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Para você, não o que gostaria, mas o que pude escrever.
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LOUVOR AO CRIADOR Senhor, quero relembrar vossas obras, quero rever as maravilhas que já vi, e por elas vos louvar. Vossa palavra poderosa tudo criou e tudo obedece a ordens vossas. Se vos louvo, não me esqueço que nem os anjos são capazes de cantar, como se deve, todas as vossas maravilhas e a ordem firme que regula, com precisão, todas as coisas. Só vós conheceis os segredos todos da natureza e, mais ainda, conheceis o mistério que se encerra no coração de cada ser humano. Em vossas mãos está o passado e o nosso futuro, tudo disposto segundo os planos sábios de vosso amor. Como são belas, Senhor, as vossas obras, mesmo sendo apenas centelhas de vosso esplendor. Tudo vive, tudo permanece e tudo segue os rumos que traçastes. Vossas criaturas são todas diferentes e não existe repetição ou sobra, como nada falta para que o todo seja perfeito. Senhor, agora quero relembrar as vossas obras, mas são tantas e todas proclamam que muito mais belo e poderoso sois, seu criador e meu. (Eclo 42,15-22)
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ALEGRIA - TRISTEZA Não se deixe levar à tristeza, não se abandone a ideias pessimistas. A alegria do coração é que faz a nossa vida; o contentamento é que prolonga nossos dias... Para um coração alegre, bom apetite! terá proveito do que comer! (Veja Eclo 30,21-25) A tristeza nasce da ausência de um bem desejado. Se o bem é verdadeiro, a tristeza se justifica e se pode chamar de pobreza. Se o bem desejado não é bem, nem indispensável, a tristeza não é sensata. Perder a Deus, e viver sem seu amor, essa a verdadeira e maior tristeza. Tristeza porém inútil, que só mostra que não o queremos ter. A tristeza nasce da preocupação que é medo do que desconhecemos, ou imaginamos muito mais terrível do que é na realidade. Medo triste, que só existe, quando não queremos confiar em Deus. A alegria nasce do bem que precisamos. Se esse bem se chama Deus, infinita é a alegria. A alegria depende de nós, não do mundo. Se temos coração alegre, bom dia!, o céu é azul acima das nuvens. Seremos alegre bênção da Deus para todos. ____________________________________________________ 4
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SOFRIMENTO Do Cristo aprendemos que o sofrimento não é infelicidade, mas um dos componentes da vida. Em si mesmos, nem o sofrimento, nem o prazer têm valor próprio. O que importa é como sofremos e como gozamos. Sabemos que nossa vida precisa da alegria, como a semente precisa do sol. Mas precisa também do sofrimento, como os dias de chuva, úmidos e cinzentos, que fazem a semente inchar para depois explodir em flores e frutos. Já temos a salvação e a felicidade, mas ainda não se manifestou nossa vida nova. Sendo assim, não esperemos que nossa vida agora seja um conto de fadas, onde varinha mágica transforme espinhos em flores. Nosso coração vive sedento e faminto de alegria. Que o Senhor nos ajude a compreender que nem toda a alegria é alegria, nem toda a felicidade é felicidade, nem todo o sofrimento é desgraça. Que sejamos tão fortes nas horas alegres, como procuramos ser nas horas tristes. Não precisamos procurar o sofrimento, mas não podemos fugir das dores que surgirem, como pedras ásperas que, ao lado das lisas, lajeiam a estrada da vida.
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ORAÇÃO DOS LIMITES Eu mesmo já pensei que a vida está em nossas mãos, que podemos decidir e fazer o que queremos. Nem sempre. Bastam pequenas coisas para tropeçarmos, continuamente barrados por montanhas menores que grãos de areia, sempre com medos menores que medos infantis. Bem pouco nos derrota. Nosso entusiasmo confiante não resiste aos acessos do mau humor, ao peso úmido da tristeza sem motivo, aos ataques do desânimo. Fazemos o que queremos enquanto podemos. Enquanto temos olhos que vejam, mãos que segurem, pés que andem. Fazemos o que queremos, se a gripe o permitir, se o carro em que viajamos não derrapar, se não chover, ou se chuva não faltar. Aí está até onde vão os meus limites. É tão pequeno o campo em que posso dizer que sou senhor de minha vida. Não estou reclamando, apenas vejo como era grande minha ilusão. Aceito os limites de minha fraqueza e reconheço a grandeza de quem dependo. Reconheço minhas limitações, mas sem pessimismo: vejo o pouco que posso, mas espero naquele que é minha força. Alguém que me ama.
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REDESCOBRINDO Quase perdemos a capacidade de nos maravilhar. Já não vemos o escondido nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, nas pequenas graças. Você ainda é capaz de ver a beleza das gotas de orvalho nas flores da manhã, o manso ritmo da chuva escorrendo na janela, o desenho que vento deixa nas areias varridas? Aprecia o macio do pão, o aroma do café, o prazer de um copo d’água? Sabe o valor de um aperto de mão ou de um aceno de quem passa? Sente a força da mão que ajuda a criança a cruzar a rua? Vê a beleza das mãos que esfregam as roupas e fazem a vassoura dançar pela casa? Temos de saber que cada momento da vida é milagre espantoso, o maior de todos e mais completo que a ronda dos astros. Temos de ver a presença de Deus em tudo, vendo em cada passo a marca de seu amor. Os homens foram conquistar a lua, a lua que era sua, refletida nas águas do rio, na poça da rua, nos olhos da saudade sem saída. Loucura ir tão longe, quando o importante está tão perto, quando o pequeno é tão sublime.
