Literatura na escola: teoria, prática e (in)disciplina

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LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prรกtica e (in)disciplina

Organizadores: Marcus De Martini Raquel Trentin Oliveira Renata Farias de Felippe



LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prรกtica e (in)disciplina

Organizadores: Marcus De Martini Raquel Trentin Oliveira Renata Farias de Felippe



Organizadores: Marcus De Martini Raquel Trentin Oliveira Renata Farias de Felippe

LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

PPGL 2016 1ª edição ISBN 978-85-99527-40-5 Santa Maria – Rio Grande do Sul – Brasil


universidade federal de santa maria centro de artes e letras programa de pós-graduação em letras reitor: Prof. Paulo Afonso Burmann vice-reitor: Prof. Paulo Bayard Dias Gonçalves diretor cal: Pedro Brum Santos coordenação ppgl: Cristiane Fuzer

ppgl editora editor chefe: Pedro Brum Santos editor gerente: Caciane Souza de Medeiros

literatura na escola: teoria, prática e (in)disciplina organizadores: Marcus De Martini, Raquel Trentin Oliveira e Renata Farias de Felippe projeto gráfico | capa | diagramação: Flavio Teixeira Quarazemin revisão de texto | revisão técnica: Marcus De Martini, Raquel Trentin Oliveira e Renata Farias de Felippe

endereço Universidade Federal de Santa Maria Centro de Educação, Letras e Biologia Prédio 16 - Bloco A2 - Sala 3222 Campus Universitário - Camobi 97105-900 - Santa Maria, RS - Brasil coral.ufsm.br/ppgletras/

L776

Literatura na escola : teoria, prática e (in)disciplina / organizadores: Marcus de Martini, Raquel Trentin Oliveira, Renata Farias de Felippe. – 1. ed. – Santa Maria : UFSM, PPGL-Editores, 2016. 216 p. : il. ; 21 cm. ISBN 978-85-99527-40-5 1. Literatura 2. Ensino de literatura 3. Ensino médio I. Martini, Marcus de II. Oliveira, Raquel Trentin III. Felippe, Renata Farias de CDU 82:373.5

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Eckhart CRB-10/737. Biblioteca Central - UFSM

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Eckhardt CRB-10/737 Biblioteca Central - UFSM

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SUMÁRIO 07

encarar o abismo, para superá-lo

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apresentação

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Ensino da literatura: impasses teóricos e metodológicos o papel da literatura na escola Regina Zilberman

literatura e ensino: o leitor na escola Maria da Glória Bordini

os (des)caminhos da literatura no ensino médio Ana Cláudia Fidelis e Rildo Cosson

Literatura na escola: a disciplina e o currículo língua e literatura na escola: um casamento feliz Raquel Trentin Oliveira

literatura e ensino: os impactos do exame nacional do ensino médio (enem) Gabriela Fernanda Cé Luft

fantasmas no sótão: as letras coloniais na escola Marcus De Martini

a sala de aula como espaço político:

147 de como educar o homo absumens Carlos Augusto Bonifácio Leite


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Literatura na sala de aula: propostas de abordagem do texto literário e do livro didático formação do leitor no ensino médio:

163 mitos e possibilidades Márcia Froehlich

“usos” do manual – possibilidades didáticas

185 e abordagens do contemporâneo Renata Farias de Felippe

imagens de pensamento para a prática de mediação 203 literária: o rizoma e a provocação de sentidos Daniela Bunn


ENCARAR O ABISMO, PARA SUPERÁ-LO Numa terra de paradoxos como é o Brasil, mais um deles se apresenta em anos recentes. Paradoxo silencioso, mas terrível, se pensarmos no quanto de esforço genuíno ele encerra. Trata-se daquele contraste entre o impressionante, o rico, o abundante acúmulo de estudos e pesquisas geradas na universidade brasileira, em toda e qualquer área do conhecimento, e, na outra ponta, a pobreza, a estreiteza, a lamentável limitação vivida pela escola cotidianamente, muito em particular a escola pública. Certo, logo alguém vai lembrar, com indubitáveis razões, que falta dinheiro, os prédios dão dó, os materiais são escassos ou nulos, o salário dos profissionais é constrangedor. Sim, verdade. Mas tem algo, além disso, que pouco progride, apesar de tudo: é o imenso abismo entre o avanço científico no nível superior e a realidade escolar. Exemplo alto disso? O campo da literatura. Faz já duas gerações completas, desde o começo dos anos 1970, ou ao menos uma geração inteira, a partir da virada do século, que as Letras, em particular os Estudos Literários – ponhamos aí qualquer designação, Literatura, Literatura Brasileira, Teoria da Literatura –, vivem, na universidade, uma realidade primeiromundista. Cursos de pós-graduação de ótimo nível se espalham país afora, nutridas por verbas relevantes para bolsas, eventos e publicações. Análises e interpretações de excelente nível são produzidas. Professores e alunos deste mundo viajam pelo país e para muitas partes do planeta, apresentando e conhecendo estudos, interagindo, trazendo de volta experiência riquíssima. Tal é a situação que não poucos países europeus, para nem falar de africanos e americanos, invejam fortemente a pujança e a solidez do mundo acadêmico brasileiro, pelos salários praticados e por todas essas benfazejas realidades de pesquisa e ensino. Incluindo o campo literário.

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Quantas monografias, dissertações e teses terão se debruçado sobre o ensino de literatura, quer dizer, sobre a transformação de parte daquela imensa riqueza em caminhos para formação escolar de leitores? Bem, não se tratará da maioria do que se produziu no campo literário – mas não será pouca coisa, longe disso. Se o leitor que acompanha as presentes linhas for ou tiver sido aluno de Letras nos últimos 30 anos, por certo terá lido ou tomado conhecimento de miríades de pesquisas, artigos, TCCs, seminários, encontros, reuniões envolvidos com este laço frágil entre pesquisa e escola. É muito esforço, milhares de horas de trabalho de centenas de pessoas, em todo o país. Muito papel impresso, muita pestana queimada. Carreiras acadêmicas desenvolvidas sobre isso. E segue o abismo. Por quê? Este livro é mais um esforço para entender esse problema, que não é pequeno. Por certo existindo em outras áreas, esse abismo, no campo da formação do leitor, é dramático, embora invisível. Sem formar bons leitores, e em particular sem formar bons leitores literários, perdemos gerações de indivíduos aparelhados para entender melhor a si e aos outros; deixamos de ter cidadãos habilitados no conhecimento de experiências marcantes, vividas em todos os tempos da aventura humana, que viraram matéria-prima da literatura. Este livro contém sínteses preciosas do que já se passou, assim como ótimos diagnósticos e até mesmo algumas valiosas sugestões de ação. Ele não é, porém, um manual de trabalho – seu esforço é acadêmico, no melhor sentido: ele admite a complexidade do assunto e, sem desdenhar nem do tamanho da encrenca, nem da inteligência do leitor, procura oferecer reflexão sólida, nascida de gente que há tempos milita no campo. Olhe lá o sumário, caro companheiro de fortuna e de infortúnio, e veja que quem escreve aqui acompanha e critica o abismo desde sempre. É gente que, mais do que estudar, vive a literatura fortemente, entranhadamente. Gente leitora, como o professor de língua e literatura 8


encarar o abismo, para superá-lo

precisa ser se quiser ter credibilidade e qualidade em suas palavras e ações. Gente estudiosa, como precisa ser todo professor. Gente insatisfeita com aquele abismo, porque sabe da maravilha encerrada no infinito patrimônio literário, brasileiro e universal, que abstratamente pertence a todos, mas precisa de nós para ser entregue de porta em porta, de inteligência em inteligência, de sensibilidade em sensibilidade, diariamente, por todos os tempos. Luís Augusto Fischer

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APRESENTAÇÃO A velocidade da informação, as trocas globais, a acelerada criação de aparatos tecnológicos que caracterizam a sociedade pós-industrial na qual vivemos exigem o constante desenvolvimento de habilidades individuais, afetam subjetividades, (re)criam “necessidades” de consumo e, como não poderia deixar de ser, interferem sobre os saberes, também em processo de constante reformulação. Para o atendimento de tais demandas, uma série de expectativas em torno das instituições são geradas, e a escola talvez esteja no centro dessa dinâmica. Medidas como as alterações curriculares empreendidas nos últimos anos – responsáveis pela divisão do Ensino Médio em três grandes áreas: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias – e a gradativa substituição do Vestibular pelo ENEM, por exemplo, são algumas das mudanças justificadas pela necessidade de diálogo entre os saberes. A interdisciplinaridade, priorizada pelos currículos escolares, exige a reformulação de práticas, o que é, compreensivelmente, encarado com apreensão por uma parcela significativa dos professores, sobretudo por aqueles cuja formação acadêmica é anterior às demandas recentes. Esta coletânea de ensaios tenta esboçar, se não saídas, possibilidades de trabalho que podem minimizar algumas das dificuldades dos professores (atuantes ou em formação), especialmente daqueles que trabalham com Língua/Literatura nas escolas de ensino básico, já que as suas práticas incluem o letramento literário. Os textos contidos nesta coletânea também abordam questões teóricas, políticas e históricas em torno da leitura (e dos leitores); do universo escolar; da construção da cidadania, necessária para a formação de sujeitos – não de consumidores.

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O livro, dividido em três seções – “Ensino da Literatura: impasses teóricos e metodológicos”, “A literatura na Escola: a disciplina e o currículo”, “A Literatura na sala de aula: propostas de abordagem do texto literário e do livro didático” – , conta com a colaboração de docentes de todos os níveis de ensino, cujos argumentos, pontos de vista e proposições são tão variados entre si quanto os enfrentamentos cotidianos a que nós, professores, estamos sujeitos. Uma inquietação, porém, move todos os trabalhos: o que a Escola deve e/ou pode fazer para que a leitura literária seja um hábito entre crianças e jovens? O ensaio “O papel da literatura na escola”, que abre esta coletânea, assinado pela professora Regina Zilberman (UFRGS) – autora de extensa bibliografia voltada para a problemática da leitura literária na escola e para a relevância e as origens da denominada literatura infantil – faz a seguinte interrogação: “que tipo de leitura caberia à escola estimular?”. No intuito de responder a tal indagação, a autora retrocede à abertura política dos anos 70 e destaca as suas consequências renovadoras para a educação, apontando de lá para cá as principais mudanças estruturais, legais e culturais que atingiram a escola, para o bem ou para o mal. Com base nisso, defende a leitura literária como uma forma de resgatar o caráter emancipatório e utópico do processo educativo. Em “Literatura e ensino: o leitor na escola”, Maria da Glória Bordini (UFRGS) – autora do conhecido Poesia infantil (1986) – alia a abordagem histórica à didática, ao tratar sobre a história da escrita e da leitura, sugerindo também atividades que incluam o repertório discente. O texto faz ainda uma crítica aberta à Universidade brasileira que, atenta às Ciências Exatas e Aplicadas, relega as Humanidades a uma posição, na melhor das hipóteses, secundária. A consequência de tal desequilíbrio seria a formação de sujeitos que, mesmo quando têm acesso aos avanços científicos e tecnológicos, são incapazes de compreender o alcance e o

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apresentação

impacto social dos referidos aparatos. Em resposta a tal limitação, a autora propõe o protagonismo dos profissionais da Letras e a leitura literária como forma de sensibilização e de empoderamento dos educandos. Em “Os (des)caminhos da Literatura no Ensino Médio”, Ana Cláudia Fidelis (PUC-Campinas) e Rildo Cosson (UFMG) traçam um panorama preciso da situação que os professores enfrentam para trabalhar com essa disciplina na escola, decorrentes não apenas do paradigma historicista que ainda impera nos programas e materiais didáticos, mas também da formação deficiente oferecida pela maioria dos cursos de Letras, que não preparam seus alunos para serem professores de literatura. Assim, como concluem os autores, é preciso que todos os agentes envolvidos no problema – governo, universidade, escola e professores – unam-se para que o ensino de literatura se torne algo significativo, tanto para o aluno, como para o próprio professor. Para isso, precisa-se de programas mais claros e coerentes sobre o que ensinar na disciplina de literatura e como fazê-lo, assim como é necessário que a formação do professor de literatura integre, efetivamente, os currículos de Letras, para que, enfim, as formas de interação literária dentro e fora da sala de aula sejam ampliadas. Abrindo a segunda seção da coletânea, o texto “Língua e Literatura na Escola: um casamento feliz”, de Raquel Trentin Oliveira (UFSM), faz referência a algumas questões delicadas, como a ausência de diálogo efetivo entre as áreas de Linguística e Literatura no âmbito dos cursos de licenciatura em Letras, o que repercute sobre a prática dos futuros docentes e que vai de encontro à demanda interdisciplinar/ integradora de saberes que rege os currículos da Educação Básica. No texto, a autora também propõe, de acordo com suas palavras, “um despretensioso exemplo didático” que não só envolveria a análise linguística e o conhecimento da historiografia literária, como também saberes sócio-históricos ativados pela leitura da literatura.

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Já no texto “Literatura e ensino: os impactos do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)”, Gabriela Fernanda Cé Luft (IFRS) apresenta um cenário preocupante para o ensino de literatura na escola, uma vez que constata que grande parte das questões de literatura nessa prova são, na verdade, apenas questões de leitura e interpretação de texto, prescindindo de qualquer conhecimento específico para sua resolução e valorizando excessivamente a leitura funcional. A partir disso, e dada a abrangência do ENEM, a autora faz um prognóstico pessimista: a disciplina de literatura brasileira poderá ser abolida da grade curricular da maioria das escolas. Nesse sentido, a autora defende, na esteira de Antonio Candido, o “direito à literatura”, a importância do estudo em sala de aula da tradição literária nacional, mas também a regional, privilegiando uma leitura cultural do texto literário, para que ele exerça o seu papel fundamental, o de, segundo a autora, “construir e reconstruir a palavra que nos humaniza”. Marcus De Martini (UFSM), no texto “Fantasmas no sótão: as letras coloniais na escola”, defende a importância dessa produção no ensino de literatura brasileira na escola. Para tanto, apresenta um breve panorama acerca da situação do ensino de literatura hoje, pontuando os problemas enfrentados no estudo das letras coloniais na escola, tais como “os impasses historiográficos e teóricos que lhe são peculiares, além das limitações provocadas pela legislação pertinente”. Por fim, discute algumas alternativas para valorizar a leitura e o papel da literatura produzida nesse período. O texto “A sala de aula enquanto espaço político: de como educar o homo absumens”, de Carlos Augusto Bonifácio Leite (UFRGS), reflete sobre o sentido do termo “político” quando associado à prática escolar e ao papel social da escola. Entre as interrogações do autor está o questionamento: “como dar aula em um mundo onde logramos de liberdades quase irrestritas mas cujas possibilidades revolucionárias inexistem?”. Uma das

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apresentação

respostas ao impasse está na defesa de uma educação contra (diferente de uma educação “para o contra”), cuja finalidade seria a de promover a autonomia do indivíduo, o posicionamento consciente deste para além das ideologias e dos valores que lhe precedem. “Formação do leitor no Ensino Médio: mitos e possibilidades”, de Márcia Fröehlich (IFSUL/Pelotas), abre a terceira seção do livro. Nele, a autora discute a formação de leitores literários no Ensino Médio a partir da sua atuação na Educação Básica, incorporando às discussões teóricas apresentadas o relato de experiências e pesquisas desenvolvidas nesse nível de ensino. Ao contextualizar a tradição do ensino de literatura, a autora problematiza os principais impasses enfrentados e desconstrói alguns dos mitos relacionados à prática de leitura entre adolescentes, sugerindo também alternativas didáticas capazes de ampliar a formação de leitores na sala de aula. Em “’Usos’ do Manual – possibilidades didáticas e abordagens do contemporâneo”, Renata Farias de Felippe (UFSM) parte de uma situação bem típica das condições de trabalho do professor de literatura – a existência de um material de trabalho limitado, não raramente lacunar, como um livro didático, uma apostila, ou um manual. Como explica a autora, não apenas o esquematismo e a apresentação historiográfica, próprios da maioria desses materiais, são limitadores das possibilidades de trabalho docente: a ausência de discussões acerca da literatura contemporânea é também limitadora, já que põe em risco a formação de um aluno leitor da literatura de seu próprio tempo. Outro aspecto negativo desse silêncio é a desconsideração da presença reiterada de tais manifestações em processos seletivos, como os vestibulares e o próprio ENEM. Entre as considerações textuais, a problemática da Pósmodernidade é abordada, discussão posterior à formação acadêmica de muitos dos professores atuantes na Escola Básica.

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Por fim, o texto “Imagens de pensamento para a prática de mediação literária: o rizoma e a provocação de sentidos”, de Daniela Bunn (Colégio Policial Militar Feliciano Nunes Pires), acresce à coletânea um relato de experiência que envolve a mediação de leitura literária. A atividade foi aplicada no Ensino Fundamental e teve por base teórica o pensamento rizomático de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O intuito da prática foi o de romper com uma forma de leitura impositiva e determinada, pautandose, antes, na conexão de diferentes platôs (literatura, artes plásticas, publicidade, música, cinema), na valorização de múltiplas entradas e na abertura do texto a variáveis linhas de fuga. A diversidade dos argumentos – alguns deles em contraposição, se relacionarmos os textos entre si – esboçados pelos ensaios têm em comum a tentativa de responder às interrogações envolvendo a prática docente em um momento de adaptação aos Parâmetros Curriculares Nacionais e de (re)avaliação da relevância do literário no âmbito escolar. A despeito das muitas (e produtivas) discordâncias que possam ser identificadas, a partir de diferentes prismas, a literatura é ainda apresentada pelos autores como uma forma de enfrentamento e mesmo de subversão – do senso comum, da banalidade e da apatia. Os organizadores Santa Maria, agosto de 2015.

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1 Ensino da literatura:

impasses teรณricos e metodolรณgicos



O PAPEL DA LITERATURA NA ESCOLA Regina Zilberman1 enquadramento histórico e perspectivas de ação Pode-se situar na virada dos anos 1970 para os anos 1980 o período em que se intensificaram e expandiram as discussões relativas à leitura na escola e ao papel da literatura no ensino. A época caracterizava-se pela descompressão do regime militar, na esteira das manifestações públicas de insatisfação com o modelo autoritário de governo e da falência do projeto desenvolvimentista abraçado pelo Estado. Entre o final da vigência do Ato Institucional número 5, o AI-5, em 1979, e as primeiras exigências de eleições diretas para a presidência da república, em 1984, o país deu os primeiros passos na direção da redemocratização. É neste contexto que se verifica um movimento amplo, envolvendo sobretudo pesquisadores das áreas de Letras e Pedagogia, preocupados com os rumos da escola brasileira, a qualidade de ensino, a qualificação do professor e os resultados da aprendizagem, que, transcorrida uma década da reforma da educação brasileira, datada de 1970, se mostravam não apenas insuficientes, mas, e principalmente, alarmantes, já que o horizonte futuro prognosticava pioras, e não melhoramento ou superação dos problemas. Desse movimento são sintomas iniciativas como a realização do I Congresso de Leitura (COLE), em Campinas, em 1978, do I Encontro de Professores Universitários de Literatura Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro, em 1980, e a Primeira Jornada Sul-Rio-Grandense de Literatura, em 1981, 1 Professora adjunta do Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutorado em Romanística pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, e pós-doutorado no University College, Inglaterra, e Brown University, Estados Unidos. Pesquisadora 1A, do CNPq. Autora, entre outras obras, de A leitura e o ensino da literatura (2010) e Como e por que ler a literatura infantil brasileira (2014).

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em Passo Fundo, eventos que se mostraram frutíferos e duradouros. Por sua vez, vocacionada para a difusão e o fortalecimento da literatura infantil e juvenil brasileira, desde 1974, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil patrocinava ações comprometidas com a qualificação das obras dirigidas ao público infantil e com a interlocução entre essa produção e o trabalho do professor, preparando-o crítica e pedagogicamente para lidar, em sala de aula, com textos adequados aos alunos. A emergência de associações, como a de Professores de Língua e Literatura (APLL) e de Leitura do Brasil (ALB), entre o final dos anos 1970 e o começo dos anos 1980, é também sinal do engajamento de educadores e pesquisadores na discussão tanto dos problemas de ensino e aprendizagem no âmbito da escola, quanto das políticas públicas que poderiam alavancar uma ação simultaneamente democratizadora e competente que beneficiasse docentes e discentes. Uma agenda positiva mobilizava sobretudo intelectuais atuantes na universidade, originários, como se observou, dos campos da Pedagogia e das Letras, fecundando, por sua vez, pesquisas em áreas adjacentes, como História e Artes, ou não tão próximas, como Ciências e Matemática, em razão de sua presença, enquanto disciplinas, nos currículos de ensino fundamental. No âmbito dessas discussões, que envolvia a aprendizagem e o uso da língua portuguesa, recebeu a literatura uma valorização específica, pois era nela que se colocavam as esperanças de superação dos problemas experimentados na sala de aula. Com efeito, se os diagnósticos identificavam as dificuldades de leitura e expressão escrita por parte dos estudantes, era à literatura, representada por obras de ficção e de poesia, que se transferiam os créditos e as expectativas de mudança e de sucesso quando do exercício da ação educativa por parte dos docentes. A literatura encarnava a utopia de uma escola renovada e eficiente, de que resultavam a aprendizagem do aluno e a gratificação profissional do professor. 20


o papel da literatura na escola

Mais de três décadas depois, muita água rolou por debaixo da ponte: o Brasil se redemocratizou, o surto inflacionário, crescente na década de 80 do século XX, foi contido, uma nova Constituição passou a vigorar a partir de 1988, a economia globalizou-se. Por sua vez, o ensino básico passou por outras e sucessivas reformas, algumas nominais (antes de chamarse ensino básico, foi designado sucessivamente ensino fundamental e secundário, e ensino de primeiro e segundo graus, por exemplo) e outras estruturais. Além disso, estabeleceram-se parâmetros curriculares, avaliações anuais, como o Exame Nacional do Ensino Médio, tornaramse obrigatórias para os futuros ingressantes na educação superior, e passou a vigorar, no novo milênio, o sistema de cotas, compulsório nas universidades públicas brasileiras. A cultura experimentou igualmente alterações substantivas: os meios de comunicação de massa expandiram-se de modo notável do ponto de vista tecnológico e instrumental, e introduziram-se novos suportes, como o eletrônico e o digital, e dispositivos revolucionários, como o computador pessoal e o telefone celular. Comparados os meios de veiculação de textos utilizados no começo dos anos 1980 com os disponíveis ao final da primeira década do nosso milênio, a distância parece gigantesca, embora cerca de só 30 anos medeie um tempo e outro. Na passagem dos anos 1970 para os 1980, o livro apresentava-se como o receptáculo soberano e insofismável do texto, crença hoje descartada mesmo por aqueles que entendem o impresso como constituindo ainda o formato mais adequado para receber e perenizar a escrita, em decorrência de seu baixo custo e facilidades de manuseio e de circulação. Outras mudanças fizeram-se igualmente notar no Brasil do século XXI: a globalização e o neoliberalismo impuseram novas formas de financiamento da cultura, visto que o Estado, em muitas ocasiões, deixa-a ao desamparo. Por outro lado, obsolesceram críticas, como as emanadas dos pensadores

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associados à Escola de Frankfurt, condenando a indústria cultural, e seus subprodutos, como os best-sellers, as histórias em quadrinho, a novela de televisão, ou as manifestações populares, como o cordel, o funk, o rap e o hip hop, expressões muitas vezes anônimas, como o causo, no meio rural, o grafite, no cenário urbano, e o hipertexto, no ambiente digital. O aparecimento dos Estudos Culturais e a sua consolidação na universidade sinalizam não apenas o novo olhar posto sobre a cultura, mas as modificações por que essa passou no trânsito do século XX para o XXI. A ruptura das fronteiras entre o centro e a periferia, o erudito e o popular, entre a “alta literatura” e o pop, entre o clássico e o fashion, o rural e o urbano, determinou certa euforia que vigora nos meios tanto acadêmicos, quanto artísticos. A constatação de que tudo é cultura, e de que tudo é válido, alarga as potencialidades de criação e de investigação, de que resulta o bem-estar reinante nos segmentos focados nas expressões da arte e do pensamento. Tudo o que mudou parece ter mudado para melhor – menos a escola, com suas consequências: a aprendizagem dos alunos, a situação do professor, as políticas públicas dirigidas à educação, para não se mencionarem as condições de trabalho, onde predomina a insegurança, e o espaço físico das salas de aula, degradado e degradante. Onde deveria reinar a mesma euforia, predominam a desolação, o desestímulo, os sentimentos de decepção e de fracasso. Com efeito, os problemas educacionais permanecem, tendo-se somado novas razões às antigas queixas. O empobrecimento da escola pública é visível em todo o país, ampliando-se a clivagem entre as instituições de ensino destinadas às classes pobres, localizadas na periferia urbana, e as que atendem as camadas superiores. A depauperação dos professores, submetidos a maus salários e ao desdém por parte do poder público, se evidencia em ambas as circunstâncias. Contudo, recaem sobre o professor e sobre o sistema escolar as maiores cobranças, seja por os

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o papel da literatura na escola

velhos problemas persistirem, de que resultam performances negativas em avaliações contínuas (PISA, SAEB, entre outros), seja por não saberem se posicionar perante os novos desafios, os que são colocados pelas mudanças tecnológicas e científicas, que seguidamente monopolizam as preferências dos jovens, e os que dizem respeito à situação vivida, em nossos dias, pela mocidade, vítima e sujeito da violência urbana, rotineira no cotidiano nacional. Os professores, na qualidade de profissionais da educação, poderiam apelar para os versos de Drummond: “Teus ombros suportam o mundo” (ANDRADE, 2002, p. 80). No entanto, seguidamente, se questionam sobre a natureza de seu ofício, ao interrogarem a si e a seus colegas sobre o que deve a escola oferecer. Relativamente à leitura, que ocupa a base do ensino e da qual se espera tanto, a pergunta talvez seja: que tipo de leitura caberia à escola estimular? Por muito tempo a resposta foi facilmente enunciável, já que, como a escola destinava-se sobretudo às elites, se tratava de difundir a língua padrão e a literatura canônica, com a qual se identificavam os frequentadores das salas de aula. Quando se expandiu a escola brasileira, na esteira do processo de modernização da sociedade, associada à industrialização, à migração do campo para a cidade e ao crescimento da população urbana, aquela resposta mostrou-se insuficiente. Os novos contingentes não se identificaram com a norma culta e desconheciam a tradição literária, a quem cabia apresentar, talvez pela primeira vez. Da alfabetização, tarefa que a escola desempenhou burocraticamente desde seus inícios, passou-se à necessidade de letramento, sobretudo de letramento literário. A leitura de textos apresenta-se como prática inusitada, e a literatura, como um alienígena, em boa parte das escolas nacionais, sobretudo nas que atendem os segmentos populares, mesmo em grandes centros urbanos.

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É igualmente sob esse prisma que se pode entender porque os “ombros” do professor “suportam o mundo”, visto que são atribuídas a ele várias e distintas missões: alfabetizar, facultar o domínio, pelo aluno, do código escrito, formar leitores qualificados de textos literários. Talvez por serem muitas as tarefas, provavelmente por as condições de trabalho serem precárias, escola e professores raras vezes alcançam qualquer um desses resultados, a se acreditar nos testes a que são submetidos os estudantes, quando se revelam pouco aptos aos tipos de leitura indicados. Diante disso, novas questões se evidenciam: como formar leitores competentes de textos escritos informativos e, simultaneamente, bons apreciadores de literatura? Ou é preferível optar por preparar leitores em, ao menos, uma dessas modalidades, esperando que, por decorrência, o resultado conduza o aluno a outros tipos de texto? Drummond também aqui dá a letra, quando escreve: Visito os fatos, não te encontro. Onde te ocultas, precária síntese, penhor de meu sono, luz dormindo acesa da varanda? (ANDRADE, 2002, p. 126)

Como se observou, nos anos 1980, as fichas eram colocadas na leitura da literatura, aposta que ainda compartilhamos, embora tenhamos necessariamente de reconhecer as mudanças ocorridas e as novas necessidades apresentadas. Para tanto, não podemos deixar de ter presente o que a literatura oferece a seu leitor, incluído nesse processo o que representa o ato de ler. Assim, não se trata de rejeitar o caminho percorrido, mas de ajustálo aos novos tempos, pois a fila anda, e a história não para. Trata-se, por outro lado, de reiterar premissas e pressupostos, para que se atinjam as metas desejadas, constando entre elas a melhoria das condições de

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o papel da literatura na escola

ensino, por meio do alcance de resultados positivos em sala de aula, a valorização do professor e a progressiva democratização do saber na sociedade brasileira contemporânea.

a leitura da literatura A literatura introduziu-se na escola desde o começo da história dessa instituição. Testemunhos dão conta que, entre os sumérios, povo a que se atribui a invenção da escrita, já se estabelecera a prática de transmissão de textos canônicos por intermédio de uma entidade administrada, no caso daquela coletividade, por sacerdotes (EVEN-ZOHAR, 1999, p. 29). Contudo, o modelo de escola que ainda subsiste é herança dos gregos dos séculos V e IV a. C., que conferiram à poesia e à prosa a função de transmitir um padrão linguístico e um patrimônio cultural aos jovens atendidos pelo grammatistes, nome pelo qual eram conhecidos os professores (KENNEDY, 1994, p. 82-83). Atualmente não mais compete ao ensino da literatura a transmissão de um patrimônio já constituído e consagrado, mas a responsabilidade pela formação do leitor. Por sua vez, a execução dessa tarefa depende de se conceber a leitura não como o resultado satisfatório do processo de letramento e decodificação de matéria escrita, mas como atividade propiciadora de uma experiência única com o texto literário. A literatura se associa então à leitura, do que advém a validade dessa. A experiência da leitura decorre das propriedades da literatura enquanto forma de expressão, que, utilizando-se da linguagem verbal, incorpora a particularidade dessa de construir um mundo coerente e compreensível, logo, racional. Esse universo, da sua parte, alimenta-se da fantasia do autor, que elabora suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. Assim, o texto concilia a racionalidade da linguagem, de que é testemunha sua estrutura gramatical, com a invenção nascida na intimidade de um indivíduo; e pode lidar com a ficção mais exacerbada,

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sem perder o contato com a realidade, pois precisa condicionar a imaginação à ordem sintática da língua. Por isso, a literatura não deixa de ser realista, documentando seu tempo de modo lúcido e crítico; mas revela-se sempre original, não esgotando as possibilidades de criar, pois o imaginário empurra o artista à geração de formas e expressões inusitadas. Dúbia, a literatura provoca no leitor um efeito duplo: aciona sua fantasia, colocando frente a frente dois imaginários e dois tipos de vivência interior. Suscita, porém, um posicionamento intelectual, uma vez que o mundo representado no texto, mesmo afastado no tempo ou diferenciado enquanto invenção, produz uma modalidade de reconhecimento em quem lê. Nesse sentido, o texto literário introduz um universo que, por mais distanciado da rotina, leva o leitor a refletir sobre seu cotidiano e a incorporar novas experiências (ISER, 1993). A leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, permitindo ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade, sem perder de vista sua subjetividade e história. O leitor não esquece suas próprias dimensões, mas expande as fronteiras do conhecido, que absorve através da imaginação e decifra por meio do intelecto. Por isso, trata-se também de uma atividade bastante completa, raramente substituída por outra, mesmo as de ordem existencial. Essas têm seu sentido aumentado, quando contrapostas às vivências transmitidas pelo texto, de modo que o leitor tende a se enriquecer graças ao seu consumo. Se esse é o ângulo individual da leitura, o ângulo social decorre dos efeitos desencadeados. O leitor tende a socializar a experiência, cotejar as conclusões com as de outros leitores, discutir preferências. A leitura estimula o diálogo, por meio do qual se trocam resultados e confrontam-se gostos. Portanto, não se trata de uma atividade egocêntrica ou narcisista, se bem que, no começo, exercida solitariamente; depois, aproxima as pessoas e coloca-as em situação de igualdade, pois todos estão capacitados a ela.

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Em certa medida, a leitura sugere outra faceta educativa da literatura: o texto artístico talvez não ensine nada, nem queira fazê-lo; mas seu consumo induz a práticas socializantes, que, estimuladas, mostram-se democráticas, porque igualitárias. O exercício da leitura é o ponto de partida para a aproximação à literatura. A escola dificilmente o promoveu, a não ser quando condicionado a outras tarefas, a maior parte de ordem pragmática. Hoje, quando o ensino está em crise, apresenta-se como necessidade prioritária, pois faculta avizinhar-se a um objeto tornado estranho no meio escolar. Porém, talvez se constitua também no ponto de chegada, na medida em que oferece opções diversas daquelas recorrentes na história da educação. Essas alternativas talvez possam ser transpostas à própria escola que, atualmente, parece ter perdido a eficácia que um dia teve, substituída pela dos meios de comunicação de massa e da comunicação eletrônica. Sua sobrevivência enquanto instituição, portanto, depende de se posicionar na vanguarda dos fatos históricos. Poderá fazê-lo, caso se solidarizar a seus usuários, servir-lhes de veículo para manifestação pessoal e colaborar para sua autoafirmação. O exercício da leitura do texto literário em sala de aula pode preencher esses objetivos, conferindo à literatura outro sentido educativo, auxiliando o estudante a ter mais segurança relativamente às suas próprias experiências.

a fantasia e a utopia da educação A leitura acontece quando a imaginação é convocada a trabalhar junto com o intelecto, responsável pelas operações de decodificação e entendimento de um texto ficcional. O resultado é a fruição da obra, sentimento de prazer motivado não apenas pelo arranjo convincente do mundo fictício proposto pelo escritor, mas também pelo estímulo dado ao imaginário do leitor, que assim navega em outras águas, diversas das familiares a que está habituado.

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Definida enquanto criação, a obra literária não é produzida sem que outra imaginação seja ativada primeiro: a do escritor. Por isso, coincide com invenção, associa-se à fantasia, parece irreal. De um lado, simula lidar com coisas e pessoas conhecidas; de outro, porém, deixa claro que aquelas nunca tiveram existência concreta, tangível ou mensurável. Reais são apenas as palavras que as enunciam; essas, no entanto, também são impalpáveis. Onde então situar a materialidade da literatura, localizada, supõe-se, em algum lugar, já que nos atinge tanto? A resposta a essa questão talvez seja tão imprecisa quanto o objeto a que ela se refere: tudo começa na fantasia, cuja existência pode ser confirmada de modo empírico, já que diariamente experimentamos seus efeitos, mas cujo cerne não tem substância, nem forma. O que é a fantasia? Eis um tema negligenciado, quando a fantasia é considerada uma forma de alheamento do universo imediato experimentado e conhecido pelos seres humanos; ou mesmo rejeitado, por ser a fantasia julgada improdutiva pela sociedade capitalista, que não tolera uma atividade não rendosa e sem aplicação. Uma perspectiva, mais doutrinária, a exilou, expulsando-a de seu universo conceitual e denegrindo seus efeitos; outra, mais pragmática, não a evitou, mas, ao adotá-la, comprometeu sua finalidade. Esta foi encampada pela indústria cultural, que lhe conferiu sentido escapista, encarregando-a, por uma parte, de proporcionar a fuga, ainda que ilusória e momentânea, da vida cotidiana, rotineira e insípida, e, por outra, de facilitar a acomodação uma situação que, assim, se torna suportável (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). De certo modo, a crítica da cultura, capitaneada pela Escola de Frankfurt, mas também pelos Estudos Culturais, aceitou as regras impostas à fantasia pelo capitalismo, confirmando-as por outra via; ambas as posições uniram-se nessa condenação a um fenômeno inerente à vida humana.

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Nem todos, contudo, compartilham o preconceito, a começar por Sigmund Freud, talvez o principal responsável pelo resgate da fantasia e pelo esclarecimento de sua articulação às atividades artísticas de criação. Freud indica que a fantasia é motivada por desejos insatisfeitos; ela acolheos e elabora-os, buscando satisfazê-los por intermédio de processos como o sonho, a imaginação, o devaneio. O escritor, por exemplo, canaliza esses desejos para sua obra criativa, que, em certo sentido, permite a ele externar lembranças insatisfatórias do passado, aliadas a experiências presentes, e, de algum modo, resolvê-las ou superá-las. Sob esse aspecto, a criação artística assemelha-se ao sonho do adulto ou ao brinquedo da criança, pois, durante sua ocorrência, evidenciam-se os problemas que afetam o sujeito e as possibilidades de solução para eles. Não por acaso, acredita Freud, algumas línguas usam a mesma palavra para designar o ato de brincar (play, em inglês; spiel, em alemão) e o de produzir peças literárias ou teatrais (FREUD, 1976; FREUD, 1976a). Alojada no coração dos problemas de um indivíduo, a fantasia não pode levar à evasão; nem as imagens que ela libera desligam-se do cotidiano ou da existência dos homens com os quais o artista convive. Seu relacionamento com o mundo encontra acolhida no imaginário, mas esse não é meramente receptivo: trabalha essas sugestões exteriores, associa-as a recordações do passado, articula-as aos insumos resultantes das informações armazenadas pelo sujeito. O mais importante é que a fantasia dá forma compreensível àqueles fenômenos, transparecendo por meio de ações e figuras, relações entre elas, saídas para os problemas levantados. E porque a forma empregada é compreensível, pode ser adotada por outros indivíduos, que, assim, têm condições de entender suas próprias dificuldades, refletir sobre elas, buscar um caminho para seus dramas pessoais ou sociais.

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A fantasia transfere essa forma para a literatura, e o leitor procura ali os elementos que expressam seu mundo interior. Pode ser que ele não opere como o escritor, que produz um texto literário ao elaborar de modo criativo seus processos internos; mas ele passa por situação similar, na medida em que o mundo criado agita seu imaginário e faz com que, de alguma maneira, esse se manifeste e transforme-se em linguagem. Eis por que leituras significativas confundem-se com nosso cotidiano, tornam-se lembranças perenes, explicam nossa própria vida. Sendo assim, para ser valorizada, a fantasia não precisa recorrer a um pouco provável ângulo utilitário ou aplicado. Ela não é prática, embora tenha sido aproveitada pela indústria cultural como maneira de aplacar a insatisfação interior resultante da divisão do trabalho e da mecanização da existência na sociedade capitalista pós-moderna. É, contudo, condição básica de relacionamento entre os homens, porque faculta a expressão de seus dramas e das soluções possíveis. A criação artística, nesse sentido, assume papel preponderante, porque, operando a partir das sugestões fornecidas pela fantasia, socializa formas que permitem a compreensão dos problemas; logo, configura-se também como ponto de partida para o conhecimento do real e a adoção de uma atitude liberadora. Regressiva na formação, pois remonta a lembranças de problemas, a fantasia é prospectiva na formulação. A literatura, sua herdeira, recebe como legado sua tônica utópica, acenando para as possibilidades de transformação do mundo e encaminhamento de uma vida melhor para todos que dependem dela para conhecer o ambiente que os rodeia. A educação compartilha com a fantasia e a literatura a perspectiva utópica a que essas apontam. Etimologicamente, educar é extrair, levar avante, conduzir para fora e para frente. Funda-se, pois, em um ideal, o de que é possível mudar a atitude individual e a configuração

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da sociedade por meio da ação humana. Porque ideal, esse objetivo é seguidamente criticado e até rejeitado. A dificuldade maior, porém, não reside aí, mas no fato de não se vir concretizando e de estar ameaçado de desaparecimento por obsoleto. A dificuldade reside também na circunstância de que, de ideal, esse objetivo converteu-se em um sistema: educação deixou de consistir em um processo, presente em várias das atividades sociais e culturais, para se apresentar como instituição, com estrutura, organograma, agentes, calendário e orçamento. Originalmente tão fluida como a fantasia, hoje evidencia sua substância e onipresença; mas não pode negar sua incapacidade de preencher o ideal de que dependeu seu aparecimento e que legitima sua continuidade. Por que não funciona? Deve funcionar? Neste caso, como deveria funcionar? Essas questões não são irrelevantes; da resposta a elas depende a recuperação da utopia que, um dia, validou a implantação e organização do ensino. A resposta a elas possibilita também articular a utopia da educação àquela que está na base da fantasia e da literatura e move a vida humana, por mais atribulada que esteja a sociedade.

considerações finais Um ensino da literatura que se fundamente na leitura e resulte em uma prática dialógica talvez seja tão utópico ou romântico quanto qualquer projeto que, hoje, se refira à educação no Brasil. O sucateamento da escola reduziu-a ao grau zero de que já se falou; logo, não diz respeito exclusivamente ao problema da leitura e da literatura. As propostas que se apresentam são simultaneamente caras e baratas, realizáveis a curto e a longo prazo, viáveis e complexas. Barato e rápido é trabalhar com o aluno, seja ele criança ou adulto, a partir de sua própria experiência de leitura, lidando com um universo previamente dominado, desde que o objetivo

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seja abrir novos horizontes de conhecimento; caro e demorado é preparar o professor para levar a cabo essa tarefa, pois também ele foi afetado pelo progressivo desmonte da escola brasileira. Por outro lado, a concretização de uma utopia para a educação no País se faz necessária, com suas nuances temporais e a consciência de seus limites. Suas metas são reconhecíveis: reportam-se à emancipação dos indivíduos que participam do sistema de ensino, sejam professores ou alunos, porque o processo da aprendizagem é permanente e afeta a ambos. E, sendo essa pedagogia de índole emancipatória, não pode dissociar-se do processo de liberação das falas dos sujeitos visados por ela. Para chegar à realização desse objetivo, a literatura desempenha papel fundamental, e talvez até o lidere, como aconteceu nos seus inícios, quando a poesia da epopeia formava os cidadãos da pólis grega. Talvez até tenha condições de desencadeá-lo, fazendo-o sem comprometer sua história, nem desmentir sua identidade ou alterar sua função.

referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. São Paulo: Jorge Zahar, 1985. ANDRADE, Carlos Drummond de. Os ombros suportam o mundo. In: ___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. EVEN-ZOHAR, Itamar. La literatura como bienes y como herramientas. In: VILLANUEVA, Dario; MONEGAL, Antonio; BOU, Enric (Org.). Sin fronteras: ensayos de literatura comparada em homenaje a Claudio Guillen. Madri: Castalia, 1999. FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Rio de Janeiro: Imagem, 1976.

