Pe. Flรกvio Cavalca de Castro, cssr
APARAS
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A VIOLÊNCIA DE SEMPRE
Imagino que o mundo tenha sido sempre tão violento como agora. A novidade de hoje seria apenas o sensacionalismo doentio das comunicações, ou talvez a consciência mais clara que estamos tendo de uma faceta da humanidade que sempre procurávamos esquecer. O certo é que, maior ou menor que antes, a violência aí está diante de nós. Ou melhor: entre nós. Qualquer tentativa de explicar o que está acontecendo arrola infalivelmente causas sociais, econômicas e até políticas. Aponta-se a inoperância da polícia, ou até mesmo sua desmesurada violência. Apontamse falhas no sistema judiciário, com as casas de detenção abarrotadas de presos à espera de julgamento, ou até do simples início de processo. Mas, até que ponto essas causas geralmente apresentadas são suficientes para explicar o pesadelo que estamos vivendo? Não vejo como expliquem, por exemplo, por que uma assaltante mascarada é capaz de matar, com um tiro a queima roupa, um rapaz de vinte e cinco anos, ao lado da esposa, a quem acabara de entregar uma criança de colo. Não vejo como razões socioeconômicas ou políticas possam explicar o assaltante que covardemente usa uma criança como escudo. Exemplos outros há de sobra, renovados a cada dia. Como explicar satisfatoriamente tanta maldade, tanta dureza, tanto ódio? As causas geralmente lembradas não passam de 5
circunstâncias. Circunstâncias exteriores. A causa verdadeira deve estar no coração, no mais íntimo das pessoas, ali onde se fazem as escolhas e se tomam as decisões. Não. Não estou condenando o criminoso, porque possivelmente o pecado, que mora em seu coração, seja fruto de nosso próprio pecado, do pecado de cada um de nós que nos consideramos pessoas de bem. Numa das primeiras páginas da Bíblia, disse Deus a Caim: “se não fizeres o bem, o pecado estará de tocaia à tua porta, pronto a te agarrar... mas tu podes dominá-lo". Por que se fala tanto da violência sem chamá-la de pecado? O certo é que, diante de tanta violência, somos tentados a ser violentos também. E isso seria terrível, porque então a violência não estaria entre nós: estaria dentro de nós e também nos teria vencido.
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DIVERGIR SEM CONDENAR
Não vou dizer que alguma vez tenha sido melhor ou pior a situação. O certo é que, atualmente, em todo o mundo e também no Brasil, são grandes as divergências entre as pessoas. Divergências de todos os tipos. Estamos separados por motivos políticos, ideológicos, religiosos, econômicos e tantos outros. Facilmente, na defesa de nossos pontos de vista, somos dominados por um ardor combativo que, de vez em quando, nos faz esquecer princípios fundamentais para a convivência humana. Chegamos até mesmo a esquecer um valor básico do cristianismo: o respeito para com os adversários e o amor para com os inimigos. Também no Brasil, volta e meia há quem divida o mundo em duas classes: os vencedores e os vencidos. Os vencedores, que não teriam de prestar a ninguém conta dos seus atos. Os vencidos, com a obrigação de apenas agradecer a generosidade dos vencedores. Os homens em geral, e os brasileiros em particular, não pensam todos da mesma forma. Apesar disso, devem ser e viver como irmãos. Essa é uma exigência do cristianismo. O Vaticano Segundo diz: "O respeito e caridade devem estender-se também àqueles que, em assuntos sociais, políticos e mesmo religiosos, pensam e agem de maneira diferente da nossa. Aliás, quanto mais intimamente, com humanidade e caridade, compreendemos o seu modo de pensar, tanto maior será a facilidade para iniciarmos um 7
diálogo com eles” (GS.28). Aceitação, compreensão, bondade e amor para com os adversários de todos os tipos. Talvez, ou melhor: sem dúvida nenhuma, é o que está faltando para todos nós. Devemos ter clareza de ideias, compromisso absoluto com a verdade, o bem e a justiça. Certamente, mas sem confundir o erro com a pessoa que erra; a injustiça com quem a comete. Temos de odiar o erro, a mentira ou a injustiça. Mas não podemos odiar quem erra, quem mente, quem é injusto. Mesmo quem erra conserva sua dignidade humana. Mesmo errando, todo homem é nosso irmão, com direito ao nosso amor. E mais: condenando o erro, a mentira, a injustiça, jamais poderemos, como cristãos, pronunciar uma condenação contra a pessoa, julgando sua intenção. Só Deus é juiz que pode conhecer o segredo que se esconde no coração de cada um. E quantas vezes esquecemos disso no ardor da batalha, levados por uma eloquência desenfreada, empolgados por nossa própria verdade e justiça garantida. Partimos para o insulto, para a suspeita, para a acusação infundada, para o julgamento definitivo das intenções do adversário. Isso não leva a nada, porque não é amor. Será que ainda podemos lembrar as palavras de Cristo: “amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam”?
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SIMPLESMENTE PARA FICAR PERTO
Ontem a ladeira de Aparecida era uma festa de cores, ou melhor, um rio de cores que descia em direção ao Vale. Os tapetes, criados durante a noite pelos jovens, cobriam o semgraça do asfalto. Céu azul, lá no horizonte a Mantiqueira com ligeiro véu de nuvens, como se fosse participar da procissão como antigamente. Festa de Corpus Christi. Não sei bem por quê, mas é uma festa diferente. No meu tempo de menino, sei que o que me chamava a atenção era a procissão ser feita de manhã. Diferente de todas as outras, que acabam sempre na melancolia do entardecer. Aquelas procissões de minha infância não. Terminavam com o esplendor do sol e o céu azul de nuvens brancas. O tapete que cobria as ruas tinha o perfume das folhas pisadas, folhas de mangueira, laranjeira, alecrim, de rosas, e as margaridas que, se feridas, não recendiam, mas punham no verde tons de amarelo e branco. Talvez o diferente da festa esteja em ela ser, digamos assim, a festa da vitória sobre a saudade. Lendo os evangelhos, principalmente o de João, percebemos um tom de melancolia naquela tarde de quinta-feira antes da crucifixão e da morte. Jesus sabe que está para deixar os seus, e a saudade já toma conta de seu coração. Vai deixá-los; ainda que prometa continuar sempre com eles, essa presença será diferente e não basta como resposta para a saudade que gostaria de alguma coisa diferente, alguma coisa mais 9
humana, mais próxima, mais calorosa. Certo que a eucaristia e a presença real do Senhor sob as espécies do pão e do vinho têm sentidos mais altos, mais profundos e mais teológicos. Não podemos, porém, não ver esse dado muito humano de quem, mesmo sendo o Filho, ama de jeito humano e, mesmo tendo de partir, não quer tomar distâncias, e de algum modo, nem que seja preciso descobrir um jeito novo, quer continuar perto. Foi muito boa a inspiração da Igreja medieval; acho que entendeu muito bem a proposta de Jesus quando resolveu fazer uma festa especial para essa vitória sobre a saudade. Acreditou que Jesus queria estar presente e perto dos seus. E por isso saiu com a eucaristia pelas ruas da cidade, num alegre passeio, com muito som, muitas cores, incensos e sinos, janelas e portais enfeitados. Para que ele, não apenas com seu olhar divino de onisciente, mas de um jeito mais humano sentisse o cheiro das ruas, o colorido das casas, pudesse pelas janelas abertas espreitar o que ia pelos lares. Não visse apenas o esplendor das catedrais, mas também as arcadas do mercado, as lojas e oficinas da cidade dos homens. Não creio que seja possível participar de uma procissão de Corpus Christi e não perceber que, de fato, o Senhor quis ficar entre nós. Sem necessidade de outros motivos: simplesmente para ficar perto.
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AINDA HÁ MUITO AMOR NO MUNDO
Numa revista (Época, nº. 392 de 21/11/2005), não há como não parar à página 100. O título até que nada tem de extraordinário: “Os pais e filhos especiais”. Fala de alguns casais que não apenas têm amor suficiente para adotar crianças, mas até são suficientemente generosos para adotar crianças portadoras de graves limitações e deficiências físicas e mentais. Ao ler sobre eles, lembrei-me também dos pais e mães que amorosamente acolhem filhos excepcionais nascidos de seu próprio sangue. Uns e outros o fazem conscientemente, sem nenhum romantismo, sabendo que se estão expondo a vínculos afetivos que muitas vezes serão rompidos por morte em poucos anos, a graves encargos emocionais e também econômicos, à incompreensão da sociedade e até de familiares. Levados por um amor muito sério e maduro, sem dúvida nenhuma movidos pelo amor do próprio Deus, querem fazer essas pessoas felizes e levá-las à realização máxima possível, na medida de suas possibilidades, durante o tempo que o Senhor lhes conceder. Amam porque sabem ver nessas crianças o valor intrínseco da pessoa, na sua dignidade humana e na sua grandeza de imagem de Deus, acima de todos os critérios meramente utilitários. Não importa se jamais poderão correr,
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se não poderão ter a habilidade das mãos, nem falar, ou talvez nem sorrir, nem jamais mostrar um sinal sequer de inteligência. Sabem que elas são, existem, vivem, são amadas pelo Senhor e esperam encontrar amor, prontas também a amar do seu jeito. Sabem que elas não são deficientes, mas apenas estão deficientes, como passarinhos de asas partidas, que um dia, no futuro eterno, haverão de voar na plenitude da vida. Meus respeitos, minha veneração por essas mães e esses pais que assumem corajosamente a fecundidade, não tanto como realização pessoal, mas principalmente como doação pessoal plena.
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NA HORA DE RECOLHER AS VELAS
Sem dúvida nenhuma, um dos cemitérios mais belos do mundo é o "Campo Santo" de Gênova. Um número impressionante de esplêndidos monumentos lado a lado, com detalhes que falam da grandeza e da pequenez humana. De um dos túmulos é difícil a gente se esquecer. Todo de mármore branco, com as marcas do tempo. Um barco parece até oscilar sobre as ondas. De pé, um anjo sereno, está recolhendo a vela. Uma inscrição diz que chegou o momento de confiar o leme às mãos de um piloto mais seguro, merecedor de toda a confiança. Um barco parado, a oscilar em meio às ondas. Parado porque, mesmo o vento continuando a soprar, a vela foi recolhida. Terminou a viagem. À primeira vista terminou de forma absurda, em pleno mar, sem chegar a porto nenhum. Mas, não é sempre assim que termina a vida, dando sempre a impressão de ser viagem que não chegou ao fim? Talvez porque sempre estamos a imaginar outro porto, mais longe, outra terra melhor à qual pretendemos chegar, mais à frente, sempre mais à frente. É sempre cedo, achamos, que chega a hora de recolher os remos ou a vela, e de passar o leme a outra mão, e aceitar que chegou o fim da viagem. Em pleno mar, ao balanço das ondas, resistindo ao convite dos ventos que continuam a passar, parado o barco da vida. Parado no instante imóvel da eternidade. Parado o barco da vida, ou antes, lançado na vida mais plena, o leme seguro 13
nas mãos de um piloto mais hábil, mais confiável, que não precisa procurar o porto, por ser ele mesmo o porto de chegada. Essa é a certeza do cristão, a tranquila certeza de quem sabe em quem acreditou, a quem confiou o leme, a vela, o barco, a vida, tudo. Por isso mesmo que, para o cristão, o cemitério não é o amontoado trágico de barcos fracassados e partidos. Basta ver como, no Dia de Finados, cobrimos de flores os túmulos. Basta ver as velas acesas num palpitar irrequieto. Velas acesas, flores de todas as cores a dizer que acreditamos na vida. Acreditamos que, depois do último lampejo de nossa chama instável, não vem a escuridão, mas a luz maior. "Dai-lhes, Senhor, a luz eterna". Não é assim que oramos? Acreditamos que a vida é flor, e quando fenece não é para morrer, mas para que venha a semente, e haja o fruto e aconteça mais vida. Foi Paulo apóstolo quem escreveu que nosso corpo mortal é lançado à terra como semente. Para que nasça para a vida nova. Dia dois de novembro, dia da lembrança, da saudade, da prece. Dia da certeza e da esperança. Da certeza tranquila, da esperança certa: os que amamos estão nas mãos de Deus. De Deus que é vida. De Deus que é Pai. Do Deus de mãos firmes para assumir o leme de nosso frágil barco.
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GENETICAMENTE INCORRETO A Síndrome de Marfan é uma doença de origem genética, com manifestações na constituição do esqueleto e em problemas cardíacos e oculares. Pois bem, Didier Sicard, presidente do Comitê Consultivo Nacional de Ética, da França, deu uma entrevista ao jornal Le Monde. Falava da seleção prévia de embriões e dizia: “Fico profundamente inquieto com o aspecto sistemático dos exames prévios [de embriões], como um sistema de pensamento único. (...) A seleção reduz a pessoa a uma característica. É assim que alguns gostariam que sistematicamente se detectasse a Síndrome de Marfan, da qual sabidamente sofriam o presidente Lincoln, e Mendelssohn. Hoje Mozart, porque provavelmente sofria da Síndrome de Gilles de la Tourette, Einstein com seu cérebro hipertrofiado do lado esquerdo [também não teriam nascido]. (...) A verdade central é que a seleção pré-natal tem por finalidade a supressão e não o tratamento. A seleção, pois, coloca-nos diante de uma perspectiva aterrorizante: a erradicação” [de indesejáveis]. Pois bem, alguns dias depois interveio no debate um interessado pessoalmente no assunto, muito interessado mesmo, Nicolas Journet. Segundo a proposta da detecção prévia de doenças e incapacidades, ele também não deveria ter nascido, pois sofre da síndrome de Marfan. Chegou mesmo a publicar um livro “Génétiquement incorrect” 15
(Geneticamente incorreto), Ed. Danger Public, nov. 2007. Sabe que está sempre ameaçado de ter uma crise cardíaca, mas não aceita ser apontado por médicos como se fosse um problema a ser eliminado. Nem aceita que seus pais sejam considerados como culpados por o terem gerado. Como diz ele, “doença genética e felicidade não são incompatíveis; exige que reconheçam que ele tem o direito de existir, de ser feliz e de até mesmo ter filhos. Não aceita que se desenvolva uma política eugenista. “Em 1935, Carrel falava em câmaras de gás. Em 2007, para eliminar os defeituosos temos o diagnóstico pré-natal, muito mais civilizado”. Que adianta escrever Homem com maiúscula, se é para acabarmos, depois de séculos de progresso científico, por selecioná-lo como se fosse um animal? Aliás, Nicolas Journet revolta-se ao ver que muitas vezes animais recebem mais respeito que seres humanos. “Estou na mesma situação que o tigre branco de Bengala, que também é um mutante natural. Ele sofre de uma doença recessiva, o leucetismo, que dá a seus pelos uma cor particular. Mas ele encontra abrigo em qualquer zoológico do mundo. Os animais têm direito à diferença, e sua particularidade garante-lhes proteção cuidadosa. (...) A herança genética de um animal é considerada como elemento vital da diversidade biológica de nosso planeta. Mas, ao mesmo tempo, qualquer anomalia genética numa pessoa é combatida ferozmente...!” Mesmo que não fosse politicamente correto, ainda é tempo de defender os geneticamente incorretos. Enquanto é tempo! 16
HOMEM PARA O HOMEM
Há lugares que não se esquecem. Auschwitz é um deles. Ali ainda se conserva quase intacto um dos maiores e horrendos campos de concentração do nazismo. Lugar impressionante, onde os turistas de um momento para o outro passam a ser peregrinos silenciosos. Nas alamedas, traçadas com precisão militar por entre os soturnos pavilhões, ouve-se apenas o ranger do cascalho, o mesmo cascalho pisado por milhares de prisioneiros ao voltar do trabalho nos pântanos, ou a caminho da câmara de gás. O primeiro impacto nós o recebemos logo na entrada. Sobre o portão de ferro, que abre passagem através da cerca dupla de arame-farpado, letras de ferro que davam a primeira mensagem, talvez irônica, talvez cruel, aos prisioneiros que entravam: “Arbeit macht frei!”, “O trabalho faz homens livres!”. Deboche pavoroso para os que entravam no inferno da escravidão mais desumana. “Arbeit macht frei!”: as boas-vindas ao campo da morte. A cada passo, a cada pavilhão visitado, cada vez mais vamos sentindo sobre nós o peso do pior que existe no homem, em cada homem, em todo homem. Entre os restos deixados pelos que desapareceram nos fornos crematórios, ali está a boneca velha, encardida, trazida nos braços de uma menina qualquer, que se chamaria talvez Débora, Raquel ou Judite. O rosto vazio, sujo da boneca ainda conserva um grito silencioso de pavor, ou, quem sabe, apenas lágrimas que de 17
há muito já secaram. E vamos andando, como que envergonhados de sermos homens. Daí a pouco estamos diante de mais um pavilhão de tijolos à vista. Ao lado da porta, uma placa de bronze, com uma inscrição em latim: “Homo homini!”, “Homem para o homem!”. Imediatamente lembramos da frase tradicional: “Homo homini lupus”, “Homem para homem é lobo!”. Mas, não. A placa quer apenas dizer e ensinar o que deveria ser evidente: “Ser homem para o homem!”. E a placa ali está muito bem colocada, e traz um raio de altivez para o meio de tanta vergonha. É que ali, nos porões daquele bloco, morreu em 1941 o prisioneiro nº 16670. Morreu com uma injeção de ácido, depois de quinze dias de fome e sede, depois de ter visto morrer um a um todos os seus companheiros. A placa de bronze “Homem para o homem!” ali está para lembrar o sacrifício do Padre Maximiliano Kolbe, o prisioneiro nº 16670, que se ofereceu para morrer no lugar de um companheiro de prisão, um pai de família, que talvez mal conhecesse. Depois de ler a placa podemos continuar, descer ao porão escuro, imaginar os que ali morreram, podemos continuar a visita ao campo de Auschwitz, enfrentar os restos todos de tantos horrores, até os fragmentos de ossos calcinados que se misturam com o cascalho branco do caminho. Podemos continuar com a certeza que, apesar de tudo, sempre haverá quem seja capaz de ser homem para o homem. Com a certeza que, apesar de tudo, resta a esperança da redenção pelo amor. 18
No dia 14 de agosto celebramos o martírio de São Maximiliano Maria Kolbe, presbítero e mártir.