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PARAR UM POUCO Hoje parei um pouco para rezar. Para estar uns poucos minutos parado, mesmo sentido uma pressa estranha que me acossa, como se tivesse muita coisa para fazer, como se o meu dia fosse tempo para tudo, menos para parar. Hoje me dei conta que vivo a correr, como se o importante fosse correr o mais possível. É correndo que me iludo e consigo acreditar que sou pessoa muito ocupada. Correndo me lanço ao trabalho da semana e corro ao descanso do domingo. E tanto mais pressa tenho se me lembro que preciso perder tempo com Deus. Sou capaz de encher meu dia sem deixar espaço para ele. E depois eu me admiro que meus dias sejam vazios e me deixem descontente. Já devia ter aprendido que sem Deus estou sozinho até no meio da multidão; sou inútil, por mais que faça; sou pobre, por mais que tenha. Já devia ter aprendido que, apesar de todas as ilusões, preciso perder tempo orando, preciso perder tempo vivendo. Com toda a pressa preciso voltar a ter tempo para o que de fato importa.
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IMPORTA SER FELIZ Simplesmente sendo gente, nem precisa cristianismo, já trazemos na alma uma escala de valores. Percebemos o valor da simples aventura da vida que é continuar vivendo. Da aventura da vida que é luta, esperança, continuidade paciente na busca. Sabemos o valor e a beleza do amor, o valor do trabalho paciente e forte construindo um mundo melhor não apenas para nós. Vemos o valor da beleza, da coragem, da saúde. Principalmente damos valor à felicidade. Felicidade. Sabemos que esse é o supremo valor, que dá valor aos outros bens, o bem maior que Deus nos pode e quer dar. Por isso importa que não nos enganemos. Diz Jesus que a felicidade vem de Deus e está dentro de nós. Está na verdade, no bem, na luz, no amor e não nas coisas. Vem de Deus, mas é dada como semente, e será completa somente no fim que é começo. Diz Jesus que a felicidade nem sempre é fácil, que às vezes é preciso morrer para viver; que o riso nem sempre é alegria, nem a lágrima é sempre tristeza. Viver sendo feliz, e não apenas para ser feliz, é o que importa.
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CRISTÃOS ALEGRES O cristianismo é acusado de ser pessimista. De se preocupar apenas com a outra vida. De só falar de pecado, morte mortificação. Não é verdade. Fala de pecado para anunciar a libertação, fala de morte para proclamar a vida, fala de mortificação para levar ao crescimento. O cristão, o verdadeiro, é profundamente alegre. Basta olhar para os santos, os verdadeiros. Eram até dotados de humor, capazes de rir de si mesmos e de suas limitações. Lembro um missionário francês na Indochina, Jean Venard. Havia uma frase que repetia sempre, como se fosse o resumo do Evangelho: “Alegria apesar de tudo”. Mesmo quando estendeu o pescoço para que lhe cortassem a cabeça. E Thomas Morus, primeiro ministro do rei inglês, condenado à morte por ser católico: na hora da execução deu gorjeta ao carrasco, e pediu cuidado em não lhe cortar a barba, porque essa pelo menos não podia ser acusada de traição. Aliás, ele pedia sempre que Deus lhe desse bom humor, bons dentes e sempre alguma coisa para mastigar. O que levará tanta gente a ver sempre Virgens chorando?
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PROCURAR A DEUS Você e eu, acho que todos procuramos a Deus. Até que ponto e com quanta sede é difícil dizer. Já nem sei onde encontrei uma história: Um dia, um discípulo foi procurar seu mestre e disse: “Mestre, eu quero encontrar a Deus”. O mestre olhou para ele e nada disse, apenas sorriu. O jovem voltava todos os dias repetindo que queria encontrar a Deus. Mas o mestre, melhor que ele, sabia o que fazer. Um dia, o calor estava muito forte, e o mestre convidou-o a nadar no rio. O jovem mergulhou, e logo atrás mergulhou o mestre. Agarrou-o e segurou-o debaixo da água. Depois que o rapaz se debateu bastante, o mestre largou-o e perguntou: “Enquanto estava debaixo da água, que foi que você mais desejou?” Disse o moço: “O que eu mais queria era o ar”. Disse, então, o mestre: “Será que você deseja a Deus com a mesma ansiedade? Se é assim que o deseja, imediatamente o encontrará. Mas, se não o deseja com a mesma sede, será inútil lutar com a inteligência, com os lábios: você nunca poderá encontrar a Deus.” - Senhor, ensina-me a sentir falta de ti!
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DOR ANUNCIADA Nem me lembro do nome da pintora que disse numa entrevista: “Com minha mãe aprendi que nossas dores não devem sair no jornal”. Parece exatamente o contrário do que costumo fazer. Quem me encontra de manhã logo pode ver em meu rosto minhas preocupações e meus sofrimentos. Tenho até certo prazer em alardear minhas dores, procurando compaixão e dó. É quase uma explicação adiantada para que desculpem meu mau humor e minhas indelicadezas. Como se quisesse desafogar, azedando a vida dos que me rodeiam. Nossas dores não devem sair nos jornais. Isso nada resolve. Se alegria partilhada é alegria multiplicada, tristeza apregoada e leiloada também só pode inchar. Nossas dores não devem sair nos jornais. É principalmente com Deus que devemos tratar desse assunto, bem em particular. De rosto lavado e cabelo perfumado, para que ninguém veja que “estamos jejuando”. Se precisamos de apoio, consolo e conselho, vamos procurar quem nos possa ajudar. Mas o resto do mundo não precisa aturar nossa triste figura. Não adiante choramingar nos ombros de todos.
