Caderno de Direito Constitucional – 2006 Gilmar Ferreira Mendes
ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO
Direção Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Conselho Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz Desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Coordenador Científico do Módulo de Direito Constitucional Juiz Federal Jairo Gilberto Schäfer
Assessoria Isabel Cristina Lima Selau Direção de Secretaria Eliane Maria Salgado Assumpção
___________________________________________ CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL
Organização Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling Revisão Leonardo Schneider Maria Aparecida Corrêa de Barros Berthold Maria de Fátima de Goes Lanziotti Capa e Editoração Alberto Pietro Bigatti Arthur Baldazzare Costa Marcos André Rossi Victorazzi Rodrigo Meine
Apoio Seção de Reprografia e Encadernação
Contato: E-mail: emagis@trf4.gov.br Fone: (51) 3213-3041, 3213-3043 e 3213-3042 www.trf4.gov.br/emagis
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Caderno de Direito Constitucional – 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Apresentação
O Currículo Permanente criado pela Escola da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS - é um curso realizado em encontros mensais, voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes federais substitutos da 4ª Região, que atende ao disposto na Emenda Constitucional nº 45/2004. Tem por objetivo, entre outros, propiciar aos magistrados, além de uma atualização nas matérias enfocadas, melhor instrumentalidade para condução e solução das questões referentes aos casos concretos de sua jurisdição.
O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto desta Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender às necessidades dos participantes.
O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como artigos, jurisprudência selecionada e estudos de ilustres doutrinadores
brasileiros e
estrangeiros compilados pela EMAGIS e destina-se aos magistrados da 4ª Região, bem como a pesquisadores e público interessado em geral.
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Caderno de Direito Constitucional – 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Índice: Controle da Constitucionalidade Ministrante: Gilmar Mendes
Ficha Técnica..................................................................................................................... Apresentação......................................................................................................................
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Texto 1: “Controle de Constitucionalidade – A Evolução do Direito Constitucional Brasileiro e o Controle de Constitucionalidade da Lei” Autor: Gilmar Ferreira Mendes 1.1 Considerações Preliminares: a Constituição Imperial................................................. 1.2 O Controle de Constitucionalidade na Constituição de 1891....................................... 1.3 A Constituição de 1934 e o Controle de Constitucionalidade....................................... 1.4 O Controle de Constitucionalidade na Constituição de 1937....................................... 1.5 A Constituição de 1946 e o Sistema de Controle de Constitucionalidade................... 1.5.1 A Representação Interventiva............................................................................... 1.5.2 A Emenda nº 16, de 1965, e o Controle de Constitucionalidade Abstrato............ 1.6 O Controle de Constitucionalidade na Constituição de 1967/1969.............................. 1.7 O Controle de Constitucionalidade na Constituição de 1988....................................... 1.8 A Emenda Constitucional nº 3 de 1993: A Ação Declaratória de Constitucionalidade. 1.9 A Lei nº 9.868, de 10.11.99, e a Lei nº 9.882, de 3.12.99........................................... 1.10 Conclusão...................................................................................................................
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Texto 2: “Análise do Direito Comparado e Nacional” Autor: Gilmar Ferreira Mendes 1.1 As técnicas de controle de constitucionalidade no direito comparado: os Sistemas Norte-Americano, Austríaco e Alemão............................................................................... 1.1.1 Aspectos formais do controle de constitucionalidade no direito norte-americano. 1.1.2 Aspectos formais do controle de constitucionalidade no direito austríaco............. 1.1.2.1 Introdução....................................................................................................... 1.1.2.2. Objeto, parâmetro de controle........................................................................ 1.1.2.2.1. Objeto do controle....................................................................................... 1.1.2.2.2. Omissão inconstitucional............................................................................ 1.1.2.2.3. Parâmetro do controle de constitucionalidade............................................. 1.1.3. O processo de controle de constitucionalidade na República Federal da Alemanha............................................................................................................... 1.1.4. Nota conclusiva...................................................................................................... 1.2. Evolução do Direito Constitucional Brasileiro e o controle de constitucionalidade da lei............................................................................................................................ 1.2.1. Introdução............................................................................................................... 1.2.2. Considerações preliminares: a Constituição Imperial............................................. 1.2.3. O controle de constitucionalidade na Constituição de 1891.................................. 1.2.4. A Constituição de 1934 e o controle de constitucionalidade.................................. 1.2.5. O controle de constitucionalidade na Constituição de 1937.................................. 1.2.6. A Constituição de 1946 e o sistema de controle de constitucionalidade............... 1.2.6.1. A representação interventiva......................................................................... 1.2.6.2. A Emenda nº 16, de 1965, e o controle de constitucionalidade abstrato.......
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1.2.6.3. Kelsen e o controle de constitucionalidade do direito brasileiro..................... 1.2.7 O controle de constitucionalidade na Constituição de 1967/69.............................. 1.2.7.1 Considerações sobre o papel do Procurador-Geral da República no controle abstrato de normas sob a Constituição de 1967/69: proposta de releitura... (a) Introdução............................................................................................................. (b) O caráter dúplice ou ambivalente da representação de inconstitucionalidade...... (c) Conclusão............................................................................................................... 1.2.7.2 O Significado do controle abstrato de normas sob o império da Constituição de 1946 (EC n. 16, de 1965) e da Constituição de 1967/69........................................ 1.2.8. O controle de constitucionalidade na Constituição de 1988.................................. (a) Considerações Preliminares.................................................................................... (b) A criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade........................................... (c) Alternativas para o sistema difuso............................................................................
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Texto 3: “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental” Autor: Gilmar Ferreira Mendes 1. Introdução...................................................................................................................... 2. Legitimidade para argüir o descumprimento de preceito fundamental........................... 3. Objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental................................. 4. Parâmetro de controle.................................................................................................... 5. Procedimento.................................................................................................................. 6. Medida cautelar............................................................................................................. 7. As decisões do Supremo Tribunal Federal na argüição de descumprimento................
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Texto 4: “Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade” Autor: Gilmar Ferreira Mendes 1. Introdução: formação histórica do controle abstrato de normas..................................... 2. Legitimidade................................................................................................................... 3. Objeto............................................................................................................................ 4. Parâmetro de Controle................................................................................................... 5. Procedimento.................................................................................................................. 6. Medida cautelar............................................................................................................. 7. As decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas.................. 8. Efeitos atribuíveis à declaração de inconstitucionalidade.............................................. 9. Segurança e estabilidade das decisões em controle abstrato de constitucionalidade...
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Texto 5: “A Representação Interventiva” Autor: Gilmar Ferreira Mendes 1. Introdução...................................................................................................................... 2. Pressupostos de Admissibilidade da Representação Interventiva................................ 2.1. Considerações Preliminares..................................................................................... 2.2. Legitimação ativa ad causam.................................................................................... 2.3. Objeto da controvérsia ............................................................................................. 2.3.1. Considerações preliminares................................................................................. 2.3.2. Representação interventiva e atos concretos .................................................... 2.3.3. Representação interventiva e recusa à execução de lei federal ......................... 2.4. Parâmetro de Controle ............................................................................................. 3. Procedimento ................................................................................................................
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3.1. Considerações gerais .............................................................................................. 3.2. Procedimento da representação interventiva segundo a Lei nº 4337/64 e o Regimento Interno do STF.............................................................................................. 3.2.1. Cautelar na representação interventiva ............................................................. 3.2.2. Procedimento da representação interventiva: necessidade de nova lei ............. 4. Decisão ......................................................................................................................... 5. À guisa de conclusão...................................................................................................... Apêndice Único – Projeto de Lei sobre a Representação Interventiva..............................
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Texto 6: “As decisões do Supremo Tribunal Federal em controle abstrato de normas ” in “Comentários aos capítulos IV e V da obra - Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei nº 9.868/99.” Autor: Gilmar Ferreira Mendes 1.1. As decisões do Supremo Tribunal Federal no Controle Abstrato de Normas (arts. 22 a 26)............................................................................................................................... 1.1.1. Introdução............................................................................................................ 1.1.1.1 Comunicação à autoridade responsável pela edição do ato e caráter irrecorrível da decisão .............................................................................................. 1.1.1.2 Decisões de mérito em sede de controle abstrato de normas ..................... 1.1.2 Extensão da declaração de nulidade................................................................... 1.1.2.1. Declaração de nulidade total como expressão de unidade técnicolegislativa................................................................................................................... 1.1.2.2. Declaração de nulidade total........................................................................ 1.1.2.3. Declaração de nulidade parcial................................................................... 1.1.2.4. Declaração parcial de nulidade sem redução de texto................................. 1.1.3. A interpretação conforme à Constituição............................................................. 1.1.3.1. Introdução.................................................................................................... 1.1.3.2. Admissibilidade e limites da interpretação conforme à Constituição............ 1.1.3.3. Qualificação da interpretação conforme à Constituição............................... 1.1.4.Declaração de nulidade e prazo para impugnação do ato concreto..................... 1.1.5. A declaração de constitucionalidade das leis...................................................... 1.1.5.1. A declaração de constitucionalidade e a “lei ainda constitucional”............. 1. 2. Efeitos da decisão no controle abstrato..................................................................... 1.2.1.Histórico................................................................................................................ 1.2.2. A questão dos efeitos da decisão no direito comparado..................................... 1.2.2.1. A questão no direito americano................................................................... 1.2.2.2. A questão no direito austríaco...................................................................... 1.2.2.3. A questão no direito espanhol...................................................................... 1.2.2.4. A questão no direito português..................................................................... 1.2.2.5. A questão no direito alemão......................................................................... 1.2.2.5.1. Apelo ao legislador .................................................................................. 1.2.2.5.2. Declaração de Inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade............ 1.2.2.5.3. A exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia e outras ofensas ao princípio da igualdade.................................................................. 1.2.2.5.4. A omissão legislativa................................................................................. 1.2.2.5.5. A liberdade de conformação do legislador................................................ 1.2.2.5.6. O argumento sobre as conseqüências jurídicas da declaração de nulidade..................................................................................................................... 1.2.2.6. A questão no direito italiano, no direito comunitário e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos................................................................................................. 1.2.2.7. Notas conclusivas........................................................................................
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1.3. Efeitos da decisão no controle abstrato no direito brasileiro....................................... 1.3.1. Considerações preliminares sobre os efeitos da decisão no sistema anterior ao advento da Constituição de 1988.............................................................................. 1.3.2.A declaração de inconstitucionalidade na representação de inconstitucionalidade in abstracto.................................................................................. 1.3.3. Notas conclusivas................................................................................................ 1.4. A controvérsia sob a Constituição de 1988................................................................ 1.4.1. Da Constitucionalidade do art. 27 da Lei 9.868/99.............................................. 1.4.1.1. Considerações preliminares......................................................................... 1.4.1.2. A inconstitucionalidade da omissão parcial e a inidoneidade da declaração da nulidade............................................................................................. 1.4.1.3. As situações imperfeitas e a “lei ainda constitucional”: fundamento de segurança jurídica.................................................................................................... 1.4.2. Repercussão da decisão proferida em ADIn sobre casos concretos e admissão da limitação de efeitos no sistema difuso...................................................... 1.4.3. As decisões com base no art. 27 da Lei 9868.................................................... 1.5. Segurança e estabilidade das decisões (art. 28)......................................................... 1.5.1. Eficácia erga omnes............................................................................................. 1.5.2.Limites objetivos da eficácia erga omnes: a declaração de constitucionalidade da norma e a reapreciação da questão pelo Supremo Tribunal.................................... 1.5.3. Eficácia erga omnes na declaração de inconstitucionalidade proferida em ADC ou em ADIn.................................................................................................................... 1.5.4. A eficácia erga omnes da declaração de nulidade e os atos singulares praticados com base no ato normativo declarado inconstitucional................................ 1.5.5. A eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade e a superveniência de lei de teor idêntico............................................................................ 1.5.6. Conceito de efeito vinculante............................................................................... 1.5.6.1. Limites objetivos do efeito vinculante.......................................................... 1.5.6.2. Limites subjetivos........................................................................................ 1.5.6.3. Efeito vinculante de decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade................................................................................................. 1.5.6.4. A eficácia erga omnes e efeito vinculante das decisões deferitórias de cautelar em ADIN e ADC........................................................................................... 1.5.6.5. O efeito vinculante da decisão indeferitória da cautelar em ADIN?............. 1.6 Abertura procedimental (art. 29 — art. 482 do CPC)................................................... 1.6.1. Considerações gerais.......................................................................................... 1.6.2.Recurso extraordinário nos juizados especiais e abertura procedimental............ 1.7. O Distrito Federal e o controle abstrato de normas (art. 30 — alteração da Lei nº 8.185, de 1991)................................................................................................................... 1.7.1. A instituição de uma ação direta no âmbito do Distrito Federal...........................
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Jurisprudência Acórdãos Pendentes de Publicação: ADI 2548/PR...................................................................................................................... ADI 2777/SP, Sepúlveda Pertence, Informativo 349.......................................................... ADPF 54 – Questão de Ordem em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54-8 Distrito Federal..................................................................................... ADPF 76/TO, Gilmar Mendes.............................................................................................
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Bibliografia Referencial....................................................................................................... 425
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CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
1. A EVOLUÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI1
1.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL A Constituição de 1824 não contemplava qualquer sistema assemelhado aos modelos hodiernos de controle de constitucionalidade. A influência francesa ensejou que se outorgasse ao Poder Legislativo a atribuição de “fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las”, bem como “velar na guarda da Constituição” (art. 15, ns. 8.º e 9.º). Nessa linha de raciocínio, o insigne Pimenta Bueno lecionava, com segurança, que o conteúdo da lei somente poderia ser definido pelo órgão legiferante: “Só o poder que faz a lei é o único competente para declarar por via de autoridade ou por disposição geral obrigatória o pensamento, o preceito dela. Só ele e exclusivamente ele é quem tem o direito de interpretar o seu próprio ato, suas próprias vistas, sua vontade e seus fins. Nenhum outro poder tem o direito de interpretar por igual modo, já porque nenhuma lei lhe deu essa faculdade, já porque seria absurda a que lhe desse. Primeiramente é visível que nenhum outro poder é o depositário real da vontade e inteligência do legislador. Pela necessidade de aplicar a lei deve o executor ou juiz, e por estudo pode o jurisconsulto formar sua opinião a respeito da inteligência dela, mas querer que essa opinião seja infalível e obrigatória, que seja regra geral, seria dizer que possuía a faculdade de adivinhar qual a vontade e o pensamento do legislador, que não podia errar, que era o possuidor dessa mesma inteligência e vontade; e isso seria certamente irrisório. Depois disso é também óbvio que o poder a quem fosse dada ou usurpasse uma tal faculdade predominaria desde logo sobre o legislador, inutilizaria ou alteraria como quisesse as atribuições deste ou disposições da lei, e seria o verdadeiro legislador. Basta refletir por um pouco para reconhecer esta verdade, e ver que interpretar a lei por disposição obrigatória, ou por via de autoridade, é não só fazer a lei, mas é ainda mais que isso, porque é predominar sobre ela”.2 Era a consagração de dogma da soberania do Parlamento. Por outro lado, a instituição do Poder Moderador assegurava ao Chefe de Estado o elevado mister de velar para “a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes” (art. 98). “É a faculdade (...) — dizia Pimenta Bueno — de fazer com que cada um deles se conserve em sua órbita, e concorra harmoniosamente como outros para o fim social, o bem-estar nacional: é quem mantém seu equilíbrio, impede seus abusos, conserva-os na direção de sua alta missão (...)”.3 Não havia lugar, pois, nesse sistema, para o mais incipiente modelo de controle judicial de constitucionalidade.4
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1.2 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1891 O regime republicano inaugura uma nova concepção. A influência do Direito norte-americano sobre personalidades marcantes, como a de Rui Barbosa, parece ter sido decisiva para a consolidação do modelo difuso, consagrado já na chamada Constituição Provisória de 1890 (art. 58, § 1.º, a e b). O Decreto n. 848, de 11.10.1890, estabeleceu, no seu art. 3.º, que, na guarda e aplicação da Constituição e das leis nacionais, a magistratura federal só intervirá em espécie e por provocação da parte. “Esse dispositivo (...) — afirma Agrícola Barbi — consagra o sistema de controle por via de exceção, ao determinar que a intervenção da magistratura só se fizesse em espécie e por provocação de parte”.5 Estabelecia-se assim, o julgamento incidental da inconstitucionalidade, mediante provocação dos litigantes. E tal qual prescrito na Constituição Provisória, o art. 9.º, parágrafo único, a e b, do Decreto n. 848, de 1890, assentava o controle de constitucionalidade das leis estaduais ou federais. A Constituição de 1891 incorporou essas disposições, reconhecendo a competência do Supremo Tribunal Federal para rever as sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, quando se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do Tribunal fosse contra ela, ou quando se contestasse a validade de leis ou atos federais, em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal considerasse válidos esses atos ou leis impugnadas (art. 59, § 1.º, a e b). Não obstante a clareza dos preceitos, imperou alguma perplexidade diante da inovação. E o gênio de Rui destacou, com peculiar proficiência, a amplitude do instituto adotado pelo regime republicano, como se vê na seguinte passagem de seu magnífico trabalho elaborado em 1893: “O único lance da Constituição americana, onde se estriba ilativamente o juízo, que lhe atribui essa intenção, é o do art. III, seç. 2.ª, cujo teor reza assim: ‘O poder judiciário estenderse-á a todas as causas, de direito e eqüidade, que nasceram desta Constituição, ou das leis dos Estados Unidos’. Não se diz aí que os tribunais sentenciarão sobre a validade, ou invalidade, das leis. Apenas se estatui que conhecerão das causas regidas pela Constituição, como conformes ou contrárias a ela. Muito mais concludente é a Constituição brasileira. Nela não só se prescreve que: ‘Compete aos juízes ou tribunais federais processar e julgar as causas, em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal’ (art. 60, a); como, ainda, que: ‘Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal, quando se questionar sobre a validade de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contrária (art. 59, § 1.º, a)’. A redação é claríssima. Nela se reconhece, não só a competência das justiças da União, como a das justiças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição. Somente se estabelece, a favor das leis federais, a garantia de que, sendo contrária à subsistência delas a decisão do tribunal do Estado, o feito pode passar, por via de recurso, para o Supremo Tribunal Federal. Este ou revogará a sentença, por não procederem as razões de nulidade, ou a confirmará pelo motivo oposto. Mas, numa ou noutra hipótese, o princípio fundamental é a autoridade reconhecida expressamente no texto constitucional, a todos os tribunais, federais, ou locais, de discutir a constitucionalidade das leis da União, e aplicá-las, ou desaplicá-las, segundo esse critério. É o que se dá, por efeito do espírito do sistema, nos Estados Unidos, onde a letra constitucional, diversamente do que ocorre entre nós, é muda a este propósito”.6
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes A Lei de n. 221, de 20.11.1894, veio a explicitar, ainda mais, o sistema judicial de controle de constitucionalidade, consagrando no art. 13, § 10, a seguinte cláusula: “Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição”. Não havia mais dúvida quanto ao poder outorgado aos órgãos jurisdicionais para exercer o controle de constitucionalidade. A reforma constitucional de 1926 procedeu a algumas alterações, sem modificar, no entanto, a substância. Consolidava-se, assim, o amplo sistema de controle difuso de constitucionalidade do Direito brasileiro. Convém observar que era inequívoca a consciência de que o controle de constitucionalidade não se havia de fazer in abstracto. “Os tribunais — dizia Rui — não intervêm na elaboração da lei, nem na sua aplicação geral. Não são órgãos consultivos nem para o legislador, nem para a administração (...)”.7 E, sintetizava, ressaltando que a judicial review “é um poder de hermenêutica, e não um poder de legislação”.8 1.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1934 E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE A Constituição de 1934 introduziu profundas e significativas alterações no nosso sistema de controle de constitucionalidade. A par de manter, no art. 76, III, b e c, as disposições contidas na Constituição de 1891, o constituinte determinou que a declaração de inconstitucionalidade somente poderia ser realizada pela maioria da totalidade de membros dos tribunais. Evitava-se a insegurança jurídica decorrente das contínuas flutuações de entendimento nos tribunais (art. 179).9 Por outro lado, a Constituição consagrava a competência do Senado Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”, emprestando efeito erga omnes à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (arts. 91, IV, e 96).10 Talvez a mais fecunda e inovadora alteração introduzida pelo Texto Magno de 1934 se refira à “declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal”, tal como a denominou Bandeira de Mello,11 isto é, a representação interventiva, confiada ao Procurador-Geral da República, nas hipóteses de ofensa aos princípios consagrados no art. 7.º, I, a a h, da Constituição. Cuidava-se de fórmula peculiar de composição judicial dos conflitos federativos, que condicionava a eficácia da lei interventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, § 3.º), à declaração de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal (art. 12, § 2.º). Assinale-se, por oportuno, que, na Assembléia Constituinte, o Deputado Pereira Lyra apresentou emenda destinada a substituir, no art. 12, § 2.o, a expressão “tomar conhecimento da lei que a decretar e lhe declarar a constitucionalidade” por “tomar conhecimento da lei local argüida de infringente desta Constituição e lhe declarar a inconstitucionalidade”.12 Esse controle judicial configurava, segundo Pedro Calmon, um sucedâneo do direito de veto, atribuindo-se à Suprema Corte o poder de declarar a constitucionalidade da lei de intervenção e afirmar, ipso facto, a inconstitucionalidade da lei ou ato estadual.13 Advirta-se, porém, que não se tratava de formulação de um juízo político, exclusivo do Poder Legislativo, mas de exame puramente jurídico.14 Não obstante a breve vigência do Texto Magno, ceifado pelas vicissitudes políticas que marcaram aquele momento histórico, não se pode olvidar o transcendental significado desse sistema para todo o desenvolvimento do controle de constitucionalidade mediante ação direta no Direito brasileiro.15 Não se deve omitir, ainda, que a Constituição de 1934 continha expressa ressalva à
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes judicialização das questões políticas, dispondo o art. 68 que “é vedado ao Poder Judiciário conhecer das questões exclusivamente políticas”. Manifesta-se digna de menção a competência atribuída ao Senado Federal para “examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, e suspender a execução dos dispositivos ilegais” (art. 91, II ). Em escólio ao art. 91, II, da Constituição de 1934, Pontes de Miranda destacava que “tal atribuição outorgava ao Senado Federal um pouco função de Alta Corte Constitucional (...)”.16 A disposição não foi incorporada, todavia, pelas Constituições que sucederam ao Texto Magno de 1934. Finalmente, afigura-se relevante observar que, na Constituinte de 1934, foi apresentado projeto de instituição de uma Corte Constitucional, inspirada no modelo austríaco. Na fundamentação da proposta referia-se diretamente ao Referat de Kelsen sobre a essência e o desenvolvimento da jurisdição constitucional (Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit).17 1.4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1937 A Carta de 1937 traduz um inequívoco retrocesso no sistema de controle de constitucionalidade. Embora não tenha introduzido qualquer modificação no modelo difuso de controle (art. 101, III, b e c), preservando-se, inclusive, a exigência de quorum especial para a declaração de inconstitucionalidade (art. 96), o constituinte rompeu com a tradição jurídica brasileira, consagrando, no art. 96, parágrafo único, princípio segundo o qual, no caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bemestar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderia o Chefe do Executivo submetê-la novamente ao Parlamento. Confirmada a validade da lei por dois terços de votos em cada uma das Câmaras tornava-se insubsistente a decisão do Tribunal. Instituía-se, assim, uma peculiar modalidade de revisão constitucional, pois, como observado por Celso Bastos, a lei confirmada passa a ter, na verdade, a força de uma emenda à Constituição.18 É bem verdade que o novo instituto não colheu manifestações unânimes de repulsa. Cândido Motta Filho, por exemplo, saudava a inovação, ressaltando que: “A subordinação do julgado sobre a inconstitucionalidade da lei à deliberação do Parlamento coloca o problema da elaboração democrática da vida legislativa em seus verdadeiros termos, impedindo, em nosso meio, a continuação de um preceito artificioso, sem realidade histórica para nós e que, hoje, os próprios americanos, por muitos de seus representantes doutíssimos, reconhecem despido de caráter de universalidade e só explicável em países que não possuem o sentido orgânico do direito administrativo. Leone, em sua Teoria de la política, mostra com surpreendente clareza, como a tendência para controlar a constitucionalidade das leis é um campo aberto para a política, porque a Constituição, em si mesma, é uma lei sui generis, de feição nitidamente política, que distribui poderes e competências fundamentais”.19 No mesmo sentido, pronunciaram-se Francisco Campos,20 Alfredo Buzaid21 e Genésio de Almeida Moura.22 Impende assinalar que, do ponto de vista doutrinário, a inovação parecia despida de significado, uma vez que, como assinalou Castro Nunes, “podendo ser emendada a Constituição pelo voto da maioria nas duas casas do Parlamento (art. 174), estaria ao alcance deste elidir, por emenda constitucional, votada como qualquer lei ordinária, a controvérsia sobre a lei que se houvesse por indispensável”.23 Mas, em verdade, buscava-se, a um só tempo, “validar a lei e cassar os julgados”.24
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Todavia, quando em 1939 o Presidente Getúlio Vargas editou o Decreto-lei n. 1.564, confirmando textos de lei declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a reação nos meios judiciários foi intensa.25 Considerou Lúcio Bittencourt que as críticas ao ato presidencial não tinham procedência, porque, no seu entendimento, o Presidente nada mais fizera do que “cumprir, como era de seu dever, o prescrito no art. 96 da Carta Constitucional”.26 Concede, porém, o insigne publicista que a celeuma suscitada nas oportunidades em que atos judicias foram desautorizados, entre nós, “está a demonstrar como se encontra arraigado em nosso pensamento jurídico o princípio que confere à declaração judicial caráter incontrastável, em relação ao caso concreto”.27 Por outro lado, cumpre notar que a Carta de 1937 vedou, expressamente, ao Judiciário conhecer das questões exclusivamente políticas (art. 94), e o mandado de segurança perdeu a qualidade de garantia constitucional, passando a ser disciplinado pela legislação ordinária. E o Código de Processo Civil, de 1939, excluiu da apreciação judicial, na via mandamental, os atos do Presidente da República, dos ministros de Estado, dos governadores e interventores dos Estados (art. 319). 1.5
A CONSTITUIÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE
1946
E
O
SISTEMA
DE
CONTROLE
DE
O Texto Magno de 1946 restaura a tradição do controle judicial no Direito brasileiro. A par da competência de julgar os recursos ordinários (art. 101, II, a, b e c), disciplinou-se a apreciação dos recursos extraordinários: “a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; e c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato”. Preservou-se a exigência da maioria absoluta dos membros do Tribunal para a eficácia da decisão declaratória de inconstitucionalidade (art. 200). Manteve-se, também, a atribuição do Senado Federal para suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal (art. 64). 1.5.1 A Representação Interventiva A Constituição de 1946 emprestou nova conformação à ação direta de inconstitucionalidade, introduzida, inicialmente, no Texto Magno de 1934. Atribuiu-se ao Procurador-Geral da República a titularidade da representação de inconstitucionalidade, para os efeitos de intervenção federal, nos casos de violação dos seguintes princípios: a) forma republicana representativa; b) independência e harmonia entre os poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais correspondentes; d) proibição da reeleição de governadores e prefeitos para o período imediato; e) autonomia municipal; f) prestação de contas da administração; g) garantias do Poder Judiciário (art. 8.º, parágrafo único, c/c o art. 7.º, VII). A intervenção federal subordinava-se, nesse caso, à declaração de inconstitucionalidade do ato pelo Supremo Tribunal Federal (art. 8.º, parágrafo único). Deve-se ressaltar que, embora o constituinte tenha outorgado a titularidade da ação direta ao Procurador-Geral da República, a disciplina da chamada representação interventiva configurava, já na Constituição de 1934, uma peculiar modalidade de composição de conflito entre a União e o Estado. Cuidava-se de aferir eventual violação de deveres constitucionalmente impostos ao ente federado. E o poder atribuído ao Procurador-Geral da República, que, na Constituição de 1946, exercia a função de chefe do Ministério Público Federal — a quem competia a defesa dos interesses da União (art. 126) —, deve ser considerado, assim, uma simples representação processual.28 A argüição de inconstitucionalidade direta teve ampla utilização no regime constitucional instituído em 1946. A primeira ação direta, formulada pelo Procurador-Geral da República, na qual
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes se argüía a inconstitucionalidade de disposições de índole parlamentarista contidas na Constituição do Ceará, tomou o n. 93.29 A denominação emprestada ao novo instituto — representação — segundo esclarece Themístocles Cavalcanti, se deveu a uma escolha entre a reclamação e a representação, “processos conhecidos pelo Supremo Tribunal Federal”.30 A análise do sentido de cada um teria conduzido à escolha do termo representação, “já porque tinha de se originar de uma representação feita ao Procurador-Geral, já porque a função deste era o seu encaminhamento ao Tribunal, com o seu parecer”.31 A ausência inicial de regras processuais permitiu que o Supremo Tribunal Federal desenvolvesse os mecanismos procedimentais que viriam a ser consolidados, posteriormente, pela legislação processual e pela práxis da Corte.32 E, por isso, colocaram-se, de plano, questões relativas à forma da argüição e à sua própria caracterização processual. Questionava-se, igualmente, sobre a função do Procurador-Geral da República e sobre os limites constitucionais da argüição. Na Rp. 94, que argüia a inconstitucionalidade dos preceitos consagradores do regime parlamentarista na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, indagou-se sobre a necessidade de se formular requerimento ao Procurador-Geral. E esse entendimento foi acolhido, tendo o chefe do Ministério Público Federal solicitado “que a medida fosse provocada, o que foi feito através de pedido devidamente justificado”.33 Na opinião do insigne publicista, que exercia o cargo de Procurador-Geral da República, a argüição de inconstitucionalidade não poderia ser arquivada, mas, ao revés, deveria ser submetida ao Supremo Tribunal, ainda que com parecer contrário do Ministério Público.34 Essa orientação tornou-se ainda mais evidente na Rp. 95 (Rel. Min. Orozimbo Nonato), na qual o Procurador-Geral da República manifestou-se pela constitucionalidade do preceito impugnado, justificando, no entanto, a propositura da ação, pelas seguintes razões: “Não tem esta Procuradoria Geral nenhuma dúvida em opinar a respeito, reafirmando conceitos já emitidos em outro parecer, no sentido de prestigiar o texto votado pelas Constituintes estaduais, cuja validade se presume, quando não colida com princípios fundamentais e expressos na Constituição Federal. Esta colisão não se verifica, a meu ver, na hipótese, porquanto a norma impugnada nada mais fez do que concretizar o princípio da hierarquia dos poderes no chamamento ao exercício do Poder Executivo. Na Constituição Federal, também é o Presidente da Câmara o imediato na substituição do Presidente e Vice-Presidente da República, e esta é uma tradição do nosso direito constitucional. Pouco importa que o poder não esteja ainda constituído porque o mesmo princípio se aplica a todos os casos de vaga. Subsiste, entretanto, a impugnação ao preceito invocado e basta esta controvérsia para que ‘o ato argüido de inconstitucionalidade’ seja submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal. E a dúvida é de tanto maior relevo quanto é o próprio Poder Executivo quem vacila na aplicação do texto constitucional, no momento em que se integra o Estado na plenitude de sua autonomia política. Grave é a responsabilidade do Governo diante da contingência de pôr termo à intervenção no Estado, entregando o Poder Executivo, não ao seu detentor eleito pelo povo mas a um representante eventual eleito pela Assembléia. Cumpre, por isso mesmo, o Procurador-Geral da República, um dever imposto não só pela alta consideração que merece o Aviso do Exm.º Sr. Ministro da Justiça, mas ainda pelos altos propósitos que o inspiram trazendo questão de tanta relevância ao conhecimento deste E. Tribunal, esperando que este se pronuncie sobre a legitimidade do art. 2.º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição do Estado diante da Constituição Federal, bem como
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes sobre a constitucionalidade da intervenção federal depois de promulgada a Constituição Federal. Requer, por isso, a Vossa Excelência que distribuída a presente como reclamação, seja a mesma processada como de direito”.35 O Supremo Tribunal Federal ressaltou que não se tratava de simples consulta, mas de “exposição de um conflito de natureza constitucional, elementarmente constitucional, não ocultando a forma algo dubitativa das comunicações a ocorrência do tumulto (...)”.36 E, concluiu, a final, pela constitucionalidade do art. 2.º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de Pernambuco.37 Desde o início, firmou-se no Supremo Tribunal Federal a orientação de que se cuidava de uma controvérsia de índole constitucional. O Poder Judiciário não se limitava a opinar. A sua decisão configurava “um aresto, um acórdão”, que punha “fim à controvérsia como árbitro final do contencioso da inconstitucionalidade”.38 A propósito, vale registrar a seguinte passagem do voto proferido por Castro Nunes, na Rp. 94: “Consiste a intervenção, nas hipóteses do n. VII, na suspensão, importa dizer, na decretação pelo Congresso da não-vigência do ato legislativo. São duas atribuições distintas, de índole diversa, mas articuladas: a decisão do Supremo Tribunal situa-se no terreno jurídico; a do Congresso, no plano político, mas a título de sanção daquela. Vem aqui, a propósito, esclarecer que, nos termos do assento constitucional e dos motivos de sua inspiração, o Supremo Tribunal não é provocado como órgão meramente consultivo, o que contraviria à índole do Judiciário; não se limita a opinar, decide, sua decisão é um aresto, um acórdão; põe fim à controvérsia como árbitro final do contencioso da inconstitucionalidade. É nessa função de árbitro supremo que ele intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deliberante do poder estadual. Daí resulta que, declarada a inconstitucionalidade, a intervenção sancionadora é uma decorrência do julgado”.39 O Supremo Tribunal Federal exercia, pois, a função de “árbitro final do contencioso da inconstitucionalidade”. Não se tratava, porém, de afastar, simplesmente, a aplicação da lei inconstitucional. A pronúncia da inconstitucionalidade, nesse processo, tinha dimensão diferenciada, como se pode ler no magnífico voto de Castro Nunes: “Atribuição nova, que o Supremo Tribunal é chamado a exercer pela primeira vez e cuja eficácia está confiada, pela Constituição, em primeira mão, ao patriotismo do próprio legislador estadual no cumprir, de pronto, a decisão e, se necessário, ao Congresso Nacional, na compreensão esclarecida da sua função coordenada com a do Tribunal, não será inútil o exame desses aspectos, visando delimitar a extensão, a executoriedade e a conclusividade do julgado. Na declaração em espécie, o Judiciário arreda a lei, decide o caso por inaplicação dela, e executa, ele mesmo, o seu aresto. Trata-se, aqui, porém, de inconstitucionalidade em tese, e nisso consiste a inovação desconhecida entre nós na prática judicial, porquanto até então não permitida pela Constituição. Em tais casos a inconstitucionalidade declarada não se resolve na inaplicação da lei ao caso
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ou no julgamento do direito questionado por abstração do texto legal comprometido; resolvese por uma fórmula legislativa ou quase legislativa que vem a ser a não-vigência, virtualmente decretada, de uma dada lei. Nos julgamentos em espécie, o Tribunal não anula nem suspende a lei, que subsiste, vige e continuará a ser aplicada até que, como, entre nós, estabelece a Constituição, o Senado exercite a atribuição do art. 64. Na declaração em tese, a suspensão redunda na ab-rogação da lei ou na derrogação dos dispositivos alcançados, não cabendo ao órgão legiferante censurado senão a atribuição meramente formal de modificá-la ou regê-la, segundo as diretivas do prejulgado; é uma inconstitucionalidade declarada erga omnes, e não somente entre as partes; a lei não foi arredada apenas em concreto; foi cessada para todos os efeitos”.40
Com essa colocação, o eminente jurista e magistrado logrou fixar princípios do próprio controle abstrato de normas, que viria a ser introduzido, entre nós, pela Emenda n. 16, de 1965. Os limites constitucionais da ação direta também mereceram a precisa reflexão de Castro Nunes. Na Rp. 94, enfatizou-se o caráter excepcional desse instrumento. “Outro aspecto, e condizente com a atitude mental do intérprete, em se tratando de intervenção — ensinava — é o relativo ao caráter excepcional dessa medida, pressuposta neste regímen a autonomia constituinte, legislativa e administrativa dos Estados-membros, e, portanto, a preservação dessa autonomia ante o risco de ser elidida pelos Poderes da União”.41 E Castro Nunes aduzia que a enumeração contida no art. 7.º, VII, da Constituição de 1946, “é taxativa, é limitativa, é restritiva e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal Federal”.42 Na Rp. 95, o tema voltou a ser apreciado, tendo pontificado, uma vez mais, o magistério de Castro Nunes:
“Devo dizer ao Tribunal que considero a atribuição hoje conferida ao Supremo Tribunal excepcionalíssima, só quando for possível entroncar o caso trazido ao nosso conhecimento a algum dos princípios enumerados no art. 7.º, n. 7, será possível conhecer da argüição. Não basta ser levantada uma dúvida constitucional, não basta que exista uma controvérsia constitucional. Se não for possível entroncá-la com um dos princípios enumerados, penso que o Tribunal deverá abster-se de qualquer deliberação. Nesse sentido, aliás, foi o voto do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que salientou também esse aspecto, igualmente ressaltado pelo eminente Sr. Ministro Relator, em seu voto. No caso de dúvida, ou quando duvidosa ou remota aquela articulação, o Tribunal não deverá conhecer da representação que poderia transformar em expediente de rotina ou meio de consulta do Governo em todos os casos em que lhe conviesse provocar uma manifestação do Supremo Tribunal. Aliás o caráter excepcional da atribuição decorre da sanção mesma, que é a intervenção”.43 Assentaram-se, assim, as linhas fundamentais da representação interventiva. A Lei n. 2.271, de 22.07.1954, determinou que se aplicasse à argüição de inconstitucionalidade o processo do mandado de segurança (art. 4.º). A primeira fase continuou a ser processada, porém, na Procuradoria-Geral da República, tal como no período anterior ao advento da disciplina legal (art. 2.º). “Era o Procurador-Geral — diz Themístocles Cavalcanti — quem recebia a representação da parte e, no prazo de 45 dias improrrogáveis, contados da comunicação da respectiva assinatura, ouvia, sobre as razões da impugnação do ato, os órgãos que o tivessem elaborado ou praticado”.44 A Lei n. 4.337, de 1964, modificou o procedimento então adotado, determinando que, após a
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes argüição, o relator ouvisse sobre as razões de impugnação do ato, no prazo de trinta dias, os órgãos que o tivessem elaborado ou expedido. Admitia-se, contudo, o julgamento imediato do feito, em caso de urgência e relevância do interesse de ordem pública, dando-se ciência da supressão do prazo às partes. 1.5.2 A Emenda n. 16, de 1965, e o Controle de Constitucionalidade Abstrato A Emenda n. 16, de 26.11.1965, instituiu, ao lado da representação interventiva, e nos mesmos moldes, o controle abstrato de normas estaduais e federais. A reforma realizada, fruto dos estudos desenvolvidos na Comissão composta por Orozimbo Nonato, Prado Kelly (Relator), Dario de Almeida Magalhães, Frederico Marques e Colombo de Souza, visava a imprimir novos rumos à estrutura do Poder Judiciário. Parte das mudanças recomendadas já havia sido introduzida pelo Ato Institucional n. 2, de 27.10.1965. A Exposição de Motivos encaminhada pelo Ministro da Justiça, Dr. Juracy Magalhães, ao Presidente da República, ressaltava que “a atenção dos reformadores temse detido enfaticamente na sobrecarga imposta ao Supremo Tribunal e ao Tribunal de Recursos”. Não obstante, o próprio Supremo Tribunal Federal houve por bem sugerir a adoção de dois novos institutos de legitimidade constitucional, tal como descrito na referida Exposição de Motivos: “a) uma representação de inconstitucionalidade de lei federal, em tese, de exclusiva iniciativa do Procurador-Geral da República, à semelhança do que existe para o direito estadual (art. 8.º, parágrafo único, da Constituição Federal); b) uma prejudicial de inconstitucionalidade, a ser suscitada, exclusivamente, pelo próprio Supremo Tribunal Federal ou pelo Procurador-Geral da República, em qualquer processo em curso perante outro juízo”. “A representação, limitada em sua iniciativa, tem o mérito de facultar desde a definição da ‘controvérsia constitucional sobre leis novas, com economia para as partes, formando precedente que orientará o julgamento dos processos congêneres’. Afeiçoa-se, no rito, às representações de que cuida o citado preceito constitucional para forçar o cumprimento, pelos Estados, dos princípios que integram a lista do inciso VII do art. 7.º. De algum modo, a inovação, estendendo a vigilância às ‘leis federais em tese’, completa o sistema de pronto resguardo da lei básica, se ameaçada em seus mandamentos. Já a prejudicial agora proposta, modalidade de avocatória, utilizável em qualquer causa, de qualquer instância, importaria em substituir aos juízos das mais diversas categorias a faculdade, que lhes pertence, no grau da sua jurisdição, de apreciar a conformidade de lei ou de ato com as cláusulas constitucionais. Ao ver da Comissão, avocatória só se explicaria para corrigir omissões de outros órgãos judiciários, se vigorasse entre nós, como vigora por exemplo na Itália, o privilégio de interpretação constitucional por uma Corte especializada, a ponto de se lhe remeter obrigatoriamente toda questão daquela natureza, levantada de ofício ou por uma das partes em qualquer processo, desde que o juiz ou tribunal não a repute manifestamente infundada. Ao direito italiano pedimos, todavia, uma formulação mais singela e mais eficiente do que a do art. 64 da nossa Constituição, para tornar explícito, a partir da declaração de ilegitimidade, o efeito erga omnes de decisões definitivas do Supremo Tribunal, poupando ao Senado o dever correlato de suspensão da lei ou do decreto — expediente consentâneo com as teorias de direito público em 1934, quando ingressou em nossa legislação, mas presentemente suplantada pela formulação contida no art. 136 do estatuto de 1948: ‘Quando la Corte dichiara l’illegittimità costituzionale di una norma di legge o di atto avente forza di legge, la norma cessa di avere efficacia dal giorno sucessivo alla publicazione della decisione’”.45
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Nos termos do Projeto de Emenda à Constituição, o art. 101, I, k, passava a ter a seguinte redação: “k) a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”. E o art. 5.º do Projeto acrescentava os seguintes parágrafos ao art. 101: “§ 1.º Incumbe ao Tribunal Pleno o julgamento das causas de competência originária (inciso I), das prejudiciais de inconstitucionalidade suscitadas pelas Turmas, dos recursos interpostos de decisões delas, se divergirem entre si na interpretação do direito federal, bem como dos recursos ordinários nos crimes políticos (inciso II, c) e das revisões criminais (inciso IV). § 2.º Incumbe às Turmas o julgamento definitivo das matérias enumeradas nos incisos II, a e b, e III deste artigo. § 3.º As disposições de lei ou ato de natureza normativa, consideradas inconstitucionais em decisão definitiva, perderão eficácia, a partir da declaração do Presidente do Supremo Tribunal Federal publicada no órgão oficial da União”. E o art. 64 da Constituição passava a ter a seguinte redação: “Art. 64. Incumbe ao Presidente do Senado Federal, perdida a eficácia de lei ou ato de natureza normativa (art. 101, § 3.º), fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção das leis, a conclusão do julgado que lhe for comunicado”. O parecer aprovado pela Comissão Mista, da lavra do Deputado Tarso Dutra, referiu-se, especificamente, ao novo instituto de controle de constitucionalidade: “A letra k, propondo a representação a cargo da Procuradoria-Geral da República, contra a inconstitucionalidade em tese da lei, constitui uma ampliação da faculdade consignada no parágrafo único do art. 8.º, para tornar igualmente vulneráveis as leis federais por essa medida. Ao anotar-se a conveniência da modificação alvitrada na espécie, que assegurará, com a rapidez dos julgamentos sumários, uma maior inspeção jurisdicional da constitucionalidade das leis, não será inútil configurar o impróprio de uma redação, que devia conferir à representação a idéia nítida de oposição à inconstitucionalidade e o impreciso de uma referência a atos de natureza normativa de que o nosso sistema de poderes indelegáveis (art. 36, §§ 1.º e 2.º) conhece apenas uma exceção no § 2.º do art. 123 da Constituição”.46 A proposta de alteração do disposto no art. 64 da Constituição, com a atribuição de eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, foi rejeitada.47 Consagrou-se, todavia, o modelo abstrato de controle de constitucionalidade. A implantação do sistema de controle de constitucionalidade, com o objetivo precípuo de “preservar o ordenamento jurídico da intromissão de leis com ele inconviventes”48 veio somar, aos mecanismos já existentes, um instrumento destinado a defender diretamente o sistema jurídico objetivo. Finalmente não se deve olvidar que, no tocante ao controle de constitucionalidade da lei municipal, a Emenda n. 16 consagrou, no art. 124, XIII, regra que outorgava ao legislador a faculdade para “estabelecer processo de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Município em conflito com a Constituição do Estado”.