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FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. Rio de Janeiro: Imagem, 1976a. ISER, Wolfgang. The Fictive and the Imaginary. Charting Literary Anthropology. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1993. KENNEDY, George A. A New History of Classical Rhetoric. Princeton: Princeton University Press, 1994.

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Maria da Glória Bordini2 Na atual situação da leitura no Brasil, um índice se mostra ainda preocupante. Apesar das inúmeras campanhas públicas de popularização do livro, da massiva produção editorial em múltiplas áreas de ficção e não-ficção, do impulso dado à escolarização e da inclusão social das classes menos favorecidas, apregoada pelos últimos governos, o índice geral de analfabetismo, segundo o IBGE, em pesquisa domiciliar de 2009, era de 13,3 % da amostra, enquanto em 2012, identificaram-se 13,2 milhões de analfabetos funcionais na população de mais de 15 anos, equivalentes a 8,7% do total. É sabido que a leitura, nas sociedades ocidentais letradas, é habilidade imprescindível para a formação de recursos humanos especializados tanto para a economia do campo e da cidade quanto para a conformação de uma sociedade igualitária e resistente às condições de dominação. Um adulto ou jovem adulto que foi mal alfabetizado em sua formação escolar é arrastado pelo peso de suas limitações de compreensão e interpretação dos discursos verbais, mesmo no plano da oralidade, pois, não lendo, possui um vocabulário restrito, desconhece complexidades sintáticas e se torna dependente dos melhor dotados em termos de oratória e proficiência linguística. Embora a responsabilidade primeira pela educação linguística dos infantes esteja no seio da família, no contato com a fala dos pais, na escuta - e leitura - de histórias e poemas, nas brincadeiras com letras e fonemas, é na escola que ocorre o ensino da língua e da escrita, bem 2 Professor adjunto IVIV na na UFRGS e ex-professor titular de Teoria da Lite1 Professoraaposentado aposentadacomo como adjunto UFRGS e ex-professora titular de Teoria da ratura da PUCRS. Atualmente exerce o cargo de professor colaborador convidado da UFRGS Literatura da PUCRS. Atualmente exerce o cargo de professora colaboradora convidado da no Programa de Pós-Graduação em Letras. UFRGS no Programa de Pós-Graduação em Letras. 35


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como da leitura. A desestruturação das famílias nucleares – para não mencionar as extensivas, hoje em extinção –, com a saída de pais e mães para o mercado de trabalho e a delegação das tarefas educativas às creches e às escolas de nível fundamental, encerrou a criança no ambiente escolar, de onde deveria, por definição legal, formar-se para a cidadania e para a busca do autoaperfeiçoamento. Sérgio Antônio da Silva Leite lembra que, depois de 1980, mudanças conceituais e metodológicas foram introduzidas no ensino formal, com predomínio das teorias construtivistas. O que se observa, não só na escola básica, mas também no nível superior, é que foram produzidos indivíduos sem o domínio do código, na tentativa de, como reza a teoria, privilegiar o aluno como construtor do conhecimento. Falou-se muito em letramento, na necessidade de o cidadão participar das práticas sociais da leitura. Entretanto, verificou-se que, nesse processo de descoberta do código da escrita por si mesmo, o aluno começou a apresentar deficiências na leitura e só a reintrodução do professor como mediador mudou o panorama. Letramento, como Leite pondera, não é sinônimo de alfabetização. Esta significa a apropriação do sistema convencional de escrita alfabética e se faz por meio de atividades que a alcancem, unindo cognição e afeto, uma relação positiva com o material escrito e num ambiente dialógico. Sem fluência na leitura, o aluno não consegue tomar parte relevante na cultura moderna, que se expressa principalmente pela escrita. Exige-se, pois, da escola, uma atenção especial ao livro como repositório do conhecimento e testemunho do homem como ser humano. A escola e a leitura nascem da necessidade de recuperar textos, estes gerados por razões econômicas há 3.500 anos a.C. na Suméria, quando se passou a inscrever em tabuletas de argila sinais cuneiformes para verificar estoques e trocas, os quais se tornaram de uso constante desde 3.000 a.C., tendo sido usados para fixar códigos legais como

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na Mesopotâmia do rei Hamurabi. Se na Antiguidade a escrita era empregada no comércio, nas constituições das cidades-estado, na religião e na literatura ocidentais o acesso ao código escrito requeria um mestre como mediador. Já durante a Idade Média, aquela ficou circunscrita aos mosteiros e às cortes, excluída das gentes comuns. A invenção da imprensa com tipos móveis alterou o monopólio da escrita e dos textos pela Igreja e foi um dos fatores determinantes do advento da Era Moderna, pondo em circulação novos conhecimentos. Mas a vida educacional só mudou no século XVIII, com o Iluminismo e as posteriores modificações determinadas pela Revolução Industrial, que requeria operários treinados, e pelo advento das democracias, exigindo o direito à escola para todos. A participação na vida social se ampliou, originando também a necessidade da universalização do acesso ao saber. A escola, na sociedade burguesa, não só alfabetiza, mas dá acesso à norma culta e aos cânones, tornando o letrado um ser socialmente distinto. A burguesia tenta monopolizar o saber escrito, temendo seu poder de conscientização, mas precisa colocar as crianças na escola, para retirá-las do mundo do trabalho, já que os homens, dele afastados e no ócio, podiam liderar revoltas. Nesse período, a leitura é acusada ao mesmo tempo de escapista e de liberadora. Criam-se, pari passu à expansão da imprensa, não só leitores buscando o conhecimento, mas contingentes de consumidores para a indústria do livro, o que era muito conveniente para as elites dominantes, que defendiam a ideia de que saber ler é liberar-se de tutelas, ocultando, porém, que é também assimilar valores dominantes via o aparato escolar. No que diz respeito ao leitor e à escola brasileiros, Regina Zilberman aponta para o fato de que graves problemas afligem a instituição escolar de hoje: sua administração é fragmentada em vários níveis de governo, que não se coordenam; a remuneração e a qualificação dos docentes se degradam ano

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a ano; a conservação dos prédios é precária, tornando a escola pouco atrativa para o aluno. Além disso, a expansão de outros meios de comunicação compete com a leitura, pela facilidade de apreensão e o apelo visual. Para minorar a crise da escola cada vez mais falida, Zilberman sugere que se resgate a leitura literária no seu aspecto revolucionário. Como a ficção foi a mais temida no passado, quando era acusada de deturpar as mentes fracas (como as das mulheres e crianças), incentivar a sua leitura seria uma das soluções para conquistar o alunado, ainda mais porque o texto verbal aceita vários suportes, inclusive os digitais, hoje predominantes entre o alunado. É de lamentar que a escola use a obra literária mecanicamente, propondo exercícios (quando não de língua) de análise literária, embasados em reduções canhestras das teorias literárias e secundados por parcas contextualizações históricas. Mas a literatura é uma forma de organização do mundo proveniente da imaginação e da inteligência. Lê-se o mundo e escreve-se o real como texto. Como diz Zilberman: Se o ler conformava de antemão o relacionamento original do indivíduo com o mundo circundante, a expansão de sua prática demanda a metamorfose daquele em um texto, imagem derradeira da aspiração de soberania do ser humano sobre o ambiente que o rodeia. Porém, nesta conversão, o real não se dobra, senão que emerge mais uma vez em sua obscuridade de origem, reclamando um desvelamento (2009, p.32).

A literatura é um símbolo do mundo, mas é um símbolo poroso, cheio de lacunas e inacabamentos, que exigem a ação do leitor para preenchêlos. Por mais cristalizado que o texto esteja nas palavras impressas, seu universo simbólico é rompido pelo olhar do leitor, o que atenua sua pretensa autoridade e o democratiza. Por isso, a obra literária estabelece a interação entre o passado em que foi escrita, o leitor e o presente deste e nunca permanece imobilizada no tempo e no espaço.

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Na escola, segundo Zilberman, Camões, as seletas, as apostilas, o livro único, o didático, o paradidático, todos são o mesmo livro, encarregado de veicular um saber vigiado. Esse livro só tem utilidade para preparar para um ingresso futuro, um ENEM, um vestibular, e, por isso, é o contrário do livro que emancipa. Ele não permite a interpretação, é categórico, objetivo, exila o leitor de si, o que o texto literário não faz, convidando seu leitor a entrar no mundo ficcional sem renunciar a si mesmo. Também para Ana Maria Machado, a literatura é que tem o maior poder elucidativo. Para ela, as histórias contadas por um lado, promovem o autoconhecimento. Por outro, estimulam a vivência da cidadania pela compreensão do outro, levam ao entendimento de limites, deveres e responsabilidades de cada um. Ajudam o cidadão a pensar de maneira mais lógica e organizada, a formular de modo mais claro e ordenado as próprias ideias, a argumentar com os outros, a contrapor opiniões, a se defender da imposição de pensamentos dominantes (2012, 62).

Na sala de aula, importa enfatizar a leitura de ficção, sem limitar a ação interpretativa do leitor e seu processo de autoconhecimento. Verdades taxativas se esboroam quando o leitor pode dar livremente o seu sentido ao texto. É nessa atividade que professor e aluno embarcam numa viagem dialógica em que as certezas de ambos são abaladas. E essa é a função primordial da literatura: expor a subjetividade a si mesma e incorporar a do outro. O professor, portanto, deve perceber que, fora do texto, o leitor é um corpo, que assume posições físicas para ler, e manifesta diferentes disposições anímicas para tanto, do mesmo modo que é induzido a assumir determinadas atitudes quanto ao livro, conforme a cultura em que está inserido. Como salienta Jean Marie Goulemont, a história cultural orienta as opções de leitura, assim como a memória cultural. A leitura nunca é virgem, é sempre comparada: lê-se um livro

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em confronto com todos os outros já lidos. Cada época fornece padrões de gênero e códigos que são violados e se renovam. Cada leitura não só é afetada, mas afeta o conjunto dos textos lidos. Institui-se um movimento de vaivém entre texto, leitor e cultura e é por isso que o professor não pode ignorar o fora do texto, as leituras prévias de sua classe, as convenções de gênero e estilo que já conhece, os índices locais de aceitação ou rejeição da leitura, os valores circulantes na comunidade e que eventualmente serão postos em xeque pela obra (cf. GOULEMONT, 1996). Na esteira das considerações de Goulemont sobre o dentro e o fora do texto, aflora a questão muitas vezes problemática para a escola da seleção do que deve ser lido e/ou ensinado em sala de aula. Como afirma Italo Calvino, “Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis” (1990, p.138). A escola, entretanto, tenta de muitos modos imobilizar os acervos de leitura. Embora a seleção de títulos seja, no fundo, sempre subjetiva, não se pode definir um acervo exclusivamente pelo critério do próprio gosto. Na escola, uma das prioridades são as predileções dos alunos, que devem ser indagadas, para se fazer uma ideia do repertório de textos que eles já conhecem ou frequentam e que apreciam. Sem isso, corre-se o risco de afastar o jovem leitor das obras. Mas também esse acervo pessoal precisa de ampliação, se o poder de emancipação das leituras deve ser perseguido. Consultar outras pessoas, colegas, bibliotecários, coordenadores e, sim, especialistas, pode ajudar o professor. Não se pode, entretanto, ceder a imposições descabidas da administração ou das famílias, já que os mecanismos de censura social são, na maioria dos casos, ideológicos e destinados à manutenção de poderes. Para constituir o acervo de leituras para uma sala de aula, a providência mais imediata é visitar a biblioteca escolar e verificar o que

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ela tem de livros significativos, que ampliem os horizontes já existentes dos alunos e promovam as qualidades a que a educação se propõe enquanto projeto de emancipação. Se a coleção da biblioteca é pobre ou imobilizada por normas burocráticas, cabe ao professor recorrer a livrarias, distribuidoras e editoras, consultando seus catálogos e sites, acompanhando seus lançamentos, e principalmente buscando exemplares para exame. Para tanto, pode valer-se das posições de especialistas em literatura, lendo a crítica em jornais e revistas e acompanhando premiações. Maria Antonieta Cunha sugere a combinação de várias fontes e não o detimento em uma única referência. Um critério a mais seria contemplar as diversidades: diferenças sociais, regionais, culturais e pessoais, por meio de diversos autores, temas, posições, gêneros, linguagens, estilos, complexidades. Quanto aos autores, cumpre escolher os grandes e os clássicos, dando-lhes um lugar garantido no acervo, mas sem excluir os novos e os menores. Considerar os textos que os alunos amam também é importante, pois podem vencer resistências e ser o ponto de partida para leituras mais exigentes. Quanto aos gêneros literários, cabe incluir obras das três vertentes clássicas: líricas, narrativas e dramáticas. Entre os gêneros literários, a literatura dramática não é muito frequente nas escolas, que em geral preferem dramatizar narrativas e não abrigar peças a serem lidas e encenadas. A produção brasileira de textos teatrais é bastante expressiva, tanto para crianças e jovens como para adultos, podendo responder aos interesses de várias faixas etárias com a vantagem de permitir a apropriação das estruturas do drama por meio de seus melhores praticantes, além de proporcionar momentos de fruição lúdica para os alunos. O teatro obriga o ator a encarnar papéis, a ser o outro, aprendendo a viver em circunstâncias que não são as do cotidiano do aluno.

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No âmbito da poesia lírica, há uma oferta bastante variada, que abrange nomes consagrados e outros nem tanto, mas de boa qualidade. Um critério fundamental é escolher o que não é pedagógico, e sim o poema que provoque a admiração e o fascínio pelo tema e pela estrutura sonoro-semântica. A poesia para iniciantes deveria ser mais lúdica e até visual, brincando com formas e sons, mas para os mais velhos, pode propor a expressão dos afetos e o questionamento de si e dos valores em circulação na sociedade. Uma parte que não pode ser desconsiderada é a riqueza dos textos de cordel ou dos textos folclóricos, muitos já conhecidos do alunado e cativantes pelo ritmo, pela linguagem popular e pela sabedoria dos cantadores. A escola em geral privilegia a narrativa ficcional, nos subgêneros do conto, da crônica, da novela e, com menos intensidade, do romance. Nas narrativas curtas, o tempo de leitura é menor, o enredo captura a atenção, e os elementos são de domínio mais amplo do que os da poesia ou do teatro, facilitando o ingresso do aluno nos domínios da literatura. Para os pequenos, os livros de imagens, sem texto, ou os ilustrados têm maior apelo e orientam o ato de imaginação, ao fornecer imagens das palavras ou frases. Quando há resistência, junto aos os mais crescidos, os quadrinhos e, entre os adolescentes, as graphic novels podem exercer a mesma função. Há belas adaptações tanto de clássicos como criações originais que, para um público imerso em imagens como o contemporâneo, podem suscitar a curiosidade pelos livros em si. Além da dificuldade de captar preferências discentes e de articulálas às demandas curriculares, o professor em sala de aula se vê em maus lençóis. Hoje em dia, acumulando tarefas, como servir de pai e mãe para os alunos, de médico e de confessor, de agente disciplinar e de promotor de ideias, de facilitador de conteúdos e de transmissor da tradição, ele em geral recorre ao livro didático para as aulas de Literatura. E encontra

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textos curtos, que podem ser fragmentos ou estar na íntegra, seguidos de exercícios de interpretação, cujas respostas estão no Livro do Professor. Quando muito, leva os alunos na Biblioteca e os estimula a retirar livros e lê-los em casa ou ali, leituras que mais tarde irá cobrar com provas ou exercícios. Se o docente lecionar no ensino médio ou da sexta à nona séries do ensino fundamental, terá como obrigação profissional percorrer um programa preestabelecido, seja pela escola ou pelas instruções normativas das secretarias de educação ou do MEC, programa que prevê o mínimo de conteúdos para que o aluno seja iniciado na tradição literária do país, das escolas estéticas que nele se sucederam, dos principais autores consagrados pelo tempo – e terá de apresentar algo de suas obras, por fragmentário que seja. É preciso convir que, nessas condições, o professor não tem espaço para a criatividade requerida pelo próprio processo de leitura, que é uma via de mão dupla e na qual ele se transforma em mediador entre a obra e o alunado. Se não for um leitor com uma boa bagagem de livros efetivamente lidos e apreciados, de diversos gêneros, ele ficará preso às normas estabelecidas sobre quem e o que deve ensinar e terá de confiar no livro didático. Ao mesmo tempo, se não estiver qualificado como leitor crítico na sua própria formação universitária, não saberá trabalhar sequer o texto presente nesse livro, que nem sempre é trivial ou pouco significativo (afinal, os livros didáticos se aperfeiçoaram ao longo de tantas críticas). E ficará à mercê de estratégias de ensino que, por estarem distantes de sua sala de aula, por desconhecerem seus alunos e os interesses destes, e por terem de fechar as interpretações para ajudarem o professor pouco lido, não irão atingir a classe. Isso sem contar com o tempo exíguo que o professor de Literatura recebe no horário escolar para suas aulas. Não se quer dizer que as diretrizes do MEC ou das SECs sejam alienadas da realidade escolar. Ao contrário, pode-se ler nelas um desejo

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louvável de trazer o alunado para o interior da cultura letrada, formando suas capacidades de crítica e de autonomia de pensamento. Cheias de boas intenções, uma vez que seus propositores sabem que estar alijado da alta cultura é ficar limitado a um patamar de desenvolvimento social e pessoal mínimo, as normas curriculares não têm olhos para a precariedade da situação das escolas e dos professores, cujas instalações, no geral, são de péssima construção e arquitetura e cujas bibliotecas têm acervos pobres, antigos e fechados para não serem danificados pelo manuseio excessivo. O professor consciente de suas responsabilidades terá de enfrentar tudo isso, buscar a superação do desinteresse dos alunos, da falta de livros, das salas pouco convidativas, do controle dos diretores e pais. Trabalhar com literatura pode ser um risco – de fracasso na tarefa ou, pior, de perda do emprego se o mundo apresentado nos livros que ele escolher, ou mesmo nos pequenos textos do livro didático, contiver elementos que contrariem o que as famílias e a sociedade consideram a normalidade e a moralidade desejável, o que também não se pode decidir de antemão. O professor, ante essas dificuldades evidentes, portanto, terá de tomar atitudes. Defender a seleção de obras que ele entende que cumprem as diretrizes curriculares, com argumentos que possam ser convincentes ante as objeções que surgirem, consultar os colegas de área para adotar livros que não coincidam com os deles e assim ampliar o leque de opções para os alunos, valer-se desses colegas para pensar em como as obras serão trabalhadas, até porque nem sempre terá respostas para todas as eventualidades – e pensar junto é melhor do que isoladamente -, e estabelecer uma programação metódica para suas aulas. É evidente, dada a condição de liberdade que a leitura encerra, que a aula de Literatura será melhor sucedida se o aluno for respeitado em termos do que já sabe ou de seus pressupostos sociais sobre livros. Mas também o professor deverá ser respeitado porque está ali para proporcionar uma

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experiência que sempre beneficiará o aluno por seu caráter humanizante. Assim, o primeiro passo de uma aula inicial de Literatura será sondar a turma sobre o que espera e o que já estudou ou conhece por outras vias. É importante ouvir e levar a sério as informações, discutindo eventuais objeções e preconceitos. Em conjunto com a classe, nas aulas seguintes, é conveniente planejar como será o curso, que conteúdos são exigidos pelos regulamentos, e como poderão ser trabalhados. A classe poderá ou não dar a sua contribuição, pois em geral há indiferença ou recusa quando se trata de ler. Um recurso eficiente será introduzir uma tarefa estimulante, como pesquisar na internet sobre por que se rejeita a leitura ou por que é importante ler e depois discutir os resultados em aula. Outra possibilidade é pedir que a classe investigue como determinadas celebridades encaram a literatura, especialmente seus ídolos mais comuns, como cantores, atores ou jogadores de futebol. Levantar a quantidade de leitores de um mesmo livro numa biblioteca, por consulta às fichas, e comparar com o que diz a crítica sobre aquela obra, é outra forma de chamar atenção sobre o ato de ler. Alternativas mais consoantes com o alunado atual são consultas às comunidades de leitores na internet (no Skoob, por exemplo), verificando quais as obras mais lidas e as razões dadas para as preferências, ou a coparticipação no Facebook, postando comentários. Vencida essa etapa, o professor pode trabalhar com o livro didático adotado pela escola ou deixá-lo de lado e criar suas próprias aulas. A segunda hipótese é mais trabalhosa, mas produz frutos melhores, se bem orientada. A questão é lembrar sempre de convocar os alunos para participarem do plano da aula, orientando-os sobre o que teriam de ler e indagando deles como poderiam trabalhar o texto X, acatando as sugestões. A melhor metodologia de ensino de literatura é a participativa. Pode trazer empecilhos iniciais, mas uma vez a turma comece a pôr em

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prática o combinado – que deve ser obedecido por todos, já que partiu do consenso – irá descobrindo que estudar literatura pode ser fascinante. Outra etapa requer o contato direto com o texto. Ele é que dará a direção para outros aspectos do conhecimento da literatura, como o contexto de produção, a recepção histórica, a intertextualidade, sua estruturação e qualidades estéticas. Tome-se como exemplo que uma turma de ensino médio precise estudar o Modernismo, conforme o programa. O professor informará os alunos que há diversos autores modernistas no século XX, pedindo que investiguem quais são os mais lidos na comunidade escolar, entre professores e alunos. Dentre esses, podem sortear um deles ou escolhê-lo por outros meios (pesquisa em revistas, por exemplo). O professor pode ler em voz alta um texto desse autor que atenda aos interesses já auscultados. O próximo passo será perguntar o que aquela história, texto dramático ou poema tem a ver com o cotidiano dos alunos, o que eles reconhecem como sendo questões que também os preocupam. Se houver rejeição, cabe pedir que recontem coletivamente a obra como acham que devia ser. Depois disso, o professor pode suscitar uma discussão sobre as diferenças entre o texto do autor e o deles. E por fim, pode desafiá-los a verificar o que é, digamos, “moderno” no mesmo. Noutra aula, os alunos trarão dados obtidos de histórias da literatura da Biblioteca ou na internet, sobre o Modernismo e o autor escolhido. Em conjunto, irão comparar o que viram na aula anterior e o que descobriram na atual. Com isso, perceberão o que caracteriza a escola modernista, os modos de consagração das obras no cânone literário, conhecerão um momento histórico, o contexto paulista da literatura de 22, os autores que eram lidos então, os modos como a obra foi lida. O professor pode sugerir fontes e caminhos para que essas informações contextuais venham à tona na releitura do mesmo texto e de uma passagem de um dos romances modernistas que com ele se correlacione. Na aula seguinte, poderá pedir

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que os alunos procurem documentários sobre a Semana de 22 e que escolham um para ser exibido – já que as escolas já contam com televisão ou com laboratórios digitais. Depois de visto o filme, a classe deverá ler em casa textos citados no documentário e discutir as avaliações nele feitas, buscando os porquês dos argumentos críticos. Ao final de tudo, caberá organizar os resultados sob forma de um esquema distribuído, com as informações básicas. Note-se que o princípio metodológico orientador dessas atividades é sempre a participação dos alunos e a interpretação livre dos textos. No começo, pode haver confusão, falta de participação de alguns, os mais rebeldes, mas o pacto inicial, de que eles também fizeram parte, deverá ser sempre lembrado e mantido. Associando a leitura efetiva da obra aos interesses da turma, a própria experiência do texto e os desafios que o professor venha a propor irão introduzir os conhecimentos contextuais, os quais completarão aquilo que se pode chamar de fusão de horizontes, na terminologia de Gadamer, que Hans-Robert Jauss cita em seu texto básico sobre Estética da Recepção, e que significa que o leitor, no momento da leitura, funde o seu horizonte de expectativas e cultura com o da obra no tempo de sua escrita (cf. JAUSS, 1994). A mesma metodologia participativa poderá servir para o trabalho não só com escolas literárias e autores principais, mas com a recuperação de dados históricos da produção e recepção das obras, abrangendo aspectos sobre como eram editados os livros, como chegavam às mãos dos leitores, como a crítica induzia a aceitação ou esquecimento dos textos e autores, uma vez que já existe bibliografia a respeito e informação circulante na internet. Esses elementos do sistema literário, dependendo da idade dos alunos, podem ser encenados por eles, após pesquisa em textos fornecidos pelo professor, ou simplesmente discutidos, se forem avessos à brincadeira. Nesses termos, faz-se jus à tríade autor-obra-leitor,

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ao contexto em que aparece e ao contexto presente, e à liberdade da leitura, desde que o professor esteja aberto às interpretações dos alunos. O método participativo poderá ser utilizado em qualquer nível de ensino, desde que se vença a apatia ou rejeição inicial que todo apelo à participação encontra. Estes só são superados quando o ensino é reconhecido como significativo e próximo da vida. Seleção de textos, objetivos de ensino e metodologias dependem, acima de tudo, do pacto entre alunos e professor. Em face da situação da leitura no Brasil, com uma taxa ainda significativa de não leitores, ou de leitores com deficiências no ato de ler, um esforço redobrado da escola, vencendo desde as dificuldades de alfabetização e de letramento até a inércia do sistema em relação aos alunos dos níveis mais adiantados, surge como decisivo para o efetivo ingresso do país na cultura mundial. O fator principal dessa mudança reside na figura do professor, que ainda é o mediador mais influente na vida de leitura do alunado. A perda de qualidade e, consequentemente, de qualificação para o ensino e para os demais ofícios ligados às Humanidades que hoje se observa na preparação do professor de literatura na Universidade reflete decisivamente na rede escolar de ensino médio. Este é - para a maioria da população - o término da vida escolar, com os reflexos que se podem deduzir sobre a massa da população brasileira, mas repercute também sobre a rede do ensino fundamental, na qual ainda atuam professores oriundos de Cursos de Magistério de nível médio. Houve, há poucas décadas, um deslocamento quase incompreensível, dentro da área de Letras, determinando um desprezo irracional pela pedagogia da leitura, como se todos os que entram na Universidade fossem leitores bem formados e a massa de semialfabetizados e não leitores funcionais extramuros não existisse. Refinou-se a pesquisa em nível de pósgraduação, tanto teórica quanto histórica e crítica, mas a relação do egresso

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com sua vida profissional de professor ficou entregue à iniciativa individual de cada um, na maior parte das vezes fadada à inoperância, o que vem resultando em novas gerações cada vez menos hábeis na escrita e na leitura. Às Faculdade de Letras ou unidades similares cabe um urgente trabalho de autoexame e de avaliação de sua eficiência pedagógica. O mínimo que a população espera da Universidade é que forme professores e profissionais de qualidade, atentos ao que se passa a seu redor e capazes de mobilizar as comunidades a buscarem soluções para suas carências. No caso das Letras, essa expectativa produz uma responsabilidade demasiado pesada para recém-graduados que precisam enfrentar turmas indisciplinadas, escolas e bibliotecas precárias, administrações pautadas pelo autoritarismo e que, ainda assim, são pressionados a devolver à sociedade leitores proficientes. A qualificação profissional eficaz, nas Letras, requer que o corpo docente seja leitor, e não só de Linguística ou de Estudos Literários, mas de tudo o que interessa à promoção de uma condição mais humana. Cultura geral é requisito indispensável para ensinar língua(s) e literatura(s), pois a linguagem atravessa todas as práticas sociais, políticas e culturais e a literatura não só as representa como propõe outras alternativas impensadas. A seu turno, é preciso que o corpo discente emule seus colegas das áreas “duras”, no mínimo lendo tanto quanto eles. Infelizmente, a experiência ensina que, entre os alunos de Letras, o nível de leitura é raso e o objeto principal de suas atividades – a obra literária – pouco habita suas prateleiras, sendo preterido por estudos sobre ele. As aulas de literatura pouco exigem em termos de leitura literária, de modo que um egresso pode terminar sua formação sem nunca ter lido os clássicos mundiais, muito menos os autores contemporâneos da sua própria língua, que estariam mais próximos de seus futuros jovens alunos.

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Uma proposta como esta supõe que os currículos de Letras sejam reformulados em termos de atualização de teorias, interação com outras áreas disciplinares e atenção aos percalços da História e da sociedade, mas principalmente que incluam muita leitura não só teórica ou histórica, mas da literatura criativa nacional e internacional. Sem uma ampla gama de leituras literárias, o graduando não conseguirá detectar intertextualidades, padrões e tendências de gênero, não formará seu próprio cânone literário, algo que pode ser um trunfo numa sala de aula de adolescentes desinteressados, confrontados com o entusiasmo de seu professor quanto aos livros que ele consagrou para si e que conhece bem. Outro requisito para a boa formação em Letras é a ênfase sobre a interpretação, levando à percepção de como o presente se relaciona com o passado e como a obra dialoga não só com seu contexto de origem, mas com o atual. Não custa enfatizar que é pela interação do leitor com o texto que o sentido emerge e conquista para novas leituras. Todavia, a hermenêutica em geral é muito pouco praticada nas Letras: os alunos interpretam, mas normalmente não vinculam os sentidos que percebem com as formas do texto, perdendo em fruição estética e, em consequência, em admiração pelas obras. A Universidade, enfatizando as Ciências Exatas e Aplicadas, em resposta às exigências de avanço científico e tecnológico do País, e deixando as Humanidades desprotegidas, não cumpre adequadamente seu papel de produção e transmissão do conhecimento de alto nível. Aquela, tampouco, se torna uma instituição relevante para as grandes massas, a quem a ciência certamente beneficia (quando chega até elas), mas para quem uma compreensão mais aberta do que significa ser social e ser humano traria muitos mais dividendos em termos de convivência e coesão. Formar leitores e promover a leitura da literatura, tarefa das Letras, é parte de um projeto de Universidade humanizadora, num mundo cada vez mais devastado pelo sofrimento e pela violência dos poderes. 50


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referências CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CUNHA, Maria Antonieta. Seleção de títulos; como construir acervos e outras orientações. In: CUNHA, Leo (Org.) Poesia para crianças: conceitos, tendências e práticas. São Paulo: Positivo, 2013. GOULEMONT, Jean Marie. Da leitura como produção de sentidos. In: CHARTIER, Roger (Org.) Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas, v.36) LEITE, Sérgio Antônio da Silva. Alfabetizar para ler. Ler para conquistar a plena cidadania. In: FAILLA, Zora ( Org). Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Instituto Pró-livro; Imprensa Oficial, 2012. ZILBERMAN,, Regina. A escola e a leitura da literatura. In: ZILBERMAN, Regina; RÖSING, Tania M.K.(Orgs.). Escola e leitura, velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global; ALB, 2009.

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OS (DES)CAMINHOS DA LITERATURA NO ENSINO MÉDIO Ana Cláudia Fidelis1 e Rildo Cosson2

O exercício jamais fechado da leitura continua o lugar por excelência do aprendizado de si e do outro, descoberta não de uma personalidade fixa, mas de uma identidade obstinadamente em devenir. Antoine Compagnon – Literatura para quê?

Ao contrário da Língua Portuguesa, que, com o apoio da Linguística Aplicada, conseguiu com relativo sucesso incorporar o ensino da língua ao ensino sobre a língua, diversificando suas práticas pedagógicas para além da gramática, a Literatura parece ainda não ter encontrado o seu norte. Na verdade, o ensino de literatura no Ensino Médio – onde a literatura usualmente se transforma em disciplina à parte ou, pelo menos, tem reconhecido um conteúdo específico a ser ensinado – é bastante precário, quer seja em nível teórico, quer seja em nível metodológico. Tradicionalmente, ensino de literatura é sinônimo de história literária ou, mais precisamente, de estilos de época, isto é, um saber estático constituído pelo corpus da literatura brasileira distribuído em escolas e correntes. Tal corpus, sustentado pela autoridade de um livro didático ou de um manual de literatura qualquer, é ensinado através da listagem dos autores, das obras e das características de cada movimento estético, sempre em uma perspectiva evolucionista e enciclopédica, 1 Mestre em Teoria Literária e Doutora em Linguística Aplicada. Professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, PUC Campinas. 2 Mestre e Doutor em Letras. Pesquisador do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da UFMG.

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como convinha às primeiras décadas do século passado. Apenas como exercício de ilustração, faz-se a leitura de fragmentos ou poemas curtos, geralmente recortados dentro daquilo que se deseja demonstrar. Quando o texto consegue ser objeto de leitura do aluno, a atividade preferencial é a chamada “interpretação” do texto, ou seja, uma série de questões cujas respostas já estão pré-determinadas.

Embora não sejam poucos os estudos que demonstram ser este

tipo de ensino insatisfatório e inadequado teórica e metodologicamente, ele ainda é amplamente praticado nas escolas brasileiras de norte a sul do país. Sem defensores, a permanência desse velho paradigma é justificada por razões que vão da inércia do sistema educacional, refratário a mudanças, até uma percepção equivocada da relevância da disciplina na formação dos alunos, quer por parte da escola, quer por parte dos pais e da sociedade, todos aparentemente mais interessados nos saberes “pragmáticos” de outras disciplinas. Entre essas razões, encontram-se, ainda, certa imposição curricular, a formação precária dos professores e a indefinição de um novo padrão para o ensino de literatura3. De fato, o conteúdo e a disposição curricular da disciplina Literatura Brasileira nas escolas de Ensino Médio não favorecem o ensino de literatura. Acompanhando grosso modo a organização da 3 É o que indica, por exemplo, o estudo empreendido por Leahy-Dios (2001), ao entrevistar alunos de ensino médio de escolas estaduais do Rio de Janeiro, na tentativa de aferir o que está (estava) sendo feito em termos de leitura e ensino de literatura nas escolas cariocas. A partir desses depoimentos, a pesquisadora constata a permanência de um tratamento historiográfico dos estudos de literatura e de uma percepção, por parte do aluno, de que ler e estudar literatura são ações distintas, ou seja, sem relação direta entre si. Em grande medida, a disciplina Literatura revela-se um estudo acrítico e superficial de um passado histórico, em detrimento da valorização dos elementos ético-estéticos dos textos. Pesa sobre esse modus operandi em relação ao estudo literário nas escolas, a formação dos professores, que assumem de forma passiva o formato de aula e de modos de encaminhamento dos conteúdos ditados pelos livros didáticos. Assim, observa-se, pelos depoimentos dos estudantes, a manutenção da distância entre leitura e estudo de literatura e a “desimportância” do campo de estudo pelo espaço dado à disciplina na grade curricular, evidenciando sua pouca compreensão acerca do significado dos estudos literários ou dos protocolos de leitura do texto literário.