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IMAGINE UM POLÍTICO SANTO
Pois é. Nada menos que um prefeito, lá da Itália, da cidade de Florença. Em Roma está bem adiantado seu processo de beatificação. Se chegar a ser apresentado como santo e modelo, não seria o primeiro, mas representante de uma categoria meio rara nos altares. Trata-se de Giorgio La Pira (1904-1977). Foi personagem marcante em seu tempo na Itália e na Europa. Jurista reconhecido, ferrenho adversário do fascismo de Mussolini, defensor da paz nos tempos da guerra fria entre os dois senhores do mundo de então (agora sobrou apenas um, e meio manco). La Pira foi prefeito da bela Florença, marcada de belas cúpulas e tantas obras de arte. Esse também Irmão da Ordem Terceira Dominicana morreu há trinta anos, mas sua lembrança ainda continua viva. Depois da guerra de 39 a 45 ele foi personagem de destaque na política italiana e um dos responsáveis pela reconstrução política e econômica. Pressionado por seus ideais cristãos sempre assumiu suas responsabilidades e levou-as até as últimas consequências. Nasceu na Sicília, numa família pobre, formado em Direito foi para Florença onde assumiu a vida acadêmica de professor universitário. Editou uma revista que não agradou aos fascistas, porque apresentava as bases da democracia, e por isso foi supressa. Para continuar na luta, iniciou outra revista publicada clandestinamente; procurado pela polícia secreta viveu algum tempo como foragido. Derrubado o 20
fascismo, em 1945 foi eleito deputado constituinte; de 1951 a 1956 foi prefeito de Florença, cargo que ocuparia mais duas vezes, em 1957 e 60. Por mais duas vezes elegeu-se deputado. Lutou sempre pelos mais necessitados, assumiu posições também na política mundial em defesa da paz, visitou a Rússia e o Vietnã. Publicou mais de dez livros, vários sobre questões sociais e políticas. Giorgio La Pira soube unir uma intensa vida espiritual à militância política e social. Viveu sempre pobre, jamais correu atrás do dinheiro, não permitiu que as posições propiciadas pelo poder o afastassem do cidadão das ruas. Seu cristianismo tinha bases sólidas, seus conhecimentos religiosos e sua adesão à Igreja estiveram sempre à altura de sua personalidade culta e madura. Soube viver plenamente suas responsabilidades e poderá ser belo exemplo para os leigos. Poderá ser até, e quem sabe isso ajudará um pouco, poderá ser até modelo de militância cristã na política.
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IMPORTANTE É A PESSOA
Se rapidamente percorrermos o panorama oferecido pela humanidade nos dias de hoje, podemos, graças a Deus, perceber vários sinais de esperança. Um desses indícios que nos fazem olhar confiadamente para o futuro é uma ideia, patrimônio atual de crentes e não crentes. Todos repetem que a pessoa humana é o objetivo, deve ocupar o primeiro lugar como centro de todos os nossos esforços na sociedade, na política, na economia, na ciência. Todos concordam que a pessoa humana não deve ser usada, não deve ser objeto. Seria fácil, não há dúvida, fácil até demais acrescentar logo um “mas”, e mostrar como, na prática, essa ideia não está sendo seguida, como está sendo manipulada conforme os interesses de ideologias conflitantes. Não há como negar: ainda estamos longe de ver respeitados os direitos da pessoa e da sua primazia sobre interesses econômicos e políticos. Mas, pelo menos a ideia já está aí, sempre repetida. E as ideias acabam sempre vencendo, mais cedo ou mais tarde. Como cristãos, só nos podemos alegrar vendo aceite, pelo menos teoricamente, um princípio para nós fundamental. Se o vemos apresentado mesmo por quem recusa qualquer ligação com o cristianismo, aí temos uma demonstração de como, apesar de tudo, o fermento evangélico vai trabalhando a massa da humanidade. “Tudo quanto existe sobre a terra deve ser ordenado em função do homem, como seu centro e seu termo: neste ponto 22
existe um acordo quase geral entre crentes e não-crentes” (LG 12). Tudo, todos os esforços no campo social, político, econômico, científico, cultural. Nenhum esforço humano será válido e realmente humano a não ser na medida em que ajudar o homem a ser mais homem. À luz dessas ideias, a humanidade se vê cada vez mais na obrigação de reavaliar seus projetos, suas tentativas e suas conquistas. E mais particularmente ainda, nós os cristãos é que nos devemos examinar. Se os outros se contentarem com a teoria, poderão ser desculpados. Mas para nós não haverá escusas. Tanto mais que, para nós, essa primazia da pessoa humana tem formulação bem mais pertinente e empenhativa: “Amar o próximo como a nós mesmos”. Isso quer dizer que o nosso esforço para que cada homem seja mais homem se deve traduzir em cada uma de nossas atitudes. (LG 12,1)
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INDIGNAÇÃO SELETIVA
É fácil esquecer, mas a verdade é uma das condições fundamentais para a paz. Analisando as várias formas de mentira que podem comprometer a verdadeira paz, numa ocasião João Paulo II mencionou a "indignação seletiva”. O que é indignação seletiva? Indignação é o sentimento que toma conta de nós diante do mal; é mistura de justiça, cólera, condenação. Indignação seletiva, é aquela que escolhe, seleciona os fatos a serem condenados. É indignação que não se guia pela justiça, mas pelos interesses e paixões de grupo. Indignação que não se guia pela verdade. Nossa indignação mentirosa quando condenamos o assaltante e não condenamos as condições sociais injustas; quando condenamos a violência policial e não vemos o ódio e a maldade que armam a mão dos criminosos. Quando condenamos as manifestações do descalabro moral e damos prêmios e apoio aos veículos de comunicação que solapam os próprios fundamentos da moralidade. Indignação seletiva é a que condena o Irã e acoberta as mil formas de imperialismo político, militar, econômico e cultural; a que coloca no pelourinho os desmandos dos adversários políticos e se cala diante das manobras dúbias do próprio partido. Não podemos negar: todos somos mestres na arte da indignação parcial, hipócrita, mentirosa. E pior ainda se torna a nossa situação se nos lembramos até que ponto podemos ser manobrados pelos meios de comunicação a 24
serviço de interesses políticos, econômicos e ideológicos. As informações são manipuladas, muitas vezes até à chantagem e à intimidação. Tudo para desenvolver um clima de incerteza para as pessoas, os grupos, os governos e as próprias organizações internacionais, e levá-los todos ao silêncio da resignação e da cumplicidade, a compromissos parciais e a reações não razoáveis. A conclusão parece clara. Se queremos favorecer a paz, temos de ser imparciais e lúcidos em nossos julgamentos; temos de só transmitir a informação correta; temos de tomar todo o cuidado para não nos deixarmos influenciar pelas informações manipuladas, venham de onde vier.
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JUDAS E NÓS
Uma figura estranha a de Judas, o discípulo traidor. Escolhido como os outros onze para estar com o Mestre, participar de sua vida, anunciar a sua mensagem. Como os outros, escolhido livremente pelo Cristo, sem nenhum merecimento próprio. Pelas informações de que dispomos nos Evangelhos, e pelo que podemos supor, Judas não era nem melhor nem pior que os outros onze ou do que todos os outros que poderiam ter sido escolhidos. No capítulo doze do Evangelho de João, há uma acusação contra ele: encarregado da caixa do grupo, andaria desviando algum dinheiro. O que talvez não seja acusação mais grave do que a feita contra outros discípulos, que queriam garantir para si os postos de honra e de chefia. Que motivo, pois, levou Judas a entregar o mestre? Muitos já tentaram encontrar uma resposta coerente. Muitas as tentativas de traçar um roteiro progressivo para a sua decisão final. Desilusão com o Messias, que afinal não mostrava ser o que dele se esperava? Mas, os outros apóstolos parece que não tinham ideias diferentes. E, no entanto, não traíram. A cobiça, o atrativo exercido pela quantia oferecida? Mas trinta moedas de prata não eram grande coisa. Eram suficientes para adquirir apenas uma roupa nova, ou coisa semelhante. Não eram nenhuma fortuna. Nem parece que Judas pudesse contar com promessas de outras vantagens de ordem política ou sei lá o que. Alguns disseram 26
que, aos poucos, Judas passou a odiar Jesus. Não temos, porém, nos Evangelhos qualquer evidência. Ficamos sempre sem saber. Apenas diante do desenlace final é que chegamos a ter a impressão de estarmos diante de uma figura profundamente dúbia e contraditória. É impressionante também que, segundo parece, nem os evangelistas nem os primeiros cristãos mostraram interesse ou coragem para aprofundar a questão. O que é compreensível, uma vez que estavam mais interessados em ver no conjunto a realização dos misteriosos planos divinos para nossa salvação. Depois disso tudo, ainda vou ter coragem de tentar uma interpretação da figura de Judas? Não. Vou apenas colocarme no seu lugar. Se você quiser, poderá unir-se a mim e dizer: Nós também iríamos ter medo. Medo não tanto das possíveis consequências, perseguições e coisas assim. Mas medo sim das exigências apresentadas por Jesus. Medo de deixar tudo e todos por ele. Medo de deixar-nos a nós mesmos por ele. Medo de só em Deus confiar. Medo de aceitar que tudo, absolutamente tudo é relativo, é de menor valor e importância diante da aceitação de Deus como pai e dos homens todos como irmãos. Como Judas, iríamos ter medo de nos entregar cegamente nas mãos de um Deus cujos planos e promessas não podemos compreender plenamente. Medo das exigências da fidelidade continuada, do amor sem limites nas suas exigências. Até que ponto há um Judas em cada um de nós?
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LAVRADOR MESMO
Era na fila do INAMPS, que INPS sem fila não é INANPS que se preze, como você bem sabe. Um passo. Mais outro, a fila avançava lentamente, como que entorpecida pelo friozinho da manhã. Por fim faltava uma só pessoa à sua frente. Alguém que nem lhe tinha chamado a atenção. Simplesmente um homem, como se isso fosse pouco. Começou a fornecer os dados solicitados pela recepcionista. De repente hesitou, duvidou, ficou indeciso diante de uma pergunta. — “Profissão”, perguntava a moça. — “Profissão? Hummm... profissão... ponha aí lavrador mesmo...” O caso não lhe saía da memória o dia todo. “Lavrador... lavrador mesmo serve, já que não posso apresentar outra qualificação. Isso tudo num tom de desânimo, constrangimento, quase vergonha. Imaginava o que tinha passado pela cabeça do pobre homem: — “Ponha aí lavrador mesmo, apesar de há muito tempo eu estar longe da roça, da terra cheirando a nova depois de passado o arado. Longe da terra coberta de verde, parindo comida. Lavrador mesmo... apesar de há tanto tempo eu já não ter garantido o trabalho de cada dia. Não mais percorro o eito acarinhando as plantas. O que faço agora é zanzar pelas ruas à procura de algum trabalho, seja lá o que for, nem que seja por um dia ou algumas horas. Ponha aí: lavrador mesmo, apesar de há bastante tempo eu ter deixado o meu chão, e estar encalhado numa invasão qualquer, num barraco ancorado na poeira... 28
Ponha aí lavrador mesmo. Desculpe, que outra coisa não sei fazer... fui vencido pelo boi, fui afastado pelo trator, a casinha que deixei com o poço e as fruteiras virou tapera. Desculpe tenho vergonha, talvez devesse dizer que não tenho profissão. Que lavrar a terra de há muito deixou de ser profissão. Quando muito é trabalho. E mesmo isso não sei por quanto tempo. Para mim, pelo menos, já não é.” Ficou a imaginar o homem que saía para a rua, pondo o chapéu. Olha para um lado e para ou outro. Escolhe um qualquer. Vai andando, marcando os passos, lavrador, lavrador mesmo, lavrador... Até virar a esquina e perder-se no meio de outros muitos, outros tantos lavradores sem terra. Lavradores lavadores de carros. Lavradores peões, lavrando chãos de cimento em obras. Lavradores varrendo as ruas. Lavradores, lavradores mesmo, nos bancos das praças, a esfregar as mãos para sentir nos calos a saudade da terra.
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LIMITES DO AMOR
O fato não é novo, nem é desses que ocupem amplo espaço nos noticiários. Foi relatado há alguns anos numa pequena revista católica, que nem sei se ainda existe. Mas vamos ao fato. Patrick Dunne, era morador num subúrbio de Londres. Sua mulher havia morrido havia pouco, deixando com ele nove filhos menores. Patrick também estava doente, com câncer, desenganado pelos médicos. Mandou chamar seu irmão Jim, e disse-lhe: − “Cuide de meus filhos, para que eles não sejam levados para um orfanato, e não fiquem separados entre si.” − “Pode deixar. Vou adotá-los.” Patrick morreu. Mas, quando Jim foi tentar a adoção dos sobrinhos, esbarrou com a Justiça. O Juiz achou que um moço solteiro não teria condição de assumir tão grande responsabilidade por nove crianças. E mandou que as crianças fossem distribuídas entre diversas famílias. A história chegou ao conhecimento da imprensa e virou notícia, ainda que sem muito destaque. Por acaso foi lida por uma jovem, Alice Coliven. Ela escreveu uma carta para Jim. Encontraram-se, ficaram noivos, acabaram casando. E adotaram as nove crianças. Se fosse um conto de fadas, ou um filme, teríamos de acrescentar uma frase final: “E foram felizes para sempre!” Sendo, porém, um fato real, mesquinhamente real, parece que a frase mais apropriada como final seria: “Que Deus os 30
ajude, Alice e Jim!”. Sim, Alice e Jim. Faz tanto tempo, não é mesmo. Sim, porque na vida real, sua vida não terá sido fácil, nem sua felicidade cinematograficamente azul. Começando a vida de casados com nove crianças para compreender, amar e criar, vocês começaram por onde alguns acabam e outros nem têm coragem de chegar. Seu amor e sua generosidade terão sido postos à prova. Muita gente terá abanado a cabeça, achando que vocês loucamente se meteram numa enrascada muito grande. Muitos terão até duvidado que se tenham casado por amor. Talvez sua única saída, Alice e Jim, tenha sido perguntar para essa gente: − “Que é o amor? Que é o casamento? Que é a felicidade?”. Isso, é claro, se vocês, com nove filhos adotivos em casa, tiveram tempo para se preocupar com o que outros pensavam e diziam! Por falar nisso, que é feito desses nove filhos?
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LONGE DOS OLHOS
Se, ao contrário das cartas, os provérbios não mentem jamais, talvez nenhum seja mais verdadeiro do que o batido “Longe dos olhos, longe do coração”. Talvez aprendendo com a experiência dos amores desfeitos, a humanidade sempre o pôs em prática, afastando dos olhos o que queria esquecer com o coração. Acho que essa é a explicação para a pena de exílio, inventada bem cedo. A explicação para os guetos de todos os tipos, para as colônias distantes, onde se confinavam os leprosos. Não foi à toa que inventaram as masmorras subterrâneas e as colônias penais em ilhas isoladas no mar distante, Ilha do Diabo, Ilha Grande, Alcatraz e outras mais. “Longe dos olhos, longe do coração”: sempre encontramos um jeito para esquecer os problemas que nos incomodam. Erguemos muros altos, forjamos grades apertadas, e para lá mandamos os justa ou injustamente condenados. Antigamente diziam que era para castigá-los, para exigir deles o pagamento de uma dívida contraída para com a sociedade. Depois adoçamos as palavras e começamos a dizer que era para os reeducar, reformar, recuperar. Acho, porém, que de fato os isolamos mesmo é para esquecê-los, para podermos continuar sonhando que a sociedade vai bem, que está tudo certo, que sem os marginais o nosso rio pode continuar fluindo placidamente. Pelo menos os antigos, que viam na prisão principalmente uma pena, um castigo, uma espécie de 32
vingança social, pelo menos eles eram coerentes. Escolhiam a dedo os carrascos e carcereiros, para que pudessem competentemente assumir uma face da humanidade que lhe parecia um tanto odienta e menos nobre. Nós deveríamos ser coerentes como os antigos. Se acreditamos que as penas têm finalidade corretiva e educacional, então deveríamos confiar a direção e a guarda dos presídios a pessoas escolhidas a dedo, devidamente preparadas e convenientemente pagas. Pessoas que tivessem a coragem de encarar com competência o que preferimos esquecer, que soubessem amar os reeducandos, simplesmente porque são seres humanos e filhos de Deus, ainda que culpados de crimes. Pessoas que acreditassem na recuperação mesmo do maior criminoso. Que tivessem para isso uma proposta séria e articulada, com os necessários pressupostos pedagógicos e religiosos, ou pelo menos éticos. Que acreditassem que, para trazer alguém de volta ao convívio social, o primeiro passo é mostrar respeito para com esse alguém. Que acreditassem que a primeira virtude dos servidores da Justiça é a justiça. “Longe dos olhos, longe do coração.” Foi o que me veio à ideia ao ter notícia da última rebelião num presídio.
