naify, 2003. pág. 101

Hertzberger afirma que os indivíduos deixaram a prosperidade acentuar o individualismo e colocar o coletivismo além da compreensão do homem comum. As pessoas fazem menos coisas juntas. A rua meramente como um corredor é um lugar no qual as pessoas, cada uma em seu automóvel, não constroem relações pessoais nem entre si, nem com o espaço que ocupam. A rua como espaço de encontro deixa de ser viável. O contato com a rua é cada vez menor: eu preciso de um carro para me proteger dos outros carros. A calçada não é nem parte da rua, que é aonde passam os carros, nem parte da casa, que é a propriedade da família. É como se os indivíduos não tivessem nenhuma relação com o espaço além de suas casas, sobre o qual se consegue exercer pouca influência, em parte graças ao esforço precário e equivocado do poder público no sentido de impor uma determinada ordem. O lado de fora é uma ameaça, o que faz com que nos fechamos cada vez mais. O espaço público se torna ”terra de ninguém” à medida que, por um lado, os indivíduos não se sentem responsáveis por ele, e por outro, as instituições criadas para cuidar desses espaços, para fazer pelas pessoas o que elas não conseguem fazer por elas mesmas, estão mais preocupadas com a própria continuidade do que com as funções para as quais elas foram criadas para exercer. Ainda segundo Hertzberger, quando isso acontece, a burocracia assume o controle – aqueles que estão dentro dessas instituições estão afastados de mais daqueles pelos quais, em tese, o sistema foi criado. A alienação torna as relações mais agressivas e os regulamentos mais rígidos, a falta de comprometimento em relação aos espaços públicos e o medo exagerado do “caos lá fora” alimentam-se mutuamente. O caos lá fora é o resultado da batalha entre diversas noções individuais de ordem por uma parcela do espaço na qual cada uma delas pode existir e ser


soberana. Isto é, as pessoas, cada uma dotada de sua própria noção de ordem, em vez de construir espaços de convivência, entram em conflito, e o poder público ignora os problemas gerados pela imposição da sua ordem em nome da manutenção da instituição, ou encara esses problemas como coisas corriqueiras, normais, naturais, e não como sintomas de uma serie de conflitos maiores. Alguns teóricos acreditam que a intensão de Venturi ao defender uma arquitetura baseada na complexidade, na ambiguidade e na confusão, era expandir o conceito de ordem. No texto A Cidade genérica, Rem Koolhaas descreve uma cidade que, em qualquer lugar do mundo, só pode ser um produto importado. Não há esfera pública, só existe a esfera dos negócios, não há tempo, só existem momentos esparsos conectados no mundo virtual. Em um ápice de contradição, os aeroportos se tornam os lugares mais característicos e a cultura vernacular está expressa na sua forma mais intensa – como um produto. A condição de estar “em trânsito” é permanente e universal. A cidade genérica é o que sobrou daquilo que costumava ser uma cidade, todo o resto foi jogado fora.



parte 02_breve passagem pelas origens da cidade contemporânea enquanto idéia Devemos assumir que a cidade não é um evento natural, mas uma construção histórica e social; e que todo projeto de arquitetura, não importa a escala no qual é melhor representado, contém em si uma cidade - isso não quer dizer que todos os projetos são desenhados conscientemente a partir de um conjunto de relações entre uma cidade ideal e uma interpretação sobre a cidade real, que aparecem de maneira clara e objetiva, e que pautam as decisões do projeto, mas, todo edifício constrói a cidade. Se o primeiro indivíduo que cercou um pedaço de terra e disse “isso é meu” instituiu a propriedade, e se a cidade é fruto do trabalho humano, quando um indivíduo cerca um pedaço de terra e diz “isso é meu”, esse pedaço de terra passa a ser fruto do trabalho humano.

pág. anterior: Luz, São Paulo. FADB, 2010;

Apesar das dificuldades em definir o que é uma cidade, o espaço urbano pode ser diferenciado em relação à terra rural e definido como uma porção de um determinado território servida por uma rede de acesso e de infraestrutura, e por um ou mais equipamentos públicos. Uma série de interpretações sobre a forma do espaço urbano partem da identificação e da diferenciação entre espaços fechados e espaços livres que, a princípio, configuram a rede de acesso e, em muitos casos, servem como o suporte para as redesde infraestrutura. Quando Leonardo Benevolo descreve os métodos de colonização e unificação do Império Romano, aponta três processos de modificação do território que seguem derivações do mesmo código de regras: a fundação de cidades com funções especificas, o planejamento e a organização das terras agrícolas, e a instalação de infraestrutura. Segundo o autor, a cidade nasce a partir da aldeia que passou por um processo de divisão e especialização do trabalho e se transforma em um organismo diferenciado aonde cada elemento da natureza e da tradição são utilizados para um determinado fim. As atividades da cidade são mantidas pelo excedente das atividades do campo e fornecem elementos para a qualificação das atividades rurais. O avanço técnico garante o domínio da cidade sobre o campo, a ampliação e o melhoramento das atividades agrícolas, o aumento do excedente acumulado, e a concentração do excedente na cidade. Isto é, o campo, aonde se produz o excedente, é subordinado a cidade, aonde é estocado e distribuído o excedente.


Definir o espaço urbano não basta para entender a cidade. Entende-se que as principais origens do modo como pensamos e construímos a cidade ocidental de hoje são a Revolução Francesa e o processo de industrialização de alguns países europeus durante o seculo XIX chamado de Revolução industrial. Foucault acredita que a Revolução Francesa instituiu o pensamento sobre os espaços por oposição: privado versus público, familiar versus social, cultural versus utilitário, espaço de lazer versus espaço de trabalho – o ócio, nesta cidade, é considerado um desvio de conduta. Os espaços de trabalho e os espaços de convívio familiar também são colocados em oposição aos espaços de representação e ostentação da riqueza acumulada pela indústria. Estes espaços se tornam cada vez mais sofisticados e especializados, assim como os espaços de transição que marcam a separação entre as diferentes funções da casa e da cidade.

8.BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 551

O processo de industrialização e a consequente imposição de um novo ritmo de vida, marcado pelo tempo da máquina (que por sua vez, a princípio, é determinado pelo tempo do comércio de produtos industriais, cujo tempo é cada vez menor e cuja escala é cada vez maior), o aparecimento de novos meios de comunicação (que dependem de novos símbolos), e a criação de uma cultura de massa pautada pela segregação social baseada no poder de consumo, estão associados à inversão entre a importância da mensagem e a importunância do símbolo. Certos teóricos afirmam que em sua origem, a sociedade burguêsa, construída a partir da idéia de liberdade, igualdade e fraternidade, e apoiada na idéia de concorrência, oportunidade e lucro, entra em contradição com a família burguêsa, estruturada a partir de idéias aristocratas. Leonardo Benevolo aponta que, após a Revolução industrial, pela primeira vez na historia os índices de natalidade se distanciam dos índices de mortalidade. O aumento do número de habitantes na cidade, sobretudo de jovens, devido à queda da mortalidade infantil e ao êxodo rural que levou para as cidades um grande contingente populacional que tem que se adaptar a um novo modo de vida e a um novo tipo de trabalho, modificou a estrutura da população. “Mas sobretudo rompe-se o secular equilíbrio entre gerações, porque cada uma ocupava o lugar das anteriores e repetia o mesmo destino. Agora, cada geração se encontra numa situação nova, e precisa resolver novos problemas.” (8) Diversas teorias apontam que tal processo estimulou o desenvolvimento de grandes intervenções urbanas em cidades como Londres e Paris, como uma


forma de enfrentar problemas sanitários causados pelo aumento intenso do número de habitantes da cidade, especialmente entre a parcela mais pobre da população. O enfrentamento dos problemas relacionados à má qualidade de vida dos operários passava por uma série de valores morais que, segundo diversos autores, caracterizavam a burguêsia desde o século XVIII. Certas interpretações indicam que, além do discurso médico que falava em insolação e ventilação como uma resposta aos problemas de higiene, esse é o momento do surgimento da idéia de privacidade como um contraponto ao apinhamento, à promiscuidade e à degradação moral, ou, ao comportamento imoral das classes pobres.

9.BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 566

Podemos entender que os donos das fábricas desenvolveram maneiras eficientes de, em meio ao aumento da força de discursos de esquerda e das lutas coletivas, reforçar o controle ideológico sobre os funcionários e garantir a eficiência da produção através da manutenção da saúde dos funcionários. De forma mais ou menos direta, teses desenvolvidas a partir dos problemas sanitários dos operários, sobre a domesticação e a educação dos operários, e sobre conforto e habitação mínima, se materializaram na forma de vilas operárias – conjuntos de unidades habitacionais construídas a partir do modelo burguês de habitação para os funcionários, em geral afastados da cidade. Esse movimento de afastamento da cidade cria uma relação de dependência entre a população pobre e o transporte público coletivo. Eis, novamente, a questão da infraestrutura. “Agora, o agrupamento de muitas casas num ambiente restrito impede a eliminação dos refugos e o desenvolvimento de atividades ao ar livre: ao longo das ruas correm os esgotos descobertos, se acumulam as imundices, e nos mesmos espaços circulas as pessoas e os veículos, vagueiam os animais, brincam as crianças. Alem do mais, os bairros piores surgem nos lugares mais desfavoráveis: perto das indústrias e das estradas de ferro, longe das zonas verdes. As fábricas perturbam as casas com a fumaça e o ruído, poluem os cursos d’água, e atraem o trânsito que deve misturar-se com o das casas.” (9) Como um esforço no sentido de resolver os problemas causados pelos processos de industrialização, Ebenezer Howard, na segunda metade do século XIX, e Tony Garnier, no começo do século XX, propuseram sistemas de regras cujo objetivo era o estabelecimento de núcleos urbanos ao entorno de atividades econômicas e marcados pelo controle sobre o número de habitantes. O modelo


Piccadilly Circus, Londres. FADB, 2011.

Cidades Jardim de Howard, que encontrou espaço durante o processo de reconstrução das cidades danificadas pela primeira guerra mundial, propunha que a população dessas cidades não passasse de 58000 habitantes, nos casos das cidades centrais, e 38000 no caso das cidades satélite. Além disso, sua principal característica seria a grande quantidade de áreas verdes como um produto da fusão entre campo e cidade. A cidade industrial de Garnier teria no máximo 35000 habitantes e seria necessariamente fundada às margens de um rio. Partindo de premissas diferentes, no séc. XIX, Charles Fourier apresenta o Falanstério, um conjunto quase autossuficiente de edifícios de habitação e de serviços coletivos construído em um local escolhido pela proximidade com um curso d’água e pela terra fértil que permite o cultivo de diversos produtos agrícolas e a reunião de aproximadamente 1500 pessoas. O principal elemento do conjunto seria um edifício de gabarito elevado, um grande vazio central, alguns serviços e diferentes tipos de unidades habitacionais ligadas por corredores que eram tidos como “ruas internas”. E já no séc. XX, durante o processo de reconstrução das cidades danificadas pela primeira guerra mundial, foram desenvolvidos em Viena, dentro da administração pública, como parte de uma politica de habitação, grandes edifícios laminares e com pouca


ornamentação que reuniam serviços e milhares de unidades habitacionais em torno de um núcleo comunitário auto gestionado chamados Höfes. O Falanstério e os Höfes deslocam o foco do pensamento da liberdade individual, característica da chamada ideologia burguêsa, para esfera coletiva da cidade, caracterizando outras formas de controle social que, apesar de funcionarem em sincronia com um sistema econômico no centro do qual permanece a indústria, podem ser entendidos como o produto do descontentamento em relação às condições de vida nas cidades como máquinas cuja função deveria ser aliviar o homem do peso da organização no espaço mas cuja verdadeira função seria promover a manutenção da atividade industrial e defender os interesses da Burguêsia. Após a Segunda Guerra Mundial, mais uma vez investiu-se na produção em massa de habitação e em grandes intervenções nos centros das grandes cidades, marcando, por um lado, um período de desenvolvimento dos princípios modernistas, por outro, a retomada do valor simbólico dos edifícios antigos e a construção de grandes conjuntos residenciais nas periferias das grandes cidades. Nos Estados Unidos o movimento para os subúrbios que acontecia intensamente nesse momento fez com que surgissem vazios nas cidades que configuraram “anéis de degradação” entorno dos centros financeiros, posteriormente ocupados por setores da classe média. Entende-se que a partir desse momento já á possível falar em “gentrificação” - uma série de intervenções públicas que valorizam uma determinada área da cidade e provocam, consequentemente, a expulsão da população pobre daquele lugar, o que é bastante favorável para o mercado imobiliário, que se apoia nesse processo para gerar lucro. A partir da década de 1970, associadas à ascensão do neoliberalismo e o desmantelamento do estado do bem estar social, as intervenções urbanas, passando a ser pontuais, espalhadas pelas cidades e não mais concentradas nos centros históricos, e passaram a ter como um dos principais objetivos a propaganda da cidade em um contexto de competição entre cidades. A ordem pós-moderna pautada na desordem teria surgido nesse momento como uma nova abordagem sobre a cidade, a partir da qual o projeto é um fim, e não um meio, inserido em uma lógica de exploração da cidade sem que, no entanto, isso signifique necessariamente uma melhoria da qualidade de vida dos habitantes de forma geral.