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área de literatura nos cursos de graduação em Letras, a distribuição do conteúdo de história literária é “equitativa”. No primeiro ano, quando este inclui a disciplina, têm-se noções de teoria da literatura e o período colonial, aqui compreendido como a produção escrita de jesuítas e viajantes, Barroco e Arcadismo. No segundo, estudam-se o Romantismo e o complexo Realismo-Naturalismo-Parnasianismo, alguns ousando até falar de Simbolismo. Compreensivelmente, é também neste momento que se apresenta a literatura regional. O terceiro ano é dedicado ao Modernismo e à Contemporaneidade, mas normalmente não se consegue ultrapassar o primeiro, devido a ênfase que se dá aos vários movimentos de vanguarda relacionados à Semana de 1922 e aos conteúdos de crítica social do romance de 19304. Além disso, esse último ano é atropelado pelas imposições do vestibular, que, quando não exigem uma revisão de toda a história literária do Brasil, demandam a leitura de uma lista de obras de contextos diversificados5. 4 Não surpreende, portanto, diagnósticos pouco alentadores sobre o ensino da literatura dentro do paradigma historicista. SILVA (2005), por exemplo, em um texto em que busca indicar novos horizontes para a questão, afirma que: “Enquanto não houver uma articulação entre leitura, literatura e teoria literária, as aulas de literatura no Ensino Médio, por exemplo, continuarão a ser ministradas, tendo em vista, primordialmente, o reconhecimento das características estéticas dos períodos literários”, ou seja, “As aulas de literatura ficarão restritas ao âmbito da História da Literatura, sem que o aluno consiga, de fato, ‘experienciar’ o texto literário de modo eficaz” (SILVA, 2005, p. 525). 5 Também é preciso não esquecer que os concursos vestibulares, em grande medida, colocam-se como guia curricular para o ensino da literatura, indicando o que se lê e como se lê. Exemplo disso é o caso específico dos Concursos Vestibulares do Estado de São Paulo – Unicamp e Fuvest –, cujas listas, nas últimas décadas, têm assumido um papel de interlocução entre a Universidade e o Ensino Fundamental e Médio, uma vez que a maneira com que passam a ser concebidas (as mudanças estruturais e conceituais das provas) e o impacto que causam nos candidatos (e nos responsáveis por sua formação e preparação) acabam por promover uma discussão nas escolas de Ensino Médio sobre o que estudar e como fazê-lo. Este papel de agente de mudanças é claramente explicitado, por exemplo, pelos idealizadores da prova Vestibular Unicamp, que a consideram instrumento de reflexão sobre o Ensino Fundamental e Médio e, especialmente, uma medida para influenciar no campo da prática de professores e no direcionamento de estudos nesses segmentos de ensino, visto que o vestibular não é “apenas um instrumento de seleção, mas um evento que pode e deve sim-

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Tudo isso deve ser feito em apenas um encontro semanal de 50 minutos e sem nenhuma ou quase nenhuma biblioteca à vista. O professor deverá também cumprir religiosamente suas 40 horas semanais, o que implica ter, caso se dedique ao ensino de literatura, toda a população da escola como alunos, ou, hipótese mais comum, assumir outra disciplina, como Língua Portuguesa ou Língua Estrangeira, na qual terá maior número de aulas. A situação não é muito diferente quando a disciplina de Literatura submerge como conteúdo da disciplina de Língua Portuguesa. Nesse caso, o professor tende a privilegiar as práticas de escrita, leitura e reflexão linguística, bem mais determinadas pedagogicamente e valorizadas socialmente, dando à literatura o status de conteúdo ancilar. Os mais abnegados e apaixonados pela literatura ainda tentam conciliar os conteúdos, porém a perspectiva sincrônica com que se ensina a língua e a perspectiva diacrônica que sustenta o conteúdo de literatura impõem distâncias quase intransponíveis entre os dois programas. Há que se ponderar que, após quatro anos estudando literatura, o professor licenciado em Letras possui razoável conhecimento na área. Todavia, este saber, em que pesem as atualizações dos currículos, tem cunho marcadamente teórico. Formado em Letras, o professor do secundário deverá, por conta e risco, fazer a necessária adaptação entre as sofisticadas análises de texto, não poucas vezes amparadas em teorias mal digeridas, e a realidade de alunos que mal conseguem empreender uma leitura literal do texto apresentado6. bolizar significativamente para um direcionamento no ensino precedente e no consequente” (ABAURRE e CHARNET, 2001, p. 9). Seja em separado ou em listas unificadas, os títulos propostos nos últimos anos indicam uma tendência à manutenção e valorização do cânone, ou seja, obras e autores representantes dos principais movimentos literários da história literária portuguesa e brasileira, reforçando o caráter historiográfico (dos estudos de períodos literários) do ensino de literatura no ambiente escolar (cf. FIDELIS, 2008). 6 São realidades como essas que levam Nagata (2009), após analisar a formação oferecida pelos cursos de Letras, tomando como base empírica o relato de professores de literatura atuantes no Ensino Médio, a concluir que: “quase não há conexão entre a formação e a prá-

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Apenas nos últimos anos, os cursos de Letras começaram a se preocupar com o ensino específico de literatura, conforme comprova o surgimento de disciplinas de metodologia do ensino de literatura nos currículos. Ainda assim, um rápido levantamento feito7 sobre esse tipo de oferta aos estudantes de Licenciatura em Letras, ou seja, futuros professores de língua e literatura, mostra um relativo apagamento da necessidade de discussões e reflexões sobre ensino de literatura, leitura literária e letramento literário, entre várias instituições de ensino superior no país. Das 17 instituições visitadas, 12 delas não oferecem, nem ao menos como matéria optativa, qualquer disciplina que trate de maneira específica questões de ensino de literatura, e apenas cinco oferecem, sob diversas terminologias e de maneira eletiva, disciplinas específicas sobre esse ensino. Dessa forma, se é verdade que tais dados não podem ser celebrados, eles pelo menos indicam um movimento, mesmo que ainda incipiente, em relação à formação de profissionais que reflitam de maneira efetiva sobre o campo metodológico, voltado, especificamente, para a área de literatura. Em nossos cursos de Letras, o cenário mais comum é que, tanto a metodologia, quanto a prática de ensino, sejam ministradas por um professor de Educação ou de Linguística Aplicada dentro da área de língua portuguesa, uma vez que essa é a área que mais absorve os profissionais de Letras. Promissora, mas não suficiente, uma vez que só atua para o futuro, a metodologia do ensino de literatura enfrenta as dificuldades naturais de toda nova disciplina: a desconfiança quanto aos seus resultados e a bibliografia reduzida, ainda que, neste último caso, já se tenha um corpo razoável de obras, e as publicações estejam em diversificação crescente 8. tica e entre a universidade e a escola, dificultando o início da carreira de muitos professores, com consequências sem precedentes, caso estes não tenham, em relação à sua formação, incorporado os aspectos críticos e autocríticos e, no que concerne à sua prática, exerçam a reflexão constante” (NAGATA, 2009, p. 12). 7 Ver quadro anexo de instituições e disciplinas constantes em suas grades curriculares. 8 Ver, entre outros: COSSON, Rildo. Letramento Literário e círculos de leitura. São Paulo: Con-

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Limitado pela instituição escolar e sem a formação adequada, o professor de Literatura não encontra um horizonte claro e determinado, caso deseje abandonar o ensino da história da literatura pelo ensino da literatura. Ao contrário, nos vários estudos publicados, ele verá sua atual prática de sala de aula condenada e, mais comumente, apenas indícios de como deverá agir dali para frente. É claro que a maioria dos estudos não tem como objetivo determinar aquilo que deve ser ensinado em termos curriculares, mas sim conscientizar o professor da necessidade da mudança9. Mesmo entre aqueles que pretendem indicar um caminho metodológico não se encontra uma sistematização comparável com aquela que o professor recebe da escola ou da Secretaria de Educação, seja através do livro didático ou do currículo. Desse modo, o professor de Literatura aprende com os estudos publicados que seu principal objetivo é a leitura texto, 2014; COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto. 2006; EVANGELISTA, Aracy A. M., BRANDÃO, Heliana M. B, MACHADO, Maria Zélia V. (Orgs.). A escolarização da leitura literária. Belo Horizonte: Autêntica. 1999; MAGNANI, Maria do Rosário M. Leitura, Literatura e escola. São Paulo: Martins Fontes, 2001; PAULINO, Graça e COSSON, Rildo (Orgs) Leitura Literária: a mediação escolar. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG. 2004; ZILBERMAN, Regina (Orgs.). O ensino de literatura no segundo grau. Campinas, SP: ALB; Porto Alegre: Mercado Aberto. s/d; ROCCO, Maria Thereza F.. Literatura/Ensino: uma problemática. São Paulo: Ática.1981; MALARD, Letícia. Ensino e Literatura no 2º Grau: problemas e perspectivas. Porto Alegre: Mercado Aberto. 1985; PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.) Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Autêntica/ CEALE/Fae/ UFMG. 2005; GIROTTO, Cyntia e SOUZA, Renata. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a compreenderem o que lêem. In: SOUZA, Renata (Org.) Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2010; FARIA, Maria Alice. Parâmetros curriculares e literatura – as personagens de que os alunos realmente gostam. São Paulo: Contexto, 1999; ZILBERMAN, Regina e RÖSING, Tania M. K. (Orgs.). Leitura e escola: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009; SANTOS, Fabiano dos, MARQUES NETO, José Castilho e ROSING, Tania M. K. (Orgs.). Mediação de leitura: discussões e alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009. 9 Exemplo dessa postura de alerta e conscientização acerca do ensino de literatura e de suas práticas pedagógicas é a análise histórica, empreendida por Zilberman (2009), ao pontuar que, a despeito do desapego a uma perspectiva historiográfica de inserção da literatura no ambiente escolar, o que se constata é a diluição do sentido de literatura, compreendida na definição imprecisa de texto ou no seu expurgo da sala de aula, diluída em generalidades.

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da obra literária e a formação de um leitor literário, traduzido nos termos crítico e criativo; que o texto não é pretexto para ensinar a norma padrão ou outra coisa qualquer além dele mesmo10; que deve buscar a diversidade de textos11; que deve atender às necessidades do aluno e atentar para a sua realidade na seleção de obras12; que deve promover a interdisciplinaridade e formar o gosto de seus alunos13; que os alunos precisam experienciar a obra literária através de uma leitura autônoma14. Também aprende que 10 É antológica a reflexão empreendida por Lajolo (1991) sobre os usos dados ao texto literário no ambiente escolar e como esses usos não estavam ligados à experienciação literária do texto, ao estímulo do aluno para a compreensão da linguagem literária e suas convenções. A autora enfatiza o tratamento dado no ambiente escolar ao texto literário, cuja circulação se restringe a instrumento intermediário de aprendizagem, servindo ao propósito de, basicamente, referir-se a questões de ordem gramatical e linguística e, nesse sentido, perdendo sua potência. 11 Em análise sobre a presença de textos literários em quatro coleções de livros didáticos, Cafiero e Côrrea (2003) questionam sobre de que modo a diversidade de textos literários pode alargar a experienciação literária, ampliando o horizonte de expectativas do leitor. Considerando o corpus analisado, os autores indicam que a diversidade de textos pode contribuir para o contato do leitor com o texto literário e permitir o desenvolvimento de sua sensibilidade estética bem como a ampliação de seu horizonte de expectativas. 12 É o que analisam Bordini e Aguiar (1993), entre outros aspectos referentes à circulação do texto literário no ambiente escolar, a partir de pesquisa sobre esse ambiente de circulação – problemas e condições – no Rio Grande do Sul. Para isso, as autoras fizeram levantamento entre estudantes e professores acerca do ensino de literatura. A partir da análise de dados sobre a expectativa dos alunos sobre a relação literatura/escola, sugerem critérios de escolha dos textos literários que considerem as especificidades do leitor pretendido e seus interesses em particular. Nesse sentido, as autoras indicam que, entre outros fatores, os professores devem considerar, na escolha do texto literário e do trabalho com o mesmo, o universo do leitor e suas demandas próprias. 13 Magnani (2001) defende a formação do gosto e que este pode e deve ser ensinado na escola. A autora indica, portanto, que o gosto não é uma característica “natural”, “inerente”, mas um constructo de responsabilidade também da escola. A literatura (e sua aprendizagem), nessa perspectiva, deve apontar para a formação do gosto do aluno pela leitura do texto. Na visão da pesquisadora, a diversidade de textos no processo de seleção e a utilização dos textos literários para a reflexão dos sujeitos, bem como a de suas leituras, como ponto de partida para a reflexão, análise e comparação com outros textos, são aspectos importantes para essa aproximação do jovem leitor com o universo literário e para a formação do gosto. 14 Cosson (2014) propõe que o ensino de literatura incorpore os círculos de leitura como prática metodológica que garante aos alunos o exercício autônomo e entre pares da leitura

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testes, fichas de leitura, resumos e outras formas usuais de avaliação não se coadunam com a liberdade do texto literário, sendo necessário, pois, praticar outras formas de avaliação. Em outras palavras, ele aprende o que não fazer, mas não lhe são dados caminhos claros sobre o que e como fazer em termos curriculares. Em outras palavras, não faltam propostas sobre as diferentes possibilidades de se trabalhar com a literatura em sala de aula e na escola, mas essas orientações não são apresentadas com a mesma sistematicidade que tem a distribuição da história literária ao longo dos três anos do Ensino Médio. Diante de tais dificuldades, como reage o professor de Literatura em sua prática diária de sala de aula? Em primeiro lugar, o professor assume um discurso que defende o ensino da literatura e não o ensino sobre a literatura. Todavia, na prática, consegue apenas substituir o livro didático por apostilas retiradas, na maioria das vezes, do próprio livro recusado ou de uma coletânea deles, como se à pluralidade de títulos correspondesse uma diversidade metodológica e/ou conceitual sobre o ensino de literatura. Quando ousa abandonar de fato a história literária, cria uma grande confusão para si e para os alunos por não saber explicar como e por que o mesmo conteúdo ou prática de leitura é repetido em anos diferentes. Isso quando não comete o equívoco de indicar as mesmas obras para todos os anos, perdendo o sentido de progressão no qual se assenta a divisão em anos e se organizam, em última instância, todas as disciplinas escolares. Mesmo quando ultrapassa essa dificuldade inicial, o professor continua a encontrar muitos percalços a sua frente ao tentar ser coerente literária. Para o autor, os círculos de leitura possibilitam que os alunos construam sua própria aprendizagem, refletindo coletivamente e desenvolvendo a competência literária, além de favorecer a aprendizagem do diálogo, do respeito pelo outro, da argumentação, entre outras competências linguísticas e sociais. Em sua visão, “as discussões dos círculos de leitura ajudam a desenvolver o alto raciocínio, favorecem o domínio da escrita e promovem o letramento literário em um movimento que incorpora à formação do leitor o prazer de ler e a construção compartilhada da interpretação” (COSSON, 2014, p. 177).

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com as orientações contemporâneas sobre o ensino de literatura. A busca da realidade dos alunos termina se confundindo com a abordagem meramente temática do texto literário, o texto passa a ser pretexto de uma sociologia duvidosa sobre os problemas do mundo atual. O espírito crítico e criativo que se deve formar transforma-se, por um lado, em compromisso político-partidário ou em simples críticas ao governo de plantão, e, por outro, em atividades de reprodução imagética ou artística daquilo que foi lido, operando por uma transposição de linguagens usualmente empobrecedora do texto literário e dos mecanismos artísticos precariamente utilizados. A interdisciplinaridade faz-se pelo mesmo viés, com privilégio das outras disciplinas sobre o texto literário, cujas especificidades são minimizadas, quando não ignoradas, em favor do assunto nele abordado. Além disso, nesses e em outros casos, a literatura, longe de se constituir em um conhecimento legítimo do homem e da sociedade que merece um campo disciplinar próprio, tende a ser vista como um grosseiro reflexo da realidade e poderia ser facilmente substituída por outros textos técnicos ou científicos da área que se deseja abordar. Também a produção escrita nas aulas de Literatura é praticamente inexistente. O professor, desconfiado dos questionários e resumos, decide que para proporcionar a liberdade necessária à leitura da obra literária não deve fazer cobranças por escrito. A grande e, em muitos casos, única atividade admitida é o debate, onde os alunos reproduzem, cada um a seu modo, a história lida. Toda e qualquer avaliação do professor tem como centro a mera constatação de que foi feita uma leitura. E isto é tudo. Dessa forma, a experiência autônoma de leitura do texto literário termina em dispersão dos alunos ou em debates estéreis sobre aspectos temáticos da obra. A seleção das obras e a formação do gosto, talvez até pelo número de trabalhos dedicados ao tema, encontra-se em outro patamar, embora

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teoria, prática e (in)disciplina

não menos problemático. Nenhum professor recusa a ideia de que deve partir das leituras já realizadas por seus alunos, sejam elas quais forem15. Também sabe que a diversidade é necessária e que é pela problematização da leitura de cada obra que o gosto irá se constituir. De acordo com esses princípios, o professor de Literatura tem seguido duas direções: uma que o leva à trivialização do texto literário e outra que a ela se opõe. No primeiro caso, o professor simplesmente se exime de qualquer responsabilidade sobre a leitura do aluno. É o império da quantidade. O sucesso do professor e do aluno está diretamente ligado ao número de obras lidas e/ou retiradas da biblioteca. Acredita-se que o simples manuseio de obras e a leitura de um número elevado delas resolvam toda a questão do ensino de literatura. Tal atitude, questionável até mesmo enquanto formadora do hábito de leitura, termina por hipostasiar o poder do ato de ler e reduzir todo o ensino à mera constatação desse ato16. Percebendo os riscos que corriam em defender a leitura pela leitura, alguns professores e estudiosos têm optado, na seleção de obras e na 15 Tavela (2010), ao tratar dos problemas e dificuldades relativos à formação do leitor literário, analisa a importância da valorização do repertório de leitura do leitor e a utilização das leituras já realizadas para um trabalho com o texto literário no ambiente escolar. Nesse estudo específico, a autora reflete sobre a relação entre a literatura de massa e a formação literária, analisando, especificamente, o fenômeno Harry Potter, indicando que não se trata, tão somente, de cristalizar fala recorrente de que os alunos não gostam (ou não querem) ler, mas de que eles, possivelmente, não querem ler o que a escola indica como leitura. Os números e dados da literatura de massa enfatizam essa percepção, indicando, por parte dos alunos, interesse e fôlego de leitura. Assim, questiona a autora, a escola deve menosprezar essa literatura de massa ou, a partir dela, possibilitar trabalhos diversos com a chamada literatura clássica? Para a autora, portanto, a escola deve considerar a leitura do aluno, atraindo-o para outras leituras a partir das que lhe dão prazer, ou seja, no caso, a chamada literatura de massa. 16 É o que vários teóricos apontoam como a leitura pela leitura, sem norteadores claros tanto para professor quanto para o aluno dos objetivos da leitura ou do que se está ensinando com a escolha de certo texto literário. Cosson, por exemplo, afirma que “o prazer de ler, uma proposta muitas vezes mal interpretada, foi bandeira de muitos daqueles que viam no ensino de literatura de literatura um cerceamento da leitura literária, esquecendo que todo modo de ler passa necessariamente por uma aprendizagem, não existindo um modo ‘natural’ ou espontâneo de leitura” (COSSON, 2010, p. 57). 62


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formação do gosto, por uma orientação teleológica que parte da literatura de massa ou popular para a literatura canonizada17. Assim, o que se percebe, por parte dos estudiosos, é uma postura de valorização do repertório construído pelo aluno-leitor “à margem” das escolhas institucionais propostas pelo professor e pela escola, promovendo um diálogo entre essas leituras e as chamadas canônicas, vistas como etapa necessária para a imersão do estudante em leituras mais consistentes e exigentes. Dessa maneira, a leitura encontra um objetivo a atingir, e o professor pode admitir, sem riscos de trivialização de sua aula, a leitura dos quadrinhos, dos best-sellers ou de qualquer outra produção ficcional considerada inferior ou inadequada, desde que possa utilizá-la como trampolim para ensinar Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Satisfeito, o professor mede o seu sucesso pelas indicações de leitura. Memórias Póstumas de Brás Cubas no quinto ano do ensino fundamental e Grande Sertão: Veredas no sexto são motivos de orgulho18. A maior perturbação que esta atitude traz é a obediência estreita ao cânone e a consequente sacralização da obra literária, 17 É o que enfatiza Tavela (2010) ao defender que a literatura de massa (objeto de escolha para a fruição literária por grande parte dos jovens leitores) pode e deve vir a ser um passo para a aproximação do leitor literário com outras obras de caráter mais canônico ou prestigiado. Assim, a autora preconiza que, menos que um impeditivo, as leituras já realizadas pelos alunos (e de escolha individual) devem ser respeitadas no ambiente escolar e utilizadas para o diálogo com a literatura e sobre ela. Também Paes (1989) defende algo similar, ao fazer menção à “teoria do degrau”, concebendo a literatura de massa como uma etapa para o enfrentamento de leituras mais densas ou da chamada Literatura (canônica ou clássica). Para o autor, a literatura de entretenimento deve ser mais bem entendida como estimuladora e incentivadora do gosto pela leitura e por seu hábito, permitindo a passagem de um estrato a outro. 18 Exemplo desse tipo de postura no ambiente escolar é a argumentação usada por Silva (s/d), ao defender a leitura dos clássicos para alunos de Ensino Fundamental. Afirma a autora: “defende-se a leitura de obras literárias tradicionais, entendendo que tais não podem ser deixadas de lado, sob pena de nunca virem a ser lidas ou, se lidas, de não serem entendidas além de suas palavras, deixando de fora os aspectos que fazem delas obras fundamentais”, compreendendo a autora que as obras fundamentais são “aquelas obras que sirvam como modelo, como paradigma, seja de uma época, de uma escola literária, da literatura de um país – no caso, o Brasil – e autores como Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e outros do mesmo naipe.” (SILVA, s/d, p. 48/49). 63


LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

além, é claro, da óbvia dificuldade dos alunos de realmente lerem o que lhe foi solicitado. Assim, a busca da qualidade na leitura tem, ao lado de seus méritos, um inegável sabor de elitização e de verniz cultural - objetivos tradicionalmente associados ao ensino de literatura - pouco adequados a professores que se querem democráticos e modernos. Nas duas direções, enfrenta-se, ainda, o perfil de leitor do jovem, que é, em muitos casos, um leitor sem traquejo, no dizer de Graça Paulino, ou seja, um leitor que ainda não desenvolveu plenamente as competências necessárias para dominar o texto escrito e tem pouca familiaridade com os recursos de expressão literária. Tal imaturidade leva o professor de Literatura a ceder lugar ao professor de Língua Portuguesa na formação do leitor, como se houvesse um primeiro momento, que é o do domínio da língua, e um segundo, que é o do domínio do repertório cultural, representado pela literatura, replicando assim uma velha divisão que as propostas de letramento já deixaram para trás19. Além disso, há o despreparo do professor em lidar com os novos meios de comunicação e expressão dos jovens, sobretudo aqueles veiculados pela Internet ou por meios eletrônicos, vistos usualmente como concorrentes do texto escrito. Dessa forma, ao fosso geracional que sempre permeou as relações entre professor e aluno, juntam-se agora o da tecnologia e o do mundo digital que afastam a formação literária oferecida pela escola do horizonte cultural do jovem, mesmo quando este é um aluno leitor20. 19 Em A prática do letramento literário em sala de aula, Cosson (2011) distingue a leitura ilustrada da leitura aplicada como formas que a leitura literária assume na escola. Para o autor, “cabe ao professor romper com essa descontinuidade no tratamento do texto literário, promovendo simultaneamente desde as séries iniciais a leitura ilustrada e a leitura aplicada dos textos literários para todos os alunos, independentemente de sua faixa etária e nível de escolaridade” (COSSON, 2011, p. 296). 20 A despeito dessa percepção de que a tecnologia se coloca em campo oposto ao do impresso e da literatura, tendo esta que “disputar espaço e interesse” na rotina do jovem leitor, Freire e Freire (1998), ao refletir sobre os processos de transformação cultural e de relacio-

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os (des)caminhos da literatura no ensino médio

Diante de todos os problemas levantados, fica claro que se faz necessário transformar o ensino de literatura em um ensino significativo para o aluno e o professor, considerando o saber da área. Para tanto, defendemos pelo menos três frentes de atuação. A primeira delas diz respeito à elaboração de programas mais claros e coerentes sobre o que ensinar e como ensinar literatura – e, nesse caso, não só no Ensino Médio, mas em todo o ensino básico e também nos cursos de Letras. Nesse sentido, não bastam preceitos e indicações bem intencionadas, como aquelas que se encontram nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2006) ou aquelas do Programa Ensino Médio Inovador (2009), para citar proposta mais recente. Especificamente, o professor de Literatura precisa saber quais os objetivos, os conteúdos e os procedimentos que deve adotar para ensinar literatura em cada um dos três anos do Ensino Médio. A elaboração desse programa claro e detalhado é obrigação das instituições responsáveis pelos currículos, como as secretarias de educação estaduais, mas também dos professores de Letras na universidade e dos próprios professores de Literatura no Ensino Médio. É apenas por meio dessa conjugação de esforços que se obterão resultados compatíveis com o conhecimento que hoje se tem da área e com os contextos locais que, obviamente, não podem ser ignorados. A existência de fóruns permanentes reunindo essas três instâncias é um dos instrumentos fundamentais para garantir que os programas, uma vez estabelecidos, sejam acompanhados e modificados segundo suas necessidades. namento com a literatura documental (impressa) e com os processos de leitura alineares possibilitados pelas redes de comunicação e pelos links e hiperlinks dispostos nessas redes, indicam uma possibilidade de aproximar a leitura literária (do objeto literário) desses novos modos de contato com a informação. Assim, os autores apresentam um exemplo de trabalho de hipertexto em literatura para a construção da informação e da organização desse conhecimento. Nesse sentido, os autores apontam um novo caminho para o tratamento dado ao literário no ambiente escolar e de seus modos de leitura.

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LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

Uma segunda frente consiste na formação do professor. Aqui um primeiro e fundamental passo é compreender que curso de licenciatura forma professores, ou seja, a formação docente não é um apêndice da formação em Letras a ser fornecido por professores da Educação no final do curso. Ao contrário, é uma construção que deve ser feita a partir do primeiro dia de aula e vai até o último. Com isso, não se está pretendendo excluir o saber teórico em favor do prático, em uma distinção que há muito deveria ter sido abandonada, mas sim chamar a atenção para a necessidade de inter-relação permanente entre o saber letrado e o saber pedagógico no processo de formação do professor de Literatura. É preciso também que haja um locus de reflexão próprio para o ensino de literatura, ou seja, uma disciplina tal como metodologia do ensino da literatura, ou com outra designação, que possibilite ao aluno discutir e analisar as propostas e alternativas de ensino de literatura, quer enquanto parte do objetivo geral de formação do leitor e do usuário da língua, quer como prática cultural diferenciada. Sem esse espaço formalmente constituído, não só o professor terá dificuldades de transpor o que aprendeu sobre literatura para a sua prática de sala de aula, como também o saber sobre o ensinar literatura fica enfraquecido ou secundário perante outros saberes já disciplinarizados. Por fim, é essencial que se ampliem as formas de interação literária dentro e fora da sala de aula. Para tanto, não se pode deixar de perceber que as diversas formas de circulação da literatura no presente envolvem eixos genéricos e históricos diversificados. Também não se pode conter a literatura nas fronteiras limitadas do cânone e do livro enquanto princípio hierárquico e veículo preferencial do texto literário. Sobretudo entre os jovens, é preciso que se reconheça e traga para o espaço escolar os textos e as práticas pelas quais a literatura se apresenta e participa pervasivamente da cultura. Esse reconhecimento não pode ocorrer com

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os (des)caminhos da literatura no ensino médio

o intuito mal disfarçado de declarar a superioridade do texto e da leitura literária sobre outros objetos culturais ou tomá-los como ponto de partida em um gesto de falsa generosidade para com o gosto e as preferências dos alunos em termos de manifestações estéticas. Na verdade, o que se propõe é identificar a presença da palavra literária nesses objetos e mostrar que, quanto mais se conhece os meios e as formas com que se transveste a literatura, mais amplos são os modos de ver e viver o mundo. Só assim, como já se afirmou em outro lugar (COSSON, 2014), formaremos um leitor de literatura. Leitor disposto a exercitar o seu imaginário. Leitor capaz de usar com proficiência o repertório literário, transformando-o e expandindo-o em novas obras. Leitor que descobre que o saber literário, como bem dizia Barthes, tem sabor. Leitor que sabe ser testemunha e coprodutor do mundo que existe dentro e fora da obra literária. Leitor que toma a literatura como um espaço único de formação e construção permanente de identidades. Leitor em diálogo com o passado e o presente na construção de futuros. Leitor que sabe da força da palavra para dizer o mundo e da importância do mundo feito de palavras. Um leitor da dor e da alegria de ser humano. Um leitor do prazer. Um leitor do conhecimento. Um leitor de literatura, enfim.

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LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

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os (des)caminhos da literatura no ensino médio

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LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

mos_expandidos/SILVA_Ana_Margarida_Dutra_de_Oliveira_p_47_50. pdf Acesso em 15 de fev. 2015. SILVA, Ivanda Maria Martins. Literatura em sala de aula: da teoria literária à prática escolar. Anais do Evento PG Letras 30 anos, v. I, n. 1, p. 514527, 2005. Disponível em http://www.pgletras.com.br/Anais30-Anos/ Docs/apresentacao.htm. Acesso em 19 fev. 2015. TAVELA, Maria Cristina W. Literatura de massa na formação do leitor literário. Disponível em: http://www.ufjf.br/darandina/files/2010/12/ 16-Literatura-de-massa-na-forma%C3%A7%C3%A3o-do-leitor-liter%C3%A1rio.pdf. Acesso em 15 de fev. 2015. ZILBERMAN, Regina (Org.). O ensino de literatura no segundo grau. Campinas, SP: ALB; Porto Alegre: Mercado Aberto, s/d. ZILBERMAN, Regina. Que literatura para a escola? Que escola para a literatura? Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 5, n. 1, p. 9-20, jan./jun. 2009. ZILBERMAN, Regina e RÖSING, Tania M. K. (Orgs.). Leitura e escola: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009.

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os (des)caminhos da literatura no ensino médio

anexo Disciplinas dos cursos de letras sobre ensino de literatura. ies

disciplina

condição

Universidade São Paulo - USP

Ensino de Literatura Brasileira

Optativa

Universidade São Paulo - USP

Literatura Portuguesa: EnsinoAprendizagem

Optativa

Universidade São Paulo – USP

Aspectos de ensino em Língua e Literatura

Eletiva

Universidade Estadual de São Paulo – Campus Araraquara

Não há

-

Universidade Estadual de São Paulo – Campus São José do Rio Preto

Não há

-

Universidade Estadual de Campinas – Unicamp

Não há

-

Universidade Federal de Santa Catarina

Literatura e Ensino

Eletiva

Universidade Federal de Santa Catarina

Metodologia do Ensino de Língua e Literatura

Eletiva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Não há

-

Universidade Federal de Santa Maria

Não há

-

Universidade Federal do Paraná

Não há

-

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Não há

-

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Literatura e ensino

Eletiva

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Não há

-

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Não há

-

71


LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina ies

disciplina

condição

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Não há

-

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Didática do Português e Literatura I e II

Eletiva

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Metodologia do Ensino – Leitura e Literatura

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Metodologia Trabalho c/Texto Literário no Ensino Médio

Eletiva

Universidade Federal Fluminense

Não há

-

Universidade Federal de Minas Gerais

Ensino de Literatura

Eletiva

Universidade de Brasília

Laboratório de Literatura para o Ensino Fundamental e Médio

Eletiva

Universidade Federal de Pernambuco

Não há

-

Universidade Federal do Ceará

Não há

-

Universidade Federal de Sergipe

Não há

-

Universidade Federal do Alagoas

Não há

-

Universidade Federal da Paraíba

Pesquisa Aplicada ao Ensino de Literatura de Língua Portuguesa

Eletiva

Universidade Federal do Maranhão

Não há

-

Universidade Federal do Mato Grosso

Não há

-

Universidade Federal de Rondônia

Não há

-

Universidade Federal de Roraima

Não há

-

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Eletiva


2 Literatura na escola:

a disciplina e o currĂ­culo



LÍNGUA E LITERATURA NA ESCOLA: UM CASAMENTO FELIZ Raquel Trentin Oliveira1 Apesar da óbvia e inquestionável relação complementar entre língua e literatura, as práticas de ensino frequentemente as divorciam. Ao abordar o texto literário, o professor muitas vezes negligencia a base linguística da literatura; por sua vez, é comum o professor de língua desconsiderar a potencialidade do texto literário para a análise linguística. Tal divórcio não é arbitrário, responde a comportamentos e a bases conceituais que se enraizaram na história das Letras e, por conseguinte, na rotina escolar. A divisão, porém, não é inócua, podendo intervir negativamente na formação do aluno e na sua cidadania linguística. Como professora de literatura, o que me preocupa, em específico, é o declínio do tempo escolar de leitura literária, notório no estreitamento do espaço reservado para a disciplina Literatura na grade curricular do Ensino Médio e agravado pela existência de fronteiras disciplinares, mesmo entre Língua Portuguesa e Literatura. Ademais, a garantia desse espaço mínimo para literatura não é garantia da leitura literária na escola. Sabemos que, muitas vezes, ela é substituída pelo inventário de datas, fatos e características dos períodos histórico-literários, a reportagem da vida do autor e/ ou o debate pura e simplesmente dos temas evocados nas obras, sem o enfrentamento do texto e, com isso, das potencialidades semânticas e usos linguísticos ativados pelo processo de leitura. A possibilidade de integrar o estudo da língua e da literatura passaria, pois, pela derrubada de barreiras disciplinares ainda existentes entre elas e pela valorização da leitura do texto literário. 1 Professora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria.

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LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

A literatura, em geral, problematiza e desafia o senso comum; promove a criatividade e a imaginação pela projeção de mundos fantasiosos/ virtuais; favorece a empatia do leitor frente ao texto, pela exploração da experiência sensorial e afetiva humana; aproveita e, ao mesmo tempo, deturpa a gramática ou a norma linguística. Com todo esse potencial de incentivo ao raciocínio complexo sobre a linguagem, com toda essa aptidão para problematizar e contextualizar (MORIN, 2001, p. 17), por que hoje costuma ser subvalorizada nos estudos da língua? A gramática ocidental foi criada no século III d. C., justamente com a preocupação de analisar e de preservar as grandes obras da literatura grega. “Nessa perspectiva, a gramática era, sobretudo, uma arte de ler textos” (MAINGUENEAU, 2010, p. 28). Quando a linguística moderna surgiu entre o final do século XIX e o XX, “os linguistas procuraram mostrar de todas as maneiras que sua disciplina não tinha nada a ver com literatura e, em particular, que a linguística se recusava terminantemente a considerar os textos literários como dados linguísticos confiáveis: a verdadeira língua para os linguistas seria a oral” (MAINGUENEAU, 2010, p.28). Ou seja, a especialização e a disciplinarização da área de Letras contribuíram para a dicotomia que se instaurou entre os estudos linguísticos e os literários: “por natureza, o linguista moderno é esse estranho locutor que possui a pretensão de ser neutro, de não ter relação afetiva privilegiada com qualquer língua, inclusive, e sobretudo, com sua língua materna” (MAINGUENEAU, 2010, p. 29). Por seu lado, os estudos literários também passaram pela busca de uma neutralidade científica, expressa de uma maneira mais evidente em correntes como o Formalismo russo, o New Criticism norte-americano e o Estruturalismo francês: “nada de subjetivismo, nada de análise impressionista, nada de referências biográficas, históricas, sociais, culturais. Só o texto e nele os esquemas invariantes”,

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língua e literatura na escola: um casamento feliz

explica o linguista Carlos Alberto Faraco (2010, p.32), justificando seu desencanto pela literatura na Faculdade de Letras. Se antes o problema era a restrição da leitura à estrutura do texto, desconsiderando o leitor, o autor e o contexto, hoje parece preponderar o extremo oposto: “certos professores de literatura desconsideram, cada vez mais, a língua e a questão da linguagem em benefício do vasto e vago domínio dos ‘estudos culturais’” (ADAM; HEIDMANN, 2011, p.14). Ainda segundo estes analistas do discurso, Jean-Michel Adam e Ute Heidmann, o ‘e’ que une ‘linguística e literatura’ [...] tornou-se, de fato, a linha de uma descontinuidade acentuada por uma lógica institucional que divide os saberes e os fixa nas disciplinas autônomas, preocupadas – para não dizer enciumadas – com o traçado de suas fronteiras” (2011, p.14). Isto é, o relacionamento estreito e basilar entre literatura e língua é frequentemente rompido em função de certas modas teóricas que só fazem acentuar o “prejulgamento de que literatura é propriamente exterior à linguística” (MAINGUENEAU, 2010, p.29), ou de que quem estuda literatura não precisa se interessar pelos estudos da língua. Uma ilustração desse julgamento é oferecida por Beth Brait em Literatura e outras linguagens, quando destaca os nomes de Mikhail Bakhtin e Valentim Voloshinov, por ambos utilizarem o texto literário como principal fundamento dos seus estudos da linguagem: segundo a autora, a maioria dos leitores interessados nesses estudos “saltava (e alguns continuam saltando) os excertos literários, como se eles não se destinassem aos linguistas ou aos analistas de discurso, ao menos aos verdadeiramente convictos de seu papel de estudiosos da língua, das línguas, da linguagem, das linguagens” (2010, p.20). Isto é, tais leitores cometiam o erro inadmissível de ignorar, por exemplo, que Bakhtin construiu seus conceitos principais – signo ideológico, dialogismo, polifonia – com base na literatura, mais especificamente no romance, compreendendo-o como

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LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

um gênero em permanente troca com a linguagem viva e inacabada da vida cotidiana2. Aliás, a supracitada publicação de Beth Brait, que inclui os textos de alguns dos linguistas mencionados aqui, foi pensada justamente para problematizar e combater o problema, ao coligir artigos e depoimentos que tematizam a relação constitutiva língua-literatura. No contexto português, em um volume da revista Estudos Literários (2013) dedicado ao Ensino da Literatura, Telmo Verdelho também condena a disciplinarização exagerada e discorre sobre seus reflexos negativos no ensino escolar: Essa abundância científica, desenvolvida nas universidades e nos institutos de investigação, “transbordou”, com mais exuberância do que razoável e metódica adequação, para os programas da escola básica e secundária. Repercutiu-se no reajustamento terminológico, excessivo e esotérico, e num especiosismo programático desajustado e “novo-rico”. Pensouse que era possível um ensino da língua como atividade formalizada e puramente técnica, ou reduzida às funções elementares da comunicação de sobrevivência. E, do lado da literatura, fez-se da análise e interpretação do texto, um exercício de grande peritagem, com dispendiosos adjuvantes da leitura, inacessível à simples vista desarmada. O ensino da língua e da literatura, sem perder o objeto, sofreu uma complexificação, certamente induzida pelos mais virtuosos ideias da modernidade e da especificação científica, mas não isenta dos riscos de rutura com o ritmo e a sabedoria mediana que se procura para o cidadão comum (2013, p.16).

Constata-se nessa prática, portanto, uma confusão entre as finalidades dos diferentes níveis do ensino. O Ensino Médio, que não se dirige a especialistas em literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo 2 Relembrando as palavras do autor, o romance constitui-se como “um híbrido intencional e consciente de linguagens” (2010, p.162), uma forma privilegiada de representação do plurilinguismo social: “a orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso, mas pode desenvolver-se, tornar-se complexa e profunda e atingir a perfeição artística no gênero romanesco” (BAKHTIN, 2010, p.87).

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língua e literatura na escola: um casamento feliz

objetivo que o Ensino Superior: “o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários” (2010, p. 41), como também lembra Todorov, quando discute a situação do ensino literário na França. Em A religação de saberes (livro resultante de jornadas temáticas promovidas em Paris em 1998, para refletir sobre o ensino), Morin já chamava a atenção para “a inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, por um lado, um saber fragmentado em elementos disjuntos e compartimentados nas disciplinas, por outro, realidades multidimensionais, globais, transnacionais, planetárias, problemas cada vez mais transversais, pluridisciplinares, até mesmo transdisciplinares” (MORIN, 2001, p. 14). Isto, a que Morin chamou “o desafio da globalidade”, colocava em evidência “a não pertinência do nosso modo de conhecimento e de ensino, que nos faz sabermos separar (os objetos do ambiente que os rodeia, as disciplinas umas das outras) e não o religarmos àquilo que, todavia, é tecido em conjunto” (MORIN, 2001, p. 10). Nessa publicação, é evidente o destaque ao papel da literatura como eixo integrador de saberes. Henri Meschonnic, um dos colaboradores da obra, afirma: “o corte no ensino entre estudos literários, estudos filosóficos e estudos linguísticos (corte que se agravou desde a época do estruturalismo) não os torna capazes de fazer outra coisa além de análises formais, segundo o esquema mais tradicional do signo: o fundo oposto à forma” (2001, p.535). Transcorre daí um paradoxo, que, segundo o autor, “faz com que o ensino da literatura – que deveria ser o lugar estratégico para um trabalho sobre a teoria da linguagem – geralmente seja, ao contrário, o lugar de maior fraqueza de pensamento sobre a linguagem” (2001, p. 535). Para combater tal contexto, Meschonnic propõe uma abordagem interdependente e dinâmica das linguagens: Por teoria da linguagem, não se deve compreender nem linguística (ou ciências da linguagem), nem filosofia da

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linguagem. Trata-se da reflexão sobre o estatuto e as práticas da língua (e mesmo das línguas) nas práticas sociais e nas representações da sociedade, mas também nas disciplinas que são agrupadas pela apelação de ciências humanas [...] Tratase de um posto de observação de importância estratégica, pois ele trata do conjunto das concepções do signo; sobre o que se pensa do sentido e sobre o que se faz com o sentido, em diversas culturas e situações da linguagem [...] A teoria da linguagem é a pesquisa e a aprendizagem da especificidade e das especificidades da linguagem [...] é também reconhecimento da historicidade [...]. E o lugar no qual se realiza por excelência uma historicidade radical, a invenção de uma nova maneira de ser e estar no mundo, é a arte, e especialmente a arte da linguagem, que é a literatura sob todas as suas formas (2001, p. 534, grifo meu).

A teoria da linguagem seria, portanto, uma teoria de conjunto, trabalhando fora do isolamento de cada disciplina, ou melhor, “cabe a cada um, em cada disciplina, trabalhar pela teoria da linguagem” (2001, p.536), o que implica em trabalhar pelo contínuo entre corpo e linguagem; língua e pensamento; língua, literatura e cultura; linguagem e vida (2001, p.536). Seu maior desafio é a “compreensão da história e do presente das sociedades, que passa pela crítica das separações clássicas entre o sensível e o inteligível, o afeto e o conceito” (2001, p. 538). Parece ser algo próximo desta teoria de conjunto o que embasa a organização dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2000) e das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (2013), quando põem, sobre a Língua Materna, a Língua Estrangeira, as Artes, a Literatura, a Educação Física, a Informática, o título “Linguagens”, entendendo-as como: linguagens que se inter-relacionam nas práticas sociais e na história, fazendo com que a circulação de sentidos produza formas sensoriais e cognitivas diferenciadas. Isso envolve a apropriação demonstrada pelo uso e pela compreensão de

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sistemas simbólicos sustentados sobre diferentes suportes e de seus instrumentos como instrumentos de organização cognitiva da realidade e de sua comunicação. Envolve ainda o reconhecimento de que as linguagens verbais, icônicas, corporais, sonoras e formais, dentre outras, se estruturam de forma semelhante sobre um conjunto de elementos (léxico) e de relações (regras) que são significativas (BRASIL, 2000, p. 19).