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MARIA DO ADVENTO Advento, tempo de espera antes da chegada de quem se espera. Se procuramos exemplo para a nossa espera, melhor não podemos encontrar que o da Virgem da Espera Confiante. O exemplo de Maria Confiante, que esperava a vinda do Messias prometido, sem saber quando e como as promessas se cumpririam. Pela fé, sabia que Deus não falharia; pela fé, aceitava caminhar sem saber para onde a estrada a levaria. Nossa Senhora do Advento, Nossa Senhora da Fé, Virgem da Espera confiante. Quando de Deus recebe a palavra, que lhe diz que será mãe sendo virgem, que será mãe de Deus sendo criatura, não se recusa, apenas acredita e, na fé, espera que se cumpra o prometido. Se o tempo da espera se faz curto – nove meses não são muito – nem por isso o mistério se faz menor. Grandeza havia nas promessas dos profetas: era mais fácil acreditar no poder divino se que anunciava nas imagens de um Messias poderoso, Rei dos povos, Senhor da paz. Bem mais difícil era crer que Deus era seu filho, e que esperava o momento de nascer. Nossa Senhora do Advento. Acreditando esperava no seu filho o Salvador, mas não sabia como seria sua vida, o que a esperava, o que Deus exigiria de sua vida que já não era sua. As perguntas eram muitas, e a resposta uma só: “Faça-se em mim tua vontade”. Resposta que bastava para a 34
fé, mas não bastava para os cuidados minuciosos que assaltavam o coração de mulher e mãe. Virgem da espera confiante. Nove meses – não era muito – mas o bastante para fazer de cada dia um mistério insondável a ser vivido na rotina opaca e mansa, que não deixa ver nenhum milagre. Lavar, varrer, trazer água da fonte, girar o fuso, acender o lume. Fazer o mesmo que faziam as outras, sabendo apenas que, desde agora, tudo para todos terá valor de salvação, porque Deus se fez homem e entre nós se escondeu. É preciso que eu também aprenda a esperar mesmo quando não parece que o Cristo entre nós esteja vivo. Que eu veja o valor novo da vida, mesmo quando se parece com a vida do dia-a-dia. Que eu creia no amor de Deus, mesmo sem ver nenhum milagre. Que espere a salvação reconhecendo que, por mim mesmo, nada posso que seja bom e exija amor. Que eu viva de modo novo os dias sempre iguais ao que foram outros.
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MAS TUDO PODE MUDAR
Começa dezembro, inevitável começar a pensar no Natal. Reabri o livro do profeta Isaías. Comecei a reler suas promessas messiânicas, seus anúncios do mundo novo da salvação. “...e os povos todos transformarão suas espadas em arados, e de suas lanças forjarão foices...” Mas, o mundo ainda continua outro. Os EE. UU., a pretexto de paz, espalham a guerra. Iraque, Líbano, Sudão, Israel e Palestinos, quase por toda a parte reina o ódio, a violência, morte e destruição. “Vinde, caminhemos à luz do Senhor...”. Mas, por toda a parte, vemos o poder do dinheiro, a força do poder político a serviço de interesses subalternos, o domínio impiedoso dos grandes sobre os pequenos, os pequenos seguindo o mesmo caminho dos grandes. E, no entanto, Isaías prometeu que “os olhos soberbos dos homens serão abatidos, e derrubada a altivez dos mortais... o dia do Senhor ameaça o soberbo... Ai de vós que juntais casa a casa e acrescentais propriedade a propriedade, até não mais deixar terreno para ninguém... ai dos que se levantam cedo e logo partem para os licores inebriantes, e com eles ficam até o anoitecer... o povo que caminhava na escuridão viu um grande clarão, sobre os que habitavam na região das sobras começou a brilhar uma grande luz... juntos vão morar o lobo e o cordeiro, o leopardo vai deitar-se ao lado do cabrito... a criança de colo vai brincar sobre a toca da serpente... ninguém fará mal algum, porque o 36
conhecimento do Senhor encherá a terra...” Mas não é isso que vemos aos nosso redor, aqui na cidade, no mundo inteiro. Deixei de lado o profeta Isaías, larguei o jornal. Já estamos falando do Natal, dizemos que o Salvador já veio: Deus está entre nós. Mas, então, por quê? Que está faltando? Falharam as promessas de Deus ou falhamos nós? Não. Não quero nem posso ser pessimista, porque acredito que, apesar de tudo, tudo mudou porque tudo pode mudar desde que o Cristo nasceu e está entre nós.
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NÃO CONDENE, MENINA
Anaiara Camila de Jesus. Onde será que nosso povo encontra tanta imaginação para nomes, nomes que às vezes soam como versos? Anaiara Camila de Jesus. Uma criança de sete meses. E seu belo nome já estava no jornal, envolto numa história estranha e triste. Criança roubada, trazida de longe. Criança roubada por outra criança, já esfacelada nas engrenagens sem alma da vida. Ninguém sabe por quê. Nem a sequestradora grávida, doente, sozinha. Anaiara estava aos cuidados da Justiça, enquanto a polícia procurava localizar sua mãe. Encontrou-a finalmente num barraco à beira da rodovia. Terminara o drama, podiase esperar, da mãe e da criança. No barraco, a mãe de vinte e dois anos, casada desde os doze, recebeu a notícia do encontro da filha. Não sei qual sua reação. Os jornais disseram apenas que ela não queria de volta a filha. Não a queria de volta, porque não tinha como a criar, samaritana à beira da estrada, abandonada pelo último dos muitos homens de sua curta vida. Anaiara Camila de Jesus, que será de você? Só espero que não condene sua mãe que não a quis. Que pelo menos não a condene como a maior culpada. Você ainda não compreende este nosso mundo. Falamos muito das crianças, temos até uma semana da criança, mas ainda não temos solução para casos como o seu e o de sua mãe lá no barraco à beira da rodovia. E, para dizer a verdade, parece que temos 38
coisas mais importantes a resolver, como a liberação sexual, a liberdade para a pornografia, a derrubada de tabus. É, a derrubada de normas que deveriam evitar a repetição de casos como o seu, Anaiara. Não, não condene sua pobre mãe antes de conhecer melhor este nosso mundo. Pelo menos ela deixou que você nascesse. Outras não chegam a tanto. Se você não puder mesmo deixar de condenar, condene a todos nós, responsáveis por este mundo para onde você chegou há tão pouco tempo. Todos somos responsáveis, uns mais outros menos, ainda que geralmente o procuremos negar. Anaiara Camila, que será de você? Ou melhor: deixaremos que você seja alguém? De uma coisa você pode estar certa: neste ano ainda teremos a semana da criança. E no outro também, e logo teremos preparada para você uma instituição qualquer de recuperação. A menos que haja coisa mais importante a fazer. Ou que um milagre aconteça.
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NÃO SÃO ELES QUE GANHAM O JOGO Várias pessoas estávamos comentando as declarações do presidente da república e de outras autoridades, sobre seus objetivos e tentativas para uma ordem social mais justa. Para dizer a verdade, eu estava mais ouvindo do que opinando, pois que nos últimos tempos não anda fácil formar uma opinião. Mas não posso negar que alguém fez logo um comentário que me estava na ponta da ideia. Esse alguém disse: Essa gente é boa para falar, fazer projetos, inventar slogans, apelar para belos princípios. Todos dizem querer uma ordem social mais justa e melhor distribuição das oportunidades e dos resultados. Mas também é só. Ficam em palavras. Resolver mesmo a questão, ou não querem ou não podem. Parecia que o comentário do grupo iria continuar nessa direção, quando outro entrou na prosa dizendo: − Olhe, não quero pôr em dúvida o que você afirmou. Mas não podemos fazer essa acusação somente contra políticos e autoridades. Veja a Igreja. Os bispos também vivem falando, falando, publicando documentos e declarações, e pronto. Lindas ideias, magníficos princípios, acusações de vez em quando pesadas. Ação mesmo, nada. Talvez até fosse o caso de dizer que, se o governo fala muito e faz pouco, a Igreja fala mais e faz menos. Foi nesse ponto que um terceiro entrou: − Para dizer a verdade, disso não entendo muito. O que entendo um pouco é de futebol. Veja o que aconteceu com o time de tantas 40
tradições, paixão de tantos. Pois esse estará fora da decisão nesse campeonato. Por que? Por falta de teoria, de conselhos, de táticas, de incentivos? Por falta de que? Não tinha técnico? Acho que se o ... ficou na pior foi por falta é de jogadores. De jogadores que quisessem lutar e vencer. − É nesse ponto que eu volto para o que você disse sobre a Igreja. Mal comparando, os bispos são mais ou menos como os dirigentes e técnicos de um time. No final das contas, não são eles que ganham a partida, como não são os generais que ganham as guerras. Eles podem orientar, apresentar objetivos, animar, tentar coordenar o jogo ou a batalha. Talvez saibam até dizer como se deve centrar a bola ou bater uma penalidade máxima. Mas nem sempre teriam pernas para marcar um tento. Essa é a questão. O time em campo é que está fraco ou desorientado. O time da Igreja tem de tudo: presidentes, governadores, ministros, secretários, deputados, vereadores e prefeitos. Tem empresários, professores, patrões, trabalhadores e tantos outros. É o time que está em campo, e que tem obrigação de levar a bola para a frente e marcar os gols. Em suas mãos estão o poder político, as decisões sociais e econômicas. Estão com a bola toda. Ou como diriam os mineiros, estão com a faca e o queijo. Se o time não ganha, se as transformações sociais não acontecem, se há tanta gente querendo acabar o jogo, talvez seja porque o time não está querendo suar a camisa. Enquanto for assim, os técnicos, na beira do campo, têm de gritar a mais não poder. Futebol é isso, gente. E Igreja também. 41
NÃO VÁ ALÉM DAS SANDÁLIAS
Outro dia, num de seus habituais destemperos oratórios improvisados, que parecem não poderiam ser evitados mesmo com longa preparação, o Presidente da República, falando de sexo e de preservativos, acusou a Igreja de ser hipócrita. E pior, fez a mesma acusação a pais e mães que pensam diversamente dele. Mais uma vez fiquei envergonhado ao ver que um homem público brasileiro pode falar sem pensar e sem dar a seu pensamento um embasamento conveniente. Pode falar com a sabedoria dos almanaques, como se dizia antigamente, ou de “Caras” como se poderia dizer hoje. Do alto de suas alpargatas. Ao ouvi-lo, lembrei-me de uma daquelas anedotas dos tempos clássicos, que apareciam nos livros escolares de antigamente. O grande pintor grego Apeles (século quarto A. C.) tinha exposto uma de suas pinturas. Escondido, ficou a ouvir a apreciação do público. Um homem, sapateiro conhecido na cidade, fez sensatas críticas às sandálias da personagem retratada. Apeles anotou cuidadosamente as observações. Mas o homem continuou suas críticas, que bem mostravam sua estreiteza de cultura. Apeles não se conteve. Saiu do esconderijo e disse uma frase que virou provérbio: “Que o sapateiro não vá além das sandálias!” Se for, talvez o dano seja pequeno. Mas o ridículo será sempre grande e constrangedor. 42
NATAL DE NINGUÉM, NATAL DE ALGUÉM
Para o dia de Natal, um jornal (O Estado de S. Paulo) pediu a “um seleto grupo de 13 poetas contemporâneos brasileiros” poemas alusivos ao dia e ao fim de ano. Percorri os 13 poemas. Não discuto seu valor, inspiração ou beleza. Apenas falo de meu espanto ao neles nada encontrar de Natal, pois que pelo menos eu de Natal nada encontrei. Ou quase nada. Apenas um menciona “um menino filho de carpinteiro a quem busco no rastro dos mísseis na dor das calçadas na noite indiferente”. E não tem medo de falar em Natal, e termina dizendo o que vejo como prece: “É Natal. Dá-nos, menino ao menos esta noite a tua mão”. (Fernando Moreira Salles) Mas há sempre uma segunda leitura. E pude, então, ler como que em negativo, em côncavo, em falta, em precisão e anseio − inconscientes talvez − mensagens de Natal. Quase sempre − ou sempre talvez − falam os poetas de transitoriedade, frustração, procura insatisfeita, desilusão, 43
espera, de um não-sei-o-que-me-falta. De uma maneira ou de outra, falam de um berço vazio, onde faz falta “essa anunciadíssima criança”, do poema de Paulo Henrique Britto, que de qualquer modo será indispensável, “desde que seja nossa, e na medida exata do desejo, nem maior nem mais funda que a precisa ferida que para preencher foi ela concebida.” Por falar nisso, como foi seu Natal?
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NATAL MAIS NATAL
Depois que, há vários anos, os missionários redentoristas iniciaram a publicação de textos para uma novena preparatória para o Natal, alguma coisa parece ter mudado. A festa do Natal e sua preparação passaram a ter, parece, um lugar mais importante em nossa vida. Para muitos o Natal deixou de ser apenas uma festa marcada por uma religiosidade meramente interior e espiritualizada, com certos tons de poesia e sensibilidade. Não apenas uma festa familiar, fortemente marcada por recordações da infância. E principalmente não apenas uma festa anual para a troca de presentes e votos de felicidade. Cada vez mais a preparação para o Natal transformou-se num tempo forte de reflexão cristã diante da realidade da vida, das exigências e promessas do evangelho de Cristo. É possível que nem todos estejam contentes. Possível que muitos se sintam incomodados , desgostosos com certas reflexões, com certos fatos lembrados, com certos apelos que nos obrigam a celebrar um Natal diferente. Um Natal sem muitos anjos e estrelas, sem nenhum sentimentalismo. Um Natal em que sentimos o frio, a pobreza e o cheiro de uma cocheira, o desconforto de uma família de viajantes sem casa onde ficar, numa terra dominada pelos poderosos. Um Natal celebrado de portas e corações abertos, de maneira que possamos ver as famílias sem casa, as crianças e os solitários sem família. Um Natal celebrado com moderação nos gastos, 45
e mesmo assim com certo aperto no coração ao vermos as filas dos que esperam horas a fio por um pacote de alimentos, pacote marcado pelos logotipos de quem faz esmola. Logotipos que serão levados pelas ruas como antigamente eram levados os brasões bordados nas librés, no uniforme dos servos e dos escravos. É. Parece que nosso Natal já não é o mesmo de outros tempos mais tranquilos, quando podíamos ouvir falar do imperador romano sem nos lembrarmos que hoje ele tem outros nomes. Quando podíamos ouvir dizer que Jesus nasceu em Belém, e não pensar que hoje Belém de Judá é Belém das Favelas, Belém dos Alagados, Belém das Periferias. Quando era poético pensar na gruta, com o boi e o burrinho, e não entender que José e Maria foram abrigar-se debaixo da ponte, no barraco erguido na pressa de uma noite. Quando podíamos ficar olhando o Menino louro deitado em palhas limpas, e não ver os meninos barrigudos, de olhos grandes e pernas finas. Talvez o nosso Natal não seja o Natal, e seja apenas mais Natal.
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NATAL SEM POESIA Ser humano, nascer da e na humanidade não é apenas receber e passar a carregar uma herança genética. Nascer não é apenas um fato biológico. Em cada concepção, em cada nascimento de certo modo se repete a origem da humanidade, mas ao mesmo tempo quem nasce assume a história experimentada de todos que o precederam, e traz sua própria contribuição, de bem ou de mal, para todos que virão depois. Cada ser humano que nasce é fruto bom ou acerbo do passado, para o agridoce da humanidade, nunca totalmente boa nem totalmente má. Quando, levados pela fé, dizemos que o Filho de Deus nasceu entre nós, não estamos sendo embalados por poéticas canções de ninar. Não precisamos acompanhar a intuição ou a ingenuidade, não sei, de santos que diziam que, já na manjedoura, o Menino tinha diante dos olhos a cruz. Mas devemos compreender que, ao nascer humano, o Filho tornou-se também o filho do passado e do futuro da humanidade. Filho marcado por tudo que é humano, pelos sofrimentos e alegrias, pela pobreza e pela guerra, pelos gestos de amor e esgares de ódio, pela procura da beleza e vandalismos insanos, pelo trabalho duro e pequenos prazeres. Foi nesse mundo que veio viver, essa a herança que assumiu, essa a humanidade que veio transformar com seu poder divino. Sem maldade, mas carregando o peso e a tristeza de as maldades. Marcado pela fraqueza e pela limitação da carne, sem apelar para nenhum privilégio nem 47
passe de mágica. Assumiu a forma de servo e escravo, mas sendo ao mesmo tempo a própria liberdade que pode levar à verdade e ao amor. Encarnar-se, assumir plenamente a maneira humana de ser, em tudo, menos no pecado, foi o modo escolhido pelo Filho de Deus para nos unir a si na participação de sua divindade. Só assim poderemos superar o abismo entre nossos anseios mais profundos e mais elevados e a realização que nos sacie plenamente. Celebrar o Natal é reafirmar essa esperança. Não importa se a poesia da festa for pouca, desde que a certa esperança seja muita. Bom Natal para você.
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O “ADVENTO” DOS ANTIGOS
Todos já notamos como as crianças, a partir de certa idade, começam a esperar ansiosamente o Natal. É uma expectativa bastante compreensível, uma vez que se acostumaram a receber presentes nesse dia, e também afinal porque é um dia de festa que desde cedo fala ao nosso coração. Vão contando os dias que ainda faltam. Essa expectativa infantil pode dar-nos uma pálida ideia da atitude de todos aqueles homens piedosos do passado que esperavam a vinda do Salvador prometido. Quanto mais sentiam sua própria fraqueza, quanto mais sentiam o peso do pecado em si mesmos e nos outros, tanto mais ardentemente imploravam a Deus que lhes mandasse logo a salvação. Liam e reliam nas S. Escrituras as promessas divinas e procuravam nos acontecimentos os sinais anunciadores dessa aurora prometida. Temos a oração de um homem piedoso, uns cinquenta anos antes do nascimento de Jesus : “Vede, Senhor, mandai o Rei, o filho de Davi, no tempo que vós, ó Deus, conheceis, para que ele reine sobre Israel, vosso servo; dai-lhe a força para que vença os poderes do mal. . . Então ele reunirá vosso povo santo e o conduzirá com justiça, governará as tribos do povo santificado pelo Senhor seu Deus. . .” 49
Numa outra oração, numa bênção que os judeus repetiam muitas vezes, eles diziam: “Que ele faça reinar o seu reino, e germinar a sua redenção. Que ele mande o seu Messias, que ele liberte o seu povo, ainda durante vossa vida, ainda em vossos dias, em vida de toda a casa de Israel, logo e depressa.” Cada ano, na festa do ano novo, reliam sempre pelo menos dez passagens das Escrituras que falassem do Salvador esperado. É assim que nos devemos preparar para a festa do Natal, cheios de uma ansiosa expectativa. É verdade, o Salvador já veio para nos salvar. Mas estamos sempre precisando de salvação. Devemos tomar cada vez mais a sério essa vida nova que o Cristo nos oferece, precisamos crescer sempre mais, cada vez precisamos de mais força para vencer o mal que nos cerca. O Natal, como outras festas, deve ser oportunidade para abrir mais amplamente nosso coração para a salvação que vem de Deus. Há um costume de preparação para o Natal que nos pode ajudar. É costume ainda não muito espalhado no Brasil, mas, quem sabe, poderá ser uma boa sugestão para sua família. Em muitos países há o costume, já bastante antigo, da “Coroa do Advento". Antes do primeiro domingo do advento, isto é: quatro domingos antes do Natal, prepara-se uma coroa de folhas que não sequem facilmente, ou então uma coroa com qualquer outro material bonito. Já será uma boa oportunidade para reunir as crianças, para que deem palpites e colaborem na decoração da coroa. Sobre a coroa colocam-se quatro velas, que também podem ser enfeitadas 50
com pinturas e desenhos. A coroa é colocada num lugar de honra: sobre a mesa da sala, ou diante do oratório, ou dependurada do teto, como se fosse um abajur. No primeiro domingo do advento, reúne-se a família para fazer as orações de preparação para o Natal, e acende-se a primeira vela. A cada domingo acende-se outra vela, até que no último domingo antes da festa estejam todas acesas. Assim, principalmente as crianças vão tomando consciência da aproximação do Natal. As orações preparatórias, ou a oração da noite, podem nesse tempo ser feitas com as luzes apagadas, com a sala iluminada apenas pelas velas da coroa, cada semana mais luminosa. É um modo expressivo de a gente se lembrar que Jesus é a luz que dá sentido e valor para tudo na vida. Já que estamos dando sugestões, seria interessante ir montando aos poucos o presépio, com a colaboração de todos, ou então ir juntando perto da coroa as economias feitas com algum sacrifico. Quando chegar o Natal, poderemos oferecer alguma coisa para uma pessoa doente, pobre ou idosa. Dando alguma coisa de nossa alegria, nós a estaremos aumentando. Em alguns lugares é costume que as velas sejam acesas por alguma criança chamada João ou Joana. É um modo de lembrar S. João Batista que anunciou a chegada do Salvador esperado havia tanto tempo.