Certos autores apontam que a gentrificação é o princípio que está na base do planejamento urbano contemporâneo, e aparece disfarçada de “regeneração”. Os setores da sociedade que assumem uma postura oposta defendem a reabilitação de edifícios existentes e em intervenções que melhorem a qualidade de vida de uma certa região sem afetar o tecido urbano como um todo visando a manutenção da população existente na área de intervenção com o apoio de leis e instrumentos urbanísticos.

10.HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pág. 226

Após a Revolução industrial, a indústria passou a ser a unidade de produção e a casa foi transformada na unidade de consumo. Quando a casa e a indústria estavam longe da cidade, o controle social sobre os empregados por parte dos patrões era facilitado. Nessas cidades centradas na fábrica, a burguêsia é mais importante e mais onipresente que o estado, as leis eram as regras da empresa e os moradores eram governados, mas não eram cidadãos. Porém mudanças ocorreram no modo de organizar a produção e nas formas de controle social. A fábrica pós moderna não tem dono burguês, tem acionista. Afirma-se que a idéia de privacidade, que foi aprofundada até um nível incrivelmente individualista, está sendo desconstruída. Todos os espaços são controlados, vigiados, e quanto mais transferimos nossa vida para espaços virtuais, mais aprofundamos esse controle. A cidade esta sendo controlada por outros, por particulares, por empresas que controlam as câmeras e a intenet e constroem uma rede cada vez mais articulada. “’A verdade’ não existe mais. Dependemos de nossas posições e de nossos objetivos, experimentamos uma realidade estratificada, e assim cabe à arquitetura ‘revelar’ mais, tornar transparentes, por assim dizer, os diferentes níveis da experiência e, por consequinte, lançar mais luz sobre o funcionamento e a interligação das coisas.” (10)


parte 03_breve passagem pela história de São Paulo até o início do processo de industrialização O território que se chamaria Brasil foi forçadamente inserido no mundo colonial no século XVI. Os portugueses, que se lançaram ao mar mais cedo do que os outros países europeus, segundo a interpretação de alguns autores, ainda estavam marcados pelo espírito cruzadista quando, em 1500, se declararam os donos deste sítio. A ocupação portuguesa começou de fato em 1530, e, como colônia de Portugal, a função do Brasil era enriquecer a metrópole. As cidades americanas, em geral, de maneira mais ou menos direta, mais ou menos consciente, foram fundadas a partir dos modelos metropolitanos, transplantados e impostos sobre os territórios americanos sob o pretexto de promover o progresso, deixando clara desde o inicio a separação entre o ideal europeu e a realidade americana. “A cidade é um catálogo de modelos e precedentes: todos os elementos desejáveis que existiam espalhados pelo velho mundo finalmente reunidos em um só lugar.” (11)

11.KOOLHAAS, Rem. Nova York Delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008. pág. 32 12. BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 469

Talvez seja possível dizer que, na América de maneira geral, mas principalmente em São Paulo, o modelo português, ao se deparar com as condicionantes sociais, econômicas, políticas e geográficas, era ao mesmo tempo seguido e negado. Isso porque São Paulo, segundo Csaba Deák e Sueli Schiffer, permaneceu como uma pequena vila com menos de 15.000 habitantes cuja construção se deu de maneira relativamente espontânea até 1850, quando o tráfego de escravos foi suspenso e a lei de terras foi promulgada instituindo a propriedade privada e criando condições para o crescimento do trabalho assalariado e do capitalismo. Este modelo, por sua vez, era marcado pelo pensamento sobre a arquitetura desenvolvido na Itália durante o século XV mas, apesar de muito apegados aos tratados, ou seja, olharem para a arquitetura de maneira quase esquemática, os portugueses aparentemente não investiam tanto em arquitetura quando os italianos, o que gerou uma arquitetura entendida como “menos sofisticada”. “Neste espaço muito maior, as energias são distribuídas de maneira contrastante com as ocasiões; na Europa selecionam-se os especialistas de alto nível, mas não se fazem trabalhos importantes; nas colonias ha tudo para fazer, mas faltam os especialistas e estão disponíveis somente os subprodutos da pesquisa europeia.”(12)


“As cidades coloniais americanas são as realizações urbanísticas mais importantes do seculo XVI. Sua pobreza, comparada com os requintes e as ambições da cultura artística europeia, mostra que as energias não mais são distribuídas de acordo com as tarefas: na Europa, os grandes mestres não conseguem realizar seus projetos, ao passo que os técnicos de terceira ordem emigrados para a América desenham e constroem cidades inteiras. Todavia o objetivo é o mesmo: reorganizar o ambiente construído com os novos princípios da simetria e da regularidade geométrica. Impondo estes princípios, os europeus afirmam seu domínio em todas as partes do mundo.” (13)

13.BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 494 14.BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 136

Até o início do século XIX São Paulo tinha sido o ponto de partida das expedições cruzadas, cujos objetivos eram explorar o território, escravizar índios e procurar minérios, mas o café havia se tornado o principal produto de exportação do Brasil e permaneceu como tal por um século. A produção de café teve início no Rio de Janeiro e logo começou a migrar para o sudoeste, atingindo São Paulo em meados do século XIX quando se consolidavam as instituições do novo país. Assim, São Paulo, que era então o centro da produção do café e, portanto da economia brasileira, estava prestes a se tornar também o centro da industrialização. O sucesso econômico da cidade, graças ao desenvolvimento da exploração do cafe e posteriormente da indústria, atraiu centenas de milhares de imigrantes da Europa e mais recentemente do Japão, além da população nascida em outros estados do nordeste e do centro oeste que vieram em busca de emprego. “Às margens do território etrusco forma-se a cidade de Roma: uma pequena potência que cresce ate dominar todo o mundo mediterrânico. Roma não é uma capital escolhida, mas uma capital obrigada, porque o império nasce da ampliação de uma cidade-estado; o enorme alargamento do território, pois, faz com que a cidade cresça, mas não lhe tira o caráter original, casual e particular: é uma aldeia que se torna, pouco a pouco, uma cidade mundial.” (14)


parte 04_breve passagem pela história de São Paulo entre o início do processo de industrialização e o final do século XX a partir da leitura de textos cujos autores encaram a cidade como um fenômeno político São Paulo só vai passar por um processo de industrialização significativo durante a década de 1920. Nesse momento, após um surto industrial forçado para suprir o rápido crescimento do mercado interno com, ao menos, os bens de consumo básicos que não eram mais importados por causa da primeira guerra mundial, a cidade constrói o Martinelli, seu primeiro arranha-céu, como um marco da inserção de São Paulo no circuito cultural mundial. Raquel Rolnik entende que, nesse momento, as tensões na cidade eram evidentes: São Paulo passa a ser uma cidade com uma nova elite cultural, uma nova burguêsia, um novo proletariado e uma serie de conflitos, tensões e contradições cada vez mais complexas. Nessa década a cidade vê um grande aumento do número de automóveis, a introdução dos ônibus urbanos, e recebe as primeiras grandes intervenções viárias. Aumentam as reivindicações pela melhoria das condições de vida das classes mais baixas e, associada ao crescimento do setor de comércio e serviços, surge na cidade uma nova classe social: a classe média. Organizada a partir dos valores burguêses, almejando alcançar um patamar social mais elevado, a classe média, graças à força da imagem, é tida como a grande responsável pelo crescimento da indústria de bens de consumo. Entende-se que grandes elementos na paisagem – as represas Guarapiranga e Billings ao sul, a Serra do Mar a leste e a Serra da Mantiqueira ao norte – induziram a expansão da mancha urbana predominantemente na direção Oeste. Ainda assim a região das represas passou por um intenso processo de ocupação a partir da segunda metade do século XX, o que gerou uma série de conflitos. Com o crescimento da população de São Paulo veio a demanda por infraestrutura e a diferenciação espacial. Enquanto o centro de São Paulo, e mesmo as áreas mais afastadas, como a Avenida Paulista, ocupadas pelas classes mais altas, eram objeto de projetos urbanos, recebiam infraestrutura, serviços públicos e equipamentos culturais, nas áreas ocupadas pelas classes baixas, aonde moravam cada vez mais pessoas, o poder público se limitava a garantir o bonde elétrico que garantia o acesso da mão de obra aos locais de trabalho, portanto, as condições de habitabilidade era precárias. Segundo Rolnik, o bonde elétrico e outros serviços públicos de transporte, o fornecimento de energia


elétrica e os telefones eram controlados por uma única empresa, a Light, que, associada ao mercado imobiliário e aos interesses das elites que queriam expulsar a população pobre das áreas centrais da cidade, determinava quais áreas receberiam infraestrutura e quais não receberiam. Certos autores apontam ainda que o mercado imobiliário crescia com investimentos em moradia para os setores da elite que se apropriavam do centro e construía unidades para operários próximas às fábricas oferecidas de forma irregular, caracterizando a exploração de terrenos distantes do centro, de comercio e de serviços, e muitas vezes desprovidos de infraestrutura. Ainda segundo Rolnik, as leis eram absolutamente manipuláveis, o governo não era eleito pela maioria da população e o voto aberto era um instrumento de ascensão e manipulação entre os indivíduos que ocupavam as camadas mais ricas da população. Até então, a Light se concertava em atender a demanda por energia elétrica gerada pela crescente indústria – processo ao qual estão associadas a construção da Billings, da represa e da hidrelétrica na serra do mar, da usina de traição no Rio Pinheiros, além da retificação desse rio e da inversão de seu curso natural. Após uma série de conflitos, além da grande enchente de 1929 que atingiu assentamentos de classes baixas e áreas nobres como o bairro cidade jardim, cuja responsabilidade é associada à Light, a prefeitura decidiu não renovar o contrato com a empresa e, concomitantemente, começou a desenvolver o plano de avenidas de Prestes Maia, que começou com a abertura da avenida 9 de Julho. Nesse momento, de acordo com a interpretação de certos autores, toma forma o modelo de cidade que temos hoje, marcado pela ênfase sobre o transporte rodoviário, caracterizado pela abertura de grandes avenidas, muitas delas em fundos de vale sobre rios e córregos canalizados associadas e à geração de novos terrenos edificáveis. A ocupação da periferia, possibilitada pela substituição do transporte sobre trilhos pelo transporte rodoviário, e a autoconstrução se tornaram o principal caminho de acesso à moradia pelas classes mais baixas. Enquanto isso, o setor sudoeste se consolida como uma área privilegiada em termos de infraestrutura e serviços da cidade. Entre as décadas de 1920 e 1930 a cidade começa a fazer um certo esforço para regulamentar as construções irregulares e poder oferecer infraestrutura e serviços. A partir dai, segundo Rolnik – começa a era da cidadania consentida, ou seja, o poder público decide de maneira seletiva quais áreas vão se tornar cidade - e com isso ter acesso a infraestrutura e serviços - e quais não vão,


