tentei caminhar como faço há quatro anos: levei o mesmo caderno e um lápis (geralmente uso caneta, mas queria diferenciar os projetos). logo no início do trajeto pelo centro de florianópolis percebi que não conseguiria desenhar nada. tinha que seguir o grupo, não podia parar pelo tempo necessário. tirei algumas fotos, mas há alguns meses deixei meu celular cair (bom, deixo ele cair constantemente) e o vidro na frente da câmera rachou, o foco está estranho e as fotos ficam feias. tentei focar na experiência da caminhada em si. acabei conversando com os colegas que havia acabado de conhecer.
anotei ideias para projetos que poderiam ser feitos se eu voltasse a andar por lá, eu geralmente trabalho a partir da repetição (dias diferentes, horários diferentes, passantes diferentes - nem todos, quem ficou?- o que muda e o que permanece?).
no centro me interessaram as estruturas coloridas e ambulantes, as gambiarras de ganhapão. fotografei, mas gostaria de ter pintado ali na hora. teria levado muito tempo. fiz alguns desenhos depois, em casa, a partir das fotografias. primeiro em lápis e depois no computador. gravei um vídeo dos tecidos (?) bruxuleantes sob a ponte, restos da antiga estrutura. nascida e criada aqui, nunca tinha atravessado a ponte hercílio luz (nem a colombo sales a pé). tinha a sensação de que o mar lá embaixo estava me puxando e o vento queria que eu pulasse.
talvez a parte mais interessante dessas aulas tenha sido (além das referências de texto) observar a maneira como os vários colegas interagem com e produzem a partir das caminhadas. os que registram, os que coletam, os que desenvolvem grandes trabalhos depois de voltar para a casa/ateliê com alguns gravetinhos. a caminhada se encaixa em diferentes momentos dos processos - como catalisador de ideias, fonte de materiais ou a prática em si.
eu queria estar andando agora, em vez de escrevendo esse texto. lemos tanto sobre o caminhar como uma não-produção, como a prática estética em si, e mesmo assim me sinto obrigada a entregar algo visual e tangível. ando pensando muito sobre essa necessidade do registro da experiência, nos meus diários e cadernos (e na galeria do celular). não é uma distração? se eu não escrevo, não desenho, não fotografo, não posto, realmente aconteceu? gosto da repetição. encontrar beleza no cotidiano, no ignorado, exige um aguçamento do olhar. encontrar beleza em uma trilha da mata atlântica me parece um exercício de instagramização, me sinto menos presente no momento.
além do empecilho do tempo, há a questão do material. troquei o caderno de espiral por um caderno de brochura (é pior, ocupa mais espaço na superfície de apoio), ambos de tamanho A5. mas são uns trambolhos, principalmente pra carregar em uma trilha. ter que ficar tirando e colocando os materiais na mochila acaba desencorajando as anotações rápidas. testei um bloquinho e lápis levados na mão (as folhas se soltaram, a ponta quebrou). cheguei a um moleskine genérico com caneta bic guardados em uma pochete. por outro lado, essa portabilidade vem às custas da expansão - todo desenho precisa ser pequeno
(bom, isso tira um peso das costas, menos pressão. mas poxa, queria ter mais coisa pra mostrar, parece que pro desenho ser “digno” da parede ele precisa ser grande, ou uma pintura a óleo, precisa de alguma “nobreza” que a anotação não tem… se bem que não é só a questão da hierarquização das técnicas artísticas, mas também o tempo e dedicação que envolvem fazer algo grande, o impacto que isso tem, a abertura para entrar nos detalhes, a liberdade do traço).
na segunda saída, para o “dólmen da oração” (honestamente, acho que caímos num papo furado descomunal), resolvi anotar a quantidade de passos que eu dava - a cada 100, um risquinho no bloquinho. queria algum fio condutor pras caminhadas todas, algo que eu pudesse fazer no mato ou na cidade, uma proposta pra repetir e repetir independente do local que gerasse talvez um trabalho final coerente e curioso, comparando os resultados de um mesmo experimento nas diferentes saídas.