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NATAL DE ANTIGAMENTE
Desde os primeiros tempos do cristianismo era costume festejar o nascimento de Jesus. Mais ou menos a partir de ano 550 a festa do Natal começou a ser celebrada no dia 25 de dezembro. E essa festa foi sempre considerada como uma das mais importantes, justamente porque relembrava a encarnação do Filho de Deus. Não demorou muito e os cristãos perceberam que uma festa de tão grande importância devia ter uma preparação conveniente, do mesmo modo como a festa da Páscoa é preparada pela Quaresma. La pelo ano de 500 e tanto, um bispo da França mandou que o Natal fosse preparado com um jejum de três dias por semana, a partir do dia de S. Martinho, 11 de novembro. Essa preparação tinha o nome de "Quaresma de S. Martinho". Aos poucos o costume foi-se espalhando, com algumas variações de data. O costume chegou a Roma lá pelo ano de 600, mas sem o jejum: a preparação para o Natal era feita como uma alegre espera do nascimento do Salvador. Como teremos oportunidade de ver, ainda hoje a preparação para o Natal conserva essa dupla ideia de penitência e de alegria: penitência de quem reconhece seu pecado e sua miséria, mas ao mesmo tempo se alegra com a salvação que nos é trazida pelo Cristo nosso irmão. Tanto que, na liturgia, muitas vezes as leituras falam da esperança 52
cristã. O tempo que estamos vivendo chama-se “Advento”. Advento é a mesma coisa que "chegada", "vinda". Tempo do Advento é o tempo de preparação para a "Vinda do Senhor". Talvez aqui a gente pudesse perguntar: − Mas, por que essa festa para lembrar o nascimento de Jesus? por que durante o ano a Igreja celebra tantas outras festas? por que esses tempos de preparação para a Páscoa ou para o Natal? Uma resposta muito simples seria esta: A igreja celebra essas festas pelo mesmo motivo que nos leva a celebrar as festas de aniversário de nascimento, de casamento e outras. Nós somos homens, criaturas que vivemos no dia a dia. Não podemos estar sempre chorando, nem sempre rezando, nem sempre trabalhando, nem sempre festando. Não somos capazes de pensar em tudo ao mesmo tempo, não podemos sentir e viver tudo de uma vez. Por assim dizer, vamos bebendo a vida em pequenos goles. Quando lemos um livro, vamos lendo uma página depois da outra, uma palavra depois da outra. Assim também em nossa vida religiosa. Temos tempos e dias especiais para ir vivendo e compreendendo cada vez mais a grande riqueza de vida cristã que Deus nos deu. Há ocasiões para nos lembrar de nossos pecados e pedir perdão; noutras ocasiões vamos pensar mais na bondade de Deus que nos salva. Vamos relembrando aos poucos os fatos da vida de Jesus, vamos aprendendo pouco a pouco o que ele nos ensinou, vamos treinando" de vagar a vida que ele nos deu para viver. Agora estamos no tempo do Advento, procurando viver 53
como quem reconhece sua fraqueza, espera a salvação que vem de Deus, vive na esperança da salvação definitiva, da vida eterna que Deus nos oferece em Cristo. Temos três ideias importantes para este tempo de preparação para o Natal: − Somos filhos de uma humanidade pecadora que não pode conseguir a felicidade por sua própria força. É só de Deus que pode vir a nossa salvação. − Apesar de nossa maldade e de nossa fraqueza, Deus quer salvar-nos. Prometeu a salvação e cumpriu sua promessa mandando para nós seu próprio Filho feito homem. Jesus veio e está no meio de nos: ele é a nossa salvação, a nossa felicidade. − Ainda não somos completamente felizes: a cada passo podemos cair de novo na infelicidade do pecado, ainda estamos cercados de dificuldades e de sofrimento. Vivemos ainda na esperança, na espera da felicidade completa e que dure para sempre. Acreditamos em Jesus, esperamos o que ele nos prometeu. Sabemos que Jesus virá ainda uma segunda vez para nos dar a vitória completa sobre o pecado e a morte. Advento é tempo de penitência e de alegria: reconhecemos nossa fraqueza mas temos a esperança.
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NA SUA CASA HÁ UM PRESÉPIO?
Falar em Natal, é falar também do presépio. São muitas as famílias brasileiras que fazem questão de montar essa representação do nascimento de Jesus. É difícil saber quando começou esse costume cristão. O certo é que já nas Catacumbas, nos antigos cemitérios subterrâneos dos cristãos, principalmente em Roma, encontramos representações do nascimento de Jesus. São principalmente pinturas, uma ou outra escultura. Parece, porém, que foi a partir de S. Francisco de Assis que o costume se tornou realmente popular. Num livro sobre a vida de S. Francisco podemos ler o seguinte: "Aproximava-se o Natal de 1223. S. Francisco disse para um seu amigo: − “João, se você me ajudar vamos celebrar este ano o mais belo Natal que já se viu.” − “É claro que ajudo, meu pai.” E S. Francisco continuou: − “Num bosque, em Greccio, há uma gruta semelhante à gruta de Belém. Quero representar a cena do Natal e ver com estes meus olhos a pobreza em que Jesus nasceu. Quero ver a manjedoura, o cocho no qual foi colocado, entre o boi e o burrinho. O papa deu-me licença de fazer essa representação.” E João respondeu: − “Está compreendido. “Deixe tudo por minha conta.” Na noite de Natal, tocavam alegremente os sinos, e o povo, avisado a tempo, vinha de toda parte. Vinha gente de muito longe mesmo, traziam velas e tochas para iluminar o 55
caminho no escuro da noite. Vinham também os frades cantando. Vinham todos cheios de devoção e também. . . de curiosidade. Traziam presentes, como os pastores que foram visitar Jesus em Belém. E então, quando chegaram à gruta, foi aquela maravilha. Ali estava uma grande pedra preparada para a celebração da Missa, ali estava uma manjedoura vazia, o boi e o burrinho. Não existia nenhuma outra imagem. Mas não faziam falta, porque S. Francisco começou a falar e todos tinham a impressão de estar realmente assistindo de novo o que aconteceu na gruta de Belém. Foi uma noite de festa, cheia de luzes e cantos, cheia de alegria e orações. Ano de 1223. Já faz muito tempo. Mas, desde então, quase cada igreja ou capela, quase cada família faz o seu presépio. No sertão e nas cidades. Presépios grandes e pequenos, cheios de arte ou enfeitados pela simplicidade: mas todos rodeados do mesmo carinho e da mesma devoção. A montagem de um presépio, começada bastante tempo antes, pode ser ótima preparação para o Natal. Seria bom que todos da família dessem sua colaboração. Que, ao mesmo tempo que trabalham na preparação do presépio e dos enfeites da sala, as crianças fossem ouvindo novamente a história de Jesus, contada pelo pai ou pela mãe. Já imaginaram que ótima ideia seria unir a preparação do presépio com a novena de Natal? O presépio não pode ser um simples enfeite do tempo do Natal. Deve ser a manifestação da vida cristã de uma família que é de fato cristã, que está vivendo e revivendo a mensagem do Natal. 56
O presépio não deve ser uma simples curiosidade para a gente ficar olhando: deve ser o ponto de partida para nossa meditação. De nada adianta montar o presépio, se a família não se reúne para rezar, para se alegrar com sua união e sua felicidade que vêm de Deus.
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TEMPO DO “JÁ” E DO “AINDA NÃO” Estamos no tempo do "Advento", isto é, nas quatro semanas de preparação para a festa do Natal. Talvez para muita gente essa preparação possa parecer uma coisa meio forçada e sem sentido. Alguém, por exemplo, poderia dizer: − “Por que falar tanto na promessa da vinda de um Salvador? Jesus já veio, não precisamos ficar esperando o cumprimento das promessas de Deus que lemos na Bíblia. Que sentido tem a gente se preparar para o Natal?” A esperança de uma salvação é a marca distintiva do Antigo Testamento. É uma esperança que reaparece a cada passo, nos momentos de alegria e nos de infelicidade. Durante estas semanas seria bom se todos relessem o livro do profeta Isaias, ou outras passagens que falam do Salvador prometido e esperado. Poderemos assim ver como Deus foi levando os homens para a salvação. Fez primeiro que percebessem sua miséria e sua fraqueza. Que percebessem como todo o mal vem do pecado, e que a salvação e a felicidade podem vir somente de Deus. A salvação vinda de Deus era a grande esperança. Podemos perceber como os homens foram crescendo nessa esperança, ajudados por Deus. De começo, esperavam uma salvação que fosse uma longa vida, muitos filhos, muita saúde e riqueza; esperavam uma salvação que os fizesse poderosos e respeitados por todos. Mas foram sendo educados e começaram a perceber que nada disso poderia fazer sua felicidade, mas somente a bondade, o amor e a paz. 58
Para que o homem seja salvo é preciso que se converta seu coração, é preciso que procure o bem. Não haverá salvação que satisfaça, a não ser que seja uma salvação definitiva, uma vida nova que dure para sempre, mesmo depois da morte. Já mostramos como lá pelo tempo do nascimento de Jesus essa esperança era mais viva do que nunca. Podemos ver nos pobres pastores dos arredores de Belém os representantes dessa ansiosa esperança. Conforme nos conta Lucas (2, 9ss), apareceu-lhes o anjo de Deus anunciando: − “Estou aqui para trazer boas notícias para vocês. E essas notícias vão trazer grande alegria também para todo o povo! Hoje, na cidade de David, nasceu o Salvador de vocês, Cristo, o Senhor!” Mas, se o Salvador já veio, o que ainda estamos esperando? Por que esse tempo da "Espera”, do ”Advento”? Sim, o Salvador já veio. Mas ainda não aconteceu tudo. Ainda não recebemos tudo que nos foi prometido. Há tampo tempo que Jesus nasceu. Mas nem todos o aceitaram ainda. Há tanto mal, tanta injustiça, tanta falta de amor no mundo. Basta abrir os jornais, ver ou ouvir os noticiários. Os poderosos e os ricos continuam oprimindo os pequenos: ainda há muita cobiça, ainda há muita crueldade, ainda há fome, miséria, ignorância, doença, abandono. Há guerras, há matanças. Os homens ainda não vivem como irmãos, ainda não há paz, amor e verdade entre os homens. Ainda precisamos da esperança, da espera da força de Deus que transforme nosso coração e o coração de todos. Ainda devemos pedir que a salvação, que vem de Deus, transforme este nosso pobre mundo. 59
Ainda devemos tomar consciência de nossa própria miséria, para que cada um de nós viva cada vez mais a vida de salvação que o Cristo nos trouxe. Não há dúvida que ainda temos de nos preparar para que o Cristo nasça de fato em nossa pobre vida. Nasceu o Cristo nosso Salvador. Procuramos viver a vida que ele nos oferece, mas ainda falta muito para que seja completa a nossa felicidade. Ainda esperamos essa felicidade completa que não possa ser perturbada por tantos males grandes e pequenos que nos cercam: incompreensões, tristezas, separações, doenças, tantas e tantas limitações desta nossa vida. Por isso ainda esperamos, vivemos em preparação para a vinda, o “advento” final do Cristo, quando serão cumpridas todas as promessas, quando reinará afinal o amor sem limites, na união, na paz, na felicidade plena. Nossa vida toda é um tempo de espera. Vivemos na esperança: esperamos porque acreditamos nas promessas de Deus.
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UMA ENCARNAÇÃO CORAJOSA DA FÉ
Por estes dias, o presépio já estará montado em muitas casas. Você já imaginou quantos presépios haverá na sua cidade? Presépios de todos os tipos, para todos os gostos. Há muita gente que se escandaliza ao ver os presépios de nosso povo, cheios de tantas coisas de nossa vida do dia a dia. Não compreendem porque colocar nos presépios o tradicional monjolo, os animais (sem esquecer galinhas e tigres), lagos e ribeirões, bonecas de celuloide ou modernas bonecas de plástico vestidas de anjo, automóveis, trens e aviões. . . tantas e tantas coisas que fazem de nosso presépio um mundo variado. O Menino Jesus, Maria, José são colocados em cabanas ou em casinhas feitas conforme o estilo de cada região. Muitos se escandalizam e não veem sentido nessa mistura toda, acham que tudo isso vai contra o espírito cristão, a seriedade do Natal. Qual seria a sua reação vendo um presépio com o Menino Jesus vestido de fraldas e cueiros como nossas crianças? E se Maria fosse representada com as roupas de uma mulher simples do povo de nossos dias, S. José vestido como operário, os pastores vestidos como nossos boiadeiros? E se, em vez de uma gruta, você visse uma ponte, e ali debaixo, sobre um monte de jornais, colocado o Filho de Deus? Será que você estaria preparado para perceber todo o valor, toda a beleza, toda a verdade dessa representação? Os antigos compreenderam bem o sentido do Natal, e 61
por isso cada povo e cada tempo representou o nascimento de Jesus conforme os costumes, os tipos, as roupas do seu tempo e da sua região. O presépio mais verdadeiro não é aquele que representa exatamente o nascimento de Jesus conforme os usos e as paisagens da Judéia naquele tempo. O presépio mais verdadeiro é aquele que mais nos ajudar a compreender que o Filho de Deus se fez realmente homem para estar sempre em nosso meio. Que Jesus continua entre nós, participando deste nosso mundo atual, mundo do rádio, da televisão, do cinema, da internet, dos satélites, dos aviões e dos foguetes. . . mundo de hoje! No passado, havia gente que não queria acreditar que Jesus fosse realmente homem, com um corpo igual ao nosso. Achavam que o corpo de Jesus era apenas uma ilusão criada por Deus. Achavam que o corpo humano era muito material, muito impuro para estar unido com a pessoa do Filho de Deus. O Evangelho, porém, anunciava que o Filho de Deus se fez realmente, verdadeiramente homem. Vamos ver, por exemplo, o evangelho de Lucas: O anjo, anunciando o nascimento de Jesus disse para Maria: − "Você vai ficar grávida e vai dar à luz um filho..." (1,31). (Também aqui os antigos compreenderam mais que nós o realismo da verdade. Em pinturas e imagens muitas vezes representaram Maria grávida como nossas mães. Mas vamos continuar com o Lucas.) − “José foi para Belém ... foi registrar-se Com Maria sua noiva que estava grávida. E aconteceu que, enquanto estavam em Belém, chegou o tempo de Maria ter a criança. Então deu à luz o seu primeiro filho. Enrolou o menino em panos e o deitou numa manjedoura". 62
O Filho de Deus veio viver de fato a nossa vida. Jesus viveu essa nossa vida na terra como todos nós a conhecemos. Provou o leite materno, dependeu de uma mãe que lhe trocou as fraldas, caiu ao tentar os primeiros passos, teve os braços e o corpo moídos pelo trabalho e pela caminhada, conheceu a tristeza e a alegria, sofreu os tormentos da cruz. Foi homem até às últimas consequências. O Filho de Deus encarnado, feito homem, não fez uma vida especial para si, não viveu rodeado de anjos, não encontrou palmeiras que se inclinasse para lhe oferecer os frutos, não quis transformar as pedras em pão, não quis atirar-se do alto de uma torre. Jesus não veio mudar a nossa vida: não veio acabar com a necessidade do alimento, não veio acabar com o sexo, não veio acabar nem com o riso nem com as lágrimas. Jesus veio mudar nossa maneira de viver a vida. Veio participar de nossa vida humana para que possamos participar de sua vida divina. Veio para ficar em nosso meio, veio para nos transformar, para podermos viver nossa vida humana no amor, na união com Deus e com os outros. Natal é tempo de mudar nossa maneira de viver a vida.