Vista para uma linha de trens da CPTM, o Rio Tietê, a Rodovia Castelo Branco e o Pico do Jaraguá, São Paulo/ Osasco. FADB, 2012.

mesmo depois que os assentamentos já estão consideravelmente consolidados. O Estado não assume o papel de dirigir a expansão da cidade e sim de aprovar ou desaprovar pedaços desconexos de cidade depois que eles foram construídos. Mais a frente, entre as décadas de 1930 e 1960 a cidade vê um forte desenvolvimento industrial ao longo das novas rodovias, especialmente ligado à indústria automobilística, que é acompanhados e um intenso crescimento populacional, que gerou um grande desenvolvimento das cidades do ABC, Osasco e Guarulhos. A expansão da indústria automobilística e os baixos preços dos derivados do petróleo, desde a década de 1950, foram determinantes de políticas de Estado no mundo inteiro que priorizam o transporte rodoviário, e, por tanto, privilegiaram a indústria em expansão – hoje o uso cada vez maior do automóvel e os investimentos muito abaixo do necessário na rede de transportes públicos, e a distribuição desigual no território dos postos de trabalho e das moradias criam problemas de circulação cada vez mais complexos. Durante a década de 1950, as sedes das grandes empresas migram para a região da Avenida Paulista, que neste momento está num ponto alto de um processo


de verticalização impulsionado em princípio pelos edifícios residenciais, e posteriormente pelos conjuntos comerciais. A classe alta e, por causa da popularização do automóvel, a classe média, deixam definitivamente de ser pedestres. Enquanto isso, o Metrô elege o centro histórico como o ponto de cruzamento das duas primeiras linhas, o que induziu a criação na região de grandes terminais de ônibus, e transformou a região em uma área facilmente acessível por transporte público, condição confirmada pela criação dos calçadões. Observa-se que equanto as classes media e alta se fecham em seus automóveis, o centro histórico é um lugar cada vez mais para pedestres, o que induz o abandono do centro pelas classes média e pela elite e a popularização da região. Alem de atrair a elite econômica, a região sudoeste, especialmente a Avenida Paulista e a Rua Augusta, passou a atrair também a elite cultural de São Paulo. Aponta-se que a verticalização de São Paulo ocorreu de maneira diferente das outras cidades do mundo por ter ocorrido rapidamente e com ênfase na produção de edifícios residenciais, o que está associado à idéia de que a verticalização é uma forma de reprodução do capital pelo mercado imobiliário e pela construção civil, que mantém uma boa margem de lucro mesmo em locais aonde a terra é mais valorizada, ao mesmo tempo em que é um instrumento de adensamento isolado em áreas nas quais as classes altas estariam tentando de isolar. Além da intensa ocupação das margens das represas Billings e Guarapiranga que começou na segunda metade do século XX, outro processo relativamente novo é a ocupação de grandes terrenos vazios, geralmente públicos, em áreas urbanas consolidadas: o crescimento de favelas, que acontece desde meados da década de 1970, e que, assim como a ocupação das margens das represas, está inserido no processo de busca por habitação pelas classes mais pobres. As logicas internas de funcionamento dessas comunidades operam de forma independente da cidade formal, porém no sentido de inserir seus moradores na rotina das grandes cidades. A construção de conjuntos exclusivamente habitacionais em áreas afastadas das cidades pela COHAB pode ser vista como um fator de indução do processo de crescimento das favelas, e está diretamente associada à deterioração da bacia hidrográfica da área metropolitana – a questão da deterioração dos rios e córregos e da poluição do ar começou a ser discutida ainda na década de 1960 mas aparentemente foi sufocada pelo golpe miliar de 1964.


A partir da década de 1970, os instrumentos de abertura do mercado doméstico para os produtos importados e a expatriação do excedente principalmente através da divida externa foram os principais elementos de uma política, de acordo com certas interpretações, reimposta e aperfeiçoada que funcionou como um grande estímulo negativo contra a industrialização nacional, o que, somado a uma relativa estabilidade da moeda nacional, deu à classe média um sentimento de satisfação pela facilidade de acesso a bens de consumo, enquanto a informalidade cresceu nas classes mais baixas, o que se materializa de forma evidente nas grandes aglomerações urbanas. Além disso, pesquisas apontam que, também na década de 1970, aparecem as primeiras políticas públicas que faziam um esforço no sentido de atrair a população de classe média para o centro da cidade, construídas a partir da noção de que a presença da população mais pobre associada à diminuição do uso habitacional e ao aumento do uso comercial e de serviços, muitos deles destinados à população de passagem em função da confluência viária e do aumento do número de carros e de pedestres do centro; e também associada ao aumento do comércio informal, são fatores de degradação. Certos autores afirmam que o sistema viário estava sendo pensado na escala metropolitana, do automóvel, em detrimento da micro-acessibilidade e da qualidade ambiental do entorno das vias, gerando a desvalorização de muitas áreas do centro. As questões diretamente ligadas à circulação estavam no foco das discussões sobre a área central. Certos autores apontam uma mudança no padrão de urbanização paulistano durante os anos 1980 induzida pela desaceleração do crescimento demográfico, que se concentrava nas periferias. Os problemas que dizem respeito à aglomeração urbana como um todo ficaram cada vez mais significativos, tais como acessibilidade, áreas de expansão, poluição e depredação dos recursos naturais, especialmente hídricos. André Takiya diz que, de maneira grosseira, nestes últimos cento e vinte anos, a República Brasileira construiu uma quantidade muito pequena de conjuntos educacionais, num ritmo muito abaixo do esperado se considerarmos o crescimento da população e o sucesso econômico do país, o que leva refletir sobre a função da educação no sentido de diminuir as distancias sociais e econômicas entre os pobres e as elites, ou, sobre o papel da escassez de serviços públicos como parte de um processo de degradação moral da população pobre. O que podemos observar num primeiro momento é que o sucesso do Brasil


Rodovia Raposo Tavares, São Paulo. Esta rodovia, que liga a capital ao interior do Estado de São Paulo, vem se tornando um eixo de investimentos do mercado imobiliário da Região Metropolitana de São Paulo, ao longo do qual as grandes lojas de materiais de móveis, e de materiais de construção, e os motéis, recentemente passaram a dividir espaço com centros comerciais, lojas, bares e restaurantes, em geral, associados a postos de gasolina. O automóvel não deixa de ser a regra, principalmente para aqueles que moram em cidades como Cotia mas trabalham em São Paulo. FADB, 2012.

como potência econômica não se reflete como uma melhoria na qualidade de vida da população em geral. Certos autores consideram que na década de 1990 o fornecimento de infraestrutura, que sempre foi mantido a níveis, em geral, muito baixos, cessou. Observa-se o surgimento de novas formas de se posicionar na política e no espaço como resultado da organização de setores privados da sociedade em função da necessidade de atender às demandas negligenciadas pelo Estado, como conselhos, consórcios, associações e ONGs. Após o período da ditadura militar no Brasil, período no qual é institucionalizada a região metropolitana de São Paulo, o modelo de cidade vivido até então, como entende Rolnik, entra em crise, não pela diminuição de investimentos ou qualquer outro sinal de que houve um esvaziamento econômico, mas justamente pelo aumento das diferenças econômicas e sociais: os homicídios, o desemprego e os moradores das favelas aumentaram na metrópole que concentra os dois aeroportos mais movimentados do país, dezenas de shopping centers, as sedes brasileiras de grandes bancos e a bolsa de valores que centraliza as operações do país.


parte 05_apontamentos sobre a infraestrutura como elemento articulador do tecido urbano É possível desenvolver uma leitura sobre a formação do tecido urbano a partir das dinâmicas econômicas que incidem sobre o espaço e o definem. Por exemplo, chamam-se entraves à acumulação os instrumentos que atuam no processo que faz com que o excedente produzido seja dividido em duas partes, uma reinvestida na produção e outra enviada ao exterior em forma de pagamento de jurus ou remessa de lucro, de forma que o que é de fato acumulado é uma parcela muito pequena do excedente. Csaba Deák e Sueli Schiffer afirmam que esse processo está ligado a uma forma de organizar a sociedade herdada do período colonial: a sociedade brasileira foi chamada por Florestan Fernandesde sociedade de elite, caracterizando os distintos privilégios, que contradizem qualquer noção de bem-comum, e fazem com que a igualdade perante a lei não exista na prática. A rede de transportes, por exemplo, considerado por certos autores o principal elemento da infraestrutura, em todo o território vem sendo fragmentada e parte dela é controlada por empresas estrangeiras, o que faz com que o setor de transportes funcione em função de interesses particulares e não forme de fato uma rede articulada com um importante papel da organização do território. De acordo com certas interpretações, o processo de acumulação entravada influencia diretamente a organização do espaço nacional e metropolitano, cuja infraestrutura é precária, escassa e irregularmente distribuída, associada à concentração de investimentos em áreas limitadas que se tornam privilegiadas, induzem a diferenciação da área urbana e a segregação espacial à medida que é montada uma estrutura de preço do solo altamente diferenciada. Ou seja, uma explícita segregação espacial por renda familiar que faz com que a população ocupe áreas mais ou menos privilegiadas, precariamente conectadas, é o resultado de uma concentração de investimentos em uma determinada área da cidade, e observa-se que muitas vezes o resultado de uma “melhoria de infraestrutura” configura ou reafirma uma barreira que aprofunda a fragmentação do tecido urbano. Na cidade de São Paulo, os investimentos em infraestrutura se concentram na região sudoeste, aonde estão concentrados também setores das classes altas e grande parte das atividades econômicas, enquanto em outras regiões da cidade o Estado fornece apenas o mínimo necessário. Quando intervém na cidade, o Estado muitas vezes se comporta como um proprietário que participa do jogo


Estação Butantã da Linha 4 Amarela do Metrô de São Paulo, projetada, construída e operada por empresas particulares. FADB, 2012.

do merco imobiliário, isto é, o comportamento do poder público é conflitante com o tipo de uso do solo urbano que ele deveria defender. Ou ainda, para defender o uso do solo urbano público e coletivo, o Estado se comporta como mais um agente do mercado imobiliário, e o resultado disso é naturalmente contraditório e esquizofrênico. Boa parte da população foi induzida a ocupar as áreas mais desvalorizadas, carentes de infraestrutura, segregadas espacialmente, e, portanto se sujeitam a longos deslocamentos para ter acesso a trabalho e serviços, desigualmente distribuídos na região metropolitana. Não é difícil concluir que em uma metrópole que abriga aproximadamente 20 milhões de habitantes, muitos deles tendo que se sujeitar a longos deslocamentos diariamente através de uma rede de transportes precária, saturada e deficitária, aparecem inúmeros problemas, dentre os quais o tempo perdido nesses deslocamentos. A cidade está sempre congestionada. Além disso, a má distribuição dos empregos e dos serviços faz com que algumas áreas da cidade, especialmente do centro se esvaziem em certos horários do dia, o que colabora com a noção de degradação das áreas centrais.


Vista para o Rio Spree e para a Estação Central de Berlin. FADB, 2010 Canal em Amsterdã. FADB, 2010.