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1.6 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1967/1969 A Constituição de 1967 não trouxe grandes inovações no sistema de controle de constitucionalidade. Manteve-se incólume o controle difuso. A ação direta de inconstitucionalidade subsistiu, tal como prevista na Constituição de 1946, com a Emenda n. 16, de 1965. A representação para fins de intervenção, confiada ao Procurador-Geral da República, foi ampliada, com o objetivo de assegurar não só a observância dos chamados princípios sensíveis (art. 10, VII), mas também prover a execução de lei federal (art. 10, VI, 1.ª parte). A competência para suspender o ato estadual foi transferida para o Presidente da República (art. 11, § 2.º). Preservou-se o controle de constitucionalidade in abstracto, tal como estabelecido pela Emenda n. 16, de 1965 (art. 119, I, l). A Constituição de 1967 não incorporou a disposição da Emenda n. 16, que permitia a criação do processo de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados, para declaração de lei ou ato dos municípios que contrariassem as Constituições dos Estados. A Emenda n. 1, de 1969, previu, expressamente, o controle de constitucionalidade de lei municipal, em face da Constituição estadual, para fins de intervenção no município (art. 15, § 3.º, d). A Emenda n. 7, de 1977, introduziu, ao lado da representação de inconstitucionalidade, a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual, outorgando ao Procurador-Geral da República a legitimidade para provocar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal (art. 119, I, e). E, segundo a Exposição de Motivos apresentada ao Congresso Nacional, esse instituto deveria evitar a proliferação de demandas, com a fixação imediata da correta exegese da lei.49 Finalmente, deve-se assentar que a Emenda n. 7, de 1977, pôs termo à controvérsia sobre a utilização de liminar em representação de inconstitucionalidade, reconhecendo, expressamente, a competência do Supremo Tribunal para deferir pedido de cautelar, formulado pelo ProcuradorGeral da República (CF 1967/1969, art. 119, I, p).50 1.7 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Se a intensa discussão sobre o monopólio da ação por parte do Procurador-Geral da República não levou a uma mudança na jurisprudência consolidada sobre o assunto, é fácil de constatar que ela foi decisiva para a alteração introduzida pelo constituinte de 1988, com a significativa ampliação do direito de propositura da ação direta. O constituinte assegurou o direito do Procurador-Geral da República de propor a ação de inconstitucionalidade. Este é, todavia, apenas um dentre os diversos órgãos ou entes legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade. Nos termos do art. 103 da Constituição de 1988 dispõem de legitimidade para propor a ação de inconstitucionalidade o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de uma Assembléia Legislativa, o Governador do Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional. Com isso satisfez o constituinte apenas parcialmente a exigência daqueles que solicitavam fosse assegurado o direito de propositura da ação a um grupo de, v.g., dez mil cidadãos ou que defendiam até mesmo a introdução de uma ação popular de inconstitucionalidade.51
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Esse fato fortalece a impressão de que, com a introdução desse sistema de controle abstrato de normas, com ampla legitimação e, particularmente, a outorga do direito de propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente. Não é menos certo, por outro lado, que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial — ainda que não desejada — no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. O monopólio de ação outorgado ao Procurador-Geral da República no sistema de 1967/69 não provocou uma alteração profunda no modelo incidente ou difuso. Este continuou predominante, integrando-se a representação de inconstitucionalidade a ele como um elemento ancilar, que contribuía muito pouco para diferençá-lo dos demais sistemas “difusos” ou “incidentes” de controle de constitucionalidade. A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas. Convém assinalar que, tal como já observado por Anschütz ainda no regime de Weimar, toda vez que se outorga a um Tribunal especial atribuição para decidir questões constitucionais, limitase, explícita ou implicitamente, a competência da jurisdição ordinária para apreciar tais controvérsias.52 Portanto, parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. Assim, se se cogitava, no período anterior a 1988, de um modelo misto de controle de constitucionalidade, é certo que o forte acento residia, ainda, no amplo e dominante sistema difuso de controle. O controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso. A Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Ressalte-se que essa alteração não se operou de forma ainda profunda porque o Supremo Tribunal manteve a orientação anterior, que considerava inadmissível o ajuizamento de ação direta contra direito pré-constitucional em face da nova Constituição. A ampla legitimação, a presteza e celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, faz com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado. A particular conformação do processo de controle abstrato de normas confere-lhe, também, novo significado como instrumento federativo, permitindo a aferição da constitucionalidade das leis federais mediante requerimento de um Governador do Estado e a aferição da constitucionalidade das leis estaduais, mediante requerimento do Presidente da República. A propositura da ação pelos partidos políticos com representação no Congresso Nacional concretiza, por outro lado, a idéia de defesa das minorias, uma vez que se assegura até às frações parlamentares menos representativas a possibilidade de argüir a inconstitucionalidade de lei. Ressalte-se que não são numericamente significativas as ações propostas pelas organizações
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes partidárias. É verdade, porém, que muitos dos temas mais polêmicos submetidos ao Supremo Tribunal, no processo de controle abstrato, foram trazidos à baila mediante iniciativa dos partidos políticos. Assim, a discussão sobre a constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 2, de 1992, que antecipou o plebiscito sobre a forma e sistema de governo previsto no art. 2.º do ADCT,53 o questionamento da legitimidade da lei do salário-mínimo,54 a controvérsia sobre a legitimidade do pagamento mediante precatório para os créditos de natureza alimentícia.55 Isto para não falar das diversas ações propostas contra a política econômica do Governo.56 Ao lado desta ampla legitimação para a provocação do controle abstrato de normas, cuidou o constituinte de instituir mecanismo (art. 5.º, LXXI) para a tutela de direitos subjetivos lesados em decorrência da omissão normativa. No mesmo passo, instituiu-se ainda processo de controle abstrato da omissão normativa inconstitucional (art. 103, § 2.º), instituto — a exemplo do anterior — ainda carente de conformação definitiva. 1.8 A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 3 DE 1993: A AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE No bojo da reforma tributária de emergência, introduziu-se no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade a ação declaratória de constitucionalidade. A Emenda Constitucional n. 03, de 17.03.1993, disciplinou o instituto firmando a competência do Supremo Tribunal Federal para conhecer e julgar a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, processo cuja decisão definitiva de mérito possuirá eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Executivo e do Judiciário. Conferiu-se legitimidade ativa ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputados e ao Procurador-Geral da República. Considerando a súbita repercussão da introdução do instituto, cumpre agora cogitar se representa ele um novum no modelo brasileiro de controle de constitucionalidade. Em verdade, o dispositivo não inova. A imprecisão da fórmula adotada na Emenda n. 16/65 — representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral — não conseguia esconder o propósito inequívoco do legislador constituinte, que era o de permitir “desde logo, a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas”. Não se fazia mister, portanto, que o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma. Era suficiente o requisito objetivo relativo à existência de “controvérsia constitucional”. Daí ter o constituinte utilizado a fórmula equívoca — representação contra a inconstitucionalidade da lei, encaminhada pelo Procurador-Geral da República — que explicitava, pelo menos, que a dúvida ou a eventual convicção sobre a inconstitucionalidade não precisava ser por ele perfilhada. Se correta essa orientação, parece legítimo admitir que o Procurador-Geral da República tanto poderia instaurar o controle abstrato de normas, com o objetivo precípuo de ver declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo (ação declaratória de inconstitucionalidade ou representação de inconstitucionalidade), como poderia postular, expressa ou tacitamente, a declaração de constitucionalidade da norma questionada (ação declaratória de constitucionalidade). A cláusula sofreu pequena alteração na Constituição de 1967 e de 1967/69 (representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual — CF 1967, art. 115, I, “l”; CF 1967/69, art. 119, I, “l”). O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, na versão de 1970,57 consagrou
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes expressamente essa idéia: “Art. 174. § 1.º. Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário”. Essa disposição, que, como visto, consolidava tradição já velha no Tribunal, permitia ao titular da ação encaminhar a postulação que lhe fora dirigida por terceiros, manifestando-se, porém, em sentido contrário. Assim, se o Procurador-Geral encaminhava súplica ou representação de autoridade ou de terceiro, com parecer contrário, estava simplesmente a postular uma declaração (positiva) de constitucionalidade. O pedido de representação, formulado por terceiro e encaminhado ao Supremo, materializava, apenas, a existência da “controvérsia constitucional” apta a fundamentar uma “necessidade pública de controle”. Essa cláusula foi alterada, passando o Regimento Interno a conter as seguintes disposições: “Art. 169. O Procurador-Geral da República poderá submeter ao Tribunal, mediante representação o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade. § 1.º. Proposta a representação, não se admitirá desistência, ainda que afinal o ProcuradorGeral se manifeste pela sua improcedência”. Parece legítimo supor que essa modificação não alterou, substancialmente, a idéia básica que norteava a aplicação desse instituto. Se o titular da iniciativa manifestava-se, afinal, pela constitucionalidade da norma impugnada, é porque estava a defender a declaração de constitucionalidade. Na prática, continuou o Procurador-Geral a oferecer representações de inconstitucionalidade, ressaltando a relevância da questão e manifestando-se afinal, muitas vezes, em favor da constitucionalidade da norma. A falta de maior desenvolvimento doutrinário e a própria balbúrdia conceitual instaurada em torno da representação interventiva58 — confusão essa que contaminou os estudos do novo instituto — não permitiram que essas idéias fossem formuladas com a necessária clareza. Sem dúvida, a disciplina específica do tema no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal serviria à segurança jurídica, na medida em que afastaria, de uma vez por todas, as controvérsias que marcaram o tema no direito constitucional brasileiro. Entendida a representação de inconstitucionalidade como instituto de contéudo dúplice ou de caráter ambivalente, mediante o qual o Procurador-Geral da República tanto poderia postular a declaração de inconstitucionalidade da norma, como defender a declaração de sua constitucionalidade, afigurar-se-ia legítimo sustentar, com maior ênfase e razoabilidade, a tese relativa à obrigatoriedade de o Procurador-Geral submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, quando isto lhe fosse solicitado. A controvérsia instaurada em torno da recusa do Procurador-Geral da República59 de encaminhar ao Supremo Tribunal Federal representação de inconstitucionalidade contra o Decretolei n. 1.077, de 1970, que instituiu a censura prévia sobre livros e periódicos,60 não serviu — infelizmente — para realçar esse outro lado da representação de inconstitucionalidade.61 De qualquer sorte, todos aqueles que sustentaram a obrigatoriedade de o Procurador-Geral da República submeter a representação ao Supremo Tribunal Federal, ainda quando estivesse
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes convencido da constitucionalidade da norma,62 somente podem ter partido da idéia de que, nesse caso, o Chefe do Ministério Público deveria, necessária e inevitavelmente, formular uma ação declaratória — positiva — de constitucionalidade. Na Representação n. 1.092, relativa à constitucionalidade do instituto da reclamação, contido no Regimento Interno do antigo Tribunal Federal de Recursos, viu-se o Procurador-Geral da República, que instaurou o processo de controle abstrato de normas e se manifestou, no mérito, pela improcedência do pedido, na contingência de ter de opor embargos infringentes da decisão proferida, que julgava procedente a ação proposta, declarando inconstitucional a norma impugnada.63 Ora, ao admitir o cabimento dos embargos infringentes opostos pelo Procurador-Geral da República contra decisão que acolheu representação de inconstitucionalidade de sua própria iniciativa, o Supremo Tribunal Federal contribuiu para realçar esse caráter ambivalente da representação de inconstitucionalidade, reconhecendo implicitamente, pelo menos, que ao titular da ação era legítimo tanto postular a declaração de inconstitucionalidade da lei, se disso estivesse convencido, como pedir a declaração de sua constitucionalidade, se, não obstante convencido de sua constitucionalidade, houvesse dúvidas ou controvérsias sobre sua legitimidade que reclamassem um pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal. É verdade que a Corte restringiu significativamente essa orientação no acórdão de 08.09.1988.64 O Procurador-Geral da República encaminhou ao Tribunal petição formulada por grupo de parlamentares que sustentava a inconstitucionalidade de determinadas disposições da Lei de Informática (Lei n. 7.232, de 29.10.1984). O Tribunal considerou inepta a representação, entendendo que, como a Constituição previa uma ação de inconstitucionalidade, não poderia o titular da ação demonstrar, de maneira insofismável, que perseguia outros desideratos.65 Embora o Supremo Tribunal Federal tenha considerado inadmissível representação na qual o Procurador-Geral da República afirma, de plano, a constitucionalidade da norma,66 é certo que essa orientação, calcada numa interpretação literal do texto constitucional, não parece condizente, tal como demonstrado, com a natureza do instituto e com a sua práxis desde a sua adoção pela Emenda n. 16, de 1965. Todavia, a Corte continuou a admitir as representações e, mesmo após o advento da Constituição de 1988, as ações diretas de inconstitucionalidade nas quais o Procurador-Geral limitava-se a ressaltar a relevância da questão constitucional, pronunciando-se, a final, pela sua improcedência.67 Em substância, era indiferente que o Procurador-Geral sustentasse, desde logo, a constitucionalidade da norma, ou que encaminhasse o pedido, para, posteriormente, manifestar-se pela sua improcedência. Essa análise demonstra claramente que, a despeito da utilização do termo representação de inconstitucionalidade, o controle abstrato de normas foi concebido e desenvolvido como processo de natureza dúplice ou ambivalente. Se o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade, poderia provocar o Supremo Tribunal Federal para a declaração de inconstitucionalidade. Se, ao revés, estivesse convicto da legitimidade da norma, então poderia instaurar o controle abstrato com finalidade de ver confirmada a orientação questionada. Sem dúvida, a falta de um melhor desenvolvimento doutrinário sobre essa face peculiar da representação de inconstitucionalidade e a decisão do Supremo Tribunal na Representação n. 1.349, que, praticamente, negou a possibilidade de se instaurar o controle abstrato com pedido de declaração de constitucionalidade, tornaram inevitável a positivação de um instituto específico no ordenamento constitucional, consubstanciado na ação declaratória de constitucionalidade.
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1.9 A LEI N. 9.868, DE 10.11.99, E A LEI N. 9.882, DE 3.12.99 – Como mais recente passo no processo de evolução do controle de constitucionalidade de normas no Brasil, é importante ressaltar a aprovação de dois relevantes diplomas legais: a Lei n. 9.868 e a Lei n. 9.882. Trata-se de dois textos normativos que disciplinam instrumentos processuais destinados ao controle de constitucionalidade. Ao regular o art.102, § 1º, da CF, a Lei n. 9.882 estabeleceu os contornos da ADPF, instituto que poderá conferir nova conformação ao controle de constitucionalidade entre nós. Já a Lei n. 9.868 – que aqui nos interessa mais diretamente – regulamenta o processamento e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) e da ação declaratória de constitucionalidade (ADC), exercendo, agora, um papel que era cumprido, em grande parte, pelo Regimento Interno ou por construções da jurisprudência do STF. Aliás, este diploma legislativo teve, sem dúvida, a preocupação de recolher em seu conteúdo boa parte destas construções, não renunciando, porém, à introdução de algumas importantes modificações em nosso sistema de controle. 1.10 CONCLUSÃO Pelo exposto, constata-se tendência — ainda que fragmentária — à adoção de um sistema aproximado a modelos concentrados de controle de constitucionalidade. Para tanto, fazem-se necessários, entre outros, os seguintes aprimoramentos: — criação de incidente de inconstitucionalidade, tal como acolhido no Substitutivo do RelatorGeral da Revisão Constitucional (Parecer n. 027); — desenvolvimento da eficácia geral das decisões do Supremo Tribunal Federal (eficácia erga omnes, com a conseqüente supressão do obsoleto inciso X do art. 52 da Constituição Federal), a possibilitar a redução do colossal número de feitos que ameaçam inviabilizar o funcionamento da Corte; — adequado instrumento objetivo de controle do direito pré-constitucional, o que poderá ser alcançado com a consolidação da ADPF (Lei nº 9.882, de 03.12.1999); — via para controle da legalidade do ato regulamentar, com a conseqüente supressão do inciso V do art. 49 da Constituição Federal. (NOTAS) 1. In: Advocacia Dinâmica: Seleções Jurídicas, p. 15-27, junho/1995; Revista de Informação Legislativa, ano 32, n. 126, p. 87-102, abril/junho-1995. 2. BUENO, José Antonio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília, Senado Federal, 1978, p. 69. 3. BUENO. Direito Público brasileiro, op. cit., p. 203. 4. Cf., a propósito, BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 27-8; BARBI, Celso Agrícola. Evolução do controle de constitucionalidade das leis no Brasil, RDP, I (4):36; MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Teoria das Constituições rígidas. 2.ª ed., São Paulo: Bushatsky, 1980, p. 155. 5. BARBI, Celso Agrícola. Op. cit., p. 37; MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Op. cit., p. 156. 6. BARBOSA, Rui. Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo. In: Trabalhos jurídicos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1962, p. 54-5. 7. BARBOSA, Rui. Op. cit., p. 83.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 8. BARBOSA, Rui. Op. cit., p. 83. 9. MANGABEIRA, João. Em torno da Constituição. São Paulo: Nacional, 1934, p. 115-7; MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Op. cit., p. 159-65. Cumpre notar que o anteprojeto continha, no art. 57, a seguinte regra: “Não se poderá argüir de inconstitucional uma lei federal aplicada sem reclamação por mais de cinco anos. O Supremo Tribunal não poderá declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal, senão quando nesse sentido votarem pelo menos dois terços de seus ministros. Só o Supremo Tribunal poderá declarar definitivamente a inconstitucionalidade de uma lei federal ou ato do Presidente da República. Sempre que qualquer Tribunal não aplicar uma lei federal ou anular um ato do Presidente da República, por inconstitucionais, recorrerá ex officio, e com efeito suspensivo, para o Supremo Tribunal. Julgado inconstitucional qualquer lei ou ato do Poder Executivo, caberá a todas as pessoas, que se acharem nas mesmas condições do litigante vitorioso, o remédio judiciário instituído para a garantia de todo direito certo e incontestável”. Tal disposição acabaria por consolidar, entre nós, um modelo concentrado de controle de constitucionalidade. Não prevaleceu, todavia, essa orientação, predominando o entendimento que assegura o poder de inaplicar a lei tanto ao juiz singular quanto aos tribunais. Anote-se, ademais, que a cláusula inicial importava na constitucionalização dos preceitos aplicados há mais de cinco anos. 10. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Teoria das Constituições rígidas. Op. cit., p. 170; ARAÚJO CASTRO. A nova Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1935, p. 246-7. 11. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Teoria das Constituições rígidas. Op. cit., p. 170. 12. ARAÚJO CASTRO. Op. cit., p. 107-8. 13. CALMON, Pedro. Intervenção federal: o art. 12 da Constituição de 1934. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1936, p. 109. 14. PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1938, v. 1, p. 364. 15. POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto. Controle da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 93. Afigura-se relevante observar que, na Constituinte de 1934, foi apresentada proposta de instituição de um Tribunal especial, dotado de competência para apreciar questões constitucionais suscitadas no curso dos processos ordinários, bem como para julgar pedido de argüição de inconstitucionalidade formulado por “qualquer pessoa de direito público ou privado, individual ou coletivamente, ainda mesmo quando não tenha interesse direto (...)”. O projeto de autoria do Deputado Nilo Alvarenga criava uma Corte Constitucional, inspirada na proposta de Kelsen, e confiava a sua provocação a qualquer sujeito de direito (Cf. ALENCAR, Ana Valderez Ayres Neves de. A Competência do Senado Federal para Suspender a Execução dos Atos Declarados Inconstitucionais. In: Revista de Informação Legislativa, 15(57):237-45). 16. PONTES DE MIRANDA. Op. cit., p. 770. 17. Projeto do Deputado Nilo Alvarenga, de 20.12.1933, in: Annaes da Assembléia Constituinte. Rio de Janeiro: 1935, p. 33-35. 18. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 5.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1982, p. 63; cf. CAMPOS, Francisco Luiz da Silva. Diretrizes constitucionais do novo Estado brasileiro, RF, 73:246-9. 19. MOTTA FILHO, Cândido. A evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil, RF, 86:277. 20. CAMPOS, Francisco Luiz da Silva. Diretrizes constitucionais do novo Estado brasileiro, op. cit., p. 246 e s. 21. BUZAID, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958, p. 32. 22. MOURA, Genésio de Almeida. Inconstitucionalidade das leis. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 37:161. 23. NUNES, José de Castro. Teoria e prática do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense,
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 1943, p. 593, nota 25. 24. NUNES, José de Castro. Op. cit., p. 593, nota 25. 25. BITTENCOURT, Carlos Alberto Lucio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2.ª ed., Rio de Janeiro, 1968, p. 139-40. 26. BITTENCOURT. Op. cit., p. 139. 27. BITTENCOURT. Op. cit., p. 139-40. 28. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Op. cit., p. 192. 29. Rp. 93, de 16.7.1947, Rel. Min. Annibal Freire, AJ, 85:3; CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Do Controle da Constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 110. 30. CAVALCANTI, Themístocles. Op. cit., p. 112. 31. CAVALCANTI, Themístocles. Op. cit., p. 112; cf., também, Rp. 94, de 17.7.1947, Rel. Min. Castro Nunes, AJ, 85:31. 32. CAVALCANTI, Themístocles. Op. cit., p. 111-12. 33. CAVALCANTI, Themístocles. Op. cit., p. 110. 34. CAVALCANTI, Themístocles. Op. cit., p. 111. 35. Rp. 95, de 30.07.1947, Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:55-6. Não obstante, convém assinalar que o Ministro Edgar Costa não conheceu da Representação, uma vez que esta tinha, “não apenas a aparência, mas incontestável caráter de consulta” (AJ, 85:68-9). 36. Rp. 95, de 30.07.1947, Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:58. 37. Rp. 95, de 30.07.1947, Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:55-75. 38. Rp. 94, de 17.07.1947, Rel. Min. Castro Nunes, AJ, 85:33. 39. AJ, 85:33. 40. Rp. 94, de 17.07.1947, AJ, 85:33. 41. AJ, 85:34. 42. Rp. 94, de 17.07.1947, AJ, 85:34. 43. Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:70-1. 44. Cavalcanti, Themístocles Brandão. Op. cit., p. 127. 45. Brasil. Constituição (1946): Emendas. Emendas à Constituição de 1946, n. 16: Reforma do Poder Judiciário, Brasília, Câmara dos Deputados, 1968, p. 24. 46. Brasil. Constituição (1946), op. cit., p. 67. 47. Brasil. Constituição (1946), op. cit., p. 88-90. 48. Bastos. Op. cit., p. 65. 49. Mensagem n. 81, de 1976, Diário do Congresso Nacional. O Texto Magno de 1988 não manteve esse instituto no ordenamento constitucional brasileiro. 50. A Constituição de 1988 manteve a competência do Supremo Tribunal para conceder liminar na ação de inconstitucionalidade (art. 102, I, p). 51. Cf., a propósito, as propostas de Vilson Souza e Vivaldo Barbosa à Comissão de Organização de Poderes e Sistema de Governo da Assembléia Constituinte, in: Assembléia Nacional Constituinte, Emendas oferecidas à Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo, 1988, p. 214 e 342. 52. ANSCHÜTZ, Gerhard. Verhandlungen des 34. Juristentags. Berlim e Leipzig, 1927, v. II, p. 208. 53. Cf. ADIn 829, 830 e 831, Relator: Ministro Moreira Alves, DJ de 20.04.1993, p. 6.758. 54. ADIn 737, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista — PDT, Relator: Ministro Moreira Alves, DJ de 22.10.1993, p. 22.252. 55. ADIn 672, Relator: Ministro Marco Aurélio, DJ de 04.02.1992, p. 499. 56. Cf., v.g., ADIn 357, Relator: Ministro Carlos Velloso, DJ de 23.11.1990, p. 13.622; ADIn 562, Relator: Ministro Ilmar Galvão, DJ de 10.09.1991, p. 12.254; ADIn 605, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ de 05.03.1993; ADIn 931, Relator: Ministro Francisco Rezek, DJ de 02.09.1993.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 57. DJ de 04.09.1970, p. 3.971 e s. 58. BUZAID, Alfredo. Da Ação direta da declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo, 1958, p. 107; MOREIRA, José Carlos Barbosa. As Partes na ação declaratória de inconstitucionalidade. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado da Guanabara, n. 13 (1964), p. 67 (75-76); CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Op. cit., p. 115 e s. 59. É certo que uma avaliação desse modelo brasileiro de controle abstrato de normas não pode deixar de considerar as circunstâncias políticas dominantes durante todo o período de desenvolvimento desse instituto. Os pressupostos indispensáveis pensados por Kelsen para esse advogado da Constituição que, segundo ele, deveria ser dotado de todas as garantias imagináveis tanto em face do Governo quanto em face do Parlamento (Wesen und Entwicklung der Staatgerichtsbarkeit, VVDStRL 5 (1929), p. 30 (75)), não poderiam ser assegurados sob o império de um regime de exceção. O Procurador-Geral da República exercia, no controle abstrato de normas, o papel especial de advogado da Constituição, interessado exclusivamente na defesa da ordem constitucional. Com isso logrou o constituinte brasileiro positivar proposta formulada por Kelsen quanto à instituição de um advogado da Constituição (Verfassungsanwalt) que deveria deflagrar o controle de normas ex officio sempre que uma lei se lhe afigurasse incompatível com a Constituição (Idem, ibidem). Ao contrário da representação interventiva, que pressupõe um interesse da União na preservação de princípios fundamentais da ordem federativa, o controle abstrato de normas independe de qualquer interesse específico, sendo-lhe estranha mesmo a idéia de interesse jurídico a ser protegido (Rp. 700, Relator: Ministro Amaral Santos, p. 690 (714); Ação Rescisória n. 848, Relator: Ministro Rafael Mayer, RTJ 95, p. 49 (58); Rp. 1405, Relator: Ministro Moreira Alves, DJ de 01.07.1988). Por isso, dever-se-iam diferençar, de forma clara, as competências do Procurador-Geral da República. No primeiro processo, representava ele o interesse da União em face de um determinado Estado, que, efetiva ou supostamente, desrespeitara princípio sensível estabelecido na Constituição. No controle abstrato, atuava como representante do interesse geral com o propósito de instaurar o controle judicial das normas estaduais ou federais (BANDEIRA DE MELLO. Op. cit., p. 189; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 230 e s.). 60. Reclamação n. 849, Relator: Ministro Adalício Nogueira, RTJ 59, p. 333. 61. Cf., sobre o assunto, registros da discussão travada no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em março de 1971, in: Arquivos do Ministério da Justiça n. 118 (1971), p. 23 e s. 62. Cf., a propósito, MARINHO, Josaphat. Inconstitucionalidade de lei — representação ao STF, RDP 12, p. 150; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Voto proferido no Conselho Federal da OAB, Arquivos do Ministério da Justiça, n. 118, p. 25; CAVALCANTI, Themístocles. Arquivamento de representação por inconstitucionalidade da lei, RDP n. 16, p. 169; CARDOSO, Adaucto Lucio, voto na Reclamação n. 849, RTJ 50, p. 347-8; BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional, 1982, p. 69. 63. Embargos na Representação n. 1.092, Relator: Ministro Néri da Silveira, RTJ 117, p. 921 e s. 64. Rp. 1.349, Relator: Ministro Aldir Passarinho, RTJ 129, p. 41 e s. 65. Rp. 1.349, Relator: Ministro Aldir Passarinho, RTJ 129, p. 41. 66. Rp. 1.349, Relator: Ministro Aldir Passarinho, RTJ 129, p. 41. O Tribunal considerou inepta a representação, entendendo que, como a Constituição previa uma ação de inconstitucionalidade, não poderia o titular da ação demonstrar, de maneira insofismável, que perseguia outros desideratos. 67. Cf., dentre outras, ADIn 716-5, Relator: Ministro Marco Aurélio, DJ de 29.04.1992, p. 5.606.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
1. ANÁLISE DO DIREITO COMPARADO E NACIONALx GILMAR FERREIRA MENDES
1.1.
AS TÉCNICAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO COMPARADO: OS SISTEMAS NORTE-AMERICANO, AUSTRÍACO E ALEMÃO
Desenvolvido a partir de diferentes concepções filosóficas e de experiências históricas diversas, o controle judicial de constitucionalidade continua a ser dividido, para fins didáticos, em sistema difuso e sistema concentrado, ou, às vezes, entre sistema americano e sistema europeu de controle. Essas concepções aparentemente apodíticas acabaram por ensejar o surgimento dos modelos mistos, com combinações de elementos dos dois sistemas básicos (v.g. o sistema brasileiro e o sistema português). É certo, por outro lado, que o desenvolvimento desses dois modelos básicos aponta em direção a uma aproximação ou convergência a partir de referenciais procedimentais e pragmáticos. O modelo europeu adota as ações individuais para a defesa de posições subjetivas e cria mecanismos específicos para a defesa dessas posições como a atribuição de eficácia ex tunc da decisão para o caso concreto que ensejou a declaração de inconstitucionalidade do sistema austríaco. Especialmente a Emenda Constitucional de 7 de dezembro de 1929 introduziu mudanças substanciais no modelo de controle de constitucionalidade formulado na Constituição austríaca de 1920. Passou-se a admitir que o Supremo Tribunal de Justiça (Oberster Gerichtshof) e o Tribunal de Justiça Administrativa (Verwaltungsgerichtshof) elevem a controvérsia constitucional concreta perante a Corte Constitucional. Rompe-se com o monopólio de controle da Corte Constitucional, passando aqueles órgãos judiciais a ter um juízo provisório e negativo sobre a matéria1. Essa tendência seria reforçada posteriormente com adoção de modelo semelhante na Alemanha, Itália e Espanha. Em verdade, tal sistema tornou o juiz ou tribunal um ativo participante do controle de
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Publicado em: Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 1999 (ADIn e ADC). Em colaboração com Ives Gandra da S. Martins. São Paulo: Saraiva, 2001. 1 Segado, Francisco Fernández. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional (Modelo Americano – Modelo Europeo-Kelsiano) de los Sistemas de Justicia Constitucional, in: Direito Público - Ano I, nº 2, Brasília:IDP/Síntese, out-dez 2003, p. 66.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes constitucionalidade, pelo menos na condição de órgão incumbido da provocação.2 Tal aspecto acaba por mitigar a separação entre os dois sistemas básicos de controle. O sistema americano, por seu turno, perde em parte a característica de um modelo voltado para a defesa de posições exclusivamente subjetivas e adota uma modelagem processual que valora o interesse público em sentido amplo. A abertura processual largamente adotada pela via do amicus curiae amplia e democratiza a discussão em torno da questão constitucional. A adoção do writ of certiorari como mecanismo básico de acesso à Corte Suprema e o reconhecimento do efeito vinculante das decisões por força do stare decisis conferem ao processo natureza fortemente objetiva. Em diferentes conformações, os sistemas de controle de constitucionalidade ganharam o mundo, estando presentes hoje em número elevado de países. Até países que pareciam recusar terminantemente a adoção da jurisdição constitucional parecem dar sinais, por vias diversas, de plena aceitação do instituto. Na França, o Conselho Constitucional, criado pela Constituição de 1958, vem adotando gradualmente postura que, em muitos aspectos, aproxima-o de um órgão de jurisdição constitucional.3 Também a Bélgica instituiu em 1980 um Tribunal arbitral (Schiedgerichtshof) que se incumbe da solução de controvérsias federativas. Na Bélgica, na Holanda e em Luxemburgo, embora não se reconheça a Constituição como parâmetro de controle da leis, admite-se o controle de legitimidade das leis em face da Convenção Européia de Direitos Humanos.4 Também o Reino Unido vem dando mostras de uma revisão de conceitos. O Parlamento já não mais se mostra um soberano absoluto. O “European Communities Act”, de 1972, atribuiu hierarquia superior ao direito comunitário em face de leis formais aprovadas pelo Parlamento. Essa orientação tornou-se realidade no caso Factortame Ltd. v. Secretary of State for Transport (N.2) [ 1991]. 5 Com a aprovação do Human Rights Act, em 1998, confiou-se aos Tribunais britânicos a aferição da legitimidade das leis em face das disposições da Convenção de Direitos Humanos. Embora não se declare a nulidade ou a invalidade da lei, pode-se constatar a incompatibilidade e assegurar à parte uma indenização6. Daí identificarem-se também no Reino Unido os contornos de uma jurisdição constitucional de caráter geral ou não especializada.7 É certo, por outro lado, que a própria Comunidade Européia, antes mesmo de se cogitar da promulgação de uma Constituição européia, vinha desenvolvendo um sistema de controle de atos comunitários em face dos atos básicos da Comunidade e dos direitos fundamentais aqui compreendidos como princípios gerais de direito. É ampla a possibilidade de provocação da Tribunal de Justiça. Estão legitimados para propor ação o Conselho, a Comissão, os Estadosmembros (art. 230, 2) e também as pessoas naturais ou jurídicas, desde que afetadas direta e individualmente por ação ou regulamento da Comunidade (art. 230, 4)8. O Tratado de Maastricht 2
Segado. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional, cit., p. 68. Rousseau, Dominique. Do Conselho Constitucional Ao Tribunal Constitucional? In: Direito Público - Ano I, Nº 3, Brasília:IDP/Síntese, Jan-Mar 2004, p. 89. 4 Tomuschat, Christian, Das Bundesverfassungsgericht im Kreise anderer nationaler Verfassungsgerichte, in: Badura, Peter / Dreier, Horst (Org.), Festschritft 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, 2001, Tübingen, MohrSiebeck, vol. 1, p. 245 (248). 5 Tomuschat, Das Bundesverfassungsgericht im Kreise..., cit., p. 249. 6 Tomuschat, Das Bundesverfassungsgericht im Kreise..., cit., p. 249. 7 Tomuschat, Das Bundesverfassungsgericht im Kreise..., cit., p. 249. 8 Cf. Marenholz, Ernst Gottfried. Europäische Verfassungsgerichte, JöR (Jahrbuch des öffentlichen Rechts der Gegenwart) 49 (2001), S. 15-30 (20 ff.), p. 23. 3
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes estabeleceu no art. 2349 a necessidade de que, em caso de dúvida sobre a legitimidade de ato comunitário, o juiz local suscite a controvérsia perante o Tribunal de Justiça Européia. Trata-se de providência que guarda estrita semelhança com o processo de controle concreto do sistema concentrado10. Também a Corte Européia de Direitos Humanos, sediada em Estrasburgo, desempenha um papel muito similar ao das Cortes Constitucionais nacionais, especialmente no que concerne à questão da defesa dos direitos humanos na Europa. Embora se aponte como déficit no procedimento da Corte Européia a ausência de decisão de caráter cassatório, afigura-se inequívoco que “o efeito do juízo de constatação” (Feststellungswirkung) e a outorga de uma indenização adequada (Convenção, art. 41) acabam por produzir um resultado satisfatório no caso concreto11.
1.1.1. ASPECTOS FORMAIS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO NORTE-AMERICANO A Constituição americana incorporou a distinção entre a common law e a equity, consagrando que o “Poder Judiciário estender-se-á a todos os casos de lei e de eqüidade, que se suscitem em torno da Constituição, das leis dos Estados Unidos” (art. 3º, secção 2). Competia, assim, ao Poder Judiciário, exercer jurisdições paralelas de common law e eqüidade, utilizando-se dos procedimentos de ambos os sistemas (exception ou injunction). O Código Judiciário, de 1788, considerava, porém, que a eqüidade somente deveria ser aplicada na ausência ou inadequação dos remédios previstos na common law12. A ampliação da competência federal, consolidada com a promulgação das l3ª, 14ª e 15ª Emendas, e o reconhecimento de que a proibição contida na 13ª Emenda, quanto à propositura de ação contra o Estado, não se aplicava ao funcionário que se dispusesse a aplicar lei inconstitucional, deram ensejo à utilização ampla da injunction como técnica de controle de constitucionalidade13.
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“Artigo 234º (ex-artigo 177º)
O Tribunal de Justiça é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação do presente Tratado; b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas Instituições da Comunidade e pelo BCE; c) Sobre a interpretação dos estatutos dos organismos criados por acto do Conselho, desde que estes estatutos o prevejam. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal de Justiça.” 10 Häberle, Peter. Das Bundesverfassungsgericht als Muster einer selbständigen Verfassungsgerichtsbarkeit, in: Badura, Peter e Dreier, Horst, Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p. 311 (331). 11 Cf. Marenholz. Europäische Verfassungsgerichte, cit., p. 15 (20-21). 12 Jaffin, George H. Evolução do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis nos Estados Unidos, RF, 86:282. 13 Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF,., p. 282-4; cf., também, Oshorn vs. Bank of the United States, 9 Wheaton 738 (1824).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes No caso Fitts, Attorney General vs. McGhee, de 1899, a Corte invocou a doutrina da separação de poderes para anular injunction concedida, asseverando que “se, só porque são funcionários legais do Estado, se pudesse propor uma ação com o objetivo de pôr à prova a constitucionalidade da lei, mediante uma injunction pedida contra eles, então a constitucionalidade de cada lei poderia ser contestada por uma ação contra o governador e o Attorney General, fundando-se em que o primeiro, como órgão máximo do Executivo do Estado, está, de um modo geral, incumbido da execução de todas as suas leis, e o último, como Attorney General, deve representar o Estado nos litígios resultantes de sua aplicação. Este seria o caminho mais fácil para obter decisão judicial rápida sobre questões de direito constitucional que poderiam ser propostas por particulares...”14.