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NOMES QUE MENTEM
Vamos e venhamos. Se os nossos parlamentares de todos os níveis nem sempre são eficientes, e parece que sempre foi assim, nem por isso deixam de nos surpreender de vez em quando. Ainda me lembro de um projeto de lei apresentado há muito tempo por um deputado federal. A proposta era muito clara: "Fica proibido o registro de pessoas físicas com o nome de Jesus.” E assim justificava sua lei: “Não é justo que pessoas, portando o mesmo nome daquele a quem devemos tanto na reformulação de nossos valores morais ou espirituais, venham macular esse nome, jogando-o na lama com suas ações indignas e aviltantes". E ia mais longe: “Quem já foi registrado com o nome de Jesus, pode continuar a usá-lo. A menos que seja condenado pela justiça. Nesse caso, deverá assumir outro nome mais conveniente, escolhido por ele, pela família ou imposto pelo juiz. Não vou discutir a oportunidade ou não desse antigo projeto de lei do deputado pedessista paulista. Só fico pensando. Se o princípio valesse e a moda pegasse, então seria preciso que muita gente mudasse de nome, a menos que consiga mudar de vida. Assim, por exemplo, as Eulálias de língua afiada e perigosa, deveriam ser remarcadas. Não deveria haver nenhum Teodoro, a menos que fosse realmente um presente de Deus para todos. E o que fazer com as Catarinas que não fossem de fato puras? E não vamos esquecer os Beneditos que não puderem ser considerados 64
benditos. As Ângelas nada angélicas. Os Amados e Amandas, nem amados nem amáveis. Os Benígnos rancorosos. Os Boaventuras que não fazem a ventura de ninguém. O que poderemos fazer com os Celestinos que não lembram nada do céu? Os Clementes sem clemência. Há tantos Crisóstomos por aí, mas de sua boca não sai nenhuma palavra que valha um grama ouro. Dorotéas que deixaram de ser dom de Deus, ou para Deus. Domingos e Domingas que não são do Senhor. Estêvãos que nunca foram coroa de alegria para os outros. Eusébios sem nenhuma piedade. Felicidades que só espalham dores. Honoratos que jogaram fora sua honra. Inocências de vida marcada. Irenes e Irineus que não trazem a paz. Ah, sim, não podemos deixar de lado os Joões que são tudo menos bênção de Deus. Justos e Justinas sem justiça. Lúcios e Luzias que já deixaram de ser luz. Macários que não são felizes nem fazem felicidade. Ritas e Margaridas que deveriam ser pérolas apreciadas por todos. Prudêncios imprudentes. Salvadores que põem a perder. Sofias, sem nenhuma sabedoria. Timóteos que não prestam honra a Deus. Como e que vamos fazer para mudar o nome de tanta gente? Principalmente, que é que podemos fazer com os Cristianos e Cristinas que não vivem como cristãos?
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“O DIA EM QUE ME SENTI MAIS AMADA” Recebi a notícia do falecimento de uma pessoa muito querida. Na última vez que nos vimos, ela e o marido tinham acabado de saber que um grave problema de saúde a estava afetando. Começou um longo Calvário, que agora chegou ao final. Fiquei triste com a notícia, mas imediatamente me lembrei de uma mensagem que ela enviara poucos dias depois de nosso último encontro. Mensagem que então me impressionou muito, e agora gostaria de compartilhar com você. É um desses momentos de fé que muito nos podem ajudar na caminhada. “Gostaria de dizer a vocês que este dia, no qual soube que estava com câncer, foi o dia em que me senti mais amada por Deus. Não senti desespero, ao contrário, senti-me totalmente inundada pelo amor de Deus, como uma criança carregada no colo. Sinto sua presença em mim e essa presença me dá forças para suportar a dor de tão pesado diagnóstico. Mas, como serva inútil, descobri que já não é fácil seguir Jesus tomando sua cruz de cada dia, quando se enfrenta um dia a dia de sessões de quimioterapia. Estou tendo muitas dificuldades, pois esta é muito agressiva e me deixa fraca, sonolenta e sem ânimo, mas o amor de Deus que me inunda é imenso e não me abandona mesmo nos momentos de fraqueza. 66
Entrego-me constantemente a Deus. Quando rezo o Pai Nosso peço que realmente seja feita a vontade dele, pois como Ele é meu Pai, sabe o que é melhor para mim. Tenho compreendido que a verdadeira fé é entregar-se completamente nas mãos de Deus. O que mais desejo é contemplar Cristo face a face, mas, ao mesmo tempo, gostaria de ficar com minha família. Isto é um sonho e luto para viver cada dia como único. Tenho saudades da minha família, [....] Gostaria de acompanhar o desabrochar de cada neto, e não ver tristeza em seus olhinhos. Amo muito todos eles. Sinto-me amada por todos: minha família, amigos e equipistas que têm demonstrado uma solidariedade incondicional e comovente, tanto com a presença, telefonemas e principalmente orações. Enfim, Pai, rezo como Jesus rezou nas vésperas de sua crucificação: "Pai, se for possível, afasta de mim este cálice, mas não seja feita a minha vontade e sim a tua". Peço que Maria Santíssima me dê forças, para que minha fé não fique abalada com a progressão da doença, e cuide de minha família e de todos que amo. Amém, amém, amém.” Minha amiga Maria Augusta, desculpe, mas eu precisava partilhar com outros essas palavras de fé e coragem. Ao nos despedir, à espera do reencontro, quero dizer-lhe como os cristãos de antigamente “Viva em paz!”
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O INÚTIL JOSÉ
O Tribunal da Inquisição estava reunido em Nápoles. Devia julgar o Frei José, acusado de ignorância religiosa, mistificação e, possivelmente, até de feitiçaria ou artes mágicas. No mínimo era um frade esquisito que despertava suspeitas. O inquérito final durou três semanas e os juízes acabaram reconhecendo no acusado uma ciência espiritual que não podiam explicar. Aliás, não era só isso que era inexplicável na vida do Frei José. Ainda hoje ficamos sem saber o que pensar diante dos documentos daqueles tempos. Em 1603, na aldeia de Cupertino perto de Nápoles, o carpinteiro Félix Desa, casado com a Francisca Panara, estava em dificuldades. Não tinha com que pagar suas dívidas e por isso andava fugido da polícia. Foi por isso que o seu filho José acabou nascendo numa cocheira onde o casal estava escondido. Félix e Francisca eram pobres, endividados e na miséria, mas bons cristãos. Foi a única herança que puderam passar para o filho. Na escola o José foi um fracasso. Nem chegou a aprender leitura e, pelo menos para ajudar em casa, foi posto como aprendiz de sapateiro. Nem para isso o rapaz prestava. Perdeu o emprego e durante muito tempo ficou doente, complicando ainda mais as dificuldades da família. O que sabia era rezar durante horas e horas, fazer penitência e fazer caridade ajudando a todos, ainda que tivesse mais boa vontade do que jeito. 68
Aos dezessete anos o José foi recebido como irmão leigo entre os franciscanos conventuais. Logo os frades viram que o candidato era muito santo, mas não servia nem para descascar batatas. José foi então procurar os capuchinhos. Ficaram impressionados vendo como falava das coisas de Deus, mas acabaram achando que era bem desequilibrado, tão perdido nas coisas espirituais que não dava conta das obrigações mais simples da vida. Voltou para casa: o pai tinha morrido e os credores queriam prender o filho. Aos dezoito anos, foi recebido novamente pelos franciscanos. Não como frade, mas apenas como oblato, para os serviços da casa. Os frades acabaram reconhecendo que por debaixo de tanta incapacidade havia uma grande alma. Acabaram permitindo que fizesse os votos religiosos e mandaram que estudasse. Frei José fez tudo que podia mas tinha a cabeça impermeável, não fazia a paz com os livros. Apesar de tudo, chegou o dia em que, para ser ordenado padre, devia ser examinado pelo bispo. Por sorte, o bispo ficou tão admirado com a boa preparação dos primeiros frades examinados que acabou não examinando os outros entre os quais estava Frei José... E assim ele foi ordenado em 1628. E logo todos começaram a falar daquele frade que tinha uma ciência e uma sabedoria que não tinha aprendido nos livros. Um frade que vivia perdido nas coisas de Deus e que fazia milagres. Todos começaram a procurá-lo e os superiores começaram a ficar alarmados. Tentaram esconder, mudando-o de um convento para outro. Houve também invejar e perseguições. Foi assim parar diante do Tribunal da Inquisição. Parece que 69
nem o bom Frei José sabia o que pensar e o que fazer diante de tantas coisas extraordinárias que marcavam sua vida. Era como se Deus quisesse zombar da sabedoria e da prudência dos homens... Em agosto de 1663 o Frei José de Cupertino ficou doente e soube que ia morrer: começou a se preparar ainda mais. No mês seguinte estava tudo acabado: no dia 18 morreu o santo. São José de Cupertino, talvez o santo humanamente mais imprevisível.
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O PEDRO CERTO
Amanhã à noite haverá festa. Haverá foguetes no céu, explodindo em estouros e em lágrimas de luzes. Fogueiras pondo dança de luzes nas bandeirinhas de papel de seda, e fazendo enormes as sombras no terreiro. Sanfonas e violas, mastro erguido com a bandeirola de S. Pedro, barbas grandes, tranquilo e paterno, a segurar duas enormes chaves. Estaremos fazendo a festa de S. Pedro. Mas, que S. Pedro festejamos? O Pedro impulsivo e também medroso? O Pedro pedra da Igreja ou o Pedro das lendas e historietas? Talvez arriscando, fui procurar nos Atos dos Apóstolos essa figura de Pedro festejado pelo povo. O Pedro que talvez seja o Pedro mais povo, pelo menos quando o povo se torna mais consciente. A passagem está no capítulo quarto. Pedro e João tinham curado um aleijado às portas do Templo. Aos espantados populares, Pedro fez um discurso, dizendo que tinha curado em nome de Jesus. Ainda estava falando quando chegaram as autoridades e levaram ambos para a prisão. Passaram a noite na cadeia, porque já era tarde, e os juízes tinham ido para casa. No dia seguinte foram levados ao tribunal. O texto bíblico diz que os magistrados, “Vendo a firmeza de Pedro e de João, e verificando que eram analfabetos e homens do povo, ficaram admirados". Confabularam os juízes e, não podendo negar o fato do aleijado, ali curado, de pé diante deles, como se nunca tivesse 71
sido entrevado, tentaram sair pela tangente: "Para que isso não se divulgue mais, vamos usar ameaças e impedir que continuem falando no nome desse homem". Chamaram de volta os dois presos e proibiram terminantemente que continuassem falando sobre Jesus. Estavam a ponto de se cumprimentar por terem resolvido sabiamente o caso, quando a cabeçudice de Pedro e João puseram tudo a perder. Toda a autoridade jurídica, religiosa e política de que se sentiam investidos desfez-se como roupa velha comida pelas traças. Códigos, artigos, parágrafos, decretos, leis e ordens desmoronaram diante da palavra daqueles dois "analfabetos e homens do povo". Diante da proibição do tribunal eles só disseram: "Os senhores mesmos vejam se é justo, aos olhos de Deus, obedecer mais aos senhores do que a Deus. Isso mesmo, porque é impossível deixarmos de falar das coisas que temos visto e ouvido." ... Acho que esse é o Pedro celebrado pelo povo. O homem que tinha coragem para dizer que acima das leis humanas está a lei de Deus e a lei da consciência. Esse analfabeto homem do povo que falava das coisas que tinha visto e ouvido, porque não estaria em paz com Deus e consigo mesmo se não continuasse falando. Pelo menos até que as ameaças se transformassem em cruz e ele morresse de cabeça para baixo, como um estranho ponto de exclamação.
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SERELEPE PRUDENTE
De manhã bem cedo, com o orvalho ainda brilhando na grama, eu estava no início de uma aleia no parque. De um lado e do outro, as árvores ainda como que rígidas pelo sono da noite. Nem sei de onde, mas de repente ali estava um serelepe. Numa carreira rápida foi até árvore mais próxima, subiu pelo tronco uns dois palmos, olhou para todos os lados, saltou para o chão, flechou para o próximo tronco a uns dois passos, repetiu o exame dos arredores, e assim continuou de árvore em árvore até sumir no bosque lá no fundo. Concordei com ele e com sua prudência atenta. Eu também sou de voo curto, ou melhor, de carreira curta e fôlego de pouco alcance. Não posso pretender voos longos, como as andorinhas que vão para os verões do Norte, nem contar com arrancadas prontas que me levem para longe do perigo. Tenho de ir de árvore em árvore, de pedra em pedra, de degrau a degrau, de toca em toca. Não posso atirar-me à travessia do deserto, sem ter antes calculado e bem a distância entre os poços. O pão que levo não dura muito tempo, nem posso afastar-me muito da proteção das sombras. Só me resta, Senhor, agarrar-me à tua mão, tentar alcançar até onde posso estendendo os braços, mas sem soltar-me. No máximo, quem sabe, obrigando-te a inclinar-te como pai, para que eu possa alcançar um pouco mais longe 73
com mĂŁo que se agita Ă procura de novas conquistas.
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O TEMPO DOS LONGOS CORREDORES
Certamente você já passou algumas horas, ou melhor, alguns dias nos corredores e salas de espera de um hospital. Quem sabe de um grande hospital. Você está perfeitamente bem, mas está acompanhando um paciente, esperando que seja atendido, ou que termine a cirurgia. Não adiante ficar pensando no que deveria estar fazendo se ali não estivesse, não adianta prestar atenção ao girar dos ponteiros. É melhor esquecer o tempo. Ali não há tempo. Ou melhor, ali há muito tempo, tempo demais para pensar, para não ter pressa, tempo demais para simplesmente viver. Tempo de sobra para perceber como é bom estar bem, sem dores, respirando normalmente, com apetite, cabeça lúcida, podendo subir e descer escadas com gosto. Tempo de sobra para até, de repente, ter de enfrentar um pensamento ligeiramente incômodo: ─ até quando estarei bem de saúde, quanto tempo tenho ainda pela frente? No tempo parado dos corredores e das salas de espera há muito, muito tempo para encontrar pessoas e conhecê-las. Há sossego para perguntar de onde são, quem estão acompanhando. De vez em quando, nem é preciso perguntar: elas mesmas aproximam-se, ansiosas por ter alguém com quem desabafar. Sobra tempo para partilhas e confidências. Contam-se dramas, mas também há sempre um jeito de lembrar coisas curiosas de terras distantes, de lares ao redor dos quais é que gira o mundo, surgem histórias 75
engraçadas que permitem sorrir esquecendo um pouco as preocupações e os medos. Pois comigo foi assim. De começo, não sabia o que ali fazer. Depois, comecei a viver essa oportunidade diferente. Viver contatos, observar dramas e devotamentos, ouvir, partilhar, viver com próximos ocasionais, fazê-los próximos por opção. Comecei também a orar, rezando a fragilidade fugaz da vida, salmodiando agradecimentos pelo passado e pelo presente, meditando no futuro, desfiando o rosário do encontro com tantos rostos. Já passou algumas horas, ou melhor, alguns dias nos corredores e salas de espera de um hospital?
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OBRIGAÇÃO GRAVE, MAIS QUE OUTRAS
Ainda na semana que passou, uma observação ouvida obrigou-me a pensar. Conversava com uma pessoa de boa formação, profissional conceituado, atuante na vida da comunidade. Comentávamos acontecimentos da política, atitudes e pronunciamentos de políticos. Daqui e de longe. Estávamos de acordo em reconhecer que normalmente as decisões e atitudes políticas estão sendo dominadas por interesses pessoais ou de grupos, sem, pelo menos aparentemente, uma preocupação maior para com o bem comum e os reais interesses da cidade, do estado ou de pais. Depois das inevitáveis lamentações, assustei-me ao perceber que estava a ponto de concordar com ele, também quando dizia que o melhor era evitar qualquer envolvimento político, como único meio para salvar a coerência cristã. No último momento, salvei-me ainda de concordar com ele ao lembrar-me que o cristão, exatamente por ser cristão, tem uma obrigação para com a política. Obrigação à qual não pode fugir de modo algum sem ser gravemente, mortalmente omisso. Como tinha à mão um exemplar dos textos do Concílio Vaticano II, recorri ao índice e pude ler para o amigo o seguinte texto: "Em seu amor à pátria, e no fiel cumprimento dos deveres civis, sintam-se os católicos obrigados a promover o verdadeiro bem comum e fazer assim valer o peso de sua opinião. Isso para que o poder civil se exerça na justiça, e 77
para que as leis correspondam aos mandamentos da moral e ao bem comum. Os católicos, politicamente preparados e devidamente firmes na fé e na doutrina cristã, não recusem cargos públicos, se puderem por uma digna administração atender ao bem comum e abrir caminho para o Evangelho." (A. Act.14) E mais uma outra passagem, onde se diz que os católicos se devem preparar para exercer a "nobilíssima arte da política”. E que participem da vida política "esquecidos do proveito próprio e de vantagens materiais. Pela integridade e com prudência, lutem contra a injustiça e a opressão, ou o absolutismo e a intolerância, sejam dum homem ou dum partido político. Dediquem-se ao bem de todos com sinceridade e retidão. E mais: com o amor e a coragem exigidos pela vida política." (GS 75) Foi nesse ponto que o amigo fez uma pergunta que me deixou embatucado: — "Tudo bem. A política é uma das responsabilidades do cristão. Mas o que estamos vendo por aí, isso não está sendo feito por cristãos e católicos em sua grande maioria?" E ainda complicou mais a situação: — “Se a participação na política é obrigação do cristão, por que as paróquias e comunidades imediatamente colocam de quarentena e excluem de qualquer função que assume de uma forma ou de outra participação direta na política?” Vou pensar antes de responder.
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LIÇÃO CORINTIANA
Ontem, domingo à tarde, o Corinthians caiu para a segunda divisão ao empatar com o adversário. Não era uma situação agradável. Tinha de vencer ou de contar com resultado de outros jogos. Mais ou menos na mesma situação do Brasil que, ou vence por si, ou fica a torcer pela boa vontade e bom senso de seus governantes. O Goiás não perdeu, o Corinthians não ganhou, e por isso ficará um ano pelo menos no limbo das equipes de segunda. Mas não é isso que interessa. Impressionante a reação dos corintianos no estádio. Tensos, participando intensamente das jogadas, esperando sempre um lance salvador. No rosto um misto de riso e de choro, de alegria, esperança, incredulidade, desespero. Quando terminou a partida, confirmada a derrota, um primeiro momento de incredulidade, grande emoção, lágrimas no rosto de homens, mulheres e crianças. Mas não vi nenhuma reação de revolta. Mas também não havia desesperança. Pelo contrário. Logo começaram os gritos de apoio à equipe, vozes cantado a garantir que nada os faria abandonar sua fidelidade, aplausos de mútuo apoio para recomeçar a escalada. Por detrás das lágrimas surgiam sorrisos de desafio e de esperança. Não sou corintiano, mas fiquei impressionado e até me solidarizei com a garra, a determinação e a esperança dessa torcida fanaticamente corajosa e de esperança a toda prova. E 79
fiquei imaginando o que seria o Brasil se todos enfrentássemos com a mesma garra as dificuldades, se todos fôssemos tão unidos e esperançosos, se fôssemos tão fiéis. Talvez os dirigentes de nosso clube Brasil, a equipe de políticos e funcionários, talvez o nosso time já fosse bem melhor, mais eficiente e comprometido. Porque, se não melhorassem, nós, a torcida pelo Brasil, fiel a toda a prova, já os teríamos mandado para casa ou pelo menos para o banco de reserva dos esquecidos. Ainda é tempo, que o jogo ainda não terminou.