E conforme as sedes das grandes empresas migraram do centro antigo para a Paulista, depois para a região das avenidas Faria Lima e Berrini, e posteriormente ao longo das margens do Rio Pinheiros, indicando uma vontade já consolidada por algumas empresas de atravessar o rio, deixaram uma ilustração do que Raquel Rolnik chama de perda progressiva de qualidade urbanística, que se torna clara quando comparamos os calçadões e a diversidade de usos do centro com as calçadas pequenas, a importância do automóvel e a monofuncionalidade da região da Berrini.


parte 06_apontamentos sobre novas dinâmicas urbanas Se a cidade na qual vivemos é resultado de um processo que, após a década de 1920 passou a ser pautado em grande medida pela indústria, as mudanças nos meios de produção implicam em mudanças na cidade. Muitos autores consideram que, por um lado, a produção está cada vez mais fragmentada, e por outro, o consumo está cada vez mais concentrado nas grandes cidades. Porém, segundo a raquel Rolnik, ao contrario do que muitos afirmam sobre a mudança do perfil econômico da cidade – que parece ter deixado de ser uma cidade industrial para se tornar uma cidade de serviços – a fuga da indústria não é um fato. apesar de que uma parte dos investimentos na indústria migraram para o interior do estado ou para outras regiões do país, na década de 1990 a indústria continuou investindo na região metropolitana, e a ela se somaram os investimentos no setor terciário. Houve, porém, uma mudança no perfil dessas indústrias, que produzem agora produtos com valor agregado mais alto e estão ligados ao mercado consumidor da metrópole e aos serviços que a metrópole oferece, o que sugere uma nova divisão regional do trabalho. Além disso, a atividade industrial está mais fragmentada e consegue se colocar inclusive em áreas consolidadas do tecido urbano. 15.HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pág. 70

“O tour de force do sistema de distribuição em que bens produzidos por uma massa de indivíduos são distribuídos através de um labirinto de canais intermediários até a massa dos consumidores, esta baseado em uma complexa estrutura de divisão do trabalho, especialização e contratos eficientes. E é sem duvida esse tipo de técnica organizacional que alimenta o Moloch autopropagador da expansão em grande escala e a diminuição da influencia do individuo no processo como um todo.” (15) Hertzberger afirma que em uma sociedade de consumo, o indivíduo também é consumido. A procura gera a oferta e vice-versa. A fragmentação da indústria e a distância entre certas etapas do processo produtivo e determinados centros de consumo fizeram surgir este novo segmento de serviços que chamamos de serviços de logística. Para facilitar a logística, o Estado investe na melhoria de estradas, que são administradas e exploradas por empresas particulares, em geral estrangeiras. A logística enxerga a especialização e a polarização espacial não só na na escala da cidade, mas na escala do território nacional e na escala do globo como um todo. A produção de mercadoria acaba gerando produção imobiliária, não só porque a produção


Ponto de ônibus na ligação entre a cidade de Vinhedo e a Rodovia Anhanguera. Ao fundo, o muro de um loteamento fechado. Vinhedo é uma cidade bastante marcada pelos chamados “enclaves fortificados”. Na cidade, muitas placas nas ruas indicam a direção para esses loteamentos, e não para bairros ou edifícios públicos. FADB, 2011.

e o armazenamento de mercadorias demanda espaço – e essa demanda gera movimentações financeiras relvantes – mas também porque no entorno da fábrica e às margens das rodovias usadas para escoar as mercadorias acabam se instalando trabalhadores ligados àquela indústria ou famílias simplesmente procurando um lugar barato para morar com certa acessibilidade. A construção de moradias e as melhorias relativas a acessibilidade desses locais são entendidas como consequência e fruto da demanda da atividade industrial, e não resultado de um esforço por parte do poder público no sentido de organizar e articular as relações sociais, econômicas e politicas da cidade e suas manifestações no espaço. Mesmo a articulação entre as redesde produção e consumo parece ser mais fruto dos esforços das indústrias no sentido de minimizar custos e maximizar os lucros do que a materialização de um plano elaborado pelo Estado, que assume o compromisso de somente resolver os problemas mais superficiais. Recentemente uma outra dinâmica tem chamado a atenção de certos autores: a ocupação do território baseada no uso do automóvel individual, e o baixo custo de terras no perímetro das cidades fez com que uma parcela das classes media


e alta ocupassem as áreas periféricas da cidade, constituindo agrupamentos de casas em loteamentos fechados. As cidades começam a se transformar em uma justaposição de condomínios desarticulados entre si e conectados uns aos outros e aos outros espaços da cidade por autoestradas. A cidade é negada, ou, é interpretada a partir de uma lógica autodestrutiva, assim como a relação entre o poder público e os cidadãos. As classes media e alta, ao se refugiarem em condomínios, retiram do poder público boa parte da responsabilidade sobre o planejamento dos espaços da cidade e sobre as questões relativas ao conforto e à segurança pública. A população prefere pagar por serviços como educação e saúde do que cobrar do Estado que ele ofereça esses serviços com qualidade para todos. Certos autores chamam esses agrupamentos de “enclaves fortificados” a partir de um modelo de estudos que convive com o modelo centro-periferia de pensamento sobre a cidade, e que envolve o abandono do centro pelo mercado imobiliário, a exploração da violência e algumas mudanças na legislação relativas à expansão da infraestrutura como resultado da luta de bairros da periferia pelo direito à cidade. O mercado imobiliário transformou o solo urbano em algo produzível e estocável, cuja produção acontece nas esferas administrativas – políticas – do território, pautado pela logica capitalista do produto distinto, diferenciado. O mercado imobiliário pode ser entendido não só como uma fonte de lucro, mas também como uma forma de controle social e exercício do poder de determinadas categorias econômicas. A busca por essas novas formas de se colocar na cidade segue uma lógica de redução de custos contraditória com a própria idéia de cidade ao considerarem que é mais barato se deslocar grandes distancias todos os dias. Por outro lado, os assentamentos informais em áreas urbanas consolidadas também seguem uma logica de redução de custos, pautada, por sua vez, pela proximidade. Essas transformações colaboram com o processo de intensa produção de novos imoveis enquanto o número de imoveis vazios permanece alto porque o acesso a esses imoveis se da, em geral através do mercado, ou seja, exclui os pobres.


parte 07_apontamentos sobre o plano diretor O plano diretor é uma expressão de uma interpretação sobre o papel atribuído ao governo. Contamos com o poder público - o governo e o conjunto das suas atribuições, dadas pelo povo como corpo político - não apenas para fornecer infraestrutura mas também para conferir à rede organização e coerência - as partes são representações determinadas pelo todo, e o todo é maior que a soma das partes. As leis, que, em tese, expressam a vontade do corpo político, constroem a paisagem - as leis influenciam diretamente o projeto de arquitetura, elas estabelecem os volumes que podem ser construídos e as relações entre espaços públicos e espaços privados. Curitiba, capital do Paraná, é uma referência mundial no campo do planejamento urbano. Tal imagem é atribuída, em grande parte, ao sucesso de seu plano diretor, implantado pelo IPPUC – Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano de Curitiba, durante os mandatos do prefeito Jaime Lerner. Não são poucas as manifestações que legitimam a imagem de Curitiba como uma das melhores cidades do mundo. Podemos citar: em setembro de 1990, a cidade recebeu o prêmio United Nations Enviroment, conferido pelo programa Award for Achievement da Organização das nações Unidas, pela grande importância da questão ambiental no planejamento urbano de Curitiba, e em outubro do mesmo ano, a cidade foi premiada pelo International Institute of Energy Conservation – Award for Achievement in Global Energetic Efficiency por priorizar o transporte coletivo sobre o individual. O sucesso do plano se dá principalmente pelo esforço dos administradores no sentido de colocar suas diretrizes em prática, e pela constante revisão promovida pelo IPPUC. Ou seja, o poder público, de certa forma representado, no caso de Curitiba, pelo IPPUC, tem o importante papel de regulador da cidade. Isso não quer necessariamente que a administração pública se coloque de forma autoritária, como vemos em alguns casos na história do plano diretor de Curitiba, pois é possível desenvolver uma gestão aberta, na qual o processo e as relações sociais sejam visíveis para o maior número possível de cidadãos. Uma análise mais cuidadosa sobre a cidade de Curitiba leva certos pesquisadores a crer que seus elevados indicadores sociais são mérito de um plano diretor que colaborou com o aumento do preço do solo urbano – ou seja, foi um agente da especulação imobiliária – e portanto expulsou a população mais pobre para outras cidades. Alguns autores se referem aos indicadores sociais de Curitiba como falsos, em parte porque não levam em consideração a


região metropolitana, somente o município, aonde o custo de vida é alto e por isso exclui a população das classes mais baixas. O urbanismo tem à sua disposição uma série de instrumentos cuja função sera amenizar as diferenças econômicas e sociais. Porém, tais instrumentos são alvos de críticas. As operações urbanas, por exemplo, foram consolidadas em 2001 pelo Estatuto da Cidade para lidar com porções específicas das áreas urbanas, de acordo com propósitos específicos. As críticas partem da idéia de que tais intervenções consistem em valorizar uma certa área com potencial de intensificação de uso do solo através de um investimento vindo do poder público na provisão de infraestrutura, e pela venda do direito de construir acima de certos coeficientes, o poder público se apropria de uma parte muito pequena dessa valorização, e não transforma o lucro em qualificação do espaço urbano. Certos autores afirmam que grupos capazes de investir recebem mais incentivos e autonomia para investirem em porções específicas do espaço urbano, o que faz com que o controle do espaço como um todo por parte do poder público se enfraqueça. Podemos ainda associar às intervenções pontuais, o descontrole sobre o processo terceirização de funções que deveriam ser dominadas plenamente pelo poder público. Segundo a constituição brasileira de 1988, o plano diretor, aprovado pelas câmaras municipais, é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes e é o instrumento básico da política de desenvolvimento urbano a fim de que se cumpra a função social da propriedade, e a propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências estabelecidas pelo plano diretor. Em outras palavras, em tese o plano diretor evita a retenção especulativa de imóveis vagos ou subutilizados e a degradação do patrimônio histórico e ambiental, exige a reparação de impactos ambientais e capta recursos para o desenvolvimento de políticas urbanas. Ainda assim, o poder público pode assumir uma postura omissa, e o plano pode, de certa forma, ocultar os conflitos urbanos concretizados no uso e na ocupação do solo e pode ser o instrumento da promoção da chamada gentrificação. Segundo Maria Lucia Refinetti Martins em Política urbana, política ambiental e o direito à cidade: “A Constituição Brasileira de 1988 incorporou em seu texto parcelas de um grande número de emendas populares, produto de longos anos de debates e acúmulo do movimento social, introduzindo alguns aspectos definitivamente inovadores para


a Política Urbana e Ambiental no país. Com percursos, origens e protagonistas bastante distintos, cada um desses aspectos ganhou um capítulo próprio. No que se refere à questão urbana, foi atribuído um capítulo – Política Urbana, com seus artigos 182 e 183.” (16) “...a Lei finalmente aprovada em São Paulo – Plano Diretor Estratégico, não expresse exatamente um projeto em comum, mas uma somatóriaonde três principais blocos defenderam suas prioridades. De um modo simplificado são os seguintes: o setor imobiliário, contra a Outorga Onerosa e pela ampliação de coeficientes de aproveitamento em determinadas regiões; o setor popular pelas ZEIS e condições de incentivo à construção de Habitação de Interesse Social; os setores de classe média, pela manutenção das zonas exclusivamente residenciais.” (17)

16.MARTINS, Maria Lucia Refinetti. Política urbana, política ambiental e o direito à cidade. In: MARTINS, Maria Lucia Refinetti. Tensão e diálogo na metrópole - impasses urbanísticos, jurídicos e sociais da moradia nas áreas de proteção a mananciais na Região Metropolitana de São Paulo. São Paulo: FAUUSPFAPESP, 2006. pág. 25 17.MARTINS, Maria Lucia Refinetti. Política urbana, política ambiental e o direito à cidade. In: MARTINS, Maria Lucia Refinetti. Tensão e diálogo na metrópole - impasses urbanísticos, jurídicos e sociais da moradia nas áreas de proteção a mananciais na Região Metropolitana de São Paulo. São Paulo: FAUUSPFAPESP, 2006. pág. 26