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FONTE ESQUECIDA Nos papiros do antigo Egito encontrou-se uma oração estranha, ou talvez não tanto estranha assim. Rezava aquele homem, cujo nome não sabemos: “Tu, Senhor, és fonte para os sedentos no deserto. Fonte fechada para quem vive falando, fonte aberta para quem sabe calar. Quando vem quem sabe calar, encontra a fonte e mata a sede”. Certamente no antigo Egito havia muito mais silêncio do que neste nosso mundo, e mesmo assim já havia quem tivesse dificuldades em ouvir a Deus. Muito mais hoje será preciso que não me deixe dominar e seduzir pelo tumulto que trago em mim mesmo, nem pelas mil formas de alto-falantes que me cercam e gritam promessas. Preciso redescobrir o silêncio que me permita ouvir o murmúrio da fonte, do Deus que não está na confusão, nem no fogo, nem no terremoto, mas apenas no leve e ligeiro sopro da brisa que passa e não sinto. Preciso ter novamente a sede silenciosa do deserto. ____________________________________________________ 13
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MINHAS CERTEZAS Os provérbios chineses são sempre sábios e os contos chineses são sempre verdadeiros. Um dia sumiu o machado de Chin. Ficou atento observando e logo notou o filho do vizinho. Tinha jeito de ladrão de machado. Andar sorrateiro de ladrão de machado. Olhar fugidio de ladrão de machado. Conversa fingida de ladrão de machado. Todo o jeito de ladrão de machado. Tinha certeza. Mas, uns dias depois, Chin encontrou o machado debaixo da lenha. E o mais interessante era que o filho do vizinho já não tinha o jeito, o andar, o olhar, a conversa de ladrão de machado. Eu e os meus machados perdidos no meio da lenha. Minha tranquila certeza de julgamento. Sempre pelos melhores, mais nobres e justificados motivos. Principalmente quando julgo em nome do bem comum. Pior ainda quando o faço em nome da Igreja. E - catástrofe final - quando o faço em nome de Deus. Não me basta julgar e atribuir o fato. Faço questão de julgar as intenções, imaginando sempre os piores motivos. Se não consigo ficar sem julgar e condenar, vou pelo menos tomar cuidado para não esquecer meus machados debaixo dos montes de lenha.
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MEU DEUS-TAPUME Rabia al Adawiza (+801), sábio muçulmano, dizia a Deus: “De duas maneiras eu te amei, uma egoísta, outra digna de ti. Pelo amor egoísta encontrei em ti uma alegria cega a tudo e a todos. Pelo amor que te agrada e busca, levantou-se o véu e pude ver-te”. Tantas vezes imaginei-me perdido em Deus e nas coisas espirituais. Como o fariseu do evangelho, declarei “korban” todas as minhas preocupações e afetos. Na verdade, eu não queria cuidar do mundo que Deus me confiou, nem queria enroscar-me com os homens e as mulheres, cada qual com seu nome e seus problemas, irmãos e irmãs aos quais o Senhor me confiou e cuja sorte me entregou. Precisa que eu vença ilusão e descubra que só na profanidade das pessoas e das coisas posso afinal encontrar o sagrado que seja divino. Precisa que eu aprenda que só servindo a quem carece verei abrirem-se as portar da oração do encontro. Precisa que afinal eu creia que só amando os que vejo estarei de fato escolhendo para amar amando o Deus que não vejo, não ouço, não apalpo, não cheiro nem posso gostar.
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A TAREFA QUE RESTOU Depois que não mais podiam ver Jesus, entenderam os apóstolos que para eles começava um tempo novo: o da tarefa a ser cumprida. Não deviam ficar olhando para o céu, não deviam querer viver de saudades, tinham de olhar para a terra, para a frente, para o agora e o futuro. Eles e nós. Talvez para nós seja um pouco mais fácil, porque não provamos o que era viver com o Filho de Deus encarnado, caminhando pelas mesmas estradas e comendo o mesmo pão, quando tinham sempre a tempo suas palavras oportunas. Mas talvez, mais que eles, precisamos estar convencidos da presença real de Cristo em nosso meio. Não apenas na pessoa do próximo, como nos dizem, mas pessoalmente, agindo entre nós, modificando o mundo e a história. Ele não partiu, não nos deixou, não é uma lembrança, uma saudade, um passado. É o presente, a maior presença, a mais real de todas as realidades. As pessoas não o veem simplesmente porque ele confiou que se podia tornar visível em nós, que não seríamos demasiado opacos nem demasiado celestiais.
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SABER VER Duas vezes Lucas nos diz que Maria “guardava essas coisas no coração”. Maria sabia ver os fatos, na sua verdadeira importância, percebia sempre a manifestação de Deus. Principalmente nos pequenos fatos. À luz dessa intuição, olhava para o passado, compreendia o presente e confiante entregava-se para o futuro. Tenho de aprender a olhar para tudo e para todos com o olhar iluminado pela experiência feita de Deus. Assim irei compreender e aceitar tudo de um modo novo e melhor. No que tantos chamam de acaso, irei perceber sinais deixados por Deus que, como namorado acanhado, quer dizer que passou por ali pensando em mim. No que parece pequeno e ordinário, verei a mesma onipotência majestosa que fez nascer as imensas galáxias. No que parece decisão minha ou dos outros, descobrirei a sabedoria de quem, por nossas mãos, governa o mundo. Tudo porque, como Maria, estarei olhando para ver os fatos, as coisas e as pessoas com os olhos do coração, que enxergam mais longe e veem mais fundo; com os olhos de Deus que tudo vê de um jeito muito novo.
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CONVALESCENDO A doença, ou pelo menos algumas horas num corredor de hospital, ou numa sala de espera são oportunidades que não podemos deixar passar inutilmente. Não que as devamos desejar ou procurar. Aliás, desejadas ou não, sempre acabam chegando. O jeito é saber aproveitá-las humildemente como ocasiões de encontro conosco mesmos, com os outros e com Deus. Essas horas são espelhos: podemos conhecer-nos mais. Essas horas são portas abertas nas paredes que nos dividem. Essas horas são escadas, para descermos de nosso orgulho e subir até Deus. Não adianta ter pressa. Essas horas são sempre longas, mesmo que durem poucos minutos. O jeito é aceitá-las, gole a gole, como dom do Senhor. Como remédio que ele sabe ser muito bom para nós. Remédio bom, amargo mas bom. Se hoje estou bem, graças a Deus! Mas que ele me ajude para que, chegando o momento, eu não o perca, não perca a oportunidade para amadurecer. E que ajude também aqueles que estão vivendo sua hora; que além de sofrer não percam a alegria.