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ONTEM FOI NATAL
Ontem foi dia de natal. Dia que tantas vezes já vivi, mas que sempre parece novo, diferente. Conforme os anos passam, vai mudando meu modo de ver o significado do nascimento de Cristo. Conforme os anos passam, já são outros que estão a meu lado, quando tantos outros já se foram. Conforme os anos passam, os acasos da vida vão levando meu Natal daqui para ali. Por isso que ontem meu Natal foi diferente de todos os outros. Só o Cristo era o mesmo, e eram as mesmas suas exigências, eram as mesmas as perguntas que levantava. E o bom era que podia agradecer alegrias novas e esperanças renovadas. É bom que haja o Natal em nossa vida tão difícil: é uma parada como o descanso ao lado de uma fonte que canta. A caminhada se faz mais fácil com o Cristo ao nosso lado. Ontem foi Natal, um dia diferente. Hoje é uma segundafeira como as outras, e, no entanto, tão diferente. Porque o Cristo nasceu entre nós e veio para ficar. Por isso os dias mornos, monótonos podem ser diferentes. Ontem foi Natal, e hoje peço a coragem de viver como se todos os dias fossem Natal. Como se todos os dias fossem Natal. Mas todos os dias são de fato Natal, porque todos os dias Cristo pode nascer em mim. Todos os dias Cristo está nascendo ao meu redor: nasce nas crianças, nasce nos que se alegram e nos que choram, nasce no esforço dos povos que 81
querem crescer, nasce a cada momento de nossa história e em todos os cantos da Terra. Nasce nos que ajudo e nos que me ajudam; nos que me amam e nos que não me compreendem. Continuamente Cristo está nascendo, a cada passo eu o posso encontrar, e tenho de lhe dar minha resposta. Ontem foi Natal. Hoje é segunda-feira, tão igual e tão diferente: precisa viver sabendo que é sempre Natal.
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ORAÇÃO NO DIA DAS MÃES
Abraços, lágrimas, sorrisos e flores. Poesias, presentes, prestações. Filhos que se reúnem, ou que de longe mandam saudações. Flores para as mães que ainda vivem, e flores para as mães que já se foram para o Senhor. Neste domingo festivo, Senhor, a vós me dirijo, a vós que prometestes a vida eterna para quem, por vosso amor, der um copo d’água ao irmão. Se a vida eterna dareis, Senhor, por um copo d’água, que dareis àquela que a vida me deu e me amou, quando ainda era apenas uma promessa? Por um copo d’água... E qual será a paga para os braços que me embalaram, para as horas de vigília orquestradas pelo choro impertinente? Se a vida eterna dareis... Qual será a recompensa para aquela que me ensinou a sorrir e, juntando minhas mãos dentro das suas, me ensinou a rezar, ao mesmo tempo que era para mim a presença de vosso amor? Por um copo d’água a vida eterna... E que dareis, Senhor, em paga pelos anos todos de cuidados por mim, que nem sempre era o que ela esperava? Que dareis, qual a recompensa pelas rugas que ajudei a cavar, pela grinalda de cabelos prateados que envolvem e escondem a coroa de espinhos de muitos anos e tantas dores? 83
Se a vida eterna dareis por um copo d´água fria oferecido, que dareis, Senhor, àquela que me deu a beber a taça da vida e do amor, que dia a dia se fez para mim fonte inesgotável? Se dais a vida eterna por um copo d’água dado por amor, que dareis em recompensa a minha mãe? Senhor, não posso nem sequer imaginar, e por isso ao vosso amor confio meu desejo nesta minha oração. Olhai sorrindo, Senhor, para minha mãe e para todas as outras que já fizestes desabrochar na eternidade. Velai por todas as mães de agora, para que sejam para nós a imagem contínua de vosso amor compreensivo e generoso. Dai-lhes a coragem e a paciência, a sabedoria, a firmeza e o carinho. Lembrai-vos das que aprendem a ser mães com o primeiro filho. Lembraivos das que vos podem apresentar família grande, tão grande quanto seu coração. Consolai as que choram seus filhos ausentes, as que os perderam nos campos de batalha ou nos caminhos do mundo, as que veem seus filhos minados pela fome e pela doença, e não os podem socorrer. Senhor, peço pelas mães, por todas as mães. Que elas encontrem, em vossa mãe Maria, o amparo e o modelo.
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PESCADORES, NÃO PROFETAS
Meados de outubro de 1717. Era de tarde, e a estrada era poeirenta, a serpear entre os morros e a várzea. Iam cansados, tendo aos ombros os remos, as redes e samburás cheios de peixes, muitos peixes. Domingos Martins Garcia, João Alves e Felipe Pedroso, eram três pescadores, curtidos de sol e chuva, que penosamente tiravam do Paraíba o magro sustento para as famílias. Essa tarde, estavam um tanto encabulados, sem saber explicar o acontecido. Além das redes, remos e samburás, um deles levava apertada no peito uma pequena imagem escura, e bem fechada na mão a pequena cabeça de uma Nossa Senhora sorridente, de traços arredondados, com três flores presas aos longos cabelos. A imagem e logo depois a cabeça vieram na rede lançada por João. Daí em diante foi um não mais parar de peixes a rechear as redes, tantos que tiveram de terminar a pescaria mais cedo. Sobre o chão vermelho da estrada as três sombras avançavam, cada vez mais alongadas com o cair do sol. Sobre que iriam eles a conversar, se é que conversavam? Talvez nem falassem, mas apenas fossem remoendo perguntas curiosas sobre o de onde viera a imagem, como podia a rede ter colhido no fundo barrento a cabeça pequenina, por que de repente se fizera abundante a pesca até então inútil. O certo é que não poderiam imaginar os resultados dessa tarde, o mundo de sentimentos, devoção e fé que haveria de criar85
se ao redor daquela imagenzinha. Fossem profetas, ou personagens de um conto imaginado, teriam erguido os olhos e, por entre as névoas do futuro, teriam visto no alto de uma colina, uma capela rodeada de coqueiros acenando ao vento. Um pouco mais perto, sobre outra colina mais baixa, veriam a imponência de um tempo muito mais vasto. E multidões cada vez mais numerosas, de muitas partes e sotaques. Teriam visto muitas outras coisas, e algumas até menos belas e muito tristes. Mas não eram nem profetas nem personagens de um conto inventado. Eram pescadores, apenas pescadores que voltavam cansados para casa. Quem morava mais perto era Felipe. Em sua casa ficavam as redes e os remos. E ali também ficou a imagem, sobre o jirau da salinha da frente, tendo por fundo a parede de barro batido. Mãos invisíveis começaram a entrelaçar as malhas de outra rede grande, muito grande, para outros peixes.
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PELA CIDADE
Não foi hoje a primeira vez que o encontrei vagando pela cidade. Sua figura está sempre meio indecisa entre a realidade e o sonho. Mas é inconfundível sua silhueta. Estatura média, até um pouco abaixo da média, aparência frágil, a barba sem muitos cuidados, vestido em tons incertos de castanho e cinza, pés metidos em alpargatas quaisquer. O que mais chama a atenção, quando fugidiamente vislumbrados, são seus olhos de transparência calma. Parece alheio sempre à movimentação que o cerca, aos ruídos do trânsito. Sempre olhando calmamente, como quem contempla sem pressa. A primeira vez que imaginei vê-lo foi na praça central. Olhava os prédios, e seu olhar ia subindo lentamente até parar, um pouco saudoso, na nesga de céu enfumaçado lá em cima. Parecia deslocado, perdido, apesar de sua mão estar automaticamente a acariciar um ramo qualquer de uma planta qualquer, nascida não se sabe como, empoeirada, mirrada, perdida, incongruente com o cenário. Não fiquei surpreso quando o encontrei novamente, recostado na balaustrada do lago do parque. Era impossível não ver que estava sonhando, relembrando coisas vistas há muito tempo: águas azuis a refletir o céu, águas sem manchas, sem coisas indefinidas a boiar, águas a festejar o encontro com relva das margens, sob o aplauso dos juncos leves, curvados ao soprar do vento. Demorava-se a olhar, sem entender, a lanchonete 87
agressiva na outra margem. Depois o vulto castanho virouse, braços cruzados agora, a olhar incrédulo para a praça do outro lado da avenida, fantasiando que fossem pombas brancas os papéis sujos jogados nos canteiros melancólicos. Sonhando fosse gente a descansar, fossem crianças a brincar os vultos por ali sentados nos bancos que já foram novos, ou formando grupos ao lado de caixas de engraxates. Ele anda muito, o vulto que já não sei se real. Outro dia eu o vi a vagar pelas beiras da cidade, aonde vem morrer a onda dos barracos improváveis. Já o vi a percorrer as beiras dos córregos, a olhar tentando descobrir o brilho cristalino de águas limpas quando correm livres. Parecia procurar o arcoíris das escamas dos lambaris. Cansou-se e desanimado desapareceu. Muito tempo depois finalmente eu vi agora na praça o mesmo vulto frágil, castanho e cinza. A túnica surrada, ampla demais no corpo, as mangas largas pendentes, o capuz caído sobre os ombros, o cinto de corda, as alpargatas gastas. Olhava a praça da igreja. Foi caminhando até um dos bancos estragados, apoiou-se. Parecia estar sonhando com flores e chilrear de passarinhos. Demorou-se a olhar os muros pichados, um sorriso triste nos lábios. Fechou os olhos, como que a se concentrar. Olhou novamente ao seu redor. E começou a recitar um canto, o hino ao irmão Sol e à irmã Natureza. Hino que há tanto tempo tinha brotado de seu coração, naquele pequeno terraço florido de rosas, banhado pela sol da Úmbria. Que falta nos faz Francisco pelas ruas da cidade. 88
PERSPECTIVA DE VIDA
Há bastante tempo vi uma entrevista. Um garoto, de figura cativante, estava indo para o exterior, tentar um tratamento que talvez pudesse salvar sua visão. Garoto vivo, confiante em si mesmo, pronto nas perguntas e respostas. Deve ter conquistado a admiração de muita gente. Não me lembro de seu nome, nem de onde era, mas não esqueci seu rosto. Prestei mais atenção quando lhe perguntaram o que esperava do futuro. Num instante passaram-me pela cabeça as muitas respostas possíveis. Mais ou menos respostas assim: − Espero continuar podendo ver o sol, os passarinhos, as nuvens e as flores. Espero poder continuar olhando para o rosto de mamãe, de papai, de meus irmãos. Espero poder estudar, para fazer alguma coisa de grande pela humanidade. Ou até uma resposta mais infantil: − Espero continuar vendo, porque tenho medo do escuro, medo de não poder mais correr e saltar. Num instante imaginei muitas respostas possíveis daquele garoto simpático. Confesso que não esperava de modo algum a resposta que deu: − Espero poder continuar vendo os gols do Zico! Levei um choque, senti um frio esquisito. “Espero continuar vendo os gols do Zico!” Ah, meu garoto, não lhe quero mal, nem por sombra, longe de mim. Nem sei o que aconteceu com você, por onde anda agora. O que senti foi pena de você. Será que o editor da entrevista não lhe terá 89
pregado uma peça, selecionando apenas uma de suas respostas? Ou será que foi o repórter a lhe preparar o laço? Ou, quem sabe, a resposta lhe terá sido soprada, encomendada, imposta? Não sei. Prefiro imaginar que a resposta que nos foi transmitida não seja sua verdadeira resposta, aquilo que de fato seja o mais importante para você, garoto vivo e inteligente. Caso contrário, fico triste, imaginando o mal que lhe fizeram os que o condicionaram a ver no futebol a coisa mais importante da vida, e ver num goleador o maior herói para seus ideais. Fico triste à simples ideia de que tenham reduzido tanto seus horizontes e sua capacidade de sonhar, de fazer um muro tão desafiador como as encostas do Everest. Que tenham reduzido seu mundo a um estádio de futebol, e você já não fosse capaz de, no alto de uma árvore, se imaginar batido pelos ventos no mastro de um navio, a contemplar o mar e os horizontes sem fim. Que lhe tenham imposto o sonho de uma camisa 10, e não o deixassem ver as favelas com tanta coisa para fazer, que o tenham feito cego para o heroísmo das mãos calejadas e do estudo a serviço da humanidade. Fiquei triste, menino, a imaginar quem lhe cortou as asas para enquadrá-lo tanto, que já nem fosse preciso uma gaiola para conter seus ideais. Mas, quem sabe, menino, você terá vencido aquela doença sem diagnóstico, e, mais ainda, terá rompido as amarras que lhe tentaram impor.
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POR QUE TRABALHAR?
Nós cristãos acreditamos que nossa vida e nossa felicidade não terminam com a morte física. Acreditamos que não podemos encontrar satisfação completa e total nos bens materiais, nem felicidade completa em nossas realizações, em qualquer campo da atividade humana. Sabemos que tudo é limitado e tudo passa. Que sentido, então, podemos dar ao trabalho? Que sentido podemos dar a todos os nossos esforços pela conquista da natureza e pela melhoria de nossa vida aqui nesta terra? Haveria campo para profundas análises e muito sábias palavras. Mas vamos ficar apenas com algumas ideias. Em primeiro lugar, o cristão não vê oposição entre a vida presente e a vida eterna. São duas etapas da vida do mesmo ser humano, e não propriamente duas vidas, uma renegando a outra. A vida eterna é a perfeição, e não a destruição da vida terrena. Enquanto aqui vivemos, não estamos colocados num desvio, nem estamos caminhando sem rumo. Desde agora, ajudados por Deus, estamos a caminhar numa direção e, por assim dizer, lançamos as sementes ou alicerces da vida que nos espera e que sabemos será livre de qualquer limitação. Nesse contexto podemos encontrar um sentido para o trabalho. Para o trabalho como esforço para nosso próprio desenvolvimento pessoal, pela superação dos limites de toda ordem que nos condicionam, procurando criar para nós 91
mesmas condições de vida cada vez mais humanas. Nosso trabalho atual é nossa própria vida, vida que é por si mesma negação da inatividade. Nosso desenvolvimento pessoal, em sua totalidade, realiza-se apenas em nossa comunhão de vida com Deus e com os outros. Nosso esforço de trabalho na transformação da natureza e na melhoria das condições vida faz parte do culto que prestamos a Deus, e é uma das formas de participarmos de sua própria vida divina, da sua ação criadora. Pelo trabalho participamos da comunhão de vida com nossos irmãos, assumimos nossa parte na responsabilidade humana, procurando criar condições de vida cada vez mais favoráveis para a convivência no amor e na fraternidade. Pelo trabalho procuramos fazer que a vida presente cada vez mais seja prelúdio para a vida que esperamos na certeza de nossa fé. Tenho certeza que essas ideias, e até melhores, já lhe vieram à cabeça quando procurou encontrar um sentido para seu trabalho. Trabalho que tantas vezes se reveste da forma de pesado sacrifício e beira a frustração. Principalmente quando tem a impressão de, aos olhos de muitos, não ser mais que engrenagem na máquina da economia, peça manobrada no xadrez dos poderosos. Quando percebe que parece haver uma tentativa sistemática de fazer você cada vez menos gente, menos pessoa.
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PRATICANTES E ALIENADOS Ainda é bastante comum falar de dois tipos de cristãos: o não praticante e o alienado. O cristão não praticante deixa-se influenciar mais ou menos pelos ideais cristãos sem manter, porém, qualquer contato mais estreito com a comunidade em sua vida sacramental. O cristão alienado participa até intensamente da vida sacramental da comunidade e pertence a associações religiosas, é praticante, sem, porém se sentir obrigado a participar das preocupações sociais, políticas e econômicas do mundo que o rodeia. O cristão não praticante nunca foi muito bem aceito, e grande parte das pregações tem por objetivo levá-lo a uma participação razoável na vida comunitária. Já o cristão alienado, é bem menos incomodado empurrado para assumir suas responsabilidades fora da comunidade. Cada vez fica mais claro que, como dizia uma Campanha da Fraternidade alguns anos atrás: “SER CRISTÃO É PARTICIPAR”. Palavras que poderiam ter muitas variações: ser cristão é viver, é conviver, é engajar-se, é comprometerse, é influenciar etc. A participação exigida do cristão na vida de Igreja, enquanto comunidade de culto e de fraternidade, é evidente. Mas talvez ainda seja oportuno ver qual está sendo nossa participação cristã nas preocupações do mundo que nos rodeia. Ser cristão é participar. Qual está sendo, por exemplo, nossa atitude diante dos movimentos em favor dos direitos 93
humanos, do aprimoramento das instituições sociais, políticas e econômicas, da conservação do meio ambiente, da promoção da mulher, do atendimento aos menores abandonados, da paz mundial, da violência, da ética na política e nos negócios etc.? Conhecemos os problemas, procuramos ter uma posição coerente com nosso cristianismo, participamos da busca de soluções, participamos das iniciativas de ação concreta? Ser cristão é participar. É sair da sacristia, é ser praticante e atuante. Tudo por tudo, talvez haja mais desculpas e perdão para o cristão não praticante do que para o cristão não atuante. É mais compreensível o cristão camuflado do que o cristão alienado. Ser cristão, porém, pura e simplesmente é participar.