Segundo a autora, o plano diretor favorece a atuação do mercado imobiliário em áreas valorizadas por operações urbanas e desfavorece a construção de habitação de interesse social. Em tese, as operações urbanas fariam com que o Estado não fosse mais o responsável por financiar as intervenções em áreas já consolidadas, e poderia então investir na melhoria de áreas periféricas. É um modo pelo qual o Estado poderia recuperar o dinheiro gasto com a ampliação da infra estrutura. Mas o que vemos é que as áreas já privilegiadas recebem ainda mais recursos do poder público, enquanto as áreas segregadas ficam ainda mais segregadas. Dez anos depois da aprovação do Estatuto da Cidade, nota-se em São Paulo um crescente interesse por parte do mercado imobiliário sobre a exploração dos mercados de renda mais baixa. As operações urbanas, associada por alguns autores à promoção da especulação imobiliária pelo poder público, não foi inventada pelo Estatuto da Cidade. Benevolo descreve um plano para a expansão de Amsterdã aprovado pelo governo da cidade em 1607 e executado durante o século XXII que previa a construção de canais concêntricos em meio ao tecido urbano. Para liberar o espaço necessário, o governo desapropriava terrenos e, após a construção do canal, vendia os lotes para proprietários que deveria seguir rigidamente os detalhados regulamentos de construção, como uma forma de recuperar o dinheiro gasto na execução do plano.


parte 08_paradoxos “Em nossa época, somos capazes de ver tanto que não podemos nos contentar com aparências superficialmente agradáveis e com arquitetura decorativa. O espaço da arquitetura também compreende uma resposta aos outros fenômenos e camadas de significado presentes em nossa consciência pluralista.” (18) Vimos até aqui que, por um lado, a cidade é a soma de todos os espaços que ela contém e de todas as interpretações sobre ela mesma; por outro, ela deve oferece uma estrutura de organização que chega até as menores escalas e que deixa espaço para acomodar a expressão individual de forma que o acordo de respeito mútuo entre o público e o privado ganhe mais riqueza do que simplesmente a linha que divide a rua e o lote, isto é, é preciso desenhar os intervalos nos quais ese acordo pode ser expresso. O edifício e a cidade devem se aprorpiar mutuamente. Se a realidade é abordada como um todo estratificado, e o espaço é pensado a partir de suas relações, estejam elas organizadas em grelha, em árvore, ao longo de um eixo ou no meio de uma nuvem; a cidade é um conjunto de espaços independentes porém nunca autônomos, e o arquiteto pode tornar transparente e compreensível tal complexidade através do projeto. 18.HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pág. 226

Quando o conjunto não oferece uma estrutura organizacional abrangente, e as partes tendem a se isolar em relação ao conjunto, podemos afirmar que, de certa forma, o todo nega as partes e as partes negam o todo. Mas, ainda assim, as partes compõe o todo e são definidas por ele em todas as escalas. A lógica da cidade não deixa de ser definida pelo caminho que as forças percorrem, mas, como as diferentes realidades ignoram umas as outras, a cidade se torna um organismo esquizofrênico. Uma cidade que não oferece um amparo para que haja acordo entre o todo e as partes e que recebe uma proposta materializada na forma de um edifício aberto, se vê diante de um projeto que nega o todo dado assim como os edifícios que cada vez mais se fecham como fortalezas em seus lotes, que se esforçam para criar dentro de um lugar cercado uma realidade que nada tem a ver com o lado de fora. O mecanismo de construção da crítica, porém, é a elaboração de uma proposta - uma negação é feita por uma afirmação. Dentro de um contexto no qual não ha espaço para acordo entre o público e o privado, surgem eventos que desobedecem, que buscam ou às vezes até oferecem para a cidade estes intervalos, momentos de leitura, interpretação, representação e inversão da realidade, palpáveis e inseridos na cidade, mas que dificilmente conseguem


Museu Brasileiro da Escultura, São Paulo. Paulo Mendes da Rocha. Pedro Kok, 2008. próxima pág.: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Lina Bo Bardi. FADB, 2009. próxima pág.: Edifício Louveira, São Paulo. João Batista Vilanova Artigas. FADB, 2010.

existir plenamente porque são projetados para ocupar um determinado lugar que, dada a atual maneira de organizar as relações, não existe. Vamos chamar esses edifícios de paradoxos. Os valores que o arquiteto imprime no projeto de um edifício ditam as interpretações possíveis sobre o espaço e definem a maneira como este espaço sera ocupado, independentemente da atividade desenvolvida. Descaracterizar um projeto significa, portanto, despir o edifício dos valores a partir dos quais o projeto foi elaborado, desviar o projeto do caminho em direção à sua meta – todo projeto é elaborado de acordo com um método, portanto, todo projeto tem uma meta, isto é, para que serve ou não serve. O usuário se apropria do espaço assim como a forma se apropria do usuário. Vamos assumir que o objeto construído deve representar tantos papeis quanto possível em beneficio dos diversos usuários individuais dentro de uma perspectiva coletiva, de forma que o projeto não só da espaço para a pluralidade mas confere a ela consciência sobre ela mesma para que ela seja uma realidade organizada e auto controlada, que seja capaz de absorver significados, contanto que o acordo de respeito mútuo entre as esferas pública e privada, o equilíbrio entre as diferentes camadas entre indivíduo e coletivo, com todas as suas sutilezas, seja mantido.




pág. anterior: Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Affonso Eduardo Reidy . FADB, 2012. pág. anterior: Palácio Gustavo Capanema - Mnistério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro. Lucio Costa, Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos, Jorge Machado Moreira, Roberto Burle Marx e Le Corbusier. FADB, 2012. Congresso Nacional, Brasília. Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. FADB, 2009. 19.HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pág. 219

Pluralidade significa, então, deixar que os indivíduos escolham a sua posição no espaço, que não são iguais, mas não significam o estabelecimento de uma hierarquia. Uma aula não precisa ser o momento no qual todas as pessoas estão fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo no mesmo lugar. Por outro lado, a delimitação violenta entre espaços públicos e espaços particulares são o resultado de um equilíbrio instável ou um desequilíbrio entre as esferas coletiva e individual da cidade. Os espaços intermediários são incompatíveis com a vida nas cidades contemporâneas, e os edifícios antigos são peças de museu que servem apenas para serem contemplados. É difícil para a cidade contemporânea conceber uma função nova para um edifício antigo. Para novas funções se constroem novos edifícios, edifícios são substituíveis. Para certos autores, apesar do grande volume de construções, a beleza na cidade contemporânea é escassa, e as obras de arte são produções especiais, avaliadas por pessoas especiais, distribuídas entre um público especial. “Graças ao canto aberto da Casa Schröder de Rietveld, não nos separamos do mundo exterior quando estamos dentro; estamos bem no meio dele.” (19)


parte 09_apontamentos sobre o poder público Quando, no seculo XIX, epidemias se espalham pela Europa, os governos se viram obrigados a corrigir pelo menos os problemas de higiene. Porem, em geral, isso significou a imposição de uma outra cidade sobre a cidade existente. Segundo Benevolo, a cidade liberal é o resultado da superposição de muitas iniciativas públicas e particulares, não reguladas e não coordenadas. Isto é, o Estado não atua de forma consistente sobre a cidade, e suas próprias intervenções são pontuais e desconexas. Os problemas gerados pelas altas taxas de densidade populacional nas cidades, o trânsito sempre congestionado, a infra estrutura sempre deficitária, e até, segundo alguns autores, a feiura, em algum momento ameaçam o bem estar de determinados setores da população, que então fazem um esforço no sentido de fugir dos efeitos colateiras causados pelos problemas, e não para resolve-los: não é problema meu. Segundo diversos autores, enquanto a ideologia neoliberal apresenta as mudanças na sociedade, na economia e na cidade, como inevitáveis, na verdade existem políticas que exercem um rígido controle sobre as mudanças. Afirma-se que no Brasil, o neoliberalismo deu o subsídio teórico para justificar privatizações e concentração de capital, alem das políticas de livre comércio que abrem o mercado interno para uma competição desigual e entreguista. Aponta-se, no entanto, que no Brasil não há sentido em justificar políticas neoliberais que levam à concentração de capital e de renda e que configuram uma oposição em relação ao Estado de bem-estar social porque o Estado de bem-estar social nunca existiu. A ambiguidade, porém, é uma das características atribuídas ao neoliberalismo, isto é, a postura neoliberal é naturalmente contraditória. Koolhaas empreende uma busca pelos princípios que determinam esta cidade e escolhe Manhattan, uma cidade com “uma montanha de provas sem um manifesto”, ou seja, uma cidade que apresenta uma quantidade enorme de edifícios construídos sem nenhum princípio teórico explícito unindo-os, como seu estudo de caso. Podemos entender a partir da análise de Koolhaas que existe uma linha de pensamento por trás da cidade contemporânea, que se esconde durante o processo de produção da cidade como se não existisse, porque expôla seria um depoimento contra esta cidade e contra as pessoas que trabalham


sobre ela. A cidade contemporânea é a cidade da contradição e da competição entre infinitas noções de ordem distintas. “Como escrever um manifesto – sobre uma forma de urbanismo para este fim do século XX – numa era que não os aprecia? A grande fragilidade dos manifestos é sua intrínseca falta se provas. O problema de Manhattan é o contrário: uma montanha de provas sem um manifesto.” (20) A teoria por trás da cidade contemporânea é sistematizada por Koolhaas e chamada de Manhattanismo está associada à chamada “cultura da congestão” que explora a hiperdensidade de certas áreas urbanas, ou seja, o adensamento excessivo e proposital de certas áreas da cidade induzido pelos instrumentos do planejamento urbano, pelas leis de uso e ocupação do solo e pelo código de obras, e que tem como consequência o esvaziamento de outras áreas. Manhattan seria o grande modelo de cidade contemporânea.

20.KOOLHAAS, Rem. Nova York Delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008. pág. 26

Algumas definições de planejamento urbano partem da idéia de que a função do planejador é redistribuir recursos públicos – não necessariamente de forma justa. Outras definições apresentam o planejador como um organizador do espaço da cidade e seus elementos – na esfera burocrática, definindo o uso do solo, por exemplo, e na esfera construtiva, com a sistematização da infraestrutura. O desenho da cidade entendida como um conjunto de quadras, nas quais se localizam os edifícios, ligados por redesde infra estrutura, fica a cargo de terceiros, que atuam simultaneamente para tentar conciliar ou fazer prevalecer logicas distintas. Se o ambiente urbano é definido pela competição, os chamados agentes construtores da cidade atuam por oposição – artistas versus técnicos; os escritórios de arquitetura responsáveis pelo desenho de uma fatia da cidade versus os gerenciadores de trânsito versus o mercado imobiliário versus os arquitetos responsáveis pelos projetos dos edifícios que, diferentemente dos responsáveis pelo desenho urbano, costumam trabalhar para clientes claramente identificáveis e sobre recortes menores de tempo e espaço. Se um arquiteto é contratado para elaborar um projeto urbano, isto é, para desenhar uma fatia da cidade, quem é o cliente? O Estado enquanto instituição que assina o contrato, ou as pessoas cujas vidas vão sofrer as repercussões deste projeto? Se o projeto causa repercussões, projetar é uma atitude politica.


Existe um conjunto de decisões contidas numa escala intermediaria entre aquela que contem o desenho dos espaços que se comportam como privados – edifícios privados ou públicos, com acesso controlado e gestão centrada em um pequeno grupo de pessoas – e aquela que expressa as decisões burocráticas e genéricas que incidem sobre a cidade: a escala do desenho dos espaços públicos, coletivos no sentido mais abrangente da palavra, que fazem a ponte entre a escala da cidade e a escala da calçada e transformam o acordo entre o público e o privado em espaço construído - o bom resultado deste projeto depende da proximidade do desenho com a realidade, o que significa que deve haver abertura para a participação pública, que em geral acontece de forma indireta, e do nível de consciência a respeito do significado do desenho. É possível elaborar um projeto público com participação direta da população em uma metrópole com aproximadamente 20 milhões de habitantes?