Todavia, no caso Ex parte Young, Attorney General, de 1908, a Corte Suprema reviu essa orientação, assentando que “o fato de o funcionário do Estado, por força de seu cargo, ter alguma relação com a aplicação de lei, é o realmente importante; não interessa que essa relação resulte de direito comum ou seja criada especialmente pela própria lei em discussão”15. E mesmo a iniciativa do Congresso no sentido de retirar a competência de juiz singular para a apreciação da injunction não impediu que os requerimentos continuassem a ser deferidos por uma Corte federal16. A evolução do sistema de controle de constitucionalidade nos Estados Unidos haveria de levar, inevitavelmente, à adoção da ação declaratória como técnica de controle de constitucionalidade. Como já anotado por Jaffin, o pedido de injunction não configurava senão um test case, uma vez que o requerente pretendia, efetivamente, uma declaração judicial sobre a validade da lei17. Daí considerar que “as sentenças, nos casos constitucionais, são essencialmente declaratórias e que o emprego de outros meios, pertencentes à common law ou concedidos em nome da eqüidade, não é senão rito processual com o qual se procura convencer de que o caso é passível de apreciação judicial, pois que se usam para propô-lo os mesmos procedimentos consagrados em 1789 pela Court of Kings Bench e pela High Court of Chancery”18. Não obstante, suscitaram-se sérias objeções quanto à possibilidade de se utilizar a ação declaratória no controle de constitucionalidade das leis. Alguns argumentavam que tal modalidade processual se mostrava incompatível com o princípio da divisão de poderes19. Por outro lado, a divisão da soberania em três funções obstava a qualquer invasão de competência, apodando-a de ultra vires20. É por isso que Rui, embasado nos sólidos ensinamentos da doutrina americana, insistia que a declaração de inconstitucionalidade da lei consignava, tão-somente, a sua incompossibilidade com a Constituição, não devendo constituir-se “conclusão de sentença, objecto de julgado”21. É bem verdade que tal entendimento era plenamente compatível com o princípio que impunha ao Judiciário o dever de se pronunciar apenas em controvérsias autênticas. Consagrava-se o contraditório entre as partes como fundamental à judicialização da questão constitucional. Em páginas memoráveis, Rui Barbosa transcrevia as lições de Münstenberg: “Não vão supor que a Côrte Suprema se abalance a proferir veredictos judiciarios de natureza abstrata, contrapondo o seu veto, quando o Congresso nacional ou as legislaturas estaduaes transgridem a Constituição. 14
Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 285. Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 286. 16 Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 286. 17 Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 287; Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1968, p. 112-3. 18 Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 287. 19 Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 288. 20 Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 288; Mushrat vs. U. S., 219 U. S. 352, 359, 31 Sup. Ct. Rep. 250, 252. 21 Rui Barbosa, O direito do Amazonas ao Acre septentrional, Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, 1910, v. 1, p. 10. 15
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De tal não se cogita, uma vez que, theoricamente (theoretically), a Côrte Suprema, parallela em situação ao Congresso, não lhe é superior, e, sobretudo, no seu caracter de tribunal, não legisla. Não lhe cae na alçada a questão juridica, enquanto se lhe não offereça um caso concreto por decidir; e a Côrte Suprema sempre se tem negado a firmar interpretações theoricas, não se antecipando nunca ao reclamo actual de uma demanda em juizo. Já no seculo dezoito o próprio Washington lhe não obteve resposta a uma questão de ordem geral. E, ainda em se suscitando effectivamente o pleito, a Côrte Suprema não estatue que certa e determinada lei é irrita e nenhuma: cifra-se a deslindar o caso occorrente, indicando os fundamentos juridicos, onde estriba a decisão. A se verificar então divergência entre duas leis, o julgado, apoiando-se numa contra a outra, accentúa, applicadamente, os motivos da selecção. Verdade seja que, desta sorte, nunca se sentenceia mais que um litigio; mas desde então, graças as normas do common law, a decisão proferida estabelece jurisprudência, que leva ulteriormente, assim as justiças inferiores, como a propria Côrte Suprema, a conformar com o aresto os seus julgados. Exautorada assim (superseded), a lei da legislatura (the legislative law) vem a ficar praticamente annullada (practically annulled), tornando-se como não existente (non existent)”22.
A despeito da sólida elaboração doutrinária e jurisprudencial, a Suprema Corte viu-se compelida a rever a posição que repudiava a ação declaratória como instrumento de controle de constitucionalidade. E isto se verificou após a Corte ter declarado, expressamente, a inconstitucionalidade da ação declaratória no contencioso, tal como descrito por Jaffin na seguinte passagem: “A Corte Suprema foi levada, em 1927, na questão Liberty Ware-house Co. vs. Grannis, a reafirmar, mais direta e claramente, a inconstitucionalidade de toda tentativa para usar a sentença declaratória no contencioso constitucional. Aconteceu, porém, seja por acaso ou desígnio dos deuses imortais, que essa decisão foi pronunciada em feito no qual se buscava declaração judicial da inconstitucionalidade de uma lei do Estado por suposta violação da Constituição dos Estados Unidos. O poder da Corte Suprema para rever as decisões das cortes estaduais nas questões constitucionais lhe fora concedido pelo Congresso na 25ª secção do primeiro Judiciary Act de 1789; e o exercício desse poder tem sido uma das funções vitais da Corte, antes e depois da 14ª emenda. Não é necessário meditar muito para perceber que, como resultado de sua própria decisão, a Corte Suprema se condenara, involuntariamente, ao suicídio por inanição progressiva, porque, em número sempre crescente de Estados, nos quais o procedimento da sentença declaratória era considerado recurso eficiente para provar a constitucionalidade das leis, haveria inevitável disposição para convertê-lo em meio exclusivo de iniciar litígio constitucional, para evitar, assim, que a Corte Suprema exercesse sua jurisdição de apelação. Em outras palavras: a decisão de última instância da corte de Estado, relativamente à constitucionalidade de uma lei do Estado, escaparia à apelação e revisão da Corte Suprema Federal”23.
Dessarte, no caso Nashville C. and St. Louis Railway vs. Wallace, de 6 de fevereiro de 1933, a Corte Suprema reconhece o justiciable character da sentença declaratória, asseverando que: “A Constituição não exige que o caso ou controvérsia se apresente dentro das formas tradicionais de procedimento, invocando somente os remédios tradicionais. A cláusula judiciária da Constituição definiu e lindou o poder judiciário, mas não o método particular por que poderia ser chamado a intervir. Não cristalizou em formas imutáveis o procedimento de 1789 como o único meio possível de apresentar um caso, ou controvérsia, juridicamente examinável de outro modo pelas Cortes federais... Aos Estados é permitido regular o seu procedimento judiciário próprio. Daí, não serem bastantes modificações meramente na forma ou método de procedimento por que os direitos federais (os derivados da Constituição e das leis dos Estados Unidos) são levados à final adjudicação nas Cortes dos Estados para impedir a revisão por esta Corte, enquanto o caso guarde os característicos de um procedimento contraditório que envolva controvérsia
22 23
Rui Barbosa, O direito do Amazonas, cit., p. 50-2. Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 290-1.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes concreta, não hipotética, resolvida, finalmente, pela instância interior (da mais alta Corte do Estado)”24.
Evidentemente, a adoção da ação declaratória como técnica de controle de constitucionalidade outorga maior flexibilidade ao sistema, superando a exigência de um contraditório rígido e nem sempre autêntico. Outrossim, a importância atribuída ao contraditório como instrumento eficaz de garantia legislativa havia de ser relativizada. A mútua vigilância ou o controle recíproco entre os litigantes, pressuposto indispensável do contraditório, dava ensejo, não raras vezes, a conluios e simulações. Assim, no caso Carter Coal Company, o principal acionista da empresa propôs ação contra a companhia, sob a alegação de que esta se dispunha a aplicar uma lei inconstitucional. Como nota Eduardo Jimenez de Arechaga (hijo), “a defesa da constitucionalidade da lei estava entregue, neste contraditório — formalmente perfeito, mas suspeito de simulação processual — a quem possuía interesse evidente na invalidação da lei”25. Nem pareceria razoável objetar contra a possível generalização de controvérsias constitucionais. É evidente que a ação declaratória não se confunde com a actio popularis, que, segundo Kelsen, configuraria o instrumento mais adequado ao exercício do controle de constitucionalidade26. Dessarte, embora possa imprimir maior flexibilidade ao sistema, a adoção da ação declaratória como técnica de controle de constitucionalidade não se confunde com as formas de controle direto ou em via principal. Indispensável se afigura a caracterização de um case or controversy hábil a ser deslindado judicialmente27. Kelsen observa que a deficiência desse sistema é reconhecida pela doutrina americana, afigurando-se evidente que o interesse quanto à constitucionalidade das leis configura interesse público, que não coincide, necessariamente, com os interesses privados28. E o Judiciary Act, de 1937, parece expressar essa preocupação, na medida em que assegura ao Governo Federal a faculdade de intervir na lide entre particulares, sempre que estiver em discussão a constitucionalidade de lei federal atinente ao interesse público. Confere-se, igualmente, ao Poder Executivo, o direito de apelar para a Corte Suprema contra decisão que declara a inconstitucionalidade de lei federal, e se consagra vedação aos juízes singulares para conceder injunctions que afastem a aplicação de lei do Congresso, sob o fundamento de inconstitucionalidade29. Em verdade, nota-se aqui, nas hipóteses mencionadas, uma tendência de conferir importância à questão constitucional em debate – e não à causa eventualmente discutida entre particulares 30. Mas, anota Kelsen, “tudo isto foi estabelecido com o objetivo de defesa da validade da lei emanada do Congresso, para tornar mais difícil a declaração de inconstitucionalidade da lei federal, e não para promover a anulação da lei inconstitucional”31. É possível que Kelsen tenha sido extremamente rigoroso em sua análise do sistema americano. Em verdade, a proibição de declaração de inconstitucionalidade de lei federal por parte dos juízes singulares aproxima, parcialmente, o modelo americano do modelo europeu, nesse particular. A 24
Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 290-1; Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 100-1. 25 Eduardo Jimenez Arechaga, A ação declaratória de inconstitucionalidade na Constituição uruguaia de 1934, RF, 86:295. 26 Kelsen, La garanzia..., in La giustizia costituzionale, Milano, Giuffrè, 1981, p. 194. 27 Bernard Schwartz, Direito constitucional americano, trad. Carlos Nayfeld, Rio de Janeiro, Forense, 1966, p. 187-92; Edward S. Corwin, A Constituição norte-americana e seu significado atual, Rio de Janeiro, Zahar, 1986, p. 169-71. 28 Kelsen, Il controllo di costituzionalità..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 306. 29 Kelsen, Il controllo di costituzionalità..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 306; Jaffin, Evolução do controle jurisdicional..., RF, cit., p. 286. 30 Segado. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional, cit., p. 69. 31 Kelsen, Il controllo di costituzionalità..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 306.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes possibilidade de que o próprio Poder Executivo recorra da decisão que afasta a aplicação da lei inconstitucional vem, também, em reforço desse perfil objetivado. A admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto. Observe-se que sucessivas reformas legislativas reduziram as competências recursais da Corte Suprema. Em 1891, uma lei conferiu à Corte Suprema, pela primeira vez, poderes discricionários para o julgamento de determinados casos. Em 1925, esse poder de rejeição por parte do Tribunal foi significativamente ampliado. Em tempos mais recentes, em 1988, uma nova reforma acabou por eliminar, praticamente, a jurisdição de apelação, de caráter obrigatório, em relação aos tribunais federais32. Por isso, ensina Segado Fernández que a possibilidade de revisão de sentenças judiciais perante a Suprema Corte americana deixou de ser uma questão de direito e assumiu o caráter de uma questão de discricionariedade judicial. A admissão de recurso depende, pois, de um juízo da Corte sobre a existência de razões especiais relevantes33. Por tudo isso, já no primeiro quartel do século passado, afirmava Triepel que os processos de controle de normas deveriam ser concebidos como processos objetivos. Assim, sustentava ele, no conhecido Referat sobre "a natureza e desenvolvimento da jurisdição constitucional", que, quanto mais políticas fossem as questões submetidas à jurisdição constitucional, tanto mais adequada pareceria a adoção de um processo judicial totalmente diferenciado dos processos ordinários. "Quanto menos se cogitar, nesse processo, de ação (...), de condenação, de cassação de atos estatais -- dizia Triepel -- mais facilmente poderão ser resolvidas, sob a forma judicial, as questões políticas, que são, igualmente, questões jurídicas".34 Triepel acrescentava, então, que “os americanos haviam desenvolvido o mais objetivo dos processos que se poderia imaginar (Die Amerikaner haben für Verfassungsstreitigkeiten das objektivste Verfahren eingeführt, das sich denken lässt).35 Restava evidente, pois, que há muito a Corte Suprema americana não se ocupava da correção de eventuais erros das Cortes ordinárias. Em verdade, com o Judiciary Act de 1925, a Corte passara a exercer um pleno domínio sobre as matérias que deve ou não apreciar.36 Ou, nas palavras do Chief Justice Vinson, “para permanecer efetiva, a Suprema Corte deve continuar a decidir apenas os casos que contenham questões cuja resolução haverá de ter importância imediata para além das situações particulares e das partes envolvidas” (“To remain effective, the Supreme Court must continue to decide only those cases which present questions whose resolutions will have immediate importance far beyond the particular facts and parties involved”).37 Ademais, a utilização do juízo de relevância mediante o writ of certiorari tem permitido que a Corte se limite a apreciar questões constitucionais. Assim, também quanto às matérias, a Corte Suprema americana assume perfil assemelhado aos das Cortes Constitucionais.
1.1.2. Aspectos formais do controle de constitucionalidade no direito austríaco
1.1.2.1. Introdução O modelo austríaco traduz uma nova concepção de controle de constitucionalidade. Outorgouse ao Tribunal Constitucional (Verfassungsgerichtshof) a competência para dirimir as questões 32
Cf., a propósito, Segado. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional, cit., p. 75-76. Segado. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional, cit., p. 76. 34 Triepel, Heinrich. Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, VVDStRL, Vol. 5 (1929), p. 26. 35 Triepel. Wesen und Entwicklung …, cit., p. 26. 36 Cf., a propósito, Griffin, Stephen M. The Age of Marbury, Theories of Judicial Review vs. Theories of Constitutional Interpretation, 1962-2002. Paper apresentado na reunião anual da ‘American Political Science Association’, 2002, p. 34. 37 Griffin, The Age of Marbury …, cit., p. 34. 33
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes constitucionais, mediante requerimento especial (Antrag), formulado pelo Governo Federal (Bundesregierung), com referência a leis estaduais, ou pelos Governos estaduais (Landesregierungen), no tocante às leis federais (art. 140, par. 1º)38. Não se exige, porém, a demonstração de ofensa a qualquer interesse particular ou situação subjetiva: “Ao requerer o exame e anulação de uma lei, por inconstitucionalidade, o Governo federal ou os Governos estaduais não estão obrigados a demonstrar que a lei violou uma situação subjetiva. A União e os Estados — mediante um controle recíproco — fazem valer o interesse da constitucionalidade da lei. Qualquer Estado poderá argüir a inconstitucionalidade de qualquer lei federal, ainda que aplicável a um único Estado”39.
A proteção à chamada minoria qualificada, recomendada por Kelsen na famosa conferência de 1928, somente veio a ser positivada recentemente. A revisão constitucional, de 1975, reconheceu a legitimidade da argüição de inconstitucionalidade de lei federal formulada por um terço dos membros do Parlamento40. Competia ao Tribunal apreciar, outrossim, a questão constitucional como pressuposto de uma controvérsia pendente41. Inexistia, porém, previsão quanto ao controle concreto de normas relativo aos processos pendentes perante outros juízos ou Tribunais. Esse controle concreto somente foi introduzido em 1929. Conciliou-se, assim, o sistema de controle direto com modalidade de controle concreto, provocado no curso de uma pendência judicial. E, por isso, reconheceu-se, excepcionalmente, efeito retroativo à decisão proferida no caso concreto submetido à Corte pelo Tribunal Superior (Oberster Gerichtshof) ou pela Corte Administrativa (Verwaltungsgerichtshof). O efeito retroativo atribuído à sentença de cassação decorria, segundo Kelsen, de uma necessidade técnica. É que os órgãos legitimados a provocar o Tribunal, no caso concreto, tinham necessidade de saber se aquela provocação, caso procedente, teria efeito imediato sobre a questão em exame42. A despeito das alterações introduzidas, a engenhosa fórmula concebida por Kelsen continuou a merecer severas críticas. A legitimação exclusiva dos órgãos de segunda instância para suscitar o exame da questão constitucional, contida no caso concreto, não se mostra suficiente, pois, como anota Cappelletti, “todos os outros juízes devem, irremediavelmente, aplicar as leis aos casos concretos submetidas a seu julgamento, sem possibilidade de abster-se da aplicação, tampouco daquelas leis que sejam consideradas manifestamente ou macroscopicamente inconstitucionais”43. A Constituição austríaca contempla, ainda, um recurso (Beschwerde) contra a violação de direitos constitucionalmente garantidos, por ato da Administração, e contra a aplicação de um regulamento ilegal, ou de uma lei ou tratado inconstitucional (art. 144, 1ª parte). Nesse caso, exigese o exaurimento das instâncias ordinárias44. Em 1975 foi introduzido o chamado recurso individual (Individualantrag), que permite a 38
Kelsen, La giurisdizione costituzionale e amministrativa al servizio dello stato federale secondo la nuova costituzione austriaca del 10 ottobre 1920, in La giustizia costituzionale, cit., p. 22-3. 39 Kelsen, La giurisdizione..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 22-3. 40 Cf., a propósito, Peter Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung im Rahmen der staatlichen Funktionen, Europäische Grundrechte Zeitschrift, Heft 8/9, 1988, p. 194. Considere-se que essa idéia já havia sido exposta por Kelsen em 1928 (cf. Wesen und Entwicklung der Staatsgerichstsbarkeit; Veröffentlichung der Deustchen Staarsrechtslehrer, Heft 5, Berlin-Leipzig, Walter de Gruyter & Co., 1929, p. 75; v. também a tradução italiana, La garanzia..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 196). 41 Kelsen, La giurisdizione..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 22. 42 Kelsen, Il controllo di costituzionalità..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 309. 43 Cappelletti, O controle judicial, cit., p. 108. 44 Charles Eisenmann, La justice constitutionnelle et la haute cour constitutionnelle D’Autriche, Paris, LGDJ, 1928, p. 237 e s.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
impugnação, perante a Corte Constitucional, de lei ou regulamento que lese, diretamente, direitos individuais (art. 140, par. 1º)45. A jurisprudência da Corte Constitucional condiciona também a admissibilidade desse recurso ao princípio da subsidiariedade: essa providência é cabível se não houver outra via judicial adequada à defesa do alegado direito46. Finalmente, deve-se observar que, nos termos do art. 138, par. 2º, da Constituição, cabe à Corte Constitucional declarar, mediante requerimento do Governo Federal ou de um Governo estadual, se determinado ato concreto de soberania é da competência da União ou dos Estados. Em se tratando de competência legislativa, deverá o requerente proceder à juntada do projeto de lei em discussão. Idêntica prática há de ser observada em relação aos regulamentos. Cuida-se, pois, de modalidade de controle preventivo que somente poderá ser instaurada antes da conversão do projeto em lei47. Anote-se que, no âmbito do controle preventivo de normas (art. 138, par. 2º, da Constituição), o projeto de lei ou de regulamento há de ser apreciado, exclusivamente, à luz dos preceitos definidores da competência da União e dos Estados48.
1.1.2.2. Objeto, parâmetro de controle 1.1.2.2.1. Objeto do controle O sistema austríaco consagra, portanto, ao lado dos processos de controle abstrato e concreto e dos recursos constitucionais especiais, uma modalidade preventiva de controle de normas. Podem ser objeto de controle de constitucionalidade as leis federais ou estaduais e os regulamentos editados pelas autoridades administrativas cuja legitimidade há de ser aferida não só em face da Constituição, mas também da lei ordinária (art. 139, par. 1º, da Constituição)49. Ressaltese que o controle abstrato de normas aplica-se, tão-somente, ao direito vigente. A aferição da constitucionalidade de leis revogadas deve-se limitar ao processo de controle concreto de normas e ao recurso constitucional50. 1.1.2.2.2. Omissão inconstitucional Em princípio, não pode ser apreciada, no juízo da constitucionalidade, a omissão legislativa, uma vez que a competência do Verfassungsgerichtshof limita-se à aferição da constitucionalidade de normas, isto é, de atos formalmente promulgados ou editados51. Todavia, a omissão parcial do legislador pode dar ensejo à declaração de inconstitucionalidade de determinado preceito. Nesse caso, embora a inconstitucionalidade resulte da inércia do legislador, continua a ser objeto do controle de constitucionalidade a lei ou ato normativo52. Oberndorfer menciona precedentes da Corte Constitucional em que a mudança das relações fáticas (Änderung tatsächlicher Verhältnisse) permitiu a caracterização de uma lacuna parcial, configurando ofensa ao princípio da isonomia53. 1.1.2.2.3. Parâmetro do controle de constitucionalidade 45
Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 195; Herbert Haller, Die Prüfung von Gesetzen, Wien-New York, Springer/Verlag, 1979, p. 207 e s. 46 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 195; Haller, Die Prüfung, cit., p. 208. 47 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 194. 48 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 194. 49 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 195. 50 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 196. 51 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 196. 52 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 196. 53 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 198-9.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes O parâmetro do controle de constitucionalidade, no sistema austríaco, é, fundamentalmente, a Constituição. Deve-se ressaltar, porém, que a Convenção Européia de Direitos Humanos integra formalmente o Direito Constitucional austríaco.54 As bases positivistas desse sistema inibiram, excessivamente, o desenvolvimento da jurisdição constitucional, marcada, inicialmente, pelo ceticismo teórico de Kelsen55. Essa orientação permitiu, segundo Oberndorfer, que a tarefa legislativa fosse exercida de forma quase ilimitada, entendendose que as valorações de índole política ou subjetiva, no juízo de constitucionalidade, ensejariam a renúncia à função judicante, podendo estimular o propósito de substituir o legislador56. Essa tendência estaria cedendo lugar a um controle de conteúdo mais efetivo, como parecem demonstrar as últimas decisões da Corte Constitucional sobre o princípio da isonomia57. Ao contrário do sistema alemão, não se vislumbra possibilidade de se invocar princípio de direito natural ou suprapositivo como parâmetro do controle58.
1.1.3. O processo de controle de constitucionalidade na República Federal da Alemanha O modelo de jurisdição concentrada concebido por Kelsen, e consagrado pela Constituição austríaca de 1920-1929, veio a ser adotado, inicialmente, na Itália e na Alemanha. Estruturalmente, os sistemas apresentam evidentes semelhanças. A utilização da ação direta (Organklage), cuja titularidade se deferiu a determinados órgãos políticos (Constituição italiana, arts. 134/136; Constituição alemã, art. 93), e a eficácia erga omnes das decisões proferidas pela Corte Constitucional são traços inequívocos do modelo desenvolvido pelo mestre austríaco. Todavia, as Constituições italiana e alemã não contêm o grave defeito contemplado, inicialmente, no sistema austríaco, que era omisso quanto ao controle judicial concreto59. Dessarte, na Itália, em conformidade com o disposto no art. 137 da Constituição, a lei de 9 de fevereiro de 1948 estabeleceu que quando a questão de legitimidade seja “rilevata d’ufficio o solievata da una defle parti nel corso di un giudizio... può in tal caso essere rimessa alla Corte Costituzionale per la sua decisione”60. Também no Direito alemão consagra-se o controle concreto de normas (Richtervorlage), estabelecendo-se que, quando um Tribunal considerar inconstitucional uma lei de cuja validade dependa a decisão, terá de suspender o processo e submeter a questão à decisão do Tribunal estadual competente em assuntos constitucionais, quando se tratar de violação da Constituição de um Estado, ou à do Tribunal Constitucional Federal, quando se tratar de violação da Lei Fundamental (Lei Fundamental, art. 100, I). Ao conjugar a forma direta de controle e o controle concreto, imaginava Kelsen ter superado o grande problema identificado nos Estados Unidos, onde se ressentia da falta de uma modalidade autônoma de controle. “L’interesse alla costituzionalità delle leggi è, comunque un interesse 54
Cf. Frowein, Jochen Abr. Die Europäisierung des Verfassungsrechts, in: Badura, Peter e Dreier, Horst, Festschrift 50 Jahre Bundesverfassungsgericht, Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p. 209(218). 55 Kelsen, Wesen und Entwicklung, cit., p. 69. V., também, a tradução italiana, La garanzia..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 188-9; cf., ainda, Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 198. 56 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 198. 57 Oberndorfer, Die Verfassungsrechtsprechung..., Grundrechte Zeitschrift, cit., p. 197-8. 58 Haller, Die Prüfung, cit., p. 133-4. 59 Mauro Cappelletti, O controle judicial, cit., p. 104-5; cf., também, Eduardo Garcia de Enterría, La constitución como norma y el tribunal constitucional, Madrid, Ed. Civitas, 1981, p. 135. 60 Piero Calamandrei, La illegittimità costituzionale delle leggi nel processo civile, in Opere giuridiche, Napoli, Morano, 1968, v. 3, p. 372; cf., também, Franco Pierandrei, Corte costituzionale, in Enciclopedia del diritto, Milano, Giuffrè, 1962, v. 10, p. 943 e s.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes pubblico che non coincide necessariamente con l’interesse privato delle parti; è un pubblico interesse che merita protezione attraverso un procedimento conforme alia sua speciale natura”61. Empresta-se na Alemanha singular relevância à jurisdição constitucional. A par de uma vastíssima gama de atribuições conferidas ao Bundesverfassungsgericht (Lei Fundamental, arts. 93, 100 e 126), reconhece-se aos Länder o direito de instituir a sua própria Justiça Constitucional62. Tais peculiaridades, somadas a uma fecunda atividade do Bundesverfassungsgericht e dos Tribunais Constitucionais estaduais, converteram a jurisdição constitucional em pedra de toque do sistema político tedesco63. A Lei Fundamental de Bonn concebe o Bundesverfassungsgericht como órgão jurisdicional composto por juízes federais e outros juristas, eleitos, em partes iguais, pelo Parlamento Federal (Bundestag) e pelo Conselho Federal (Bundesrat), não podendo os seus membros ser escolhidos dentre os integrantes dos órgãos legislativos federais e estaduais ou dos Governos Federal e estaduais (Lei Fundamental, art. 94, I; Lei do Bundesverfassungsgericht, § 2)64. Organizado em duas Câmaras, com as atribuições definidas em lei (Lei do Bundesverfassungsgericht, § 14), o Tribunal dispõe de poderes para editar regimento (Geschäftsordnungsautonomie), com regras processuais supletivas65. A competência do Tribunal Constitucional está, fundamentalmente, definida no Texto Magno, podendo a lei deferir-lhe outras atribuições (art. 93, par. 2º)66. Nos termos do art. 93 da Lei Fundamental, cabe ao Bundesverfassungsgericht apreciar: a) As chamadas Organstreitigkeiten, ou as controvérsias entre órgãos federais superiores ou entre outros interessados dotados de direitos próprios pela Lei Fundamental ou pelo regulamento interno de um órgão federal supremo (art. 93, par. 1º, n. 1), bem como no caso de dissenso quanto aos direitos e deveres da União e dos Estados, sobretudo no tocante à execução do direito federal e ao exercício da fiscalização federal (Bundesaufsicht) (art. 93, par. 1º, n. 3), e outras controvérsias entre União e Estado, entre diferentes Estados, ou até no interior de um Estado, sempre que não houver outra via judicial (art. 93, par. 1º, n. 4)67. b) O controle de normas (Normenkontrolle), no qual se afere a constitucionalidade ou a legitimidade de uma norma. Este envolve o controle in abstracto, o controle concreto de normas, o processo de qualificação de normas (Normqualifikationsverfahren), relativo à subsistência da lei como direito federal (Lei Fundamental, art. 126), e a chamada verificação de normas (Normverifikation), que permite ao Bundesverfassungsgericht decidir, a requerimento de outro Tribunal, se determinada regra de direito internacional público integra o direito federal (Lei Fundamental, art. 100, par. 2º). No âmbito do controle abstrato de norma, o Tribunal aprecia representação formulada pelo Governo Federal, por Governo estadual ou por um terço dos membros 61
Hans Kelsen, Il controllo di costituzionalità..., in La giustizia costituzionale, cit., p. 305-6. Christian Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, 2. ed., München, C. H. Beck, 1982, p. 1 e s.; Ernst Friesenhahn, Zur Zuständigkeitsabgrenzung zwischen Bundesverfassungsgerichstsbarkeit um Landesverfassungsgerichtbarkei, in Christian Starck (org.), Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, 1. Aufl., Tübingen, Mohr, 1976, v. 1, p. 749 e s. 63 Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 1. 64 O tribunal é composto por duas Câmaras (Senate) com oito juízes, escolhidos dentre cidadãos maiores de quarenta anos, que preencham os requisitos para o exercício de cargo jurisdicional (Befähigung zum Richteramt) (Lei do Bundesverfassungsgericht, § 3, I e II), não podendo exercer qualquer função ou emprego, salvo o magistério superior (§§ 3, VI, e 101, III). Há de ser observado o sistema de “paridade federativa”, competindo a cada Casa Legislativa indicar oito juízes, que devem reunir uma maioria de 2/3 em torno de seu nome. O mandato é de doze anos, vedada a reeleição e observado o limite de idade de sessenta e oito anos (Lei do Bundesverfassungsgericht, §§ 4 a 7). 65 Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, München, C. H. Beck, 1985, p. 19. 66 Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 36-7. 67 Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 37. 62
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes do Parlamento Federal, relativa à compatibilidade do direito federal ou estadual com a Constituição (Lei Fundamental, art. 93, par. 1º, n. 2). O controle de norma in concreto há de ser suscitado por um tribunal, que deve sustar o feito, se considerar a lei inconstitucional (Lei Fundamental, art. 100, par. 1º; Lei do Bundesverfassungsgericht, §§ 13, n. 11, 80 e s.). Esse controle se restringe à lei em sentido formal editada após a promulgação da Lei Fundamental68. Também o dissídio jurisprudencial entre Tribunais Constitucionais estaduais ou entre estes e o Bundesverfassungsgericht a propósito da interpretação da Lei Fundamental insere-se entre as hipóteses de controle normativo (Lei Fundamental, art. 100, par. 3º). c) Os recursos constitucionais formulados por qualquer cidadão (Verfassungsbeschwerde), sob alegação de ofensa a um direito fundamental (Grundrecht), ou de lesão aos direitos contidos nos arts. 20, IV, 33, 38, 101, 103 e 104 da Lei Fundamental, desde que exauridas outras vias processuais [Lei Fundamental, art. 93, par. 1º, n. 4a; Lei do Bundesverfassungsgericht, § 90, (2)]. Além de estarem submetidos ao princípio do exaurimento da via judicial e ao princípio da subsidiariedade, o recurso constitucional alemão pode ser recusado pela decisão unânime de câmara formada por 3 juízes. Segundo as estatísticas, 97% dos recursos são recusados por essas câmaras69. Por outro lado, o recurso constitucional perfaz 95% do trabalho do Tribunal70. Somente 2,7% dos recursos constitucionais têm êxito. A Lei Fundamental assegura, igualmente, o direito dos municípios e associações comunais de opor recurso constitucional contra lei ofensiva ao direito de autoadministração (Lei Fundamental, art. 28, par. 2º, c/c o art. 93, par. 1º, n. 4b). d) As denúncias concernentes aos abusos de direito [Lei Fundamental, arts. 18 e 46, par. 3º; Lei do Bundesverfassungsgericht, §§ 13, (1), 36 e s.] e à inconstitucionalidade dos partidos políticos que ameacem os fundamentos da ordem democrática ou coloquem em risco a existência da República Federal da Alemanha [Lei Fundamental, art. 21, par. 2º; Lei do Bundesverfassungsgericht, §§ 13, (2), 43 e s.]. O Parlamento ou o Conselho Federal poderá denunciar o Presidente da República perante o Bundesverfassungsgericht, nos casos de lesão dolosa à Lei Fundamental ou a outra lei federal [Lei Fundamental, art. 61; Lei do Bundesverfassungsgericht, §§ 13, (4), 49 e s.]. e) O controle das eleições (Wahlprüfung) exercido pelo Parlamento (Lei Fundamental, art. 41, par. 1º), mediante recurso dos órgãos expressamente legitimados [Lei Fundamental, art. 41, par. 2º; Lei do Bundesverfassungsgericht, §§ 13, (3), e 48; Lei de Controle das Eleições (Wahlprüfungsgesetz), §§ 1, 16, III, e 181]. A Lei do Bundesverfassungsgericht não contém disciplina exaustiva de atos e procedimentos, podendo as lacunas ser colmatadas pela aplicação analógica de outras regras processuais71. O regimento interno do Tribunal assume o caráter de uma ordem processual complementar72. Todavia, não se é de reconhecer uma autonomia processual ao Bundesverfassungsgericht. Ao revés, o próprio Tribunal deixou assente, de forma expressa, que “a Lei Fundamental e a Lei do Bundesverfassungsgericht fixaram os processos possíveis de serem apreciados”, devendo a sua jurisdição ser exercida dentro desses limites73.
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Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 38. Häberle, Peter. O Recurso de Amparo no Sistema Germânico de Justiça Constitucional. In: Direito Público, Nº 2, Brasília: IDP/Síntese, out-dez 2003, p.121. 70 Jaeger, Renate. Erfahrungen mit Entlastungsmassnahmen zur Sicherung der Arbeitsfähigkeit des Bundesverfassungsgerichts. In: Europäische Grundrechte - EuGRZ, 30 April 2003, Kehl am Rhein: N.P. Engel, p.149. 71 BverfGE, 1:108(110). 72 Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 19; Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 40. 73 BverfGE, 1:396(40809). O tema não é pacífico na doutrina. Considera Schlaich, porém, que não é o processo escolhido pelo Tribunal, mas sim aquela ordem previamente estabelecida pelo legislador, que há de emprestar legitimidade e convencimento aos seus julgados (Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 35-6). 69
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes O número de processos julgados ou recebidos pela Corte Constitucional alemã, entre 1951 e 2003 (146.937 processos), é equivalente ao número de pleitos que o STF recebe em um ano. Assinale-se que, em períodos de maior crise, a Corte Constitucional alemã jamais recebeu um número superior a 5.911 processos em um mesmo ano. Relembre-se que a Corte Constitucional alemã é composta por dois senados, integrados, cada um, por oito juízes. A tabela abaixo revela o movimento processual da Corte no período 1951-2003.
TABELA I Corte Constitucional Alemã Movimento Processual nos anos de 1951 a 2003
Ano
Primeiro Senado
Segundo Senado
Total
1951
476
5
481
1952
1.008
9
1.017
1953
736
7
743
1954
571
6
577
1955
587
7
594
1956
734
74
808
1957
807
37
844
1958
1.114
96
1.210
1959
1.190
28
1.218
1960
635
747
1.382
1961
544
512
1.056
1962
728
732
1.460
1963
688
726
1.414
1964
808
830
1.638
1965
767
737
1.504
1966
810
770
1.580
39
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Ano
Primeiro Senado
Segundo Senado
Total
1967
786
812
1.598
1968
814
786
1.600
1969
850
809
1.659
1970
845
832
1.677
1971
494
1.048
1.542
1972
655
943
1.598
1973
2.374
947
3.321š
1974
506
1.131
1.637
1975
512
1.076
1.588
1976
1.079
1.389
2.468²
1977
1.263
1.277
2.540
1978
1.701
1.095
2.796
1979
1.499
1.612
3.111
1980
1.588
1.519
3.107
1981
1.527
1.571
3.098
1982
1.741
1.845
3.586
1983
1.829
2.117
3.946
1984
1.765
1.719
3.484
1985
1.547
1.594
3.141
1986
1.587
1.473
3.060
1987
1.690
1.786
3.476
40
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Ano
Primeiro Senado
Segundo Senado
Total
1988
1.803
1.899
3.702
1989
1.669
2.089
3.758
1990
1.609
1.791
3.400
1991
2.016
2.061
4.077
1992
2.049
2.382
4.431
1993
2.319
3.121
5.440
1994
2.551
2.773
5.324
1995
2.776
3.135
5.911
1996
2.599
2.647
5.246
1997
2.636
2.442
5.078
1998
2.419
2.364
4.783
1999
2.303
2.582
4.885
2000
2.402
2.429
4.831
2001
2.328
2.292
4.620
2002
2.496
2.196
4.692
2003
2.738
2.462
5.200
TOTAL
75.568
71.369
146.937
¹ desses, 1.735 são processos idênticos (Parallel-Verfahren - Stab. Zuschlag) ² desses, 381 são processos idênticos (Parallel-Verfahren - § 218 StGB) Fonte: http://www.bundesverfassungsgericht.de/cgi-bin/link.pl?aufgaben
1.1.4. Nota conclusiva A despeito das diferenças notórias entre os sistemas difuso e concentrado e da diversidade das inspirações filosóficas que lhes dão base, afigura-se cada vez mais inequívoco que os modelos americano e europeu apresentam hoje mais afinidades do que se poderia imaginar a partir de uma
41
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes análise perfunctória. Assinale-se que o modelo americano é revelador de uma forte desconfiança em relação ao legislador; o modelo europeu, além dessa desconfiança para com o legislador, traduz também uma dúvida em relação ao papel do juiz.74 A possibilidade de que dispõem as instâncias ordinárias de suscitar a questão constitucional perante a Corte Constitucional (controle concreto) relativiza ou quebranta a idéia de um rígido monopólio de controle de constitucionalidade por esta. É que as instâncias ordinárias passam a ter um papel importante na deflagração do processo de controle de constitucionalidade, especialmente quanto à admissão inicial do estado de ilegitimidade. Nesse ponto, o sistema concentrado aproximase do modelo difuso. Na mesma linha, a criação de ações especiais para a defesa dos direitos e garantias individuais, como a Verfassungsbeschwerde alemã ou recurso de amparo espanhol, permite que questões concretas que afetam a vida do indivíduo sejam apreciadas pela Corte Constitucional. Por seu turno, a determinação existente no direito americano de que somente as Cortes Federais decidam sobre a inconstitucionalidade do direito federal limita, isto é, concentra, em parte, o controle de constitucionalidade no âmbito desses órgãos. Na mesma linha, a admissão de que o Poder Executivo recorra de decisão de inconstitucionalidade em processo no qual não foi parte desmistifica o caráter pretensamente subjetivo desse processo. Tem-se aqui uma aproximação com o modelo de perfil concentrado. A adoção do writ of certiorari como a forma decisiva de provocação no sistema americano fez com que a Corte Suprema assumisse o papel de órgão central do modelo americano de controle de constitucionalidade, estabelecendo um sistema de seleção que permite a análise pela Corte das questões constitucionais mais relevantes. Assinale-se, por derradeiro, que a jurisdição constitucional experimenta hoje variações significativas nas mais diversas perspectivas. Assim, o próprio sistema concentrado apresenta nuances significativas. É possível que o processo concreto de controle de constitucionalidade seja o mais difundido (Cf. Áustria; Alemanha; Itália, Espanha, Turquia). Na Áustria, somente os Tribunais Superiores podem deflagrar o processo de controle concreto. Na Itália, afirma-se que a amplitude do controle concreto torna quase dispensável o recurso constitucional.75 O recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) é um dos mais relevantes instrumentos de interpretação e construção do direito constitucional. Enquanto instrumento de impugnação de decisão judicial parece ser exclusivo da Alemanha e da Espanha. Na Áustria, o recurso há de ser utilizada contra decisão das autoridades administrativas. É possível também utilizar-se da Beschwerde contra lei que afeta de forma direta e imediata posições subjetivas. Quanto à qualificação da investidura, pode-se dizer que o modelo americano adota o sistema de investidura vitalícia, sem limite de idade, enquanto o sistema europeu opta, em geral, ou pela investidura a termo (mandato de dimensão diversa: 12 anos na RFA; 9 anos na maioria dos países – Bulgária, França, Itália, Lituânia, Polônia, Rumênia, Eslovênia, Espanha, Hungria, etc.) ou pela investidura vitalícia com limite de idade – 70 anos (Áustria e Bélgica). No que concerne à composição, a Suprema Corte americana é composta por 9 membros. A mais expressiva em termos numéricos é a Corte Constitucional russa, com 19 membros; a Corte Constitucional alemã é composta por 16 membros (8 em cada Senado), a da Áustria, por 14 membros. O processo de escolha é variado. Nos Estados Unidos, a escolha cabe ao Presidente da República, verificando-se a nomeação após a aprovação do nome indicado pelo Senado Federal. O quadro abaixo transcrito procura fornecer uma visão ampla dos diversos modelos de controle nos mais diferentes quadrantes, tendo em vista as diferentes perspectivas.
74
75
cf. Segado. La Obsolescencia de la Bipolaridad Tradicional, cit., p. 64. Tomuschat, Das Bundesverfassungsgericht im Kreise..., cit., p. 245 (267).
42
43
Cour d’arbitrage, Bruxelas Corte Constitucional
BÉLGICA
INÍCIO ATIVIDADE
1993
1991
1984
1920
1951
TABELA II
sim
não
sim
Sim
Sim
sim
Sim
Sim
Sim
Sim
não
não regulado
não
não
sim
PROVOCONTROLE VOTO CAÇÃO POR ABSTRATO EM PARTICULARES DE NORMAS SEPARADO
11 9
12
9
12
9 14 + 6 supl.