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PRESENÇA
Quase nem tem sentido repetir o óbvio e dizer que a Eucaristia sempre ocupou um lugar central no cristianismo. Desde o início foi em torno da mesa eucarística que a comunidade se reunia na celebração do domingo, do dia do Senhor. O mesmo Cristo que, durante sua vida terrena, tinha reunido ao redor de si as multidões e o grupo dos discípulos, o mesmo Cristo que depois da ressurreição foi o centro da comunidade, esse mesmo Cristo continuou e continua sendo o centro da comunidade cristã. É sua vida, sua força, sua verdade. Não apenas como o Cristo, Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado, mas também como o Cristo presente entre os seus de uma forma particular. O Cristo presente no sacramento da Eucaristia. É a nossa fé diante das palavras do Senhor que, tomando em suas mãos o pão e o vinho disse: isto é meu corpo, isto é meu sangue. Essa a alegre fé em que ainda hoje nos alegramos. Basta abrir o Evangelho e podemos notar a influência profunda exercida pelo Cristo ao participar da vida de seus discípulos e de tantos de seus contemporâneos. Arrebatava, arrastava. Diante dele era impossível a indiferença. Ou era aceito como Salvador, ou era recusado como perigoso embusteiro. Fé e amor, ou ódio e rejeição. Quanto mais os discípulos se sentiam conquistados, tanto maior sua desorientação ao vê-lo pregado na cruz. Colocado na sepultura, seus discípulos lembravam-se de ele ter prometido 95
ficar sempre com eles. Não viam sua presença. Era só o que sabiam. Foi preciso que o Cristo vencedor da morte deixasse que, algumas vezes durante alguns dias, essa sua presença invisível se tornasse concreta e palpável nas aparições. De tal maneira que Pedro pudesse dizer depois que tinha "comido e bebido” com o Senhor ressuscitado (At 10,41). As aparições não fizeram o Cristo estar presente entre os seus. Apenas manifestaram e tornaram visível a realidade dessa presença. Isso pode ajudar-nos a compreender um pouco o porquê da presença do Cristo na Eucaristia. Acreditamos que ele está sempre realmente presente entre nós, como a realidade mais profunda e vital da sua Igreja. A eucaristia simplesmente dá a essa presença uma forma nova. O Cristo que já está realmente presente na comunidade que se reúne. Manifesta essa presença invisível na presença sacramental das aparências de pão e vinho, como comida e bebida partilhadas pelos irmãos reunidos em torno da mesa.¬ Presença que de certa forma se torna palpável e mais próxima de nossa condição humana. Para nós é importante saber que o Cristo, presente na vida da comunidade, está presente também no sacrário. É importante para nós poder, diante do sacrário, repetir o gesto de tanto que diante dele dobraram os joelhos nas terras da Palestina.
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QUAL A DIFERENÇA ?
Aconteceu na Itália, este ano. Um casal esperava o nascimento de duas gêmeas. Uma delas, porém, era portadora da síndrome de Down. Os pais decidiram, pois, provocar o aborto dessa criança, conservando apenas a menina sadia. No hospital ocorreu o imprevisto: abortaram a criança sadia. Novo aborto matou também a criança portadora da síndrome. Talvez isso não tenha acontecido pela primeira vez. De qualquer modo o fato obriga a uma reflexão, e pode até deixar mais claros os termos do problema moral levantado. Provocar o aborto de uma criança anormal, excepcional, doente ou com patrimônio genético deficiente é menos grave do que provocar o aborto de uma criança totalmente sadia? A primeira seria menos humana, menos merecedora de acolhida, desprovida dos direitos inerentes à personalidade humana? Como comentou o L’Osservatore Romano, estamos plenamente sob a ditadura do eugenismo, do “culto da perfeição, que impõe a exclusão de tudo que não é belo, esplêndido, positivo, fascinante”. O diário católico italiano “Avvenire” comentou: “escrevem-se artigos politicamente corretos sobre a acolhida das pessoas atingidas pela síndrome de Dow, produzem-se filmes carregados de emoção, e depois se fecham os olhos diante da realidade de uma prática de seleção genética que já se tornou rotineira”. A Associação de Médicos Católicos de 97
Milão foi muito clara em sua tomada de posição: “a vida é sempre um dom”; “o direito de ter um filho sadio não encontra justificativa nem no plano ético e social nem no plano jurídico”. Não vamos condenar o casal que tomou essa triste decisão, certamente num clima de grande tensão e perplexidade. Mas bem que temos de tomar posição clara diante da doutrinação insidiosa e até ideológica em defesa da liceidade do aborto. Os defensores e propagadores dessa posição, homens e mulheres, não estão tomando uma decisão pessoal angustiosa num momento difícil e trágico. São frios e calculistas teóricos, adeptos de ideologias bem conhecidas, ainda que camufladas sob pretensos argumentos racionais. Defendem o desrespeito a direitos fundamentais do ser humano como uma das etapas por eles planejadas na implantação do mundo que imaginam em seus delírios nazifascistas.
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QUANDO O PRÓXIMO É APENAS VOCÊ
Você deve lembrar-se daquela passagem do Evangelho de Lucas (10,25) em que um fariseu foi colocado por Jesus diante do mandamento da caridade. Tentando uma escapatória, o mestre da Lei perguntou: − Quem é meu próximo? A resposta de Cristo foi a parábola do Bom Samaritano. De uma maneira ou de outra, estamos sempre fazendo nossa a pergunta do fariseu: − Quem é meu próximo, a quem devo amar, ajudar, respeitar e tudo o mais? De vez em quando poderíamos inverter um pouco a pergunta: − De quem o outro pode esperar amor, ajuda, compreensão? À primeira vista poderia parecer inútil a inversão da pergunta. Mas, pensando um pouco, são muitos, são todos que devemos considerar como nossos próximos, amar e ajudar. E, às vezes, podemos quase ficar sem saber a quem dar preferência. Por isso é bom pensar que em muitos casos nós somos a única possibilidade de auxílio para alguém ou para alguns. Muitas vezes para o outro, o único próximo é você, o único a seu alcance, o único que para ele pode significar tudo: esperança, solução, vida, salvação. Você se torna para ele a encarnação da providência bondosa de Deus. Para o outro o próximo é você. A última oportunidade para ele continuar acreditando ainda no amor e na fraternidade. Você não pode falhar. Para o outro, o próximo é você. Como para o judeu caído à beira da estrada o próximo era o primeiro que passasse. 99
Um sacerdote passou perto, mas não foi próximo. Nem o foi um levita logo depois. O socorro lhe veio exatamente de quem ele poderia considerar como o mais distante. Próximo para ele foi o samaritano. Para o outro, o próximo é você. Você que chegou primeiro e que talvez seja também o último a passar, já que ele não poderá esperar o próximo. Você deve assumir a responsabilidade, resolver o problema, virar-se, dar um jeito, fazer seja lá o que for, mas fazer, porque nesse momento você é a presença da fraternidade e da bondade divina. Para o outro, o próximo é você.
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QUANDO O REI ESTÁ NU
É normal. Sempre houve e sempre haverá confusão entre conceitos que, por si, não são idênticos. Essa confusão geralmente se manifesta quando erradamente se usam palavras diversas como se significassem a mesma coisa. Outro dia ainda, uma autoridade afirmou que “A lei é para ser cumprida a qualquer custo”. À primeira vista, tudo bem. Porque logo identificamos lei e justiça. É claro que a lei normalmente deveria ser a proclamação do direito e da justiça. Mas, de fato, nem sempre isso aconteceu ou acontece. Essa observação pode espantar somente aqueles que se deixaram influenciar por uma linha de pensamento dominante em largas camadas do pensamento brasileiro. Segundo esses, a lei é que determina o certo e o errado, o moral e o imoral. O pensamento cristão é diferente e há muito tempo já foi condensado por Sto. Tomás de Aquino: As leis devem estar a serviço do direito e da justiça. Elas são julgadas à luz de uma lei superior, uma lei que nasce do próprio modo de ser do homem, do seu relacionamento com Deus, com os outros e com o mundo. É a partir dessa ideia que o cristão pode dizer que uma lei é boa ou menos adequada, justa ou injusta. E esse modo de pensar, é bom lembrá-lo, não é monopólio dos cristãos, mas é simples bom senso humano. Seja lá como for, o certo é que os cristãos desde o começo tiveram de enfrentar leis injustas e proclamar a existência de um direito mais alto que o simples 101
direito estabelecido por legisladores humanos. Bastaria lembrar a resistência contra leis injustas do Império Romano, que fez tantos mártires. Lembrei-me dessas coisas vendo certas decisões judiciais, que não levam em conta valores mais altos que as determinações positivas e positivistas de uma lei muitas vezes forjada para proteger interesses e não direitos. Não podemos simplesmente dizer que lei é lei. Temos continuamente de ver e julgar se as leis estão de fato a serviço da promoção da justiça e da fraternidade. E, se for o caso, será preciso denunciar e tudo fazer para que a lei seja modificada. Se for preciso, não podemos ter medo de dizer o rei está nu. Afinal, o rei não é Deus, nem suas leis têm por si mesmas valor absoluto. E, para dizer que o rei está nu, pelado, nunca faltaram cristãos, ainda que às vezes com isso tenham perdido a cabeça.
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QUANTO CUSTA A AMIZADE
Um jornal de hoje traz uma matéria que me chamou a atenção. Está surgindo nova profissão, a de amigo profissional, com remuneração por hora de companhia. Fique desde logo claro, para evitar mal-entendidos, que na prestação de serviço não está incluído nenhum aspecto sexual. Nem se trata de qualquer tipo de acompanhamento psicológico. É pura e simples oferta de companhia, de conversa, de atenção, de escuta paciente, de partilha de pontos de vista sobre os assuntos do momento, de acompanhar em compras ou passeios. Enquanto possível, o que mais se possa aproximar do que chamamos de amizade. A primeira consideração é que, se há oferta, se presume também a existência de procura. A existência de muitas pessoas solitárias, pelos mais diversos motivos, que procuram alguém que, pelo menos de começo, se pareça um pouco com um amigo ou amiga. Os antigos, que gostavam de ideias claras, diziam que amizade é um amor desinteressado, entre pessoas iguais, sem dependência mútua, mas com a partilha mútua de bens. Na Bíblia encontramos muito sobre a amizade. Temos, por exemplo, o capítulo sexto do Eclesiástico: “Se quiser um amigo, coloque-o à prova, e não vá logo confiando nele. ...Amigo fiel é proteção poderosa, e quem o encontrar, terá encontrado um tesouro. Amigo fiel não tem preço, e o seu valor é incalculável. Amigo fiel é remédio que cura, e os que 103
temem ao Senhor o encontrarão. Quem teme ao Senhor tem amigos verdadeiros, pois tal e qual ele é, assim será seu amigo...” Mas, por que há gente sem amigos? Parece evidente: ou porque não sabe abrir-se para a amizade, ou porque não sabemos ser amigos desinteressados. Às pessoas que ainda não sabem abrir-se para a amizade, podemos e devemos oferecer amizade. Sendo amadas, aprenderão a amar. De nossa parte, temos de aprender o que significa amar desinteressadamente, ser amigo sem nada esperar em troca, a não ser que o outro seja feliz. E para fazer alguém feliz não precisa muito, ou pelo menos de começo podemos oferecer até muito pouco. Olhar de quem percebe o outro; ouvidos abertos para confidências, se necessário, mas sempre dispostos a ouvir até simples prosa sem maiores pretensões; tempo para simplesmente estar ao lado; palavras adequadas ao momento, mas palavras simples, não impositivas. Pouco, muito pouco é o que temos e podemos oferecer. Certamente não seremos amigos profissionais, mas certamente seremos amigos amigos.
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QUE PÁSCOA TEREMOS
Domingo de Páscoa. É a festa máxima para os cristãos, como o é também para os judeus. A festa da vida! Essa característica já transparecia nas celebrações das primitivas tribos de pastores hebreus. Na lua cheia do equinócio da primavera, ao cair da noite, reunia-se a família para oferecer a Javé o sacrifício de um cordeiro ou de um cabritão. Implorava-se a bênção de Deus para os rebanhos, que aumentassem numa explosão de vida nova. Após o sacrifício, a família celebrava com uma ceia a esperança nas promessas recebidas. Tempos depois, por ocasião da saída do cativeiro no Egito, a festa ganhou novo significado: passou a ser a festa da vida e da libertação. A festa da vida de um povo confiante nas promessas de Javé, confiante na vida, apesar de todas as opressões. Festa da libertação, do nascimento de um povo novo, senhor de si, que tem seu destino em suas mãos, que reconhece um só Senhor: Deus. Povo que, para se ver livre da escravidão, parte pelo deserto em busca de uma nova terra. Festa da Páscoa. O própria nome dessa festa perde-se na memória do tempo. A palavra "Pascoa" liga-se a antigas palavras do arameu e do hebraico. Palavras cheias de sugestões. Celebrar a Páscoa, é procurar a paz com Deus. Mas é também saltar, dançar de alegria, celebrando a vida e a libertação. O nome “Páscoa” ligar-se-ia à ideia de golpe, golpe de força de Javé que salva. Lembrança alegre de tudo quanto o povo recebeu. 105
A palavra “Páscoa” lembra também vagamente a ideia de passagem: Javé que passa escolhendo para salvar e conservar na vida. Páscoa é passagem do povo da escravidão para a liberdade. Páscoa é celebração e lembrança de uma libertação já conseguida, mas é também a festa da esperança de uma libertação mais completa, libertação definitiva, ainda não realizada, mas tão segura como se já fosse presente, porque garantida pela inabalável fidelidade do Senhor Deus. Para nós cristãos, a Páscoa é tudo isso e muito mais. Nossa Páscoa é o Cristo, como o diz S. Paulo em sua Carta aos Coríntios. Por sua vida, morte e ressurreição, temos a vida e a libertação: a alegria, a paz com Deus, a esperança certa. A esperança certa na possibilidade de uma vida nova já aqui e agora, mas que ainda não é toda a vida, nem toda a liberdade, nem todo o amor, nem toda a felicidade que teremos! Isso tudo se, com Cristo, tivermos a coragem de passar, de sair, de ir mais para a frente e mais para cima. Se tivermos a coragem de perder para ganhar, de morrer para viver. Ainda uma semana e teremos a Páscoa. Que Páscoa?
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SANTO FORA DE MODA
Dia 12 passado, lembrando-me de um José, lembrei-me do outro, do santo que não parece lá muito de acordo com os padrões de nosso tempo. E acho que não é apenas impressão minha. Mas vamos lá. Abrindo o Evangelho encontramos algumas poucas informações sobre ele. Era carpinteiro, ou melhor, um trabalhador que possivelmente era uma mistura de carpinteiro, pedreiro, ferreiro, pequeno empresário no ramo de construções. Vinha de uma família que, como se dizia, estava ligada ao rei Davi, o grande herói nacional. Se era “carpinteiro”, nem será preciso dizer que vivia do trabalho de suas mãos. Esposo de Maria, a ele foi confiado o cuidado de Jesus, o Filho de Deus, junto de quem devia assumir o papel indispensável de pai. Desorientado diante do mistério acontecido em sua esposa, aceitou a palavra de Deus e dispôs-se a viver uma vida que talvez não tivesse planejado. Cidadão pobre, foi incomodado pela decisão dos poderosos: teve de fazer uma viagem, fora de tempo, até Belém, para se inscrever no posto de recenseamento. Por causa do filho de Maria, que assumia como seu, no Templo teve de se declarar publicamente como pobre, e oferecer um sacrifício de pobre: duas pombas. Por causa do mesmo Jesus, amargou um tempo difícil como retirante exilado no Egito. Ouvimos falar dele, pela última vez, quando o menino estava com doze anos e ficou extraviado no Templo. Depois nada 107
mais. Ou melhor, ainda é lembrado uma vez. E assim mesmo com um tom de desprezo, quando seus conterrâneos de Nazaré comentavam sobre Jesus: “Esse aí não é o filho do carpinteiro?” Se os cristãos, desde o começo, mostraram grande admiração por esse homem, a arte nem sempre lhe fez justiça. Por influências estranhas, pintores e escultores inventaram de apresentá-lo quase sempre como um velho bastante acabado. Ainda bem que, pelo menos, o apresentaram sempre com suas ferramentas de trabalho. Mas, como ia dizendo, parece que José não seja um santo muito moderno, muito ao nosso gosto e simpatia. Talvez exatamente porque seus ideais de vida, suas metas, tenham sido tão diferentes de nossas pretensões atuais. Parece que ele via a vida de forma diferente, tinha como importante o que não nos parece tanto, pouco ligava para coisas que nos parecem fundamentais. Não quero ser impertinente. Mas tive a leve impressão de ter encontrado o motivo de nosso pouco apreço pelo carpinteiro José, esposo de Maria, e encarregado de ser pai para Jesus. Tive essa impressão ao ler no evangelho de Mateus (1,10) que José “era um homem justo”. Homem justo. Para não irmos longe demais, vamos pensar que justo seja talvez quem não se ajusta.
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SÃO BENEDITO, SANTO DO POVO
Segunda-feira da segunda semana de Páscoa, como já no sábado e domingo anteriores, Aparecida vive uma das maiores movimentações do ano. Um sem número de grupos de congada e moçambique sobem e descem as ladeiras que ressoam ao soar de tambores de todos os tipos, guizos e chocalhos. A multidão parece não ter descanso, na praça entre as barracas de pão com linguiça, no entra e sai dos hotéis, na difícil entrada pelas portas da igreja para uma oração rápida. É festa de São Benedito. O santo que tanta devoção desperta nasceu na Sicília, ilha no sul da Itália, em 1526, filho de escravos vindos da África. Foi eremita, depois frade franciscano, foi cozinheiro, superior dos frades, já em vida aclamado como santo e sábio das coisas de Deus. No Brasil foi escolhido como um dos santos protetores dos escravos, e hoje talvez seja o santo mais venerado no Brasil. Não sei como explicar essa devoção tão espalhada por toda parte, e tão arraigada no coração do povo. Pelo menos um pouco terá influído o sofrimento e os desespero de escravos e pobres, que nele viram um intercessor junto de Deus, já que junto dos homens não viam nem veem saída para sua desgraça. Mas há certamente também a lógica do Reino de Deus, que eleva os pequenos e pobres, e garantelhes a vida, mas, de uma maneira ou de outra rebaixa os poderosos que acabam esquecidos. Talvez por isso mesmo a 109
festa de São Benedito, por toda parte, é festa de extrema e exuberante alegria. Ficam esquecidas as agruras da vida, pelos menos por algumas horas tudo é música, ritmo e dança – até a oração se faz música, ritmo e dança – todos são reis, rainhas e princesas, a comida é farta, amigos, compadres e comadres se reencontram, há foguetes no ar, bandeirolas e muita cor no céu azul. Vamos reclamar que um filho de escravos seja glorificado, ou que um povo sofrido apenas um pouco se alegre e viva a esperança?