Nesse contexto, a literatura é considerada como um lugar estratégico, ainda que não seja o único, para a observação das relações entre linguagem cotidiana e criatividade artística. Essa também é a tese de Carlos Alberto Faraco, Sírio Possenti, Luiz Carlos Travaglia, Dino Pretti, Maria Helena de Moura Neves, Marisa Lajolo, Ingedore Villaça Koch, entre outros (BRAIT, 2010), que a defendem baseados em suas próprias trajetórias existenciais e profissionais. Dentre eles, Luiz Carlos Travaglia dá um depoimento entusiasmado e enfático sobre a importância da leitura literária para os estudos da língua: a literatura é a porta de entrada e percepção de que a língua tem uma magia: a de dar forma e existência ao que sentimos e somos, ao que as relações grupais são, ao que e como o Universo é, os universos são [...], a literatura nos faz sentir o que a língua é e pode [...], concentra, converge, encontra possibilidades expressionais presentes na língua em todas as suas variedades escritas e orais. Além disso, explora possibilidades expressionais potenciais e seus efeitos. Retira da cartola em seu espetáculo mágico usos possíveis, mas nunca utilizados. [...] Acredito que ser linguista ou gramático, ser professor de Língua Portuguesa tem mais brilho, mais sabor, mais verdade, mais possibilidade quando se acredita, mais ainda, quando se sabe que língua e literatura são uma só coisa e que a segunda é a primeira transformada em arte, que a literatura é o que há de mais livre, mais forte e, porque não dizer, de mais belo de tudo o que se pode fazer com a língua (2010, p.37-38)

É inegável, enfim, que a literatura tem um poder impressivo de sedução que – se bem explorado – pode despertar o interesse pela língua e

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depois pelo seu estudo. Se a oposição conflitante entre língua e literatura traz consequências negativas para a compreensão do funcionamento da linguagem, como indicam os especialistas citados, pode tornar-se um desastre ainda maior quando utilizada como estratagema pedagógico na escola. Devemos preferir uma perspectiva integradora, adequada à unidade da pessoa, que é o destinatário do processo do ensino, valorizando o pensamento da complexidade, interdependência e coalescência.

exemplo didático Enquanto professora de literatura que não dispensa a leitura atenta do texto literário e de suas interfaces, proponho um despretensioso exemplo didático, sem incrementos audiovisuais, que coloca o aluno-leitor como articulador das relações entre os parâmetros e fundamentos do conhecimento. Para tanto, selecionei um conhecido poema, de extensão breve, vocabulário e estrutura simples, muito próximo da prosa, mas denso semanticamente e com forte apelo crítico: “Erro de português”, de Oswald de Andrade. A atividade poderia ser realizada tanto em uma disciplina de Língua Portuguesa, quanto em uma disciplina de Literatura, valendo-se dos conhecimentos de ambos os campos. Erro de português Quando o português chegou Debaixo duma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português (ANDRADE, 1971, p. 177)

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O processo de leitura é todo compartilhado, dependente da mediação desafiadora do professor e tendo como propósito o máximo envolvimento – cognitivo e afetivo – dos alunos-leitores. Assim, pressupõe-se que as perguntas/ comentários lançadas sejam respondidas/ questionadas/ discutidas gradualmente, gerando outras e formando uma rede de sentidos que partem do texto, mas vão bem além dele, incluindo o contexto de produção, o fluxo histórico em que o poema se integra e as possíveis articulações com o tempo presente e a vida do aluno-leitor. Após uma leitura em voz alta do poema, o professor deve abrir espaço para as primeiras impressões e juízos dos alunos-leitores. A partir daí, é importante lançar questões-chave, que incitem a reflexão, não necessariamente nesta ordem: a que evento da memória histórico-cultural brasileira o poema faz alusão? Quais são "as pessoas" que aparecem no poema? Quem age e quem é o objeto afetado pela ação? A estrutura do poema pode ser dividida em partes? O que permite fazer essa divisão? Que circunstâncias climáticas são evocadas? Que relação de sentido se estabelece entre elas? Em que tempos se passam os acontecimentos? Há diferenças quanto ao tempo? As palavras no poema têm um único sentido? Alguma expressão parece ambígua? Alguma expressão pode ser lida de maneira metafórica? O poema está escrito segundo a norma padrão da língua portuguesa? Há alguma alusão ao uso incorreto dessa norma? O que pode significar o título do poema? Que sentimentos o poema provoca? Que críticas lemos no poema e a quem se dirigem? O que sabemos de seu autor? Em que contexto produziu o poema? Alguém conhece outro tipo de texto, documentário, filme, música, etc. que tenha abordado o assunto? O tempo presente suscita questionamentos semelhantes?, etc. As intervenções dos alunos-leitores, intermediadas e alimentadas pelo professor sempre que necessário complementar, definir ou aprimorar as informações, podem caminhar neste sentido: notoriamente, destacam-

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se dois eixos semânticos no poema – o do factualidade (ou da constatação do fato) e o da resistência à factualidade (ou da suposição de uma realidade alternativa, ainda que não concretizável). A distinção é marcada pela organização sintática de cada eixo e por um verso visualmente destoante entre eles – "que pena!" – o mais curto e único pontuado do poema. O poema inicia referindo-se às circunstâncias temporais (“quando o português chegou debaixo duma bruta chuva”) em que transcorreu o fato declarado no terceiro verso: “vestiu o índio”. O tempo verbal situa o momento de ocorrência da ação no passado e convoca a nossa memória sobre a “Descoberta do Brasil”, inclusive o texto que contribuiu para o registro histórico desse momento, a Carta de Caminha, que a certa altura informa: “à noite seguinte ventou tanto sueste, acompanhado de chuva, que deslocou as naus” (2008, p.51). A alusão ao português – sujeito colonizador – e ao índio – objeto colonizado, como também à espécie de ação – vestir – ativa as demais referências históricas sobre o processo colonizador e o conflito cultural aí implicado, assim como a historiografia brasileira documentou. O quarto verso sinaliza a mudança discursiva e, pela pontuação exclamativa (“que pena!”), expressa a avaliação subjetiva de alguém, o enunciador dos versos, sujeito poético não explicitamente nomeado no poema. A palavra “pena” pode ser entendida de diferentes modos no contexto do poema: pena de ave, que lembra a vestimenta indígena; penalidade, castigo, sofrimento; piedade, compaixão, pesar. Assim, o verso “Que pena!” pode referir-se, respectivamente, à admiração do enunciador/sujeito poético diante da vestimenta indígena, à sua perplexidade diante do tormento sofrido pelo índio e ao seu lamento perante o que aconteceu no passado. A segunda parte inicia com nova circunstância climática (“Fosse uma manhã de sol”), que contrasta diretamente com a circunstância da primeira parte. O contraste não fica apenas no tipo de situação criada, mas

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também a repetição oral dos versos permite perceber certa dissonância sonora entre eles: duma bruta chuva X manhã de sol. Tudo contribui para o envolvimento sensorial e imaginativo do leitor com o poema, que ora sente um clima turbulento, sombrio e agressivo; ora idealiza um outro, ameno, luminoso e acolhedor. Nesta sequência, diferentemente da constatação factual da primeira parte, o sujeito poético evoca uma situação não ocorrida, mas projetada por meio da oração condicional, com verbo conjugado no pretérito imperfeito do modo subjuntivo (“fosse”), e da oração principal “o índio tinha despido/ o português”. Nessa condição, inverter-se-iam, portanto, as posições de sujeito do processo histórico e também a qualidade da ação: o índio despiria o português, ao invés de ser vestido por ele. Notamos que a forma verbal “fosse” deixa implícita a simplificação característica da linguagem coloquial, que costuma não pronunciar o “se”, assim como o rompimento com a norma padrão, pois pediria uma sequência oracional com verbo no futuro do pretérito, “teria”, apropriado para mencionar uma ação apenas suposta, e não o uso do pretérito imperfeito “tinha”, tal como apresentado no poema. Podemos, então, retornar ao título do poema. O substantivo “erro” implica, semanticamente, uma apreciação negativa sobre seu complemento – “de português”. A preposição “de” indica a procedência do “erro”, atribuindo ao povo lusitano a responsabilidade por ele. Mas a mesma preposição também pode definir a natureza, a qualidade do “erro”. Nessa acepção, o português não é agente, pelo contrário, é o objeto afetado: o idioma transgredido, por assim dizer. Os dois processos de significação mantidos no título são validados e reforçados semanticamente ao longo do poema. A associação entre língua portuguesa e povo lusitano, suscitada no título, ativa ainda a ideia de que, com o processo colonizador, o português não impôs apenas vestimenta ao indígena, mas também um sistema linguístico. Nesse sentido, a ação

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de “vestir” denota um dos aspectos do amplo processo de colonização e funciona, metonimicamente, para significar o processo abrangente que impôs vestuário, língua, alimentação, religião, etc., ao nativo brasileiro. Notamos, além disso, que as circunstâncias climáticas ganham realce, nas duas sequências do poema, por aparecerem antepostas à oração principal, delas dependendo a qualidade da ação. A primeira circunstância pode ser comparada, metaforicamente, à maneira como o português agiu em terra brasileira: por meio de uma política imperial violenta como uma bruta chuva, que arrasou os costumes nativos. Se a forma de colonizar fosse diferente, como uma manhã de sol, sem massacres e imposições culturais drásticas, teria permitido o diálogo efetivo com a cultura indígena e, assim, a diminuição da assimetria preponderante nas relações de poder entre o colonizado e o colonizador. Apesar da avaliação emotiva do sujeito poético e da tendência de reprovação ao feito lusitano, índios e portugueses continuam ocupando, no poema, a posição de “outros”, de terceira pessoa. O lugar ideológico de que fala o sujeito poético é, pois, o de um terceiro elemento, que se ressente e avalia a história, usando o “erro de português” como tática também para descolonizar a língua (ao invés de impor uma gramática, indicar uma incorreção, como a expressão usualmente significa), despila das suas imposições normativas (uma “língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica”, como dizia o autor, ANDRADE, 1970, p. 34), uma vez que a língua foi uma das ferramentas legitimadoras do projeto colonial e é um instrumento de manutenção do poder, mas também pode ser uma forma de contravertê-lo. Aliás, a própria maneira de fazer poesia, com versos livres e brancos, estrutura e vocabulário prosaicos, funciona como um modo de romper com a norma literária veiculada pelos modelos estrangeiros, cuja influência determinou a história da literatura brasileira.

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O fato é que imperialismos como esse – que colocam a própria etnia, língua, religião, literatura, etc. como superior e central – vêm se repetindo pelo mundo afora ao longo dos séculos, gerando ditaduras, xenofobias e traumas humanos irreversíveis, legitimados pelo discurso dominante. Esse é o alerta que Oswald de Andrade nos dá, não só por meio do seu “Erro de português”, mas por muitos de seus poemas e manifestos, especialmente os publicados na obra Pau-Brasil (1925), dedicada a recontar a história da colonização de um prisma irônico, jocoso e extremamente crítico. Tal postura, aliás, está ligada a um projeto literário mais amplo – o Modernismo – de valorização das diferentes culturas que compõem a nacionalidade brasileira. Tomando a antropofagia indígena como metáfora, o movimento modernista sugeriu a necessidade de a nossa cultura incorporar as diferenças, inclusive as estrangeiras, apropriando-se delas deliberadamente, com consciência crítica. Isso significa não simplesmente imitar as formas e os temas estrangeiros, nem simplesmente rejeitá-los, mas aproveitá-los no que têm de enriquecedor para a literatura e a cultura nacional. A simbiose de costumes e influências ganha, portanto, um caráter positivo, valorizandose, sobretudo, o aspecto híbrido do povo brasileiro, simbolizado pelo conhecido personagem Macunaíma, de Mário de Andrade. Apesar de convencional, acredito que esse tipo de atividade, se bem conduzida, ainda é uma boa forma de demonstrar ao aluno que o uso consciente e criativo das linguagens – como o faz com primazia a literatura – é uma ferramenta poderosa de relacionamento com as pessoas e intervenção no mundo, e que, por isso, merece seu interesse e empenho. A leitura do poema poderia ir muito mais longe, servindo inclusive para aprofundar conhecimentos de cada disciplina, tal como adianta a análise dos fundamentos do poema aqui realizada, mas tendo sempre como alvo a compreensão integradora e dinâmica dos conhecimentos. Por exemplo,

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serviria ao professor de Língua Portuguesa para introduzir elementos de gramática, que, a partir da leitura literária, fariam muito mais sentido (sem reduzir o poema a pretexto, como a análise pretendeu demonstrar); ou mesmo para discutir diferentes usos da língua e suas funções na constituição/ legitimação da realidade histórico-cultural. Também poderia facilitar o acesso a outros textos, gêneros, mídias, que tratassem do assunto em outros tempos e especialmente na atualidade, e servir como estímulo para que os alunos produzissem os seus próprios textos e instrumentos de intervenção na realidade. E é claro, uma atividade compartilhada em sala de aula, capaz de envolver o máximo possível o leitor com a linguagem do poema e a sua semântica, poderia estimular a curiosidade por outros textos do autor, de sua geração, e assim por diante, favorecendo a integração da prática da leitura à vivência cotidiana do aluno, propósito principal das aulas de literatura. Para tanto, precisamos, antes de tudo, privilegiar o interesse cognitivo-afetivo por nosso objeto de estudo – o texto literário –, e não a abordagem da disciplina em si, resumida a conceitos teóricos e à história da literatura. Para Todorov, é verdade que o sentido da obra não se resume ao juízo puramente subjetivo do aluno, mas diz respeito a um trabalho de conhecimento. Portanto, para trilhar esse caminho, pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entretanto, em nenhum caso, o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim (2009, p. 31).

Em outras palavras, a informação especificamente literária deverá ser dosada naturalmente, com bom senso, aproveitada mais como uma ferramenta invisível para se chegar à complexidade e à riqueza expressiva do texto. Valorizar a leitura do texto literário na escola é, sobretudo, valorizar a percepção do leitor diante da plástica linguística e de sua

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conformação semântica e, concomitantemente, a relação que o discurso da arte literária estabelece com os discursos da vida. O panorama crítico traçado no início deste texto sinaliza a compartimentalização excessiva do ensino e lança, como desafio do século XXI, a religação dos saberes. Se quisermos alcançar isso, precisamos começar pelas Letras, atenuando a acentuada bipolaridade que se instalou na escola e nas universidades, em relação ao estudo/ensino da língua e da literatura.

referências ADAM, Jean-Michel; HEIDMANN, Ute. O texto Literário: por uma abordagem interdisciplinar. Trad. João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2011. ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. In: Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. _____. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. 6ª ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 2010. BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio. Brasília, 2000. _____. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. FARACO, Carlos Alberto. Um linguista e a literatura. In: BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010. p. 31-33. MAINGHENEAU, Dominique. O linguista e o discurso literário. Trad. Roberto LeiserBaronas. In: BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010. p. 28-31.

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______. Discurso literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006. MESCHONNIC, Henri. Plano de urgência para o ensino da teoria da linguagem. In: MORIN, Edgar (org.). A religação dos saberes. O desafio do século XXI. Trad. Flavia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 533-539. MORIN, Edgar (org.). A religação dos saberes. O desafio do século XXI. Trad. Flavia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. São Paulo: Difel, 2009. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Da infância à ciência: língua e literatura. In: BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010. p. 36-39. UEHARA, Helena.O Brasil de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Idéia Escrita, 2008. VERDELHO, Telmo. A língua e a literatura: reflexões para uma pedagogia coalescente. Revista de Estudos Literários, n. 3, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa, 2013. Dossiê: Ensino da Literatura, p. 13-54.

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LITERATURA E ENSINO: OS IMPACTOS DO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM) Gabriela Fernanda Cé Luft1 Desde a década de 1970, respondendo a um forte aumento do número de formados no ensino médio, o vestibular, prova de seleção para ingresso, transformou-se em critério informal de avaliação não apenas dos alunos, mas também das escolas, as quais passaram a adotar, em seus programas de ensino, os conteúdos cobrados no exame. A partir da segunda década do século XXI, assistimos à substituição dos tradicionais vestibulares por um vestibular único, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), de caráter nacional e, consequentemente, de abrangência consideravelmente maior, que tem repercutido amplamente nos níveis de ensino anteriores à universidade e ditado mudanças curriculares sobretudo para o ensino médio. Se de 1998 a 2008 o exame contava com 63 questões interdisciplinares de múltipla escolha aplicadas em um único caderno, e uma proposta de redação, a partir de 2009 o exame passou a ser constituído por uma redação e quatro provas objetivas, contendo cada uma 45 questões de múltipla escolha, totalizando 180, aplicadas em dois dias, a avaliar quatro áreas do conhecimento. A literatura foi incluída na área de “Linguagens, códigos e suas tecnologias”, juntamente com língua portuguesa, língua estrangeira moderna (inglês ou espanhol), artes, educação física e tecnologias da informação e da comunicação.

1 Doutora em Letras, com ênfase em Estudos de Literatura, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua no campus Porto Alegre do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). E-mail: gabiluft@gmail.com.

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teoria, prática e (in)disciplina

Desde o anúncio da reformulação da prova, as inscrições para o exame têm crescido ano após ano. Na medida em que cada vez mais as instituições de ensino superior têm substituído seus tradicionais processos seletivos pelo Enem, a tendência é de que ele se constitua como o novo paradigma a determinar os conteúdos a serem desenvolvidos no ensino médio, os quais, já em muitas escolas, traduzem-se unicamente na Matriz de Referência do exame. Assim como o vestibular unificado instaurado na década de 1970 impactou diretamente os programas de ensino nas escolas médias, o ENEM tende a gerar semelhante reflexo, induzindo, pois, a reformulação de currículos em todo o Brasil.

1 literatura: os números do exame nacional do ensino médio (enem) Na tentativa de identificar que sinais e/ou orientações o exame transmite ao ensino médio, procedemos a uma investigação das questões de literatura presentes em todas as edições da prova ocorridas até então. Analisamos, assim, as provas realizadas entre 1998 e 2014 – incluindo a prova “vazada” de 2009 (doravante 2009-1) e a prova com erros de impressão de 2010 (doravante 2010-1). Apresentamos, pois, os números a que chegamos:

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literatura e ensino: os impactos do exame nacional do ensino médio (enem)

Evolução numérica das questões de literatura: entre 1998 e 2014, foram 19 as provas elaboradas, totalizando 2.133 questões. Destas, 200 envolvem literatura, o que corresponde a 9,4% do total. O gráfico a seguir melhor transparece a evolução anual do número de questões, em que a queda dos números após 2008 fica evidente:

Figura 1 – Percentual de questões de literatura nas provas do Enem (1998 a 2014)

Fonte: Elaborada pela autora.

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Categorias das questões de literatura: eliminadas, na estrutura do exame, as barreiras entre as usuais disciplinas presentes no ensino médio, a filosofia do ENEM propaga o diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. A fim de verificar, na prática, quais os campos com que a literatura mais se relaciona, agrupamos as 200 questões encontradas em cinco categorias: questões de literatura stricto sensu (envolvem história da literatura, análise formal e/ou interpretação do texto literário, identificação de figuras de linguagem, etc., ou seja, trata-se de questões normalmente encontradas em provas de literatura de vestibulares tradicionais), questões de literatura e língua, questões de literatura e humanidades, questões de literatura e artes e questões de literatura e ciências. Estabelecida a categorização, chegamos aos seguintes números:

Figura 2 – Categorias das questões de literatura do ENEM (1998 a 2014)

Fonte: Elaborada pela autora.

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literatura e ensino: os impactos do exame nacional do ensino médio (enem)

Se 52% correspondem a questões de literatura stricto sensu, isso significa que, nas 48% restantes – ou seja, em quase metade das perguntas –, os textos literários são utilizados como pretexto para questões linguísticas, artísticas, históricas ou científicas, ou seja, adquirem caráter secundário, podendo ser facilmente substituídos por outros textos. •

Períodos literários mais recorrentes: para realizar o levantamento dos períodos literários a que estão vinculados os textos, consideramos fragmentos de romances, contos, crônicas, poemas e textos dramáticos. Podemos visualizar a primazia do Modernismo e da prosa e da poesia contemporâneas frente a períodos anteriores a 1900 por meio do seguinte gráfico: Figura 3 – Períodos literários mais recorrentes nas questões de literatura do ENEM (1998 a 2014)

Fonte: Elaborada pela autora.

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teoria, prática e (in)disciplina

Autores mais recorrentes: nas 200 questões de literatura, considerando-se romancistas, poetas, cronistas, contistas, cancionistas, dramaturgos e críticos literários, há a ocorrência, entre 1998 e 2014, de 124 autores distintos. No gráfico abaixo, listamos os autores com três ou mais ocorrências: Figura 4 – Autores mais recorrentes nas questões de literatura das provas do Enem (1998 a 2014)

Fonte: Elaborada pela autora.

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literatura e ensino: os impactos do exame nacional do ensino médio (enem)

Considerada a totalidade do grupo, ou seja, os 124 autores, chegamos ao seguinte agrupamento: Figura 5 – O cânone do Enem (1998 a 2014)

Fonte: Elaborada pela autora.

Gêneros predominantes: os dados relativos aos autores mais recorrentes vão ao encontro dos gêneros que identificamos como predominantes, dado que poemas e letras de canção, somados, correspondem a 52% das questões de literatura, enquanto romances, contos e crônicas somam, juntos, 37%, o que revela um peso consideravelmente maior para os gêneros líricos em comparação aos narrativos.

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LITERATURA NA ESCOLA:

teoria, prática e (in)disciplina

Figura 6 – Gêneros nas questões de literatura do Enem (1998 a 2014)

Fonte: Elaborada pela autora.

A predominância do gênero lírico, cremos, não é gratuita, e ensaiamos uma hipótese para tamanha vantagem: como o programa do exame não prevê a indicação de leituras prévias aos candidatos, a verificação de conhecimentos relativos a romances, por exemplo, é dificultada. Logo, opta-se por textos curtos, que, justamente por sua extensão reduzida, não exigem leituras anteriores, podendo ser lidos na íntegra no momento de resolução das questões. •

Número de questões que prescindem do ensino de literatura: investigamos quais questões de literatura prescindem de seu ensino, ou seja, quais podem ser respondidas sem que o aluno tenha assistido a uma única aula de literatura na vida.

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literatura e ensino: os impactos do exame nacional do ensino médio (enem) Tabela 1 – Número de questões de literatura do ENEM que prescindem do ensino da disciplina (1998 a 2014)

ano da prova do enem

número de questões que prescindem do ensino de literatura

percentual

total de questões do enem

1998

4 de 6

67%

63

1999

4 de 6

67%

63

2000

8 de 8

100%

63

2001

7 de 8

88%

63

2002

7 de 9

78%

63

2003

7 de 9

78%

63

2004

6 de 7

86%

63

2005

11 de 12

92%

63

2006

6 de 9

67%

63

2007

7 de 10

70%

63

2008

2 de 4

50%

63

2009-1

17 de 20

85%

180

2009-2

10 de 16

63%

180

2010-1

8 de 9

89%

180

2010-2

7 de 11

63%

180

2011

9 de 10

90%

180

2012

19 de 20

95%

180

2013

6 de 10

60%

180

2014

15 de 16

94%

180

total

160 de 200

80%

2.133

Fonte: Elaborado pela autora.

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É aqui que reside o dado mais alarmante de nossa pesquisa: as aulas de literatura são dispensáveis para se responder cerca de 80% das questões, as quais, em sua maioria, exigem do aluno apenas a interpretação direta de um texto, geralmente um poema; nada de relações históricas entre autores ou períodos literários, de contextos estéticos, de traços de teoria literária, enfim, de muitos dos conteúdos arrolados na Matriz de Referência do exame.

2 das consequências do enem para o ensino de literatura A partir dos conteúdos e orientações arrolados na Matriz de Referência do ENEM, muitas escolas de ensino médio elaboram os seus programas em tópicos mais específicos, espelhando-se, principalmente, em questões de provas de edições anteriores. Como o ensino médio costuma se moldar às demandas dos processos seletivos de ingresso às universidades – basta lembrar que o novo formato assumido pelo Enem, entre seus objetivos, visa induzir à reestruturação de currículos no nível médio –, as consequências do panorama que apresentamos até aqui tendem a ser preocupantes.

2.1 o texto literário negligenciado em sua especificidade: a primazia da leitura funcional em detrimento da leitura cultural Para melhor explicitarmos a filosofia que rege grande parte das questões do exame, retomaremos, a partir de Assumção (2013), dois conceitos fundamentais: o de leitura cultural e o de leitura funcional. Enquanto o texto literário não possui uma função pré-estabelecida, ou seja, é avesso ao pragmatismo, o texto funcional é essencialmente

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utilitário. Na leitura pragmática e utilitária realizada pelo homem-massa, o leitor é apenas um decifrador de signos, seja no teclado do telefone, no trânsito ou em frente ao micro-ondas, com respeito a fins cada vez mais restritos, instrumentais. O livro, tido como “instrumento por excelência do indivíduo ilustrado burguês, perde lugar para a informação em fragmentos, instantânea e quente do século XXI” (ASSUMÇÃO, 2013, p. 26). Aplicando os conceitos sintetizados por Assumção às questões de literatura propostas pelo exame, constatamos que elas são essencialmente funcionais, ou seja, pouca atenção dão à tradição literária culta, privilegiando uma abordagem que avalia a destreza da leitura operacional. Em nome do combate à dicotomia língua/literatura, anulam a diferença ontológica entre ambas: apenas o aspecto funcional da língua é documentado, traduzido na capacidade de se decodificar eficazmente o sentido de múltiplos textos escritos, e não a sua dimensão estética. As questões, muitas vezes, bastam-se na leitura direta de textos, insistindo na vertente da linguagem e não da cultura veiculada por intermédio da literatura, ou seja, prestigia-se mais a literatura enquanto leitura do que a literatura enquanto aprendizagem cultural. A primeira vertente – utilizada com maior frequência no exame – é mais simples, pois pressupõe somente a leitura direta de um texto, seja ele uma canção, um conto ou um poema. Pensar a literatura como cultura, no entanto, é uma atividade mais complexa, uma vez que implica a análise de um texto por aspectos históricos e de enredo, por exemplo. Privilegiando a literatura unicamente como leitura, perde-se muito do vasto patrimônio cultural letrado existente e ao qual todos devem ter acesso. Para Colomer, a questão mantém relação direta com a “[…] mudança das funções sociais da literatura durante a segunda metade do século XX e o da redução de seu espaço escolar em função da leitura ‘funcional’, do ensino da língua e das demais matérias do currículo” (COLOMER, 2007,

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p. 104). Contudo, ainda de acordo com a pesquisadora espanhola, “[…] é possível afirmar que a restrição escolar da literatura não parece ter sido benéfica para a formação linguística dos alunos” (COLOMER, 2007, p. 36). De uma maneira geral, as provas do exame não fogem ao pragmatismo da língua e não dão conta do que é essencialmente literário. Ao negligenciar a literatura em sua especificidade, o Enem põe em risco aquilo que é mais caro à disciplina, a autonomia dos textos literários, os quais são utilizados sobretudo como pontos de partida para análises linguísticas ou para a verificação de conhecimentos relativos a outras áreas. O peso excessivo dado à estilística – uma das possibilidades para análise do texto literário, mas não um meio exclusivo – reduz, e muito, o aproveitamento do conhecimento, uma vez que as discussões tendem a voltar-se mais para a língua e seus recursos expressivos do que para a literatura propriamente dita. Nas palavras de Lígia Regina Calado de Medeiros, A literatura quase sempre é utilizada na avaliação “a serviço” de outros conhecimentos, quais sejam: estudo da língua, da linguagem, do lúdico, de outras artes, tudo, menos o objeto pelo que apresenta de aspectos literários. […] é sob o risco, ainda, de comprometimento da autonomia que a literatura figura em tão referenciada avaliação (MEDEIROS, 2012, p. 1). Isso significa que, para a avaliação de uma mesma habilidade, tanto serve um texto literário, a capa de uma revista ou uma placa de trânsito. Um poema de Drummond ou um conto de Machado, por exemplo, são equiparados a uma reportagem de jornal ou a um anúncio publicitário. Contudo, conforme o crítico argentino Mempo Giardinelli, que há anos tem se dedicado ao fomento do livro e da leitura, Nas últimas décadas, quando começaram a circular certas modas pedagógicas, também se produziu uma espécie de carnaval de leituras. […] De repente, lentamente, tudo foi

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literatura e ensino: os impactos do exame nacional do ensino médio (enem) validado, se viveu uma descomedida invasão de títulos e autores, […], e até se celebrou uma evidente e festejada desordem nas leituras porque – se dizia – “o que importa é ler” e então era melhor que cada um lesse e deixasse ler o que quisesse. “Tanto faz o que as pessoas leiam, desde que leiam”, parecia ser a senha. Mas essa “liberdade” nas escolas foi uma miragem. A ordem tradicional […] se abriu a uma diversidade desordenada e caótica que, a julgar pelos resultados, não serviu para grande coisa (GIARDINELLI, 2010, p. 99).

Para Zilberman, “[…] não se formam leitores quando a literatura é […] miniaturizada na condição de texto ou diluída em generalidades pouco esclarecedoras” (ZILBERMAN, 2009, p. 18). Isso não significa que defendemos a aula de literatura que se contenta em fazer sua parte pautada unicamente pelo enciclopedismo, pelo acúmulo gratuito de conhecimentos; nem queremos restaurar uma suposta idade de ouro, dos tempos anteriores a 1970, em que escassos alunos eram adestrados apenas na tradição classicizante, largamente conservadora. Da mesma forma, não nos interessa resgatar certas provas de vestibulares, muitas consolidadas há décadas, que obrigam adolescentes a percorrer, entender e decorar, em três anos, uma massa colossal de informações, com prejuízo evidente da vivência artística, para não falar de outras lamentáveis privações. Porém, também não estamos de acordo com a ideia de que basta ler qualquer texto para ser leitor, como parece preconizar a ideologia ora dominante, segundo a qual o livro e a tradição literária em sentido estrito não devem ser mais valorizados do que a leitura de cartazes de rua, revistas, enciclopédias, blogs, bulas de remédio e panfletos políticos, por exemplo. Se todas as disciplinas (incluindo a literatura) forem mensuradas por meio de uma mesma regra, corre-se o risco de tratar José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Erico Verissimo ou João Guimarães Rosa como tecnologias de entretenimento – que podem ser substituídas com a chegada de novas diversões – e não como os patrimônios culturais que são e aos quais todo

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cidadão tem direito. Contudo, “[…] a leitura literária que a escola objetiva processar visa mais que simplesmente ao entretenimento que a leitura de fruição proporciona” (COSSON, 2009, p. 26). Muitas vezes, talvez na maioria das vezes, as aulas de literatura no ensino médio são a única porta de entrada do aluno para todo o universo da cultura e da arte, em sentido amplo, o que inclui cinema, teatro e mesmo música e demais artes. Por meio delas, pode-se entender o modo como homens e mulheres se incumbiram de criar, ao longo do tempo, poemas e histórias que dizem tanto de si quanto da época em que viveram, ajudando a melhor explicar a trajetória da humanidade. Em outras palavras, é nas escolas brasileiras, hoje, que milhões de estudantes, sem trato nem intimidade com o mundo dos livros – o que inclui a literatura propriamente dita –, vivem a primeira experiência cultural letrada e estabelecem contato com outras artes. Com a abordagem adotada pelo ENEM, além de limitarmos esse acesso, perdemos parte importante, talvez fundamental, da formação cultural dos alunos nesses campos, afinal “[…] não se progride colocando a leitura literária como uma a mais entre as mil formas de leitura” (COLOMER, 2007, p. 115).

2.2 a excessiva centralidade no modernismo É gritante o número de questões, ao longo de todas as edições do ENEM, que alude a autores vinculados ao Modernismo ou que faz referência explícita ao período. Basta ver, por exemplo, a quantidade considerável de textos de autoria da dupla Mário e Oswald de Andrade presentes no exame. Ocorre que, na atual descrição da literatura e da cultura brasileiras, há uma centralidade desmedida no Modernismo de feição paulistana. Contudo, já no século XXI, com uma produção literária no país de alta importância e considerável variedade, não é possível

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continuar tratando a literatura do século XX como centrada apenas no Modernismo – fenômeno sem dúvida relevante, mas não tão importante como tem sido apresentado não apenas pelo ENEM, mas também pelos manuais didáticos. É preciso ultrapassar a noção ingênua de que tudo o que aconteceu no século passado foi ou antecedente, ou consequente ao Modernismo, de maneira a superar a centralidade demasiada que o termo ocupa.

2.3 a falta de indicação de leituras mínimas obrigatórias, ou os indícios do desabamento do cânone No texto “Literatura e cultura: lugares desmarcados e ensino em crise”, Eliana Yunes, ao discutir criticamente os perigos que ameaçam o ensino da literatura na época contemporânea, em que a particularidade do literário parece evaporar no lugar comum do “cultural”, posiciona-se favoravelmente à manutenção de certas práticas, as quais considera imprescindíveis: […] que permaneçam as listas de livros a serem lidos para os vestibulares na maior parte das universidades do país e que, além disto, não conste a supressão dos estudos de literatura mesmo onde, vitoriosos, os estudos culturais despontam – efetivamente, em discussão mais teórica que aplicada, na maior parte dos institutos e faculdades. (YUNES, 2008, p. 64, grifo nosso) Em 2008, ano em que o texto foi publicado, a maioria dos vestibulares, por meio da indicação de listas de livros, ainda cobrava a leitura de determinadas obras literárias. No ano seguinte, contudo, o ENEM, de exame avaliativo, assumiu caráter seletivo. Estavam suprimidos grande parte dos vestibulares tradicionais, e, consequentemente, extintas, também, as chamadas listas de “leituras mínimas obrigatórias” previstas em provas de literatura.

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Discutida e questionada ainda hoje quanto ao significado de sua inserção nos exames vestibulares, ocorrida em 1977, a redação, ao contrário do que se esperava, não alterou a qualidade da expressão linguística do candidato ao ensino superior. É nesse contexto que a leitura surge como opção capaz de produzir tal mudança. O vestibular inicia a década de 1990, assim, inserindo a leitura entre seus requisitos, por meio da indicação de listas de obras da literatura em língua portuguesa, encaradas como possibilidades de ampliação do repertório cultural do aluno e de melhoria de seu desempenho linguístico. Para a leitura, especificamente, que vinha enfrentando sérias dificuldades para manter-se como um dos valores culturais da sociedade, fazer parte das exigências do vestibular representou um modo de recuperar, se não todo, parte do seu desgastado prestígio. Ao ser recolocada em cena, adquiria o respaldo das instâncias de ensino superior, que legitimavam sua importância. Avalizada pela instituição acadêmica, observou-se, desde então, um movimento de resgate de seu valor. Nesse sentido, a presença da leitura obrigatória transformou o próprio sentido do exame. Mais do que atender à finalidade para a qual foram inicialmente propostas – a de melhorar a produção escrita dos candidatos –, as listas promovem uma forma nova de valorização do ensino e do consumo de literatura. Nas palavras de Andrade, “o vestibular, como instância que produz referências, principalmente em relação aos candidatos, ao indicar a leitura como conteúdo para suas provas, resgatoulhe o sentido, conferiu-lhe valor” (ANDRADE, 2003, p. 40-41). Em pesquisa semelhante à de Andrade, cuja pesquisa voltou-se para a análise da recepção das obras literárias indicadas anualmente pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Quadros buscou verificar se os vestibulares e demais processos seletivos, como o Programa Experimental de Ingresso ao Ensino Superior (PEIES), proposto pela

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Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), constituem-se como incentivo ou barreira para o ensino de literatura na escola. Segundo a autora, “a presença de algumas leituras indicadas para o PEIES e vestibular entre as obras citadas remete a uma possível influência da escola e dos professores, pois devido à necessidade de realizar os vestibulares, alguns alunos leem os textos integralmente” (QUADROS, 2007, p. 36). Com o ENEM, contudo, não há indicações de leitura, o que é, lamentavelmente, uma perda. Diferentemente de vestibulares tradicionais, que desde a década de 1990, determinam autores e obras a serem lidos, o exame trabalha com uma perspectiva generalista, sem indicação alguma de leitura. A queda da lista com indicações de obras literárias para leitura prévia dos candidatos pode trazer como consequência o retorno – ou o reforço – de um modelo de ensino centrado quase que exclusivamente no estudo da história literária, perspectiva que vai de encontro não apenas aos parâmetros e orientações curriculares nacionais, mas também às diretrizes do próprio exame. Além disso, o ENEM e sua abordagem por vezes iliterária da literatura, reforça as evidências de que o cânone, em crise, perdeu força ou, até mesmo, ruiu. De fato, muitas das práticas de ensino de literatura atreladas ao cânone mostraram-se, ao longo das últimas décadas, um desserviço: em vez de propiciar a formação de leitores, causaram situações opostas, reproduzidas no desenvolvimento de sentimentos de aversão aos livros, por exemplo. Contudo, se o problema estava relacionado essencialmente às práticas, não seria o caso de se pensar na reformulação das ações dos professores em sala de aula, e não simplesmente partir para a eliminação da leitura de clássicos? Aceitar a existência do cânone como herança cultural que precisa ser trabalhada não implica, porém, prender-se ao passado em uma atitude sacralizadora das obras literárias. Conforme Chiappini Leite (1983), o professor de literatura não pode subscrever o preconceito do texto

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literário como monumento, posto na sala de aula apenas para reverência e admiração do gênio humano, da mesma forma que a adoção de obras contemporâneas não pode levar à perda da historicidade da língua e da cultura. Zilberman assim sintetiza as principais alterações concernentes ao ensino literário ao longo do tempo: A trajetória do ensino da literatura mostra que, se, por muitos séculos, privilegiou-se o conhecimento dos clássicos e do cânone consagrado, nas últimas décadas, primeiro jogou-se ao mar a carga da história; depois, foi abandonada a própria literatura, desfeita na definição imprecisa de texto (ZILBERMAN, 2009, p. 18).

Por mais controvérsias de que possa ser alvo, o cânone é responsável por parte de nossa identidade cultural e não há maneira de atingirmos uma maturidade enquanto leitores sem dialogarmos com essa herança – seja para reformá-la ou ampliá-la. Pensar em letramento literário simplesmente refutando-se o cânone torna-se, assim, inviável. Para Colomer, “[…] a consideração de um conjunto de obras como ‘clássico’ torna-se necessária para a sociedade e para a tarefa escolar de formar novos cidadãos dessa coletividade” (COLOMER, 2007, p. 154-155). Para Italo Calvino, porém, todas essas reticências e dificuldades devem convergir para a união de esforços em prol da manutenção – ou do retorno – dos clássicos da história literária no espaço escolar: “[…] a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os ‘seus’ clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção […]” (CALVINO, 2004, p. 12-13). A escola precisa, pois, apresentar, de forma qualificada, textos clássicos da literatura, que atravessaram a barreira do tempo e que ainda tem o que dizer, cuja leitura, se não realizada em sala de aula, sob o olhar

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atento e orientador de um professor-leitor, muitas vezes jamais ocorrerá. Afinal, “[…] o simples fato de saber ler não transforma o indivíduo em leitor maduro. Ao contrário, crescemos como leitores quando somos desafiados por leituras progressivamente mais complexas” (COSSON, 2009, p. 35). Assegurado o lugar dos clássicos em sala de aula, também os processos seletivos – sejam os vestibulares tradicionais, seja o ENEM – não podem se eximir de garantir-lhes o devido e merecido espaço.

2.4 o currículo nacional e a aversão a regionalismos Entre os 124 autores que se fizeram presentes nas 19 edições do exame ocorridas entre 1998 e 2014, foram oito os gaúchos: Cyro Martins, Erico Verissimo, Luis Fernando Verissimo, Lya Luft, Mario Quintana, Martha Medeiros, Moacyr Scliar e Raymundo Faoro. Quadros, ao realizar entrevistas com alunos e professores de escolas públicas e privadas de Santa Maria (RS), constatou que o estudo da chamada literatura regional era “fator motivador” (QUADROS, 2007, p. 28) para o trabalho com o texto literário em sala de aula. Entretanto, em nome de uma base nacional de currículo, o que implica não abarcar regionalismos, a filosofia do ENEM não permite, por exemplo, espaço para João Simões Lopes Neto, autor de Contos gauchescos. Porém, em que consiste, de acordo com a concepção do MEC, regionalismo, não foi esclarecido. Trata-se, pois, de um conceito implícito e não debatido e que, por isso mesmo, “[…] merece ser submetido a uma leitura mais histórica, a uma leitura rigorosamente materialista, para além das idealidades que tantas vezes têm impedido sua mera visibilidade” (FISCHER, 2007, p. 138). Assim, dada a expansão do exame e a crescente utilização do Sistema de Seleção Unificada, o SiSU, não é de se estranhar que futuras gerações de gaúchos deixem de conhecer a riqueza dos escritos do autor pelotense – perda, sem dúvida, lastimável.