16
NÚMERO DE MEMBROS
TEMPO DE PERMANÊNCIA/ RECONDUÇÃO
70 anos
70 anos 70 anos
68 anos
LIMITE DE IDADE
8 anos/sim 9 anos/não
não não
Vitalício (O 70 anos tempo de permanên-cia da primeira composi-ção de juízes será de 5 anos, não sendo permitida a recondução 9 anos/não não
Vitalício
Vitalício Vitalício
12 anos/não
QUADRO SINÓTICO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONALi
Erga omnes (Const.,
Possibilidade declaração inconstitucionalidade pro futuro CF, art.140
Possibilidade declaração inconstitucionalidade pro futuro Lei Orgânica, § 31,2 e 79,1
EFICÁCIA DECISÕES
Os dados da tabela foram inicialmente extraídos de Zierlein, Verfassungsgerichtsbarkeit im Überblick, Eu GRZ 1991, Seite 341. As atualizações estão sendo feitas com base nos dados existentes nos endereços eletrônicos das cortes constitucionais dos países e do Conselho de Europa (Valéria Porto).
i
CROÁCIA ESLOVÊNIA
BULGÁRIA
Konstitucionnijats’d (Tribunal Constitucional) Corte Constitucional Constitutional Court
Corte Constitucional Verfassungsgerichtshoff (Tribunal Constitucional), Viena
ARMÊNIA ÁUSTRIA
BÓSNIA E HERZEGOVÍNIA
Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional Federal), Karlsruhe
EUROPA / ASIA
INSTITUIÇÃO
ALEMANHA
PAÍS
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
44
Conselho Constitucional Corte Constitucional Magyar Köztársaság Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional), Budapeste Corte Costituzionale, Roma Corte Constitucional Conselho de Estado Corte Constitucional Corte Constitucional Tribunal Constitucional Tribunal Constitucional, Lisboa
FRANÇA
Ustavni soud CSFR (Tribunal Constitucional), Brünn
Corte Constitucional Corte Constitucional Anayasa Mahkemesi (Tribunal Constitucional), Ankara
REPÚBLICA TCHECA
ROMÊNIA RÚSSIA TURQUIA
LATVIA LIECHTENSTEIN LITUÂNIA MALTA POLÔNIA PORTUGAL
ITÁLIA
GEÓRGIA HUNGRIA
Corte Constitucional Tribunal Constitucional
INSTITUIÇÃO
ESLOVÁQUIA ESPANHA
PAÍS
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
1991 1962
1991
1983
1956
1990
1980
INÍCIO ATIVIDADE
sim não
sim
sim (inter partes)
não
sim
Sim
sim sim
sim
sim
não
sim
Sim
sim sim
não regulado
sim
não
sim
Sim
PROVOCONTROLE VOTO CAÇÃO POR ABSTRATO EM PARTICULARES DE NORMAS SEPARADO
9 19 11 + 4 suplentes
15
7 5 + 5 suplentes 9 3 15 13
15
9 11
9
10 12
NÚMERO DE MEMBROS
Não
LIMITE DE IDADE
9 anos/não 10 anos Vitalício
10 anos / sim
9 anos / não
10 anos / sim 5 anos/sim 9 anos/não Vitalício
9 anos /não
Não não 65 anos
não
Não
70 anos Não Não 65 anos
Não
10 anos/não Não 9 anos /sim, uma 70 anos vez
9 anos/ não
9 anos/ sim, depois do intervalo de um mandato
TEMPO DE PERMANÊNCIA/ RECONDUÇÃO
Possibilidade declaração inconstitucionalidade pro futuro (Const., art.282,nº 4). Possibilidade declaração inconstitucionalidade pro futuro (Const.art.89)
Adotaram, desde 1989, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade (não expressa na CF)
art.155)
EFICÁCIA DECISÕES
45
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Washington Corte Interamericana de Direitos Humanos, San José Comissão Africana de Direitos dos Homens e dos Povos, Banjul UN-Comissão de Direitos Humanos, Gen/New York
CIDH
EUA
ÁFRICA DO SUL
UN-CDH
CADHP
US Supreme Court, Washington
AMÉRICA DO NORTE
Constitutional Court
ÁFRICA
Corte Européia de Direitos Humanos, Estrasburgo
TIDH
INÍCIO ATIVIDADE
1803
1994
1977
1987
1979
1960
1998
sim (processo inter partes)
Sim
Sim
Sim
Não
Sim
Sim
não
não
não
não
não
não
sim
sim
não
sim
sim
sim
PROVOCONTROLE VOTO CAÇÃO POR ABSTRATO EM PARTICULARES DE NORMAS SEPARADO
CORTES DE DIREITOS HUMANOS
INSTITUIÇÃO
CEDH
PAÍS
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
9
11
18
11
7
41 (número de juízes igual àquele dos Estados contratantes) 7
NÚMERO DE MEMBROS
Vitalício
12 anos/ não
4 anos sim
6 anos sim
6 anos sim (1vez)
4 anos / sim (1vez)
6 anos
TEMPO DE PERMANÊNCIA/ RECONDUÇÃO
Vitalício
não
não
não
não
não
70 anos
LIMITE DE IDADE
Walker)
Possibilidade declaração inconstitucionalidade pro futuro (caso Linkletter v.
Possibilidade declaração inconstitucionalidade pro futuro (caso Markx, de 13/06/1979)
EFICÁCIA DECISÕES
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
1.2. EVOLUÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 1.2.1. Introdução O controle judicial de constitucionalidade das leis tem-se revelado uma das mais eminentes criações do direito constitucional e da ciência política do mundo moderno. A adoção de formas variadas nos diversos sistemas constitucionais mostra, por outro lado, a flexibilidade e a capacidade de adaptação desse instituto aos mais diversos sistemas políticos. É interessante observar que o sistema de controle de constitucionalidade sofreu uma incrível expansão na ordem jurídica moderna. Afigura-se inquestionável a ampla predominância do controle judicial de constitucionalidade e, particularmente, do modelo de controle concentrado. Cuida-se mesmo de uma nova divisão de poderes com a instituição de uma Corte com nítido poder normativo e cujas decisões têm o atributo da definitividade. Deve assinalar-se que o sistema de controle de constitucionalidade no Brasil sofreu uma substancial reforma com o advento da Constituição de 1988. A ruptura do chamado “monopólio da ação direta” outorgado ao Procurador-Geral da República e a substituição daquele modelo exclusivista por um amplíssimo direito de propositura configuram fatores que sinalizam para a introdução de uma mudança radical em todo o sistema de controle de constitucionalidade. Embora o novo texto constitucional tenha preservado o modelo tradicional de controle de constitucionalidade “incidental” ou “difuso”, é certo que a adoção de novos instrumentos, como o mandado de injunção, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de segurança coletivo e, sobretudo, a ação direta de inconstitucionalidade, conferiu um novo perfil ao nosso sistema de controle de constitucionalidade.
1.2.2. Considerações preliminares: a Constituição Imperial A Constituição de 1824 não contemplava qualquer sistema assemelhado aos modelos hodiernos de controle de constitucionalidade. A influência francesa ensejou que se outorgasse ao Poder Legislativo a atribuição de “fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las”, bem como “velar na guarda da Constituição” (art. 15, n. 8º e 9º). Nessa linha de raciocínio, o insigne Pimenta Bueno lecionava, com segurança, que o conteúdo da lei somente poderia ser definido pelo órgão legiferante: “Só o poder que faz a lei é o único competente para declarar por via de autoridade ou por disposição geral obrigatória o pensamento, o preceito dela. Só ele e exclusivamente ele é quem tem o direito de interpretar o seu próprio ato, suas próprias vistas, sua vontade e seus fins. Nenhum outro poder tem o direito de interpretar por igual modo, já porque nenhuma lei lhe deu essa faculdade, já porque seria absurda a que lhe desse. Primeiramente é visível que nenhum outro poder é o depositário real da vontade e inteligência do legislador. Pela necessidade de aplicar a lei deve o executor ou juiz, e por estudo pode o jurisconsulto formar sua opinião a respeito da inteligência dela, mas querer que essa opinião seja infalível e obrigatória, que seja regra geral, seria dizer que possuía a faculdade de adivinhar qual a vontade e o pensamento do legislador, que não podia errar, que era o possuidor dessa mesma inteligência e vontade; e isso seria certamente irrisório. Depois disso é também óbvio que o poder a quem fosse dada ou usurpasse uma tal faculdade predominaria desde logo sobre o legislador, inutilizaria ou alteraria como quisesse as atribuições deste ou disposições da lei, e seria o verdadeiro legislador. Basta refletir por um pouco para reconhecer esta verdade, e
46
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ver que interpretar a lei por disposição obrigatória, ou por via de autoridade, é não só fazer a lei, mas é ainda mais que isso, porque é predominar sobre ela”76.
Era a consagração de dogma da soberania do Parlamento. Por outro lado, a instituição do Poder Moderador assegurava ao Chefe de Estado o elevado mister de velar para “a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes” (art. 98). “É a faculdade (...) — dizia Pimenta Bueno — de fazer com que cada um deles se conserve em sua órbita, e concorra harmoniosamente como outros para o fim social, o bem-estar nacional: é quem mantém seu equilíbrio, impede seus abusos, conserva-os na direção de sua alta missão (...)”77. Não havia lugar, pois, nesse sistema, para o mais incipiente modelo de controle judicial de constitucionalidade78. 1.2.3. O controle de constitucionalidade na Constituição de 1891 O regime republicano inaugura uma nova concepção. A influência do direito norte-americano sobre personalidades marcantes, como a de Rui Barbosa, parece ter sido decisiva para a consolidação do modelo difuso, consagrado já na chamada Constituição Provisória de 1890 (art. 58, § 1º, a e b). O Decreto n. 848, de 11 de outubro de 1890, estabeleceu, no seu art. 3º, que, na guarda e aplicação da Constituição e das leis nacionais, a magistratura federal só intervirá em espécie e por provocação da parte. “Esse dispositivo (...) — afirma Agrícola Barbi — consagra o sistema de controle por via de exceção, ao determinar que a intervenção da magistratura só se fizesse em espécie e por provocação de parte”79. Estabelecia-se, assim, o julgamento incidental da inconstitucionalidade, mediante provocação dos litigantes. E, tal qual prescrito na Constituição Provisória, o art. 9º, parágrafo único, a e b, do Decreto n. 848, de 1890, assentava o controle de constitucionalidade das leis estaduais ou federais. A Constituição de 1891 incorporou essas disposições, reconhecendo a competência do Supremo Tribunal Federal para rever as sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, quando se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do Tribunal fosse contra ela, ou quando se contestasse a validade de leis ou atos federais, em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal considerasse válidos esses atos ou leis impugnadas (art. 59, § 1º, a e b). Não obstante a clareza dos preceitos, imperou alguma perplexidade diante da inovação. E o gênio de Rui destacou, com peculiar proficiência, a amplitude do instituto adotado pelo regime republicano, como se vê na seguinte passagem de seu magnífico trabalho elaborado em 1893: “O único lance da Constituição americana, onde se estriba ilativamente o juízo, que lhe atribui essa intenção, é o do art. III, seç. 2ª, cujo teor reza assim: ‘O poder judiciário estender-se-á a todas as causas, de direito e eqüidade, que nasceram desta Constituição, ou das leis dos Estados Unidos’. Não se diz aí que os tribunais sentenciarão sobre a validade, ou invalidade, das leis. Apenas se estatui que conhecerão das causas regidas pela Constituição, como conformes ou contrárias a ela. Muito mais concludente é a Constituição brasileira. Nela não só se prescreve que 76
José Antonio Pimenta Bueno, Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, Brasília, Senado Federal, 1978, p. 69. 77 Bueno, Direito público brasileiro, cit., p. 203. 78 Cf., a propósito, Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 27-8; Celso Agrícola Barbi, Evolução do controle de constitucionalidade das leis no Brasil, RDP, 1968, 1(4):36; Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, 2. ed., São Paulo, Bushatsky, 1980, p. 155. 79 Celso Agrícola Barbi, Evolução, cit., p. 37; Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, cit., p. 156.
47
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
‘Compete aos juízes ou tribunais federais processar e julgar as causas, em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal’ (art. 60, a); como, ainda, que ‘Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal, quando se questionar sobre a validade de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contrária (art. 59, § 1º, a)’. A redação é claríssima. Nela se reconhece, não só a competência das justiças da União, como a das justiças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição. Somente se estabelece, a favor das leis federais, a garantia de que, sendo contrária à subsistência delas a decisão do tribunal do Estado, o feito pode passar, por via de recurso, para o Supremo Tribunal Federal. Este ou revogará a sentença, por não procederem as razões de nulidade, ou a confirmará pelo motivo oposto. Mas, numa ou noutra hipótese, o princípio fundamental é a autoridade reconhecida expressamente no texto constitucional, a todos os tribunais, federais, ou locais, de discutir a constitucionalidade das leis da União, e aplicá-las, ou desaplicá-las, segundo esse critério. É o que se dá, por efeito do espírito do sistema, nos Estados Unidos, onde a letra constitucional, diversamente do que ocorre entre nós, é muda a este propósito”80.
A Lei de n. 221, de 20 de novembro de 1894, veio a explicitar, ainda mais, o sistema judicial de controle de constitucionalidade, consagrando no art. 13, § 10, a seguinte cláusula: “Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição”.
Não havia mais dúvida quanto ao poder outorgado aos órgãos jurisdicionais para exercer o controle de constitucionalidade. A reforma constitucional de 1926 procedeu a algumas alterações, sem modificar, no entanto, a substância. Consolidava-se, assim, o amplo sistema de controle difuso de constitucionalidade do direito brasileiro. Convém observar que era inequívoca a consciência de que o controle de constitucionalidade não se havia de fazer in abstracto. “Os tribunais — dizia Rui — não intervêm na elaboração da lei, nem na sua aplicação geral. Não são órgãos consultivos nem para o legislador, nem para a administração (...)”81. E sintetizava, ressaltando que a judicial review “é um poder de hermenêutica, e não um poder de legislação”82. 1.2.4. A Constituição de 1934 e o controle de constitucionalidade A Constituição de 1934 introduziu profundas e significativas alterações no nosso sistema de controle de constitucionalidade. A par de manter, no art. 76, III, b e c, as disposições contidas na Constituição de 1891, o constituinte determinou que a declaração de inconstitucionalidade somente poderia ser realizada pela maioria da totalidade de membros dos tribunais. Evitava-se a insegurança jurídica decorrente das contínuas flutuações de entendimento nos tribunais (art. 179)83. 80
Rui Barbosa, Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo, in Trabalhos jurídicos, Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1962, p. 54-5. 81 Rui Barbosa, Os atos..., in Trabalhos jurídicos, cit., p. 83. 82 Rui Barbosa, Os atos..., in Trabalhos jurídicos, cit., p. 83. 83 João Mangabeira, Em torno da Constituição, São Paulo, Ed. Nacional, 1934, p. 115-7; Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, cit., p. 159-65. Cumpre notar que o anteprojeto continha, no art. 57, a seguinte regra: “Não se poderá argüir de inconstitucional uma lei federal aplicada sem reclamação por mais de cinco anos. O Supremo Tribunal não poderá declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal, senão quando nesse sentido votarem pelo menos dois terços de seus ministros. Só o Supremo Tribunal poderá declarar definitivamente a inconstitucionalidade de uma lei federal ou ato do Presidente da
48
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Por outro lado, a Constituição consagrava a competência do Senado Federal para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”, emprestando efeito erga omnes à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (arts. 91, IV, e 96)84. A fórmula inovadora buscava resolver o problema relativo à falta de eficácia geral das decisões tomadas pelo Supremo em sede de controle de constitucionalidade. É possível, porém, que, inspirado no direito comparado, tenha o constituinte conferido ao Senado um poder excessivo, que acabaria por convolar solução em problema, com a cisão de competências entre ao Supremo Tribunal e o Senado85. É certo, por outro lado, que, coerente com o espírito da época, a intervenção do Senado limitava-se à declaração de inconstitucionalidade, não se conferindo eficácia ampliada à declaração de constitucionalidade. Talvez a mais fecunda e inovadora alteração introduzida pelo Texto Magno de 1934 se refira à “declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal”, tal como a denominou Bandeira de Mello86, isto é, a representação interventiva, confiada ao Procurador-Geral da República, nas hipóteses de ofensa aos princípios consagrados no art. 7º, I, a a h, da Constituição. Cuidava-se de fórmula peculiar de composição judicial dos conflitos federativos, que condicionava a eficácia da lei interventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, § 3º), à declaração de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal (art. 12, § 2º). Assinale-se, por oportuno, que, na Assembléia Constituinte, o Deputado Pereira Lyra apresentou emenda destinada a substituir, no art. 12, § 2º, a expressão “tomar conhecimento da lei que a decretar e lhe declarar a constitucionalidade” por “tomar conhecimento da lei local argüida de infringente desta Constituição e lhe declarar a inconstitucionalidade”87. Esse controle judicial configurava, segundo Pedro Calmon, um sucedâneo do direito de veto, atribuindo-se à Suprema Corte o poder de declarar a constitucionalidade da lei de intervenção e afirmar, ipso facto, a inconstitucionalidade da lei ou ato estadual88. Advirta-se, porém, que não se tratava de formulação de um juízo político, exclusivo do Poder Legislativo, mas de exame puramente jurídico89. Não obstante a breve vigência do Texto Magno, ceifado pelas vicissitudes políticas que marcaram aquele momento histórico, não se pode olvidar o transcendental significado desse sistema para todo o desenvolvimento do controle de constitucionalidade mediante ação direta no direito
República. Sempre que qualquer Tribunal não aplicar uma lei federal ou anular um ato do Presidente da República, por inconstitucionais, recorrerá ex officio, e com efeito suspensivo, para o Supremo Tribunal. Julgado inconstitucional qualquer lei ou ato do Poder Executivo, caberá a todas as pessoas, que se acharem nas mesmas condições do litigante vitorioso, o remédio judiciário instituído para a garantia de todo direito certo e incontestável”. Tal disposição acabaria por consolidar, entre nós, um modelo concentrado de controle de constitucionalidade. Não prevaleceu, todavia, essa orientação, predominando o entendimento que assegura o poder de inaplicar a lei tanto ao juiz singular quanto aos tribunais. Anote-se, ademais, que a cláusula inicial importava na constitucionalização dos preceitos aplicados há mais de cinco anos. 84 Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, cit., p. 170; Araújo Castro, A nova Constituição brasileira, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1935, p. 246-7. 85 Cf., a propósito, Mendes, Gilmar. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. In: Revista de Informaçãao Legislativa (Estudos em homenagem a Anna Maria Villela), Ano 41, nº 162, abril/junho 2004, p. 149-168. 86 Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, cit., p. 170. 87 Araújo Castro, A nova Constituição brasileira, p. 107-8. 88 Pedro Calmon, Intervenção federal: o art. 12 da Constituição de 1934, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1936, p. 109. 89 Pontes de Miranda, Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1938, v. 1, p. 364.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes brasileiro90. Não se deve omitir, ainda, que a Constituição de 1934 continha expressa ressalva à judicialização das questões políticas, dispondo o art. 68 que “é vedado ao Poder Judiciário conhecer das questões exclusivamente políticas”. Manifesta-se digna de menção a competência atribuída ao Senado Federal para “examinar, em confronto com as respectivas leis, os regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, e suspender a execução dos dispositivos ilegais” (art. 91, II). Em escólio ao art. 91, II, da Constituição de 1934, Pontes de Miranda destacava que “tal atribuição outorgava ao Senado Federal um pouco da função de Alta Corte Constitucional (...)”91. A disposição não foi incorporada, todavia, pelas Constituições que sucederam ao Texto Magno de 1934. Finalmente, afigura-se relevante observar que, na Constituinte de 1934, foi apresentado projeto de instituição de uma Corte Constitucional, inspirada no modelo austríaco. Na fundamentação da proposta referia-se diretamente à conferência de Kelsen sobre a essência e o desenvolvimento da jurisdição constitucional (Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit)92.
1.2.5. O controle de constitucionalidade na Constituição de 1937 A Carta de 1937 traduz um inequívoco retrocesso no sistema de controle de constitucionalidade. Embora não tenha introduzido qualquer modificação no modelo difuso de controle (art. 101, III, b e c), preservando-se, inclusive, a exigência de quorum especial para a declaração de inconstitucionalidade (art. 96), o constituinte rompeu com a tradição jurídica brasileira, consagrando, no art. 96, parágrafo único, princípio segundo o qual, no caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderia o Chefe do Executivo submetê-la novamente ao Parlamento. Confirmada a validade da lei por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, tornava-se insubsistente a decisão do Tribunal. Instituía-se, assim, uma peculiar modalidade de revisão constitucional, pois, como observado por Celso Bastos, a lei confirmada passa a ter, na verdade, a força de uma emenda à Constituição93. É bem verdade que o novo instituto não colheu manifestações unânimes de repulsa. Cândido Motta Filho, por exemplo, saudava a inovação, ressaltando que: “A subordinação do julgado sobre a inconstitucionalidade da lei à deliberação do Parlamento coloca o problema da elaboração democrática da vida legislativa em seus verdadeiros termos, impedindo, em nosso 90
Ronaldo Rebello de Britto Poletti, Controle da constitucionalidade das leis, Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 93. Afigura-se relevante observar que, na Constituinte de 1934, foi apresentada proposta de instituição de um Tribunal especial, dotado de competência para apreciar questões constitucionais suscitadas no curso dos processos ordinários, bem como para julgar pedido de argüição de inconstitucionalidade formulado por “qualquer pessoa de direito público ou privado, individual ou coletivamente, ainda mesmo quando não tenha interesse direto (...)”. O projeto de autoria do Deputado Nilo Alvarenga criava uma Corte Constitucional, inspirada na proposta de Kelsen, e confiava a sua provocação a qualquer sujeito de direito (cf. Ana Valderez Ayres Neves de Alencar, A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados inconstitucionais, Revista de Informação Legislativa, v. 57, 1978, 15(57):237-45). 91 Pontes de Miranda, Comentários à Constituição, cit., p. 770. 92 Projeto do Deputado Nilo Alvarenga, de 20-12-1933, Annaes da Assembléia Nacional Constituinte, Rio de Janeiro, 1935, v. 3, p. 33-5. 93 Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 5. ed., São Paulo, Saraiva, 1982, p. 63; cf. Francisco Luiz da Silva Campos, Diretrizes constitucionais do novo Estado brasileiro, RF, 73:246-9.
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meio, a continuação de um preceito artificioso, sem realidade histórica para nós e que, hoje, os próprios americanos, por muitos de seus representantes doutíssimos, reconhecem despido de caráter de universalidade e só explicável em países que não possuem o sentido orgânico do direito administrativo. Leone, em sua Teoría de la política, mostra com surpreendente clareza, como a tendência para controlar a constitucionalidade das leis é um campo aberto para a política, porque a Constituição, em si mesma, é uma lei sui generis, de feição nitidamente política, que distribui poderes e competências fundamentais”94.
No mesmo sentido, pronunciaram-se Francisco Campos95, Alfredo Buzaid96 e Genésio de Almeida Moura97. Impende assinalar que, do ponto de vista doutrinário, a inovação parecia despida de significado, uma vez que, como assinalou Castro Nunes, “podendo ser emendada a Constituição pelo voto da maioria nas duas casas do Parlamento (art. 174), estaria ao alcance deste elidir, por emenda constitucional, votada como qualquer lei ordinária, a controvérsia sobre a lei que se houvesse por indispensável”98. Mas, em verdade, buscava-se, a um só tempo, “validar a lei e cassar os julgados”99. Todavia, quando em 1939 o Presidente Getúlio Vargas editou o Decreto-Lei n. 1.564, confirmando textos de lei declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a reação nos meios judiciários foi intensa100. Considerou Lúcio Bittencourt que as críticas ao ato presidencial não tinham procedência, porque, no seu entendimento, o Presidente nada mais fizera do que “cumprir, como era de seu dever, o prescrito no art. 96 da Carta Constitucional”101. Concede, porém, o insigne publicista que a celeuma suscitada nas oportunidades em que atos judiciais foram desautorizados, entre nós, “está a demonstrar como se encontra arraigado em nosso pensamento jurídico o princípio que confere à declaração judicial caráter incontrastável, em relação ao caso concreto”102. Por outro lado, cumpre notar que a Carta de 1937 vedou, expressamente, ao Judiciário conhecer das questões exclusivamente políticas (art. 94), e o mandado de segurança perdeu a qualidade de garantia constitucional, passando a ser disciplinado pela legislação ordinária. E o Código de Processo Civil, de 1939, excluiu da apreciação judicial, na via mandamental, os atos do Presidente da República, dos ministros de Estado, dos governadores e interventores dos Estados (art. 319). 1.2.6. A Constituição de 1946 e o sistema de controle de constitucionalidade O Texto Magno de 1946 restaura a tradição do controle judicial no direito brasileiro. A par da competência de julgar os recursos ordinários (art. 101, II, a, b e c), disciplinou-se a apreciação dos recursos extraordinários: “a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; e c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão 94
Cândido Motta Filho, A evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil, RF, 86:277. Francisco Luiz da Silva Campos, Diretrizes constitucionais..., RF, cit., p. 246 e s. 96 Alfredo Buzaid, Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1958, p. 32. 97 Genésio de Almeida Moura, Inconstitucionalidade das leis, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 37:161. 98 José de Castro Nunes, Teoria e prática do Poder Judiciário, Rio de Janeiro, Forense, 1943, p. 593, nota 25. 99 José de Castro Nunes, Teoria, cit., p. 593, nota 25. 100 Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 139-40. 101 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 139. 102 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 139-40. 95
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes recorrida julgar válida a lei ou o ato”. Preservou-se a exigência da maioria absoluta dos membros do Tribunal para a eficácia da decisão declaratória de inconstitucionalidade (art. 200). Manteve-se, também, a atribuição do Senado Federal para suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal (art. 64).
1.2.6.1. A representação interventiva A Constituição de 1946 emprestou nova conformação à ação direta de inconstitucionalidade, introduzida, inicialmente, no Texto Magno de 1934. Atribuiu-se ao Procurador-Geral da República a titularidade da representação de inconstitucionalidade, para os efeitos de intervenção federal, nos casos de violação dos seguintes princípios: a) forma republicana representativa; b) independência e harmonia entre os poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais correspondentes; d) proibição da reeleição de governadores e prefeitos para o período imediato; e) autonomia municipal; f) prestação de contas da administração; g) garantias do Poder Judiciário (art. 8º, parágrafo único, c/c o art. 7º, VII). A intervenção federal subordinava-se, nesse caso, à declaração de inconstitucionalidade do ato pelo Supremo Tribunal Federal (art. 8º, parágrafo único). Deve-se ressaltar que, embora o constituinte tenha outorgado a titularidade da ação direta ao Procurador-Geral da República, a disciplina da chamada representação interventiva configurava, já na Constituição de 1934, uma peculiar modalidade de composição de conflito entre a União e o Estado. Cuidava-se de aferir eventual violação de deveres constitucionalmente impostos ao ente federado. E o poder atribuído ao Procurador-Geral da República, que, na Constituição de 1946, exercia a função de chefe do Ministério Público Federal — a quem competia a defesa dos interesses da União (art. 126) —, deve ser considerado, assim, uma simples representação processual103. A argüição de inconstitucionalidade direta teve ampla utilização no regime constitucional instituído em 1946. A primeira ação direta, formulada pelo Procurador-Geral da República, na qual se argüia a inconstitucionalidade de disposições de índole parlamentarista contidas na Constituição do Ceará, tomou o n. 93104. A denominação emprestada ao novo instituto — representação —, segundo esclarece Themístocles Cavalcanti, deveu-se a uma escolha entre a reclamação e a representação, “processos conhecidos pelo Supremo Tribunal Federal”105. A análise do sentido de cada um teria conduzido à escolha do termo representação, “já porque tinha de se originar de uma representação feita ao Procurador-Geral, já porque a função deste era o seu encaminhamento ao Tribunal, com o seu parecer”106. A ausência inicial de regras processuais permitiu que o Supremo Tribunal Federal desenvolvesse os mecanismos procedimentais que viriam a ser consolidados, posteriormente, pela legislação processual e pela práxis da Corte107. E, por isso, colocaram-se, de plano, questões relativas à forma da argüição e à sua própria caracterização processual. Questionava-se, igualmente, sobre a função do Procurador-Geral da República e sobre os limites constitucionais da argüição. Na Rp. 94, que argüia a inconstitucionalidade dos preceitos consagradores do regime parlamentarista na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, indagou-se sobre a necessidade de se formular requerimento ao Procurador-Geral. E esse entendimento foi acolhido, tendo o chefe do Ministério Público Federal solicitado “que a medida fosse provocada, o que foi feito através de 103
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, cit., p. 192. Rp. 93, de 16-7-1947, Rel. Min. Annibal Freire, AJ, 85:3; Themístocles Brandão Cavalcanti, Do controle da constitucionalidade, Rio de Janeiro, Forense, 1966, p. 110. 105 Themístocles Cavalcanti, Do controle, p. 112. 106 Themístocles Cavalcanti, Do controle, cit., p. 112; cf., também, Rp. 94, de 17-7-1947, Rel. Min. Castro Nunes, AJ, 85:31. 107 Themístocles Cavalcanti, Do controle, cit., p. 111-2. 104
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes pedido devidamente justificado”108. Na opinião do insigne publicista, que exercia o cargo de Procurador-Geral da República, a argüição de inconstitucionalidade não poderia ser arquivada, mas, ao revés, deveria ser submetida ao Supremo Tribunal, ainda que com parecer contrário do Ministério Público109. Essa orientação tornou-se ainda mais evidente na Rp. 95 (Rel. Min. Orozimbo Nonato), na qual o Procurador-Geral da República manifestou-se pela constitucionalidade do preceito impugnado, justificando, no entanto, a propositura da ação, pelas seguintes razões: “Não tem esta Procuradoria Geral nenhuma dúvida em opinar a respeito, reafirmando conceitos já emitidos em outro parecer, no sentido de prestigiar o texto votado pelas Constituintes estaduais, cuja validade se presume, quando não colida com princípios fundamentais e expressos na Constituição Federal. Esta colisão não se verifica, a meu ver, na hipótese, porquanto a norma impugnada nada mais fez do que concretizar o princípio da hierarquia dos poderes no chamamento ao exercício do Poder Executivo. Na Constituição Federal, também é o Presidente da Câmara o imediato na substituição do Presidente e Vice-Presidente da República, e esta é uma tradição do nosso direito constitucional. Pouco importa que o poder não esteja ainda constituído porque o mesmo princípio se aplica a todos os casos de vaga. Subsiste, entretanto, a impugnação ao preceito invocado e basta esta controvérsia para que ‘o ato argüido de inconstitucionalidade’ seja submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal. E a dúvida é de tanto maior relevo quanto é o próprio Poder Executivo quem vacila na aplicação do texto constitucional, no momento em que se integra o Estado na plenitude de sua autonomia política. Grave é a responsabilidade do Governo diante da contingência de pôr termo à intervenção no Estado, entregando o Poder Executivo, não ao seu detentor eleito pelo povo mas a um representante eventual eleito pela Assembléia. Cumpre, por isso mesmo, o Procurador-Geral da República, um dever imposto não só pela alta consideração que merece o Aviso do Exmo. Sr. Ministro da Justiça, mas ainda pelos altos propósitos que o inspiram trazendo questão de tanta relevância ao conhecimento deste E. Tribunal, esperando que este se pronuncie sobre a legitimidade do artigo 2º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição do Estado diante da Constituição Federal, bem como sobre a constitucionalidade da intervenção federal depois de promulgada a Constituição Federal. Requer, por isso, a Vossa Excelência que distribuída a presente como reclamação, seja a mesma processada como de direito”110.
O Supremo Tribunal Federal ressaltou que não se tratava de simples consulta, mas de “exposição de um conflito de natureza constitucional, elementarmente constitucional, não ocultando a forma algo dubitativa das comunicações a ocorrência do tumulto (...)”111. E concluiu, a final, pela constitucionalidade do art. 2º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de Pernambuco112. Desde o início, firmou-se no Supremo Tribunal Federal a orientação de que se cuidava de uma controvérsia de índole constitucional. O Poder Judiciário não se limitava a opinar. A sua decisão configurava “um aresto, um acórdão”, que punha “fim à controvérsia como árbitro final do 108
Themístocles Cavalcanti, Do controle, cit., p. 110. Themístocles Cavalcanti, Do controle, cit., p. 111. 110 Rp. 95, de 30-7-1947, Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:55-6. Não obstante, convém assinalar que o Ministro Edgar Costa não conheceu da Representação, uma vez que esta tinha “não apenas a aparência, mas incontestável caráter de consulta” (AJ, 85:68-9). 111 Rp. 95, de 30-7-1947, Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:58. 112 Rp. 95, de 30-7-1947, Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:55-75. 109
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes contencioso da inconstitucionalidade”113. A propósito, vale registrar a seguinte passagem do voto proferido por Castro Nunes, na Rp. 94: “Consiste a intervenção, nas hipóteses do n. VII, na suspensão, importa dizer, na decretação pelo Congresso da não-vigência do ato legislativo. São duas atribuições distintas, de índole diversa, mas articuladas: a decisão do Supremo Tribunal situase no terreno jurídico; a do Congresso, no plano político, mas a título de sanção daquela. Vem aqui, a propósito, esclarecer que, nos termos do assento constitucional e dos motivos de sua inspiração, o Supremo Tribunal não é provocado como órgão meramente consultivo, o que contraviria à índole do Judiciário; não se limita a opinar, decide, sua decisão é um aresto, um acórdão; põe fim à controvérsia como árbitro final do contencioso da inconstitucionalidade. É nessa função de árbitro supremo que ele intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deliberante do poder estadual. Daí resulta que, declarada a inconstitucionalidade, a intervenção sancionadora é uma decorrência do julgado”114.
O Supremo Tribunal Federal exercia, pois, a função de “árbitro final do contencioso da inconstitucionalidade”. Não se tratava, porém, de afastar, simplesmente, a aplicação da lei inconstitucional. A pronúncia da inconstitucionalidade, nesse processo, tinha dimensão diferenciada, como se pode ler no magnífico voto de Castro Nunes: “Atribuição nova, que o Supremo Tribunal é chamado a exercer pela primeira vez e cuja eficácia está confiada, pela Constituição, em primeira mão, ao patriotismo do próprio legislador estadual no cumprir, de pronto, a decisão e, se necessário, ao Congresso Nacional, na compreensão esclarecida da sua função coordenada com a do Tribunal, não será inútil o exame desses aspectos, visando delimitar a extensão, a executoriedade e a conclusividade do julgado. Na declaração em espécie, o Judiciário arreda a lei, decide o caso por inaplicação dela, e executa, ele mesmo, o seu aresto. Trata-se, aqui, porém, de inconstitucionalidade em tese, e nisso consiste a inovação desconhecida entre nós na prática judicial, porquanto até então não permitida pela Constituição. Em tais casos a inconstitucionalidade declarada não se resolve na inaplicação da lei ao caso ou no julgamento do direito questionado por abstração do texto legal comprometido; resolve-se por uma fórmula legislativa ou quase legislativa que vem a ser a não-vigência, virtualmente decretada, de uma dada lei. Nos julgamentos em espécie, o Tribunal não anula nem suspende a lei, que subsiste, vige e continuará a ser aplicada até que, como, entre nós, estabelece a Constituição, o Senado exercite a atribuição do art. 64. Na declaração em tese, a suspensão redunda na ab-rogação da lei ou na derrogação dos dispositivos alcançados, não cabendo ao órgão legiferante censurado senão a atribuição meramente formal de modificá-la ou regê-la, segundo as diretivas do prejulgado; é uma inconstitucionalidade declarada erga omnes, e não somente entre as partes; a lei não foi arredada apenas em concreto; foi cessada para todos os efeitos”115.
Com essa colocação, o eminente jurista e magistrado logrou fixar princípios do próprio controle abstrato de normas, que viria a ser introduzido, entre nós, pela Emenda n. 16, de 1965. Os limites constitucionais da ação direta também mereceram a precisa reflexão de Castro Nunes. Na Rp. 94, enfatizou-se o caráter excepcional desse instrumento. “Outro aspecto, e condizente com a atitude mental do intérprete, em se tratando de intervenção — ensinava — é o relativo ao caráter excepcional dessa medida, pressuposta neste regímen a autonomia constituinte, 113
Rp. 94, de 17-7-1947, Rel. Min. Castro Nunes, AJ, 85:33. AJ, 85:33. 115 Rp. 94, de 17-7-1947, AJ, 85:33. 114
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legislativa e administrativa dos Estados-membros, e, portanto, a preservação dessa autonomia ante o risco de ser elidida pelos Poderes da União”116. E Castro Nunes aduzia que a enumeração contida no art. 7º, VII, da Constituição de 1946 “é taxativa, é limitativa, é restritiva e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal Federal”117. Na Rp. 95, o tema voltou a ser apreciado, tendo pontificado, uma vez mais, o magistério de Castro Nunes: “Devo dizer ao Tribunal que considero a atribuição hoje conferida ao Supremo Tribunal excepcionalíssima, só quando for possível entroncar o caso trazido ao nosso conhecimento a algum dos princípios enumerados no art. 7º, n. 7, será possível conhecer da argüição. Não basta ser levantada uma dúvida constitucional, não basta que exista uma controvérsia constitucional. Se não for possível entroncá-la com um dos princípios enumerados, penso que o Tribunal deverá abster-se de qualquer deliberação. Nesse sentido, aliás, foi o voto do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que salientou também esse aspecto, igualmente ressaltado pelo eminente Sr. Ministro Relator, em seu voto. No caso de dúvida, ou quando duvidosa ou remota aquela articulação, o Tribunal não deverá conhecer da representação que poderia transformar em expediente de rotina ou meio de consulta do Governo em todos os casos em que lhe conviesse provocar uma manifestação do Supremo Tribunal. Aliás o caráter excepcional da atribuição decorre da sanção mesma, que é a intervenção”118.
Assentaram-se, assim, as linhas fundamentais da representação interventiva. A Lei n. 2.271, de 22 de julho de 1954, determinou que se aplicasse à argüição de inconstitucionalidade o processo do mandado de segurança (art. 4o). A primeira fase continuou a ser processada, porém, na Procuradoria-Geral da República, tal como no período anterior ao advento da disciplina legal (art. 2o). “Era o Procurador-Geral — diz Themístocles Cavalcanti — quem recebia a representação da parte e, no prazo de 45 dias improrrogáveis, contados da comunicação da respectiva assinatura, ouvia, sobre as razões da impugnação do ato, os órgãos que o tivessem elaborado ou praticado”119. A Lei n. 4.337, de 1964, modificou o procedimento então adotado, determinando que, após a argüição, o relator ouvisse sobre as razões de impugnação do ato, no prazo de trinta dias, os órgãos que o tivessem elaborado ou expedido. Admitia-se, contudo, o julgamento imediato do feito, em caso de urgência e relevância do interesse de ordem pública, dando-se ciência da supressão do prazo às partes.
1.2.6.2. A Emenda n. 16, de 1965, e o controle de constitucionalidade abstrato A Emenda n. 16, de 26 de novembro de 1965, instituiu, ao lado da representação interventiva, e nos mesmos moldes, o controle abstrato de normas estaduais e federais. A reforma realizada, fruto dos estudos desenvolvidos na Comissão composta por Orozimbo Nonato, Prado Kelly (Relator), Dario de Almeida Magalhães, Frederico Marques e Colombo de Souza, visava a imprimir novos rumos à estrutura do Poder Judiciário. Parte das mudanças recomendadas já havia sido introduzida pelo Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965. A Exposição de Motivos encaminhada pelo Ministro da Justiça, Dr. Juracy Magalhães, ao Presidente da República ressaltava que “a atenção dos reformadores tem-se detido enfaticamente na sobrecarga imposta ao Supremo Tribunal e ao Tribunal de Recursos”. Não obstante, o próprio Supremo Tribunal Federal houve por bem sugerir a adoção de dois novos institutos de legitimidade constitucional, tal como descrito na referida Exposição de Motivos: “a) uma representação de inconstitucionalidade de lei federal, em tese, de exclusiva iniciativa do 116
AJ, 85:34. Rp. 94, de 17-7-1947, AJ, 85:34. 118 Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:70-1. 119 Themístocles Brandão Cavalcanti, Do controle, cit., p. 127. 117
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Procurador-Geral da República, à semelhança do que existe para o direito estadual (art. 8º, parágrafo único, da Constituição Federal); b) uma prejudicial de inconstitucionalidade, a ser suscitada, exclusivamente, pelo próprio Supremo Tribunal Federal ou pelo Procurador-Geral da República, em qualquer processo em curso perante outro juízo”. “A representação, limitada em sua iniciativa, tem o mérito de facultar desde a definição da ‘controvérsia constitucional sobre leis novas, com economia para as partes, formando precedente que orientará o julgamento dos processos congêneres’. Afeiçoa-se, no rito, às representações de que cuida o citado preceito constitucional para forçar o cumprimento, pelos Estados, dos princípios que integram a lista do inciso VII do art. 7º. De algum modo, a inovação, estendendo a vigilância às ‘leis federais em tese’, completa o sistema de pronto resguardo da lei básica, se ameaçada em seus mandamentos. Já a prejudicial agora proposta, modalidade de avocatória, utilizável em qualquer causa, de qualquer instância, importaria em substituir aos juízos das mais diversas categorias a faculdade, que lhes pertence, no grau da sua jurisdição, de apreciar a conformidade de lei ou de ato com as cláusulas constitucionais. Ao ver da Comissão, avocatória só se explicaria para corrigir omissões de outros órgãos judiciários, se vigorasse entre nós, como vigora por exemplo na Itália, o privilégio de interpretação constitucional por uma Corte especializada, a ponto de se lhe remeter obrigatoriamente toda questão daquela natureza, levantada de ofício ou por uma das partes em qualquer processo, desde que o juiz ou tribunal não a repute manifestamente infundada. Ao direito italiano pedimos, todavia, uma formulação mais singela e mais eficiente do que a do art. 64 da nossa Constituição, para tornar explícito, a partir da declaração de ilegitimidade, o efeito erga omnes de decisões definitivas do Supremo Tribunal, poupando ao Senado o dever correlato de suspensão da lei ou do decreto — expediente consentâneo com as teorias de direito público em 1934, quando ingressou em nossa legislação, mas presentemente suplantada pela formulação contida no art. 136 do estatuto de 1948: ‘Quando la Corte dichiara l’illegittimità costituzionale di una norma di legge o di atto avente forza di legge, la norma cessa di avere efficacia dal giorno sucessivo alla publicazione della decisione’”120.
Nos termos do Projeto de Emenda à Constituição, o art. 101, I, k, passava a ter a seguinte redação: “k) a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”.