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A SATISFAÇÃO PLENA
Santo Tomás de Aquino (1226-1274) não foi apenas teólogo e filósofo. Foi também bom catequista. Hoje me encontrei com ele ao fazer a oração da Liturgia das Horas. O texto de hoje é sobre a vida eterna, que mencionamos sempre ao terminar o Credo. Vou respeitar o estilo conciso do grande mestre da fé. Em primeiro lugar, a vida eterna consiste em nossa união plena e perfeita com Deus, o maior prêmio e o melhor término de todos os nossos esforços. Vê-lo, sem véus, será nossa perfeita felicidade. Por outro lado, a vida eterna será nossa possibilidade de dar à Trindade o supremo louvor que nos é possível, uma vez que agora, por mais que façamos, ficamos sempre aquém da adoração que lhe devemos. A vida eterna também será a plena satisfação de nossos desejos, pois que ali teremos a felicidade que vai além de tudo quanto podemos desejar e esperar. Tendo sempre corrido atrás da felicidade, que nunca pudemos encontrar de forma plena nas criaturas, encontraremos afinal quem nos pode saciar, aquele que nos criou com essa fome insaciável dele mesmo. Podemos até dizer que não é a felicidade que encherá nosso coração; nós é que seremos mergulhados e afogados na felicidade, rodeados totalmente por Deus. Mesmo sendo Deus nossa perfeita felicidade, diz o santo que de nossa felicidade fará parte também o convívio com todos que conosco participarem da vida eterna. Tanto maior 111
será nossa felicidade, quanto mais felizes forem os outros. Afinal, essa a característica do amor que afinal poderemos viver na plenitude. Gostei do que me dizia hoje Tomás de Aquino.
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“SE O SENHOR NÃO GUARDAR”
Outro dia, tomando um ônibus urbano, levei um susto. Calma, não foi nada de extraordinário. A viagem corria normalmente, com as paradas nos sinaleiros, o sobe e desce nos pontos certos. Naquele horário, nem mesmo havia muito aperto. Ainda bem, que o calor estava forte. Como é natural, meu pensamento ia mais rápido que o ônibus, e não se mantinha preso ao lugar onde me equilibrava agarrado aos apoios. Observava as pessoas e, daí a pouco já estava admirando a coragem dos ciclistas sempre na contra mão. Observava os estragos nas calçadas, nos muros e nas fachadas. Tudo passando bem devagar pelas janelas embaçadas. Tudo bem, tudo normal. Foi de repente que percebi e levei um susto. Sem perceber, o tempo todo eu tinha estado em sobressalto, atento, desconfiado. Tinha até escolhido uma posição estratégica para me proteger. Eu estava o tempo todo desconfiando do rapaz que subira na última parada. Estava desconfiando daquele trabalhador que parecia cochilar no banco próximo. Para dizer a verdade, não estava confiando nem naquela velhinha com ares de vovó. Muito menos no garoto magro ali perto. Foi de repente que percebi que, o tempo todo, estava em sobressalto, atento, desconfiado. Não estaria por ali um batedor de carteira, ou coisa semelhante? E mais. Será que o rapaz, o trabalhador que parecia cochilar, a velhinha vovó, o garoto franzino, será que eles também não 113
estariam desconfiando de mim? Foi um choque sentir que desconfiava de todos, e que todos poderiam estar desconfiando de mim. Como uma ideia puxa outra, lembrei-me que já várias vezes, ao sair, parei no portão a, olhar para um lado e para o outro, e ver se tudo estava seguro. Lembrei-me da desconfiança ao andar pela calçada, de dia ou de noite. Fiquei chocado, espantado, desconcertado. O ônibus chegou ao ponto final. Desembarquei, fui subindo a avenida. Mesmo chocado, espantado, desconcertado com a descoberta, continuei atento, desconfiado, desconfiando de todos e de cada um. E sentindo que desconfiavam de mim. Não sei se o mesmo acontece com você. Quem sabe, também em sua casa a porta já recebeu uma fechadura suplementar e mais uma tranca. Talvez na frente já esteja uma grade bem alta, possivelmente terminando em pontas aguçadas. Quem sabe apenas eu e você é que sejamos medrosos e desconfiados. Ou então, nossas cidades estão mesmo cada vez mais inseguras.
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REAJA, APOIE OU REJEITE
Anos atrás, a cidade de Nova Iorque viu nascer um jornal: “The News World” (“O mundo das Notícias”) lançado por uma seita. Na época a notícia chamou minha atenção porque, segundo o gerente de publicidade, o jornal impresso em cores pretendia noticiar apenas acontecimentos felizes. Seus leitores nada iriam saber de guerras, violências, miséria, fome, calamidades, crimes, revoluções, terremotos, trapaças, monopólios etc. Não sei se o jornal, se ainda existe, iria noticiar a visita de Busch ao Brasil. Mas isso não vem ao caso. A questão é: que pensar de um jornal assim, em que tudo, acabaria bem, como nos filmes norte-americanos? Na verdade, seria péssimo, infame, mentiroso. Na história, que a humanidade vive dia a dia, nem tudo é azul ou cor-de-rosa, nem todos os acontecimentos são felizes, nem todos são heróis de honestidade, nem todos os vilões são inteiramente maus, nem todos os santos são inteiramente justos. Se, em nossos meios de comunicação, nem sempre o bem e a virtude são notícia, nem por isso haveria vantagem no extremo oposto. O mal, as calamidades, as injustiças, os roubos, as maldades, os assassinatos não deixam de existir pelo fato de não serem noticiados ou apresentados. Se devemos assumir uma atitude para o bem e a salvação de nosso mundo, precisamos ter exato conhecimento de sua situação real, para que possamos julgar, 115
decidir e fazer o que deve ser feito. Não podemos viver iludidos, pensando que tudo vai bem e na santa paz de Deus, que não há gente sofrendo por falta de verdade, de pão e de justiça, que não há gente esbanjando numa noite o que foi produzido pelo trabalho de muitos, que não há gente por própria culpa presa ao subdesenvolvimento de todo tipo, que não há pecado. Não podemos desconhecer o mundo em que vivemos. E para isso é preciso que a comunicação (sem esquecer a literatura, o teatro e tudo o mais) seja verdadeira, objetiva, honesta, que não filtre apenas as informações que interessam a esta ou àquela corrente, que não distorça os fatos, que não faça sensacionalismo. Numa palavra, que procure o bem, a verdade, a justiça. Que não faça a defesa do mal, que não o apresente de forma sedutora, mas que também não finja que a vida é uma novela cor-de-rosa. É claro, você não tem o controle da comunicação, nem a direção dos meios de comunicação. Mas você pode selecionar os autores, os canais e veículos, dando sua confiança apenas àqueles que apresentem credenciais suficientes de honestidade. Você pode aprender a ler nas entrelinhas, a ver e ouvir o que não foi mostrado claramente. Basta que você não seja leitor, ouvinte ou expectador passivo, que tudo aceita sem pensar nem reclamar. Reclame, aplauda, manifeste-se, apoie, proteste, por carta, por telefone, por fax, por correio eletrônico. Não compre, ou compre o livro, a revista, o dvd; deixe de comprar, ou compre os produtos do patrocinador. Reaja, manifeste-se. 116
TEMPOS DIFÍCEIS
Nada fáceis os tempos que estamos vivendo, com tantos problemas de ordem social, econômica, política, e mais isso e mais aquilo. E não é só aqui no Brasil. O que nem de longe pode ser tomado como consolo. É natural que diante de uma situação assim, sejam muito variados os pareceres e os palpites, discordantes as propostas de solução. Natural e até bom. Pois não parece que haja outra possibilidade de achar o caminho, a não ser depois de longa escolha. E, ao que parece, hoje mais do que antes, teríamos maior possibilidade de conhecer todos os dados dos problemas, bem como de manifestar nossa opinião. Pelo menos os meios aí estão. Não será preciso pensar muito para perceber que dois fatores, entre muitos, dificultam o entendimento entre nós. O primeiro é uma velha companheira da humanidade, uma velha doença, uma cansada mania: a mentira. Imitando, sem originalidade o Pe. Vieira, podemos dizer que hoje se mente em todos os tempos e de todos os modos. E em todas as línguas. E não só falando ou escrevendo. Também filmando, fotografando ou televisionando. É isso: já não estamos podendo confiar nem mesmo nas imagens. Já aprendemos que nem sempre a foto é o fato. O que nos fornecem, e o que fornecemos aos outros mais do que fatos são apenas versões. Versão dos chineses e versão dos norte-americanos. Versão do governo e versão da oposição. Versão da polícia e versão do preso. Ainda será possível saber qual é de fato o fato? 117
E não é só. Se fizermos um pequeno exame de consciência, vamos descobrir que estamos mais interessados em fazer perguntas do que em ouvir as respostas. É claro que poderíamos tentar uma desculpa, e dizer que já perdemos a esperança de obter respostas, que ninguém quer dar explicações verdadeiras. Pode ser. Mas, diante de nossa consciência, não precisamos de desculpas. E nem de mentiras, espero. É ou não é verdade que a maioria de nossas perguntas são acusações camufladas? Perguntamos acusando, levantando suspeitas, insinuando. E sabe que é prático acusar fazendo perguntas? Sim, porque nos damos por dispensados de apresentar provas do que dizemos. O outro que se dane. Perguntamos, se possível, baralhando os assuntos, ou multiplicando as questões. E como não precisamos da resposta nem a queremos, mal o outro começa a responder, disparamos mais uma pergunta, e mais outra. E o que mais apreciamos é fazer perguntas a quem não está ouvindo...
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COERENTE, MAS DE BOM HUMOR
Os ingleses não são de grandes entusiasmos. Mas de um de seus conterrâneos escreveu um autor: ele foi “o homem de maior virtude jamais produzido pelo Reino Unido”. O que não é pouco, se levarmos em conta a infinidade de figuras ilustres nascidas nos vários séculos da nação britânica. O nome desse homem? Tomas More. Nasceu no dia 7 de fevereiro de 1478. Tornou-se um dos maiores eruditos de seu tempo, foi escolhido para o posto de chanceler do reino, a maior autoridade logo abaixo do rei. Humanamente era o máximo que alguém poderia esperar. Acontece, porém, que os tempos não eram fáceis, e Tomás era chanceler de Henrique VIII, que não era de modo algum um santo e nem um honesto inglês. O rei e os tempos colocaram-no da necessidade de escolher entre sua posição e sua consciência cristã. Como bom cristão, não podia admitir que fosse rompida a unidade com a Igreja Universal. Como cristão, como homem e como inglês não podia aceitar que seu rei fosse senhor absoluto, com o poder inclusive de decidir dobre o bem e o mal, o certo e o errado. Tomás decidiu-se e enfrentou as consequências. Foi acusado de traição, atirado no cárcere, condenado à morte. Sem nenhum estoicismo, soube vencer os apelos do coração. Como que envergonhado de talvez ser considerado herói, até aos últimos momentos, pouco antes de se abaixar o machado, teve palavras de humor sobre si e sobre o mundo. Como 119
quando, ao colocar o pescoço sobre o cepo, ajeitou cuidadosamente a barba, para que não fosse atingida pelo machado, e disse: “Afinal minha barba não é culpada de nenhuma traição...” Tomas More foi decapitado no dia 6 de julho de 1535. Estava com 57 anos. O grande chanceler da Inglaterra, executado como traidor, foi um mártir da fé e de sua consciência. Foi proclamado santo. Um santo diferente. Tão santo que se podia permitir cultivar o bom humor.
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UMA TARDE NO ESTÁDIO
Ir ao estádio ver uma boa partida de futebol é participar de um espetáculo. Ainda mais se for à tarde, quando o sol cria contrastes no gramado e nas arquibancadas, pondo festa nos olhos. Vinte, trinta mil pessoas. Vai e vem dos vendedores de amendoim, de refrescos, refrigerantes e algodão-doce. Tarde bonita para encerrar um feriado ou um tranquilo domingo. Entram em campo as equipes, ergue-se um coro imponente de vozes em todos os tons. Aplauso longo, grave, reboante que quase chega a comover. Há no ar um ar de seriedade que deixa ainda mais deslocado os nãoiniciados, os profanos no grande templo do futebol. Movimentam-se as equipes. Acontecem lances cheios de significados para os entendidos em tática e técnicas. O grande estádio varia em ritmos de pulsações, como um grande coração único. Há momentos de silêncio contido e tenso, depois um murmúrio de tempestade ao longe, o estrondo afinal no aplauso ou na vaia. Esperado, acompanhado lance a lance, ou repentino, acontece o primeiro gol. É o delírio, o desafogo deflagrado no grito único e uniforme, gritado nas bandeiras erguidas e agitadas, nos braços para o alto, nos corpos que se erguem num gesto ritual. É quase um fervor religioso, comovente. Seria fácil, nesta altura, trazer à baila a alienação e condenar esse povo por não se preocupar com os problemas, as reais questões do momento brasileiro. Pois bem, vamos 121
imaginar que de fato seja alienado, que não se preocupe com coisas sérias e importantes. Vamos imaginar que de agora em diante os estádios ficassem vazios na mais terrível e inimaginável greve nacional. Ninguém mais pensando, falando, vivendo, sofrendo futebol. E daí? Por acaso teria esse povo mais possibilidade de fazer ouvir sua voz? E mais ainda, de fazer no presente seu próprio futuro? Não creio. Ao que tudo indica, continuaria sem nada poder dizer sobre a república de seus sonhos, a reformulação dos partidos, a ordem social e econômica, e mais isso e mais aquilo. O povo lote ou não os estádios, os pais da pátria, os iluminados, a elite que se crê messiânica (ainda que até há pouco se apresentasse de macacão) não abrem mão das decisões, ou das rédeas, se quiser, porque acreditam que só eles sabem o que é bom para o povo. Então, que o povo continue lotando os estádios, sim, mas que deixe as arquibancadas e as gerais, e entre no jogo, assuma o apito do árbitro, e ponha para fora do campo os que ali não merecem estar, e deixe de ser deslumbrado pela esperteza dos guias de sempre, ou de nova ascensão. Esvaziar estádios faria apenas um Brasil mais triste. Que o brasileiro continue lotando estádios, mas que afinal tome de assalto os diretórios dos partidos, assuma a militância partidária, e deixe de apenas ser convocado para votar em nomes surgidos de conchavos de patrões de gravata ou sem gravata. E, se isso não acontecer, continue brincando o povocriança, mas não faça bulha, porque os papais da pátria estão pensando. 122
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Sumário A VIOLÊNCIA DE SEMPRE..........................................................3 DIVERGIR SEM CONDENAR......................................................5 SIMPLESMENTE PARA FICAR PERTO.......................................7 AINDA HÁ MUITO AMOR NO MUNDO.....................................9 NA HORA DE RECOLHER AS VELAS......................................11 GENETICAMENTE INCORRETO..............................................13 HOMEM PARA O HOMEM.........................................................15 IMAGINE UM POLÍTICO SANTO..............................................17 IMPORTANTE É A PESSOA........................................................19 INDIGNAÇÃO SELETIVA...........................................................21 JUDAS E NÓS...............................................................................23 LAVRADOR MESMO...................................................................25 LIMITES DO AMOR.....................................................................27 LONGE DOS OLHOS...................................................................29 MARIA DO ADVENTO................................................................31 MAS TUDO PODE MUDAR........................................................33 NÃO CONDENE, MENINA.........................................................35 124
NÃO SÃO ELES QUE GANHAM O JOGO................................37 NÃO VÁ ALÉM DAS SANDÁLIAS............................................39 NATAL DE NINGUÉM, NATAL DE ALGUÉM................................40 NATAL MAIS NATAL...................................................................42 NATAL SEM POESIA...................................................................44 O “ADVENTO” DOS ANTIGOS..................................................46 NATAL DE ANTIGAMENTE.......................................................49 NA SUA CASA HÁ UM PRESÉPIO?...........................................52 TEMPO DO “JÁ” E DO “AINDA NÃO”......................................55 UMA ENCARNAÇÃO CORAJOSA DA FÉ................................58 NOMES QUE MENTEM..............................................................61 “O DIA EM QUE ME SENTI MAIS AMADA”...........................63 O INÚTIL JOSÉ.............................................................................65 O PEDRO CERTO.........................................................................68 SERELEPE PRUDENTE...............................................................70 O TEMPO DOS LONGOS CORREDORES.................................71 OBRIGAÇÃO GRAVE, MAIS QUE OUTRAS.................................73 LIÇÃO CORINTIANA..................................................................75 ONTEM FOI NATAL.....................................................................77 ORAÇÃO NO DIA DAS MÃES...................................................79 PESCADORES, NÃO PROFETAS...............................................81 PELA CIDADE..............................................................................83 PERSPECTIVA DE VIDA.............................................................85 POR QUE TRABALHAR?............................................................87 PRATICANTES E ALIENADOS..................................................89 125
PRESENÇA....................................................................................91 QUAL A DIFERENÇA ?................................................................93 QUANDO O PRÓXIMO É APENAS VOCÊ................................95 QUANDO O REI ESTÁ NU..........................................................97 QUANTO CUSTA A AMIZADE...................................................99 QUE PÁSCOA TEREMOS..........................................................101 SANTO FORA DE MODA..........................................................103 SÃO BENEDITO, SANTO DO POVO.......................................105 A SATISFAÇÃO PLENA.............................................................107 “SE O SENHOR NÃO GUARDAR”..........................................109 REAJA, APOIE OU REJEITE.....................................................111 TEMPOS DIFÍCEIS.....................................................................113 COERENTE, MAS DE BOM HUMOR......................................115 UMA TARDE NO ESTÁDIO......................................................117
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