21.BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 77

“A população deve ser suficientemente númerosa para formar um exército na gurra, mas não tanto que impeça o funcionamento da assembleia, isto é, permita aos cidadãos conhecerem-se entre si e escolherem seus magistrados. Se ficar por demais reduzida é de temer a carência homens; se crescer de mais, não é mais uma comunidade ordenada, mas uma massa inerte, que não pode governar-se por si mesma. Os gregos se distinguem dos bárbaros do Oriente porque vivem como homens em cidades proporcionadas, não como escravos em enormes multidões. Tem consciência de sua comum civilização, porém não aspiram a unificação política, porque sua superioridade depende justamente do conceito da polis, aonde se realiza a liberdade coletiva do corpo social (pode existir a liberdade individual mas não é indispensável).” (21) A abertura do governo para a participação direta dos indivíduos significa redistribuição de poder, significa mudar a relação entre que manda e quem é mandado, entre quem projeta e quem aceita o projeto como um presente ou como uma imposição violenta e desagradável, como uma forma de controle social. Isto é, o governo, que recebe do corpo politico o poder para comandar as cidades, devolve esse poder ao povo. Permitir a participação dos cidadão nos processos construtivos da cidade exige uma distribuição de poder mais ou menos igualitária, enquanto a imposição de um projeto pode ser considerada uma atitude totalitária, principalmente em um contexto no qual o povo não se sete soberano e não é tratado como soberano pelo governo, que por sua vez não personifica os interesses da população, ainda que oficialmente prevaleça o regime democrático.


tabela.MOUGHTIN, Cliff. Urban Design: Street and Square. Architectural Press, 2003. pág. 17. Tradução e adaptação livre. 22.MOUGHTIN, Cliff. Urban Design: Street and Square. Architectural Press, 2003. pág. 15

A partir do entendimento de que eleger um governo significa atribuir a um determinado grupo de pessoas uma série de funções relativas à administração do território, e que para o desempenho dessas funções é preciso ter liberdade para tomar certas decisões, que devem ser pautadas pela vontade do corpo politico soberano composto pela união dos indivíduos, expressa na lei, Cliff Moughtin em Urban Design: Street and Sqaure mostra de maneira esquemática uma relação entre formas de controle social características de governos totalitários, formas de participação que envolvem uma parte da população que pode tender à maioria ou à minoria praticadas por governos democráticos, que podem acontece de forma direta ou indireta e assim exigem mais ou menos o interesse e o engajamento politico dos indivíduos, e formas de atuação sobre o território características de regimes anárquicos, que exigem uma população altamente participativa e politizada. “Competition for votes is similar to the operation of the economic market. Voters choose between the policies offered by competing political entrepreneurs. Political parties are analogous to trade associations in the economic sphere and regulate competition. ‘Participation’ for the majority in a representative democracy is, therefore, only participation in the choice of decision makers.” (22)


17 de Novembro de 2011 - Assembléia geral dos estudantes da USP, que reuniu, pela primeira vez desde a década de 1970, mais de 3 mil pessoas no salão caramelo da FAU - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - e votou pela manutenção da greve. FADB, 2011. 23.MOUGHTIN, Cliff. Urban Design: Street and Square. Architectural Press, 2003. pág. 15

“For the followers of Rousseau and participatory democracy, ‘participation’ is an essential element of the decision-making process and is also a method of protecting private interest. This theory is also concerned with the psychological effect of social and political institutions. The central function of Rousseau’s theory is educative and his chief concern is that the political system should develop responsible individuals. In effect, he is saying that as one can only learn to swim by swimming so too one can only learn to be democratic by being involved in democratic processes.“ (23) O autor também relaciona diferentes escalas e diferentes formas de planejamento. Olhando a tabela acima de forma mais ampla percebemos uma proximidade entre sociedades altamente participativas e politizadas e a ausência de planejamento, indicando uma interpretação sobre o planejamento como uma forma de oferecer ou impor sobre a população soluções para problemas que a própria população como um coletivo não conseguiu, não quis ou não teve a oportunidade de resolver cotidianamente. Moughtin indica, porem, que em contexto no qual a população não é politicamente ativa e não ha planejamento, a qualidade de vida das pessoas está condicionada ao seu poder econômico.


parte 10_apontamentos sobre o centro e a periferia O modelo contro-periferia, construído no início da década de 1970 como uma forma de sistematizar a segregação urbana, parte da constatação de que (ou chega à conclusão de que) o centro da cidade, ocupado pelas classes mais altas, é privilegiado no quesito serviços e infraestrutura em relação à periferia, ocupada pelas classes mais baixas. A partir desse modelo foram estruturadas importantes análises sobre as questões urbanas. Segundo Isadora Tami Lemos Tsukumo, a obra inaugural do modelo centro-periferia é o livro São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza, que afirma que a industrialização, que era o principal motor dos processos que estavam se desenvolvendo, remunerava os seus trabalhadores sem levar em consideração os custos com habitação – assim como o cálculo do valor da cesta básica não inclui tais custos - ou seja, os baixos salários estimulam a autoconstrução, que por sua vez inseriu os trabalhadores em um processo de especulação imobiliária no qual além dos autoconstrutores estavam envolvidos o loteador, as empresas do setor de transportes e o Estado, que somente oferecia infraestrutura de maneira pontual e em assentamentos já consolidados.

24.BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 2011. pág. 164

É importante destacar que a especulação imobiliária não é uma novidade do mundo contemporâneo. Benevolo, ao descrever as cidades do Império Romano, introduz o assunto: “As casas são construídas por empresários privados, que fazem especulação, de toas as maneiras, com os terrenos e as construções: todos se lamentam por isso, desde os tempos republicanos. O Estado impõe proibições e regulamentos, mas não consegue corrigir as dificuldades da grande maioria dos cidadoa.” (24) A partir do modelo centro-periferia é possível olhar para o centro e para a periferia como duas cidades distintas cujo desenvolvimento se da de forma paralela - na escala de uma região poderíamos buscar duas cidadesde fato distintas porém vizinhas, uma apresenta características “de centro” como a abundancia de serviços, de infra estrutura e de postos de trabalho, o que a torna um polo de atração, e a outra apresenta características “de periferia”, como a inadequação dos serviços e da infraestrutura e a falta de postos de trabalho, o que a torna uma cidade-dormitório. Esse modelo entende o desenvolvimento da cidade como um subproduto do sistema econômico, como uma maneira de reprodução do capital.


Certos autores afirmam que esse modelo já não é mais suficiente para explicar a metrópole. A mudança no perfil das atividades produtivas da região metropolitana de São Paulo causou uma mudança no quadro econômico - a automação da produção eliminou postos de trabalho, enquanto nos setores secundário e terciário foram abertos novos postos de trabalho que demandam mão-de-obra qualificada, isto é, excluem uma boa parte da população que vai colaborar com o crescimento do trabalho informal. Porém não basta olhar para a cidade como um fenômeno meramente econômico. Se antes a diferenciação espacial do espaço metropolitano era caracterizada pela dicotomia entre os espaços das elites e os espaços das classes operarias, hoje essa fragmentação é caracterizada pelo uso do automóvel e pela edificação de usos antes ligados à rua, isto é, pela construção de shopping centres. A cidade não é mais um todo e sim uma justaposição compartimentos fechados e ligados pelas ruas – o shopping, o hipermercado, condomínio, a escola, o bairro pobre, o bairro de luxo, a indústria, etc... Os fragmentos de cidade construídos de maneira esparsa em vazios espalhados pelo território urbano são definidos pela lógica do adensamento isolado, isto é, agregam dentro deles cada vez mais usos – comercio de rua, cinemas, teatros, restaurantes, academias, lojas de material de construção, edifícios comerciais, edifícios residenciais, todos em um só conjunto, separado de todos os outros por muros altos, e cujo acesso é controlado por catracas e cancelas. Tais conjuntos estabelecem dentro deles mesmos logicas de funcionamento independente de todos os outras, independente da logica da cidade, que ao mesmo tempo nega e compõe a logica da cidade, que, por sua vez, deixa de ter unidade e passa a ser cada vez mais um mosaico de linha de pensamento cada uma negando todas as outras. Essas micro cidades aparecem em escalas cada vez maiores e tem um impacto absolutamente negativo sobre aqueles que permanecem com suas portas abertas para as calçadas – o fechamento do Cine Belas Artes em 2011 e o fracasso de todos os esforços para que ele permanecesse aberto é um exemplo. Por causa do funcionamento fechado nelas mesmas, essas novas formas de construir espaços na cidade, desconexas mesmo quando justapostas, não significam uma melhoria da qualidade urbanística do seu entorno. Os empreendedores pressionam a administração das cidades para que as leis e o desenho urbano mude de acordo com seus interesses individuais.


Enquanto os indivíduos se fecham em seus espaços cada vez mais exclusivos num esforço no sentido de fugir da violência e do caos, os espaços públicos, abandonados e cada vez mais violentos. Em muitos casos, se o condomínio não é fechado, a segurança é particular. Existe um conflito entre os cidadãos e o governo quando este usa a polícia para se colocar. A população não se sente servida pela policia, não se sente protegida pela policia, mas quando um determinado setor da sociedade esboça um movimento de protesto e é violentamente reprimido pela policia, a classe media aplaude como se tudo não passasse de um espetáculo. Certos teóricos afirmam ainda que o sucateamento de serviços públicos atinge inclusive a universidade, que é tida como uma das últimas instituições públicas ainda respeitada pela classe media. Apontase que uma boa parte da população, principalmente das classes alta e baixa, busca universidades particulares que oferecem aquilo que eles procuram – a formação necessária para a manutenção de sua condição e o consequente agravamento das diferenças sociais e da distancia em relação ao poder público no caso da classe alta, e as condições para uma ascensão social num contexto de competição entre os indivíduos, no caso da classe baixa. Assim, um olhar pessimista sobre a cidade nos leva a concluir que, em São Paulo, em geral, os serviços oferecidos pelo poder público em qualquer escala são precários, a noção de contrato social aparentemente não existe, e a cidade vem se tornando o palco de uma competição violenta entre aqueles indivíduos que deveriam estar trabalhando no sentido de contribuir com o bem estar geral. Os indivíduos não colaboram, os indivíduos competem porque nem todos podem ter acesso aos serviços que o estado deveria fornecer mas que a propriedade tem que contratar. A luta não é pelo bem estar social, é pelo bem estar individual. As casas particulares reproduzem as formas dos palácios, e competem umas contra as outras e contra todas as outras construções. Todos os edifícios se comportam como templos. A função dos arquitetos e planejadores passou a ser, de acordo com Koolhaas, promover a congestão. Eles próprios, que deveriam resolver os problemas das grandes cidades, só existem graças a esses problemas. Em vez de buscar soluções, os arquitetos, aparentemente objetivos e pragmáticos, secretamente, com mais ou menos consciência, garantem com que os problemas das grandes cidades continuem sem solução, como se a cidade na qual vivemos fosse definitiva, como se não houvessem alternativas. A cidade resume a função dos arquitetos ao projeto de edifícios, pérolas, obras de arte, limitadas aos lotes, sem o poder de transformar.


Elevado Presidente Costa e Silva, São Paulo. FADB, 2012. próxima pág.: Elevado Presidente Costa e Silva, São Paulo. FADB, 2012.