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Parte do que se chama “nacional” é, contudo, o conteúdo de uma região econômica e culturalmente dominantes e, nas últimas décadas, tivemos avanços importantes no estudo das mais variadas áreas do saber devido, exatamente, às peculiaridades regionais. Basta pensar, por exemplo, na melhor compreensão das revoltas regenciais, nos estudos sobre as sociedades quilombolas e indígenas e na inserção de autores regionais de literatura em ambiente escolar. De uma forma ou de outra, a popularização do saber regional se deve e muito à existência de um currículo que garanta sua inclusão nos conteúdos do ensino médio. Não basta dizer que a população de uma determinada região vai se interessar pelos saberes locais unicamente pelo fato de serem locais. Sua sistematização, didatização e divulgação são importantes, e sua inserção em um currículo melhor possibilita isso. Ainda com relação à problemática, as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, publicadas pelo MEC em 2006, consideram a eliminação das “peculiaridades regionais” (BRASIL, 2006, p. 76) como ponto negativo da adoção de uma perspectiva historicista para o ensino de literatura em sala de aula. É no mínimo contraditório, agora, constatar que uma das máximas do ENEM é, justamente, não ceder espaço aos “regionalismos”. Se a eliminação das peculiaridades regionais é encarada como uma perda, de que maneira e até que ponto uma prova de caráter nacional poderia viabilizar a inserção de autores locais? Sem uma proposta plausivelmente didatizada, alijando do processo autores regionais em nome de um conteúdo dito nacional, mais uma vez se faz valer a tradição centralista do Estado nacional brasileiro, herdeira do Estado português.

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3 considerações finais: em defesa do direito à literatura Mesmo que seja voluntário o caráter de participação do estudante concluinte do ensino médio no ENEM, o exame tem alcançado a adesão de um número bastante representativo de instituições, que aproveitam os resultados da prova para organizar os seus ingressos via SiSU. Todavia, se a preocupação com o ensino de literatura nas escolas se basear somente em aspectos pragmáticos relativos à preparação para a participação na prova do ENEM, e não se estender a um contato mais consistente com o texto literário, os alunos chegarão às universidades, sim, mas com sérias lacunas em suas formações. Sem formação humanística suficiente, e condenados todos ao livro didático, teremos linguagens em doses homeopáticas e amostras grátis de textos os mais diversos que não chegarão a levar os leitores a qualquer interatividade reflexiva e crítica. Podemos, dado o poder normativo do exame, praticamente antever a abolição das aulas de literatura na escola (aulas em que se apresenta a tradição literária, ou pelo lado formal, ou pelo lado dos contextos históricos e estéticos, ou pelo lado da leitura da tradição literária em si, isto é, das linhagens de gênero e tema, os romances, os contos, a poesia épica, a literatura nacionalista, etc.). São relegados critérios de leitura, teoria e análise de textos literários em suas especificidades. Na prova de 2000, por exemplo, todas as questões envolvendo textos literários podem ser respondidas sem que o aluno tenha assistido a qualquer aula de literatura; em 2014, cuja prova já representa a “nova cara” do Enem, o mesmo ocorre com 94% das questões. Consequência: as escolas que se guiarem somente pelo ENEM – e não são poucas – estarão licenciadas a abolir as aulas de literatura, ou a criar programas de literatura que prescindam da leitura direta de textos literários. Somos contrários à ideia de que o ensino de literatura na escola deva 111


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se desenvolver com o fim único de garantir aos alunos bom desempenho no vestibular, ou, agora, a obtenção de bons índices no ENEM capazes de assegurar, via SiSU, alguma vaga no ensino superior. A escola pode – e deve – trabalhar com obras para além de processos seletivos, os quais, por mais que influenciem currículos e práticas de ensino, não devem ser encarados como limitadores do trabalho docente em sala de aula. Contudo, não podemos esquecer que uma das bandeiras do MEC, ao reformular o exame e torná-lo o grande e virtual único vestibular do país, é, especialmente, gerar parâmetros para induzir a reformulação e a reestruturação dos currículos do ensino médio. Seria interessante, nesse sentido, que cada disciplina refizesse a mesma pergunta: o que o ENEM está sinalizando e/ou impondo para o estudo de sua matéria? Na literatura, está claro que o estudante precisa demonstrar essencialmente a habilidade de decodificar textos (nesse sentido, Drummond está na mesma posição de uma placa de ônibus ou de um discurso político, por exemplo). Não importa que o aluno reflita sobre os textos em sua dimensão estética ou que os entenda em sua historicidade, e isso é certamente uma perda. Nas escolas, preocupadas em obter êxito no exame, também não será mais exigido que o aluno entenda e apreenda a literatura? E onde esse estudante entrará em contato com o patrimônio literário e cultural? Quais clássicos ou quais textos ler, quando os que surgem na prova são escolhidos unicamente em nome da aferição de certas habilidades e competências? Em “O direito à literatura”, conferência proferida em 1988 por Antonio Candido, a arte literária é situada no rol de “bens incompressíveis” (CANDIDO, 2004, p. 173), ou seja, aqueles que não podem ser negados a ninguém, ou por assegurarem a sobrevivência física em níveis decentes (alimentação, moradia, vestuário, saúde, entre outros), ou por garantirem a integridade espiritual (o direito à opinião, ao lazer e à arte, por exemplo).

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A literatura corresponde, assim, a uma “necessidade universal, que precisa sersatisfeita e cuja satisfação constitui um direito” (CANDIDO, 2004, p. 175). Ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade […]” (CANDIDO, 2004, p. 175), tornando-o mais compreensivo para a natureza, a sociedade e o seu semelhante. Esses são os motivos pelos quais “nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de educação e instrução, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo” (CANDIDO, 2004, p. 175, grifo nosso). Desde o início do século, porém, em vez da afirmação da literatura nos programas de ensino, assistimos ao oposto, ou seja, à gradativa perda de seu espaço. Se “cada época e cada cultura fixam os critérios de incompressibilidade” (CANDIDO, 2004, p. 173) e meios de “restringir ou ampliar a fruição deste bem humanizador” (CANDIDO, 2004, p. 186), pode-se afirmar que a sociedade brasileira, hoje, trata como se fossem compressíveis muitos bens que são incompressíveis, caso da literatura. Atualmente, a infinidade de informações culturais em circulação – em sua maioria superficiais, indiferenciadas, veiculadas sem nenhum critério de seleção e recebidas de modo aleatório – não redundam em cultura, no alto sentido. É como um antídoto a essa indiferenciação generalizada da informação que o texto literário deve ser ensinado, estudado e estimulado. A grande obra literária é meio de conhecimento, de crítica do real e exercício da liberdade imaginativa, sem a qual a história é vivida como fatalidade. O acesso às obras dotadas desses valores e ao instrumental que permite a sua melhor fruição é um direito ao qual corresponde um dever do professor e do crítico. É justamente a fruição da arte e da literatura, em todas as modalidades e em todos os níveis, direito inalienável, que julgamos estar em perigo com o modelo de abordagem do texto literário preconizado pelos documentos oficiais e praticado pelas provas do ENEM. Seja em

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nome da ordem, da liberdade ou do prazer, o certo é que a literatura não está sendo abordada de modo a garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos humaniza. Porém, apenas garantir a permanência da disciplina em sala de aula, o que implica alterações significativas nos parâmetros, orientações e avaliações oriundos do MEC, não é suficiente, já que, a partir daí, é outro o desafio que se impõe: “[…] mudar as formas de ensino da literatura. Se realmente queremos que os alunos sejam leitores, capazes de construir significados e inseri-los na trilha do pensamento próprio, autônomo, livre e audaz, é necessário mudar os planos de estudo e estimular mudanças nas atitudes dos docentes de língua e literatura […]” (GIARDINELLI, 2010, p. 123). Em outras palavras, para que a literatura cumpra seu papel humanizador, precisamos mudar os rumos da sua escolarização. No entanto, cabe ressaltar que a perda de espaço da literatura no ambiente escolar não deriva apenas das práticas ineficazes adotadas em sala de aula, com resultados pífios no que se refere à formação de leitores, mas também reflete – ou é reflexo de – recentes políticas públicas direcionadas ao ensino da disciplina. Nações com maior desenvolvimento econômico e social costumam apresentar índices elevados de leitura. E, historicamente, o hábito de leitura precede o desenvolvimento em outros campos. A quantidade e a qualidade do investimento público no estímulo e apreço pelo livro e pela literatura é, pois, um tema político, em favor do qual a sociedade deve ser sensibilizada e mobilizada. Afinal, conforme Giardinelli, “[…] não existe pior violência cultural que o processo de embrutecimento que se gera quando não se lê. Uma sociedade que não cuida de seus leitores, que não cuida de seus livros e de seus meios, que não guarda sua memória impressa […] é uma sociedade culturalmente suicida” (GIARDINELLI, 2010, p. 69). Assim, leitura e escola talvez devam recorrer à literatura para retomar seu rumo e reavaliar seus respectivos propósitos.

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FANTASMAS NO SÓTÃO: AS LETRAS COLONIAIS NA ESCOLA Marcus De Martini1 introdução Já faz algum tempo que venho refletindo sobre certas dificuldades do ensino em sala de aula da “literatura” produzida durante o período colonial, isto é, sobre o conteúdo geralmente trabalhado durante o primeiro ano do Ensino Médio, que vai, tradicionalmente, do chamado “Quinhentismo” ao fim do Arcadismo. Tal preocupação decorre, em primeiro lugar, de meu interesse pelas práticas letradas desse período, a cujo estudo tenho me dedicado desde o final da graduação, o que me faz, por motivos óbvios (ainda que muitos disso discordem), defender sua importância. E essa preocupação vem se acentuando com o tempo, pois noto que muitos de meus alunos de Literatura Brasileira, no Curso de Letras, pouco ou nada sabem a respeito do assunto, desconhecendo até mesmo a Carta de Caminha, ou autores constantemente presentes em provas de vestibular, a exemplo de Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira. Tal lacuna, vale dizer, não se limita às letras coloniais, mas talvez ali sejam mais profundas, pois há determinadas circunstâncias que tornam seu estudo na escola algo quase que impraticável. Minha experiência anterior como professor de Literatura Brasileira no Ensino Médio, como também a atual no Ensino Superior, têm me levado a constatar algumas das dificuldades dos alunos em lidar com os textos do período, assim como algumas das armadilhas que os programas e livros didáticos acabam 1 Doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professor adjunto do Departamento de Letras Vernáculas da mesma universidade.

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colocando ao professor, ainda que os docentes não tenham amiúde total ciência do terreno movediço em que se encontram ao trabalhar com textos anteriores ao século XIX. A partir disso, este texto abordará tais dificuldades, a fim de discutir o lugar (caso exista) das letras coloniais no ensino de literatura brasileira na escola, diante de sua conjuntura atual. Para tal, depois de apresentar uma breve alegoria sobre o tema, farei um pequeno panorama acerca da situação do ensino de literatura hoje, para poder pontuar os problemas enfrentados no estudo das letras coloniais na escola, como os impasses historiográficos e teóricos que lhe são peculiares, além das limitações provocadas pela legislação pertinente. Por fim, levando em conta esses problemas, tentarei discutir algumas possibilidades de lidar com a questão.

1 cenário Ao pensar nas letras coloniais na escola (mas também na universidade, é bom acrescentar...), não me ocorre outra imagem que não seja a de um sótão. Imagino um sótão poeirento, pouco iluminado, em que se adentra não sem um pouco de receio. O que há em um sótão do tipo que imagino, o sótão-clichê dos romances e filmes de terror de segunda categoria? Imagino ali, inicialmente, caixas. Muitas caixas. Dentro, papéis velhos. Talvez a contabilidade antiga de um empreendimento comercial já falido. Talvez seja ainda possível imaginar roupas há muito fora de moda, parcialmente devoradas por traças. Antigos ternos e coletes. O amarelecido vestido de noiva de uma avozinha. Brinquedos de uma criança hoje encanecida, que trocou a espada de madeira pela bengala de castão de osso. Permito-me acrescentar, porém, alguma dinamicidade e “vida” a esse quadro estático: fantasmas. Almas penadas que arrastam correntes pelo sótão, que gemem, que falam. A meu ver, a fantasmagoria cumpre basicamente duas funções:

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ativar a memória dos vivos, trazendo o passado de volta, ainda que como uma assombração, e lembrar os vivos de seu próprio fim, como um “memento mori”, lançando seus olhares para o futuro, também com assombro, por lembrar a todos de que somos seres históricos. Estando a morte assim de prontidão nas duas pontas, o resultado não pode ser outro que não o desconforto, ou o temor. Agora talvez possa tornar mais evidente minha alegoria: as letras coloniais ora aparecem como um museu, o sótão da casa da literatura brasileira, onde nos é apresentada uma pequena amostra de curiosas inutilidades, que, hoje, “graças a deus”, já estão superadas; ora como um fantasma, algo já morto, mas que insiste em nos assombrar, quando deveria descansar no limbo para todo o sempre, poupando-nos, pobres mortais, da feiura de sua morte. Por que essa alma penada insistiria em nos assombrar? Quem teria a coragem de exorcizá-la? Vejamos as causas desse cenário de horror.

2 algumas questões metodológicas 2.1 o ensino de literatura na escola Razzini (2000), ao analisar, em sua tese de doutorado, o percurso da Antologia Nacional, de Carlos de Laet e Fausto Barreto, mapeou a inclusão e o papel da disciplina de Literatura na vida escolar brasileira. Como explana a autora, se, até meados do século XIX, o modelo clássico permanecia, herança da Ratio Studiorum jesuítica, com as disciplinas de Retórica e Poética e com o estudo do latim, a partir de 1855, haverá a inclusão dos estudos de português nessas mesmas disciplinas, e, em consequência disso, de textos literários em língua portuguesa. Esses eram apresentados em antologias, inicialmente compostas por autores portugueses, a fim de serem utilizados nas aulas de Retórica e

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de Poética, e, por isso, eram divididos em gêneros, partindo de textos mais modernos, por serem mais fáceis, até os “clássicos”, os textos dos séculos XVI e XVII. Gradativamente, contudo, a perspectiva retórica vai sendo abandonada em detrimento da histórica, e, com a Proclamação da República, surge um interesse nacionalista muito acentuado, que redunda na promoção do estudo da história da literatura nacional, disciplina que vem a substituir a de Retórica e Poética, a partir da reforma de Benjamin Constant (MENDES, 2013, p. 49). Assim, a apresentação cronológica, ainda que em ordem inversa, como anteriormente, legitimou-se; a partir daí, como aponta Razzini, na Antologia Nacional, manual surgido para substituir os que haviam se tornado então ultrapassados, as informações retórico-poéticas vão dando lugar aos dados biobibliográficos, sendo que os excertos selecionados indicam uma preferência por uma temática mais nacionalista2. Contudo, o objetivo dessa obra, mais do que apresentar uma cronologia da literatura nacional, era prover os alunos de exemplos de bom uso da norma culta. Com idas e vindas, é só em 1943, com a Reforma Capanema, que a História da Literatura Brasileira torna-se a principal atividade das aulas de português nas três últimas séries do ensino secundário, sendo cobrada nos concursos vestibulares para ingresso em todos os cursos superiores. Não por acaso, tal promoção ocorria em um momento de elevado sentimento nacionalista (Estado Novo). Como resumem Santos e Jorge (2014, p. 180), “a importância de ensinar a literatura decorreu de duas funcionalidades a ela atribuídas: a aquisição e consolidação do conhecimento da língua; e a sua participação na construção de um imaginário nacional”. A partir de fins dos anos 1960, surgem os livros didáticos, que viriam a tornar obsoletas as antologias, como a Nacional, que deixará de ser publicada pouco depois disso. Como mostra Cereja (2004), a 2 Uma apresentação detalhada desse panorama é dada por Roberto Acízelo de Souza, no seu O império da eloquência: retórica e poética no Brasil oitocentista (Rio de Janeiro: EdUERJ: EDUFF, 1999.)

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consolidação dos manuais didáticos relaciona-se com a reforma do ensino, particularmente com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1o. e 2o. graus, de 1971. Com a reforma, teria havido uma expansão no ensino, o que acarretaria a necessidade de mais professores, que, por sua vez, passaram a ser mais atarefados, em virtude do ingresso de um número crescente de alunos. Por um lado, a necessidade de acolher mais pessoas nas escolas levaria à contratação de mais professores, muitos deles não muito qualificados, e, por outro, como consequência, ao imperativo de fornecer um material mais “pronto”, isto é, de fácil e rápida aplicação. Para a literatura, essa conjuntura foi catastrófica, pois a esquematização do conteúdo tolheu a autonomia do professor, sendo que o livro de português – como ainda hoje ocorre – geralmente englobava o conteúdo de Língua Portuguesa propriamente dita e de Literatura, ficando esta relegada a cada vez menos aulas por semana. A disciplina de Literatura, por sua vez, deveria dar conta da história da cultura nacional, continuando a herança historicista que vinha desde fins do século XIX. Ainda que os textos literários aparecessem no 1o. grau, a disciplina de Literatura era restrita ao 2o. grau, reduzida a um número exíguo de aulas (cf. SUASSUNA & NÓBREGA, 2013, p. 21). Em 1997, surgem os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) destinados ao ensino fundamental, e, em 1999, os Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio (PCNEM), trazendo a chamada área de “Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, que englobaria, dentre outras matérias, os conteúdos pertinentes à área de Língua Portuguesa e Literatura. Os documentos traziam diversos avanços, que davam conta do novo contexto dos estudos da linguagem, introduzindo, por isso, pontos ainda hoje polêmicos, como a discussão do cânone e da norma culta. A vagueza do documento a respeito de aspectos mais práticos da

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proposta, como o aparentemente “rebaixamento” dos gêneros literários, a serem considerados gêneros como quaisquer outros, suscitaram, além de polêmicas, a publicação dos Parâmetros curriculares Nacionais + Ensino Médio (PCN+), cujo subtítulo era “Orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais”. Contudo, como nota Cereja, O documento admite trabalhar com a história da literatura [considerada de interesse secundário no documento anterior], porém sem que haja a obrigatoriedade de abordar minuciosamente todas as escolas literárias e seus respectivos autores. Admite também trabalhar com as “obras clássicas” da nossa literatura, a despeito das críticas feitas pelos PCNEM a respeito do cânone literário (CEREJA, 2004, p. 188).

Essa relação meio paradoxal entre o modelo anterior de estudo historiográfico da literatura e a proposta inicial dos PCNs, que caracteriza o aparente “passo atrás” dos PCN+ em relação aos PCNs, mostra a força do modelo tradicional de ensino de literatura e o despreparo geral dos professores em pensar fora dele. Surgem então, em 2006, as Orientações Curriculares para o Ensino Mé­ dio - linguagens, códigos e suas tecnologias. O documento coloca a disciplina de Literatura como um capítulo à parte da de Língua Portuguesa, resgatando um pouco do papel da disciplina, praticamente apagado nos documentos anteriores (cf. VIEIRA, 2008, p. 453). As Orientações apresentam um texto de bom embasamento teórico, com maior clareza no tocante ao papel da literatura na escola, fornecendo assim ao professor orientações mais tangíveis. No entanto, muito embora os documentos oficiais em voga defendam a liberdade do professor na escolha dos textos a serem lidos em aula, como a de a escola construir seu currículo, a pressão dos concursos vestibulares ainda existentes (com seus programas específicos e listas obrigatórias de leitura, por exemplo), bem como do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), acabam influenciando no espaço dado às disciplinas na formação

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do aluno. No tocante a este último, surgido em 1998 e reformulado em 2009, quando adquiriu grande importância como substituto dos concursos vestibulares para ingresso nas instituições de ensino superior que optassem por adotá-lo, no todo ou em parte, para selecionarem seus candidatos, a presença (ou ausência) da Literatura nas provas tem causado polêmicas. Na Matriz de Referência do Exame, encontramos, no que toca especificamente à Literatura, uma ênfase nas relações entre literatura, história e sociedade. Ainda que o documento evite tocar explicitamente na questão dos Períodos Literários, como também fuja da velha tradição da relação “autor e obra”, a reincidência, no texto, de termos como “processo”, “processo social”, “continuidade”, “ruptura”, “formação nacional”, “patrimônio literário”, denota a preocupação em se relacionar literatura e sociedade, e o papel da primeira na formação da cultura nacional (na esteira do que a LDB de 1971 já trazia), remetendo, no que diz respeito à crítica literária brasileira, à tradição de Antonio Candido, como veremos a seguir. Portanto, ainda que a prova busque fugir da comumente mencionada “decoreba” da maioria dos livros didáticos, a perspectiva histórica persiste. Insistindo, porém, na capacidade de interpretação de textos pelo aluno, mais do em sua capacidade de memorização de informações - no que acerta -, a prova, porém, não raro, acaba por apresentar questões de literatura que prescindem, para sua resolução, de qualquer conhecimento literário específico, como o da própria historiografia. Foi o que concluíram Fischer et alli. (2012), ao analisarem as provas do ENEM de 1998 a 20103. Resta evidente, como mostram os autores, que o papel da Literatura na escola, a continuar assim a conjuntura criada pelo ENEM, irá diminuir cada vez mais, conclusão que encontra respaldo na própria história da disciplina, que ganhou relevo no currículo escolar apenas com a sua exigência nos vestibulares para todos os cursos superiores, como mostra Razzini (2000). 3 Estudo continuado por Gabriela Luft, conforme artigo publicado neste livro.

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Assim, para compreendermos a situação das letras coloniais nessa conjuntura, precisamos, primeiramente, fazer uma digressão sobre a tradição crítica a esse respeito, a fim de podermos retomar a questão sob um outro prisma. 2.2 as letras coloniais e a historiografia literária Como se sabe, com os românticos, surge o projeto de uma literatura brasileira, a diferenciar-se da portuguesa. Buscam-se então, dentre o legado colonial, autores cujas obras pudessem já demonstrar um sentido nativista latente, um louvor das diferenças da terra, o qual viria a aflorar com a independência e com o Romantismo que lhe foi coetâneo. Como ensina Antonio Candido: Daí, a concepção passou à crítica naturalista, e dela aos nossos dias, levando a conceber a literatura como processo retilíneo de abrasileiramento, por descoberta da realidade da terra ou recuperação de uma posição idealmente pré-portuguesa, quanto não antiportuguesa (2000, p. 89).

Candido procura, então, dar critérios mais consistentes para o estudo da Literatura Brasileira e, naquele que viria a se tornar um clássico da historiografia literária brasileira, sua Formação da Literatura Brasileira, parte de uma perspectiva sociológica, pensando-a a partir do tripé autor-público-obra. Pela conjugação desses três critérios, ter-se-ia a formação de um sistema literário autônomo, isto é, um sistema onde houvesse autores escrevendo para determinado público local, a formar uma tradição posterior, seja pela continuidade ou pela ruptura. No caso colonial, como afirma Candido, tal sistema não teria se configurado, uma vez que não haveria uma relação de continuidade e integração entre o “Barroco” baiano e o Arcadismo mineiro, por exemplo. Tal integração dar-se-ia apenas depois do Romantismo, quando então o sistema

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literário brasileiro ficaria plenamente configurado. Em vista disso, Candido considera que as obras escritas no período colonial, pelo menos até 1750 (data simbólica sugerida pelo autor), deveriam ser chamadas de “manifestações literárias” (CANDIDO, 1997, p. 25). A tese de Candido, porém, gerou polêmica. Afrânio Coutinho foi o primeiro a manifestar-se. Para Coutinho, que abraçava o “New Criticism” então em voga, o estudo da literatura deveria basear-se apenas em critérios estéticos. Daí seu repúdio inicial a classificações como a de “literatura colonial”, pois ali se encontrariam misturadas duas diferentes categorias, uma estética (literatura) e outra política (a de ter sido escrita durante o Brasil Colônia) (COUTINHO, 1960, p. 13). Para Coutinho, em vez de classificações híbridas, a literatura deveria ser pensada a partir dos Períodos Literários, como o “Barroco”. Assim, o que Candido chama de “manifestações literárias” seria, na verdade, literatura barroca produzida na Colônia, partidária de uma tradição literária europeia e muito semelhante à da matriz, mas não idêntica, pois sendo a literatura, para Coutinho, reflexo da realidade, e sendo a realidade brasileira diferente da portuguesa, a literatura produzida aqui seria irremediavelmente diferente da de qualquer outro lugar, ainda que o Brasil estivesse ligado politicamente a Portugal (ibid., p. 16-17). Mais ainda, para Coutinho, o “Barroco”, por sua fusão de opostos, teria proporcionado um meio ideal para a criação de uma literatura brasileira, pois proporcionaria a integração do elemento estrangeiro ao americano. Daí, essa tendência ao “Barroco”, o “barroquismo”, seria um definidor da cultura brasileira, a atravessar os séculos, pois, para Coutinho, ter-se-ia extinguido completamente apenas no início do século XIX, contrariando a tese de Candido de que o “Barroco” não teria criado uma tradição na Literatura Brasileira (ibid., p. 26). Por fim, vale notar, Coutinho foi o primeiro a criticar o anacronismo das categorias de Candido. Conforme contesta o primeiro, Candido partiria

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de noções modernas de autor, público e obra, totalmente estranhas ao funcionamento das práticas literárias do período colonial, repetindo, além disso, o critério crítico dos românticos, a ver a formação da literatura brasileira a partir dos árcades mineiros (ibid., 43). A aparente pouca relevância dada por Candido à produção literária colonial motivou também a crítica de Haroldo de Campos. O crítico literário e poeta concretista acusaria Candido de “sequestrar o Barroco” na literatura brasileira (1969). Para Campos, assim como, anteriormente, também para Coutinho, o Barroco seria um período-chave na história da literatura brasileira. Ainda que injustamente esquecido e depreciado, o Barroco teria subsistido subterraneamente por muito tempo, tendo encontrado sua devida ressonância apenas no século XX. Tal seria o caso da obra de Gregório de Matos, por exemplo, pois muitas das características da poesia barroca teriam sido reanimadas pela poesia moderna. Nesse sentido, Campos acusa Candido de continuar a leitura romântica da história, obliterando autores que não tivessem tido papel relevante na construção de uma ideia nacionalista de literatura brasileira (1969, p. 28 e segs.). É por esse caminho que vai também o pensamento de João Adolfo Hansen, um dos críticos literários brasileiros mais influentes no estudo das letras coloniais, desde o final do século XX até a atualidade. No entanto, contrariamente a Coutinho e Campos, Hansen evita o emprego de nomenclaturas que considera idealistas e apriorísticas, como a oposição classicismo/barroco, fruto de uma leitura positivista do tempo. O crítico propõe então resgatar as condições de composição dos textos do período colonial, fugindo da classificação proposta pelas teorias modernas, que acabariam por motivar erros de interpretação. Assim, como demonstra Hansen, elementos que são essenciais à compreensão desses textos, como sua orientação metafísica e religiosa, ou ainda a regulação retórica dos preceitos artísticos e das formas

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[...] são apagadas, propondo-se em seu lugar categorias estéticas exteriores, como a expressão da psicologia dos autores, a oposição “forma/conteúdo”, o realismo documental, a antecipação protonacionalista do Estado nacional brasileiro. Além disso, o uso naturalizado da noção de “Barroco” para classificar essa poesia e totalizar seu tempo generaliza transistoricamente as definições liberais, às vezes marxistas, das noções de “autor”, “obra” e “público” (HANSEN, 2006a, p. 19).

Nesse sentido, Hansen aprofunda a crítica antes já feita a Candido por Coutinho, pontuando que a “publicação” das “obras”, durante o período colonial, acontecia amiúde oralmente, havendo então a cultura do manuscrito. Do mesmo modo, o conceito de “autor”, de fundo psicologista, não se aplica ao período em questão, quando havia a imitação de uma auctoritas retórico-poética de determinado gênero (2006a, p. 24). Até mesmo a noção de “literatura” é estranha ao período. Como ensina Hansen, é no discurso do catolicismo do século XVI (em todos os aspectos, especialmente contrarreformista), é na formação dada pela Companhia de Jesus a seus noviços, é na configuração político-religiosa portuguesa e colonial, é sob a censura do Santo Ofício, que devemos encontrar os elementos que nos ajudam a compreender melhor a obra dos autores desse tempo, o que rótulos posteriores, como o de “Barroco”, não fazem senão ocultar4. A questão então é: como as letras coloniais são – ou deveriam ser – ensinadas na escola? Há alguma contiguidade entre a crítica literária e o ensino de literatura na escola? 2.3 as letras coloniais na escola Como visto anteriormente, é a partir da introdução do estudo da Língua Portuguesa no programa escolar que se pode rastrear o uso didático que se fez de textos em vernáculo. 4 No mesmo sentido, especialmente no tocante à discussão em torno do “Barroco”, ver Hansen (2006b).

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Razzini (2000), a fim de analisar a Antologia Nacional, apresenta materiais didáticos anteriores a ela, compostos esses a partir, pelo menos, de meados do século XIX. Tal investigação permite-nos vislumbrar o uso que se fez de textos de séculos anteriores e como certos autores foram, aos poucos, sendo esquecidos, enquanto outros permaneceram no cânone, ao mesmo tempo em que o interesse por determinados gêneros foi igualmente sofrendo o mesmo tipo de oscilação. Como exemplo, detenhamo-nos no século XVII, a fim de analisarmos o chamado “Barroco” e, dentro dele, o gênero do sermão. Numa época em que o Ensino Religioso fazia parte constante da formação escolar, ou, pelo menos, da educação em geral, da maioria das pessoas (entenda-se, no caso, a formação católica...), era de se esperar que o sermão tivesse um espaço cativo nas leituras dos alunos. Observe-se o seguinte exemplo, retirado por Razzini (2000) do manual de retórica do Cônego Costa Honorato, cuja 4ª edição é de 1879: 311. A eloquência sagrada ou do púlpito é destinada a pregar os altos mistérios da santa religião de Jesus Cristo, explicar seus dogmas, corrigir e repreender o vício, exortar os pecadores ao cumprimento dos seus deveres católicos e louvar a virtude [...] A eloquência sagrada, que era desconhecida aos antigos, tem produzido, depois do seu aparecimento, as obras mais admiráveis. Entre outras composições, compreende os sermões, os panegíricos e as orações fúnebres; entretanto os sermões pertencem ao gênero deliberativo, e os panegíricos e as orações fúnebres ao gênero demonstrativo. [...] 316. Sermão é um discurso regular e completo acerca de uma verdade religiosa ou de um dever cristão. - O objeto do orador sagrado, no sermão, é, pois, explicar os dogmas e a moral da religião; isto é, todas as verdades especulativas, que devemos crer, e todas as verdades práticas que devemos observar. Devese propor, ao mesmo tempo, a combater os erros opostos aos pontos de doutrina, que a Igreja ensina, e arrancar os vícios

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contrários às virtudes cristãs. Na frase de S. Agostinho, a pregação tem três fins: que a verdade seja conhecida, seja ouvida com prazer, e toque os corações (RAZZINI, 2000, p. 190).

Pelo excerto, duas coisas restam evidentes. Em primeiro lugar, o

texto parte do pressuposto de que a Igreja Católica é depositária de uma verdade divina, que esta é a de todos os usuários do manual (ou, pelo menos, deveria ser), e que esta mensagem – a de Cristo, conforme sua versão católica – é sublime, do que adviria o fato de a eloquência sagrada, isto é, da produção “literária” baseada nesses ensinamentos, ser capaz de produzir “as obras mais admiráveis”. Assim, um interesse no conteúdo versado em seus gêneros, como o sermão, o panegírico e a oração fúnebre, por si só, já justificaria a utilidade de seu estudo. Em segundo lugar, a apresentação retórica dos gêneros, conforme sistematizado na tradição greco-latina, sobretudo a partir de Aristóteles (o sermão pertence ao gênero deliberativo, o panegírico e a oração fúnebre ao epidíctico/ demonstrativo), garantem seu estudo a partir de categorias que lhe são de fato pertinentes e próprias. Evidentemente, como se tratava de um manual de retórica para ser usado em aulas dessa disciplina, o recurso a sermões de grandes autores proporcionaria, por exemplo, a análise da divisão retórica dos textos (exórdio, narração, confirmação etc.), como também do rol quase infinito de figuras e tropos. Contudo, como mostra Razzini (2000, p. 190), a Antologia Nacional, ainda que tenha partido dessa mesma tradição (católica e retórica), vai, em suas constantes reedições, mostrar o declínio da importância pedagógica do discurso religioso ao longo do século XX, subtraindo, aos poucos, de sua coletânea, excertos de vários pregadores. Com o declínio dos estudos retóricos e a laicização crescente da escola, a presença desses pregadores passa a se justificar apenas pelo uso exemplar que teriam feito da linguagem (ibid., p. 191). Mesmo assim, no rol de textos

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do século XVII presentes na Antologia, há um predomínio absoluto da oratória sagrada, destacando-se Antônio Vieira e Manuel Bernardes, seguida da epopeia e só então da poesia. Com a caducidade da Antologia e a sua substituição por manuais didáticos e pelo estudo historiográfico da literatura, que foi, como vimos, intensificandose no decorrer do século XX, as leituras comentadas de excertos, selecionados mormente de acordo com sua relevância moral ou patriótica, deram lugar ao estudo dos estilos de época; os excertos, então, acabam sendo selecionados a partir da clareza com que ilustrariam as características estilísticas do “Barroco”, por exemplo, no que diz respeito ao século XVII. Assim, como mostra Cereja (2004, p. 147), o texto literário cede lugar às informações históricas e estilísticas, passando a ocupar um lugar secundário. Vale notar que os PCNEM objetivaram justamente combater esse ensino transmissivo e baseado na memorização de informações. No entanto, no que toca às letras coloniais, a situação complica-se um pouco mais, pois a própria questão dos estilos de época é questionável. Assim, por exemplo, criou-se um rótulo histórico – “Quinhentismo” – para abarcar a literatura produzida no século XVI, no Brasil, que fica totalmente avulsa nos programas das escolas que não contemplam conteúdos de Literatura Portuguesa, caso da maioria esmagadora das escolas brasileiras, isto é, começa-se a estudar literatura “in media res”! Mas isso não é tudo. A distância temporal entre o texto e o leitor força a constante suplementação do conteúdo dos poucos fragmentos lidos por informações históricas, reflexo de mais um problema – quiçá o maior – das letras coloniais na escola: o anacronismo das ferramentas de análise fornecidas aos alunos. Como resume Cereja (2004), no 1o. ano do Ensino Médio, os alunos são apresentados a um arcabouço teórico para o estudo literário, que deveria guiar seus estudos daí em diante:

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Esses conceitos, no geral, são os seguintes: da Teoria Literária: linguagem literária/ linguagem referencial, gêneros literários, verso e prosa, noções de versificação, ponto de vista narrativo, etc; da Teoria da Comunicação e da Lingüística: os componentes do ato de fala (emissor, receptor, código, canal, mensagem, referente), funções da linguagem, signo/ significante/significado, denotação e conotação, polissemia, etc. (CEREJA, 2000, p. 74).

No geral, quase todos esses conceitos são problemáticos no que diz respeito às letras coloniais. As noções de versificação, como as figuras de linguagem, por serem resquício dos estudos da “velha” retórica, ainda são pertinentes, já que, como explica Hansen, as letras coloniais são sempre poético-retóricas. No entanto, a questão de gêneros literários, que deveria também ser útil, mostra-se complicada, pois esses são sempre apresentados a partir de sua visão romântica; já que a retórica foi deixada como disciplina para trás, os gêneros retóricos são excluídos da apresentação dos “gêneros literários”, no caso, “poéticos”, em sua versão romântica. Daí, por ironia, o primeiro texto da literatura brasileira a ser lido pelos alunos é A Carta de Caminha, texto esse pertencente ao gênero epistolar. O mesmo vale para o sermão, evidentemente. Como o estudo propriamente retórico das letras coloniais é inviável, como os recursos necessários para sua compreensão não são dados aos alunos, o que resta é a leitura dos textos por sua relevância documental, histórica (o primeiro contato com os nativos, as caraterísticas da terra descoberta, a questão da escravidão indígena, a corrupção no Brasil Colônia etc.), leitura que, não raro, acaba por se centrar mais na decodificação da linguagem5. Assim, tradicionalmente, o aluno é introduzido aos estudos literários a partir de uma sequência histórica, da descoberta do Brasil aos dias de hoje; no entanto, a “literatura” desse período não se coaduna 5 Temas abordados, com recorrência, na Carta de Caminha, nos sermões de Vieira (de Santo Antônio (aos peixes) e do Bom Ladrão, sobretudo) e na poesia satírica atribuída a Gregório de Matos, por exemplo.

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com os princípios de compreensão e análise geralmente propostos pelos materiais didáticos. Como se não bastasse, a distância temporal entre o Brasil Colônia e o atual, aliada a textos com uma escrita “mais difícil”, com um vocabulário mais rebuscado que o normalmente disponível aos alunos, com uma temática geralmente “antiquada”6 (a não ser quando haja algum interesse histórico-antropológico no texto), juntam-se todos para montar uma barreira quase que intransponível para o aluno. O mesmo diagnóstico parece se aplicar ao ENEM. Pelo estudo de Fischer et alii. (2012), constata-se que, das 164 questões de Literatura encontradas no ENEM pelos pesquisadores, entre 1998 e 2010, apenas nove7 abordavam textos literários anteriores ao Romantismo, o que contabiliza pouco mais de 5% das questões. Enquanto isso, o Modernismo é o período com mais questões na prova: cerca de 30% do total das questões avaliadas no período da pesquisa (ibid., p. 117)8. Haveria, portanto, uma deliberada intenção de se preterirem as letras coloniais na prova? Evidentemente que não. O fato é que as letras coloniais estão, em grande parte, na contramão do que se espera da literatura na escola, hoje. Segundo se encontra nas Orientações (2006, p. 53), o ensino de Literatura, como o de outras artes, deve servir, basicamente, para o “aprimoramento do educando como pessoa humana”, remetendo o texto ao inciso III do Artigo 35 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN no. 9.394/96). Para cumprir com esse objetivo, o professor deveria promover o “letramento literário” do aluno, isto é, criar 6 É o caso da maioria dos textos de temática religiosa, até mesmo da epopeia e da poesia bucólica. 7 Das nove questões, duas seriam sobre Classicismo, duas sobre Literatura Informativa, duas sobre Arcadismo, uma sobre Shakespeare, uma sobre Montaigne e uma sobre a Ilíada (cf. FISCHER et alii., 2012, p. 117-8). 8 A mesma situação persistiu, para não dizer que piorou, nos exames subsequentes, como mostra Gabriela Luft em artigo publicado neste livro, ao qual remeto novamente o leitor.