não deu certo. a contagem me obrigou a prestar atenção nos meus passos de uma maneira peculiar. quando eu era pequena e estava entediada eu contava, começando sempre do número no qual eu havia parado na vez anterior. acho que cheguei até 2 mil. mas claro que, sem anotar nada, devo ter contado a mesma centena várias vezes, ou pulado outra. percebi o ritmo da caminhada, que era interrompido a cada cem passos para abrir o bloquinho e fazer mais um risco. me senti meio boba. fazer trilha, especialmente quando se está subindo uma ladeira, é sobre pegar impulso, momentum, e a cada cem passos eu perdia o meu e precisava retomá-lo. e cruz credo, como estava quente.
quando chegamos no topo do morro me veio uma sensação de paz, de calma, sentindo a brisa e ouvindo o mar. os abutres se confundiam com os parapentes (“aí estão a cor e a genialidade humanas! as asas de plástico deslizando no céu”). o feitiço se quebrou quando recebi uma mensagem “urgente” da vizinha e tive que abrir o celular pra responder. tinha um homem tocando violão atrás da pedra. placas por todo lado com mensagens motivadoras ou proibitivas (boas energias sempre/ trilha particular - não entre!!). descobri na volta que dava pra chegar até lá por outro caminho, de graça. claro que aquilo tudo não podia ser propriedade privada de um cara.
pensei em fazer uma tipografia das placas (daria para conectar com os cartazes do centro e as lápides do cemitério). no fim a ponta do lápis quebrou e tive que manter a conta nos dedos (abaixa um a cada centena de passos dados) até que começaram a falar das estatísticas do primeiro turno e eu me perdi completamente.
fiz a trilha do caminho da gurita com vários amigos, da lagoa do peri até a cachoeira para o sertão do ribeirão para uma segunda cachoeira. não levei caderno, fomos conversando. quase não tirei o celular da mochila. vimos uma preá. um desses amigos, estudante de geografia, trazia um moleskine e uma caneta em sua pochete, e de vez em quando parava para anotar seus pensamentos e fazer pequenos desenhos. queria passar no alambique tão mencionado na sala de aula, mas começou a chover torrencialmente e o caminho de volta era longo. tivemos que atravessar duas cachoeiras embaixo da chuva, e eu morrendo de medo de uma tromba d’água.
para a trilha da costa, então, arranjei uma pochete, um moleskine e uma bic. passei a viagem da van pensando no que diabos ia anotar, resolvi ir pro lado da paisagem sonora. acho que ficou sem graça. talvez funcionaria melhor se eu estivesse parada e percebesse os sons ao longo do tempo, sem o fator da mudança de espaço. o que torna uma paisagem sonora interessante é o nível de detalhamento, e eu simplesmente não podia parar para escrever cada som mesmo ou ficaria muito pra trás. tive que focar nos grandes, acabou vazio demais. me encantei com as cores das casas e dos barcos, queria ter guache comigo (as fotos não capturam direito).
pipoqueira amolador de facas + cadeira de plástico + pochete com lantejoulas parapentes casas barcos caminhão de frutas carro de caldo de cana e suco natural anexo de água de coco flores de plástico
letreiros cartazes panfletos placas de madeira escritas à mão lápides
essa primavera contou com alguns dilúvios que me ilharam em casa. um caminhão tombou no morro da lagoa. onze goteiras se abriram no meu quarto. minha mãe pegou covid e então eu passei um tempo ilhada por outro motivo (estava com sintomas de gripe e demorou dias para sair o resultado - negativo!do teste).
pensei em maneiras de amarrar esses registros tão diferentes uns dos outros. algo como um painel interativo, gabinete de curiosidades, anotações cartográficas de diferentes expedições. fiz um site, mas não gostei muito do resultado, da maneira como ele se mexia ao mudar de página, fazendo o expectador perder suas referências. voltei ao formato do livro.
estava lendo manobras para espaços libertários e percebi que o último quarto era aqui perto, na direção oposta à qual eu sempre fui nas minhas andanças pelo bairro. já estava interessada em ir por ali, ver o que se esconde onde as vacas pastam no pé do morro. voltei à minha metodologia inicial (afinal, sozinha consigo). pensei num esquema pra conseguir pintar na rua (teria que testar, mas não tenho bagageiro na minha bicicleta). uma menina estava colhendo flores na grama em um enorme buquê.
percebi só depois da quarta casa com luzes pisca-pisca que não era uma coincidência, era dezembro mesmo.