De acordo com certas interpretações, o desenvolvimento da construção em altura gerou uma vontade de construir maior do que a necessidade por mais área para ser ocupada. Tsukumo fala sobre os dados obtidos em diferentes momentos, que apontam mudanças na dinâmica da população urbana do município de São Paulo: um estudo publicado pela Sempla no final da gestão de Luiza Erundina como prefeita e um estudo publicado posteriormente intitulado “Mapeamento da exclusão/inclusão social na cidade de São Paulo - 2000” apontam duas lógicas diferentes incidindo sobre a cidade. A investigação sobre as mudanças que ocorreram entre 1980 e 1999 levou a autora a concluir que a constatação da diminuição da população residente no centro foi a base da construção da idéia de esvaziamento da região central. Além disso, apareceram as questões da vacância imobiliária e da diminuição de postos de empregos de alta renda. Outro ponto questionado pela autora é a obsolescência dos edifícios do centro para uso comercial – que justificou a construção de novos edifícios comerciais e a consolidação de novas centralidades, gerando, na verdade, uma oferta exacerbada de imoveis em “endereços de grife” que associada ao empobrecimento de um lugar que é um importante polo econômico, lugar de passagem e de moradia na cidade,




à presença marcante do comercio informal e de moradores de rua, e à escassez de vida noturna. Antes de fazer parte da construção da cidade de forma generalizada, o arranha-céu era um evento isolado, e a imagem que foi construída em torno desses edifícios fez com que tal tipologia se tornasse um simbolo sem significado.

pág. anterioir: Avenida Tiradentes, São Paulo. FADB, 2010.

O aspecto teórico-político-ideológico da questão da ocupação do centro foi fortemente influenciado pela produção teórica da década de 1970 sobre o crescimento da área metropolitana de São Paulo, que trouxe para o contexto paulista o modelo Centro-Periferia. Em geral se sabe que o centro vem perdendo moradores nos últimos anos, e muitas análises chegam à conclusão de que o centro está degradado. A própria noção de degradação e as propostas desenvolvidas a partir disso, algumas que utilizam termos como “revitalização”, e outras que fazem um esforço no sentido de oferecer moradia na área central para a população de baixa renda, partem de fundamentações teóricas cuja posição política é bastante marcada. De um lado vemos a luta pelo direito à cidade, que aponta as contradições expressas fisicamente no tecido urbano, na qual estão envolvidos diversos setores da sociedade, incluindo movimentos populares e a comunidade acadêmica; e de outro vemos setores da elite que buscam transformar o perfil social da população da área central, que acreditam que a presença das classes mais pobres é um importante fator de degradação do centro, e portanto querem atrair para esta região o mercado imobiliário voltado para as classes mais altas. Aponta-se que a dualidade apresentada pelo modelo centro-periferia teve como consequência nas décadas de 1980 e 1990 a concentração dos movimentos sociais na periferia. Já durante a década de 1990, com o aumento do desemprego gerado pela reorganização da economia, os movimentos sociais, lutavam pela oferta de serviços e infra estrutura associados às políticas habitacionais. O envolvimento de técnicos e acadêmicos com esses movimentos levou à formação do movimento pela reforma urbana. Em relação ao centro, os estudos, de forma geral, desconsideravam a possibilidade de promover politicas de habitação social, a partir da constatação de que no centro o mercado imobiliário atuava com muitia força, e o preço da terra é alto. Aos poucos os movimentos sociais passaram a reivindicar a produção de habitação social em áreas aonde já houvesse infraestrutura, não necessariamente centrais. A discussão sobre morar no centro apareceu graças a movimentos sociais e está associada à discussão sobre a degradação das áreas centrais.


parte 11_apontamentos sobre o acordo de respeito mútuo entre o público e o privado Hertzberger começa o livro Lições de arquitetura falando sobre os conceitos de público e privado. Segundo o autor, o conceito de público está ligado à idéia de coletivo, ou seja, um espaço é público quando a área e acessível a todos a qualquer momento, e a manutenção do espaço é assumida coletivamente, e uma área é privada quando o acesso é restrito a um determinado grupo de pessoas, e são essas pessoas que assumem a responsabilidade pela manutenção do espaço. Porem, o autor afirma que essas duas esferas colocadas um em oposição a outra causaram são sintomas da degradação das relações humanas. O lugar de cada individuo no mundo e a postura que esse individuo assume diante do mundo são determinados não só por aqui que o individuo quer ser, mas também pelas expectativas em relação a ele – cada individuo tem um papel que lhe é conferido pela sociedade e que é o resultado do modo como a sociedade olha para o individuo. As interpretações sobre os padrões sociais estão em todos os projetos e podem estão ou não acompanhadas de criticas e propostas de mudança, é o que Hertzberger chama de o programa por traz do programa de necessidades. Ou seja, as esferas pública e privada estão constantemente interagindo, uma alimentando a outra, e o foco sobre os dois extremos prejudica a arquitetura, que, na verdade, deveria prestar muita atenção nas sutilezas das relações possíveis. Essas relações podem se dar de diferentes maneiras, em diferentes escalas. Essas relações podem ter muito ou praticamente nenhum espaço para acontecer. Segundo Hertzberger, se os componentes espaciais tiverem uma escala tal que as pessoas consigam se relacionar e manter, o espaço e as pessoas que o ocupam podem se libertar do sistema repressivo de decisões centralizadas. Levar em consideração todas as outras pessoas ao tomar uma decisão a respeito do espaço sobre o qual temos responsabilidade – alguns desses espaços e algumas dessas responsabilidades não dividimos com ninguém, outras dividimos com todas as outras pessoas – é um passo no sentido de criar uma cidade menos alienada, ou seja, uma cidade na qual os espaços não se recusam a aceitar a existência dos outros espaços. O autor fala sobre o ato de colocar roupas para secar no espaço entre os edifícios, sobre a rua, até hoje muito comum em muitas cidades europeias, como uma apropriação privada do espaço público que não interfere no uso


Lisboa. Em alguns bairros da cidade, alguns edifícios estão em posições tais que definem páteos e praças abertas para a rua em um dos lados, configurando um conjunto de espaços livres ligados por passagens que muitas vezes, passam por baixo ou até por dentro de alguns edifícios. Em alguns casos, essas passagens são muito movimentadas e nelas são instalados estabelecimentos comerciais. Em outros casos, as passagem são usadas quase exclusivamente pelos moradores daquela quadra, e diversas entradas dos edifícios residenciais se abrem para essas praças e páteos. Não há cercas, muros, guaritas ou portões, apenas os edifícios e os espaços livres por eles definidos. FADB, 2011.

da rua, uma demonstração mútua de gentileza. A questão que surge é: como estabelecer relações de gentileza quando a gentileza aparentemente não existe? A cidade na qual vivemos define seus limites com cada vez mais violência, ha pouco ou nenhum espaço para a hospitalidade que se expressaria no encontro de realidades cada vez mais distintas nas quais as pessoas estão cada vez mais convencidas de que vivem em um mundo autônomo em relação a todos os outros. A justaposição e a sobreposição esquizofrênica de lógicas diferentes, alienadas umas em relação às outras, muitas vezes parecem determinar a construção, a administração e a vida nas cidades, e assim criam uma série de contradições em diferentes escalas que muitas vezes dificultam mas não inviabilizam a existência do ambiente urbano. Em outras palavras, os chamados agentes construtores da cidade trabalham de forma individual porem inevitavelmente juntos para conseguirem participar de um conjunto de relações nas quais todos os participantes trabalham de forma individual a fim de explorar o território da cidade. As relações das quais os agentes construtores da cidade lutam para participar são pautadas por


Lisboa. Em 1989 uma parte do bairro do Chiado foi destruída por um incêndio. O arquiteto Álvaro Siza desenhou o projeto de recuperação desses edifícios, e determinou a abertura das quadras e, portanto, a possibilidade de novos caminhos. FADB, 2011.

diferentes lógicas construídas a partir da sobreposição e da justaposição das lógicas que atuam sobre cada um. O que é finalmente construído foi concebido em um ambiente esquizofrênico e é, portanto, absurdo, o que nos leva a concluir que a cidade contemporânea é resultado de uma logica autoconstruida, cujo processo irracional e inconsequente de montagem foi deliberadamente ignorado e incentivado, e cujo objetivo é ser paranoica e ilógica. Podemos dizer que, com isso, as classes dominantes conseguem manter um estado no qual diversos interesses estão mais ou menos coordenados entre si, e a cidade aceita naturalmente as contradições produzidas pelos interesses das classes “subalternas”. A liberdade completa é garantida dentro dos limites estabelecidos pelas próprias classes dominantes através poder público. A arquitetura, então, aparece como um conjunto de eventos isolados, sem condições de transformar as cidadesde fato, e a cidade ideal permanece no plano da teoria. Nesse contexto, uma possível abordagem sobre o projeto começa a partir do esforço no sentido de provar que a autonomia é uma ilusão. A mão é distinta em relação ao braço, mas a mão não sobrevive separada do


idem pág. anterior. 25.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. pág. 67

braço. O papel do arquiteto seria mostrar através do projeto que a cidade se forma a partir de um conjunto de indivíduos e de espaços - cada um contendo sua própria realidade, distinta porém nunca autônoma, e nem sempre consciente a respeito de suas relações. “...esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos votos tem a assembleia, o qual recebe deste mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma assim pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e toma agora o de república ou de corpo politico, que é chamado por seus membros de estado quando é passivo, soberano quando é ativo, potencia quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, eles tomam coletivamente o nome de povo e se chamam em particular de cidadãos, enquanto partícipes de uma autoridade soberana, e súditos, enquanto submetidos às leis do estado. Mas esses termos frequentemente se confundem e são tomados um pelo outro. Basta saber distingui-los quando são empregados com toda a sua precisão.” (25) A escala das relações cotidianas na cidade parece cada vez maior, as distâncias entre emprego e moradia – principalmente para as classes mais baixas -


parecem cada vez maiores, os serviços estão cada vez mais concentrados e tem uma área de atuação cada vez mais abrangente. Ao mesmo tempo, os indivíduos não se sentem parte de um coletivo, muito menos se identificam com o poder público. A população de maneira geral aparenta não se sentir responsável pelos espaços públicos. A maior parte desses espaços acaba se tornando espaços de passagem, enquanto os espaços de lazer e de encontro adquirem uma escala tão grande que as relações entre as pessoas se dilui. Os usuários pouco contribuem e pouco se esforçam para conferir um caráter pessoal aos espaços públicos, e não se veem responsáveis por eles. Não vemos o sentimento de responsabilidade pelos espaços desassociado do sentimento de posse sobre o espaço – o que não quer dizer que tal associação não possa existir. Nas várias ruas de pedestres de Brasília, por exemplo, o jardim coletivo, em geral, foi abandonado ou foi parcialmente cercado por alguns moradores – cada um cuida da SUA parte e não de UMA parte, o que aparentemente significa que esta parte deva estar excluída do todo. Na cidade ilustrada por Robert Venturi e Denise Scott Brown em Aprendendo com Las Vegas, a coletividade se limita a oferecer o acesso e uma ligação nas redesde agua e energia, e o individuo de limita a oferecer sua fachada. Porém, aceitando que cada espaço é um mundo, é preciso que entre dois mundos haja um intervalo, acessível igualmente por ambos os lados – um evento que cada lado aceita compartilhar com o outro. O intervalo entre a esfera pública e a esfera privada, entre a casa e a rua, é altamente dependente do acordo de respeito mútuo entre as partes para que a expressão individual e a organização coletiva possam acontecer simultaneamente.


parte 12_inquietação estudantil e o papel da escola “Nesse ramo do imóvel utópico, a arquitetura já não é tanto a arte de projetar edifícios, e sim a extrusão brutal rumo ao céu de qualquer terreno que o incorporador consiga reunir.” (26) Se um edifício é um conjunto de soluções para problemas de natureza técnica, dados a partir de um conjunto de soluções para problemas de natureza humana, que passam pela construção de relações entre diferentes elementos, isto é, se o projeto de um edifício está diretamente ligado aos anseios, às necessidades e aos conflitos da vida humana, a qualidade de um edifício é dada pelas questões que o edifício encerra, não pelas questões que deixa em aberto. A busca por soluções passa pela descrição do programa, um conjunto de necessidades, funcionais e simbólicas, as quais um determinado edifício deve atender, expressas através da discriminação de espaços específicos.