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condições para que o aluno se transforme em um leitor de fato, capaz de fruir a experiência estética propiciada pela leitura literária (ibid., p. 55). Tendo como objetivo a “humanização” do aluno, a disciplina de literatura perde um pouco de seu sentido. Como mostra Márcia Abreu (2006, p. 81), tal ideia surgiu de uma crítica à cultura de massa, que, contrariamente à “Grande Literatura”, promoveria a alienação dos indivíduos. Creio não haver dúvidas de que, em primeiro lugar, a ausência de leitura literária não “desumaniza” ninguém e de que, em segundo lugar, esse objetivo, aparentemente peculiar à Literatura, pode ser atingido, no Ensino Médio, também por outras vias: pela Filosofia, pela Sociologia e pela História, por exemplo. Mais ainda: as mesmas questões “humanas” que podem ser levantadas pela “Grande Literatura” podem ser suscitadas por filmes, seriados televisivos, histórias em quadrinhos, textos de opinião, reportagens; nesse sentido, os gêneros literários são apenas uma das formas de se veicular esse tipo de conteúdo, ainda que outrora tenha sido a mais valorizada, como sugeriam inicialmente os PCNs, contrariamente ao que essa “teoria da humanização literária” deixa implícito. Cosson (2007, p. 17) concorda que o sentido fundamental do estudo da literatura na escola seja seu papel humanizador, função para a qual o letramento literário seria imprescindível. Assim, o letramento literário partiria da seleção de textos “atuais”, ou seja, textos que, contemporâneos ou não, tenham significado para o leitor do tempo corrente, especialmente os provenientes do cânone, ainda que não apenas dele, proporcionando uma diversidade de obras, desde as mais próximas aos alunos, até as mais distantes, a fim de ampliar seus horizontes de leitura (ibid., p. 35). Mas o que seria a “literatura” de que falam as Orientações? Segundo o documento em questão, seriam, “em primeiro plano, as criações poéticas, dramáticas e ficcionais da cultura letrada” (2006, p. 60). Ademais, ainda que as Orientações incentivem o estudo de

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obras literárias internacionais, é a Literatura Brasileira que deve ser privilegiada (ibid., p. 73). Com base nessa afirmação, deveríamos concluir que o sermão está excluído do horizonte de estudo da literatura na escola e, com ele, a obra de Padre Antônio Vieira, uma das maiores figuras das letras lusobrasileiras, assim como a Carta de Caminha, para citar apenas dois autores fundamentais. Ainda que, como ensina o crítico literário brasileiro Alcir Pécora (2008), possamos pensar no sermão não apenas como um gênero retórico (sobretudo deliberativo, como já vimos), mas também, a partir de sua apresentação, como poético, e daí como parte do gênero dramático, não é nesse sentido que o sermão é apresentado aos alunos. Assim, atestamos ainda a permanência de fragmentos de sermões9 nos livros didáticos seja para servirem de exemplificação das características estilísticas dos Períodos Literários, como mostra Cereja (2000), seja pela própria inércia da tradição das antologias, pois os excertos frequentemente repetem-se de um manual para o outro, como mostram Razzini (2000) e Cosson (2005). Vale destacar, por exemplo, a tradição dos excertos do par “A morte de Moema” e “A morte de Lindoia”, passagens respectivamente do Caramuru e de O Uraguai, que, embora contemplem passagens menores desses dois poemas épicos (especialmente a primeira, pois Moema, contrariamente ao que sugere o destaque dado ao excerto, é uma personagem de pouca importância na epopeia), vêm, há mais de um século, pipocando nos manuais (RAZZINI, 2000, p. 16)10. 9 Como já mencionamos anteriormente, a presença de sermões foi diminuindo gradativamente nas antologias, desde o século XIX. Ao passo que encontrávamos vários pregadores anteriormente, dos séculos XVI até o XVIII, desde os maiores, como Vieira e Bernardes, até menos conhecidos, como Mont’Alverne, hoje o sermão só resiste nos manuais em virtude do estilo de Vieira e dos temas que tratou. A “lírica”, por sua vez, que ocupava um lugar pequeno nas antologias, hoje é o que recebe maior destaque, tanto no “Barroco”, como no “Arcadismo”, seguida da epopeia. 10 “A repetição dos trechos de Lindóia e de Moema, no século XIX e depois no século XX, até nossos dias, indica que o ensino de literatura, no que diz respeito a José Basílio e a Santa

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A análise da Matriz do ENEM, por sua vez, traz isso à tona. Na Competência 05, pertinente à Literatura, encontramos três habilidades a serem desenvolvidas pelo aluno. A primeira (H15) prescreve que o aluno deva ser capaz de “estabelecer relações entre o texto literário e o momento de sua produção, situando aspectos do contexto histórico, social e político”, o que confirma a leitura documental/referencial/histórica do texto literário. A segunda (H16) estabelece que o aluno deve saber “relacionar informações sobre concepções artísticas e procedimentos de construção do texto literário”, que parece confirmar a tão criticada leitura do texto literário para a identificação de características estilísticas, como mostra Cereja (2004). Por fim, a terceira (H17) estabelece que o aluno deva saber “reconhecer a presença de valores sociais e humanos atualizáveis e permanentes no patrimônio literário nacional”, o que, de acordo com o que trazem as Orientações, defende a leitura literária por seu interesse temático. Os problemas decorrentes das duas primeiras orientações, no tocante às letras coloniais, já foram mencionados. Detenhamo-nos agora na terceira.

3 entre a atualidade do antigo e o anacronismo, ou o impasse entre abuso e desuso Devemos retomar, rapidamente, algumas questões problemáticas que viemos apontando até aqui no tocante à abordagem das letras coloniais na escola. A primeira diz respeito à historiografia literária. Como vimos, a tradição da crítica de Candido (de valor inestimável, é bom ressaltar), que coloca a “literatura” feita no Brasil até, por volta de 1750, como apenas “manifestações literárias”, ou seja, uma etapa que foi superada com a formação de um sistema literário brasileiro, durante o Rita Durão, vem reproduzindo até hoje a receita da crítica romântica, preocupada com a construção de mitos que representassem o caráter nacional. De certa forma, tal reprodução determinou também o gosto dos leitores de antologias e livros didáticos, privilegiando uma recepção “romântica” para estas duas epopéias do século XVIII” (RAZZINI, 2000, p. 16).

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Romantismo, compreende-a a partir de uma perspectiva retroativa. Ainda que Coutinho a tenha criticado, o mesmo anacronismo lhe é peculiar, pois também lê as letras coloniais a partir de noções que lhe eram estranhas, a de “brasilidade” e a do “Barroco”. Na mesma esteira segue Campos, que repensa o Barroco a partir do estruturalismo de Jackobson, do Modernismo de Oswald de Andrade, da Tropicália e do Concretismo. Ainda que Hansen, dentre outros, tenha tentado trazer um novo olhar sobre as letras do período colonial, essa crítica ainda está muito distante da escola, como também do ENEM, que justamente mantém essa leitura do passado a partir do presente, isto é, propõe compreender a formação da literatura brasileira como uma série de etapas sucessivas, de uma literatura de feição portuguesa, até uma literatura tipicamente brasileira11. Além disso, uma orientação teórica da literatura, em primeiro lugar, de viés pós-romântico e pós-iluminista, propõe formas de compreensão da “literatura” que são estranhas às práticas letradas anteriores. Se o próprio conceito de “literatura” é complicado nesse período, o que dizer dos mecanismos de leitura desses textos? Sendo as letras coloniais sempre poético-retóricas, a ausência de retórica torna grande parte desses textos sem sentido para o aluno, ou faz com que o professor leia-os por outras vias de acesso, como forma de dar conta da organização histórica do livro didático (“é preciso ver a Carta de Caminha!”), sem atentar para a materialidade do texto propriamente dito, que passa a ser lido como receptáculo amorfo de uma mensagem de inegável valor referencial. Resta daí a leitura “documental”, apenas pelo conteúdo, tornando grande parte desses textos como subsídio para o estudo da história do Brasil Colonial, ou ainda, apenas como ilustrações para características de Períodos Literários, conforme já mencionamos. Por fim, tem-se a questão de a escolha de textos dar-se pelo fato de 11 Nos “Objetos de conhecimento associados às Matrizes de Referência” do ENEM, na parte relativa ao estudo do texto literário, encontramos “processos de formação literária e de formação nacional”.

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eles supostamente atualizarem “valores sociais e humanos permanentes” (cf. a Habilidade 17 do ENEM). E quais seriam esses valores? Fica claro, pelo que se lê nos documentos oficiais e no ENEM, que se trata de direitos humanos, liberdade, igualdade, democracia, combate ao preconceito de todo gênero (de orientação sexual, de “raça”, classe social etc.). Na linha da Análise do Discurso, pensa-se que, ao abordar temas como esses, expondo o caráter ideológico dessas crenças, estar-se-á formando um leitor “crítico”. E é possível encontrar esses temas em textos coloniais? Usemos novamente o exemplo do sermão. É sobejamente conhecida a defesa do indígena empreendida por Padre Antônio Vieira em sermões como o de Santo Antônio (“aos peixes”), peça oratória que, seja por sua temática, seja por sua construção engenhosa, já foi uma presença corriqueira em vestibulares de literatura. Pécora, porém, ao abordar o tema do índio em Vieira, mostra as diferentes formas pelas quais se pode analisá-lo. Por um lado, por sua defesa infatigável, há uma tradição que vê em Vieira um “progressista”, espécie de Iluminista avant-la-lettre, a defender a Igualdade e a Liberdade de todos os homens; por outro lado, haveria a posição contrária, a ver nessa defesa uma face amena e mistificadora de um processo consciente de escravização, exploração e destruição do indígena, em nome de uma ideologia colonialista (PÉCORA, 1992, p. 423-4). Ambas as posições, para Pécora, são equivocadas, pois seria necessário reconstruir as ideias de Vieira a partir das crenças em voga em seu próprio tempo, tarefa que o crítico literário empreende ao explanar sobre as tópicas da Segunda Escolástica a respeito da natureza do indígena, como a função que este, ao ser incorporado ao Estado Português, deveria ter e os compromissos que deveria assumir, como o seu papel no plano providencialista da história que Vieira cria estar atribuído a Portugal, para o que a Companhia de Jesus teria um papel fundamental (ibid., p. 424 e segs.). Como se vê, o tema do índio, em Vieira, passa à margem de valores modernos, surgidos após o século XVIII, que, para seu contexto, o 137


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de uma sociedade “sacral” e não leiga, seriam incompreensíveis, como o de igualdade “racial”, “liberdade”, “direitos humanos”, entre outros. Tendo isso em vista, entretanto, surge a questão de ser possível fazer-se essa mediação na escola, a qual, aliás, sequer ocorre, na maioria das vezes, nos Cursos de Letras. Teria o professor de falar sobre a Segunda Escolástica? Ou ainda, não poderia, portanto, o professor falar de preconceito, de identidade e diferença, de exploração, conceitos que fazem parte do mundo do aluno, ao tratar do Sermão aos Peixes, por exemplo? De fato, esse é o impasse em torno do qual gira todo este artigo e ao qual o estudo das letras coloniais deve responder. João Adolfo Hansen, numa entrevista em que respondeu a perguntas de vários intelectuais, foi questionado pelo crítico brasileiro Luís Costa Lima a respeito justamente desse assunto: como seria possível falar de “literatura barroca”, por exemplo, sem ser anacrônico ou recair num “estrito historismo”? Para Hansen: Talvez pudéssemos pensar sua questão levando em conta duas ordens de questões: 1.ª: para ler “poeticamente” a poesia de Gregório de Matos, hoje, é necessário conhecer a retórica aristotélico-latina, a teologia-política ibérica, a ética e os preceitos poéticos do conceito engenhoso do século XVII? É evidente que não. A história é outra e os preceitos que ordenaram as práticas de representação seiscentistas estão extintos desde o século XVIII iluminista, quando a legibilidade retórica foi definitivamente arruinada pelas duas revoluções. […] 2.ª: para determinar “historicamente” a orientação política e cultural dos valores-de-uso produzidos pelas leituras poéticas dessa poesia, é preciso conhecer os mesmos preceitos do século XVII? Evidentemente, sim. [...] Talvez um modo viável de nos aproximarmos dessas letras é considerar sua dispersão, não sua unidade, lendo-as segundo uma dupla operação: reconstituindo os valores-deuso produzidos nas apropriações delas desde o século XIX; e reconstituindo arqueologicamente os condicionamentos

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materiais e institucionais, os códigos bibliográficos e os sistemas de representação ou códigos lingüísticos que as constituíam em seu presente (HANSEN, 2005, p. 17).

A proposta de síntese de Hansen parece se aproximar da de Marisa Lajolo (1993, p. 109), quando afirma que a história da literatura brasileira deveria ser colocada em perspectiva, pois ela mesma é historicizável. Como afirma Lajolo: No afã de conjurar a tentação de reescrever a história meramente para canonizar os desaureolados e desaureolar os santificados, registre-se que inúmeras modalidades de escrita literarizável coexistem em todos os momentos, participando da arena onde se trava a luta pela hegemonia. Assim como a oratória e a historiografia tendem a desaparecer entre os gêneros registrados pelas histórias da literatura (pois oratória e história não mais são literatura...) o lugar destes exilados do Olimpo tende a ser rapidamente ocupado por outro tipo de discurso, já “literarizado” ou em fase de “literarização” como, por exemplo, a crônica ou a música popular (LAJOLO, 1993, p. 111).

A materialidade dos textos não muda, mas os leitores sim; e, com eles, as leituras e os sentidos. Podemos mapear a presença da obra de Padre Antônio Vieira desde as primeiras “histórias” da literatura brasileira, até os dias de hoje, mas seu papel, no decorrer do tempo, mudou. Se, como pontuou Razzini, seus textos serviam outrora como modelos de bom uso do vernáculo; hoje, o que se valoriza é seu “progressismo”: a defesa dos índios, dos cristãos-novos, etc. Para isso, há que se repensar a relação entre a “literatura” que se estuda, a teoria da literatura que se emprega para sua análise e a “história da literatura” da qual se quer que ela seja parte e que constantemente ressignifica as obras que formam o cânone. O risco dessa proposta de trabalho ideal, contudo, é o de tornar o estudo da literatura algo por demais complexo para o nível médio e afastar

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ainda mais o aluno da leitura literária propriamente dita, sem se mencionar a exiguidade de aulas que o professor teria para desenvolver esse trabalho de “arqueologia literária”, ademais não defendido, pelo menos não claramente, nos documentos oficiais. (Mas o professor deve ser formado na universidade de forma a ser capaz de fazê-lo). De qualquer modo, pergunto então se seria possível ler as letras coloniais dentro do contexto real do ensino de literatura na escola hoje: com ferramentas e ideologias anacrônicas. A partir do que acabamos de ver, é preciso pensar se é possível realmente se defender alguma “atualidade” nas letras coloniais e, a partir daí, seu estudo sério na escola. Creio que, como mostrou Pécora com o tema do índio em Vieira, não é possível ver nenhuma “atualidade” no tratamento desse assunto na obra do jesuíta que não seja por um viés anacrônico. No entanto, não seria mesmo possível pensar em um outro tempo, um tempo fora do “tempo dos historiadores”, um tempo “acrônico”?, como pergunta Nicole Loraux, a partir de um termo de Jacques Rancière (1992, p. 57). Conforme explica a historiadora francesa, ao passo que é preciso um rigorismo no método histórico, é a partir de questões do presente que o passado se torna significativo; por isso, Loraux defende uma “prática controlada do anacronismo”, que consistiria “em ir para o passado com questões do presente para voltar ao presente, com o lastro do que se compreendeu do passado” (ibid., p. 61). Ainda que procure se afastar da imagem clássica da História como “Magistra Vitae”, Loraux defende uma “história do repetitivo”, tendo essa a ver com as paixões humanas e a relação do homem com o poder (ibid., p. 67). Nesse sentido, voltando ao Sermão dos Peixes, devemos reconhecer, com Pécora, que o tema do índio, em Vieira, só é realmente compreensível dentro de seu horizonte hermenêutico, num jogo de forças complexo, pouco acessível ao leitor leigo; por outro lado, é possível fazer “analogias” controladas entre os conflitos provocados pelo choque entre colono e indígena no século XVII12 12 Na verdade, entre colonos e jesuítas... 140


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e os que ocorrem ainda hoje, como no tocante às demarcações de terras indígenas, etc. A partir dessa analogia, então, o que se sobressai são menos as noções anacrônicas de “liberdade”, “igualdade”, “justiça social”, entre outras, que o ardor da defesa dos mais “fracos”, ou seja, dos desprovidos de poder, e a forma como Vieira a fez, acusando os colonos do Maranhão de hipocrisia, por serem católicos e comportarem-se como se não o fossem, pondo suas almas a perder por sua cupidez. Nisso residiria o “acrônico” mencionado por Loraux, nas “paixões” postas em cena pelo discurso e no conflito pelo poder. E, estendendo ainda mais o anacronismo, até que se dissolva, poderíamos dizer, com Agamben (2009), que “Vieira é nosso contemporâneo”. Este, o “São Paulo dos gentios”, assim como Paulo de Tarso, exemplo dado pelo filósofo italiano, ao compartilhar de uma visão providencialista e figural da História, via o presente a partir do passado, via o Maranhão a partir do Antigo Testamento, enxergando as fraturas de seu tempo, o projeto inacabado da salvação do homem e as maneiras de implementá-lo, a fim de apressar-se a chegada do milênio. Isto é, via as sombras de seu tempo dentro da luz do presente, traços que, para Agamben (2009, p. 71-3), caracterizariam o “contemporâneo” em qualquer época. Assim, invertendo os critérios de Cosson (2005), para confirmá-los num jogo de espelhos “barroco”, creio que Vieira deva ser lido na escola sim, não por ser “atual”, mas por ser nosso “contemporâneo”. No entanto, seu interesse temático deve ser abordado num movimento duplo, de semelhança e diferença, de ida e volta, sem apagar suas contingências históricas (e as do aluno). Por fim, o texto deve ser analisado atentando para as formas de criação de sentido, para suas condições de produção, não como receptáculo amorfo, mas como um gênero específico. Para isso, mais uma analogia pode ser feita, aproximando o “sermão” de outros textos argumentativos, como editoriais, cartas do leitor, dentre outros. Daí, ao se destacar a linguagem altamente trabalhada de um sermão, pode-se problematizar seu estatuto literário, pois, ainda que não seja 141


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mais “literatura”, segundo os padrões estéticos de hoje, consagrados pela legislação vigente e pelos livros didáticos, pode ser, paradoxalmente, fruído “literariamente”. E tal jogo de “analogias” colaborará no letramento literário, como defende Cosson (2005).

4 epílogo: de volta ao sótão e para além Vasculhamos o sótão; reviramos as caixas; ouvimos os fantasmas. Sob uma nova luz, tudo pode parecer diferente, vivo! O assombro do susto pode dar lugar ao da surpresa! Para que as letras coloniais continuem a ser lidas é preciso vê-las não como algo menor e ultrapassado, mas como textos que ainda podem falar conosco, porque são parte da cultura letrada que se produziu aqui. Contudo, para que isso seja alcançado, precisa-se formar professores capazes de fazer uma mediação competente entre os alunos e os textos, isto é, que consigam enxergar a “literatura” para além do esquematismo dos livros didáticos, da crítica de fundo romântica e das restrições impostas pelos programas governamentais. Quanto a estes, é preciso que se revejam os critérios para o estudo da literatura na escola, de forma a se compor um quadro teórico mais consistente e sem mistificações. E como, historicamente, o Ensino Médio acaba por ser pensado em função de facultar o acesso à universidade, o ENEM também deve ser repensado no que toca ao conteúdo de Literatura, de forma a não se apagar o passado, sob pena de substituir a ideologia do “cânone pelo cânone” pela do “atual pelo atual”, ou da “leitura literária” pela da “leitura histórica/documental/ decodificadora”, ou pior, da “decoreba” pela da “ignorância”. Há valor mais “atualizável” que o conhecimento?

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A SALA DE AULA COMO ESPAÇO POLÍTICO: DE COMO EDUCAR O HOMO ABSUMENS Carlos Augusto Bonifácio Leite1 Desde as primeiras linhas deste texto, é necessário precisar ao que me refiro quando escolho o termo “político”. Certamente não consiste na desgastada imagem do político institucionalizado, estatal ou não, nem mesmo no seu prolongamento eleitoreiro para dentro da sala de aula – a versão caricata é o profissional que faz campanha em vez de lecionar. “Político”, portanto, refere-se à nossa inexorável natureza política, porque vivemos em uma sociedade de interesses conflitantes. “Político” como a ação contrária à inoperatividade e à doxa (AGAMBEN, 2008, p. 43), em tempos cujo ritmo acelerado de produção e de consumo tornou falhada toda mobilização que se interponha ao interesse do capital, em defesa da manutenção da condição humana. Dado esse princípio, talvez valha antecipar, antes de esmiuçá-lo, todo o argumento que será desenvolvido aqui, qual seja, com a pouca autonomia atual dos indivíduos nas diversas possibilidades de ação na esfera pública, e de um mundo plenamente administrado (ADORNO, s/d) e amortecido quanto às possibilidades de mudança, é necessário que o professor entenda a sala de aula como um dos espaços políticos por excelência, quer na subversão dos modelos de heteronomia que precedem sua docência, quer na formação de um espírito crítico e dialógico entre todos os envolvidos nas atividades pedagógicas ensejadas. Que esteja claro que este texto não é e não pode ser uma proposta de elaboração de um modelo de autonomia. Por princípio dialético, não existe tal facilidade. Além do mais, empiricamente, a tarefa se mostra bastante distinta no Ensino Básico e no Ensino Superior – além de variar muito conforme outros fatores: privado/público, classe social, proposta pedagógica da instituição etc. 1 Professor adjunto de Literatura Brasileira (UFRGS), poeta e cancionista.

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No caso do Ensino Básico, salvo raras exceções, toda a estrutura escolar figura anacronicamente, pautando-se pela repetição de “saberes” canônicos, considerados essenciais à vida intelectual do estudante, pela divisão estanque e incomunicável das disciplinas, pela hierarquização institucional entre professor e chefia, e entre professor e aluno, pelas avaliações pouco processuais, pela tradução do “sucesso” escolar em adaptação ao modelo da instituição de ensino, entre outras características. Não creio ser exagerado afirmar que, na maioria dos casos, a escola é um simulacro – o que já a contestaria suficientemente enquanto forma – de um mundo que não mais está no centro do sistema; ecos de um grito proferido há muitas e muitas décadas, ligado inicialmente às realidades fabris e, posteriormente, aos mundos industrial e empresarial. Simulacro, no entanto, que detém certo poder sobre parte significativa da vida das crianças e adolescentes, do progresso escolar às benesses ou penalidades familiares2. No que tange ao Ensino Superior, a construção da autonomia me parece um desafio mais exigente e nuançado. Não se trata de um campo significativamente à parte da construção real da opinião, do posicionamento político, do engajamento, da práxis cotidiana. Também estamos falando da aula como um diálogo entre adultos, normalmente, em que é preciso argumentar pelas opiniões proferidas e, neste universo cada vez mais público (falsamente público?) dos telefones portáteis e conectados, das redes sociais, de uma globalização continuamente atualizada, que eventualmente se responda por essas opiniões no seio da comunidade sem contar com as mediações e proteções previstas para o mundo escolar. Furtar-se ao anódino da burocracia e ao produtivismo 2 Quando lecionava no Ensino Médio (me permitam o aparte), meus esforços de autonomização caminhavam sempre nesse sentido: o de desvelar o fato de a estrutura escolar tratar-se de uma organização cujas regras eram diferentes das regras fora de seus domínios, sem, no entanto, obliterar que havia possibilidades de conhecimento dentro de seus muros e que os êxitos obtidos ali repercutem noutras esferas da vida juvenil.

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lattesiano, escolher com zelo o programa a ser estudado, estar aberto às opiniões dos estudantes, confrontá-las sempre – mesmo que para o bem do argumento, talvez explicitando isso –, dialogar com os colegas, estabelecer as conexões entre os assuntos tratados em aula e suas diferentes manifestações no mundo cotidiano e até mesmo modificar os temas a serem tratados com o semestre em curso, a depender de assuntos que ganhem pauta fora da sala de aula, são medidas que ajudam a combater a despolitização do espaço da sala de aula no Ensino Superior – despolitização essa muitas vezes identificada como uma reprodução das dinâmicas escolares na universidade (“mas isso aqui parece uma escola!”, reclama-se pelos corredores). De todo modo, o ponto central do problema da educação dos indivíduos em qualquer nível, em termos de facilitar ou não sua autonomia, fomentar ou não sua emancipação, parece ter sido comentado por Adorno, em “Educação e Emancipação”, ao concluir que existe uma contradição entre a organização social heterônoma em que vivemos e a possibilidade de um indivíduo viver conforme suas próprias determinações (1995, p. 181), o que seria um dos princípios de uma pedagogia libertadora. Observando como a indústria cultural, mesmo nos tempos do filósofo, já determinava pensamentos e comportamentos dos sujeitos, não é difícil notar que a emancipação sempre se origina de uma posição pressionada, “acuada”, e que é extremamente valoroso encontrar espaços em que ela possa ser estimulada. Em outros termos, talvez demasiado óbvios, o ideal para o sistema em que vivemos é que não haja emancipação alguma por parte dos indivíduos para que possam ser moldados conforme as diretrizes, muitas vezes oscilantes, do mercado – aspecto comentado tanto no núcleo da cultura pop, como no desenho da Pixar, Wall-e (2008), por exemplo, quanto no mais exigente mundo intelectual, com Jonathan Crary, em

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24/7: capitalismo tardio e os fins do sono (2014), que projeta um mundo que funcione ininterruptamente produzindo e consumindo, a mostrar que não se trata de segredo ou tabu, o que talvez não seja melhor. Sintetizando, para seguir adiante, se as leituras da dinâmica de forças são razoáveis, educar, hoje em dia, é educar contra, o que não significa necessariamente “educar para o contra”, mas aguçar o espírito crítico com o intuito de que o indivíduo possa pensar e posicionar-se com autonomia, sem ser plenamente pensado e posicionado pelas ideologias que o precedem. Sobre esse quadro e as possíveis saídas, Adorno vaticina: a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência (ibidem, p. 83) (grifos meus).

Se em julho de 1969, o teórico já se posicionava com tanta contundência e radicalidade em relação à questão, como nós, que vivemos depois de o capital ter atingido seu sonho de poder prescindir da mercadoria e do trabalho material para gerar mais capital (ARANTES, 2014), deveríamos agir? Qual é o papel da educação neste sistema governado pelas “indústrias de fazer dinheiro” (STREECK, 2014), no qual a perda inerente à conversão do capital em “coisas” e a necessidade de o capital arriscar-se materialmente são mínimas, em que mesmo as escolhas de resistência (produtos não industrializados, opções eco conscientes, marxismo de butique etc.) encontram nichos de mercado perfeitamente estabelecidos? Em síntese: como devemos dar aula em um mundo onde logramos de liberdades quase irrestritas, mas cujas possibilidades revolucionárias inexistem? Vale a nota: um mundo completamente regido pelas liberdades de produção e de consumo, muitas vezes recebidas com euforia pelos estudantes, mesmo os melhores, que se imaginam diante de um quadro ilimitado de possibilidades.

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Uma primeira resposta, um tanto matreira, é: valendo-se disso. Num país em que não faz quatro décadas alguns romances de Jorge Amado (ou Eça de Queirós!) não eram mencionados em programas de estudo na universidade por terem sobre si a pecha de imorais, de subversivos, digamos que seja um enorme avanço não haver embaraços para ler em aula trechos de livros do escritor baiano ou percorrer excertos de obras de autores banidos outrora, como João Gilberto Noll ou Caio Fernando Abreu, por exemplo, debatendo na forma a ousadia de seus escritos. É melhor enfatizar, contudo, que este avanço precisa ser considerado com ressabio pelo professor, porque é devido antes ao caráter inócuo atribuído às salas de aula, sobretudo às salas de aula de literatura, e a seus professores e alunos, do que a uma improvável emancipação geral capaz de frequentar com naturalidade quaisquer assuntos. Entretanto, e justamente porque, ao que parece, a ponta do processo revolucionário está perdida, logramos de uma liberdade enorme na elaboração de nossa didática – em graus variados, é claro, mas praticamente irrestrita no ensino público superior, em que leciono. Essa visão de conjunto parte de Literatura, mas não creio que tais liberdade e limite de ação sejam pertinentes só a ela. Nas áreas de conhecimento mais ligadas às produções-chave da economia, as permissões tendem a ser mais acanhadas, bem como possivelmente as escolhas causem um impacto sistêmico mais significativo aos interesses dominantes. No entanto, é difícil, e penoso, imaginar a chance de haver quaisquer atividades que não tenham margem subversiva. Resta-me, por fim, uma ligeira esperança de que, valendo-se desse espaço de inocuidade em relação à ordem vigente, a sala de aula possa gerar cada vez mais um conjunto de indivíduos emancipados que coletivamente forcem mais e mais, por suas ações, na direção de um mundo mais equânime, e essa força seja suficiente para romper de vez o que se esgarça – o prognóstico, infelizmente, é o rio abaixo de agravamento da subordinação individual,

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contraparte espiritual da acumulação cada vez maior das riquezas, e da despolitização contínua e crescente dos espaços pedagógicos, de onde deriva uma segunda resposta. Esse outro revide é mais direto e consiste em, sempre que possível, descortinar para os estudantes o problema de cerne que esse panorama engendra. A pergunta, que chego a temer enunciar, é a seguinte: se o modelo pedagógico que se constrói é pouco emancipador, estamos formando indivíduos capazes de decidir por si e pelos outros? Nos termos deste ensaio, quando não usamos a sala de aula como um espaço político, a sala de aula se transforma no espaço político dos interesses dominantes e, por conseguinte, está a serviço da manutenção da ordem vigente, que sabidamente privilegia um número cada vez menor de indivíduos em detrimento da maioria, muitas vezes por meio do trabalho, das ideias e dos posicionamentos defendidos pelos indivíduos dominados, que tomam para si ingenuamente os valores dos dominantes. No texto já citado de Adorno, o filósofo chega a questionar que tipo de democracia se constrói a partir de um modelo heterônomo de educação. Desdobro, talvez inadvertidamente seus pensamentos, ao sugerir que o modelo democrático moderno estabeleceu-se atrelado à maturação dos modos de organização burgueses e, portanto, está prevista em sua estrutura, em seu “código genético”, digamos, a formação de grandes contingentes que defendam e votem a partir das opções disponibilizadas pelo sistema, que concretamente costumam ser falsas opções, mas que se mostrem incapazes de encontrar saídas para além dos modelos enganosamente democráticos, que surgem como supremos e intocáveis patrimônios da civilização. Os regimes de governo não estão dissociados dos modos de produção, e da decantação do processo social, logo não é possível considerar a democracia moderna libertária e o capitalismo moderno castrador; ou a ideia de os cidadãos votarem nos

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seus representantes é também mecanismo do ideário burguês, ou só se torna permitido votar em todo e qualquer cidadão, de “ficha limpa”, quando os votos não são capazes mais de modificar o sistema. Talvez se assuma aqui a condição de “profeta do passado” e não cabe reivindicar uma crítica radical ao modelo que se convencionou chamar democrático enquanto este modelo ainda sustentava a ilusão de mudança e de distribuição de renda. Também não defendo aqui qualquer modelo autocrático, oligárquico, burocrático ou o que seja; é preciso haver democracia, no peso e na força de seu termo, o poder de escolha exercido por todos os cidadãos. Cabe, no entanto, manter no horizonte que um modelo pedagógico heterônomo é essencialmente incapaz de sustentar um modelo político democrático. Ou seja, a escola contemporânea e uma real democracia são esferas que se repelem, se excluem, ou existe uma, ou outra. Por isso é inevitável concluir que: a) é imperativo desenvolver uma educação autonomista em sala de aula, ao risco de ser uma “educação para” e não uma “educação contra”; b) a observação de que o modelo hegemônico é heteronomista implica concluir que não vivemos num Estado democrático; c) recusar esta democracia não significa necessariamente recusar toda democracia, mas simplesmente dizer o óbvio, velado, incômodo, de que “ceci n’est pas une démocracie” (alusão que se justificará no desfecho do ensaio). Valho-me da condição de ser só um professor de literatura, e não um cientista social, historiador ou cientista político, para me esquivar a propor um modelo de governo melhor a partir da falsa democracia em que vivemos. Também entendo que incorro em proselitismo porque, afinal, se poderia perguntar: que educação emancipa e que educação aliena? Quem

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decide? Há graus de emancipação e alienação? Dentre outras questões. O que me interessa especialmente, no entanto, é elaborar um ponto, a partir do qual seja possível ensaiar a extrema importância da literatura, de que se ocupará o ensaio doravante. E o ponto é este: transformar a sala de aula num espaço político significa trabalhar pela emancipação de todos, professores e alunos; não transformar a sala de aula num espaço político significa alienar a si e aos outros quanto à dominação da produção e do consumo, práticas ubíquas fora do espaço da sala de aula e hegemônicas em sua política sistêmica; uma pedagogia despolitizada e a democracia são práticas que não existem concomitantemente; se notarmos que a pedagogia emancipatória é minoritária em nosso sistema educativo, não podemos afirmar que vivemos num sistema democrático, no sentido pleno do termo – e isso talvez seja o que há de mais grave na organização de um espaço comum onde se conflitam interesses. Ilustrativamente, não causa espanto o fato de, ao analisar como alguns países teriam conseguido reduzir o atraso em relação aos mais desenvolvidos, Piketty tenha afirmado: Basicamente, todos esses países financiaram os próprios investimentos em capital físico de que necessitavam e, sobretudo, os investimentos em capital humano – o aumento do nível geral de educação e formação –, cuja importância para o crescimento econômico de longo prazo foi respaldada por todas as pesquisas contemporâneas. (2014, p.75) (grifo meu).

Depois do quadro aqui remontado, parece sensato dizer que não há possibilidade de reverter a dominação econômica, senão pela educação e pela formação da população de um país – “investimento em capital humano”, nos termos um tanto capitalistas de Piketty. Eis traçado um caminho estreito, mas possível, para se reverter o quadro, para nós, sempre adverso e dependente. Estreito, porque as forças serão todas

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contrárias, para que o dominado siga educando seu povo para a condição de dominado. Possível, no aproveitamento da sensação de “jogo perdido” já comentada, nas liberdades pedagógicas existentes na maioria dos espaços. De passagem, mas não lateralmente, é preocupante o que o governo brasileiro tem feito em relação à área, escolhendo com justiça sanar de imediato imensas assimetrias sociais, a partir de uma série de programas de inclusão social, mas perdendo qualquer chance de desfazer sua condição econômica periférica e dominada a médio ou longo prazo, pelo descaso em relação à educação e à cultura, ao acreditar na formação mínima, técnica e profissionalizante da população beneficiada. Mas como o ensino de Literatura, em específico, se comporta nesse quadro? Creio que o lugar da Literatura como arte feita de palavras lhe confere uma posição singular no conhecimento humano e, por conseguinte, neste jogo de forças que procurei desvelar. Na síntese precisa de Candido: A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente (1995, p. 176).

A partir das palavras do crítico, reconhecemos a qualidade da literatura de elaborar construtos autônomos – relativamente autônomos, o próprio Candido afirma noutro texto (2004, p. 106) –, de elaborar visões de mundo de um indivíduo, de um grupo e de uma época e comportar-se como uma maneira de se aproximar do real, e de elaborar formas coerentes de apreensão do continuum, pedras de apoio para que todos possam apreender o real em sua velocidade, inacabamento e multiplicidade.

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Não é demasiado, portanto, pensar que boa parte do que conhecemos como essencialmente “humano” – criar, fabular, argumentar, conhecer, posicionar-se, enternecer-se, brincar, amar etc. – é exercitado na e pela Literatura. Tomando a outra ponta do caminho, ao ensinarmos a matéria de maneira dialógica e dinâmica, em modelo distante do professor repetindo dados à frente da turma, estaremos cultivando em nossos estudantes os atributos caracteristicamente humanos – evidentemente rechaço qualquer visão que trate a literatura como “ciência”, em especial, como “ciência moderna”, bem como a designação recente que indica a possibilidade de trabalhar literatura de maneira “aplicada”. Sobretudo em tempos de conversão da humanidade em indivíduos autômatos, peças substituíveis na engrenagem mundial de produção e consumo (engrenagem talvez seja uma metáfora antiga), o privilégio da aula de literatura como porta para a emancipação, o que pode se confundir hoje com simplesmente “ser humano” ou “continuar humano”, não deve ser desperdiçado. Se até aqui soa razoável, gostaria de concluir com alguns apontamentos a respeito do lugar contemporâneo do ensino de literatura no Brasil. Pelo que já foi aventado, é lógico afirmar que a literatura não é campo afeito ao atual estágio do capitalismo, ou melhor, ela está convertida no mercado de livros, nas escolas de técnica de escrita ou de leitura, nas feiras literárias “cosmetizadas”, nos eventos espetaculares, nos lobbies para autores insípidos etc. – me refiro ao centro do sistema, à ponta do processo; na margem, onde as forças ainda se tensionam e estão em disputa, há mais espaços para uma literatura “humanizadora” (nos termos do ensaio de Candido, já citado). O Brasil está evidentemente nessa margem e alguns estados e cidades dentro do país estão mais à margem e na margem do que outros.

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Na Universidade, sem o liame materialista para conjugar a resistência, as pautas se multiplicaram nas reivindicações das minorias, encampadas no grande guarda-chuva dos Estudos Culturais, frequentemente confundidos com Estudos Pós-Coloniais, quando só num segundo momento, quando há esse segundo momento, a luta de classes entra em pauta. Não se trata, evidentemente, de impugnar quaisquer das legítimas reivindicações colocadas por esses estudos, mas de entendê-los como resultado do ocaso do socialismo e dos paradigmas afins. No Ensino Básico, de menor autonomia, a situação é mais delicada. O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que pauta cada vez mais o Ensino Básico brasileiro ao tornar-se caminho quase exclusivo para a entrada no Ensino Superior público, e ao ser um exame que visa a analisar um conhecimento aplicado ao mundo, tem transformado o ensino de Literatura num ensino de técnicas de leitura, obliterando as características aventadas por Candido e que, em última instância, nos humanizam. Em pesquisa recente de um grupo de que faço parte, verificando extensivamente as provas de mais de uma década, concluímos que 80% das questões entre 1998 e 2010 poderiam ser respondidas sem que o aluno tivesse participado de aulas formais de literatura na escola (FISCHER et alli, 2012, p. 118). Dizendo o mesmo, noutras roupagens, pode soar mais assustador: se nenhum aluno tivesse aulas de literatura na escola, ou seja, se a matéria fosse extraída do Ensino Básico, ainda assim eles seriam capazes de responder quatro a cada cinco questões propostas como questões de literatura. A pergunta é quase inevitável: então por que eles têm aula de Literatura no Ensino Básico? A resposta, que vem sendo colocada em prática, não é menos óbvia: não terão3. Em 3 Pode ser que não seja necessário ter aulas de Literatura na escola, mas os exemplos mostram – e o modus operandi pragmático de nossa sociedade ratifica – que a ausência da matéria no mundo escolar deve significar, com o tempo, o fim de seus estudos noutras esferas. Além de tornar o leitor médio ainda mais à mercê do “mais instigante livro dos últimos anos!”. Se a Literatura (não só ela) humaniza, como seríamos sem a Literatura?

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pouco tempo, espera-se que o currículo seja reformulado e as aulas sejam de Linguagens e suas Tecnologias, tal como consta na prova4. No panorama geral, em que o Brasil ocupa posição de capitalismo periférico e agressivo – o diálogo entre processos sociais e formas nos mostra que as contradições em suas caravelas aportam primeiramente na margem dos sistemas, por suas condições mais precárias de manterse inconsútil ideologicamente –, talvez esteja datada a preocupação de Gramsci que relaciona homo faber e homo sapiens, este, nas palavras do filósofo, que elabora consciente e criticamente sua concepção de mundo e, por meio do trabalho do próprio cérebro, opta por uma esfera de atividade, tornando-se parte ativa na criação da história do mundo, sendo guiado por si mesmo, negando-se a aceitar passiva e apaticamente do exterior a configuração de sua personalidade (apud MONASTA, 2010, p. 24). Aquele foi o tempo das fábricas, em que construímos o mundo. Era preciso opor o homem que construía alienadamente ao homem que pensava sua própria condição nas esteiras de produção e problematizava-a – vale lembrar que, para Gramsci, todos conheciam e criavam de alguma forma, e que seu tema, na essência, era a liberdade. O mundo está pronto agora e o homo faber dá lugar ao homo absumens5. É preciso consumir esse mundo! Nas salas de aula, privilegiadamente, temos um lugar para repetir as proposições de Gramsci e transportá-las a este novo contexto, emancipando o sujeito e convidando-o a elaborar consciente e criticamente sua participação nesse processo de transformação de tudo na imagem da imagem da imagem do capital.

4 Reformulação noticiada em 2012 por vários jornais e que se tornou prioridade do então Ministro da Educação Cid Gomes. 5 Devo a elaboração da expressão latina à professora Gabriela Orosco, que me deu duas alternativas, e não deve ser responsabilizada pela escolhe que tomei, em detrimento de homo consumens.