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ANTES DE RAMOS Os discípulos estavam até tranquilos, mesmo se a oposição contra Jesus se fazia mais forte. O Mestre já escapara de muitas ciladas e sempre dera um jeito. Tudo terminaria bem, de modo glorioso, com eles altamente colocados no novo reinado, pois afinal tinham sido os primeiros a aderir. Podiam sonhar, e nunca iriam sonhar o pior. Tudo por tudo, nossa vida é sempre a antevéspera da Paixão. Geralmente não sabemos o que nos espera. Deus conhece nossa fraqueza e por isso nem sempre nos deixa prever claro o que virá depois de Ramos. Está contente se nós, em nosso meio conhecimento e em nossa meia ignorância, temos pelo menos a coragem de nos entregar em suas mãos. Nem se importa se pedimos que o cálice não seja amargo demais, nem grande demais. Se prevemos o futuro, se sabemos mais ou menos o que nos espera, Deus também compreende o nosso medo e, para dar-nos a coragem, espera apenas que a peçamos. Que ele pelo menos não deixe esquecer que, depois da cruz e da morte, há sempre de novo a manhã da vida.
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RAZÕES DE AMAR Há mais de três séculos um desconhecido assim orava: “Meu Cristo e meu Deus, sou levado a amar-vos não pelo céu que prometeis, nem o inferno, que me enche de terror, é que me leva a não vos querer ofender. Por vós, Senhor, é que sou levado, vendo-vos cravado nessa cruz, escarnecido, coberto de feridas. Sou levado, Senhor, pela vossa humilhação, sou levado pela vossa morte. Sois vós, Senhor, é o vosso amor que me obriga a vos amar, ainda que o céu não existisse. Haveria de amar-vos, Senhor, ainda que não temesse o inferno. Nada precisais dar-me, porque me amais e isso basta. Ainda que eu não esperasse tudo quanto espero, do mesmo modo, Senhor, vos amaria!” Aí está: podemos enumerar razões inúmeras que nos obriguem a dar a Deus o nosso amor. Amou-nos primeiro, céus e terra criou por nossa causa, tudo recebemos de suas mãos. Mas o Cristo é a última palavra de Deus, a mais convincente. Se essa palavra não for suficiente para nos levar ao amor, nenhuma outra será bastante.
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AINDA CHAMADOS Quando te vejo, Senhor, passando pelo lago e chamando os que quiseste, quase pediria que continues chamando ainda agora. Mas sei que chamados não faltam, faltam chamados que ouçam e cheguem até onde for preciso. Nosso mundo, nossa cidade, nossa família fazem barulho demais e quase abafam a voz que chama. Há tanto brilho, falso brilho, há tanta névoa, pesada névoa, que impedem te vejam quando passas. Os chamados, muitas vezes, estão presos em grossas redes e não conseguem ter coragem de te seguir. Por isso não peço que chames. O que peço é que os chamados te ouçam apesar de todo o barulho, te vejam apesar da névoa, tenham coragem de romper as redes. O que te peço é que as famílias, sejam como o velho Zebedeu, que aceitou ficar sozinho consertando as redes, enquanto Tiago e João seguiam pela estrada sem retorno. O que te peço é que os que te ouviram e começaram a seguir, que vão em frente, sem olhar para trás, para o brilho do lago, o balanço dos barcos, o lucro da pesca. Continuem firmes por onde quer que fores.
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APENAS HOJE Começa o dia, com esperanças e planos. Estamos confiantes. Mas podemos confiar em nós e em nossas forças? Se olhamos, não vemos muito em que confiar; nem nos podemos garantir chegar ao meio-dia. Somos sempre como alguém que parte de viagem sem saber se chegará, sem nem mesmo saber por onde vai. Precisamos de alguém fora de nós. Um só existe maior que nós. Um só existe em quem podemos confiar. Um só que não podemos compreender, mas que é a única resposta bastante para as nossas perguntas. Só ele. Deus. Mas que é tudo. Foi talvez depois de pensar assim que alguém, há muitos séculos, cantou o salmo 138: ... Senhor, tu me conheces, sabes o que penso antes que o diga, e vês meus caminhos, que ainda nem trilhei. ... Tu me moldaste e me conservas no côncavo da mão. ... Se quisesse fugir, para onde iria, se no céu ou no abismo eu te encontraria? ... Não posso fugir, pois me possuis por dentro desde antes de eu nascer. – Afinal, que me importa se não chegar ao meio-dia, se com ele estou?
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ÚLTIMA ORAÇÃO Como rezavam os mártires cristãos diante da morte? Em torno de 156, um velho bispo de 86 anos foi condenado a morrer na fogueira. Era Policarpo, o de muitos frutos. De pé, amarrado a um poste, sobre a lenha preparada, o ancião ali estava solene como sacerdote pronto para o sacrifício. Ergueu os olhos e assim orou: “Senhor, todo-poderoso, Pai de Jesus Cristo, vosso filho amado e bendito. Foi por ele que vos pudemos conhecer, Deus de toda a criação e de toda a família dos justos. Eu vos bendigo por me terdes julgado digno deste dia e desta hora, merecendo ser contado entre as vossas testemunhas e participar do cálice de vosso Cristo. Irei assim reerguer-me para a vida eterna da alma e do corpo. Que hoje eu possa ser recebido em vossa presença como oblação preciosa e bem aceite. Para isso me preparastes e isso me mostrastes antes. Guardaste vossa promessa. Por essa graça e por tudo eu vos louvo e glorifico pelo eterno e sumo sacerdote Jesus Cristo...” Quando as chamas e ergueram, a vitória da vida já era de Policarpo, o de muitos frutos.