E o art. 5º do Projeto acrescentava os seguintes parágrafos ao art. 101: “§ 1º Incumbe ao Tribunal Pleno o julgamento das causas de competência originária (inciso I), das prejudiciais de inconstitucionalidade suscitadas pelas Turmas, dos recursos interpostos de decisões delas, se divergirem entre si na interpretação do direito federal, bem como dos recursos ordinários nos crimes políticos (inciso II, c) e das revisões criminais (inciso IV). § 2º Incumbe às Turmas o julgamento definitivo das matérias enumeradas nos incisos II, a e b, e III deste artigo. § 3º As disposições de lei ou ato de natureza normativa, consideradas inconstitucionais em decisão definitiva, perderão eficácia, a partir da declaração do Presidente do Supremo Tribunal Federal publicada no órgão oficial da União”.
E o art. 64 da Constituição passava a ter a seguinte redação: “Art. 64. Incumbe ao Presidente do Senado Federal, perdida a eficácia de lei ou ato de natureza normativa (art. 101, § 3º), fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção das leis, a conclusão do julgado que lhe for comunicado”. 120
Brasil, Constituição (1946): Emendas. Emendas à Constituição de 1946, n. 16: Reforma do Poder Judiciário, Brasília, Câmara dos Deputados, 1968, p. 24.
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O parecer aprovado pela Comissão Mista, da lavra do Deputado Tarso Dutra, referiu-se, especificamente, ao novo instituto de controle de constitucionalidade: “A letra ‘k’, propondo a representação a cargo da Procuradoria-Geral da República, contra a inconstitucionalidade em tese da lei, constitui uma ampliação da faculdade consignada no parágrafo único do art. 8º, para tornar igualmente vulneráveis as leis federais por essa medida. Ao anotar-se a conveniência da modificação alvitrada na espécie, que assegurará, com a rapidez dos julgamentos sumários, uma maior inspeção jurisdicional da constitucionalidade das leis, não será inútil configurar o impróprio de uma redação, que devia conferir à representação a idéia nítida de oposição à inconstitucionalidade e o impreciso de uma referência a atos de natureza normativa de que o nosso sistema de poderes indelegáveis (art. 36, §§ 1º e 2º) conhece apenas uma exceção no § 2º do art. 123 da Constituição”121.
A proposta de alteração do disposto no art. 64 da Constituição, com a atribuição de eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, foi rejeitada122. Consagrou-se, todavia, o modelo abstrato de controle de constitucionalidade sob a forma de uma representação que haveria de ser proposta pelo Procurador-Geral da República. A implantação do sistema de controle de constitucionalidade, com o objetivo precípuo de “preservar o ordenamento jurídico da intromissão de leis com ele inconviventes”123, veio somar aos mecanismos já existentes um instrumento destinado a defender diretamente o sistema jurídico objetivo. Finalmente, não se deve olvidar que, no tocante ao controle de constitucionalidade da lei municipal, a Emenda n. 16 consagrou, no art. 124, XIII, regra que outorgava ao legislador a faculdade para “estabelecer processo de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Município em conflito com a Constituição do Estado”. 1.2.6.3. Kelsen e o controle de constitucionalidade do direito brasileiro Poucos sabem que a possibilidade de se outorgar a órgão do Ministério Público a iniciativa do controle de constitucionalidade in abstracto, positivada no direito constitucional brasileiro em 1965 (Emenda Constitucional n. 16, de 1965; Constituição de 1967/69, art. 119, I, l), já havia sido contemplada por Kelsen nas suas meditações sobre o chamado “processo constitucional”. Aqueles que se derem ao trabalho de compulsar o texto da conferência proferida por Kelsen perante a Associação dos Professores Alemães de Direito Público (Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer), de 1928, hão de se deparar com a seguinte passagem: “Um instituto completamente novo, mas digno de ser experimentado seria a criação de um Advogado da Constituição (Verfassungsanwalt) perante a Corte Constitucional, que — em analogia com promotor público no processo penal — instaurasse de ofício o controle de normas em relação aos atos que reputasse inconstitucionais. Evidentemente, esse advogado da Constituição deveria ser dotado de todas as garantias de independência tanto em face do Governo, como em face do Parlamento (Eine völlig neue, aber ernstester Prüfung durchaus würdige Institution wäre die Aufstellung eines Anwalts der Verfassung (Verfassungsawalts) beim Verfassungsgericht, der — nach Analogie des Staatsanwalts im Strafverfahren — von Amts wegen das Verfahren zur Überprüfung jener Akte einzuleiten hätte, die, der Kontrolle der Verfassungsgerichts unterworfen, 121
Brasil, Constituição (1946), cit., p. 67. Brasil, Constituição (1946), cit., p. 88-90. 123 Bastos, Curso, cit., p. 65. 122
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes vom Verfassungsanwalt für rechtswidrig erachtet werden. Dass die Stellung eines solchen Verfassungsanwaltes mit allen nur denkbaren Garantien der Unabhängigkeit gegenüber der Regierung wie dem Parlament auszustatten wäre, versteht sich von selbst)”124. É interessante notar que, sem se inspirar diretamente em Kelsen, o legislador constituinte brasileiro acabou, um tanto casualmente, por positivar idéia de um advogado da Constituição (Verfassungsanwalt) (CF de 1967/69, art. 119, I, l). Registre-se, ainda, que, no âmbito do debate sobre a reforma da jurisdição constitucional, foi, em tempos mais recentes, reencetada, na Áustria, a discussão sobre a adoção desse instituto, tendo René Marcic defendido expressamente a outorga de legitimidade para provocar a Corte Constitucional a um Verfassungsanwalt, que, segundo ele, haveria de exercer uma função subsidiária, mas indispensável (Seine Aufgabe wäre subsidiär, aber unentbehrlich)125. Ainda no contexto dessas curiosidades históricas, vale mencionar a proposta de instituição de uma Corte Constitucional formulada na Constituinte de 1934 pelo Deputado Federal fluminense Nilo Alvarenga. Aqui parece inequívoca a influência direta do modelo de jurisdição constitucional defendido por Kelsen, tal como exposto na Conferência de 1928. São os seguintes os termos da proposição apresentada por Nilo Alvarenga: “Art. Compete à Corte de Justiça Constitucional, originária e privativamente, conhecer da argüição, suscitada por qualquer parte interessada ou pelo Ministério Público, em qualquer feito e perante qualquer juiz ou tribunal, de conflito de uma lei ou disposição de lei federal, ou de uma constituição ou lei estadual ou alguma de suas disposições, com a Constituição Federal, ou de uma lei estadual ou alguma de suas disposições, com a respectiva constituição estadual. § 1º Levantada a preliminar de inconstitucionalidade, o juiz ou tribunal sobrestará no prosseguimento da causa, depois de assegurar, quando necessário, a eficácia do direito reclamado, até que o tribunal se pronuncie. § 2º O juiz ou tribunal mandará prosseguir o feito se a alegação de inconstitucionalidade for manifestamente improcedente ou protelatória, cabendo desta decisão carta testemunhável para a Corte de Justiça Internacional que, a requerimento da parte poderá mandar sustar o andamento do processo, até o seu pronunciamento. Art. Qualquer pessoa de direito público ou privado, individual ou coletivamente, ainda mesmo quando não tenha interesse direto, poderá pedir originariamente à Corte de Justiça Constitucional a declaração da nulidade no todo, ou em parte, de uma lei ou de qualquer ato, deliberação ou regulamento, emanado do Poder Executivo, manifestamente contrários aos direitos e garantias estabelecidos por esta Constituição. § 1º A Corte só poderá conhecer do pedido, depois de informada, no prazo máximo de 30 dias, pelo poder do qual emanou a lei, o ato, deliberação ou regulamento. § 2º A lei ordinária determinará a forma rápida pela qual se processará o pedido. § 3º A sentença anulatória da Corte de Justiça Constitucional invalidará e tornará inexeqüível para todos, em parte ou no todo, a lei, ato, deliberação ou regulamento por ela atingida e produzirá estes efeitos na data de sua publicação. Art. A Corte de Justiça Constitucional terá sua sede na Capital da República e comporse-á de nove ministros, brasileiros natos, de notável saber jurídico e ilibada reputação, dois dos quais serão indicados pelo Supremo Tribunal Federal, dois pela Assembléia Nacional, dois pelo Presidente da República e três pelo Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros entre as mais notáveis expressões culturais e morais de sua classe, especializados em direito público e constitucional. 124
Hans Kelsen, Wesen und Entwicklung, cit., p. 75. Cf. René Marcic, Zur Reform der österreichischen Verfassungsgerichtsbarkeit, in Festschrift für Gebhard Müller, Tübingen, 1970, p. 217 (255). 125
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes § 1º Igual número de suplentes será simultaneamente indicado pelos poderes e pelo instituto acima indicados. Art. Os ministros da Corte de Justiça Constitucional exercerão as funções que lhes são atribuídas por esta Constituição pelo prazo de três anos, podendo ser renovadas as suas indicações e nomeações. § 1º Os ministros não poderão ser destituídos de suas funções antes de findo o prazo para o qual forem nomeados e terão os mesmos vencimentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Art. A Corte de Justiça Constitucional organizará seu regimento interno e Secretaria, cujos funcionários serão de sua nomeação e terão vencimentos equiparados aos da Secretaria do Supremo Tribunal Federal (...)”. O Parlamentar justificava assim a sua proposta: “Os mais belos e generosos princípios de direito público, consagrados nos textos constitucionais, de nada valerão, sem as necessárias garantias de sua efetividade. Estas garantias são dadas pelo controle da constitucionalidade das leis. Nos Estados Unidos, onde esta atribuição é conferida à Justiça comum, o controle é falho, imperfeito e incompleto. Por isso que à Justiça comum só cabe decidir das questões entre partes, os efeitos de suas decisões se restringem ao caso sub judice. A lei anulada para o litigante continua a vigorar em toda sua plenitude para a coletividade. Por isso é imprescindível criar a jurisdição constitucional cometendo-a a um tribunal especial, com a função de exercer este controle, anulando as leis e atos inconstitucionais, erga omnes. Mas não basta a criação de tribunal com esta competência. É necessário, ainda, assegurar a todos os indivíduos a sua proteção por meio de recursos fáceis e rápidos e baratos. É preciso que todo cidadão ferido em seu direito disponha de meio seguro para o restabelecimento imediato deste direito. (...) A Corte de Justiça Constitucional, com estas atribuições e competências, será o único aparelho eficaz de garantias constitucionais, do qual a República não poderá prescindir, para assegurar a defesa de todos os direitos e liberdades de seus cidadãos”126. Na discussão que se travou na oportunidade da apresentação da proposta em Plenário, acentuou Nilo Alvarenga que se louvava na opinião de Hans Kelsen, na comunicação apresentada ao Instituto Internacional de Direito Público, transcrevendo a seguir passagem da conferência proferida perante a Associação Alemã dos Professores de Direito Público: “Não é excessivo afirmar que a idéia política do Estado Federal não é plenamente realizada senão com a instituição de um Tribunal Constitucional”127. Parece indiscutível, também, a influência do trabalho de Kelsen na proposta de Nilo Alvarenga relativa à adoção de uma especialíssima ação popular de inconstitucionalidade, que permitia a instauração do controle abstrato de normas mediante iniciativa de qualquer pessoa de direito público ou privado, individual ou coletivamente, ainda mesmo quando não tivesse interesse (cf. a proposta acima transcrita). É de Kelsen a afirmação de que a garantia mais efetiva e radical para o controle de constitucionalidade seria a actio popularis. Não lhe parecia recomendável, porém, a adoção da ação popular de inconstitucionalidade, porquanto se afigurava muito grande o risco de ações temerárias, que acabariam por sobrecarregar, demasiada e inutilmente, a Corte Constitucional. 126
Projeto do Deputado Nilo Alvarenga, de 20-12-1933, Annaes da Assembléia Nacional Constituinte, cit., v. 3, p. 513 e s. V., também, Ana Valderez Ayres Neves de Alencar, A competência do Senado..., Revista de Informação Legislativa, cit., p. 223 (237-45). 127 Cf. Ana Valderez Ayres Neves de Alencar, A competência do Senado..., Revista de Informação Legislativa, cit., p. 223 (243).
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1.2.7. O controle de constitucionalidade na Constituição de 1967/69
A Constituição de 1967 não trouxe grandes inovações no sistema de controle de constitucionalidade. Manteve-se incólume o controle difuso. A ação direta de inconstitucionalidade subsistiu, tal como prevista na Constituição de 1946, com a Emenda n. 16, de 1965. A representação para fins de intervenção, confiada ao Procurador-Geral da República, foi ampliada, com o objetivo de assegurar não só a observância dos chamados princípios sensíveis (art. 10, VII), mas também prover a execução de lei federal (art. 10, VI, 1ª parte). A competência para suspender o ato estadual foi transferida para o Presidente da República (art. 11, § 2º). Preservou-se o controle de constitucionalidade in abstracto, tal como estabelecido pela Emenda n. 16, de 1965 (art. 119, I, l). A Constituição de 1967 não incorporou a disposição da Emenda n. 16, que permitia a criação do processo de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados, para declaração de lei ou ato dos municípios que contrariassem as Constituições dos Estados. A Emenda n. 1, de 1969, previu, expressamente, o controle de constitucionalidade de lei municipal, em face da Constituição estadual, para fins de intervenção no município (art. 15, § 3º, d). A Emenda n. 7, de 1977, introduziu, ao lado da representação de inconstitucionalidade, a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual, outorgando ao Procurador-Geral da República a legitimidade para provocar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal (art. 119, I, e). E, segundo a Exposição de Motivos apresentada ao Congresso Nacional, esse instituto deveria evitar a proliferação de demandas, com a fixação imediata da correta exegese da lei128. Finalmente, deve-se assentar que a Emenda n. 7, de 1977, pôs termo à controvérsia sobre a utilização de liminar em representação de inconstitucionalidade, reconhecendo, expressamente, a competência do Supremo Tribunal para deferir pedido de cautelar, formulado pelo ProcuradorGeral da República (CF de 1967/1969, art. 119, I, p)129.
1.2.7.1. Considerações sobre o papel do Procurador-Geral da República no controle abstrato de normas sob a Constituição de 1967/69: proposta de releitura (a)
Introdução
Em 1970, o MDB, único partido da oposição representado no Congresso Nacional, solicitou ao Procurador-Geral da República a instauração do controle abstrato de normas contra o decreto-lei que legitimava a censura prévia de livros, jornais e periódicos. Este se negou a submeter a questão ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que, na sua opinião, não estava constitucionalmente obrigado a fazê-lo. A propósito, devem-se registrar as razões expendidas pelo então Procurador-Geral da República, Xavier de Albuquerque, em defesa de sua decisão: “Ora, sendo a representação do Procurador-Geral, o ato que transforma em função dinâmica o poder 128
Mensagem n. 81, de 1976, Diário do Congresso Nacional. O Texto Magno de 1988 não manteve esse instituto no ordenamento constitucional brasileiro. 129 A Constituição de 1988 manteve a competência do Supremo Tribunal para conceder liminar na ação de inconstitucionalidade (art. 102, I, p).
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estático de jurisdição do Supremo Tribunal, e sendo a competência, como ninguém discute, uma parcela ou medida desse poder, é curial não se poder falar em usurpação ou frustração de competência antes de que haja representação. A reclamação é, pois, um non sense. Dir-se-á que essa evidência lógica e jurídica transformará o Procurador-Geral em árbitro da instauração da única forma de controle abstrato de constitucionalidade das leis, conhecida em nosso direito. Ele o é, de fato, mas não porque não caiba a reclamação. Se o Procurador-Geral estivesse obrigado a representar ao Supremo Tribunal sempre que o provocasse qualquer interessado (prescindo, neste momento, de examinar o interesse do reclamante, reservando-me para fazê-lo se e quando necessário), a sua negativa ofenderia direito subjetivo do interessado e essa ofensa encontraria nos meios processuais próprios o instrumento adequado à devida correção. Nunca o seria, porém, a reclamação regimental destinada a preservar a integridade da competência do Supremo Tribunal, porque essa forma de avocatória pressupõe, em primeiro lugar, causa posta em juízo (ubi, non est actio...) e, em segundo lugar, o conhecimento dela por autoridade judiciária diversa e incompetente. O primeiro pressuposto resulta de quanto articulei linhas atrás e está confortado pela orientação da Suprema Corte. Quanto ao segundo, comprova-o a própria justificativa, de autoria do saudoso Ministro Ribeiro da Costa, da emenda regimental que consagrou a reclamação no âmbito do Supremo Tribunal Federal, como instrumento apto ao exercício da ‘faculdade cometida aos órgãos do Poder Judiciário para, em processo especial, corrigir excessos, abusos e irregularidades derivados de atos de autoridades judiciárias ou de serventuários que lhe sejam subordinados’ (Transcrição recolhida no voto do eminente Ministro Pedro Chaves na Rcl 624, R.T.J. 35/103, 106). No julgamento de que retirei esse excerto, o eminente Ministro Pedro Chaves não conhecia da reclamação por entender que não cabia o remédio, em qualquer caso, contra ato de autoridade que não fosse judiciária. Ponderou então, apoiando-se em parte, — precisamente naquela que aqui tem pertinência, o eminente Ministro Victor Nunes: ‘Nosso Regimento deu à reclamação dois objetivos: além de resguardar nossa competência, garante a execução dos nossos julgados (art. 2º do capítulo V-A). De pouco valeria resguardar nossa competência, pela reclamação, se ela também não fosse um meio eficaz de fazer cumprir nossas decisões. Ora, no primeiro caso, quando se tratar do resguardo, digamos, da nossa competência cognitiva, pareceme que o eminente Ministro Relator tem toda razão. A possível violação dessa competência parte de autoridade judiciária, porque juízes ou tribunais é que podem pretender, de má ou de boa-fé, usurpar a competência jurisdicional do Supremo Tribunal’ (R.T.J. 35/107-8). Não pode ser conhecida, portanto, a representação. Se pudesse sê-lo, porém, seria manifestamente improcedente”130.
Em seguida, concluía o eminente Procurador-Geral da República, verbis: “Neste ponto, em que abordo a segunda das questões de início referidas e que constitui o mérito da reclamação, começo por examinar os argumentos de que se vale o reclamante para chegar à conclusão da obrigatoriedade da representação ao Supremo Tribunal, sempre que o Procurador-Geral seja provocado por qualquer interessado. O primeiro deles é um argumento bifronte, servindo — na intenção do reclamante — tanto para justificar o cabimento, quanto para demonstrar a procedência da reclamação: o de que ‘ninguém pode se sobrepor à função jurisdicional do eg. Supremo Tribunal Federal’, ‘frustrando a instância constitucional’, ‘para decidir, sozinho e de forma irrecorrível, uma relevante questão constitucional’. E está complementado por dois argumentos ancilares: 1º, nem mesmo os órgãos que integram o Supremo Tribunal podem atuar, por delegação, no exercício da competência deferida pela Carta Política à sua composição plena, tanto que as Turmas julgadoras abstêm-se de fazê-lo e submetem ao Plenário o julgamento de qualquer relevante argüição incidental da inconstitucionalidade, 2º, na opinião do eminente Ministro Themístocles Cavalcanti, o 130
Transcrito na Reclamação n. 849, Rel. Min. Adalício Nogueira (RTJ, 59:336).
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Procurador-Geral da República apenas opina quando não concorda com o pedido que lhe dirige qualquer interessado, mas não pode subtrair ao conhecimento do Tribunal a apreciação da representação, porque quem a julga é o Tribunal e não o Procurador. Esse argumento padece do vício lógico-jurídico que já salientei nas considerações preliminares, porque considera o fato da usurpação da competência antes de que da própria competência se possa falar. Não reclama, pois, em si mesmo, mais ampla contestação. Quanto aos adminículos que o coadjuvam, ao primeiro observo que não é por não poderem ‘usurpar’ a competência do Tribunal Pleno que as Turmas lhe remetem o julgamento das questões constitucionais, mas por não poderem julgá-las elas próprias em virtude de que sua estrutura não alcança a maioria absoluta dos membros do Tribunal e não permite, em conseqüência, a observância da regra contida no atual art. 116 da Constituição. Não é essa, como se sabe, uma regra de competência, mas de eficácia do julgado. De resto, o raciocínio descuidado que se contém nesse argumento levaria ao extremo de se considerarem inválidos os milhares de julgados das Turmas do Supremo Tribunal Federal, proferidas durante muitos anos sobre matéria da competência deste, em obediência à repartição regimental dos encargos globais da Corte e no plano do conceito que a doutrina designou como de competência interna, antes de que o Ato Institucional n. 2 sufragasse a divisão do Tribunal em Turmas e a incorporasse ao nosso direito constitucional legislado. Ao segundo adminículo, que se resolve na respeitável opinião pessoal, isolada, do eminente Ministro Themístocles Cavalcanti, digo, com as mais respeitosas vênias, que não só incide no mesmo vício lógico antes apontado, como também não procede e, tal qual demonstrarei, não corresponde ao entendimento predominante nesse eg. Supremo Tribunal Federal. Um segundo argumento do reclamante cifra-se em que, no caso, por mais respeitáveis que fossem as razões do meu convencimento contrário ao seu pedido, cumpria-me ‘encaminhar’ a representação ao Supremo Tribunal, mesmo porque, como leciona Buzaid, nesse tipo de ação o Procurador-Geral da República ‘opera como substituto processual, isto é, age em nome próprio, mas por interesse alheio’. Não me ocorre o dever de demonstrar, que V. Excia. e o eg. Tribunal o sabem de sobejo que o fenômeno da substituição processual nada tem que ver com a obrigatoriedade da ação, propugnada pelo reclamante. Mas não posso deixar de observar que o reclamante chegou sozinho, e arbitrariamente, às conclusões que pretendeu retirar do ensinamento doutrinário invocado, porque o que o eminente processualista propugna é precisamente o oposto, verbis: ‘Um exame superficial pode levar a crer que o Procurador, havendo representação da parte interessada, deva sempre e necessariamente argüir a inconstitucionalidade. Mas essa interpretação não se compadece com a natureza de sua função. O Procurador-Geral da República só deve argüir a inconstitucionalidade, quando disso estiver convencido. Sua missão não é a de mero veículo de representação. Recebendo a manifestação do interessado, o Procurador-Geral da República a estudará, apreciando se tem ou não procedência. Convencendo-se de que o ato argüido é inconstitucional, proporá a ação, em caso contrário, determinará o arquivamento’ (Alfredo Buzaid. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro, p. 109-110)”131.
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RTJ, 59:336-7 (www.stf.gov.br). Evidentemente, o texto de Buzaid referia-se à representação interventiva, na qual o Procurador-Geral da República, como tive oportunidade de demonstrar alhures (Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, São Paulo, 1990, p. 22 e s.), atuava como representante judicial da União (e não como substituto processual, como pretendeu Buzaid!). A propósito, registre-se observação que fiz sobre o tema, verbis: “Entre nós, a questão relativa à natureza do processo de controle de normas se colocou logo no julgamento das primeiras representações, ainda que de forma tópica, não-sistemática. Nas Rp. 95 e 96, de 1947, esboçou-se controvérsia quanto à possibilidade de o Supremo Tribunal apreciar a argüição de inconstitucionalidade, não obstante o pronunciamento do Procurador-Geral da República pela improcedência do pedido. E a Excelsa Corte, por maioria, firmou, inicialmente, orientação no sentido afirmativo, entendendo bastante o encaminhamento do pedido pelo órgão constitucionalmente legitimado. Assentou-se, igualmente, que o fundamento da inconstitucionalidade, atribuído pelo Procurador-Geral da República, não se afigurava relevante para a resolução do Tribunal. ‘O que importa — dizia o Ministro
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Hahnemann Guimarães — é que seja apresentado ao Tribunal fato que possa caracterizar a argüição de inconstitucionalidade’, não sendo necessário que ‘o Sr. Dr. Procurador-Geral da República haja dado uma classificação à argüida inconstitucionalidade’. No tocante à possibilidade de desistência, o Tribunal considerou-a inicialmente, cabível. Na Rp. 466-GB, colocou-se novamente a indagação, tendo o relator, Ministro Ari Franco, asseverado que ‘ao Ministério Público não é lícito, em regra, a desistência do que pleiteia’. Esse entendimento foi incorporado ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que consagra, desde 1970, vedação expressa à desistência da representação. O desenvolvimento da ação direta de controle de constitucionalidade demonstra que jurisprudência e doutrina não lograram diferençar, de imediato, a representação interventiva do controle abstrato de normas. Como ressaltado, o eminente Professor Themístocles Cavalcanti, Procurador-Geral da República do governo democrático que sucedeu à ditadura Vargas, considerava que o chefe do Ministério Público deveria submeter a argüição de inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal, ainda quando a tivesse por descabida. Reputava-se suficiente, pois, a presença de um interesse jurídico para encaminhar o tema ao Supremo Tribunal Federal. E, não raro, essa postura colhia referendo na Excelsa Corte, como se depreende de voto proferido pelo Ministro Goulart de Oliveira, na Rp. 96, no qual se afirmou, expressamente, que: ‘Se não fosse lícita a solicitação estranha, só ao Procurador-Geral ficaria a iniciativa que o impugnante exige não provocada... Só ele podia ver inconstitucionalidade nesses textos. E só ele seria juiz... naqueles que entendesse constitucionais... A sua atribuição nesta emergência é dupla: quando veicula a Representação, submete ao Tribunal, na técnica da Constituição, e quando opina como dever de ‘ofício’. Não há confundir as duas funções’. Converter-se-ia, assim, a representação interventiva, destinada à defesa de princípios basilares da ordem federativa e de índole nitidamente contraditória, em um processo objetivo, na qual o Procurador-Geral da República veiculava, tão-somente, o interesse público na decisão da questão constitucional. Também no tocante à natureza e à eficácia da decisão, parecia dominar o sentimento de que, diferentemente da pronúncia no caso concreto, a declaração de inconstitucionalidade resolvia-se ‘por uma fórmula legislativa ou quase legislativa, que vem a ser não-vigência, virtualmente decretada, de uma dada lei’. Convém reiterar, a propósito, a lição de Castro Nunes: ‘Atribuição nova, que o Supremo Tribunal é chamado a exercer pela primeira vez e cuja eficácia está confiada, pela Constituição, em primeira mão, ao patriotismo do próprio legislador estadual no cumprir, de pronto, a decisão e, se necessário, ao Congresso Nacional, na compreensão esclarecida da sua função coordenada com a do Tribunal, não será inútil o exame desses aspectos, visando delimitar a extensão, a executoriedade e a conclusividade do julgado. Na declaração em espécie, o Judiciário arreda a lei, decide o caso por inaplicação dela, e executa, ele mesmo, o seu aresto. Trata-se, aqui, porém, de inconstitucionalidade em tese, e nisso consiste a inovação desconhecida entre nós na prática judicial, porquanto até então não permitida pela Constituição. Em tais casos a inconstitucionalidade declarada não se resolve na inaplicação da lei ao caso ou no julgamento do direito questionado por abstração do texto legal comprometido; resolve-se por uma fórmula legislativa ou quase legislativa que vem a ser a não-vigência, virtualmente decretada, de uma dada lei (...). Na declaração em tese, a suspensão redunda na ab-rogação da lei ou na derrogação dos dispositivos alcançados, não cabendo ao órgão legiferante censurado senão a atribuição meramente formal de modificá-la ou regê-la, segundo as diretivas do pré-julgado; é uma inconstitucionalidade declarada erga omnes, e não somente entre as partes; a lei não foi arredada apenas em concreto; foi cessada para todos os efeitos’. Evidentemente, a declaração de inconstitucionalidade proferida na representação interventiva não era dotada dessa eficácia genérica. Tanto é assim que, mesmo sob o regime constitucional de 1946, previa-se a suspensão de execução do ato argüido de inconstitucionalidade, se essa medida se afigurasse suficiente para o restabelecimento da normalidade no Estado (CF de 1946, art. 13). Essa assimilação entre instrumentos jurídicos diversos se identifica, igualmente, no clássico estudo de Buzaid, que qualificou a posição do Procurador-Geral da República, na ação direta, para fins de intervenção, como substituto processual, representando ‘toda a coletividade empenhada em expurgar a ordem jurídica de
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O Supremo Tribunal Federal rejeitou a reclamação proposta com o argumento de que apenas o Procurador-Geral poderia decidir se e quando deveria ser oferecida representação para a aferição da constitucionalidade de lei132. Esse entendimento foi reiterado pelo Tribunal em diversos arestos133. Poucas questões suscitaram tantas e tão intensas discussões quanto à da eventual discricionariedade do Procurador-Geral da República para oferecer ou não a representação de inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal. Autores de renome, como Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, 2. ed., Revista dos Tribunais, v. 4, p. 44), Josaphat Marinho (Inconstitucionalidade de lei — representação ao STF, RDP, 12:150), Caio Mário da Silva Pereira (voto proferido no Conselho Federal da OAB, Arquivos, 118:25), Themístocles Cavalcanti (Arquivamento de representação por inconstitucionalidade da lei, RDP, 16:169) e Adaucto Lúcio Cardoso (voto na Recl. 849, RTJ, 50:347-8), manifestaram-se pela obrigatoriedade de o ProcuradorGeral da República submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, ressaltando-se, univocamente, a impossibilidade de se alçar o chefe do Ministério Público à posição de juiz último da constitucionalidade das leis134. Outros, não menos ilustres, como Celso Agrícola Barbi (Evolução do controle de constitucionalidade das leis no Brasil, RDP, 4:40), José Carlos Barbosa Moreira (As partes na ação declaratória de inconstitucionalidade, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado da Guanabara, 13:67), José Luiz de Anhaia Mello (Os princípios constitucionais e sua proteção, São Paulo, 1966, p. 24), Sérgio Ferraz (Contencioso constitucional, comentário a acórdão, Revista de Direito, 20:218) e Raimundo Faoro (voto no Conselho Federal da OAB, Arquivos, 118:47), reconheceram a faculdade do exercício da ação pelo Procurador-Geral da República. Alguns juristas procuraram deslocar a controvérsia para o plano legal, tendo Arnoldo Wald propugnado por fórmula que emprestava a seguinte redação ao art. 2º da Lei n. 4.337, de 1964: “Art. 2º Se o conhecimento da inconstitucionalidade resultar de representação que lhe seja dirigida por qualquer interessado, o Procurador-Geral da República terá o prazo de trinta dias, a contar do recebimento da representação, para apresentar a argüição perante o Supremo Tribunal Federal. § 1º Se a representação for oriunda de pessoa jurídica de direito público, não poderá o Procurador-Geral deixar de encaminhá-la, sob pena de responsabilidade. § 2º Se a representação for oriunda de pessoa física ou de pessoa jurídica de direito privado, o Procurador-Geral deverá, no prazo de trinta dias, encaminhá-la com parecer ao Supremo Tribunal Federal ou arquivá-la. No caso de arquivamento, caberá reclamação ao plenário do Supremo Tribunal Federal, que deverá conhecer da mesma se a representação tiver fundamentação jurídica válida, avocando, em tal hipótese, o processo para julgamento na forma da presente lei”135.
Enquanto importantes vozes na doutrina reconheceram o direito de o Procurador-Geral submeter ou não a questão ao Supremo Tribunal Federal, consoante a sua própria avaliação e discricionariedade, uma vez que somente ele dispunha de competência constitucional para propor essa ação136, sustentavam outros a opinião de que estaria obrigado a oferecer a argüição ao Supremo atos políticos, manifestamente inconstitucionais e capazes de pôr em risco a estrutura do Estado’”. 132 Reclamação n. 849, Rel. Min. Adalício Nogueira, RTJ, 59:336. 133 Reclamação n. 121, Rel. Min. Djaci Falcão, RTJ, 100:955; Reclamação n. 128, Rel. Min. Cordeiro Guerra, RTJ, 98:3 e s.; Reclamação n. 152, Rel. Min. Djaci Falcão, DJ, 11 maio 1983, p. 6292. 134 Celso Ribeiro Bastos, Curso, cit., p. 68. Cf., no mesmo sentido, voto do Min. Goulart de Oliveira, Rp. 96, de 3-10-1947, AJ, 85:100-1. 135 Voto de Arnoldo Wald, Arquivos do Ministério da Justiça, 29(118):46-7. 136 Barbi, Celso A., Evolução..., RDP, cit., p. 40; J. L. de Anhaia Mello, Os princípios constitucionais e
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Tribunal Federal se houvesse pelo menos sérias dúvidas sobre a constitucionalidade da lei137. Uma posição intermediária foi sustentada por Celso Bastos, segundo a qual o ProcuradorGeral da República não poderia negar-se a formular a representação se o requerimento lhe fosse encaminhado por algum órgão público, uma vez que, nesse caso, não se poderia ter dúvida quanto ao interesse público na aferição da constitucionalidade da lei ou do ato normativo138.
(b) O caráter dúplice ou ambivalente da representação de inconstitucionalidade Deve-se registrar que, a despeito do esforço despendido, o incidente não contribuiu — infelizmente, ressalte-se — para que a doutrina constitucional brasileira precisasse a natureza jurídica do instituto. Não restou assente sequer a distinção necessária e adequada entre o controle abstrato de normas (representação de inconstitucionalidade) e a representação interventiva. Alguns doutrinadores chegaram mesmo a recomendar a alteração da Lei n. 4.337, de 1964, que disciplina a representação interventiva, para que se explicitasse a obrigatoriedade da propositura da ação pelo Procurador-Geral, desde que isso lhe fosse requerido por determinados entes. Não se percebeu, igualmente, que, tal como concebida, a chamada representação de inconstitucionalidade tinha, em verdade, caráter dúplice ou natureza ambivalente, permitindo ao Procurador-Geral submeter a questão constitucional ao Supremo Tribunal quando estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma ou, mesmo quando convencido da higidez da situação jurídica, surgissem controvérsias relevantes sobre sua legitimidade. A imprecisão da fórmula adotada na Emenda n. 16 — representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral — não consegue esconder o propósito inequívoco do legislador constituinte, que era o de permitir, “desde logo, a definição da ‘controvérsia constitucional’ sobre leis novas”. Não se pretendia, pois, que o Procurador-Geral instaurasse o processo de controle abstrato com o propósito exclusivo de ver declarada a inconstitucionalidade da lei, até porque ele poderia não tomar parte na controvérsia constitucional ou, se dela participasse, estar entre aqueles que consideravam válida a lei. Não se fazia mister, portanto, que o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma. Era suficiente o requisito objetivo relativo à existência de “controvérsia constitucional”. Daí ter o constituinte utilizado a fórmula equívoca — representação contra a inconstitucionalidade da lei, encaminhada pelo Procurador-Geral da República —, que explicitava, pelo menos, que a dúvida ou a eventual convicção sobre a inconstitucionalidade não precisava ser por ele perfilhada. Se correta essa orientação, parece legítimo admitir que o Procurador-Geral da República tanto poderia instaurar o controle abstrato de normas, com o objetivo precípuo de ver declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo (ação declaratória de inconstitucionalidade ou representação de inconstitucionalidade), como poderia postular, expressa ou tacitamente, a sua proteção, São Paulo, 1966, p. 24. 137 Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, Rio de Janeiro, 1987, v. 4, p. 44; Josaphat Marinho, Inconstitucionalidade de lei — representação ao STF, RDP, 12:50 e s.; Caio Mário da Silva Pereira, Voto proferido no Conselho Federal da OAB, Arquivos do Ministério da Justiça 118:25; Themístocles Cavalcanti, Do controle, cit.; Adaucto Lucio Cardoso, Voto vencido, Reclamação n. 849, RTJ, 50:347-8; cf., também, Embargos na Rp. 1.092, Rel. Djaci Falcão, RTJ, 117:921 (951-2). 138 Bastos. Curso, cit., p. 74-5.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes declaração de constitucionalidade da norma questionada (ação declaratória de constitucionalidade). A cláusula sofreu pequena alteração na Constituição de 1967 e de 1967/69 (representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual — CF de 1967, art. 115, I, l; CF de 1967/69, art. 119, I, l). O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, na versão de 1970139, consagrou expressamente essa idéia: “Art. 174............................................................................................. § 1º Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário”.
Essa disposição, que, como visto, consolidava tradição já velha no Tribunal, permitia ao titular da ação encaminhar a postulação que lhe fora dirigida por terceiros, manifestando-se, porém, em sentido contrário. Não é preciso maior esforço de argumentação para demonstrar que, do ponto de vista dogmático, nada mais fez o Regimento Interno do que positivar, no plano processual, a orientação que balizara a instituição da representação de inconstitucionalidade (controle abstrato) entre nós. Ela se destinava não apenas a eliminar a lei declarada inconstitucional da ordem jurídica (pedido de declaração de inconstitucionalidade), mas também a elidir controvérsias que se instaurassem sobre a legitimidade de determinada norma (pedido de declaração de constitucionalidade). Assim, se o Procurador-Geral encaminhava súplica ou representação de autoridade ou de terceiro, com parecer contrário, estava simplesmente a postular uma declaração (positiva) de constitucionalidade. O pedido de representação, formulado por terceiro e encaminhado ao Supremo, materializava, apenas, a existência da controvérsia constitucional, apta a fundamentar uma necessidade pública de controle. Essa cláusula foi alterada em 1980, passando o Regimento Interno a conter as seguintes disposições: “Art. 169. O Procurador-Geral da República poderá submeter ao Tribunal, mediante representação, o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade. § 1º Proposta a representação, não se admitirá desistência, ainda que afinal o Procurador-Geral se manifeste pela sua improcedência”.
Parece legítimo supor que tal modificação não alterou, substancialmente, a idéia básica que norteava a aplicação desse instituto. Se o titular da iniciativa manifestava-se, afinal, pela constitucionalidade da norma impugnada, é porque estava a defender a declaração de constitucionalidade. Na prática, continuou o Procurador-Geral a oferecer representações de inconstitucionalidade, ressaltando a relevância da questão e opinando, muitas vezes, em favor da constitucionalidade da norma. A falta de maior desenvolvimento doutrinário e a própria balbúrdia conceitual instaurada em torno da representação interventiva140 — confusão essa que contaminou os estudos do novo instituto — não permitiram que essas idéias fossem formuladas com a necessária clareza. A própria disposição regimental é equívoca, pois, se interpretada literalmente, reduziria o 139
DJ, 4 set. 1970, p. 3971 e s. Buzaid, Alfredo. Da ação direta, cit., p. 107; José Carlos Barbosa Moreira, As partes na ação declaratória de inconstitucionalidade, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado da Guanabara, 1964, 13:67(75-6); Themístocles Cavalcanti, Do controle, cit., p. 115 e s. 140
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papel do titular da iniciativa, o Procurador-Geral da República, ao de um despachante autorizado, que poderia encaminhar os pleitos que lhe fossem dirigidos, ainda que com parecer contrário. Embora o Supremo Tribunal Federal tenha considerado inadmissível representação na qual o Procurador-Geral da República afirma, de plano, a constitucionalidade da norma141, é certo que essa orientação, calcada numa interpretação literal do texto constitucional, não parece condizente, tal como demonstrado, com a natureza do instituto e com a sua práxis desde a sua adoção pela Emenda n. 16, de 1965. Todavia, a Corte continuou a admitir as representações e, mesmo após o advento da Constituição de 1988, as ações diretas de inconstitucionalidade nas quais o Procurador-Geral se limitava a ressaltar a relevância da questão constitucional, pronunciando-se, a final, pela sua improcedência142. Em substância, era indiferente, tal como percebido por Victor Nunes, que o Procurador-Geral sustentasse, desde logo, a constitucionalidade da norma, ou que encaminhasse o pedido, para, posteriormente, manifestar-se pela sua improcedência. Essa análise demonstra claramente que, a despeito da utilização do termo representação de inconstitucionalidade, o controle abstrato de normas foi concebido e desenvolvido como processo de natureza dúplice ou ambivalente. Se o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade, poderia provocar o Supremo Tribunal Federal para a declaração de inconstitucionalidade. Se, ao revés, estivesse convicto da legitimidade da norma, então poderia instaurar o controle abstrato com a finalidade de ver confirmada a orientação questionada.
(c)
Conclusão
Ressalte-se, pois, que a idéia subjacente à fórmula regimental imperfeita (RISTF, art. 169) — concepção que já havia presidido a própria elaboração da Emenda Constitucional n. 16 — era a de que o Procurador-Geral da República poderia instaurar o controle abstrato de normas quando surgissem “controvérsias constitucionais”. Ser-lhe-ia legítimo, pois, tanto pedir a declaração de inconstitucionalidade como advogar a pronúncia de uma declaração de constitucionalidade. A “controvérsia constitucional” ou a dúvida fundada sobre a constitucionalidade da norma representava, assim, um pressuposto processual implícito do controle abstrato de normas — objetivo, porém —, que legitimava a instauração do controle abstrato de normas, seja com o escopo de ver declarada a inconstitucionalidade da norma, seja com o propósito de ver afirmada a sua constitucionalidade. Daí ter o saudoso Victor Nunes Leal observado em palestra proferida na Conferência Nacional da OAB de 1978 (Curitiba) que, “em caso de representação com parecer contrário, o que se tem, na realidade, sendo privativa a iniciativa do Procurador-Geral, é uma representação de constitucionalidade”143. A propósito, acrescentou, ainda, o notável jurisconsulto: “Relembro, aliás, que o ilustre Professor Haroldo Valladão, quando Procurador-Geral da República144, 141
Rp. 1.349, Rel. Min. Aldir Passarinho, RTJ, 129:41. O Tribunal considerou inepta a representação, entendendo que, como a Constituição previa uma ação de inconstitucionalidade, não poderia o titular da ação demonstrar, de maneira insofismável, que perseguia outros desideratos. 142 Cf., dentre outras, ADIn 716-5, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 29 abr. 1992, p. 5606. 143 Victor Nunes Leal, Representação de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal: um aspecto inexplorado, RDP, 53-54:25 (33). 144 O Professor Haroldo Valladão exerceu o cargo de Procurador-Geral da República no período de 19-4-
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sugeriu ao signatário (não sei se chegou a registrá-lo por escrito) a conveniência de deixar expressa no Regimento a representação destinada a afirmar a constitucionalidade, para solver dúvidas, ainda que não houvesse pedido formal de terceiros no sentido da inconstitucionalidade”145.