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referências: ADORNO, Theodor. Educação e emancipação; trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1995. _______. Teoria estética; trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s/d. AGAMBEN, Giorgio, MARRAMAO, Giacomo, RANCIÈRE, Jacques & SLOTERDIJK, Peter. Crítica do contemporâneo: conferências internacionais Serralves 2007. Porto: Fundação Serralves, 2008. ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014. CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. in __________. O discurso e a cidade [3ª ed.]. Rio de Janeiro / São Paulo: Ouro sobre Azul / Duas cidades, 2004. _______ .O direito à literatura. in _____________. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995. CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono; trad. Joaquim Toledo Jr.. São Paulo: Cosac Naify, 2014. FISCHER, Luís Augusto et alli. A literatura no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) in Nonada: Letras em Revista, vol.18. Porto Alegre: UniRitter, 2012. MONASTA, Atílio. Antonio Gramsci: coleção pensadores; trad. Paolo Nosella. Recife: Fundação joaquim Nabuco / Editora Massangana, 2010. PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI; trad. Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. STANTON, Andrew. Wall-e. Animação. Pixar. Cor, 98 min. Estados Unidos, 2008. STREECK, Wolfgang. Como vai acabar o capitalismo?: o epílogo de um 159


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sistema em desmantelo crônico. in Revista Piauí, 97. Outubro de 2014. Disponível em http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-97/tribuna-livre-da-luta-de-classes/como-vai-acabar-o-capitalismo e consultado em 06/01/2015.

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Literatura na sala de aula:

propostas de abordagem do texto literรกrio e do livro didรกtico

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FORMAÇÃO DO LEITOR NO ENSINO MÉDIO: MITOS E POSSIBILIDADES Márcia Froehlich1 introdução Formação do leitor constitui atualmente uma área interdisciplinar que agrega estudiosos dos campos da Educação, Estudos Literários, Linguística Aplicada, Estudos Culturais, História da Leitura. Isso significa uma pluralidade de abordagens nas pesquisas que compõem a área, pois, dependendo da área de origem do pesquisador, diferentes aspectos serão enfocados, por exemplo, a Educação pode se interessar pelos procedimentos metodológicos para as práticas de leitura em sala de aula, já a Linguística Aplicada costuma focar nas práticas de letramentos, literário ou não, no espaço escolar. Como professora da educação básica com formação especializada em Literatura, meu interesse se volta para o letramento literário dos alunos, com as preocupações e inquietações que essa “tarefa” provoca em todo professor minimamente engajado nela. Parte dessas preocupações relaciona-se ao contexto do ensino de literatura no nível médio.

1 literatura e ensino médio Em primeiro lugar, o Ensino Médio é o momento em que se dá o estudo sistematizado da literatura, isto é, ela passa a ser ensinada como disciplina autônoma. Segundo informa William Roberto Cereja (2005), em 1 Professora de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSUL/Pelotas), atuando também no Curso de Especialização Lato Sensu em Linguagens Verbais e Visuais e suas Tecnologias. Possui mestrado em Letras (UFSM) e é doutoranda em Linguística Aplicada na Universidade Católica de Pelotas. 163


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estudo que fez parte de sua tese de doutoramento, esse ensino de literatura na escola foi, historicamente, justificado pelos seguintes objetivos: •

Aperfeiçoar habilidades de leitura de textos;

Conhecer a variedade padrão da língua;

Conhecer e compreender a cultura brasileira;

Cultivar hábitos de leitura. Em que pesem as objeções que podem ser feitas a esses objetivos,

como, por exemplo, a equivocada associação entre linguagem literária e linguagem culta; fato é que as muitas pesquisas/exames (ENEM, PISA) sobre leitura feitas com estudantes brasileiros nos últimos anos têm demonstrado que tais objetivos parcamente têm sido alcançados. No PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), o desempenho brasileiro em Leitura, ainda que tenha melhorado desde sua primeira participação em 2000, mantém o país na 53ª. posição em um ranking de 65 países, atestando que os brasileiros sequer conseguem identificar as ideias centrais de um texto, independentemente de seu gênero. Outro aspecto que não se pode ignorar é a tradição historiográfica dominante no ensino de literatura no Ensino Médio, que dificulta e, muitas vezes, até impede o texto literário de ser o elemento central da aula de literatura. A legislação recente (LDB 1996, PCNEM, PCN+, DCNEM) buscou modificar essa tradição, propondo um ensino contextualizado e interdisciplinar, tecendo relações com as demais produções culturais e com a formação da cidadania. Conforme Cyana Leahy-Dios (2005), essa proposta aproxima-se da noção de educação literária: Há semelhanças entre a proposta da educação literária e o discurso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). A educação literária se constitui numa triangulação

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formação do leitor no ensino médio: mitos e possibilidades multidisciplinar indissociável de estudos linguísticos, culturais, e sociopolíticos, realizada através de uma “transleitura” pedagógico-literária, apoiada em sólida base teórico-conceitual. Trata-se de construção artística (cultura) cujo suporte é a palavra (língua) e que se realiza na mediação entre segmentos sociais (sociedade). Arte, palavra e sociedade são construções complexas e indissoluvelmente ligadas. (p. 38-9, grifos do autor)

No entanto, ainda que preconize a substituição da tradicional aula de história da literatura, baseada na memorização de autores, períodos, traços estilísticos, que fundamentam um discurso sobre literatura, mas que pouco investe no trabalho direto com o texto literário em sala de aula, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM, lançado em 1999) foram pouco efetivos em definir claramente como atingir esse ideal de ensino e acabaram alvo de muitas críticas. Por isso, em 2002, foram complementados com o lançamento dos PCN+, os quais não melhoraram muito as insuficiências teórico-metodológicas dos PCNEM, cuja principal crítica é a mistura de concepções teóricas divergentes. Com o intuito de, mais uma vez, suprir tais deficiências e em vista dos acentuados índices de evasão escolar no Ensino Médio e do processo de esvaziamento dos sentidos da escola para os jovens, mais recentemente, em 2011, foram lançadas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, as quais propõem que o Ensino Médio se oriente pela busca de uma formação humana integral, constatando que esta etapa de ensino precisa “superar a visão dualista de mera passagem para o Ensino Superior ou de inserção na vida econômico-produtiva” (BRASIL, 2013, p. 170). Ao analisar as possibilidades abertas pelas novas DCNEMs, a estudiosa em Educação Monica Ribeiro da Silva (2014) afirma que as proposições das diretrizes resgatam a noção de politecnia, entendida como “a formação humana sendo simultaneamente educação intelectual, educação do corpo e educação tecnológica” (SILVA, 2014, p. 66). As 165


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novas DCNEMs definem como base para o desenvolvimento curricular a articulação entre os campos trabalho, ciência, tecnologia e cultura, de modo a permitir a construção do conhecimento interdisciplinar entre os componentes curriculares para que seja possível aos alunos compreender os processos científicos e sociais e sua amplitude. Trata-se, portanto, de uma perspectiva educacional que desafia o professor a romper com as práticas tradicionais de ensino de literatura e, para uma efetiva formação cultural dos indivíduos, tanto no sentido ético quanto no estético, exige o comprometimento com a: •

formação de leitores competentes de textos literários;

consolidação de hábitos de leitura. Para tanto, é necessário que o texto literário volte a ser objeto central

das aulas, abordado em pelo menos três dimensões: 1. as situações de produção e recepção, nas quais se incluem elementos do contexto social, do movimento literário, do público, da ideologia, etc.;

2. as relações com outros textos, verbais e não verbais, literários e não literários, da mesma época ou de outras, colocando-os em interação [...];

3. as potencialidades da língua na linguagem literária, condição para a aquisição de uma cultura geral mais ampla, integradora das dimensões humanista, social e artística, que valorizam as relações entre diacronia e sincronia. (FILIPOUSKI & MARCHI, 2009, p. 20-1.)

Nessa concepção, portanto, a leitura é vista como um processo que exige “a participação ativa do leitor na constituição dos sentidos

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formação do leitor no ensino médio: mitos e possibilidades

linguísticos” (AGUIAR & BORDINI, 1993, p. 16). Dessa forma, a leitura literária possibilita ao sujeito leitor o contato com uma realidade em que as possibilidades associativas, relacionais e interpretativas são infinitas, o que permite que tanto o conhecimento do mundo quanto as experiências do indivíduo com o mundo sejam ampliadas. Ainda, em relação à formação do leitor de literatura, conforme Vera Aguiar e Maria da Glória Bordini, é papel da escola, para produzir um sentido eficaz da leitura da obra literária, apresentar uma infraestrutura que contemple uma biblioteca bem aparelhada, professores leitores com boa formação, programas de valorização da leitura e uma interação democrática e simétrica entre alunos e professores. Em relação a esse último aspecto, é fundamental o enfrentamento de certas ideias pré-concebidas do senso comum, que neste texto serão chamadas de mitos, que podem minar o trabalho docente. Vejamos, a seguir, alguns desses mitos.

2 mitos sobre práticas de leitura de jovens 2.1 mito 1 - adolescentes não gostam de ler/não têm o hábito de ler. O Brasil pode não ser ainda um país letrado, porém, levantamentos nacionais como Retratos da Leitura no Brasil e do INAF têm atestado que os brasileiros vêm lendo mais nos últimos anos2 (ABREU, 2003). Atestam também uma íntima relação entre escolaridade e leitura (quanto maior a escolaridade, maior a proporção de leitores), indicando que o percentual de leitores entre estudantes é amplamente maior do que entre os que não estão estudando. Ou seja, a etapa da vida em que os brasileiros mais leem é justamente o período escolar. 2 Ainda que a terceira edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2011, tenha apresentado leve retração comparativamente à segunda edição (2007), passando o índice de leitores de 55% para 50%.

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Adolescentes leem, no entanto, nem sempre leem as leituras preconizadas pela escola. Além disso, muitas vezes, a metodologia utilizada – valendo-se de provas, por exemplo – para o ensino de literatura acaba produzindo um juízo negativo sobre as leituras escolares, como se pode observar no trecho a seguir, extraído de uma postagem de uma blogueira adolescente: Dizer que eu, em geral, não gosto dos livros da escola é pouco – eu os detesto. Até agora, no ensino médio (embora eu esteja ainda no segundo ano) só estudei gêneros literários bobinhos e eu diria até mesmo secundários –fora a poesia romântica, nenhum despertou em mim, leitora ávida, a menor centelha de curiosidade. Além disto, meu hábito de ler me fez associar leitura ao prazer, a descontração e falta de responsabilidades; não à obrigação e aos prazos – muito menos à testes [sic] de múltipla escolha. (Fonte: http://distopicamente.blogspot. com.br/2012/03/l15-dom-casmurro.html)

A autora da declaração acima iniciou o citado blog em 2011, publicando um impressionante número de resenhas de livros e de filmes. Tais resenhas revelam uma leitora competente, mas que a escola não conseguiu sensibilizar para leituras tradicionais, o que se evidencia no trecho citado e é visível na sua lista de obras3 resenhadas, a maioria de autores estrangeiros contemporâneos, costumeiramente rotulados como “literatura de massa”. Essa preferência de leitura foi igualmente verificada em uma pesquisa4 realizada com alunos do 3º. ano do Ensino Médio do IFSul – Campus Pelotas no ano de 2008, e repetida em 2009. Uma das questões solicitava que os alunos informassem obras lidas por iniciativa própria, o quadro a seguir apresenta as obras mencionadas por mais de um aluno. 3 Cf. http://distopicamente.blogspot.com.br/p/guia-de-resenhas-de-livros-por-ordem.html 4 A pesquisa intitulava-se Por que ler os clássicos? Uma análise da relação entre leitores adolescentes e textos canônicos dos séculos XVIII e XIX e foi coordenada por mim e pela professora Catarina Maitê Macedo Barboza. 168


formação do leitor no ensino médio: mitos e possibilidades Quadro 1 - Obras lidas por iniciativa própria

1. Harry Potter (sem indicação de volume específico)

09

2. Anjos e demônios

06

3. O código da Vinci

05

4. Fortaleza digital

05

5. Ponto de impacto

04

6. O caçador de pipas

04

7. Concerto campestre

04

8. A menina que roubava livros

03

9. Assassinato na Academia Brasileira de Letras

03

10. Marley e eu

03

11. O segredo do anel

02

12. Mulheres de Cabul

02

13. Assassinato no expresso oriente

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14. Onze minutos

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15. Violetas na janela

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16. Triste fim de Policarpo Quaresma

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Fonte: (BARBOZA & FROEHLICH, 2009)

* O número na segunda coluna corresponde à quantidade de alunos que a citaram em seu questionário. Essa lista mostra um gosto eclético de leitura, com forte presença da literatura de massa, mas mesclando os chamados best sellers com literatura infanto-juvenil, livros espíritas ou de autoajuda e também obras literárias canônicas (embora algumas por ser indicadas para exames vestibulares). Resulta desse aspecto a importância de o professor se aproximar do universo de leituras dos alunos, o que não significa renunciar às obras reconhecidas pela tradição numa adesão acrítica à cultura de massa. Com isso, a porta para vários “mundos literários” pode ser definitivamente fechada para os alunos, já que muitos desses autores não contam com as ousadas estratégias de promoção da literatura de

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massa e a escola é, muitas vezes, o único ponto de encontro de tais obras com novos leitores. Deve-se ter em mente que parâmetros socioculturais atuam na construção do sentido de uma obra lida, seja ela classificada como literária; seja ela tachada como cultura pop. Assim, a apreciação estética não é universal: ela depende da inserção cultural dos sujeitos. Uma obra é lida, avaliada e investida de significações variadas por diferentes grupos culturais (ABREU, 2005). Portanto, o professor não deve ver as obras da cultura de massa como inimigas, deformadoras, como “lixo cultural”; e sim vê-las não dissociadas das formas da cultura popular e da cultura erudita. É preciso mostrar essas diferentes esferas em diálogo, pois é assim que elas efetivamente se constituem e são constituídas no espaço social. Um dos modos mais efetivos de se justificar o espaço dado à cultura erudita na escola é justamente a sua permanência, ainda que difusa, na produção cultural contemporânea (referências intertextuais em filmes, seriados, publicidade, etc.). Também é importante considerar a mudança na maneira como as novas gerações se relacionam com/fruem os textos de seu interesse. Eles não são mais vistos como monumento, algo a ser reverenciado, “escrutinado”, mas mantido intacto. A palavra-chave hoje parece ser “apropriação”. Os leitores adolescentes não se contentam em apenas ler e comentar as obras, eles se apropriam dos universos ficcionais e constroem novos textos, verbais e não verbais (fenômeno fanfiction, crossover, paródias); ou “vivenciam” os seus personagens preferidos, vestindo-se como tais em reuniões (cosplay). É uma abordagem mais lúdica, e que pode/deve ser explorada no meio escolar. Como exemplo de proposta didática nessa linha, convém citar o projeto Sarau, desenvolvido pelos professores da Coordenadoria de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do IFSul - campus Pelotas entre os anos 2002 e 2008. Através de uma abordagem interdisciplinar, o projeto

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realizava o estudo do período artístico-cultural do Romantismo articulado a uma reflexão sobre a complexidade do momento atual. Analisando e relacionando coincidências entre presente e passado, o objetivo era buscar a compreensão e intervenção sobre a realidade atual. O projeto, em consonância com o preconizado pelas novas DCNs, caracterizava-se pelo incentivo à pesquisa, à seleção de informação, à interpretação, à inventividade, ao trabalho em grupo, proporcionando meios para o aluno exercitar sua sensibilidade e espírito crítico e reflexivo e para demonstrar, através de diferentes formas de expressão de arte (música, dança, teatro, poesia, instalação, fotografia, vídeo, performance) uma nova interpretação e experiência de humanidade, da história e da atualidade. Tratava-se de, através da arte, pensar e produzir a vida. Figura 01 – Sarau 2007 – Instalação cuja temática era a idealização da mulher.

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O ponto de partida do projeto era a exibição de um filme relacionado à temática escolhida no ano, baseada em uma ou mais características românticas que se desejava ressaltar. Este filme servia para os professores desenvolverem atividades específicas relativas ao Romantismo em suas disciplinas (Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, Língua Inglesa e Artes). Os alunos, motivados pelo projeto, organizavamse em grupos, escolhendo uma modalidade artística através da qual apresentavam, no dia do sarau, sua proposta de trabalho para o estudo que fizeram do Romantismo. Essa proposta era previamente planejada através da formulação de um projeto orientado pelos professores, o qual era defendido pelos grupos, perante professores e turma, em data especificada. Tal defesa objetivava explicitar a justificativa e os objetivos dos projetos, bem como sua relação com a temática norteadora do Sarau. Após aprovação, era permitido ao grupo iniciar o desenvolvimento do trabalho proposto. O projeto Sarau foi encerrado em 2008 devido à extinção do Ensino Médio regular na instituição.

2.2 mito 2 - adolescentes rejeitam a leitura de clássicos. Trabalhar obras recuadas no tempo é normalmente mais difícil, porque falta aos alunos referentes histórico-ideológico-estéticos. A produção contemporânea, pela linguagem e temas abordados, permite uma identificação mais imediata do leitor em formação com o texto e, em muitos casos, desobriga o professor a se valer de expedientes para seduzir o aluno para sua leitura. Já na leitura dos clássicos, há sempre o estranhamento com a linguagem. Na segunda fase do levantamento Por que ler os clássicos?, entrevistaram-se 10 alunos, divididos em dois grupos: 5 que haviam se declarado leitores, e 5 que haviam se declarado não leitores no

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questionário aplicado na fase anterior. Nas duas edições da pesquisa, o aspecto negativo mais citado pelos entrevistados são as dificuldades com linguagem e vocabulário, que prejudicariam a compreensão e obrigariam a interrupção da leitura para verificar o significado de palavras no dicionário. Esse aspecto seria o responsável por tornar a leitura “chata”, cansativa. (BARBOZA & FROEHLICH, 2009) Isso, porém, não significa que a leitura de clássicos está fadada ao fracasso, até porque, dentre os aspectos positivos citados pelos entrevistados, está a noção de que obras literárias clássicas são fonte de conhecimento e contato com outras épocas e, portanto, sua leitura é importante. No entanto, o trabalho com clássicos exige mais atenção do professor na seleção das obras (inclusive optando por traduções mais modernas para as obras estrangeiras), uma contextualização mais apurada e um diálogo mais intenso com outras linguagens, sobretudo as não verbais (cinema, artes visuais), e com outras disciplinas. Por exemplo, em 2007, as turmas de 2ª. série do Ensino Médio realizaram um trabalho de leitura de contos de Machado de Assis, conciliando as atividades de análise e criação textual ao conteúdo estudado nas aulas de Filosofia, no caso, a ética. Produziram uma resenha crítica, após estudo desse gênero textual5, e uma versão numa modalidade artística escolhida por eles. Abaixo, um exemplo das resenhas críticas produzidas. Resenha crítica: “A Carteira” Ética é a ciência da moral ou dos bons costumes. É um princípio de conduta moral de pessoa, grupo, religião. Achamos que ser ético e honesto sempre será a melhor saída para qualquer situação de nossas vidas. O que nunca paramos para pensar é que não basta apenas nós sermos honestos sem a honestidade dos outros. 5 Convém salientar que o modelo seguido é o da resenha crítica jornalística. Daí, a brevidade dos textos e o emprego de uma linguagem simples e ágil. 173


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Foi pensando nisso que Machado de Assis escreveu o conto “A Carteira”. Nesse conto relata a história de um homem endividado, que encontra uma carteira capaz de pagar todas as suas dívidas, ficando indeciso entre entregar a carteira ou não ao seu dono. Desde aquela época, o interesse pessoal sempre prevaleceu nas nossas escolhas, porém, no conto de Machado de Assis, prevalece o senso ético, pois o personagem Honório resolve entregar a carteira que poderia fazer milagres aos seus problemas financeiros. No entanto, a ironia machadiana se revela no final, quando nós descobrimos que Gustavo, dono da carteira, estava tendo um caso com a esposa de Honório. Logo, Honório acabou sendo fiel a quem era infiel a ele. Outra característica bem presente no conto, assim como em outras obras de Machado de Assis, é o surgimento de um triângulo amoroso. É uma traição dupla, uma vez que Honório é traído pelo seu amigo Gustavo e por Dona Amélia, sua esposa. Apesar de se tratar de um conto do século XIX, o tema é bastante atual, a ética e a honestidade estão cada vez mais diminuindo na formação da personalidade das pessoas. O conto tem um “ar” de suspense, e isso o torna interessante e favorável aos leitores que gostam desse tipo de ação. Alunas do 2º. ano do Ensino Médio Observam-se, no último parágrafo da resenha, quais aspectos são valorizados positivamente pelos alunos: a atualidade do tema e o efeito de suspense, ou seja, um aspecto conteudístico e outro, formal. Em outras resenhas, é possível observar como uma escolha criteriosa do texto a ser trabalhado pode driblar a principal crítica dos alunos na leitura de clássicos: o vocabulário. Vejamos alguns trechos:

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“Um Homem Célebre”, publicado originalmente no livro Várias Histórias, foi escrito por Machado de Assis. Logo ao lermos o nome do autor, esperamos textos complexos, geralmente entediantes. Esse não é o caso deste conto. Curto, linguagem simplificada, é uma leitura agradável. Alunos do 2º. ano do Ensino Médio “O Alienista”, do autor consagrado da fase realista brasileira, Machado de Assis, é um conto extremamente crítico e irônico. [...] O texto é muito bem escrito com uma linguagem de fácil acesso ao leitor. A história é envolvente e interessante com sua visão irônica da vida e do cotidiano. Às vezes explícitas, ou nas entrelinhas, as críticas sociais são fortemente representadas. Gostamos do livro e recomendamos por apresentar de forma simples e curta um tema tão profundo. Uma leitura surpreendente e emocionante. Alunos do 2º. ano do Ensino Médio Como se pode perceber, os alunos deixam transparecer, em seu texto, as expectativas negativas que possuem em relação a autores canônicos (“textos complexos, geralmente entediantes”) e como o texto os surpreendeu, desfazendo tais expectativas. Verificam-se também, nas resenhas produzidas, outros aspectos valorizados pelos alunos: agilidade narrativa, linguagem simples (“de fácil acesso”). Desse modo, é possível ao professor perceber quais critérios são utilizados pelos alunos no julgamento de uma obra, contribuindo para que o docente obtenha informações que devem ser levadas em consideração em futuras atividades de leitura, seja para selecionar obras com maior potencial de

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agradar aos alunos, seja para desenvolver estratégias para aquelas que não se encaixam no perfil desenhado. Outra estratégia útil ao se trabalhar com obras clássicas é explorar a intertextualidade, mostrando a permanência dos clássicos nas produções de autores contemporâneos. A complementação da leitura dos clássicos com leituras de obras de recriação é um dos caminhos. Lançamentos editoriais recentes como Extratextos I: Clarice Lispector, personagens reescritos (Oficina Raquel, 2012) e Machado recriado (Publifolha, 2008) são dois exemplos desse tipo de publicação, e podem ajudar os alunos a construir um olhar comparativo na recepção de obras literárias. Segue trecho de uma resenha produzida por uma aluna comparando o conto “A cartomante”, de Machado de Assis, e a releitura feita pelo paulistano Bruno Zeni: Resenha: Vidente do Amor “Machado Recriado” traz adaptações de obras de Machado de Assis feitas por escritores contemporâneos, entre estas obras está o conto Vidente do amor, escrito pelo jornalista e escritor Bruno Zeni, que tem como outras obras o livro “Corpo a Corpo com o Concreto” e “Sobrevivente André du Rap”. Em minha opinião esse conto segue quase todas as características do conto original que é “A Cartomante”, só muda para a atualidade, conta com muita clareza os detalhes de cada personagem e de cada momento, e o autor trás a mesma crítica que o original, “Será que se deve acreditar em uma vidente qualquer ou na voz da razão?” Também o final é muito surpreendente e confesso que fiquei com vontade de ler alguma continuação do conto, pois a história é envolvente. [...]. Aluna do 4º. semestre do Ensino Médio Integrado ao Técnico em Eletrotécnica

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A leitura das duas obras permite ao aluno identificar semelhanças e diferenças entre elas e determinar quais aspectos lhe agradaram mais. Além disso, esse tipo de atividade reforça o caráter universal dos clássicos, mostrando que, com pequenas alterações, os temas e conflitos presentes neles continuam válidos na atualidade. É importante também dar espaço para que os alunos exercitem sua criatividade, produzir adaptações é uma das estratégias com maior êxito entre adolescentes. Em virtude do meio desta publicação, foram selecionadas apenas produções de modalidades adaptadas à publicação impressa. O primeiro exemplo é um fragmento de uma história em quadrinhos produzida a partir do conto “O Alienista” (a exibição completa da história é inviável devido ao limite máximo de páginas para este texto). Figura 2 – História em quadrinhos criada por alunos do 2º. ano do Ensino Médio

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Nesta adaptação, o nome do protagonista é trocado, mas também a sua especialidade: de psiquiatra passa a cirurgião plástico. O enfoque da história é atualizado para a atual obsessão pela perfeição corporal. Tais liberdades em relação ao enredo original não só devem ser permitidas como também estimuladas em atividades de recriação. Outro exemplo é um fragmento de uma mashup6 do romance romântico A escrava Isaura, em que o trecho alterado/incluído aparece em negrito. Malvina, que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândida e boa, e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logo desde o princípio o mais vivo interesse e terna afeição pela cativa Isaura. Malvina ouvia vozes do além, e Isaura recebia entidades, mas isto era segredo, que apartir do dia em que começaram a ser amigas, compartilhavam de feitos assim. Era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e submissa, que apesar de sua grande beleza e incontestáveis dotes de espírito, conquistava logo ao primeiro encontro a benevolência de todos. Isaura tornou-se imediatamente, não direi a mucama favorita, mas a fiel companheira, a amiga de Malvina que, afeita aos prazeres e passatempos da corte, muito folgou de encontrar tão boa e amável companhia na solidão que ia habitar. Alunos do 3º. Semestre do Ensino Médio Integrado ao Técnico em Eletrotécnica As mashups literárias partem do princípio de se apropriar de um clássico da literatura e adicionar elementos fantásticos a ele, mas sem perder a identidade do texto original. O objetivo é reconstruir a história, 6 O termo mashup, em inglês, significa mistura. No mundo da música, de onde se origina, designa a mistura de trechos de duas ou mais canções para criar uma terceira.

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deixando-a mais atrativa e inusitada, daí a preferência pela inclusão de zumbis, vampiros, ETs e outras criaturas fantásticas. Quanto mais estranha a mistura, maior a chance da nova obra fazer sucesso entre os leitores jovens. Portanto, a criação de mashups exige, dos alunos, a leitura atenta do texto original e a seleção de elementos que melhor se adaptem ao enredo, já que alterações muito radicais, de linguagem ou mudança de desfecho, não são permitidas. Mas essa modalidade exige também, do professor, uma postura diferente diante da obra clássica, pois a mashup promove um processo de dessacralização do clássico.

2.3 mito 3 - adolescentes não gostam de poesia. Não se trata necessariamente de não gostar, o que se observa, de fato, é que a leitura de poesia é pouco cultivada pelos jovens e, consequentemente, pouco conhecida. Isso decorre da hegemonia do gênero narrativo na atualidade, que tornou a lírica uma espécie de “primo pobre” da literatura. Isso pode ser verificado em várias pesquisas: por exemplo, no levantamento Retratos da Leitura no Brasil, a lírica figura em 7º. lugar entre os gêneros que os leitores costumam ler, atrás da Bíblia, dos livros didáticos, dos romances, dos livros religiosos, dos contos e da literatura infantil. Foi citada por apenas 20% dos entrevistados da edição de 2011 da pesquisa, em contraposição aos 28% da segunda edição, quando ocupava a 5ª. posição entre os gêneros costumeiramente lidos. Também as listas de obras lidas atestam a baixa taxa de legibilidade da poesia. Na referida pesquisa, nenhuma obra lírica figura entre 20 primeiras posições das listas de livro mais marcante e de último livro lido ou que vai ler. Também no levantamento Por que ler os clássicos?, esse fenômeno se verificou. Em relação aos gêneros literários, foi dominante o gosto pela leitura de textos em prosa, sejam romances, contos ou crônicas.

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O romance predominou nas respostas, sendo apontado como gênero preferido por 37% dos alunos; contos e crônicas foram apontados por aproximadamente 20% deles; e apenas 7% dos alunos afirmaram ter poemas entre suas preferências de leitura. 15% dos informantes não responderam à questão. A lista com obras lidas por iniciativa própria (cf. quadro da seção 2.1) não traz nenhum título de poesia, e na lista de livros que pretendia ler em breve, figurou apenas Marília de Dirceu, que, na época da coleta dos dados, era obra indicada para o vestibular da UFPel. No entanto, uma rápida visita à internet, mostra que a poesia está mais viva do que nunca. Uma busca com a palavra “poesia” no mais popular site de pesquisa resulta em 71.000.000 resultados, já a palavra “poemas” registra 48.000.000 resultados, entre portais, como http:// www.citador.pt/poemas/temas ou http://pensador.uol.com.br/poemas; blogs de criação literária (http://o-amor-em-poesia.blogspot.com.br, por exemplo) ou de homenagem a poetas (como o http://vinicius-demoraes.blogspot.com.br/), perfis em sites de redes sociais (https://pt-br. facebook.com/marpoesias) ou mesmo canais do youtube (https://www. youtube.com/user/projetotodapoesia). A quantidade impressionante de sites dedicados à poesia sugere um universo igualmente amplo de leitores, mesmo que ocasionais. Tal contexto indica que o professor de literatura precisa dar atenção especial ao gênero lírico se deseja incentivar o gosto pelos textos poéticos. A poesia, pela sua brevidade, é propícia para o trabalho em sala de aula. Mas é preciso estar atento para não cair na tentação de transformar a leitura do poema num simples exercício de exame de características formais e identificação de figuras de linguagem. Aproximar poemas de épocas e estéticas distintas, mas com temáticas comuns, favorece a percepção, por parte dos alunos, de temas universais e também de que mudanças de visão do mundo produzem diferentes abordagens. Trabalhos de recriação

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(paródica ou não) contribuem para a formação do gosto, pois permitem a apropriação do texto e a expressão da subjetividade. No projeto interdisciplinar do Sarau, propostas que faziam a poesia romântica dialogar com outras linguagens artísticas eram frequentemente exploradas pelos alunos. Um exemplo pode ser visualizado na imagem a seguir. Figura 3 - Sarau 2007 – Instalação baseada no poema O Navio Negreiro, de Castro Alves.

Abrir espaço para a expressão poética dos alunos em trabalhos escolares, mesmo que envolvendo outros gêneros, é outra maneira de incentivar a formação de leitores de poesia, pois, como relatam diversos escritores e estudiosos da área, como Ítalo Calvino e Alberto Manguel, todo escritor é, antes de tudo, um leitor.

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2.4 mito 4 - escolas privadas formam leitores melhores Essa prerrogativa não é determinante, o trabalho com leitura nas escolas varia bastante, tanto na rede pública quanto na privada. Como estudo preliminar à sua tese de doutoramento, William Roberto Cereja realizou uma pesquisa de campo com alunos do 3º. ano do Ensino Médio de quatro escolas de São Paulo, duas da rede pública e duas da rede privada. Os resultados desse levantamento evidenciaram que não há um distanciamento tão grande como comumente se acredita entre as duas redes. De acordo com Cereja (2005, p.34), “o poder aquisitivo e a formação escolar dos pais têm influência na relação dos jovens com a leitura, porém esses fatores não são determinantes, já que alunos de camadas mais humildes declararam ler com certa regularidade, enquanto alunos cujas famílias têm renda mais alta afirmaram não ler com regularidade”. Por outro lado, as respostas dos alunos na pesquisa indicaram que é mais determinante para o êxito das propostas de leitura a metodologia adotada pelos professores, havendo uma rejeição às aulas meramente transmissivas. Para os jovens, “têm mais importância os conteúdos significativos, o que implica a necessidade de relacionar o estudo da literatura com outras áreas do conhecimento, com outras artes e linguagens e com situações do mundo contemporâneo” (CEREJA, 2005, p. 35), visão essa em consonância com o preconizado pelas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Já a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, com um espectro amostral bem mais amplo, também destaca a importância do professor na formação do leitor, ele é o principal agente influenciador, apontado por 45% dos entrevistados no levantamento de 2011. Em segundo lugar, vem a família. Além disso, convém lembrar que jovens socioeconomicamente mais favorecidos podem ter mais condições de adquirir livros, mas isso também

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vale para outros bens culturais (games, computadores, cinema) relacionados a outras atividades de entretenimento, que podem afastá-los da leitura.

3 conclusão As reflexões contidas neste texto procuram identificar fatores responsáveis pelas dificuldades no processo de formação de leitores no espaço escolar, em especial no Ensino Médio. É importante resgatar, no espaço escolar, especialmente na disciplina de Literatura Brasileira, o prazer de ler. Ler não apenas porque “tal obra é relevante” ou porque determinado autor é “o maior autor da Literatura Brasileira”, mas também porque ler é divertido, porque as histórias nos dão prazer. Para tanto, preconizamos um trabalho pedagógico que valorize a criatividade dos discentes, usando-a como elemento de aproximação do universo literário. Nessa visão, o papel do professor é o de criar condições para que a sedução do leitor ocorra. Não impor uma determinada leitura ou um modo de ler tido como único aceito, mas, ainda que informando sobre características do período literário e do estilo do autor, dar liberdade para que os alunos construam suas interpretações e não se sintam tolhidos a expressar suas apreciações estéticas. Assim sendo, o docente atua como mediador: aproxima o leitor da obra, ao invés de “traduzi-la” para ele.

referências ABREU, Márcia. Cultura letrada. Literatura e leitura. São Paulo: UNESP, 2006. _____. Os números da cultura. In: RIBEIRO, Vera Masagão. Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. p. 33-45. AGUIAR, Vera Teixeira de; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: A formação do leitor – alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Merca-

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BARBOZA, Catarina Maitê Macedo; FROEHLICH, Márcia. Por que ler os clássicos?Uma análise da relação entre leitores adolescentes e textos canônicos dos séculos XVIII e XIX. Pelotas: IFSul, 2009. Relatório de pesquisa. BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília, 2013. CEREJA, William Roberto. Ensino de literatura: Uma proposta dialógica para o trabalho com literatura. São Paulo: Atual, 2005. FILIPOUSKI, Ana Mariza Ribeiro; MARCHI, Diana Maria. A formação do leitor jovem: Temas e gêneros da literatura. Erechim: Edelbra, 2009. INSTITUTO PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil. São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. Disponível em: <http://www.abrale.com.br/wp-content/uploads/Retratos-da-Leitura-no-Brasil-2012.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2014. LEAHY-DIOS, Cyana. A educação literária de jovens leitores: Motivos e desmotivos. In: RETTENMAYER, Miguel; RÖSING, Tania M. K. (org.). Questões de literatura para jovens. Passo Fundo: UPF, 2005. SILVA, Monica Ribeiro da. Juventudes e ensino médio: Possibilidades diante das novas DCN. In: AZEVEDO, José Clóvis de; REIS, Jonas Tarcísio. O ensino médio e os desafios da experiência: Movimentos da prática. São Paulo: Fundação Santillana; Moderna, 2014. p. 61-75.

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“USOS” DO MANUAL – POSSIBILIDADES DIDÁTICAS E ABORDAGENS DO CONTEMPORÂNEO Renata Farias de Felippe1 Conciliar as imposições curriculares ao (potencial) interesse e às necessidades discentes são alguns dos muitos desafios dos professores como um todo e que, no caso do professor de Literatura, encontra uma dificuldade bem específica: o fato de a maioria dos alunos não ter a leitura literária como um hábito ou como um prazer. Para o enfrentamento cotidiano de tais dificuldades o professor do ensino médio dispõe de duas ferramentas, digamos, clássicas: o livro didático e o manual de historiografia literária, aquele que, geralmente, o acompanha desde a sua graduação. Utilizá-los é uma prática já naturalizada no trabalho docente e que não necessita ser desconsiderada, embora saibamos que essas ferramentas passam por um processo de “envelhecimento”, enquanto as manifestações literárias são não apenas produzidas de forma incessante como “reatualizadas”2 no ato de leitura. Este texto não tem a pretensão de substituir os manuais, tampouco os livros didáticos, objetiva apenas expor algumas possibilidades de trabalho a partir dos citados, a partir, inclusive, das suas lacunas. Retomemos alguns dos princípios – e das inevitáveis omissões - dos manuais para tratarmos do que, talvez, represente uma das maiores dificuldades para os professores: abordar a literatura recente. 1 Professora de Literatura Brasileira e de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Maria. Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009). 2 À semelhança do defendido por Roland Barthes, encaramos a leitura como uma prática “transindividual”, realizada “dentro de certos códigos, certas línguas, certas listas de estereótipos” (cf. 1988, p.28), os quais, assim como os sujeitos, são sensíveis à ação do tempo, às mudanças sociais, históricas e culturais. Apesar de as obras, em si, não mudarem, o modo como são lidas está em permanente transformação.