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ORAÇÃO DO GURU O guru Arium, da velha Índia, muitas vezes assim orava: “Espero em ti, Senhor. Por teu poder, em cada homem arde uma chama. Por teu poder é que vivo sobre a terra. Estou atento, como cão fiel à tua porta. Eu, Senhor, te amo como as flores florescem. Como a criança saciada ao peito, como o pobre que acha um canto, como o sedento se atira à fonte, assim meu coração descobre a felicidade em ti, Senhor. Como a lâmpada brilha à noite, como o enamorado olha a amada e encontra, no seu encontro, a felicidade, pois assim é que, eu, Senhor, te amo, pois afinal te encontrei.”
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QUE EU POSSA VER A menina de Uganda, contam, assim rezava: “Senhor, acendei uma luz junto ao meu coração para que eu vos possa ver”. Talvez seja esse meu problema com Deus: quero agarrá-lo com minha razão, descobri-lo por mim mesmo. Com isso, de tanto ver tantas coisas, acabo nada vendo, pelo menos não o importante, o escondido, o que está por detrás de tudo. Por isso vou sem rumo, sem compreender o sentido da vida, das coisas e dos fatos. Não posso ver, pois o egoísmo não deixa, a pressão ambiente não o permite, e eu não gosto de olhar para mim mesmo. Não posso ver, cego a quem ninguém abriu os olhos. Preciso de luz para ver e saber quem, quê, por quê, para quê, para viver vida que seja viva. Preciso de Deus para ver a Deus e nele ver todos e tudo. Se ele acender, melhor, se ele for luz junto de meu coração, eu o poderei conhecer com a força da experiência e do encontro vivido. Quando ele vier e se fizer alguém para mim, tudo se tornará claro: o mundo do mundo, o mundo dos homens e, incrível, o mundo de mim mesmo.
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UM IDEAL, DEPRESSA De um piloto das pistas mais rápidas do automobilismo o jornal dizia: “Na velocidade ele procurava um sentido para a vida”. Claro, precisa dar desconto para a pressa de quem deve produzir um texto laudatório sobre o mais recente ídolo desaparecido. Pressa não combina com reflexão. Mas, tomada a sério, a frase é um insulto gritante contra um ser humano. O milagre da vida de cada ser terá na certa um sentido, um objetivo, uma realização que vá um pouco além da velocidade. Cada um traz em si sonhos de amor, de bondade, de retidão, de solidariedade e de tudo o mais que há de bom. Sonhos e anseios que, mesmo em contradição com o que vivemos, empurram-nos mais para a frente e mais para cima, permitindo-nos a esperança. Ainda que muitas vezes nos blasonemos do contrário, nossos ideais são mais altos que a velocidade e muitas outras coisas que dizemos preferir. Podemos dar qualquer nome a esse outro que habita em nós, mas ele será sempre um presente de Deus ou, se quisermos, a isca lançada por quem nos quer para si. Será sempre a última parte de nós a morrer.
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PRÓXIMO INCÔMODO Um dos “Irmãos Karamazov” diz que amar a humanidade não é problema. O difícil é amar o homem e a mulher. Talvez por isso o texto bíblico fale de amar quem está “perto”, usando um advérbio e não um adjetivo. O “próximo”, o semelhante, como adjetivo, não causa tanto incômodo como o “perto” adverbial, local, o que está ao lado, roçando minha pele. Duro é amar, e não apenas tolerar, a vizinha com suas galinhas, o contador de piadas melancólicas, o gordo do lado no ônibus, a antipática petulante. Quando são desconhecidos, é um pouco mais fácil. O difícil mesmo é querer a felicidade para alguém com rosto e nome que não me quer feliz, foi desleal e traiçoeiro. Os que não moram comigo, os que encontro apenas algumas horas por dia, ou de vez em quando, não me roçam tanto como os que vivem na mesma casa. Desses conheço e detesto as manias. E o pior é eu eles também já me conhecem muito bem, não se enganam com minhas máscaras. Mas para mim a salvação e a felicidade não é a humanidade, mas cada homem e cada mulher que encontro, que me roçam, têm rosto, nome e cheiro.
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GIGANTES INACABADOS Impressionam os gigantes que Michelangelo deixou incompletos. Estão como que a sair do mármore bruto, ganhando forma aos poucos, num trabalho doloroso de muitos golpes. Acho mais belos que as obras terminadas e polidas. Tenho de aceitar-me assim, incompleto sob os golpes de quem me vai esculpindo. Deixando-o livre para talhar o quanto quiser, transformando em lascas dispensáveis tantas coisas que prezo tanto. Vendo e aceitando o que já modelou, sem pretender adivinhar a forma final que me pretende dar. Sem pressa, sabendo que ele tem a eternidade toda para terminar a obra. Se aprendo a saber-me peça inacabada, não cobrarei de outros que sejam obras finalizadas, polidas, sobre o pedestal definitivo. Para eles também ele tem seus planos de trabalho, seus prazos a se perder na eternidade, quem sabe. Por sermos obras toscas, ásperas e inacabadas é que nos podemos ir polindo uns aos outros, roçando-nos doloridamente às vezes, até que afinal se mostrem as formas definitivas dos gigantes projetados.
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O TEMPLO CERTO Sasanal Basri, místico muçulmano morto em 728, não tinha a menor dúvida: “Prefiro fazer o bem a um irmão na fé a passar um mês na mesquita a meditar”. Também S. Vicente de Paulo tinha certeza quando dizia às suas freirinhas: “Na hora da oração, não hesitem em deixar Deus por Deus para socorrer a algum necessitado”. O louvor e o culto que podemos prestar a Deus não consistem tanto nas orações, cantos e cerimônias. O maior louvor está em sermos filhos e filhas de Deus. O culto mais aceito está em sermos felizes e em fazer a felicidade dos irmãos e irmãs. Deus não precisa de nosso culto nem de nosso louvor, mas quis precisar de nossas mãos para espalhar o bem, e quis que muitos precisassem de nós. Se falharmos, terão a impressão que Deus está falhando. Tantos templos, tantas mesquitas, tantas catedrais; mais importante é a grande casa do mundo onde vivem os filhos de Deus, nessa liturgia contínua festejada pelo Cristo que faz o bem com nossas mãos humanas de tantas crenças, mãos fracas e pecadoras, mas ativas.