A identificação da natureza dúplice do instituto retiraria um dos fortes argumentos do Procurador-Geral, que se referia à sua condição de titular da ação para fazer atuar a jurisdição constitucional com o escopo de ver declarada a inconstitucionalidade da norma. A possibilidade de pedir a declaração de constitucionalidade deitaria por terra essa assertiva, convertendo o pretenso “direito” de propor a ação de inconstitucionalidade num “poder-dever” de submeter a questão constitucional relevante ao Supremo, seja sob a forma de representação de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade. A existência de controvérsia constitucional relevante configurava a objetivação da necessidade de o Procurador-Geral da República submeter a argüição ao Supremo Tribunal, ainda quando estivesse convencido sobre a sua improcedência. Em outros termos, configurada controvérsia constitucional relevante, não poderia o Procurador-Geral da República furtar-se ao dever de submetê-la ao Supremo Tribunal Federal, ainda que se manifestando pela improcedência do requerimento (pedido de declaração de constitucionalidade). Portanto, uma análise mais detida da natureza do instituto da representação de inconstitucionalidade permite reforçar a censura ao entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, propiciando-se, assim, uma nova leitura — ainda que apenas com valor de crítica histórica — da orientação sustentada pela Procuradoria-Geral da República e avalizada pelo Supremo Tribunal Federal146. 1.2.7.2 O Significado do controle abstrato de normas sob o império da Constituição de 1946 (EC n. 16, de 1965) e da Constituição de 1967/69 Muitas decisões importantes foram proferidas no processo abstrato de normas, como aquelas nas quais se reconheceu a existência do princípio da proporcionalidade como postulado constitucional147, os julgados sobre a constitucionalidade de leis tributárias, tendo em vista o princípio da anterioridade ou da irretroatividade148, bem como os inúmeros arestos sobre a indispensabilidade do concurso para o provimento de cargos públicos149. Grande parte dos processos do controle abstrato refere-se, todavia, a casos de pouco significado jurídico-político. Assim, inúmeras representações de inconstitucionalidade destinavam1967 a 13-11-1967. 145 Victor Nunes Leal, Representação..., RDP, cit., p. 25 (33). 146 Ver: Celso A. Barbi, Evolução..., RDP, cit., p. 40; José Carlos Barbosa Moreira, As partes..., Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado da Guanabara, cit., p. 67; Celso Ribeiro Bastos, Curso, cit.; Alfredo Buzaid, Da ação direta, cit.; Themístocles Cavalcanti, Do controle, cit.; Arquivamento de representação por inconstitucionalidade da lei, RDP, 16:169; Victor Nunes Leal, Representação..., RDP, cit., p. 25; Josaphat Marinho, Inconstitucionalidade de lei..., RDP, cit., p. 50; J. L. de Anhaia Mello, Os princípios constitucionais, cit.; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, cit., v. 4; Caio Mário da Silva Pereira, Voto, Arquivos do Ministério da Justiça, cit., p. 25; Arnoldo Wald, Voto, Arquivos do Ministério da Justiça, 118:46-7. 147 Rp. 930, de 10-3-1976, Relator: Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 2 set. 1977; Rp. 1.054, de 4-41984, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 110, p. 967-8; Rp. 1.077, de 28-3-1984, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 112, p. 34 (58-9, 62). 148 Rp. 1.451, Relator: Ministro Moreira Alves, DJ, 24 jun. 1988; Rp. 981, Relator: Ministro Djaci Falcão, RTJ n. 87, p. 374 e s. 149 Rp. 888, Relator: Ministro Aliomar Baleeiro, RTJ n. 67, p. 324 e s.; Rp. 1.052, Relator: Ministro Rafael Mayer, RTJ n. 101, p. 924 e s.; Rp. 1.174, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 114, p. 80 e s.; Rp. 1.113, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 115, p. 47 e s.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes se a aferir a constitucionalidade das leis estaduais que criaram novos municípios sem observar determinadas exigências fixadas na Constituição150. É significativo, igualmente, o número de processos de controle abstrato instaurados contra normas estaduais que procuravam legitimar a admissão de funcionários públicos sem realização de concurso151. O elevado número de processos de controle de normas, que, apenas no período entre 1966 e 1988, sob o regime do monopólio de ação do Procurador-Geral da República, ultrapassa a casa dos 900, expressa uma peculiaridade do modelo brasileiro de tal controle. Não raro, limitava-se o Procurador-Geral da República a encaminhar, ao Tribunal, requerimento formulado por um órgão constitucional ou por qualquer cidadão, aderindo aos fundamentos expendidos ou simplesmente ressaltando que se lhe afiguravam relevantes as razões deduzidas. Essa representação era formulada, normalmente, sob a reserva de uma posterior manifestação da Procuradoria-Geral da República, após as informações das autoridades responsáveis pela edição do ato. A Tabela III abaixo contempla o quadro estatístico das ações no período 1966-2004. TABELA III Ações Diretas de Inconstitucionalidade - Quadro Geral do Número de Processos instaurados no período de 1966 a 2004* Ano 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978
Processos 22 31 1 26 15 23 20 17 18 24 20 29
Ano 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1979 1990
Processos 15 40 42 37 26 55 70 81 114 202* 159 15 256
Ano 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004**
Processos 232 165 162 197 211 159 206 181 189 253 210 226 288 174
* a estatística considera as RPs e as ADIns (sendo 11 ADIns e 191 RPs) ** atualizada até 10.08.2004 (ADIn nº 3.281) Fontes: STF/PGR/AGU
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Rp. 1.369, Relator: Ministro Octavio Gallotti, RTJ n. 125, p. 478 e s.; Rp. 1.413, Relator Ministro Sydney Sanches, RTJ n. 124, p. 146 e s.; Rp. 1.467, Relator: Ministro Aldir Passarinho, RTJ n. 123, p. 438 ff; Rp. 1.465, Relator: Francisco Rezek, RTJ n. 126, p. 77 e s.; Rp. 1.263, Relator: Ministro Carlos Madeira, RTJ n. 124, p. 881 e s.; Rp. 1.432, Relator: Ministro Aldir Passarinho, RTJ n. 122, p. 940 e s. 151 Rp. 1.356, Relator: Ministro Francisco Rezek, RTJ n. 124, p. 424 e s.; Rp. 1.388, Relator: Ministro Celio Borja, RTJ n. 124, p. 443 e s.; Rp. 1.400, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 124, p. 451 e s.; Rp. 1.305, Relator: Ministro Sydney Sanches, RTJ n. 123, p. 852 e s.; Rp. 1.449, Relator: Ministro Aldir Passarinho, RTJ n. 123, p. 889 e s.; Rp. 1.420, Relator: Ministro Octavio Gallotti, RTJ n. 124, p. 156 e s.; Rp. 1.330, Relator: Ministro Sydney Sanches, RTJ n. 124, p. 883; Rp. 1.368, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 122, p. 828.
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Ao contrário dos sistemas dotados de um Tribunal Constitucional especial, nos quais o processo no controle abstrato de normas é apenas uma modalidade entre as diversas formas de controle de normas152, o controle abstrato de normas no Brasil representava a única possibilidade de atacar-se, diretamente, perante o Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade de uma lei estadual ou federal. Pode-se afirmar, pois, que o controle abstrato de normas preenchia, nos modelos constitucionais de 1946, após a Emenda n. 16, de 1965, e de 1967/69, uma função supletiva e uma função corretiva do “modelo incidente” ou “difuso”. Ele possibilitava a aferição direta da constitucionalidade de leis que, pela via incidental, jamais teriam a sua constitucionalidade examinada judicialmente por não se mostrarem aptas, em princípio, a ser submetidas, como questão preliminar, numa controvérsia concreta. O controle abstrato de normas desempenhava, também, uma função corretiva na medida em que, mediante decisão direta e definitiva do Supremo Tribunal Federal, permitia superar a situação de insegurança jurídica e corrigir determinadas injustiças decorrentes da multiplicidade e da contraditoriedade dos julgados proferidos pelos diferentes juízes ou Tribunais sobre a mesma matéria153. De anotar, porém, que o maior mérito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sob o império das Constituições de 1946 (Emenda n. 16, de 1965) e de 1967/69, está relacionado com a definição da natureza jurídico-processual do processo de controle abstrato. A identificação da natureza objetiva desse processo, a caracterização da iniciativa do Procurador-Geral da República como simples impulso processual e o reconhecimento da eficácia erga omnes das decisões de mérito proferidas nesses processos pelo Supremo Tribunal Federal configuraram, sem dúvida, conquistas fundamentais para o mais efetivo desenvolvimento do controle de constitucionalidade no Brasil.
1.2.8. O controle de constitucionalidade na Constituição de 1988
(a) Considerações Preliminares
Se a intensa discussão sobre o monopólio da ação por parte do Procurador-Geral da República não levou a uma mudança na jurisprudência consolidada sobre o assunto, é fácil constatar que ela foi decisiva para a alteração introduzida pelo constituinte de 1988, com a significativa ampliação do direito de propositura da ação direta. O constituinte assegurou o direito do Procurador-Geral da República de propor a ação de inconstitucionalidade. Este é, todavia, apenas um dentre os diversos órgãos ou entes legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade. Nos termos do art. 103 da Constituição de 1988, dispõem de legitimidade para propor a ação de inconstitucionalidade o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de uma Assembléia Legislativa, o Governador do Estado, o ProcuradorGeral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com 152
Cf., a propósito, Landfried, Bundesverfassungsgericht und Gesetzgeber, p. 47. Critica-se na doutrina a diversidade de decisões sobre determinadas questões constitucionais por diferentes juízes e Tribunais, que acarreta, não raramente, resultados injustos para o indivíduo (cf., a propósito, José Afonso da Silva, Tribunais constitucionais e jurisdição constitucional, Revista Brasileira de Estudos Políticos n. 60-61, 1985, p. 495 (522). 153
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representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional. Com isso satisfez o constituinte apenas parcialmente a exigência daqueles que solicitavam fosse assegurado o direito de propositura da ação a um grupo de, v. g., dez mil cidadãos ou que defendiam até mesmo a introdução de uma ação popular de inconstitucionalidade154. Tal fato fortalece a impressão de que, com a introdução desse sistema de controle abstrato de normas, com ampla legitimação e, particularmente, a outorga do direito de propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente. Não é menos certo, por outro lado, que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial — ainda que não desejada — no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. O monopólio de ação outorgado ao Procurador-Geral da República no sistema de 1967/69 não provocou uma alteração profunda no modelo incidente ou difuso. Este continuou predominante, integrando-se a representação de inconstitucionalidade a ele como um elemento ancilar, que contribuía muito pouco para diferençá-lo dos demais sistemas “difusos” ou “incidentes” de controle de constitucionalidade. A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas. Convém assinalar que, tal como já observado por Anschütz ainda no regime de Weimar, toda vez que se outorga a um Tribunal especial atribuição para decidir questões constitucionais, limitase, explícita ou implicitamente, a competência da jurisdição ordinária para apreciar tais controvérsias155. Portanto, parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. Assim, se se cogitava, no período anterior a 1988, de um modelo misto de controle de constitucionalidade, é certo que o forte acento residia, ainda, no amplo e dominante sistema difuso de controle. O controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso. A Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Ressalte-se que essa alteração não se operou de forma ainda profunda porque o Supremo Tribunal manteve a orientação anterior, que considerava inadmissível o ajuizamento de ação direta contra direito pré-constitucional em face da nova Constituição. A ampla legitimação, a presteza e celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante 154
Cf., a propósito, as propostas de Vilson Souza e Vivaldo Barbosa à Comissão de Organização de Poderes e Sistema de Governo da Assembléia Constituinte (Assembléia Nacional Constituinte, Emendas oferecidas à Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo, 1988, p. 214 e 342). 155 Gerhard Anschütz, Verhandlungen des 34. Juristentags, Berlin-Leipzig, 1927, v. 2, p. 208.
71
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pedido de cautelar, faz com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado. A particular conformação do processo de controle abstrato de normas confere-lhe, também, novo significado como instrumento federativo, permitindo a aferição da constitucionalidade das leis federais mediante requerimento de um Governador do Estado e a aferição da constitucionalidade das leis estaduais, mediante requerimento do Presidente da República. A Tabela IV abaixo mostra o significado assumido pelo controle concentrado no sistema brasileiro. Embora o modelo difuso seja mais amplo, por abranger o direito federal, o direito estadual e o direito municipal, é certo que um grande número de leis vem tendo a sua inconstitucionalidade declarada nos processos de ação direta. TABELA IV CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE ABSTRATO E INCIDENTAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO PERÍODO DE 05.10.88 A 25.10.2004
DISPOSITIVOS IMPUGNADOS
Leis Federais e Decretos Autônomos Leis Estaduais e Decretos Autônomos Leis Complementares Federais ou Acordos Internacionais Leis Complementares Estaduais Leis Municipais Resoluções e Atos Administrativos Emendas à CF/88 Emendas às Constituições Estaduais Decretos e Atos Regulamentares Constituições Estaduais e ADCT´S Medidas Provisórias Omissão – União Omissão – Estados Dispositivos da CF Original Dissídios Coletivos Regimento Interno Decretos-Leis Federais TOTAL
CONTROLE CONCENTRADO (ADI) Deferidas (Mérito)
CONTROLE DIFUSO Deferidas (Declarações Incidentais de Inconstitucionalidade)
48
13
61
263
42
305
9
1
10
75
7
82
104
41 6
41 110
6 28
6
6 34
1
-
1
142
-
142
19 695 (82,05%)
1 29 3 2 1 152 (17,95%)
20 29 3 2 1 847
Fonte: Seção de Pesquisa de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
72
SUBTOTAL
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A propositura da ação pelos partidos políticos com representação no Congresso Nacional concretiza, por outro lado, a idéia de defesa das minorias, uma vez que se assegura, até às frações parlamentares menos representativas, a possibilidade de argüir a inconstitucionalidade de lei. Ao contrário da tendência inicial, são hoje numericamente significativas as ações propostas pelas organizações partidárias. É verdade, ademais, que muitos dos temas mais polêmicos submetidos ao Supremo Tribunal, no processo de controle abstrato, foram trazidos à baila mediante iniciativa dos partidos políticos. Assim, a discussão sobre a constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 2, de 1992, que antecipou o plebiscito sobre a forma e sistema de governo previsto no art. 2º do ADCT156, o questionamento da legitimidade da lei do salário mínimo157, a controvérsia sobre a legitimidade do pagamento mediante precatório para os créditos de natureza alimentícia158. Isto para não falar das diversas ações propostas contra a política econômica do Governo159. A Tabela V contém dados estatísticos sobre as ações diretas, propostas pelos diversos legitimados, no período 1988-2004.
156
Cf. ADIn 829, 830 e 831, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 20 abr. 1993, p. 6758. ADIn 737, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista — PDT, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 22 out. 1993, p. 22252. 158 ADIn 672, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 4 fev. 1992, p. 499. 159 Cf., v. g., ADIn 357, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ, 23 nov. 1990, p. 13622; ADIn 562, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ, 10 set. 1991, p. 12254; ADIn 605, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 5 mar. 1993; ADIn 931, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ, 2 set. 1993. 157
73
Requerentes
5 159
202
256
1
29 52
10
101 63
-
1990
3 232
7
39 59
3
55 66
-
1991
2 165
4
25 21
4
47 62
-
1992
1 162
1
15 49
7
40 49
-
1993
1 197
1
28 64
3
33 67
-
1994
1 211
4
48 49
2
59 48
-
1995
6 159
2
47 59
8
25 12
-
1996
1 206
2
46 48
12
59 38
-
1997
3 181
1
41 73
8
28 27
-
1998
1 189
3
59 46
12
50 18
-
1999
2 253
4
75 64
19
68 21
-
2000
Ações Diretas de Inconstitucionalidade Quadro Geral sobre os processos ajuizados no período de 1988 a 2004
TABELA V
* a estatística considera as RPs e as ADIns (sendo 11 ADIns e 191 RPs) ** atualizada até 10. 08.2004 (ADIn nº 3.281) Fontes: STF/PGR/AGU
1
-
5
1
14 54
58 22
1 191
3 6
-
-
1988* 1989
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Presidente da República Mesa do Senado Federal Mesa da Câmara dos Deputados Governador de Estado Procurador-Geral da República Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil Partido Político Confederação Sindical ou Entidade de Classe Mesa da Assembléia Legislativa Outros Total Geral
74
1 210
3
79 53
6
57 11
-
2001
1 226
3
60 44
15
95 8
-
2002
288
-
43 52
9
67 117
2003 ** -
2 174
-
22 37
7
43 63
-
2004
30 3.470
37
673 830
131
886 883
Total parcial -
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(b) A criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade A Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993, disciplinou o instituto da ação declaratória de constitucionalidade, introduzido no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, no bojo da reforma tributária de emergência. A Emenda Constitucional n. 3 firmou a competência do STF para conhecer e julgar a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, processo cuja decisão definitiva de mérito possuirá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Executivo e do Judiciário. Conferiu-se legitimidade ativa ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputados e ao Procurador-Geral da República. A ação declaratória tem sido manejada com alguma freqüência pelo Governo Federal. A primeira ADC discutia a constitucionalidade da Lei Complementar no 70, de 30 de dezembro de 1991, que trata da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS, quando se deu amplo debate sobre a constitucionalidade da própria ação declaratória, tendo o Tribunal confirmado a sua plena legitimidade.160 Desde então foram propostas outras oito ADCs161, algumas delas de grande repercussão, como a relativa à Lei no 9.424, de 24 de dezembro de 1996, que dispõe sobre a contribuição social do salário-educação, e à Medida Provisória no 2.152-2, de 1o de junho de 2001, referente ao programa de racionamento de energia elétrica.
TABELA VI Ações Declaratórias de Constitucionalidade ajuizadas no Supremo Tribunal Federal
ANO / ADC
ATO
RELATOR REQUERENTE
NORMATIVO IMPUGNADO
1993 1-1 Moreira Alves
Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara Federal
DATA DE EDIÇÃO DO ATO
ASSUNTO
Arts. 1º, 2º,
30.12.1991 COFINS. Seguridade 9º, 10 e 13 da Social. Lei Contribuição Social complementar Federal nº
LIMINAR
MÉRITO
Julgamento: Questão de Ordem: 1.12.1993 27.10.1993 Decisão: O Tribunal, declarou, Decisão: Ação constitucionalidade da redação
procedente
do art. 102, da Constituição Fe Acórdão: DJ 16.5.1995 mencionado art. 102, pela mesm Constitucional nº 3/93, bem co
70/91
Acórdão: DJ 16.6.1995 1997 2-9 Carlos Velloso
160 161
Associação Brasileira da Indústria de Embalagens Plásticas
Decreto-lei Federal nº 2318/86
30.12.1986 Dispõe sobre fontes de custeio da Previdência Social
Sem Liminar
ADC n° 1-1, Relator Min. Moreira Alves, DJ de 16.5.1995. Cf. Tabela VI– Ações Declaratórias de Constitucionalidade ajuizadas no STF .
75
Decisão monocrática: Negado seguimento por ilegitimidade ativa
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Flexíveis
ad causam da requerente Despacho: DJ 19.6.1997 Julgamento: 2.12.1999 Decisão: Julgou procedente a ação e declarou a constitucionalidade do art. 15, § 1º, inc. I e II, e § 3º da Lei nº 9424/96 Decisão: DJ 14.12.1999 Aguarda Julgamento
3-0
Nelson Jobim
ProcuradorGeral República
Art. 15 da Lei 24.12.1996 Dispõe sobre a Federal nº contribuição 9424/96 social do salárioeducação
Sem Liminar
4-6
Sydney Sanches
Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara Federal
Art. 1º da Lei 10.9.1997 Federal nº 9494/97 (Conversão da Medida Provisória nº 1570-5, de 21 de agosto de 1997)
Julgamento: 11.2.1998 Resultado: Deferida em parte, para suspender, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante a prolação de qualquer decisão, sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constituição ou inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9494/97 Acórdão: DJ 21.5.1999
ProcuradorGeral da República
Arts. 1º, 3º e 10.12.1997 Gratuidade dos Julgamento: 17.11.1999 Aguarda 5º da Lei serviços notariais Resultado: Liminar deferida, julgamento Federal nº e de registros com eficácia ex nunc e força 9534/97, que relativos a vinculante para, até o dá nova nascimentos e julgamento definitivo da redação ao óbitos, bem como presente ação, sustar a art. 30 da Lei o fornecimento prolação de qualquer decisão nº 6015/73; das respectivas em processos que digam acrescenta certidões aos respeito à legitimidade inc. ao art. 1º reconhecidamente constitucional, eficácia e da Lei nº pobres aplicação dos dispositivos 9265/96; e abaixo mencionados e altera os arts. suspender os efeitos de todas 30 e 45 da as decisões não transitadas Lei nº em julgado e de todos os atos 8935/94 normativos que negaram legitimidade constitucional, eficácia e aplicação, parcial ou integral, ao disposto no
1998 5-2 Nelson Jobim
Aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei 8.347, de 30 de junho de 1992. Tutela antecipada contra a Fazenda Pública
76
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6-9
Moreira Alves
1999 7-0 Maurício Corrêa
8-8
Celso de Mello
Confederação Art. 578 da dos CLT Servidores Públicos do Brasil CSPB
1943
Câmara Art. 31 da Lei 1993 Municipal de Orgânica do Chorozinho Município de Chorozinho (Ceará)
Presidente da Arts. 1º e 2º República da Lei Federal nº 9783/99
1999
Contribuição sindical prevista no Art. 578 da CLT
Mandato dos membros da Mesa Diretora será de dois anos, podendo ser reeleitos para o mesmo, para um um único período subsequente Contribuição dos servidores ativos, inativos e pensionistas para a seguridade social. Possibilidade de desconto das alíquotas nas folhas de pagamento.
art. 30 da Lei nº 6015/73, no art. 1º, inciso I, da Lei nº 9265/96 e no art. 45 da lei nº 8935/94, com a redação dada pelos arts. 1º, 3º e 5º da lei nº 9534/97. Decisão: DJ 26.11.1999 Sem liminar Decisão monocrática: Negado seguimento por ilegitimidade ativa ad causam Despacho: DJ 18.9.1998 Sem Liminar
13.10.1999
Decisão monocrática: Negado seguimento por ilegitimidade ativa ad causam Despacho: DJ 20.4.1999 Julgamento: Aguarda julgamento Resultado:
Deferida, em parte a cautelar para, em caráter vinculante, com eficácia erga omnes e com efeito ex nunc, reconhecer a legitimidade constitucional da contribuição de seguridade social devida pelos servidores públicos civis em atividade (alíquota de 11% - art. 1º da lei 9783/99), suspendendo, provisoriamente, até final julgamento desta ação declaratória de constitucionalidade - e apenas quanto aos processos, individuais ou coletivos, em
77
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cujo âmbito se haja instaurado controvérsia constitucional em torno da exigibilidade, aos servidores ativos, da contribuição em referência (alíquota de 11% a que alude o art. 1º da lei 9.783/99) - a prolação de dcisões liminares, cautelares ou de mérito e a concessão de tutela antecipada, sustando, ainda, os efeitos futuros inerentes a decisões anteriormente proferidas Decisão: DJ 22.10.1999 2001 Néri da Silveira Redatora para o Acórdão Min. Ellen Gracie 9-6
Presidente da Arts. 14 a 18 República da Medida Provisória nº 2152-2, de 1.6.2001
1.6.2001
Cria e instala a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica - GCE e estabelece diretrizes para programas de redução de energia elétrica
Julgamento: 28.6.2001 Resultado:
O
tribunal,
preliminarmente, admitiu a ação
declaratória
de
constitucionalidade. tribunal,
por
o
maioria
de
votos, deferiu a cautelar, para suspender, com eficácia ex tunc, e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a
prolação
decisão
que
de
qualquer
tenha
pressuposto constitucionalidade inconstitucionalidade
por a
ou
a dos
artigos 14 a 18 da medida provisória nº 2152-2, de 1º de junho de 2001 decisão: DJ 9.8.2001
78
Julgamento: 13.12.2001 Decisão: Ação procedente para declarar a constitucionalidade dos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 da Medida Provisória 2152-2, hoje sob o número 2198-5. Decisão: DJ 6.2.2002
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(c) Alternativas para o sistema difuso Ao lado dessa ampla legimitação para a provocação do controle abstrato de normas, cuidou o constituinte de instituir mecanismo (art. 5º, LXXI) para a tutela de direitos subjetivos lesados em decorrência da omissão normativa. No mesmo passo, previu-se, ainda, processo de controle abstrato da omissão normativa inconstitucional (art. 103, § 2o) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Uma outra observação deve ser feita no contexto da nova relação estabelecida entre os dois sistemas de controle de constitucionalidade na Constituição de 1988. Embora se afigure correta a tese segundo a qual o sistema direto passa a ter precedência ou primazia, é verdade também que é exatamente após 1988 que se acentua a crise numérica do Supremo Tribunal Federal. E essa crise manifesta-se de forma radical no sistema difuso, com o aumento vertiginoso de recursos extraordinários e agravos de instrumentos interpostos contra decisões indeferitórias desses recursos. A tabela VII abaixo transcrita fornece uma visão do problema:
Ano
1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976
TABELA VII Supremo Tribunal Federal Movimento Processual nos anos de 1950 a 2004 No. De Ano No. de Processos Processos Recebidos Recebidos 3.091 1977 7.072 3.305 1978 8.146 3.956 1979 8.277 4.903 1980 9.555 4.710 1981 12.494 5.015 1982 13.648 6.556 1983 14.668 6.597 1984 16.386 7.114 1985 18.206 6.470 1986 22.514 6.504 1987 20.430 6.751 1988 21.328 7.705 1989 14.721 8.126 1990 18.564 8.960 1991 18.438 8.456 1992 27.447 7.378 1993 24.377 7.614 1994 24.295 8.612 1995 27.743 8.023 1996 28.134 6.367 1997 36.490 5.921 1998 52.636 6.253 1999 68.369 7.093 2000 105.307 7.352 2001 110.771 8.775 2002 160.453 87.186* 6.877 2003 2004 65.710 **
Fonte: Relatórios Anuais e Secretaria de Informática do Supremo Tribunal Federal * O decréscimo verificado em 2003 decorre, certamente, das medidas tomadas no âmbito da Administração Federal e do encerramento das questões ligadas ao ciclo inflacionário. ** Processos recebidos até 24.10.2004.
79
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Sem dúvida, não há uma causa única capaz de explicar essa explosão numérica. É verdade que a massificação das demandas nas relações homogêneas é um fator decisivo para essa crise. As discussões que se encetaram nesse período sobre planos econômicos, sistema financeiro de habitação, FGTS, índices de reajuste do INSS, podem explicar plausivelmente a multiplicação de demandas, especialmente em um modelo que trata cada controvérsia judicial instaurada como um processo singular. A falta de um mecanismo com caráter minimamente objetivo para solver essas causas de massas permite que uma avalanche de processos sobre um só tema chegue até ao STF pela via do recurso extraordinário. As defesas por parte do Tribunal para essas causas pareciam ainda tímidas. A Lei n. 8.038, de 1990, previu a possibilidade de o relator inadmitir o recurso, se a matéria já estivesse pacificada pelo Tribunal. Posteriormente, a Lei n. 9.756, de 1998, acolheu modificação para deferir ao relator, no caso de matéria pacificada, o poder de prover ou desprover o recurso extraordinário por decisão monocrática, cabendo, nessa hipótese, a interposição de agravo, no prazo de cinco dias, para o órgão recursal competente. Certamente, essa última modificação foi decisiva para a superação da crise numérica que assoberba as Cortes judiciais, porque ela permite que o Tribunal, por seus vários órgãos, responda à excepcional demanda de serviços. Todavia, essa fórmula legislativa pode ensejar a ilusão de que os Tribunais Superiores podem continuar a ser Cortes de Justiça para cada caso concreto, o que é absolutamente impossível aqui ou alhures. De alguma forma, os diversos sistemas jurídicos acabam encontrando mecanismos de racionalização para evitar que as Cortes Superiores se ocupem de causas repetidas. Nesse sentido, mencione-se que a Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, estabeleceu as seguintes regras aplicáveis ao recurso extraordinário, interposto contra decisão das turmas recursais dos juizados especiais:
“Art.14. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões sobre questões de direito material proferidas por Turmas Recursais na interpretação da lei. § 1º O pedido fundado em divergência entre Turmas da mesma Região será julgado em reunião conjunta das Turmas em conflito, sob a presidência do Juiz Coordenador. § 2º O pedido fundado em divergência entre decisões de Turmas de diferentes Regiões ou da proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ será julgado por Turma de Uniformização, integrada por Juízes de Turmas Recursais, sob a presidência do Coordenador da Justiça Federal. § 3º A reunião de juízes domiciliados em cidades diversas será feita pela via eletrônica. § 4º Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência. § 5º No caso do § 4º, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio de dano de difícil reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes § 6º Eventuais pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça. § 7º Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias. § 8º Decorridos os prazos referidos no § 7º, o relator incluirá o pedido em pauta na Seção, com preferência sobre todos os demais feitos, ressalvados os processos com réus presos, os ‘habeas corpus’ e os mandados de segurança. § 9º Publicado o acórdão respectivo, os pedidos retidos referidos no § 6º serão apreciados pelas Turmas Recursais, que poderão exercer juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça. § 10 Os Tribunais Regionais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, no âmbito de suas competências, expedirão normas regulamentando a composição dos órgãos e os procedimentos a serem adotados para o processamento e o julgamento do pedido de uniformização e do recurso extraordinário. Art. 15. O recurso extraordinário, para os efeitos desta lei, será processado e julgado segundo o estabelecido nos §§ 4º a 9º do art. 14, além da observância das normas do Regimento.”
Embora referentes ao incidente de uniformização a ser desenvolvido perante o STJ, essas regras (art. 14, §§ 4º a 9º) aplicam-se também ao recurso extraordinário, por força do art. 15 da aludida Lei. Depreende-se desse arcabouço normativo que o recurso extraordinário das decisões dos juizados especiais federais mereceu um tratamento diferenciado por parte do legislador. A norma regulamentadora admite, expressamente, o encaminhamento de alguns recursos ao Supremo Tribunal e a retenção dos recursos idênticos nas Turmas recursais (art. 14, § 6º). Tendo em vista a possibilidade de reprodução de demandas idênticas, autoriza-se o relator a conceder liminar para suspender, de ofício ou a requerimento do interessado, a tramitação dos processos que versem sobre idêntica controvérsia constitucional (art. 14, § 5º). Trata-se de disposição que se assemelha ao estabelecido no art. 21 da Lei n. 9.868/99, que prevê a cautelar na ação declaratória de constitucionalidade, e no art. 5º, da Lei n. 9.882/99, que autoriza a cautelar em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental.162 Observe-se, ademais, que, afastando-se de uma perspectiva estritamente subjetiva do recurso extraordinário, a Lei n. 10.259/2001, no art. 14, § 7º, autorizou o relator a pedir informações adicionais, se assim entender necessário, ao Presidente da Turma recursal ou ao Coordenador da Turma de Uniformização, podendo também ouvir o Ministério Público no prazo de cinco dias. Na 162
Na sessão de 06.10.2004, o Plenário do STF aplicou pela primeira vez esse instituto, ao referendar a liminar concedida pela Min. Ellen Grace, que conferiu efeito suspensivo ao RE nº 418.918 até o seu julgamento final e determinou a suspensão do processo na origem, até o advento do pronunciamnto do STF sobre a matéria, de todos os processos em tramitação perante os Juizados Especiais e Turmas Recursais onde estivesse em discussão a desconsideração, como ato jurídico perfeito, de acordos comprovamente firmados, decorrentes do termo de adesão previsto na Lei Complementar nº 101/2001. (Cf. AC 272, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 02.08.2004).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes mesma linha, a aludida disposição permitiu que eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, se manifestem no prazo de 30 dias (art. 14 § 7º, 2a. parte) . Trata-se de um amplo reconhecimento da figura do amicus curiae, que, como se sabe, já foi prevista na Lei n. 9.868/ 99 (arts. 7º e 18, referentes à ADIn e à ADC; § 1º do art. 482, do CPC, relativo ao incidente de inconstitucionalidade) e na Lei n. 9.882/99 (art. 6º, § 1º, a propósito da ADPF). Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segundo a qual “a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo”, dotado de uma “dupla função”, subjetiva e objetiva, “consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo”.163 Tal como assinalado,164 as mudanças ocorridas no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro alteraram radicalmente a relação que havia entre os controles concentrado e difuso. A ampliação do direito de propositura da ação direta e a criação da ação declaratória de constitucionalidade vieram reforçar o controle concentrado em detrimento do difuso. Não obstante, subsistiu um espaço residual expressivo para o controle difuso relativo às matérias não suscetíveis de exame no controle concentrado (interpretação direta de cláusulas constitucionais pelos juízes e tribunais, direito pré-constitucional, controvérsia constitucional sobre normas revogadas, controle de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal). É exatamente esse espaço, imune à aplicação do sistema direto de controle de constitucionalidade, que tem sido responsável pela repetição de processos, pela demora na definição das decisões sobre importantes controvérsias constitucionais e pelo fenômeno social e jurídico da chamada “guerra de liminares”. Sobre a ADPF - Foi em resposta a esse quadro de incompletude que surgiu a idéia de desenvolvimento do chamado “incidente de inconstitucionalidade”. Também foi nesse contexto que, juntamente com o professor Celso Bastos, passamos a nos indagar se a chamada “argüição de descumprimento de preceito fundamental”, prevista no art. 102, § 1o, da Constituição, não teria o escopo de colmatar importantes lacunas identificadas no quadro de competências do Supremo Tribunal Federal.