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Nos primeiros decênios do século XX, a literatura brasileira apresentava - de acordo com os manuais de historiografia literária - duas tendências dominantes: a primeira, uma espécie de desdobramento da tendência realista-naturalista-regionalista – como podemos observar na ficção de Lima Barreto, no romance Luzia Homem (1903), de Domingos Olympio, ou ainda, no romance-reportagem Os sertões, de Euclides da Cunha (1902); a outra, ainda tributária ao parnaso-simbolismo e ao decadentismo franceses, como atestam as produções de Augusto dos Anjos, a poesia dos jovens Manuel Bandeira e Mário de Andrade, a ficção de João do Rio e de Coelho Neto. De acordo com os manuais, a Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida sob o influxo dos movimentos de vanguarda europeus, marcaria – cultural e ideologicamente - a entrada da literatura brasileira no século XX. Em 1928, Oswald de Andrade lança o “Manifesto Antropófago”, no qual, através da alegoria antropofágica, o poeta problematiza e redimensiona a questão da influência cultural europeia sobre a brasileira. Dividido pela historiografia literária em três fases e analisado em sala de aula, igualmente, em partes, o Modernismo brasileiro - cuja preocupação inicial era a de promover mudanças estético-estilísticas assume conotações sociopolíticas a partir da década de 30. A ficção de Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Raquel de Queirós, voltadas para os rincões não contemplados pela política desenvolvimentista da Era Vargas, estão entre as maiores referências neorregionalistas. No mesmo período, irrompem as narrativas de Érico Veríssimo, Dyonélio Machado e Marques Rebelo, atentas à solidão do homem inserido nas cidades brasileiras em processo de vertiginoso crescimento. Na poesia, Carlos Drummond de Andrade leva a liberdade formal do primeiro modernismo a um outro patamar, ao aliá-la à faceta crítica social e existencial. Na denominada terceira fase modernista, a poesia retoma a preocupação formal e é

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nesse momento que irrompem poetas como João Cabral de Melo Neto e Hilda Hilst. Já a narrativa adota uma perspectiva vertical, introspectiva, materializada, por exemplo, em Perto do coração selvagem (1944), de Clarice Lispector. Paralelamente à tendência introspectiva do romance surge a ficção mítico-regionalista de Guimarães Rosa, cuja notoriedade é materializada na década seguinte com a publicação do romance épico Grande sertão: veredas (1956). Ainda que as divisões do Modernismo brasileiro possam ser questionadas, mesmo que elas possam aparentar dessemelhanças entre si, há um traço que une as tendências: a defesa de paradigmas “a serviço” da coletividade, sejam esses valores de natureza estéticaestilística (primeira fase), sociopolítica (“literatura de 30”) ou revisionista (retorno à forma na poesia de 45 e “a volta ao eu”, no romance introspectivo). Nesse sentido, o(s) Modernismo(s) pode(m) ser encarado(s) como produtos derradeiros do ideal de modernidade estabelecido pelo Iluminismo e que entraria em um processo de gradativo esgotamento a partir da segunda metade do século XX. Por volta dos anos 1960, a ideia de uma coletividade ideologicamente coesa passa por um processo paulatino de desgaste (por diversos fatores que não serão elencados aqui), cujos efeitos - como não poderia deixar de ser – repercutem na literatura. Uma das consequências mais visíveis desse processo seria a “morte” das grandes narrativas, veiculadoras de saberes e ideais totalizantes. No Brasil, especialmente após os anos 70, em plena Ditadura Militar, uma literatura voltada para a representação de seres anódinos, portadores de incertezas e apartados da ideia de coletividade - e, no caso da denominada Poesia Marginal, o surgimento de expressões voltadas para o cotidiano da juventude hedonista de então - passa a ser frequente, ao mesmo tempo em que manifestações comprometidas com a visibilização de grupos à margem da cultura/ da sociedade assumem

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relevo. Ainda que, entre 1945 e os dias atuais, uma série de influxos possam ser destacados no âmbito literário, a abordagem a partir dos estilos de época parece induzir os discentes à ideia de que a literatura “acaba” com a denominada Geração de 45, quando, muitas vezes, o que terminou foi o programa escolar. As manifestações recentes, quando abordadas, recebem um olhar generalista, perspectiva materializada pelos manuais e/ou livros didáticos, já que estão em processo. Tal impressão, bem como o pressuposto de que todas as manifestações compostas em um determinado período incorporam, necessariamente, todas as características apontadas pelo livro didático, são alguns dos problemas decorrentes da perspectiva historiográfica linear. O efeito mais pernicioso desse viés, porém, é a equivocada compreensão de que a disciplina de literatura limita-se à memorização de caracteres e de fatos históricos, abordagem que desconsidera o principal: a leitura do próprio texto literário. Por outro lado, o currículo de grande parte das escolas está organizado por períodos e a prática docente, por sua vez, circunscrita a ele. Como podemos, então, usar a estrutura curricular a nosso favor? Antes de mais nada, acreditamos que seja consenso o básico: a leitura do texto literário em si é indispensável. Trabalhar os períodos, escolas e/ou movimentos literários como pontos de referência, com os quais as manifestações literárias mantêm relações de menor ou maior distanciamento e não como dogmas, deve ser considerado. Antes de apontarmos possibilidades, revisemos as nossas próprias referências, em especial, algumas das tendências literárias proeminentes da segunda metade do século passado aos dias de hoje. Posterior à denominada terceira fase do Modernismo, destacam-se, nos anos 50, as antologias Noigandres (1951) e Noigandres 2 (1955), edições que sinalizam alguns dos preceitos da Poesia Concreta. Será na antologia de 1955, porém, que o trio Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos

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concretiza o seu ideal estético/estilístico, materializado pelo abandono do verso, pela formulação de uma sintaxe espacial, pela valorização do aspecto gráfico e material em detrimento ao lirismo e à musicalidade do poema. Nos anos 70, a chamada Poesia Marginal (caracterizada pela circulação alternativa, pelo estilo formalmente despretensioso e pela reincidente temática hedonista) e o relevo assumido pelo gênero conto (que assumira a responsabilidade crítico-social, vetada à imprensa da época) veiculam as ânsias coletivas então em voga, o que ficaria cada vez menos frequente na literatura brasileira posterior à abertura política. A recapitulação voltada aos projetos literários brasileiros de maior proeminência da segunda metade do século anterior, mais do que tributária à perspectiva diacrônica e linear, funciona como uma estratégia para observarmos a diminuição e/ou redimensionamento dos projetos de ordem coletiva, a diluição de paradigmas outrora encarados como coerentes e unívocos (as ideias de Pátria, Nação, Identidade, por exemplo). O esvaziamento dos projetos de ordem coletiva e abrangente ou a alteração no enfoque desses projetos não significam o seu desaparecimento. Na literatura brasileira recente, persistem manifestações tributárias aos (supostos) interesses da coletividade ao lado de textos nos quais mesmo a noção de sujeito surge como uma interrogação. Paralelamente a tais tendências, encontramos manifestações voltadas para a visibilização de determinados grupos outrora negligenciados pelo ideário nacional/ modernizante (mulheres, negros, indígenas, homossexuais, moradores das periferias urbanas, imigrantes, população carcerária). Na literatura brasileira contemporânea, portanto, encontramos obras “engajadas” - seja tal comprometimento social e/ou de natureza estético-estilística -, porém, essas manifestações coexistem com outras, permeadas por um profundo sentimento de descrença diante dos projetos coletivos, da inteireza do eu, da capacidade de dizer da linguagem. Nessa

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última tendência - que por ora denominaremos como pós-moderna -, o viés ideológico de uma determinada manifestação literária não parece articulado a um projeto coletivo, a um ‘bem’ maior. Ou seja, ainda que existam manifestações voltadas aos anseios de determinados grupos, essa literatura mostra-se cética com relação às mudanças efetivas, permanentes e abrangentes3. O breve apanhado sobre as principais tendências da nossa literatura a partir do século XX tem uma finalidade mais de localização do que, propriamente, classificativa. O silêncio da maior parte dos manuais de literatura relativo à produção recente também motiva a explanação introdutória, já que as manifestações contemporâneas dialogam com a tradição, com as obras consagradas, mesmo que seja para negá-las. O que propomos neste texto, portanto, são alternativas de abordagem em sala que os manuais, por sua natureza classificatória, não podem oferecer. Como trabalhar, por exemplo, um texto literário que destoa dos caracteres de um estilo de época com o qual (temporalmente) coexistiu? E quando essa mesma manifestação é distinta, única, até mesmo dentro da produção de um determinado escritor? Para atender a tais questões, escolhemos o poema “Soneto”, de Mário de Andrade. Datado de 1937, no poema de Andrade a referência à forma fixa fica explícita já no título -“Soneto” - o que aponta para um desacordo, se considerarmos o fato de o escritor ter sido um dos principais articuladores da Semana de Arte Moderna e uma figura emblemática da denominada fase heroica do Modernismo (primeira fase). O poema é um dos muitos exemplos de que a divisão da literatura brasileira em estilos de época é uma generalização e não um fator classificatório determinante. A seguir, 3 De uma maneira bastante simplificada, a literatura pós-moderna representaria a morte “das grandes narrativas” de caráter normativo, unívoco e totalizante (cf. PELLEGRINI, 2001, p. 62). Para maiores detalhes, vide o texto ‘Ficção brasileira contemporânea: assimilação ou resistência?’, de Tânia Pellegrini, que está disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr. gov.br/arquivos/File/2010/veiculos_de_comunicacao/NOR/NOR0135/NOR0135_07.PDF.

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reproduzimos o “Soneto”, incluso na coletânea Os cem melhores poemas brasileiros do século (2001), organizada por Ítalo Moriconi: Aceitarás o amor como eu o encaro?... ... Azul bem leve, um nimbo, suavemente Guarda-te a imagem, como um anteparo Contra estes móveis de banal presente.

Tudo que há de milhor e de mais raro Vive em teu corpo nu de adolescente, A perna assim jogada e o braço, o claro Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo Também mais nada, só te olhar, enquanto A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... A evasão total do pejo Que nasce das imperfeições. O encanto Que nasce das adorações serenas.

A preocupação formal, evidenciada no poema através da adoção da

forma fixa soneto e da utilização de versos decassílabos, parece contradizer a faceta vanguardística dos autores que se destacaram na primeira fase do Modernismo. Dois fatores historiográficos, no entanto, podem ser considerados: o livro de estreia de Mário de Andrade, Há uma gota de sangue em cada poema (1917), é ainda tributário ao estilo parnaso-simbolista, o que revela um domínio prévio das formas poéticas convencionais. Outro aspecto

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relevante é o ano em que o poema foi escrito, 1937, informação, não ao acaso, explicitada na coletânea de Moriconi. Como nos lembram os livros didáticos, o segundo momento do Modernismo, posterior a 1930, é apontado como uma fase de equilíbrio e de aprofundamento temático. No caso do poema de M. Andrade, essa harmonia pode ser detectada através do uso de uma forma convencional aliada à simplicidade, esta, materializada pela linguagem simples - que admite, por exemplo, o desvio ortográfico na expressão “milhor”e pela abordagem prosaica do amor. Do ponto de vista analítico, alguns tropos e escolhas lexicais merecem atenção, também pela sua simplicidade. O eu-lírico começa o poema com uma pergunta retórica - “Aceitarás o amor como eu o encaro?” - , seguida de imagens que remetem à ideia de leveza e de sonho: o “anteparo” (que significa tanto “proteção”, “resguardo” quanto “biombo”) encobre o objeto amoroso com uma nuvem azul e leve, metáfora que pode estar associada à reminiscência ou à idealização de um encontro. De qualquer forma, a atmosfera que envolve os amantes - mágica e sedutora – é contraposta à figura dos “móveis de banal presente”, índices da materialidade do cotidiano. Na segunda estrofe, o erotismo fica mais intenso quando o corpo nu e jovial, metonimicamente, materializa o que há de “milhor” e “de mais raro”. “Milhor” e “raro” - adjetivos tornados substantivos abstratos são, em certo sentido, expressões antagônicas, se considerarmos a grafia da primeira expressão, que contradiz o sentido do segundo termo, associado ao refinamento. A referência às partes do corpo – pernas, braços – “jogadas”, remetem à desinibição e à intimidade, enquanto os olhos dos amantes estão “presos” mutuamente, o que conota o comprometimento e a cumplicidade do par amoroso. Em todos os versos da terceira estrofe o eu revela, de forma denotativa, o desejo de manter uma ligação livre de exigências e baseada no momento. Já na estrofe seguinte, o sujeito poético destaca a grandiosidade dessa relação despretensiosa, sem pudores e impedimentos – sem “pejos”. O uso do verbo “nascer” no penúltimo verso deixa ambíguo o seu referente:

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o que nasce das imperfeições, a “grandeza” ou o “pejo”? Supondo que o verbo se relacione ao primeiro termo, a “grandeza que nasce das imperfeições” pode ser relacionada ao amor que nasce do cotidiano, dos breves encontros, dos momentos de relaxamento e de intimidade. Essa ideia vai ao encontro do poema no seu sentido mais visível, se considerarmos a relação estabelecida entre a sua forma - soneto decassílabo, o que remete à tradição poética em sua “grandeza” - e o seu conteúdo - que celebra a beleza do amor prosaico, momentâneo, ‘imperfeito’. A análise esboçada é uma das muitas possibilidades de leitura e uma tentativa de aproximação do olhar mais generalizante de grande parcela discente, pouco familiarizada à poesia e não afeita a uma análise estruturada, metódica. Aliar a análise dos elementos textuais - como os tropos de linguagem e o uso da forma fixa - à historiográfica talvez torne a semantização do poema mais atraente ao leitor recém-iniciado. Mas como poderíamos, de fato, trabalhar esse poema em sala? A seguir, propomos algumas questões4:

Quanto ao vocabulário, temos, no poema, expressões incomuns (“nimbo” e “pejo”). O que elas significam?

O vocábulo “milhor” é, propositalmente, grafado dessa forma. Podemos associar esse "desvio" a qual característica do Modernismo?

O uso de expressões da norma culta (“nimbo” e “pejo”), quando relacionadas ao desvio ortográfico na expressão “milhor”, tem qual efeito sobre você enquanto leitor?

O poema é um soneto, portanto, uma forma fixa. Esse uso era comum nas duas primeiras fases do Modernismo? Justifique.

4 Pelo fato de as questões serem de natureza interpretativa e argumentativa, neste texto não serão colocadas as respostas.

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Quanto à expressão do sentimento amoroso no poema, esta se assemelha à expressão predominante de algum outro estilo de época ou de algum outro poema lido? Justifique.

Provavelmente, nem todas as questões levantadas possam ser proveitosas para trabalhar com esta ou aquela turma, nesta ou naquela escola. Em alguns casos, talvez nenhuma das sugestões seja aplicável. O que é ou não adequado para a utilização em sala é decisão do professor, porém, o que tentamos esboçar nesses exemplos é a possibilidade de desenvolver atividades em sala de aula nas quais fique explícito para o aluno que os denominados estilos de época, com suas datas e características, são generalizações que podem - e devem - ser consideradas, mas que não são fórmulas. Sabemos que as produções de um determinado período são variadas, decorrentes não só dos fatores sócio-histórico-culturais de uma época, mas também de subjetividades (do escritor, em diálogo com os seus contemporâneos) e que estão sujeitas a leituras tão pessoais quanto variáveis (historicamente e do ponto de vista cultural). Ainda que a poesia seja um gênero pouco prestigiado entre os leitores - fato que pode ser observado através da tiragem reduzida de exemplares das edições que contemplam o gênero -, em termos didáticos, a consideração de poemas em sala pode ser bastante funcional, já que os textos não necessitam de leitura prévia; são, via de regra, concisos (em relação à narrativa), bem como apresentam, em sua imensa maioria, apelo musical e emotivo. Alguns gêneros narrativos, como o conto e a crônica, também podem ser, em termos práticos, mais “fáceis”, por fatores semelhantes aos citados. Gênero academicamente mais prestigiado, o romance apresenta algumas dificuldades no trabalho em sala, entre outros fatores, dada a sua extensão. Tendo de lidar com um público majoritariamente não leitor (de literatura canônica), o professor

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é impelido a adotar duas medidas: a cobrança de trabalhos avaliados, na tentativa de fazer o discente ler o texto integral; e, no caso das abordagens em sala, as análises a partir de capítulos e de fragmentos. Mesmo que as medidas não garantam uma leitura, digamos, profícua ou atenta do texto literário, essas são alternativas acessíveis ao docente e estratégias mais eficientes na árdua tarefa de formar leitores do que exigir a memorização de nomes, datas, características de um determinado estilo e/ou autor. Se o incentivo à leitura desinteressada, desde os primórdios da escola básica, é a medida mais efetiva para a formação de leitores críticos – de todo o tipo de texto, inclusive o literário -, sabemos que palavras como ENEM e VESTIBULAR são capazes de despertar nos alunos, senão interesse pela literatura, uma súbita necessidade de dominá-la, o que leva a equívocos como leituras de resumos ou a busca de adaptações cinematográficas em detrimento ao texto original. Acreditamos que a leitura do texto em si seja insubstituível, ainda que adaptações, manuais de literatura e de história, vídeos com leituras dramáticas ou encenações possam auxiliar na compreensão do texto ou funcionar como estratégias para chamar a atenção discente para uma determinada obra. Se a análise romanesca por si só representa um desafio para a prática docente - em função de vários fatores, entre eles, os já elencados -, a dificuldade se torna acentuada quando aquele se depara com a necessidade de trabalhar com obras muito recentes, que são “novidades” para o próprio professor. Sabemos que muitas vezes os cursos de graduação em Letras não vão além dos clássicos literários, ou seja, não preparam o futuro professor para lidar com narrativas não contempladas pelos manuais de historiografia literária e que, portanto, não se “encaixam” em um estilo de época delimitado. Além disso, muitas das manifestações romanescas contemporâneas referenciam vários espaços, expõem/dispõem a narrativa de forma não-linear, a partir de diferentes

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vozes ou de múltiplas perspectivas, ou seja: a complexidade do romance contemporâneo - particularmente daqueles denominados pós-modernos pode se manifestar desde a sua estrutura. Mais do que apontar problemas, neste texto tentaremos expor possibilidades de trabalho e, para esse fim, partiremos do romance Nove noites (2002)5, de Bernardo Carvalho6 narrativa bastante peculiar por tratar, entre outros elementos, o conflito cultural entre o brasileiro urbano/cosmopolita e as populações indígenas “empurradas” para o Parque do Xingu7. Nove noites é uma narrativa estruturalmente complexa e ideologicamente marcada pelo ceticismo, elementos que direcionam à vertente pós-moderna da literatura brasileira. Ainda que a noção de pósmoderno seja problemática e/ou contestável, em parte da ficção recente algumas recorrências, no mínimo, destoam da ânsia identitária (tanto a coletiva quanto a individual) e contestatória que movimentam o(s) Modernismo(s). Entre as características da ficção que denominaremos aqui como pós-moderna estão ausência de projetos; a desorientação ideológica (das personagens, do narrador); a estrutura fragmentada do romance; a não-linearidade temporal; a representação de personagens em trânsito; o questionamento da História; o destaque dado a figuras 5 A inclusão do romance entre as leituras obrigatórias do Vestibular 2013 da UFSM foi recebida com apreensão por parte significativa dos professores do ensino médio e dos candidatos enquanto perdurouo programa. A escolha do romance como um dos pontos de partida desta proposição não é, de forma alguma, casual. 6 Bernardo Carvalho, escritor brasileiro nascido em 1960, atuou como jornalista antes de sua estreia literária com o livro de contos Aberração (1993). Ao tratar sobre as marcas autorais de Carvalho, Maria Eunice Moreira revela que o escritor a “cada romance, [...] surpreende com o seu discurso ficcional, que, apoiado sobre o documental, constrói-se sob o domínio total da ficção. Nada é real, mas poderia ter sido assim, tudo é ficção, mas se parece com o real” (2014, p.36). A mistura entre o documental e o ficcional, presente também em Nove noites, bem como a postura ‘detetivesca’ do narrador se assemelham (e muito) ao trabalho de jornalista/repórter. 7 No romance, a abordagem do tema redimensiona as tensões entre “civilizados” e populações indígenas, problemática que atravessa a literatura brasileira e que, no Romantismo, foi de certo modo contornada pelo viés da idealização e do maniqueísmo.

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históricas obscuras. Uma outra característica se destaca nessa ficção: a insistência na autorreflexividade, seja através do questionamento dos limites da linguagem e da capacidade comunicativa, bem como da validade da literatura; seja pela exposição dos conflitos que envolvem o próprio fazer literário. No meio desse conflito está, muitas vezes, a figura do autor tornada personagem e a problemática da escrita tornada enredo. Muitos dos elementos citados podem ser vistos em Nove noites, mais notoriamente, a fragmentação narrativa, a quebra da linearidade, caracteres que dificultam uma análise restrita aos elementos da narratologia tradicional (tipos de narrador; foco narrativo e perspectiva; tempo cronológico e/ou psicológico; recorrência de analepses e prolepses; etc). Dada a complexidade do objeto, sugerimos que a análise em sala destaque exatamente a inadequação do romance, quando comparado às narrativas tradicionais e lineares que o currículo escolar normalmente contempla. A mistura de textualidades explorada no romance (narrativa em primeira pessoa; cartas de Buell Quain e demais personagens; o diário de Manoel Perna) e que, de certa forma, repete o excesso de estímulos – propagandísticos, virtuais, cinematográficos, televisivos, e, menos frequentemente, literários - que interpelam o sujeito contemporâneo podem ser alvos de discussão, pontos de partida para a prática de exercícios, seminários e debates8. Antes de nos determos sobre atividades práticas, atentemos para algumas das peculiaridades do romance. Quanto às personagens de Nove noites, nota-se que os protagonistas – o personagem-narrador e Buell Quain - são figuras em trânsito e inadaptáveis, tanto em relação aos seus locais de origem, quanto aos espaços para onde rumam. Essa inadequação é recorrente na literatura denominada pós-moderna, que, ao contrário das manifestações 8 Atividades nesse sentido, direta ou indiretamente, revelam ao discente a nossa inevitável condição de receptores/espectadores/leitores, o que remete à necessidade de sabermos decodificar os estímulos que nos interpelam.

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modernistas, não atenta para a problemática da consolidação identitária: as personagens são, em geral, apátridas e isoladas. Na narrativa, certos fatos da história oficial aparecem como pano-de-fundo - a referência à Segunda Guerra, à bomba atômica, ao atentado ao World Trade Center - das histórias não-oficiais/ficcionais: a de Buell Quain, antropólogo de existência comprovada e que se suicidou entre os índios Krahô; a do narrador, que investiga obsessivamente esse acontecimento e, ao mesmo tempo, recorda a relação com o seu pai. O jogo entre fato e ficção fica mais complexo quando, na orelha da primeira edição do livro, encontramos a foto de um menino fisicamente parecido com o próprio Bernardo Carvalho de mãos dadas com um índio. Diante da impossibilidade de estabelecer limites entre o fatual e o ficcional, a literatura recente joga com essas duas esferas e coloca, constantemente, uma interrogação sobre o discurso pretensamente verídico da história oficial. Um dos modos de interrogar essa história é dar atenção exatamente ao não contemplado por ela, como, no caso do romance em análise, o mistério em torno da morte do antropólogo, a condição dos indígenas “empurrados” pela civilização para o Parque do Xingu. No romance, podemos ver tal estratégia no momento em que o narrador fala sobre a curiosidade histórica que desencadeou a sua escrita: Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num artigo de jornal, [...], quase sessenta e dois anos após a sua morte às vésperas da Segunda Guerra. O artigo saiu meses antes de outra guerra ser deflagrada. Hoje as guerras parecem mais pontuais, quando na verdade são permanentes. [...]. O artigo [...], citava de passagem, em uma única frase, por analogia, o caso de “Buell Quain, que se suicidou entre os índios krahô, em 1939” [grifos nossos]. (CARVALHO, 2010, p.11).

No fragmento, o olhar do narrador se volta para o não-dito, para a nota, para a entrelinha, visão que não deixa de estar associada 198


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à história coletiva e que talvez ajude a compreender o impacto que ela exerce sobre a vida de cada um. A diversidade espacial verificada no romance, a trajetória itinerante dos protagonistas, o sentimento de inadequação que lhes acompanha são fatores que remetem à problemática da subjetividade em meio à sociedade globalizada. Considerados alguns dos elementos do romance e constatada a sua complexidade, como poderíamos trabalhá-lo em sala, já que, sendo ele uma narrativa recente, estamos próximos demais do objeto, a ponto de não distinguirmos com clareza as particularidades de nossa época (tampouco as suas incidências sobre a literatura)? A abordagem dos elementos estruturais (narrador, tempo, espaço, personagens) de Nove noites, além de difícil para os discentes - já que a narrativa em si é alternada por cartas, diários e fotografias; que o enredo compreende um amplo período de tempo e que o espaço representado é múltiplo -, desperdiçaria o principal do romance, que é a sua riqueza temática e o modo como as tensões socioculturais são abordadas. A análise do romance, portanto, deverá articular conhecimentos de Geografia, de História, de Filosofia, já que a discussão de temas como a globalização e os seus efeitos sociais, bem como sobre as subjetividades, são importantes. Alguns dos acontecimentos mais importantes da história do século XX e princípio do XXI (a Segunda Guerra Mundial, o atentado ao World Trade Center), bem como fatos relevantes da história brasileira (o Estado Novo, a passagem de Lévi-Strauss pelo Brasil, a criação do Parque Indígena do Xingu) são panos-de-fundo do romance, sendo, portanto, importante que os discentes tenham, ao menos, uma visão ampla dos fatos. A análise do texto deverá ser dialógica e, se um trabalho integrado envolvendo professores de diferentes áreas não for possível, pelo menos um diálogo prévio entre docentes será necessário para que o professor tenha ideia do nível de familiaridade dos alunos com as questões apontadas.

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Levantadas algumas possíveis de abordagens, quais atividades poderiam ser desenvolvidas? Após a retomada de alguns dos fatos sóciohistóricos referidos no romance, certas questões específicas podem ser trabalhadas. Se partirmos, por exemplo, dos capítulos IV e V do livro – nos quais estão as fotos de Buell Quain e de Heloísa Torres com LéviStrauss – relatos sobre o antropólogo americano e cartas escritas por ele revelam um personagem enigmático. Algumas questões podem partir daí, como, por exemplo:

A partir das cartas de Buell Quain, dos relatos de Maria Júlia Pourchet e de Luiz Castro de Faria, como você [no caso, o discente] descreveria o personagem?

Como o etnólogo encara alguns dos aspectos da cultura brasileira na carta que escreve a Ruth Landes? Como ele encara os intelectuais que encontra em Carolina?

A visão de Quain sobre os índios krahô – expressa também na carta a Ruth Landes – é bem diferente da ideia do “bom selvagem” que inspirou o Romantismo brasileiro. Compare a visão do personagem com a expressa por Alencar em, por exemplo, Iracema (1865). As perguntas talvez possam ser respondidas pelos alunos em grupo,

com a ajuda docente. Outras passagens do livro são também inquietantes por reiterarem o teor misterioso e enigmático que permeia o romance. No capítulo II, onde o narrador-personagem explica de onde partiu a ideia do livro, por exemplo, fica clara a faceta detetivesca e obstinada do narrador homodiegético, traço que pode direcionar a abordagem em sala para o repertório discente voltado ao gênero policial/investigativo (seja na forma de livros, de filmes, de séries). Já na primeira página do romance há algumas considerações em torno da ideia de verdade (“a verdade está

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perdida entre todos os disparates”) que, de certo modo, já aponta para o caráter indecifrável do enigma em torno de Quain. No parágrafo final do livro, a impossibilidade de encontro com a verdade retorna9. A interrogação permanece ao fim da leitura, o que não é uma exclusividade do romance em questão: o célebre Dom Casmurro, de Machado de Assis, já havia adotado a mesma estratégia enigmática, assim como uma série de manifestações – literárias ou não – que fazem parte do repertório ficcional de cada um dos discentes, viés também pleno de possibilidades de trabalho. Esperamos que este breve texto tenha sido útil para a retomada de nosso repertório docente e que ele facilite, de algum modo, a formulação de estratégias didáticas. Especialmente com relação a Nove noites, trabalhá-lo de forma interdisciplinar, confrontando o modo como esse livro trata temas caros à literatura brasileira – como a caracterização do indígena, por exemplo – são formas de aplicar ao romance uma leitura cultural e, por isso mesmo, mais próxima à experiência de cada um dos leitores, ainda que o nível de intimidade de cada um dos alunos com o literário seja variado exatamente por ser singular.

referências ANDRADE, Mário de. Soneto. In: MORICONI, Ítalo. Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. BARTHES, Roland.O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. 9 O fragmento que destacamos, mais especificamente, é: “me lembrei sem mais nem menos de ter visto uma vez, num desses programas de televisão sobre as antigas civilizações, que os Nazca do deserto do Peru cortavam as línguas dos mortos para que nunca mais atormentassem os vivos. Virei para o outro lado e, [...], tentei dormir, nem que fosse só para calar os mortos” (CARVALHO, 2010, p.150).

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CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010. MOREIRA, Maria Eunice. Bernardo Carvalho. In: MASINA, Léa [et al.] (org). Por que ler os contemporâneos? – autores que escrevem o século XXI. Porto Alegre: Dublinense, 2014. PELLEGRINI, Tânia. Ficção brasileira contemporânea: assimilação ou resistência?. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov. br/arquivos/File/2010/veiculos_de_comunicacao/NOR/NOR0135/ NOR0135_07.PDF. Acesso em: 28/04/14.

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IMAGENS DE PENSAMENTO PARA A PRÁTICA DE MEDIAÇÃO LITERÁRIA: O RIZOMA E A PROVOCAÇÃO DE SENTIDOS Daniela Bunn1 Todo texto vivo, importante (ele importa para o leitor), tem a capacidade de invocar outros textos, de estimular conflitos produtivos no leitor. O bom texto, aquele que força o pensamento, que responde a uma necessidade de conhecimento do leitor, que desenha problemas, que resolve problemas, possui, sobretudo, o mérito essencial de também indagar o leitor, de levá-lo a buscar, no tecido textual do qual é constituído, uma articulação possível. (SOUZA; GARCIA, 2012, p. 117, grifos meus)

Estimular conflitos produtivos, provocar sentidos por meio do contato com o texto literário ou mesmo com uma ilustração peculiar é um bom começo para um trabalho de mediação literária. Colocar água na boca do leitor, deixá-lo ouvir a sonoridade dos textos, deixá-lo se encantar com as híbridas imagens fornecidas, indicar leituras que sensibilizam, que viabilizam conexões, que geram a produção de múltiplas facetas da mesma leitura é função primordial do mediador de leitura. Provocar reações, mais do que apresentar livros. O professor que lê, que articula leituras, terá facilidade para desempenhar essas funções e apresentar textos vivos aos seus alunos. O objetivo deste texto é o de apresentar e discutir uma proposta rizomática de mediação de leitura e analisar, com base em algumas recriações feitas pelos alunos, o potencial criativo desenvolvido 1 Mestre e Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina onde ministrou disciplinas nos cursos de Letras e Pedagogia. Possui graduação em Letras Português-Italiano/UFSC. Traduziu treze livros de literatura infantil (http://literaturainfantiljuvenilsc. ufsc.br/autores/bunn-daniela). Atualmente é professora no Colégio Policial Militar Feliciano Nunes Pires, em Florianópolis/SC.

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por meio dessa mediação. A imagem de pensamento em discussão é o rizoma, proposta por Deleuze e Guattari (2002, os teóricos optam pela palavra imagem ao invés da palavra metáfora, por julgar que esta enfraquece os conceitos). Ao assumir o rizoma como imagem de pensamento pretende-se discutir algumas provocações didáticas realizadas em sala de aula. O que o aluno entende como tarefa ou trabalho escolar, o professor, embebido por essa filosofia, assume como uma provocação de sentidos. Uma provocação que, como um rizoma, não parte de um começo ou de um segmento compartimentalizado, parte do meio. É o meio do processo o ponto de foco, não o ponto de partida ou o ponto de chegada. Pode-se provocar leituras aguçando a curiosidade do leitor, partindo do título, da imagem da capa, do tema, de uma pergunta geradora ou mesmo da propaganda literária, feita tanto pelo professor, como pelos alunos. Como, por consequência, provocar a escrita reflexiva a partir dessa metodologia? Em uma prática que opera por rizomas, por mapas, a cartografia de trabalho entende textos literários como coextensivos, por isso podem transitar em diferentes platôs (literatura, artes plásticas, publicidade, música, cinema). Dessa forma, baseado nos resultados das atividades e das experiências literárias rizomáticas realizadas em turmas do Ensino Fundamental, este artigo relata uma proposta de trabalho com a literatura e a escrita, tendo como imagem de pensamento o rizoma. O rizoma, termo emprestado da botânica, caracteriza-se como uma raiz proliferante com várias ramificações. Para Deleuze e Guattari (2002), o rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio. No meio é que está a potência geradora. Esse é o modelo de trabalho que proponho, partir do meio e então estabelecer conexões, agregar os conhecimentos do aluno, as inferências. Para isso é importante planejamento, leitura e boas escolhas temáticas. O plano é desterritorializar e reterritorializar, fazer

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imagens de pensamento para a prática de mediação literária: o rizoma e a provocação de sentidos

rizomas, provocando sentidos. Se o aprender é uma experiência, temos por dever fazer com que essa experiência seja muito proveitosa. O meio é a literatura, o trabalho com a escrita, com outros textos; as inferências, discussões e imagens são as proliferações que partem desse meio. Tudo é coextensivo a tudo. Ao assumir a imagem do rizoma como modelo de trabalho o professor monta uma cartografia geradora de ideias e conexões. Nesta proposta rizomática de ensino, opera-se sem medo de abandonar o plano inicial e seguir uma nova linha de fuga, por isso o planejamento deve ser amplo e abarcar várias possibilidades de concretização. Podemos pensar como Deleuze e Guattari (2002) e não perguntar o que um livro quer dizer, mas com o que ele funciona, com o que se articula, com o que ele faz rizoma: uma tela, uma música, outro texto, uma propaganda, uma notícia de jornal?

viagem: uma provocação A atividade a ser relatada fez parte de um projeto de escrita e leitura desenvolvido em turmas do 8º ano do Ensino Fundamental, de uma escola da rede pública de Santa Catarina. Mais que uma tarefa, ou um trabalho escolar, o resultado do projeto é a resposta a uma provocação. Os alunos não percebem o tanto que produzem ou leem e assim articulam conexões antes impensadas. O projeto de leitura partiu do tema “A viagem” e buscou articular clássicos da literatura que transitam por esse tema. O produto final da leitura foi uma produção escrita e um cartaz em forma de propaganda literária. Os alunos deveriam ler um dos clássicos indicados e articulá-lo (fazer rizoma) com uma leitura livre.

A lista de livros proposta foi: As Viagens de Gulliver – Jonathan Swift Sherazade e As Mil e uma Noites

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A chave do tamanho – Monteiro Lobato Viagem ao centro da terra – Júlio Verne Alice no País das Maravilhas – Lewis Carroll A volta ao mundo em 80 dias – Júlio Verne Alice através do espelho – Lewis Carroll Viagem ao redor da lua – Júlio Verne Os Lusíadas – Luís de Camões A Divina Comédia – Dante Alighieri A ideia é fugir dos moldes tradicionais de “verificação” de leitura; mais do que verificar, a ideia é compartilhar a experiência da leitura. Um trabalho articulado tende a gerar maior interesse do aluno, exige reflexão e coíbe a cópia da internet. O primeiro passo, então, é o professor realizar uma propaganda literária com imagens, leituras de fragmentos, mostrar os livros (se estiverem disponíveis na biblioteca da escola, melhor), falar um pouco da trama, do autor e, assim, o aluno poderá escolher dentre os livros indicados aquele que mais lhe interessa. É importante recorrer, nesta faixa etária, a adaptações de Dante e Camões, por exemplo, pois os alunos têm dificuldade e se perdem um pouco na leitura dos originais, algo que no ensino médio pode ser repensado. Realizada a escolha dos livros, o professor lança a proposta de leitura (a provocação) e fornece o prazo para a leitura. Segundo Garcia (2012, p. 117), “[a] beleza de uma pergunta pode, por sua vez, não resultar em respostas unívocas, mas abrir caminhos, favorecer o jogo argumentativo, pluralizando o pensamento. Nesse sentido, o leitor, mais do que nunca, torna-se um produtor.” Apostando no leitor-produtor, este trabalho configurou-se. Toda a produção escrita dos alunos, a partir dos dois livros escolhidos, formou um grande rizoma conectado por várias etapas: escolher os livros, dissertar sobre o motivo da escolha dos livros,

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articular as duas leituras e fazer uma propaganda literária. Vejamos então, detalhadamente, as etapas do processo:

etapa 1: escolher os livros para leitura Nessa etapa, o aluno pôde escolher, dentre os livros indicados, o que mais lhe chamou a atenção e, em seguida, escolher um livro que já estivesse lendo ou que tinha interesse em ler (atividade individual). A escolha livre chamou a atenção dos alunos, embora o critério de seleção fosse a leitura literária, ponto este discutido e apresentado em sala: o que é um livro e o que é um livro de literatura.

etapa 2: dissertar sobre a escolha dos títulos Como o modo textual estudado no momento era a argumentação, o trabalho com a escrita girou em torno dela. O objetivo era, além disso, levantar dados sobre a forma de escolha dos livros. Os dados recolhidos são interessantes: a capa chamou a atenção, o comentário da professora chamou a atenção, a adaptação para o cinema chamou a atenção, porque, segundo alguns comentários, “já ouviu falar”, “já viu o filme”, “não é grosso”, “era o que tinha menos páginas”, dentre outros aspectos. O livro de escolha livre foi selecionado por: indicação dos amigos, tios e padrinhos; presente, relação com filmes. Gulliver e Alice foram os livros mais escolhidos por influência das versões cinematográficas. Muitos se arriscaram na Divina Comédia e nas Mil e uma Noites, por influência do professor. Felizmente, todos os títulos foram trabalhados. Para a escolha livre, o livro A culpa é das estrelas, de John Green, foi o mais requisitado.

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etapa 3: a provocação Foi proposta a seguinte questão aos alunos: “Você deverá ler um dos clássicos indicados (disponíveis na Biblioteca da Escola) e articulálo com outro livro de literatura, a sua escolha, que também trabalhe com o tema ‘Viagem’. O objetivo do trabalho é, além da leitura de dois livros, realizar uma articulação entre os dois. Encontre algum ponto de comparação entre os livros: uma cena, um personagem, uma viagem e escreva um texto dando seu ponto de vista. O que você acha que estes dois livros têm em comum?”

etapa 4: propaganda literária Os alunos deveriam reunir-se em grupos, por afinidade de leitura dos clássicos, e montar um cartaz em forma de propaganda literária a ser exposto no mural da escola para incentivo à leitura. O que estava em jogo, então, era a abstração da história, a criatividade e a capacidade de síntese. A articulação entre os livros foi a parte mais difícil para os alunos, mas, segundo depoimentos, na conclusão do trabalho, desenvolvê-la alargou a percepção e o critério de escolha de livros: escolher um livro só pela capa ou por indicação da mídia já não era mais uma opção. Esse trabalho aguçou outros sentidos, demonstrou a importância dos clássicos e a importância da composição de um repertório de leituras. O exercício de fazer rizoma entre os dois livros foi bem realizado apenas por aqueles que realmente efetivaram a leitura. Com esse tipo de atividade foi fácil perceber quem realmente levou a cabo a leitura. Como não se pedia só um resumo ou algo que se pudesse encontrar pronto, o exercício de percepção foi válido. Por mais simples que tenha sido o ponto de comparação, eles tiveram que refletir e fazer as conexões. Segue um trecho selecionado, conforme vemos na Figura 1, bastante expressivo dos resultados alcançados:

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imagens de pensamento para a prática de mediação literária: o rizoma e a provocação de sentidos Figura 1: Texto argumentativo de articulação entre os livros A culpa é das estrelas e As Mil e uma Noites

Para o cartaz, reunidos em grupos, os alunos deveriam divulgar a leitura para os colegas. Os resultados foram ótimos, os alunos se empenharam e muitos cartazes foram confeccionados de formas interativas. Como vemos na Figura 2, os alunos, a partir da leitura de Alice no País das Maravilhas, propuseram uma grande árvore, com imagens selecionadas da versão cinematográfica (o que já chamou a atenção dos observadores) e, na base da árvore, a toca do coelho. O observador podia interagir com o cartaz, colocar a mão na toca e retirar um fragmento do livro.

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Figura 2: Produção dos alunos: Propaganda literária para o livro Alice no País das Maravilhas

Na Figura 3, vemos uma propaganda para o livro A Divina Comédia. Como vemos nas imagens, os cartazes poderiam conter colagens, fragmentos do livro, ilustrações feitas pelos alunos, dados sobre a obra e o autor; o importante era que o material se destacasse e chamasse a atenção dos alunos que passavam pelo pátio. Os alunos utilizaram glitter, folhas coloridas e texturas para chamar a atenção dos observadores.

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imagens de pensamento para a prática de mediação literária: o rizoma e a provocação de sentidos Figura 3: Produção dos alunos: Propaganda literária para o livro A Divina Comédia

Com este trabalho rizomático, podemos perceber modos diferenciados de mediação de leitura. Os sentidos foram provocados a partir da propaganda literária feita pelo professor ao falar dos enredos, mostrar imagens, propagandas e filmes que se utilizaram desses títulos clássicos. Os alunos puderam ver as semelhanças e as diferentes versões cinematográficas, puderam fazer suas escolhas, puderam articular os livros e extravasar na produção artística. Esse é um modo de rizoma. Da experiência individual da leitura silenciosa aos diálogos, discussões

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dos enredos e indicações dos livros aos colegas, o projeto se configurou: os próprios alunos tornaram-se mediadores de leituras. O trabalho foi muito produtivo. Falta-nos, talvez, estabelecer e viabilizar mais conexões, mais conflitos criativos e produtivos, promover sensações de reconhecimento; falta-nos levar para a sala de aula textos vivos, falta-nos ceder ao contágio imagético que nos levará à produção de novos textos, à leitura de livros que estimularáa escrita. Façamos então rizomas e provoquemos sentidos.

referências BUNN, Daniela. A imagem alimentar e o advento do menor na literatura infantil: estranhamentos de Gianni Rodari. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, Florianópolis, 2011. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 2. reimpr. Trad. Ana L. de Oliveira e Lucia C. Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 2002. GARCIA, Wladimir; SOUZA, Ana Claudia de. A produção de sentidos e o leitor: os caminhos da memória. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2012.

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tipografia chaparral pro aachen square 721 papel pรณlen supremo impresso em imprensa universitรกria



“Quantas monograas, dissertações e teses terão se debruçado sobre o ensino de literatura, quer dizer, sobre a transformação de parte daquela imensa riqueza em caminhos para formação escolar de leitores? Bem, não se tratará da maioria do que se produziu no campo literário – mas não será pouca coisa, longe disso. [...] Este livro é mais um esforço para entender esse problema, que não é pequeno. Por certo existindo em outras áreas, esse abismo, no campo da formação do leitor, é dramático, embora invisível. Sem formar bons leitores, e em particular sem formar bons leitores literários, perdemos gerações de indivíduos aparelhados para entender melhor a si e aos outros; deixamos de ter cidadãos habilitados no conhecimento de experiências marcantes, vividas em todos os tempos da aventura humana, que viraram matéria-prima da literatura.” Luís Augusto Fischer

ISBN 978-85-99527-40-5


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