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IMPORTA A FONTE Como diz a Bíblia (Eclo 37,16-18), “O princípio de toda a obra é a razão, antes de qualquer empreendimento precisa refletir. A raiz dos pensamentos é o coração, origem de quatro ramos: o bem e o mal, a vida e a morte...”. Tudo que pensamos e fazemos, ou deixamos de fazer, é determinado pelo que somos realmente, pelo que escolhemos ser no mais íntimo de nós mesmos. Como a água nasce da fonte, e os frutos da árvore, assim brotam de nós as decisões e as atitudes. Julgamos pelo que somos, queremos pelo que somos, fazemos pelo que somos. Sendo assim, não posso começar a mudança pelos meus atos e atitudes. Tenho de começar pela fonte, pelo coração. Tenho de me decidir pelo bem, pela justiça, pelo amor. Tenho de voltar meu coração para Deus e para o próximo. Se o fizer, minhas decisões e meus atos serão bons. E quanto mais frequentes meus atos bons, tanto mais me irei acostumar com o bem, formando como que uma segunda natureza em mim, o modo de ser dos filhos de Deus. Talvez seja isso a conversão da qual ando fugindo tanto.
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ENCONTRO MARCADO Nicolau e Cassiano, dois santos de há muito tempo, iam apressados, arregaçando as longas túnicas para livrar os pés. Tinham pressa. Pudera, tinham encontro marcado com Deus, não podiam chegar atrasados. Pouca gente pela estrada. Melhor assim menos tempo perdido com boas-tardes. Dobrando uma volta da estrada, lá estava atolada uma carroça. O carroceiro gritava e fazia força ajudando o animal, sem nada conseguir. Pensaram em ajudar. Mas não podiam; tinham hora marcada com Deus. Mas também não podiam deixar o coitado. Paciência. Enrolaram as mangas, suspenderam mais a túnica e fizeram muita força com o burro e o carroceiro. Foi difícil, sujo, e levou muito tempo. Com as costas das mãos enxugaram a testa vendo a carroça afastarse. Lembraram-se, então, da hora marcada para o encontro com Deus. Agora já era tarde; tinha passado a hora, estavam suados e enlameados. Enquanto ajeitavam a túnica e perguntavam se ainda convinha continuar a viagem mesmo chegando tarde, viram que já estavam diante de Deus. Estava sentado ali, à beira da estrada, como quem tivesse tempo de sobra e nenhuma pressa.
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COISA SÉRIA Brincadeira pode parecer coisa sem nenhuma importância em nossa vida. Mas de fato deve ser assunto muito sério para nós. Não pode existir seriedade na vida sem brincadeira, nem brincadeira sem seriedade. A vida é séria, envolve muitas responsabilidades. E muito mais séria é a vida cristã. Mas essa seriedade não dispensa o gracejo, o humor, a alegria. Está bem que levemos tudo muito a sério, contanto que saibamos rir de nós mesmos, até de nossas tristezas e preocupações. Já disseram que um santo triste e um triste santo. É isso. Justamente porque nossa vida é engrandecida por Deus e iluminada pela esperança é que podemos ser alegres, brincalhões, com um bom senso de humor. Facilita o relacionamento, derruba barreiras. Difícil dizer se o mais importante é saber fazer uma brincadeira ou saber aceitar que façam uma brincadeira conosco. O certo é que precisamos de um pouco de humildade e de bastante amor para rir com os que riem de nós. Parece que o senso de humor, o saber brincar é uma das qualidades do coração de criança que o Cristo nos torna possível.
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NA PALMA DA MÃO Numa pequena tribo, lá da África, havia uma oração que todos repetiam: “Senhor, tu sabes tudo, tu conheces o meu nome, tu sabes onde estou, tu me entendes!” Muito natural que Deus conheça tudo, os astros, os segredos todos da natureza e os segredos do coração. Afinal é Deus, é o criador de tudo. O que espanta, se pensamos um pouco, é que nos conheça pessoalmente. Para ele não somos um número nem apenas um nome na lista. Planejou-nos individualmente; amou-nos quando ainda não existíamos; e porque nos amou deu-nos a existência num determinado momento, num preciso contexto, com tarefa que só nós podemos cumprir, para uma felicidade especial que será a nossa. Cuida pessoalmente de mim, acompanha-me como se fosse único, leva a sério minhas decisões, respeita minha liberdade. Não digo que seja o mais amado, mas estou certo de ser amado de um jeito especial, exatamente como sou. Para ele sou insubstituível e continuarei sendo importante para sempre. Por incrível que pareça, Deus me ama e me entende.
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LÂMPADA PARTIDA A vida é lâmpada que se vai gastando e, em se gastando, ilumina e aquece, espanta as trevas e espalha alegria. Meus anos passam, mas não importa, se eu puder iluminar e ser janela de luz na noite dos que passam. Os anos passam; mas não importa, se o desânimo e o cansaço não fizerem minguar a luz que aos irmãos eu devo. Não poderei dizer que alguma coisa fiz se não trouxer no rosto as marcas do tempo, se não tiver nas mãos a dureza dos calos, se não tiver os ombros arqueados ao peso dos irmãos encontrados na estrada. Não poderei dizer que iluminei, afastando trevas, se só para mim guardar avaro o óleo que dá vida à chama, se por medo não for a mecha que se queimando morre. Não sei até quando, Senhor, minha vida será lâmpada balouçando em vossa mão. Mas não importa, porque sei que, no dia que a lâmpada se partir, inclinado recolhereis os cacos todos, um a um, e a nova lâmpada nunca mais se partirá. Poderá finalmente repousar brilhando na Jerusalém futura, onde nossas pequenas lâmpadas se perderão no sol que sois.