26.KOOLHAAS, Rem. Nova York Delirante. São Paulo: Cosac Naify, 2008. pág. 112

Como resolver as tensões entre uma proposta de cidade que entra em conflito com a cidade existente? Alguns autores entendem que a resposta está justamente na conciliação entre os autores do projeto e os usuários do edifício, um projeto que se identifique com uma determinada cultura pode induzir alguma mudança quando o arquiteto entende a própria cultura e os próprios valores como algo que socialmente construível, tão legítimos quanto qualquer outra cultura e qualquer outro conjunto de valores. Cliff Moughtin desenvolve uma esquematização da elaboração de projetos que casa o processo de projeto sistematizado por Thomas Markus e Thomas Marver a partir do sistema estabelecido pelo RIBA, com o método cientifico de elaboração de teorias sistematizado por Walter Wallace. O autor conclui que é preciso fazer as perguntas certas, que a aplicação do método pode resultar e uma redefinição do problema, e que problema e solução se relacionam dialeticamente. Ao observarmos o esquema montado pelo autor, notamos que o sistema nunca volta para o problema, ou seja, o desenvolvimento do projeto não é uma ferramenta para, e não resulta no questionamento de certos problemas como problemas de fato, a definição do problema e o desenvolvimento das soluções são dois processos diferentes, que resultam em produtos relacionados porem autônomos um em relação ao outro. Para o autor, o que vai gerar a redefinição dos problemas parece ser a ineficiência das soluções, e não o processo de


diagrama. MOUGHTIN, Cliff. Urban Design: Street and Square. Architectural Press, 2003. pág. 21. Tradução e adaptação livre.

elaboração dessas soluções. Mais a frente em seu texto, Moughitin coloca que um edifício bem projetado não resolve os problemas de seu entorno, ainda que os conflitos estejam ali expressos de uma maneira ou de outra. Por um lado, essa esquematização pode ser boa para organizar o trabalho do arquiteto e para desconstruir a noção do arquiteto artista autor das idéias únicas e geniais. Essa sistematização ajuda a mostrar que arquitetura exige método e técnica, exige uma formação cientifica que vai alem da habilidade individual. Porem o individuo, seus valores, sua moral, seus anseios, o conhecimento empírico, a intuição e a analogia estão muito presentes no processo. Muitas vezes Rem Koolhaas, em seus textos, atravessa a discussão sobre o papel do arquiteto na cidade contemporânea, e muitas vezes é possível identificar que o autor olha para sua própria condição de uma maneira um tanto quanto melancólica por entender que a cidade contemporânea desmoraliza a arquitetura. Uma recente pesquisa desenvolvida por um site norte-americano que levou em consideração a facilidade de encontrar emprego para os recém formados e para aqueles com mais experiencia profissional, a expectativa de remuneração e a remuneração real dos profissionais, e a projeção de


São Paulo, EMEF Desembargador Amorim Lima. Nessa escola, a diretora pediu a demolição das paredes que separavam as salas para que o espaço fosse mais adequado à uma metodologia desenhada a partir daquela desenvolvida por José Pacheco para a Escola da Ponte, em Portugal. A partir de uma bibliografia essencialmente brasileira, o educador português que agora vive no Brasil rompeu com o ensino seriado e com a avaliação baseada no mérito. FADB, 2012. 27.MONEO, Rafael. Inquietação teórica e prática profissional na obra de oito arquitetos contemporâneos. São Paulo: Cosac Naify, 2008. pág. 109

crescimento das profissões entre 2010 e 2020, concluiu que arquitetura é a quinta faculdade mais inútil nos Estados Unidos. Em Cidades Genéricas, Koolhaas afirma que, enquanto algumas cidades ainda discutem os erros dos arquitetos, as cidades genéricas simplesmente aproveitam a parafernália das conexões espaciais. Diante disso, podemos assumir que a arquitetura pode construir um forte que resiste contra o abandono da identidade da cidade. Esse esforço contem o entendimento de que a identidade da cidade passa pela identificação dos indivíduos uns com os outros como uma comunidade, e que a formação dessa comunidade está na fundação da cidade e dos governos. Rafael Moneo, ao descrever o projeto da escola em San Sabba de Aldo Rossi afirma que: “A escola é, sobretudo, um espetáculo público que – a exemplo dos primórdios da arquitetura mediterrânea, dos palácios dos reis de Creta – começa com o estabelecimento de uma plataforma a partir da qual, neste caso, se domina a cidade. Rossi deleita-se mais tarde em pensar como as crianças chegam a ela em procissão, através de uma série de pórticos, e em imaginar como chegam às classes e aos espaços abertos onde começarão a entender o que significa a ida social.” (27)


A escola pode assumir o papel de pedra fundamental da cidade. A escola deve ser, ao mesmo tempo, um ninho seguro, e um mecanismo que ilustre a aventura urbana. Anísio Teixeira estabelece uma relação entre educação e cidadania dizendo que, apesar de todas as diferenças, todos os homens são educáveis para que partilhem da vida em sociedade como iguais. O autor coloca a educação como o pilar central de um regime verdadeiramente democrático, isto é, a principal função da atividade de ensino é a formação política. Teixeira explica que a democracia não é só um conceito, mas um programa para a vida humana, que começou a ser desenvolvido faz relativamente pouco tempo e que ainda está longe de atingir o patamar ideal. Segundo o autor, a reivindicação pela democracia foi o lado político do processo de montagem do liberalismo econômico.

28.TEIXEIRA, Anísio. Política e Educação. In. XII Conferência Nacional de Educação. Rio de Janeiro, 1956. próxima pág.: Projeto Âncora, Cotia. Regina Machado Steurer. O programa foi dividido em diversos blocos espalhados por uma chácara. A idéia é caminhar no sentido de explodir a escola e transformar a cidade em uma cidade educadora. O aluno passaria a maior parte do tempo em espaços que já fazem parte da vida do bairro, e o edifício escolar deixaria de fazer parte de um mecanismo que separa os alunos do mundo e concentra o conhecimento abstrato, e se tornaria um acessório tão importante para a educação quanto qualquer outro edifício da cidade. FADB, 2012.

Certos autores, porém, indicam que a progressiva privatização de vários setores e o enfraquecimento das instancias reguladoras do governo, características do neoliberalismo, fazem com que as ações de manutenção e expansão urbana sejam isoladas umas das outras, desarticuladas e ligadas aos interesses das empresas privadas que controlam trechos dos sistemas de infra estrutura, que muitas vezes não coincidem com os interesses gerais da população. Essas ações não contribuem para a formação de redes que articulam e integram o espaço, ao contrário, colabora com o aumento da desigualdade nas esferas econômica, social e política. “A sociedade não é um todo único, mas, de fato, e sobretudo a moderna sociedade, uma constelação de “sociedades”. Além da estratificação social, que nos dá as classes, há toda sorte de sociedades menores dentro da grande sociedade. A família, os amigos, companheiros de escola, companheiros de trabalho, de clubes, são outras tantas sociedadesdentro da sociedade. E como tais micro-sociedades existem até mesmo dentro de cada classe temos, pelo menos, um múltiplo de todas elas. A sociedade democrática é a sociedade em que haja o máximo de comum entre todos os grupos e, por isto, todos se entrelacem com idêntico respeito mútuo e idêntico interesse. As relações entre todos os grupos e o sentimento de que todos têm algo a receber e algo a dar emprestam à grande sociedade o sentido democrático e lhe permitem fazer-se o meio do desenvolvimento de cada um e de todos.” (28)



parte 13_diretrizes para o projeto Certos autores entendem que a escola hoje é um espaço de especialização. O modo de organizar e administrar o espaço, o tempo e o conhecimento é distinto de qualquer outra instituição. A ordem da escola é artificial, estranha e violentamente imposta sobre os alunos. “A escola democrática é, por sua vez, a escola que põe em prática esse ideal democrático e procura torná-lo a atitude fundamental do professor, do aluno e da administração. À luz desse critério deveremos julgar cada um dos fatores da escola: currículo, métodos, organização, ou sejam, atividades, processos e relações entre os três grupos de trabalho da escola, alunos, professores, administradores. A escola é uma comunidade com seus membros, seus interesses, seu governo. Se

29. TEIXEIRA, Anísio. Política e Educação. In: XII Conferência Nacional de Educação. Rio de Janeiro, 1956.

próxima pág.: Projeto Âncora, Cotia. Regina Machado Steurer. Nas escolas cuja principal referência é a Escola da Ponte, os alunos recebem cronogramas que organizam os conteúdos e estabelecem prazos, mas têm mais ou menos liberdade para decidir o ritmo e o método do próprio aprendizado. O professor se torna um educador. FADB, 2012.

esse governo não for um modelo de governo democrático, está claro que a escola não formará para a democracia. Diretores, professores e alunos devem organizarse de forma a que todos participem da tarefa de governo, com a divisão de trabalho que se revelar mais recomendável. A participação de todos, o sentimento de interesse comum é essencial ao feliz desempenho da missão educativa da escola.” (29) Anísio Teixeira coloca a construção de uma escola democrática como um problema, a escola teria sido criada pela aristocracia para a aristocracia como um instrumento da manutenção das desigualdades sociais. Em um certo momento aparece a escola primária, comum a todos, aberta a diversos setores da população, cuja construção teria sido falha, a escola primária, que deveria equipar os indivíduos para que o povo desempenhasse o papel de soberano de um regime democrático, promovia a manutenção do povo como massa governada pelo Estado. A reprodução do modelo de ensino seriado e especializado só fazia sentido para aqueles que fossem ingressar na escola secundaria, que por sua vez, só fazia sentido para aqueles que pretendiam construir uma carreira acadêmica. A escola dava todo o tipo de repertorio para que os alunos soubesse falar sobre as coisas. Toda a educação pela experiencia estava do lado de fora. Segundo Teixeira, o aluno era capaz de mostrar que sabia das coisas, sem necessariamente saber as coisas. Rever o que é ensinado e como é ensinado, levar em conta não só os conteúdos dos livros mas as experiencias e o aprendizado empírico, quebrar com as barreiras das especializações e das cartilhas, é um ato político cuja construção



depende de muitos fatores, entre eles o projeto da escola, e cujo objetivo deve ser a construção de um modelo político para a cidade. A democracia é o modelo a partir do qual podemos trabalhar, mas é um modelo no qual a igualdade e a cidadania não incluem todos os indivíduos, e são dadas mediante um conjunto de condições. “A idéia fundamental de que toda ação humana é uma ação associada, começará a dar-lhe a consciência de que a individualidade não é algo a opor aos outros, mas a realizar-se pelos outros, tendo apenas um sentido que é o da medida de sua responsabilidade para com o grupo e para consigo mesmo.” (30) De acordo com Anísio Teixeira, a educação da escola democrática é pautada pelas atividades comuns. Depois de aprender a falar e a andar, na escola os alunos tem a oportunidade de explorar os movimentos e as linguagens, das

30. TEIXEIRA, Anísio. Política e Educação. In: XII Conferência Nacional de Educação. Rio de Janeiro, 1956. 31. TEIXEIRA, Anísio. Política e Educação. In: XII Conferência Nacional de Educação. Rio de Janeiro, 1956.

mais abstratas às mais exatas, e de aprender com as organizações complexas da vida em grupo, dentro e fora do contexto da aula, em qualquer atividade, para que a escola se configure como uma comunidade integrada. A escola democrática não deve apresentar o trabalho de um contra o outro, deve mostrar que os indivíduos vivem não em oposição e em competição uns contra os outros, mas junto e em função dos outros. A escola democrática deve apresentar o conhecimento não como um conjunto de fatos inúteis mas como um conjunto de habilidades que permite aos indivíduos resolver problemas e dar sua contribuição individual coordenada com o trabalho coletivo, no sentido de atingir um objetivo comum. “Com efeito, sem diferenças econômicas e sem conflitos outros de interesse dentro dela, a escola se faz um pequeno ideal de vida comunitária, com um plano de atividades em que o rigor exato do trabalho, a doce intimidade da família e a alegre animação do clube se casam, para produzir um ambiente capaz de conduzir com êxito a aventura do saber, do progresso social e da igualdade humana, que é a própria aventura da democracia.” (31)



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