O Professor Celso Bastos elaborou o primeiro esboço do anteprojeto que haveria de regular a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Tomando por base o texto inaugural, cuidamos nós de elaborar uma segunda versão do texto, introduzindo-se o incidente de inconstitucionalidade. Essa proposta traduziu-se num amálgama consciente das concepções constantes do Projeto Celso Bastos, do Projeto da Comissão Caio Tácito165 e o do incidente de inconstitucionalidade, contemplado em várias propostas de Emenda Constitucional sobre o Judiciário166. 163
Häberle. O Recurso de Amparo no Sistema Germânico de Justiça Constituciona, cit., p.111. Cf. item 1.2.8., supra, sobre “O controle de constitucionalidade na Constituição de 1988”. 165 Projeto de Lei no 2.960, de 1997 (PLC no 10, no Senado Federal) sobre ADIN e ADC, convertido na o Lei n 9.868, de 10 de novembro de 1999. 166 Substitutivo do Deputado Aloysio Nunes Ferreira à PEC no 96-A/92.: “Art. 103......................................................................... § 5o. O Supremo Tribunal Federal, a pedido das pessoas e entidades mencionadas no art. 103, de qualquer tribunal, de Procurador-Geral de Justiça, de Procurador-Geral ou Advogado-Geral do Estado, quando for relevante o fundamento de controvérsia judicial sobre a constitucionalidade de lei, ato normativo federal ou de outra questão constitucional, federal, estadual ou municipal, poderá, acolhendo incidente de 164
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Afigurava-se recomendável que o tema fosse submetido a uma Comissão de especialistas. A sugestão foi elevada à consideração do Ministro Iris Resende, da Justiça, que, em 4 de julho de 1997, editou a Portaria no 572, publicada no D.O.U de 7 de julho de 1997, instituindo comissão destinada a elaborar estudos e anteprojeto de lei que disciplinasse a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Foram designados, para compor a comissão, o Prof. Celso Ribeiro Bastos (Presidente), o Prof. Arnoldo Wald, o Prof. Ives Gandra Martins, o Prof. Oscar Dias Corrêa e o autor deste estudo. Após intensos debates realizados em São Paulo, a comissão chegou ao texto final do anteprojeto, que foi encaminhado pelo Prof. Celso Bastos, acompanhado de relatório, ao Ministro da Justiça, em 20 de novembro de 1997. A proposta de anteprojeto de lei cuidou dos principais aspectos do processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos e para os efeitos do disposto no § 1o do art. 102 da Constituição Federal. Estabeleceram-se o rito perante o STF, o elenco dos entes com legitimidade ativa, os pressupostos para suscitar o incidente e os efeitos da decisão proferida e sua irrecorribilidade. Tendo em vista que o disciplinamento do instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental afetava as atribuições do STF, resolveu-se, ainda, colher a opinião daquela Corte (Aviso/MJ no 624, de 4.5.1998). Em 7 de maio de 1998, Celso de Mello informou ter encaminhado cópia do texto do anteprojeto para todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal (Ofício no 076/98). Em 30 de junho de 1998, o trabalho realizado pela comissão Celso Bastos foi divulgado em artigo publicado na Revista Consulex no 18, ano II, vol. I, p. 18/21, sob título “Preceito fundamental: argüição de descumprimento”. É necessário observar, todavia, que, desde março de 1997, tramitava no Congresso Nacional o Projeto de Lei no 2.872, de autoria da ilustre deputada Sandra Starling, objetivando, também, disciplinar o instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, sob o nomen juris de “reclamação”. A reclamação restringia-se aos casos em que a contrariedade ao texto da Lei Maior fosse resultante de interpretação ou de aplicação dos Regimentos Internos das Casas do Congresso Nacional, ou do Regimento Comum, no processo legislativo de elaboração das normas previstas no art. 59 da Constituição Federal. Aludida reclamação haveria de ser formulada ao Supremo Tribunal Federal por um décimo dos Deputados ou dos Senadores, devendo observar as regras e os procedimentos instituídos pela Lei no 8.038, de 28 de maio de 1990. Em 4 de maio de 1998, o projeto de lei da deputada Sandra Starling recebeu parecer favorável do relator, o ilustre deputado Prisco Viana, pela aprovação do projeto na forma de substitutivo de sua autoria. Como então se verificou, o substitutivo Prisco Viana ofereceu disciplina que muito se aproximava daquela contida no Anteprojeto de Lei da Comissão Celso Bastos. Aludido substitutivo, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados, foi referendado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, tendo sido submetido ao Presidente da República, que o sancionou167, com veto ao inciso II do parágrafo único do art. 1o, ao inciso II do art. 2o, ao § 2o do art. 2o, ao § 4o do art. 5o, aos §§ 1o e 2o do art. 8o, e ao art. 9o. Incidente de inconstitucionalidade e argüição de descumprimento - Na Revisão Constitucional de 1994, afigurou-se acertado introduzir-se o chamado “incidente de inconstitucionalidade”, que permitiria fosse apreciada diretamente pelo Supremo Tribunal Federal controvérsia sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive os atos anteriores à Constituição, a pedido do Procurador-Geral da República, do inconstitucionalidade, determinar a suspensão, salvo para medidas urgentes, de processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão exclusivamente sobre matéria constitucional suscitada, ouvido o Procurador-Geral da República”. 167 Lei no 9.882, de 3 de dezembro de 1999.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Advogado-Geral da União, do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral do Estado, sempre que houvesse perigo de lesão à segurança jurídica, à ordem ou às finanças públicas. A Suprema Corte poderia, acolhendo incidente de inconstitucionalidade, determinar a suspensão de processo em curso perante qualquer juízo ou tribunal para proferir decisão exclusivamente sobre a questão constitucional suscitada168. Referido instituto destinava-se a completar o complexo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, permitindo que o Supremo Tribunal Federal pudesse dirimir, desde logo, controvérsia que, do contrário, daria ensejo certamente a um sem-número de demandas, com prejuízos para as partes e para a própria segurança jurídica. No substitutivo apresentado pelo Deputado Jairo Carneiro ao Projeto de Emenda Constitucional no 96/92 (“Emenda do Judiciário”), propunha-se a adoção do incidente de inconstitucionalidade, nos termos seguintes: “Art.107......................................................................................................................... ...................................................................................................................................................... § 5o Suscitada, em determinado processo, questão relevante sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição, e concorrendo os pressupostos do art. 98, § 1o, o Supremo Tribunal Federal, a requerimento dos órgãos ou entes referidos no caput deste artigo, poderá processar o incidente e determinar a suspensão do processo, a fim de proferir decisão com efeito vinculante exclusivamente sobre a matéria constitucional.” Assim, mediante provocação de qualificados autores do processo judicial, a Corte Suprema ficaria autorizada a suspender o processo em curso e proferir decisão exclusivamente sobre a questão constitucional. Na versão do Relatório sobre a Reforma do Judiciário, apresentada pelo Deputado Aloysio Nunes Ferreira, reiterou-se a idéia do incidente de inconstitucionalidade, tal como se pode ler no art. 103, parágrafo 5o, verbis: "Art.103.............................................................................................................................. ...................................................................................................................................................... Parágrafo 5o. O Supremo Tribunal Federal, a pedido das pessoas e entidades mencionadas no art. 103, de qualquer tribunal, de Procurador-Geral de Justiça, de Procurador-Geral ou Advogado-Geral do Estado, quando for relevante o fundamento de controvérsia judicial sobre constitucionalidade de lei, de ato normativo federal ou de outra questão constitucional, federal, estadual ou municipal, poderá, acolhendo incidente de inconstitucionalidade, determinar a suspensão, salvo para medidas urgentes, de processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão exclusivamente sobre matéria constitucional suscitada, ouvido o Procurador-Geral da República”. Ressalte-se de imediato que, a despeito da aparente novidade, técnica semelhante já se adota entre nós desde 1934, com a chamada cisão funcional da competência, que permite, no julgamento da inconstitucionalidade de norma perante Tribunais, ao Plenário ou ao Órgão Especial julgar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade da norma, cabendo ao órgão fracionário decidir a espécie à vista do que restar assentado no julgamento da questão constitucional. Sem dúvida, o incidente poderia ensejar a separação da questão constitucional para o seu julgamento, não pelo Pleno do Tribunal ou por seu Órgão Especial, mas, diretamente, pelo
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Cf. Relatoria da Revisão Constitucional, 1994, tomo I, p. 317.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Supremo Tribunal Federal. Ao invés de cisão funcional no plano horizontal, tal como prevista no art. 97 da Constituição, ter-se-ia uma cisão funcional no plano vertical. Daí, o inevitável símile com a técnica consagrada nos modelos de controle concentrado de normas, que determina seja a questão submetida diretamente à Corte Constitucional toda vez que a norma for relevante para o julgamento do caso concreto e o juiz ou tribunal considerá-la inconstitucional (Cf., v.g., Constituição austríaca, art. 140, (1); Lei Fundamental de Bonn, art. 100, I, e Lei Orgânica da Corte Constitucional, § 13, no 11, e § 80 s.). Todavia, as diferenças eram evidentes. Ao contrário do que ocorre nos modelos concentrados de controle de constitucionalidade, nos quais a Corte Constitucional detém o monopólio da decisão sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei, o incidente de inconstitucionalidade não alteraria, em seus fundamentos, o sistema difuso de controle de constitucionalidade, introduzido entre nós pela Constituição de 1891. Juízes e tribunais continuariam a decidir também a questão constitucional, tal como faziam anteriormente, cumprindo ao Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição, a uniformização da interpretação do Texto Magno, mediante o julgamento de recursos extraordinários contra decisões judiciais de única ou última instância. A proposta apresentada pelo Deputado Aloysio Nunes Ferreira continha uma novidade específica em relação às propostas anteriores, pois permitia que o próprio Tribunal eventualmente encarregado de julgar a questão constitucional, provocasse o pronunciamento uniformizador do Supremo Tribunal Federal. Nesse caso, ao invés de decidir a questão constitucional, na forma do art. 97, a Corte a quo poderia provocar um pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. Introduzir-se-ia, assim, modificação significativa no chamado “modelo incidental” de controle de constitucionalidade. Ao lado da possibilidade de declarar a inconstitucionalidade da lei, na forma do art. 97, poderia o Tribunal submeter a questão, diretamente, ao Supremo Tribunal Federal. É fácil ver, pois, aqui, uma aproximação maior entre o incidente de inconstitucionalidade e o chamado “processo de controle concreto” do sistema concentrado europeu. Observe-se que, ao contrário do que ocorre no sistema europeu, que confere o monopólio de censura ao Tribunal Constitucional – e, portanto, obriga o juiz ou o tribunal a encaminhar questão constitucional à Corte especializada –, o modelo proposto no Relatório Aloysio Nunes limitava-se a facultar a submissão da controvérsia constitucional ao Supremo Tribunal Federal. O modelo de incidente de inconstitucionalidade proposto oferecia, ainda, solução adequada para a difícil questão do controle de constitucionalidade da lei municipal em face da Constituição Federal. Os embaraços que se colocam à utilização da ação direta de inconstitucionalidade contra a lei municipal perante o Supremo Tribunal Federal, até mesmo pela impossibilidade de se apreciar o grande número de atos normativos comunais, poderiam ser afastados com a introdução desse instituto, que permite ao Supremo Tribunal Federal conhecer das questões constitucionais mais relevantes provocadas por atos normativos municipais. A eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nesses processos haveriam de fornecer a diretriz segura para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico, editados pelas diversas entidades comunais. Essa solução é superior, sem dúvida, a uma outra alternativa oferecida, que consistiria no reconhecimento da competência dos Tribunais de Justiça para apreciar, em ação direta de inconstitucionalidade, a legitimidade de leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal. Além de ensejar múltiplas e variadas interpretações, essa solução acabaria por agravar a crise do Supremo Tribunal Federal, com a multiplicação de recursos extraordinários interpostos contra decisões proferidas pelas diferentes Cortes estaduais. Outra virtude aparente do instituto
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes residiria na possibilidade de sua utilização para solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova Constituição. Aprovado o referido instituto, passaria o ordenamento jurídico a dispor também de um instrumento ágil e célere para dirimir, de forma definitiva e com eficácia geral, as controvérsias relacionadas com o direito anterior à Constituição que, por ora, somente podem ser veiculadas mediante a utilização do recurso extraordinário. Por último, convém ressaltar a importância da inovação contida no aludido instituto, que permite a instauração do incidente não apenas em relação a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, mas também em relação à interpretação constitucional. Embora tenha sido mantido no Projeto de Reforma do Judiciário (Substitutivo Zulaiê Cobra), o texto relativo ao incidente foi derrubado pelo Plenário da Câmara dos Deputados (PEC no 96/92). Um exame acurado da argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal como regulada na Lei no 9.882, de 1999, há de demonstrar que, afora os problemas decorrentes da limitação dos parâmetros de controle, o texto normativo guarda estrita vinculação com as propostas de desenvolvimento do incidente de inconstitucionalidade. A estrutura de legitimação, a exigência de configuração de controvérsia judicial ou jurídica para a instauração do processo, a possibilidade de sua utilização em relação ao direito municipal e ao direito pré-constitucional e o efeito vinculante das decisões, tudo reforça a semelhança entre os institutos. É certo, por outro lado, que, diferentemente do incidente de inconstitucionalidade, a argüição de descumprimento tem como parâmetro de controle os preceitos fundamentais identificados ou identificáveis na Constituição. Trata-se de elemento menos preciso do que o parâmetro de controle do incidente de inconstitucionalidade (toda a Constituição). Assim, até que o Supremo Tribunal Federal se pronuncie acerca do efetivo alcance da expressão “preceitos fundamentais”, ter-se-á de assistir ao debate entre os cultores de uma interpretação ampla e aberta e os defensores de uma leitura restritiva do texto constitucional. Assinale-se, outrossim, que, diversamente do incidente, a argüição de descumprimento, tal como formulada na Lei no 9.882, de 1999, poderá ser utilizada, em casos excepcionais, também de forma principal assumindo a feição de um recurso de amparo ou de uma Verfassungsbeschewerde autônoma no direito brasileiro. Como se pode ver, o novo instituto introduziu profundas alterações no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade de leis ou atos concretos. Em primeiro lugar, porque permite a antecipação de decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas venham a ter um desfecho definitivo após longos anos, quando muitas situações já se consolidaram ao arrepio da “interpretação autêntica” do Supremo Tribunal Federal. Em segundo lugar, porque poderá ser utilizado para de forma definitiva e com eficácia geral solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito ordinário préconstitucional em face da nova Constituição que, até o momento, somente poderia ser veiculada mediante a utilização do recurso extraordinário. Em terceiro, porque as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nesses processos, haja vista a eficácia erga omnes e o efeito vinculante, fornecerão a diretriz segura para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico, editados pelas diversas entidades municipais. Finalmente, deve-se observar que o novo instituto pode oferecer respostas adequadas para dois problemas básicos do controle de constitucionalidade no Brasil: o controle da omissão inconstitucional e a ação declaratória nos planos estadual e municipal.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Todas essas peculiaridades realçam que, no que respeita à diversidade e amplitude de utilização, a argüição de descumprimento de preceito fundamental revela-se superior à fórmula do incidente de inconstitucionalidade. Em verdade, a ADPF vem completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado no Supremo Tribunal Federal, uma vez que as questões, até então excluídas de apreciação no âmbito do controle abstrato de normas, poderiam ser objeto de exame no âmbito do novo procedimento. Inexistência de outro meio eficaz: o princípio da subsidiariedade – O desenvolvimento desse instituto dependerá da interpretação que o STF venha a dar à lei. A esse respeito, destaque-se que a Lei n. 9.882, de 1999, impõe que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4o, § 1o). À primeira vista poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no Direito Alemão (recurso constitucional) e no Direito Espanhol (recurso de amparo), acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático. De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão –, contido no § 1o do art. 4o da Lei n. 9.882, de 1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Nesse sentido, se se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. No Direito Alemão a Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional) está submetida ao dever de exaurimento das instâncias ordinárias. Todavia, a Corte Constitucional pode decidir de imediato um recurso constitucional se se mostrar que a questão é de interesse geral ou se demonstrado que o requerente poderia sofrer grave lesão caso recorresse à via ordinária (Lei Orgânica do Tribunal, § 90, II). Como se vê, a ressalva constante da parte final do § 90, II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional Alemã confere ampla discricionariedade tanto para conhecer das questões fundadas no interesse geral (allgemeine Bedeutung) quanto daquelas controvérsias baseadas no perigo iminente de grave lesão (schwerer Nachteil). Assim, tem o Tribunal Constitucional admitido o recurso constitucional, na forma antecipada, em matéria tributária, tendo em vista o reflexo direto da decisão sobre inúmeras situações homogêneas.169 A Corte considerou igualmente relevante a apreciação de controvérsia sobre publicidade oficial, tendo em vista o seu significado para todos os partícipes, ativos e passivos, do processo eleitoral.170 No que concerne ao controle de constitucionalidade de normas a posição da Corte tem-se revelado enfática: “apresenta-se, regularmente, como de interesse geral a verificação
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Cf. BVerfGE 19/268 (273); BVerfGE 62/338 (342); v. também Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, 4a ed., 1997, p. 162. 170 Cf. BVerfGE 62/230 (232); BVerfGE 62/117 (144); Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 162.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes sobre se uma norma legal relevante para uma decisão judicial é inconstitucional”.171 No Direito Espanhol explicita-se que cabe o recurso de amparo contra ato judicial desde que “se hayan agotado todos los recursos utilizables dentro de la vía recursal” (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, art. 44, I). Não obstante, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que, para os fins da exaustão das instâncias ordinárias, “não é necessária a interposição de todos os recursos possíveis, senão de todos os recursos razoavelmente úteis”.172 Nessa linha de entendimento anotou o Tribunal Constitucional Espanhol: “Al haberse manifestado en este caso la voluntad del órgano jurisdicional sobre el mismo fondo de la cuestión planteada, há de entenderse que la finalidad del requisito exigido en el art. 44, 1, ‘a’, de la LOTC se há cumplido, pues el recurso hubiera sido en cualquier caso ineficaz para reparar la supuesta vulneración del derecho constitucional conocido” (auto de 11.2.81, n. 19).173 Vê-se, assim, que também no Direito Espanhol tem-se atenuado o significado literal do princípio da subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias ordinárias, até porque em muitos casos o prosseguimento nas vias ordinárias não teria efeitos úteis para afastar a lesão a direitos fundamentais. Observe-se, ainda, que a legitimação outorgada ao Ministério Público e ao Defensor do Povo para manejar o recurso de amparo reforça, no sistema espanhol, o caráter objetivo desse processo. Tendo em vista o Direito Alemão, Schlaich transcreve observação de antigo Ministro da Justiça da Prússia segundo a qual “o recurso de nulidade era proposto pelas partes, porém com objetivo de evitar o surgimento ou a aplicação de princípios jurídicos incorretos”.174 Em relação ao recurso constitucional moderno, movido contra decisões judiciais, anota Schlaich: “essa deve ser também a tarefa principal da Corte Constitucional com referência aos direitos fundamentais, tendo em vista os numerosos e relevantes recursos constitucionais propostos contra decisões judiciais: contribuir para que outros tribunais logrem uma realização ótima dos direitos fundamentais”.175 Em verdade, o princípio da subsidiariedade, ou do exaurimento das instâncias, atua também nos sistemas que conferem ao indivíduo afetado o direito de impugnar a decisão judicial, como um pressuposto de admissibilidade de índole objetiva, destinado, fundamentalmente, a impedir a banalização da atividade de jurisdição constitucional.176 No caso brasileiro o pleito a ser formulado pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará – pelo menos de forma direta – sobre a proteção judicial efetiva de posições específicas por eles defendidas. A exceção mais expressiva reside talvez na possibilidade de o Procurador-Geral da República, como previsto expressamente no texto legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a argüição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista a proteção de situação específica. Ainda assim o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados, muito provavelmente, ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo, e não à proteção judicial efetiva de uma situação singular. Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de 171
Cf. BVerfGE 91/93 (106). Cf. José Almagro, Justicia Constitucional, Comentarios a la Ley Orgánica del Tribunal Constitucional, 2a ed., Valência, 1989, p. 324. 173 Cf. Almagro, Justicia Constitucional, cit., p. 325. Anote-se que, na espécie, os recorrentes haviam interposto o recurso fora do prazo. 174 Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht,cit., p. 184. 175 Idem, ibidem. 176 Cf., a propósito, Rüdiger Zuck, Das Recht der Verfassungsbeschwerde, pp. 13 e ss. 172
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes inconstitucionalidade – isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata –, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. É o que ocorre, fundamentalmente, nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do não-cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento. Também é possível que se apresente argüição de descumprimento com pretensão de ver declarada a constitucionalidade de lei estadual ou municipal que tenha sua legitimidade questionada nas instâncias inferiores. Tendo em vista o objeto restrito da ação declaratória de constitucionalidade, não se vislumbra aqui meio eficaz para solver, de forma ampla, geral e imediata, eventual controvérsia instaurada. Afigura-se igualmente legítimo cogitar de utilização da argüição de descumprimento nas controvérsias relacionadas com o princípio da legalidade (lei e regulamento), uma vez que, assim como assente na jurisprudência, tal hipótese não pode ser veiculada em sede de controle direto de constitucionalidade. A própria aplicação do princípio da subsidiariedade está a indicar que a argüição de descumprimento há de ser aceita nos casos que envolvam a aplicação direta da Constituição – alegação de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial ou controvérsia sobre interpretação adotada pelo Judiciário que não envolva a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional. Da mesma forma, controvérsias concretas fundadas na eventual inconstitucionalidade de lei ou ato normativo podem dar ensejo a uma pletora de demandas, insolúveis no âmbito dos processos objetivos. Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Até porque, tal como assinalado, o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva. Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigura-se integralmente aplicável a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver a controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de uma pletora de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias. A propósito, assinalou o Min. Sepúlveda Pertence, na ADC n. 1,177 que a convivência entre o sistema difuso e o sistema concentrado “não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos a que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme; ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito”. A possibilidade de incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos órgãos pode configurar uma ameaça a preceito fundamental (pelo menos, ao da segurança jurídica), o que também está a recomendar uma leitura compreensiva da exigência aposta à lei da argüição, de modo a admitir a propositura da ação especial toda vez que 177
ADC n. 1/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 1.12.93, DJU 16.6.95.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes uma definição imediata da controvérsia mostrar-se necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias ou incongruentes, que comprometam gravemente o princípio da segurança jurídica e a própria idéia de prestação judicial efetiva. Ademais, a ausência de definição da controvérsia – ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais – poderá ser a concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula que tem missão de guarda da Constituição a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituir-se, por si só, em uma ameaça ao princípio constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em uma autêntica lesão a preceito fundamental. Assim, tendo em vista o perfil objetivo da argüição de descumprimento, com legitimação diversa, dificilmente poder-se-á vislumbrar uma autêntica relação de subsidiariedade entre o novel instituto e as formas ordinárias ou convencionais de controle de constitucionalidade do sistema difuso, expressas, fundamentalmente, no uso do recurso extraordinário. Como se vê, ainda que aparentemente pudesse ser o recurso extraordinário o meio eficaz de superar eventual lesão a preceito fundamental nessas situações, na prática, especialmente nos processos de massa, a utilização desse instituto do sistema difuso de controle de constitucionalidade não se revela plenamente eficaz, em razão do limitado efeito do julgado nele proferido (decisão com efeito entre as partes). Assim sendo, é possível concluir que a simples existência de ações ou de outros recursos processuais – vias processuais ordinárias – não poderá servir de óbice à formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicitado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, as mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia. Essa leitura compreensiva da cláusula da subsidiariedade contida no art. 4o, § 1o, da Lei n. 9.882, de 1999, parece solver, com superioridade, a controvérsia em torno da aplicação do princípio da exaustão das instâncias. É fácil ver também que a fórmula da relevância do interesse público para justificar a admissão da argüição de descumprimento (explícita no modelo alemão) está implícita no sistema criado pelo legislador brasileiro, tendo em vista especialmente o caráter marcadamente objetivo que se conferiu ao instituto. Dessa forma, o Tribunal poderá conhecer da argüição de descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica restar seriamente ameaçado, especialmente em razão de conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional. Na ADPF nº 33178, da qual fui relator, o STF, pelo menos em sede de cautelar, aceitou a orientação ora proposta em relação ao direito estadual pré-constitucional, contestado em face da norma constitucional superveniente.
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ADPF nº 33, do Governo do Estado do Pará, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJ de06.11.2003.
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SÉTIMA PARTEx
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
1. Introdução. 2. Legitimidade para argüir o descumprimento de preceito fundamental. 3. Objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental. 4. Parâmetro de controle. 5. Procedimento. 6. Medida cautelar. 7. As decisões do Supremo Tribunal Federal na argüição de descumprimento.
1. Introdução Origens da lei sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental – As mudanças ocorridas no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro a partir de 1988 alteraram radicalmente a relação que havia entre os controles concentrado e difuso. A ampliação do direito de propositura da ação direta e a criação da ação declaratória de constitucionalidade vieram reforçar o controle concentrado em detrimento do difuso. Não obstante, subsistiu um espaço residual expressivo para o controle difuso relativo às matérias não suscetíveis de exame no controle concentrado (interpretação direta de cláusulas constitucionais pelos juízes e tribunais, direito pré-constitucional, controvérsia constitucional sobre normas revogadas, controle de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal). É exatamente esse espaço, imune à aplicação do sistema direto de controle de constitucionalidade, que tem sido responsável pela repetição de processos, pela demora na definição das decisões sobre importantes controvérsias constitucionais e pelo fenômeno x
Publicado em: Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança. 28a. edição em 2005. Sétima Parte, p.451527
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social e jurídico da chamada “guerra de liminares”. Foi em resposta a esse quadro de incompletude que surgiu a idéia de desenvolvimento do chamado “incidente de inconstitucionalidade” (cf., infra, “Incidente de inconstitucionalidade e argüição de descumprimento”). Também foi nesse contexto que, juntamente com o Professor Celso Bastos, passamos a nos indagar se a chamada “argüição de descumprimento de preceito fundamental”, prevista no art. 102, § 1o, da CF, não teria o escopo de colmatar importantes lacunas identificadas no quadro de competências do STF. O Professor Celso Bastos elaborou o primeiro esboço do anteprojeto que haveria de regular a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Tomando por base o texto inaugural, cuidamos nós de elaborar uma segunda versão do texto, introduzindo-se o incidente de inconstitucionalidade. Essa proposta traduziu-se num amálgama consciente das concepções constantes do Projeto Celso Bastos, do Projeto da Comissão Caio Tácito1 e o do incidente de inconstitucionalidade, contemplado em várias propostas de emenda constitucional sobre o Judiciário2 (cf., infra, “Incidente de inconstitucionalidade e argüição de descumprimento”). Afigurava-se recomendável que o tema fosse submetido a uma Comissão de especialistas. A sugestão foi elevada à consideração do Ministro Íris Resende, da Justiça, que, em 4.7.97, editou a Portaria n. 572, publicada no DOU de 7.7.97, instituindo Comissão destinada a elaborar estudos e anteprojeto de lei que disciplinasse a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Foram designados para compor a Comissão os Professores Celso Ribeiro Bastos (Presidente), Arnoldo Wald, Ives Gandra Martins, Oscar Dias Corrêa e o autor deste estudo. Após intensos debates realizados em São Paulo, a Comissão chegou ao texto final do anteprojeto, que foi encaminhado pelo Professor Celso Bastos, acompanhado de relatório, ao Ministro da Justiça, em 20.11.97. A proposta de anteprojeto de lei cuidou dos principais aspectos do processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos e para os efeitos do disposto no § 1o do art. 102 da CF. Estabeleceram-se o rito perante o STF, o elenco dos entes com legitimidade ativa, os pressupostos para suscitar o incidente e os efeitos da decisão proferida e sua irrecorribilidade. Tendo em vista que o disciplinamento do instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental afetava as atribuições do STF, resolveu-se, ainda, colher a opinião daquela Corte (Aviso/MJ n. 624, de 4.5.98). Em 7.5.98 o Min. Celso de Mello informou ter encaminhado cópia do texto do anteprojeto para todos os Ministros do STF (Ofício n. 076/98). Em 30.6.98 o trabalho realizado pela Comissão Celso Bastos foi divulgado em artigo publicado na revista Consulex 18/1821, ano II, v. I, sob título “Preceito fundamental: argüição de descumprimento”. É necessário observar, todavia, que desde março de 1997 tramitava no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 2.872, de autoria da ilustre Deputada Sandra Starling, objetivando, também, disciplinar o instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, sob o nomen juris de “reclamação”. A reclamação restringia-se aos casos em que a contrariedade ao texto da Lei Maior fosse resultante de interpretação ou de aplicação dos Regimentos Internos das Casas do Congresso
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Projeto de Lei n. 2.960, de 1997 (PLC n. 10, no Senado Federal) sobre ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade, convertido na Lei n. 9.868, de 10.11.99. 2 Substitutivo do Deputado Aloysio Nunes Ferreira à PEC n. 96-A/92: “Art. 103. (...). “(...). “§ 5o. O Supremo Tribunal Federal, a pedido das pessoas e entidades mencionadas no art. 103, de qualquer tribunal, de Procurador-Geral de Justiça, de Procurador-Geral ou Advogado-Geral do Estado, quando for relevante o fundamento de controvérsia judicial sobre a constitucionalidade de lei, ato normativo federal ou de outra questão constitucional, federal, estadual ou municipal, poderá, acolhendo incidente de inconstitucionalidade, determinar a suspensão, salvo para medidas urgentes, de processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão exclusivamente sobre matéria constitucional suscitada, ouvido o Procurador-Geral da República.”
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Nacional, ou do Regimento Comum, no processo legislativo de elaboração das normas previstas no art. 59 da CF. Aludida reclamação haveria de ser formulada ao STF por um décimo dos deputados ou dos senadores, devendo observar as regras e os procedimentos instituídos pela Lei n. 8.038, de 28.5.90. Em 4.5.98 o projeto de lei da Deputada Sandra Starling recebeu parecer favorável do Relator, o ilustre Deputado Prisco Viana, pela aprovação do projeto na forma de substitutivo de sua autoria. Como então se verificou, o substitutivo Prisco Viana ofereceu disciplina que muito se aproximava daquela contida no anteprojeto de lei da Comissão Celso Bastos. Aludido substitutivo, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados, foi referendado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, tendo sido submetido ao Presidente da República, que o sancionou,3 com veto ao inciso II do parágrafo único do art. 1o, ao inciso II do art. 2o, ao § 2o do art. 2o, ao § 4o do art. 5o, aos §§ 1o e 2o do art. 8o e ao art. 9o. QUADRO COMPARATIVO
Anteprojeto de Lei da Comissão Celso Bastos, de maio de 1997. Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do art. 102 da Constituição. Art. 1º A argüição prevista no art. 102, § 1º, da Constituição será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito constitucional fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.
Substitutivo do Deputado Prisco Viana ao Projeto de Lei nº 2.872, de 1997 (entre parênteses as expressões inseridas pela CCJR, da Câmara dos Deputados, na redação final). Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1º do art. 102 da Constituição Federal. Art. 1º A argüição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:
I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; II – em face de interpretação ou aplicação dos regimentos internos das respectivas Casas, ou regimento comum do Congresso Nacional, no processo legislativo de elaboração das normas previstas no art. 59 da Constituição (Federal). Art. 2º Podem propor argüição de Art. 2º Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental: descumprimento de preceito fundamental: I – os legitimados para a ação direta I – os legitimados para a ação direta de de inconstitucionalidade; inconstitucionalidade; II – qualquer pessoa lesada ou II – qualquer pessoa lesada ou ameaçada ameaçada em decorrência de ato do Poder Público. por ato do Poder Público. §1º A pessoa lesada ou ameaçada em §1º Na hipótese do inciso II, faculta-se ao decorrência de ato do Poder Público solicitará, interessado, mediante representação, solicitar a propositura de
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Lei n. 9.882, de 03.12.99.
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mediante representação, a propositura de argüição descumprimento de preceito fundamental Procurador-Geral da República que, examinando fundamentos jurídicos do pedido, decidirá cabimento do seu ingresso em juízo.
de ao os do
argüição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá do cabimento do seu ingresso em juízo.
§2º Contra o indeferimento do pedido, caberá representação ao Supremo Tribunal Federal, no prazo de cinco dias, que será processada e julgada na forma estabelecida no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Art. 3º A petição inicial deverá conter:
§2º Contra o indeferimento do pedido, caberá representação ao Supremo Tribunal Federal, no prazo de cinco dias, que será processada e julgada na forma estabelecida no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Art. 3º A petição inicial deverá conter:
I – a indicação do preceito fundamental que se considera violado; II – a indicação do ato questionado; III – a prova da violação do preceito fundamental; IV – o pedido, com suas especificações; V – se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado.
I – a indicação do preceito fundamental que se considera violado; II – a indicação do ato questionado; III – a prova da violação do preceito fundamental; IV – o pedido, com suas especificações; V – se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado.
Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de mandato, se for o caso, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato Parágrafo único. A petição inicial, questionado e dos documentos necessários para comprovar a acompanhada de instrumento de mandato, se for o impugnação. caso, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação. Art. 4º A petição inicial será Art. 4º A petição inicial será indeferida indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição caso de argüição de descumprimento de preceito de descumprimento de preceito fundamental, (quando) faltar fundamental, quando faltar algum dos requisitos algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou (quando) for prescritos nesta Lei ou quando for inepta. inepta. §1º Não será admitida argüição de §1º Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando descumprimento de preceito fundamental quando houver houver qualquer outro meio eficaz de sanar a qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. lesividade. §2º Da decisão de indeferimento da petição §2º Da decisão de indeferimento da inicial caberá agravo, no prazo de cinco dias. petição inicial caberá agravo, no prazo de cinco dias. Art. 5º O Supremo Tribunal Federal, Art. 5º O Supremo Tribunal Federal, por por decisão da maioria absoluta de seus membros, decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de descumprimento de preceito fundamental. preceito fundamental. §1º Em caso de extrema urgência ou §1º Em caso de extrema urgência ou perigo perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Tribunal Pleno. Pleno. §2º A liminar poderá consistir na §3º A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o determinação de que juízes e tribunais suspendam o
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andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental.
andamento de processos ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes de coisa julgada.
§2º O relator poderá ouvir os órgãos ou as §3º O relator poderá ouvir os órgãos autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o ou as autoridades responsáveis pelo ato questionado, Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da bem como o Advogado-Geral da União ou o República, no prazo comum de cinco dias. Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias. §4º Se necessário para evitar lesão à ordem constitucional ou dano irreparável ao processo de produção da norma jurídica, o Supremo Tribunal Federal poderá, na forma do caput, ordenar a suspensão do ato impugnado ou do processo legislativo a que se refira, ou ainda da promulgação ou publicação do ato legislativo dele resultante. Art. 6º Apreciado o pedido de Art. 6º Apreciado o pedido de liminar, o liminar, o relator solicitará as informações às relator solicitará as informações às autoridades responsáveis autoridades responsáveis pela prática do ato pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. questionado, no prazo de dez dias. §1º Se entender necessário, poderá o relator §1º Se entender necessário, poderá o ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a requisitar informações adicionais, designar perito ou argüição, requisitar informações adicionais, designar comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, perito ou comissão de peritos para que emita parecer ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. §2º Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por §2º Poderão ser autorizadas, a requerimento dos interessados no processo. critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo. Art. 7º Decorrido o prazo das Art. 7º Decorrido o prazo das informações, informações, o relator lançará o relatório, com cópia a o relator lançará o relatório, com cópia a todos os Ministros, e todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento. pedirá dia para julgamento. Parágrafo único. O Ministério Público, nas argüições que não houver formulado, terá vista do processo, por cinco dias, após o decurso do prazo para informações. Art. 8º A decisão sobre a argüição de Art. 8º A decisão sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será descumprimento de preceito fundamental somente será tomada se presentes na sessão pelo menos oito tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos Ministros. Ministros. §1º Efetuado o julgamento, §1º Considerar-se-á procedente ou proclamar-se-á a procedência ou a improcedência da improcedente a argüição se num ou noutro sentido se tiverem argüição de descumprimento de preceito fundamental, manifestado pelo menos dois terços dos Ministros. se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis Ministros. §2º Se não for alcançada a maioria §2º Se não for alcançada a maioria necessária ao julgamento da argüição, estando ausentes necessária ao julgamento da argüição, estando ausentes Ministros em número que possa influir no julgamento, este Ministros em número que possa influir no julgamento, será suspenso a fim de aguardar-se sessão plenária na qual se este será suspenso a fim de aguardar-se o atinja o quorum mínimo de votos. comparecimento dos Ministros ausentes, até que se
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atinja o número necessário para prolação da decisão num ou noutro sentido. Art. 9º Julgando procedente a argüição, o Tribunal cassará o ato ou decisão exorbitante e, conforme o caso, anulará os atos processuais legislativos subseqüentes, suspenderá os efeitos do ato ou da norma jurídica decorrente do processo legislativo impugnado, ou determinará medida adequada à preservação do preceito fundamental decorrente da Constituição.
Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela Art. 9º Julgada a ação, far-se-á a prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental. pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental. §1º O presidente do tribunal determinará o imediato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente. §2º Dentro do prazo de dez dias contados a partir do trânsito em julgado da decisão, sua parte dispositiva será publicada em seção especial do Diário da Justiça e do §1º Dentro do prazo de dez dias Diário Oficial da União. contados a partir do trânsito em julgado da decisão, sua parte dispositiva será publicada em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União. §3º A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder §2º A decisão terá eficácia contra Público. todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público. Art. 10. Ao declarar a Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no de lei ou ato normativo, no processo de argüição de processo de argüição de descumprimento de preceito descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista fundamental, e tendo em vista razões de segurança razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser de seu trânsito em julgado ou de outro momento que fixado. venha a ser fixado. Art. 11. A decisão que julgar Art. 12. A decisão que julgar procedente ou procedente ou improcedente o pedido em argüição de improcedente o pedido em argüição de descumprimento de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto não podendo ser objeto de ação rescisória. de ação rescisória. Art. 12. Caberá reclamação contra o Art. 13. Caberá reclamação contra o descumprimento da decisão proferida pelo Supremo descumprimento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Tribunal Federal, na forma do seu Regimento Interno. Federal, na forma do seu Regimento Interno. Art. 13. Esta lei entra em vigor na Art. 14. Esta lei entra em vigor na data de data de sua publicação. sua publicação.
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A controvérsia sobre a constitucionalidade da Lei 9.882/99 - A OAB propôs a ADI nº 2.231 contra a íntegra da Lei 9.882/99, distribuída ao Ministro Néri da Silveira, , na qual se alegava, em síntese, a inconstitucionalidade do parágrafo único, inciso I, do art. 1º, o § 3º do art. 5º, o art. 10, caput e § 3º e o art. 11, todos da mesma Lei. O Ministro Néri da Silveira, na sessão do dia 05.12.2001, acolheu em parte a argüição, para suspender, com eficácia ex nunc e até o julgamento final da ação a vigência do § 3º do art. 5º da referida lei, por estar relacionado com a argüição incidental em processos em concreto, e conferir interpretação conforme a Constituição ao inciso I do § único do art. 1º, excluindo de sua aplicação controvérsia constitucional concretamente já deduzida em processo judicial em curso. Nas palavras do Ministro Néri da Silveira: “[...] a Lei nº 9.882/99, com a suspensão do art. 5º, § 3º, e com a interpretação conforme do inciso I, do parágrafo único, do art. 1º, não se esvazia, à evidência, permanecendo com as condições para regular, de forma completa, o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental prevista no art. 102, § 1º, da Constituição”4. O julgamento foi interrompido em razão de pedido de vista do Ministro Sepúlveda Pertence. Embora ainda penda de decisão a ADIn nº 2.231, o julgado do STF sobre a admissibilidade da ADPF 545 parece ter superado o debate sobre a constitucionalidade da Lei nº 9.882/99. De qualquer sorte, convém assinalar, tal como apontado em razões apresentadas pela AGU, que a ADPF amplia o controle de constitucionalidade, dando a necessária ênfase à defesa dos preceitos fundamentais, especialmente nos casos ainda não amparados pelos outros meios de controle concentrado de constitucionalidade. Além de permitir a antecipação das decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, a ADPF poderá ser utilizada para solver controvérsia sobre a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da Constituição que, anteriormente, somente poderia ser veiculada mediante a utilização do recurso extraordinário. Ademais, as decisões proferidas pelo STF nesses processos, haja vista a eficácia erga omnes e o efeito vinculante, fornecerão a diretriz segura para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico, editados pelas diversas entidades municipais.
Incidente de inconstitucionalidade e argüição de descumprimento – Na Revisão Constitucional de 1994 afigurou-se acertado introduzir-se o chamado “incidente de inconstitucionalidade”, que permitiria fosse apreciada diretamente pelo STF controvérsia sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive os atos anteriores à Constituição, a pedido do Procurador-Geral da República, do Advogado-Geral da União, do Procurador-Geral de Justiça ou do Procurador-Geral do Estado, sempre que houvesse perigo de lesão à segurança jurídica, à ordem ou às finanças públicas. A Suprema Corte poderia, acolhendo incidente de inconstitucionalidade, determinar a suspensão de processo em curso perante qualquer juízo ou tribunal para proferir decisão exclusivamente sobre a questão constitucional suscitada.6 Referido instituto destinava-se a completar o complexo sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, permitindo que o STF pudesse dirimir, desde logo, controvérsia que, do contrário, daria ensejo certamente a um sem-número de demandas, com prejuízos para as partes e para a própria segurança jurídica. A proposta não foi, entretanto, recepcionada. No substitutivo apresentado pelo Deputado Jairo Carneiro ao Projeto de Emenda Constitucional 4
Voto do Ministro Néri da Silveira na ADIn nº 2.231, da qual era relator. DJ de 17.12.2001. Julgamento pendente.
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ADPF nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio. Em sessão de 27.04.2005, suscitada questão de ordem, o Tribunal, por maioria, admitiu o cabimento da ADPF. A apreciação do mérito da ADPF, entretanto, ainda está pendente. 6 Cf. Relatoria da Revisão Constitucional, 1994, Pareceres Produzidos (Histórico), t. I, p. 317.
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n. 96/92 (“Emenda do Judiciário”) propunha-se a adoção do incidente de inconstitucionalidade, nos termos seguintes: “Art. 107. (...). “(...). “§ 5o. Suscitada, em determinado processo, questão relevante sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição, e concorrendo os pressupostos do art. 98, § 1o, o Supremo Tribunal Federal, a requerimento dos órgãos ou entes referidos no caput deste artigo, poderá processar o incidente e determinar a suspensão do processo, a fim de proferir decisão com efeito vinculante exclusivamente sobre a matéria constitucional.” Assim, mediante provocação de qualificados autores do processo judicial, a Corte Suprema ficaria autorizada a suspender o processo em curso e proferir decisão exclusivamente sobre a questão constitucional. Na versão do Relatório sobre a Reforma do Judiciário apresentada pelo Deputado Aloysio Nunes Ferreira reiterou-se a idéia do incidente de inconstitucionalidade, tal como se pode ler na proposta de redação do art. 103, § 5o, verbis: “Art.103. (...). “(...). “§ 5o. O Supremo Tribunal Federal, a pedido das pessoas e entidades mencionadas no art. 103, de qualquer tribunal, de Procurador-Geral de Justiça, de Procurador-Geral ou Advogado-Geral do Estado, quando for relevante o fundamento de controvérsia judicial sobre constitucionalidade de lei, de ato normativo federal ou de outra questão constitucional, federal, estadual ou municipal, poderá, acolhendo incidente de inconstitucionalidade, determinar a suspensão, salvo para medidas urgentes, de processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal, para proferir decisão exclusivamente sobre matéria constitucional suscitada, ouvido o Procurador-Geral da República.” Ressalte-se de imediato que, a despeito da aparente novidade, técnica semelhante já se adota entre nós desde 1934, com a chamada “cisão funcional” da competência, que permite, no julgamento da inconstitucionalidade de norma perante tribunais, ao Plenário ou ao Órgão Especial julgar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade da norma, cabendo ao órgão fracionário decidir a espécie à vista do que restar assentado no julgamento da questão constitucional. Sem dúvida, o incidente poderia ensejar a separação da questão constitucional para o seu julgamento não pelo Pleno do tribunal ou por seu Órgão Especial, mas, diretamente, pelo STF. Ao invés de cisão funcional no plano horizontal, tal como prevista no art. 97 da CF, ter-se-ia uma cisão funcional no plano vertical. Daí o inevitável símile com a técnica consagrada nos modelos de controle concentrado de normas, que determina seja a questão submetida diretamente à Corte Constitucional toda vez que a norma for relevante para o julgamento do caso concreto e o juiz ou tribunal considerá-la inconstitucional (cf., v.g., Constituição Austríaca, art. 140, (1); Lei Fundamental de Bonn, art. 100, I, e Lei Orgânica da Corte Constitucional, §§ 13, n. 11, e 80 e ss.). Todavia, as diferenças eram evidentes. Ao contrário do que ocorre nos modelos concentrados de controle de constitucionalidade, nos quais a Corte Constitucional detém o monopólio da decisão sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei, o incidente de inconstitucionalidade não alteraria, em seus fundamentos, o sistema difuso de controle de constitucionalidade, introduzido entre nós pela Constituição de 1891. Juízes e tribunais continuariam a decidir também a questão constitucional, tal como faziam anteriormente, cumprindo ao STF, enquanto guardião da Constituição, a uniformização da interpretação do Texto Magno, mediante o julgamento de recursos extraordinários contra decisões judiciais de única ou última instância. A proposta apresentada pelo Deputado Aloysio Nunes Ferreira continha uma novidade específica em relação às propostas anteriores, pois permitia que o próprio tribunal encarregado de julgar a questão constitucional provocasse o pronunciamento uniformizador do STF.
98
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Nesse caso, ao invés de decidir a questão constitucional, na forma do art. 97, a Corte a quo poderia provocar um pronunciamento definitivo do STF sobre a questão. Introduzir-se-ia, assim, modificação significativa no chamado “modelo incidental” de controle de constitucionalidade. Ao lado da possibilidade de declarar a inconstitucionalidade da lei, na forma do art. 97, poderia o tribunal submeter a questão, diretamente, ao STF. É fácil ver, pois, aqui, uma aproximação maior entre o incidente de inconstitucionalidade e o chamado “processo de controle concreto” do sistema concentrado europeu. Observe-se que, ao contrário do que ocorre no sistema europeu, que confere o monopólio de censura ao Tribunal Constitucional – e, portanto, obriga o juiz ou o tribunal a encaminhar questão constitucional à Corte especializada –, o modelo proposto no relatório Aloysio Nunes limitava-se a facultar a submissão da controvérsia constitucional ao STF. O modelo de incidente de inconstitucionalidade proposto oferecia, ainda, solução adequada para a difícil questão do controle de constitucionalidade da lei municipal em face da Constituição Federal. Os embaraços que se colocam à utilização da ação direta de inconstitucionalidade contra a lei municipal perante o STF, até mesmo pela impossibilidade de se apreciar o grande número de atos normativos comunais, poderiam ser afastados com a introdução desse instituto, que permite ao STF conhecer das questões constitucionais mais relevantes provocadas por atos normativos municipais. A eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões proferidas pelo STF nesses processos haveriam de fornecer a diretriz segura para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico editados pelas diversas entidades comunais. Essa solução é superior, sem dúvida, a uma outra alternativa oferecida, que consistiria no reconhecimento da competência dos Tribunais de Justiça para apreciar, em ação direta de inconstitucionalidade, a legitimidade de leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal. Além de ensejar múltiplas e variadas interpretações, essa solução acabaria por agravar a crise do STF, com a multiplicação de recursos extraordinários interpostos contra decisões proferidas pelas diferentes Cortes Estaduais. Outra virtude aparente do instituto residiria na possibilidade de sua utilização para solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova Constituição. Aprovado o referido instituto, passaria o ordenamento jurídico a dispor também de um instrumento ágil e célere para dirimir, de forma definitiva e com eficácia geral, as controvérsias relacionadas com o direito anterior à Constituição, que, por ora, somente podem ser veiculadas mediante a utilização do recurso extraordinário. Por último, convém ressaltar a importância da inovação contida no aludido instituto, que permite a instauração do incidente não apenas em relação a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, mas também em relação à interpretação constitucional. Embora tenha sido mantido no Projeto de Reforma do Judiciário (substitutivo Zulaiê Cobra), o texto foi derrubado pelo Plenário da Câmara dos Deputados (PEC n. 96/92). Um exame acurado da argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal como regulada na Lei n. 9.882, de 1999, há de demonstrar que, afora os problemas decorrentes da limitação do parâmetro de controle, o texto normativo guarda estrita vinculação com as propostas de desenvolvimento do incidente de inconstitucionalidade. A estrutura de legitimação, a exigência de configuração de controvérsia judicial ou jurídica para a instauração do processo, a possibilidade de sua utilização em relação ao direito municipal e ao direito pré-constitucional e o efeito vinculante das decisões, tudo reforça a semelhança entre os institutos. É certo, por outro lado, que, diferentemente do incidente de inconstitucionalidade, a argüição de descumprimento tem como parâmetro de controle os preceitos fundamentais identificados ou identificáveis na Constituição. Trata-se de elemento menos preciso do que o parâmetro de controle do incidente de inconstitucionalidade (toda a Constituição). Assim, até que o STF se pronuncie acerca do efetivo alcance da expressão “preceitos fundamentais”, ter-se-á de assistir ao debate entre os cultores de uma interpretação ampla e aberta e os defensores de uma leitura restritiva do texto constitucional. Assinale-se, outrossim, que, diversamente do incidente, a argüição de descumprimento, tal como formulada na Lei n. 9.882, de 1999, poderá ser utilizada, em casos excepcionais, também de forma principal, assumindo a feição de um recurso de amparo ou de uma Verfassungsbeschewerde autônoma
99
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
no Direito Brasileiro. Como se pode ver, o novo instituto introduziu profundas alterações no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade de leis ou atos concretos. Em primeiro lugar, porque permite a antecipação de decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas venham a ter um desfecho definitivo após longos anos, quando muitas situações já se consolidaram ao arrepio da “interpretação autêntica” do STF. Em segundo lugar, porque poderá ser utilizado para – de forma definitiva e com eficácia geral – solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova Constituição, que, até o momento, somente poderia ser veiculada mediante a utilização do recurso extraordinário. Em terceiro, porque as decisões proferidas pelo STF nesses processos, haja vista a eficácia erga omnes e o efeito vinculante, fornecerão a diretriz segura para o juízo sobre a legitimidade ou a ilegitimidade de atos de teor idêntico editados pelas diversas entidades municipais. Finalmente, deve-se observar que o novo instituto pode oferecer respostas adequadas para dois problemas básicos do controle de constitucionalidade no Brasil: o controle da omissão inconstitucional e a ação declaratória nos planos estadual e municipal (cf., infra, “Omissão legislativa e controle de constitucionalidade no processo de controle abstrato de normas e na argüição de descumprimento de preceito fundamental” e “Pedido de declaração de constitucionalidade (ação declaratória) do direito estadual e municipal e argüição de descumprimento”). Todas essas peculiaridades realçam que, no que respeita à diversidade e amplitude de utilização, a argüição de descumprimento de preceito fundamental revela-se superior à fórmula do incidente de inconstitucionalidade. Em verdade, o novo instituto vem completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado no STF, uma vez que as questões, até então excluídas de apreciação no âmbito do controle abstrato de normas, serão objeto de exame no âmbito do novo procedimento. A ADPF na jurisprudência do STF - Desde a aprovação da Lei nº 9.882/99 até dezembro de 2004 foram propostas, perante o STF, 70 ADPF´s. A primeira ADPF admitida pelo Tribunal foi a de nº 4, na qual se procurava evitar lesão a preceito fundamental e dirimir controvérsia sobre ato normativo efetivado pelo Presidente da República quando da fixação do salário mínimo por meio da MP nº 2019, de 20 de abril de 20007. Posteriormente, em 25.11.20028, por decisão monocrática, foi concedida liminar na ADPF nº 33, referendada, por unanimidade pelo plenário do STF, em 29.10.20039. Também na ADPF nº 54 foi concedida liminar em 02.08.2004, tendo o Tribunal, na sessão de 20.10.2004, negado referendo à referida liminar concedida10. Confira, abaixo, o quadro sobre o ajuizamento de ADPF´s no Supremo Tribunal Federal.