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MEU POBRE AMOR “Você me ama?” é a pergunta que Jesus fez a Pedro que dissera nem o conhecer, mas que por ele tinha deixado tudo. “Você me ama mais que esses outros?” Como poderia Pedro responder? Deixou a resposta para quem já a conhecia enquanto, imagino, ia dizendo consigo mesmo e para ele: Senhor, tu sabes que te amo e sabes como é volúvel meu amor. Senhor, tu sabes que te amo e sabes como nem sempre eu posso nem sei transformar meus desejos e anseios em atos vividos de mãos estendidas e prontas. Senhor, tu sabes o quanto meu amor é apenas procura de alguém que me ampare, conforte e ame se pode. Senhor, tu sabes que te amo e sabes como é volúvel meu amor. É tempo que hoje, pelo menos, comece a provar um pouco se amo, ou se apenas vivo pensando em mim.
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VAI-E-VEM Como posso ser tão inconstante e, ao mesmo tempo, tão inabalável. Parece difícil unir qualidades tão opostas. Como unir a inconstância móvel do vento e a inabalável inércia das montanhas? Sou criatura humana e, por isso mesmo, sou trama complicada de luzes e trevas, altos e baixos, doçuras e amarguras. Sou feito de contrastes, tão inconstante no bem e tão inabalável na maldade. É fácil começar o dia com as resoluções mais sensatas. Antes de o lufa-lufa começar, ainda tenho clareza suficiente para ver como deve ser o meu dia. Sou até mesmo capaz de prever qual deve ser minha atitude nesta ou naquela circunstância. Sou até sincero e quero acertar. O dia acaba tornando-se uma eternidade, tantas as vezes que vou mudando. Impaciência, mau humor, preguiça, afobamento, comodismo, cobiça, ambição, cobardia, mesquinhez, ódio, desconfiança e tudo o mais que me afasta do bem que desejava fazer e viver. Tudo isso estranhamente entremeado com momentos de bondade e retidão, fazendo de minha vida a trilha louca traçada sem rumo. Sou inconstante no bem, mas inabalável no meu vou-e-venho.
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DAR E RECEBER Dar e receber fazem parte – e grande parte – de nossa vida. Dar e receber, falar e ouvir, consolar e ser consolado, apoiar e ser apoiado, amar e ser amado. É tão importante saber amar como saber ser amado. É mais agradável falar do que ouvir. É talvez mais difícil receber do que dar. Aliás, é fácil dar e tirar o que se dá, como é fácil esquecer que é mais importante o como se dá do que o que se dá. Dar e receber fazem parte – e grande parte – de nossa vida. O dar tem de ser gesto de amor. Receber e ser amado devem ser também amar. Dando ou recebendo vamos amar como devemos. Recebendo, vamos fazer que o nosso modo de aceitar não fira, não diminua em empobreça a mão que se estende para nos dar. Dando, vamos dar de tal modo que o outro não se veja escravizado, nem diminuído. Vamos dar o que dermos como palavra de amizade. Vamos dar a amizade nas coisas todas que dermos. Vamos dar e receber de modo que dando e recebendo sejamos mais irmãos. Dar e receber sorrisos, apertos da mão, favores, apoios, conselhos presentes e tudo, dando-nos e recebendo-nos na amizade. ____________________________________________________ 37
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O DIFÍCIL VIVER De tudo que podemos aprender, o mais importante é saber viver. O que é difícil. E menos fácil ainda é ensinar a viver como se deve. O importante é viver, mas não de qualquer jeito, apenas existindo. O importante é vier certo, para o que vale, por quem merece ser o sentido de nosso viver. O importante é viver para fazer a felicidade dos outros, encontrando felicidade em fazê-los felizes. O importante é viver caminhando na companhia e na eterna procura de quem nos criou por amor e para o amor. O importante é viver vivendo da vida que de Deus recebemos, vida que se chama Cristo, vida que dá vida a toda a vida. É certo, o importante é viver, e viver não podemos sem amar, mas amar não podemos sem sofrer. Só no amor vivemos a felicidade, mas amor exige morte para tudo que em nós é desamor, amor falso, amor-negação. Não podemos amar “seja lá como for”, como dizia a canção. Só amamos amando como se deve, com amor certo que tudo exige de quem ama, e nada exige de quem dizemos amar.
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CÉU MAIS QUE ANTES Astrônomos localizaram a estrela mais brilhante da Via Láctea. É dez milhões de vezes maior que o Sol; em seis segundos produz a mesma energia que o Sol em um ano todo. Na nebulosa de Órion, na Via Láctea, a mil e quinhentos anos luz do Sol, existe uma gigantesca nuvem de água. Essa nuvem produz, por dia, água suficiente para encher sessenta vezes os oceanos da terra. Há isso e muito mais que não vemos nem imaginamos ao olhar para o céu estrelado. Hoje o Salmo oitavo ganha novos significados: "Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: Que é o pobre homem, para dele te lembrares, que é o ser o humano para que o visites?" Mais que nunca podemos medir nossa pequenez. No entanto, pela fé temos coragem de dizer: "Tu nos fizeste pouco menor que um deus, de glória e de honra nos coroas, tu nos colocas à frente das obras de tuas mãos, tudo puseste sob os nossos pés"! Infinitamente pequenos, somos infinitamente grandes porque chamados a participar do ser do próprio Deus.
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DE VOLTA PARA CASA Não sei por que, mas sempre imaginei os discípulos de Emaús como indo para algum lugar mais longe, ali parando apenas para a noite numa hospedaria. Ando pensando que não, que estavam era voltando para casa, para a tranquilidade familiar e cálida. Mesmo depois de terem o coração ardendo ao ouvir o companheiro de caminhada, ainda pensavam que tudo podia ser como antes. Imaginavam que podiam voltar ao lar, guardando apenas a lembrança de um sonho estranho. Podiam ser até generosos convidando para a ceia familiar aquele viandante que parecia ir para tão longe. Era bom estar em casa e poder ficar. Ele aceitou o convite, entrou, sentou-se à mesa. Deram-lhe a honra de pronunciar a bênção sobre os alimentos. Ele o fez e partiu o pão no rito costumeiro. E pronto. Tudo acabou, nada podia ser como antes. Era preciso deixar tudo novamente, o pão sobre a mesa, a porta aberta, e partir e voltar para os outros e anunciar que Ele estava vivo, e com eles levar a novidade para o mundo. O Evangelho não diz que eles tenham voltado para Emaús.
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QUANDO SERÁ? Jó, depois do muito viver, disse a Deus: "Só de ouvir falar te conhecia, mas agora te posso ver com meus olhos" (42,5). Foi só depois do muito viver, na prosperidade e na dor, rodeado de amigos ou no abandono total. Depois do muito viver intensamente. Continuo tentando, Senhor, conhecer-te, mas por enquanto apenas tenho as palavras que me dizem de ti. Tento compreender, mas acabo encontrando apenas outras palavras que passo adiante, querendo esconder que não sei. Até quando, Senhor? Até que decida viver intensamente, deixando a superfície e as aparências, vendo os fatos, as coisas, as pessoas e a mim mesmo como realmente somos, vendo em tudo o reflexo teu. Até que decida aceitar afinal que somente tu podes dar sentido a minha vida, e acreditar que de fato podes saciar minha fome e apagar minha sede. Até que decida por fim deixar que assumas o comando, que decidas, que me mostres teu amor a teu modo e quando quiseres. Porque isso é o importante, o como me amas e não tanto o como te amo, o que fazes por mim e não o que penso estar fazendo para tua maior glória. ____________________________________________________ 41
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HOMEM PARA O HOMEM Auschwitz, lugar que em momentos transforma o turista em peregrino silencioso. Nas alamedas traçadas com precisão militar, por entre escuros pavilhões, ouve-se apenas o ranger do cascalho branco misturado aos restos de ossos calcinados. Entre as coisas deixadas pelos que desapareceram nos fornos, ali está a boneca velha, encardida, trazida nos braços de uma menina qualquer, Débora talvez, ou Raquel. Rosto vazio de boneca a guardar ainda um grito silencioso de pavor. Mais um pavilhão, tendo à porta uma placa de bronze com a escrita em latim “Homem para o Homem”. Nos porões daquele bloco, em 1941, morreu o prisioneiro número 16670, com uma injeção de ácido que punha fim ao tormento de muitos dias de fome. Maximiliano Kolbe morreu por um companheiro que talvez mal conhecesse. A placa dá coragem para continuar a visita, descer ao porão e imaginar a morte dos que ali morreram, ver os fornos feitos à medida do corpo humano. É possível continuar sabendo que, apesar de tudo, sempre haverá quem seja capaz de ser homem para o homem. Com a certeza que resta a esperança da redenção pelo amor.
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ALEGRIA DO POVO Vibra o povo com as vitórias do seu time ou da seleção brasileira. Sofre tanto com as derrotas. E não faltam os sérios a dizer que há coisas mais importantes. Mas a razão está com o povo, que ainda sabe festejar a alegria, entusiasmar-se, cantar e gritar. Os problemas sérios não nos devem impedir de, humildemente, gozar a alegria da vitória, por mais relativa que seja. Se no gramado não está em jogo o destino nem a honra do Brasil, alguma coisa está em jogo, por pequena que seja. Alguma coisa que pode ter muitos nomes, apreciada pela humanidade desde os tempos mais antigos nas competições de todo o tipo. A razão está com o povo quando grita, aplaude, alegra-se, chora no vai-e-vem dos noventa minutos. Afinal, o importante na vida não é apenas trabalhar, economizar, pensar ou rezar. Diz a Bíblia que há tempo para tudo. Nossa vida seria menos vida se não soubéssemos ter tempo para gritar um gol. Não se pode criticar o povo que se une na torcida. Vamos pensar em tudo, vamos trabalhar por esta vida e pela outra, pelo céu e pela terra. No conjunto cristão da vida haverá sempre lugar para a alegria simples, popular e humilde de uma vitória.
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DO JEITO DAS FLORES Retomo a ideia do guru Arium: “Senhor, eu vos amo como as flores florescem”. As flores florescem para florescer. Assim também eu quero vos amar para vos amar, Senhor, com toda a naturalidade. Com meu suor deste dia, com meu esforço, com minhas palavras, com meu trabalho, mesmo quando meu pensamento não estiver precisamente em vós, eu quero estar, Senhor, amando. Quero estar traduzindo esse meu amor em obras. Por isso que é fácil dizer que vos amo e vos quero amar. Por isso que é difícil, Senhor, dizer com verdade que vos amo. Porque fico imaginando não sei que estranhas e heroicas formas de vos demonstrar amor. Porque fico imaginando que preciso ser perfeito para amar. Quando apenas quereis que eu viva e da vida faça meu canto de amor, no meu tom, no meu ritmo, no meu estilo. Quando nada quereis que faça por vós, porque não precisais. Mas que apenas me reconheça dependente e vos aceite como rumo para meu caminhar e sentido para meu viver. “Senhor, eu vos amo como as flores florescem”.
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MINHA PRECE FINAL Senhor, eu vos amo porque escutais meu grito na prece, e me atendeis se por vรณs eu chamo. Sentia-me preso em mil perigos, sem valia, estando certo que a vida era peso. Gritei: livrai-me, Senhor! Deus de bondade, piedoso e justo, os pobres guardai, os fracos salvai da sua fraqueza. Tranquilo estou porque o Senhor ouviu-me as preces e dos perigos jรก me livrou. (Relendo o Salmo 114) ____________________________________________________ 45
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Velho eremita a escrever a Ăşltima folha de seu papiro. Procura pela palavra definitiva, e descobre que pode apenas escrever a Ăşltima palavra. NĂŁo a definitiva.
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