7
D.O.U., Seção 1, de 22.04.2000. DJ de 02.12.2002. 9 DJ de 06.11.2003. 10 ADPF nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio, cit. Em sessão de 27.04.2005, suscitada questão de ordem, o Tribunal, 8
por maioria, admitiu o cabimento da ADPF. A apreciação do mérito da ADPF, entretanto, ainda está pendente.
100
101
MT Governador do Estado de Mato Grosso
CE
DF
DF
03.03.2000
11.04.2000
28.04.2000
08.08.2000
02
03
04
05
RELATOR
Tribunal de Justiça do Estado do Ceará
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso Min. Sydney Sanches
Min. Sepúlveda Pertence
Prefeito do Min. Néri da Município do Rio Silveira de Janeiro
ARGÜIDO
DECISÃO
Baixa ao arquivo do Não STF em 01.11.2003 conhecimento. Acórdão publicado em 07.11.2003 Autos conclusos ao relator em 24.05.2001
ANDAMENTO
Seção Cartorária 04.08.2000 PGR com parecer pela improcedência do pedido (24.05.2001)
OBSERVAÇÕES
Baixa ao arquivo do Não STF em 19.03.2004. conhecimento. Decisão publicada no DJ de 07.06.2000 Partido Presidente da Min. Ellen Gracie Autos conclusos à Admissibilida- Conclusão do julga Democrático República relatora de mento suspensa, autos Trabalhista– PDT (20.05.2002) foram, por sucessão, à Min. Ellen Confederação Instituto Nacional Min. Nelson Baixa ao arquivo do Seguimento Julgado por Despacho. Nacional dos do Seguro Social Jobim STF (Guia 4646) negado. Inépcia da inicial. Trabalhadores em – INSS em 18.09.2000 Transporte Aquaviário e Aéreo, na Pesca e nos Portos – CONTTMAF
Governador do Estado do Ceará
Partido Comunista do Brasil – PC do B
RJ
01.02.2000
01
ARGÜENTE
ESTADO DE ORIGEM
Nº
DATA DISTRIBUI ÇÃO STF
AJUIZAMENTO DE ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADPF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
102
RS
AL
SP
06.12.2000
30.01.2001
10
11
DF
21.11.2000
08
22.11.2000
RS
25.09.2000
07
09
RJ
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF 06 23.08.2000
ESTADO DE ORIGEM
ARGÜIDO
Fabio Monteiro de Barros Filho
Governador do Estado de Alagoas
Governador do Estado do Rio Grande do Sul Min. Marco Aurelio
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Nelson Jobim
Min. Joaquim Barbosa
Min. Celso de Mello
RELATOR
Juiz Federal da Min. Sydney 12ª Vara da Seção Sanches Judiciária de São Paulo e Juiz de Direito da 8ª Vara Cível da Comarca de São Paulo
Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas
Tribunal Regional Federal da 2ª Região Governador do Assembléia Estado do Rio Legislativa do Grande do Sul Estado do Rio Grande do Sul Confederação Instituto Nacional Nacional dos do Seguro Social Trabalhadores em – INSS Transporte Aquaviário e Aéreo, na Pesca e nos Portos – CONTTMAF
Presidente da República
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Pedido de vista Ministro Marco Aurélio (23.08.2002)
Autos conclusos ao relator em 17.06.2003
Substituição do Relator – Art. 38, IV, a RISTF, em 08.07.2003 Autos conclusos ao relator em 17.09.2002 Substituição do Relator – Art. 38, IV, a RISTF, em 08.07.2003 Min. Eros Grau 01.07.2004. Autos conclusos ao relator em 04.09.2002
Processo sobrestado em 27.02.2003
ANDAMENTO
Liminar deferida e publicada no DJ em 04.09.2001 Negado seguimento em 30.01.2001. Agravo Regimental interposto em 12.02.2001 Negado
Processo sobrestado em 05.03.2002. Autos conclusos ao relator em 17.09.2002
DECISÃO
Aguardando julgamento da Medida Cautelar da ADI 2231
Aguardando julgamento da Medida Cautelar da ADI 2231
OBSERVAÇÕES
103
ESTADO DE ORIGEM
DF
SP
DF
PA
DF
AP
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
19.03.2001
28.03.2001
23.04.2001
21.08.2001
30.08.2001
20.09.2001
12
13
14
15
16
17
Presidente do Superior Tribunal de Justiça Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Presidente da República
ARGÜIDO
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aquaviário e Aéreo, na Pesca e nos Portos – CONTTMAF Governador do Presidente do Estado do Pará Tribunal de Justiça do Estado do Pará Partido Presidente da Democrático República Trabalhista – PDT e Partido Socialista Brasileiro – PSB Governado do Tribunal de Estado do Amapá Justiça do Estado
Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB Mesa da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo
ARGÜENTE
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DECISÃO
provimento DJ/DOU 29.11.2004. Baixa ao arquivo do Inicial STF (Guia 2765) liminarmente em 16.05.2001 indeferida. Baixa ao arquivo do Inicial STF (Guia 2130) liminarmente em 24.04.2001 indeferida
ANDAMENTO
Min. Celso de Mello
Min. Carlos Velloso
Min. Joaquim Barbosa
Processo sobrestado em 27.02.2003
24.09.2001- Petição Provimento avulsa requer negado em
Substituição do Relator – Art. 38, IV, a RISTF -, em 08.07.2003 Remessa à Seção Cartorária, de cópia da PG 42194, com despacho, em 31.03.2003
Min. Ellen Gracie Conclusos à relatora Suspenso o em 18.09.2002 processamento da ADPF em (despacho publicado no DJ de 29.10.2001)
Min. Ilmar Galvão
Min. Ilmar Galvão
RELATOR
Aguardando julgamento da Medida Cautelar da ADI 2231
Aguardando julgamento da Medida Cautelar da ADI 2231
OBSERVAÇÕES
104
CE
21.09.2001
DF
DF
DF
03.10.2001
09.10.2001
25.10.2001
19
20
21
18
ESTADO DE ORIGEM
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Presidência da República, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde, Departamento de Imprensa Nacional, Reitoria da Universidade Federal Fluminense e Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro
Governador do Estado do Ceará
do Amapá
ARGÜIDO
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Néri da Silveira
RELATOR
Marcos Rogério Baptista
Relator do MS nº 21592-5 do STF
Min. Nelson Jobim
Carlos Antonio de Tribunal Regional Min. Maurício Freitas Federal da 1ª Corrêa Região
Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis – COBRAPOL Gerson Carlos da Silva
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Provimento negado. Publicado DJ de 02.10.2001
20.09.2001 Agravo Regimental desprovido, decisão publicada DJ em 12.06.2002
DECISÃO
Baixa ao arquivo do Seguimento STF (Guia 7372), negado. em 20.11.2001. Decisão publicada no DJ de 22.10.2001 Baixa ao arquivo do Seguimento STF (Guia 1226), negado por falta
Baixa ao arquivo do Inicial STF (Guia 121), em liminarmente 18.01.2002. indeferida, prejudicado o pedido liminar
aplicação art.103 CPC – conexão de ações.Agravo Regimental interposto em 03.10.2001. Baixa ao arquivo do STF (Guia 2198), em 12.03.2003 Baixa definitiva dos autos (Guia 6296), em 16.08.2002
ANDAMENTO
Julgamento por despacho
OBSERVAÇÕES
105
DF
DF
PI
RJ
01.02.2002
03.04.2002
01.02.2002
25
26
27
RJ
25.10.2001
23
19.11.2001
DF
25.10.2001
22
24
ESTADO DE ORIGEM
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB Marcos Rogério
Marcos Rogério Baptista
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Marcos Rogério Baptista
Marcos Rogério Baptista
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Relatora do HC
Governador do Estado do Piauí
Relatores dos Habeas corpus nº(s) 81066-7 e 81442-5 do STF
Presidente da República e Congresso Nacional
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Relator do HC nº 8132 do STJ
ARGÜIDO
DECISÃO
da capacidade postulatória do requerente
ANDAMENTO
em 19.03.2002.
Min. Néri da
Baixa ao arquivo do Seguimento
Substituição do Relator – art.38 IV, RISTF Baixa ao arquivo do STF (Guia 2733), em 23.03.2002. Min. Carlos Baixa ao arquivo do Seguimento Velloso STF (Guia 1248), negado. em 20.03.2002. Decisão publicada DJ de 01.02.2002. Min. Sepúlveda Redistribuído ao Pertence Min. Sepúlveda Pertence (DJ de 07.03.2003). Autos conclusos ao relator em 07.03.2003. Min. Ellen Gracie Redistribuído à Seguimento Min. Ellen Gracie negado. em 06.02.2002. Decisão Baixa ao arquivo do publicada DJ de STF (Guia 6384), 08.08.2002 em 19.08.2002. Min. Maurício Processo sobrestado Corrêa em 27.02.2003.
Min. Joaquim Barbosa
RELATOR
Julgamento por despacho.
Aguardando julgamento da Medida Cautelar da ADI 2231
Relator, Min. Ilmar Galvão, alegou impedimento.
Relator, Min. Gilmar Mendes, alegou impedimento, por ter atuado no processo como AGU.
OBSERVAÇÕES
106
DF
DF
DF
14.03.2002
14.03.2002
23.05.2002
31
32
MG Vicente Boaventura dos Santos
04.03.2002
29
30
DF
01.02.2002
Luiz de Matos Pinto
Marcos Rogério Baptista
Marcos Rogério Baptista
Marcos Rogério Baptista
União
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Maurício Corrêa
Presidente do Min. Carlos Tribunal Regional Velloso Federal da 2ª Região Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
STF (Guia 2021), em 15.04.2002.
ANDAMENTO
Interposto agravo regimental em 06.06.2002. Baixa ao arquivo do STF (Guia 5128), em 17.07.2002
Baixa ao arquivo do STF (Guia 2021), em 15.04.2002.
Baixa ao arquivo do STF (Guia 2021), em 15.04.2002.
Baixa ao arquivo do STF (Guia 1659), em 04.04.2002.
Min. Ellen Gracie Baixa ao arquivo do STF (Guia 6384), em 19.08.2002.
Silveira
RELATOR
Juíza do Trabalho Min. Carlos da 13ª Vara de Velloso Belo Horizonte
Relator dos Habeas Corpus nºs 81.585 e 81442 do STF
81.348-8 do STF
Baptista
28
ARGÜIDO
ARGÜENTE
ESTADO DE ORIGEM
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
negado. Decisão publicada DJ de 01.04.2002 Seguimento negado. Decisão publicada DJ de 08.08.2002 Seguimento negado. Decisão publicada DJ de 11.03.2002 Seguimento negado. Decisão publicada DJ de 26.03.2002 Seguimento negado. Decisão publicada DJ de 01.04.2002 Seguimento negado. Decisão publicada DJ de 28.05.2002 Negado seguimento ao agravo (DJ de
DECISÃO
Julgamento por despacho.
Negado seguimento com base no art. 21, § 1º RISTF
Negado seguimento com base no art. 21, § 1º RISTF.
Negado seguimento com base no art. 21, § 1º RISTF.
Negado seguimento com base no art. 21, § 1º RISTF.
Negado seguimento com base no art. 21, § 1ºRISTF.
OBSERVAÇÕES
107
PA
02.08.2002
DF
DF
PE
RS
14.08.2002
19.08.2002
27.08.2002
04.02.2003
34
35
36
37
33
ESTADO DE ORIGEM
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Governador do Estado de Pernambuco Governador do Estado do Rio
Luiz de Matos Pinto
ABRAPUR – Associação Brasileira dos Fabricantes de Artigos de Puericultura
Governador do Estado do Pará
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
RELATOR
Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco Assembléia Legislativa do
União
Ministro de Estado da Saúde
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Maurício Corrêa
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Celso de Mello
Instituto do Min. Gilmar Desenvolvimento Mendes Econômico-Social do Pará – IDESP
ARGÜIDO
DECISÃO
OBSERVAÇÕES
Autos conclusos ao relator em
Autos conclusos ao relator em 22.09.2003 Baixa ao arquivo do STF em 02.04.2004. Processo sobrestado (DJ de 04.10.2002)
Interposto agravo regimental em 03.12.2002. Autos conclusos ao relator em 03.12.2002.
Não conhecido, restando prejudicado pedido de medida cautelar (DJ de 28.11.2002).
Aguardando julgamento da Medida Cautelar da ADI 2231
19.06.2002), por falta de capacidade postulatória de seu subscritor. Autos remetidos ao Liminar Vista a PGR gabinete do deferida (DJ 25.08.2004 Ministro Relator em 02.12.2002) e 07.11.2003. referendada Interposto agravo pelo Pleno (DJ regimental em de 06.11.2003). 03.08.2004. Pauta publicada no DJ. Pauta 04/2005.
ANDAMENTO
108
MG Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB SP Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG.BR
RJ
09.04.2003
23.04.2003
05.08.2003
40
41
42
SIND-REP – Sindicato dos Reformados e Pensionistas das Polícias Militares,
Partido Social Cristão – PSC
DF
25.02.2003
39
Juarez Ribeiro Belém
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Governadora do Estado do Rio de Janeiro
Congresso Nacional
Estado do Rio Grande do Sul Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Grande do Sul
RJ
ARGÜIDO
ARGÜENTE
25.02.2003
ESTADO DE ORIGEM
38
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Min. Nelson Jobim
Min. Gilmar Mendes
Min. Gilmar Mendes
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Gilmar Mendes
RELATOR
DECISÃO
Interposto Agravo Regimental em 24.09.2003. Autos conclusos ao relator em 24.09.2003
Autos conclusos ao relator em 29.03.2005
Seguimento negado. DJ de 15.09.2003.
Baixa ao arquivo do Seguimento STF (Guia 3538), negado. em 04.04.2003. Decisão publicada no DJ de 21.03.2002 Autos conclusos ao relator em 04.08.2003. Pauta publicada no DJ- Pleno de 10.10.2003. Autos conclusos ao relator em 03.06.2003.
04.02.2003
ANDAMENTO
Vista PGR em 31.01.2005
Vista PGR em 05.06.2003
Negado seguimento com base no art. 21, § 1º RISTF
OBSERVAÇÕES
109
ESTADO DE ORIGEM
DF
PR
DF
DF
PA
SP
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
06.08.2003
18.09.2003
15.10.2003
14.11.2003
14.01.2004
17.02.2004
43
44
45
46
47
48
ARGÜIDO
Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB Associação Brasileira das Empresas de Distribuição ABRAED Governador do Estado do Pará Gilberto Rocha de Andrade
Município de Ibema
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos CORREIOS Governador do Estado do Pará Tribunal de Alçada Criminal
Presidente da República
Câmara do Município de Ibema
Brigadas Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil Partido Presidente da Democrático República Trabalhista – PDT
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Min. Nelson Jobim Min. Carlos Brito
Min. Marco Aurélio
Min. Celso de Mello
Min. Joaquim Barbosa
DECISÃO
Vista à PGR. 16.01.2004. Baixa ao arquivo do Negado STF. seguimento. DJ
Remessa dos autos à seção cartorária em 23.10.2003 Pauta publicada no DJ. Pleno. Pauta nº. 15/2005. 29.04.2005.
Não conhecimento. Prejudicado exame medida liminar (DJ de 15.10.2003) Baixa ao arquivo do Negado STF (Guia 11163), seguimento em 09.10.2003. liminarmente. Decisão publicada DJ de 24.09.2003
Substituição ao relator art. 38 RI, Min. Eros Grau 01.07.2004.
ANDAMENTO
Min. Carlos Britto Interposto Agravo Regimental em 14.10.2003. Autos conclusos ao relator em 28.10.2003.
RELATOR
Município requereu devolução petições a fim de remeter documentos para análise da PGR. Ministro Presidente deferiu pedido de desentranhamento de peças. DJ (05.11.2003)
OBSERVAÇÕES
110
ANEPAC – Associação Nacional das Entidades de Produtores de Agregados para Construção Civil GO AMB Associação dos Magistrados Brasileiros MA Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMDB PI Governador do Estado do Piauí
DF
29.04.2004
05.05.2004
11.06.2004
17.06.2004
51
52
53
54
Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Câmara Municipal de Paço de Lumiar e outros
do Estado de São Paulo Assembléia Legislativa do Estado do Piauí Prefeitura Municipal da Estância Balneária de Caraguatatuba e outros
ARGÜIDO
Min. Celso de Mello
Min. Cezar Peluso
Min. Joaquim Barbosa
Min. Sepúlveda Pertence
RELATOR
Tribunal Regional Min. Gilmar do Trabalho da Mendes 22ª Região Confederação Min. Marco Nacional dos Aurélio Trabalhadores na Saúde - CNTS
SP
06.04.2004
50
Governador do Estado do Piauí
PI
ARGÜENTE
30.03.2004
ESTADO DE ORIGEM
49
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Gab. Min. Gilmar Mendes
Gab. Min. Celso de Mello
Petição nº. 56899/04.
Petição nº. 132782/04.
Gabinete do Min. Pertence
11.03.2004.
ANDAMENTO
Concedida, em 02.08.2004, liminar para, além de determinar o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em
de 27.02.2004
DECISÃO
Na sessão de 20.10.2004 o Tribunal negou referendo à liminar concedida.
OBSERVAÇÕES
111
DF
29.06.2004
DF
SP
DF
DF
DF
23.08.2004
21.09.2004
03.12.2004
07.12.2004
09.12.2004
56
57
58
59
60
55
ESTADO DE ORIGEM
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Conselho Federal da Ordem dos Advogados o Brasil Diretório Municipal do Partido dos
Confederação Nacional das Profissões Liberais - CNPL Confederação Nacional das Profissões Liberais - CNPL Marcos Tadeu Gomes Diretório Municipal do Partido Socialista Democrático Brasileiro - PSDB
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
ANDAMENTO
Gab. Min. Marco Aurelio
Gab. Min. Sepúlveda Pertence
Negado seguimento DJ de 16.12.2004 Interposto agravo regimental
julgado, reconhecer o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos.
DECISÃO
Baixa ao arquivo do Negado STF em 16.02.2005. seguimento DJ de 02.02.2005
Min. Carlos Britto Seção cartória em 13.05.2005.
Min. Carlos Velloso Min. Marco Aurelio
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Carlos Britto Gab. Min. Carlos Britto
RELATOR
Tribunal Superior Min. Marco Eleitoral Aurélio
Congresso Nacional
Ministro de Estado do Trabalho e Emprego Estado de São Paulo Tribunal Superior Eleitoral
Ministério do Trabalho e Emprego
ARGÜIDO
Vista a PGR 11.02.2005.
Vista a PGR 11.10.2004.
OBSERVAÇÕES
112
DF
DF
DF
SP
02.02.2005
09.03.2005
28.03.2005
31.03.2005
65
66
67
68
AP
01.02.2005
63
AP
DF
17.12.2004
62
01.02.2005
DF
09.12.2004
61
64
ESTADO DE ORIGEM
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF RELATOR
Partido Democrático Trabalhista - PDT Assembléia Legislativa do Estado do Amapá
DECISÃO
Gab. Min. Joaquim Barbosa Baixa ao arquivo do STF em 07.04.2005. Liminar indeferida em 09.05.2005. DJ de 17.05.2005.
Baixa ao arquivo do Negado STF em 16.02.2005. seguimento DJ de02.02.2005 Gab. Min. Negado Sepúlveda Pertence seguimento DJ de 11.02.2005 Interposto agravo regimental 16.02.2005 PGR
Baixa ao arquivo do Negado STF em 16.02.2005. seguimento DJ de 02.02.2005
ANDAMENTO
Min. Ellen Gracie PGR
Min. Cezar Peluso
Min. Joaquim Barbosa Min. Joaquim Barbosa
Min. Carlos Velloso
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Marco Aurélio
Tribunal Superior Min. Marco Eleitoral Aurélio
ARGÜIDO
Governador do Assembléia Estado do Amapá Legislativa do Estado do Amapá Partido Socialista Tribunal Superior Brasileiro – PSB Eleitoral Partido Tribunal Superior Comunista do Eleitoral Brasil - PC DO B Governador do Tribunal de Estado da Paraíba Justiça do Estado da Paraíba e outros Associação Prefeitura Nacional das Municipal de Empresas de Bragança Paulista
Trabalhadores – PT Diretório Municipal do Partido Democrático Trabalhista – PDT Partido Democrático Trabalhista – PDT Governador do Estado do Amapá
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Parecer da AGU em 26.04.2005.
Interposto agravo regimental 04.04.2005.
Com parecer da AGU 02.03.2005.
OBSERVAÇÕES
113
RJ
DF
DF
15.04.2005
09.12.2004
05.05.2005
70
71
ESTADO DE ORIGEM
69
DATA DISNº TRIBUI ÇÃO STF
Transportes Urbanos - NTU Sociedade Técnica de Engenharia S/A Soter Sindicato Nacional das Empresas de Encomendas Expressas Confederação Nacional dos Trabalhadores e Educação - CNTE
ARGÜENTE
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
RELATOR
ANDAMENTO
Presidente da Republica
Min. Gilmar Mendes
Seção cartória em 09.05.2005.
Prefeitura Min. Ellen Gracie A Seção de Municipal de recebimento de Bragança Paulista baixa de processos. 17.05.2005 Empresa Min. Celso de Baixa ao arquivo do Brasileira de Mello STF em 16.02.2005. Correios e Telégrafos - ECT
ARGÜIDO
Negado seguimento. DJ de 02.02.2005.
Negado seguimento. DJ de 06.05.2005.
DECISÃO
OBSERVAÇÕES
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
2. Legitimidade para argüir o descumprimento de preceito fundamental Considerações preliminares – Nos termos da Lei n. 9.882, de 3.12.99, podem propor a argüição de descumprimento de preceito fundamental todos os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103). A versão aprovada pelo Congresso Nacional admitia expressamente a legitimidade processual de qualquer cidadão. A falta de qualquer disciplina ou limitação ao exercício do direito de propositura levou o Chefe do Poder Executivo a vetar o aludido dispositivo.11 Não se há de negar, porém, que o reconhecimento do direito de propositura aos cidadãos em geral afigura-se recomendável e até mesmo inevitável em muitos casos. É que a defesa de preceito fundamental confunde-se, em certa medida, com a própria proteção de direitos e garantias individuais. Nessa hipótese a matéria está a reclamar uma disciplina normativa que, a um só tempo, permita ao cidadão a possibilidade de levar o seu pleito ao STF sem afetar o funcionamento da Corte, pelo excesso de demandas. Não há dúvida de que, na ausência de mecanismo específico, poderá o cidadão representar ao Procurador-Geral da República. De lege ferenda poder-se-ia conceber fórmula que associasse o uso da argüição de descumprimento ao manejo do recurso extraordinário. Assim, qualquer um dos legitimados para propor a argüição poderia, v.g., solicitar que o STF convertesse o julgamento de um recurso extraordinário em julgamento de eventual argüição de descumprimento. Ou, ainda, seria legítimo cogitar-se da possibilidade de se interpor o recurso extraordinário juntamente com a argüição de descumprimento, facultando-se ao STF a discricionariedade necessária para apreciar a controvérsia
Veto presidencial ao art. 2o, II, Mensagem n. 1.807, de 3.12.99, nos seguintes termos: “A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamental por ‘qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público’. A admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais – modalidade em que se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. Dúvida não há de que a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais Poderes e as normas infraconstitucionais. De resto, o amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato de normas inscrito no art. 103 da Constituição Federal assegura a veiculação e a seleção qualificada das questões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de representação social e de assistência à cidadania. Cabe igualmente ao Procurador-Geral da República, em sua função precípua de Advogado da Constituição, a formalização das questões constitucionais carentes de decisão e socialmente relevantes. Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidade de entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – sem prejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se o excesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure sua relevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do Supremo Tribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público. Impõe-se, portanto, seja vetada a disposição em comento”. 11
114
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
constitucional posta no recurso individual ou na ação de caráter objetivo Essas breves digressões demonstram que o instituto da argüição de descumprimento parece dotado de grande flexibilidade, o que pode permitir desenvolvimento de soluções criativas para a adequação do modelo jurídico-institucional às demandas dos novos tempos. Legitimação ativa – Poderão propor argüição de descumprimento de preceito fundamental o Presidente da República, as Mesas da Câmara e do Senado Federal, os Governadores dos Estados e o Governador do Distrito Federal, as Mesas das Assembléias Legislativas e a Mesa da Câmara Distrital, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB, partido político com representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional. Aplicam-se, aqui, fundamentalmente, as orientações desenvolvidas a propósito da ação direta de inconstitucionalidade (cf., supra, Sexta Parte, cap. 2). Controvérsia judicial ou jurídica nas ações de caráter incidental – Tal como a Lei n. 9.868, de 1999, na parte que disciplinou os pressupostos da ação declaratória de constitucionalidade, a Lei n. 9.882, de 1999, pressupõe, basicamente, a existência de controvérsia judicial ou jurídica relativa à constitucionalidade da lei ou à legitimidade do ato para a instauração da argüição de inconstitucionalidade. Portanto, também na argüição de descumprimento de preceito fundamental há de se cogitar de uma legitimação para agir in concreto, tal como consagrada no Direito alemão, que se relaciona com a existência de um estado de incerteza, gerado por dúvidas ou controvérsias sobre a legitimidade da lei. É necessário que se configure, portanto, situação hábil a afetar a presunção de constitucionalidade ou de legitimidade do ato questionado. Evidentemente, são múltiplas as formas de manifestação desse estado de incerteza quanto à legitimidade de norma. A insegurança poderá resultar de pronunciamentos contraditórios da jurisdição ordinária sobre a constitucionalidade de determinada disposição. Assim, se a jurisdição ordinária, pela voz de diferentes órgãos, passar a afirmar a inconstitucionalidade de determinada lei, poderão os órgãos legitimados, se estiverem convencidos de sua constitucionalidade, provocar o STF para que ponha termo à controvérsia instaurada. Da mesma forma, pronunciamentos contraditórios de órgãos jurisdicionais diversos sobre a legitimidade da norma poderão criar o estado de incerteza imprescindível para a instauração da ação declaratória de constitucionalidade. Embora as decisões judiciais sejam provocadas ou mesmo estimuladas pelo debate doutrinário, é certo que simples controvérsia doutrinária não se afigura suficiente para objetivar o estado de incerteza apto a legitimar a propositura da ação, uma vez que, por si só, ela não obsta à plena aplicação da lei. A controvérsia diz respeito à aplicação do princípio da separação dos Poderes. A generalização de medidas judiciais contra uma dada lei nulifica completamente a presunção de constitucionalidade do ato normativo questionado e coloca em xeque a eficácia da decisão legislativa. A argüição de descumprimento seria o instrumento adequado para a solução desse impasse jurídico-político, permitindo que os órgãos legitimados provoquem o STF com base em dados concretos, e não em simples disputa teórica. Assim, tal como na ação declaratória, também na argüição de descumprimento de preceito fundamental a exigência de demonstração de controvérsia judicial há de ser entendida como atinente à existência de controvérsia jurídica relevante, capaz de afetar a presunção de legitimidade da lei ou da interpretação judicial adotada e, por conseguinte, a eficácia da decisão legislativa. Inexistência de outro meio eficaz: princípio da subsidiariedade – O desenvolvimento desse instituto dependerá da interpretação que o STF venha a dar à lei. A esse respeito, destaque-se que a Lei n. 9.882, de 1999, impõe que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4o, § 1o). À primeira vista poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no Direito alemão (recurso constitucional) e no Direito espanhol (recurso de amparo), acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático. De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão –, contido no § 1o do art. 4o da Lei n. 9.882, de 1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Nesse sentido, se se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. No Direito alemão a Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional) está submetida ao dever de exaurimento das instâncias ordinárias. Todavia, a Corte Constitucional pode decidir de imediato um recurso constitucional se se mostrar que a questão é de interesse geral ou se demonstrado que o requerente poderia sofrer grave lesão caso recorresse à via ordinária (Lei Orgânica do Tribunal, § 90, II). Como se vê, a ressalva constante da parte final do § 90, II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã confere ampla discricionariedade tanto para conhecer das questões fundadas no interesse geral (allgemeine Bedeutung) quanto daquelas controvérsias baseadas no perigo iminente de grave lesão (schwerer Nachteil). Assim, tem o Tribunal Constitucional admitido o recurso constitucional, na forma antecipada, em matéria tributária, tendo em vista o reflexo direto da decisão sobre inúmeras situações homogêneas.12 A Corte considerou igualmente relevante a apreciação de controvérsia sobre publicidade oficial, tendo em vista o seu significado para todos os partícipes, ativos e passivos, do processo eleitoral.13 No que concerne ao controle de constitucionalidade de normas a posição da Corte tem-se revelado enfática: “apresenta-se, regularmente, como de interesse geral a verificação sobre se uma norma legal relevante para uma decisão judicial é inconstitucional”.14 No Direito espanhol explicita-se que cabe o recurso de amparo contra ato judicial desde que “se hayan agotado todos los recursos utilizables dentro de la vía recursal” (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, art. 44, I). Não obstante, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que, para os fins da exaustão das instâncias ordinárias, “não é necessária a interposição de todos os recursos possíveis, senão de todos os recursos razoavelmente úteis”.15 Nessa linha de entendimento anotou o Tribunal Constitucional espanhol: “[...]al haberse manifestado en este caso la voluntad del órgano jurisdicional sobre el mismo fondo de la cuestión planteada, há de entenderse que la finalidad del requisito exigido en el art. 44, 1, ‘a’, de la LOTC se há cumplido, pues el recurso hubiera sido en cualquier caso ineficaz para reparar la supuesta vulneración del derecho constitucional conocido” (auto de 11.2.81, n. 19).16 12
Cf. BVerfGE 19/268 (273); BVerfGE 62/338 (342); v. também Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, 4a ed., 1997, p. 162. 13 Cf. BVerfGE 62/230 (232); BVerfGE 62/117 (144); Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 162. 14 Cf. BVerfGE 91/93 (106). 15 Cf. Almagro, José. Justicia Constitucional, Comentarios a la Ley Orgánica del Tribunal Constitucional, 2. ed., Valencia, 1989, p. 324. 16 Cf. Almagro, Justicia Constitucional, cit., p. 325. Anote-se que, na espécie, os recorrentes haviam interposto o recurso fora do prazo.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Vê-se, assim, que também no Direito espanhol tem-se atenuado o significado literal do princípio da subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias ordinárias, até porque em muitos casos o prosseguimento nas vias ordinárias não teria efeitos úteis para afastar a lesão a direitos fundamentais. Observe-se, ainda, que a legitimação outorgada ao Ministério Público e ao Defensor do Povo para manejar o recurso de amparo reforça, no sistema espanhol, o caráter objetivo desse processo. Tendo em vista o Direito alemão, Schlaich transcreve observação de antigo Ministro da Justiça da Prússia segundo a qual “o recurso de nulidade era proposto pelas partes, porém com objetivo de evitar o surgimento ou a aplicação de princípios jurídicos incorretos”.17 Em relação ao recurso constitucional moderno, movido contra decisões judiciais, anota Schlaich: “essa deve ser também a tarefa principal da Corte Constitucional com referência aos direitos fundamentais, tendo em vista os numerosos e relevantes recursos constitucionais propostos contra decisões judiciais: contribuir para que outros tribunais logrem uma realização ótima dos direitos fundamentais”.18 Em verdade, o princípio da subsidiariedade, ou do exaurimento das instâncias, atua também nos sistemas que conferem ao indivíduo afetado o direito de impugnar a decisão judicial, como um pressuposto de admissibilidade de índole objetiva, destinado, fundamentalmente, a impedir a banalização da atividade de jurisdição constitucional.19 No caso brasileiro o pleito a ser formulado pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará – pelo menos de forma direta – sobre a proteção judicial efetiva de posições específicas por eles defendidas. A exceção mais expressiva reside talvez na possibilidade de o Procurador-Geral da República, como previsto expressamente no texto legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a argüição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista a proteção de situação específica. Ainda assim o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados, muito provavelmente, ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo, e não à proteção judicial efetiva de uma situação singular. Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade – isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata –, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. É o que ocorre, fundamentalmente, nas hipóteses relativas ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do nãocabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento. Também é possível que se apresente argüição de descumprimento com pretensão de ver declarada a constitucionalidade de lei estadual ou municipal que tenha sua legitimidade questionada nas instâncias inferiores. Tendo em vista o objeto restrito da ação declaratória de constitucionalidade, não se vislumbra aqui meio eficaz para solver, de forma ampla, geral e imediata, eventual controvérsia instaurada (cf., infra, “Pedido de declaração de constitucionalidade (ação declaratória) do direito estadual e municipal e argüição de descumprimento”). Afigura-se igualmente legítimo cogitar de utilização da argüição de descumprimento nas controvérsias relacionadas com o princípio da legalidade (lei e regulamento), uma vez que, assim como assente na jurisprudência, tal hipótese não pode ser veiculada em sede de controle direto de constitucionalidade (cf., infra, “Preceito fundamental e princípio da legalidade: a lesão a preceito 17
Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht,cit., p. 184. Idem, ibidem. 19 Cf., a propósito, Zuck, Rüdiger. Das Recht der Verfassungsbeschwerde, pp. 13 e ss. 18
117
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
fundamental decorrente de ato regulamentar”). A própria aplicação do princípio da subsidiariedade está a indicar que a argüição de descumprimento há de ser aceita nos casos que envolvam a aplicação direta da Constituição – alegação de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial ou controvérsia sobre interpretação adotada pelo Judiciário que não envolva a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional. Da mesma forma, controvérsias concretas fundadas na eventual inconstitucionalidade de lei ou ato normativo podem dar ensejo a uma pletora de demandas, insolúveis no âmbito dos processos objetivos. Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Até porque, tal como assinalado, o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva. Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigura-se integralmente aplicável a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver a controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de uma pletora de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias. A propósito, assinalou o Min. Sepúlveda Pertence, na ADC n. 1,20 que a convivência entre o sistema difuso e o sistema concentrado “não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos a que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme; ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito”. A possibilidade de incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos órgãos pode configurar uma ameaça a preceito fundamental (pelo menos, ao da segurança jurídica), o que também está a recomendar uma leitura compreensiva da exigência aposta à lei da argüição, de modo a admitir a propositura da ação especial toda vez que uma definição imediata da controvérsia mostrar-se necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias ou incongruentes, que comprometam gravemente o princípio da segurança jurídica e a própria idéia de prestação judicial efetiva. Ademais, a ausência de definição da controvérsia – ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais – poderá ser a concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula que tem missão de guarda da Constituição a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituir-se, por si só, em uma ameaça ao princípio constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em uma autêntica lesão a preceito fundamental. Assim, tendo em vista o perfil objetivo da argüição de descumprimento, com legitimação diversa, dificilmente poder-se-á vislumbrar uma autêntica relação de subsidiariedade entre o novel instituto e as formas ordinárias ou convencionais de controle de constitucionalidade do sistema difuso, expressas, fundamentalmente, no uso do recurso extraordinário. Como se vê, ainda que aparentemente pudesse ser o recurso extraordinário o meio eficaz de superar eventual lesão a preceito fundamental nessas situações, na prática, especialmente nos processos de massa, a utilização desse instituto do sistema difuso de controle de constitucionalidade não se revela plenamente eficaz, em razão do limitado efeito do julgado nele proferido (decisão com efeito entre as partes). Assim sendo, é possível concluir que a simples existência de ações ou de outros recursos 20
ADC n. 1/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 01.12.93, DJU 16.06.95.
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processuais – vias processuais ordinárias – não poderá servir de óbice à formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicitado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, as mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia. Essa leitura compreensiva da cláusula da subsidiariedade contida no art. 4o, § 1o, da Lei n. 9.882, de 1999, parece solver, com superioridade, a controvérsia em torno da aplicação do princípio da exaustão das instâncias. No julgamento da liminar da ADPF nº 33, o Tribunal acolheu, em linhas gerais, a orientação acima sustentada, tendo considerado cabível, em princípio, ADPF movida em relação à lei estadual pré-constitucional, que indexava o reajuste dos vencimentos de determinado grupo de funcionários ao valor do salário mínimo.21 Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigura-se integralmente aplicável a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver a controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de uma pletora de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias. É fácil ver também que a fórmula da relevância do interesse público para justificar a admissão da argüição de descumprimento (explícita no modelo alemão) está implícita no sistema criado pelo legislador brasileiro, tendo em vista especialmente o caráter marcadamente objetivo que se conferiu ao instituto. Dessa forma, o Tribunal poderá conhecer da argüição de descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica restar seriamente ameaçado, especialmente em razão de conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional.
3. Objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental Considerações preliminares – Nos termos da Lei n. 9.882, de 1999, cabe a argüição de descumprimento de preceito fundamental para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público (art. 1o, caput). O parágrafo único do art. 1o explicita que caberá também a argüição de descumprimento quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anteriores à Constituição (leis pré-constitucionais). Vê-se, assim, que a argüição de descumprimento poderá ser utilizada para solver controvérsias constitucionais sobre a constitucionalidade do direito federal, do direito estadual e também do direito municipal. Tal como já observado, a argüição de descumprimento vem completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil relativamente concentrado no STF, uma vez que as questões até então não apreciadas no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade) poderão ser objeto de exame no âmbito do novo procedimento. Direito pré-constitucional – As Constituições Brasileiras de 1891 (art. 83), de 1934 (art. 187) e de 1937 (art. 183) estabeleceram cláusulas de recepção, que, tal como as cláusulas de recepção da Constituição de Weimar e da Constituição de Bonn (respectivamente, art. 178, II, e art. 123, I), 21
ADPF nº 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, liminar referendada pelo Pleno em 29.10.2003, decisão publicada no DJ em 06.11.2003 (acórdão não publicado).
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continham duas disposições: a) assegurava-se, de um lado, a vigência plena do direito pré-constitucional; b) estabelecia-se, de outro, que o direito pré-constitucional incompatível com a nova ordem perdia a vigência desde a entrada em vigor da nova Constituição.22 O STF admitiu inicialmente a possibilidade de examinar, no processo do controle abstrato de normas, a questão da derrogação do direito pré-constitucional em virtude de colisão entre a Constituição superveniente e o direito pré-constitucional. Nesse caso, julgava-se improcedente a representação, mas reconhecia-se expressamente a existência da colisão e, portanto, a incompatibilidade entre o direito ordinário pré-constitucional e a nova Constituição.23 O Tribunal tratava esse tema como uma questão preliminar, que haveria de ser decidida no processo de controle abstrato de normas. Essa posição foi abandonada, todavia, em favor do entendimento de que o processo do controle abstrato de normas destina-se, fundamentalmente, à aferição da constitucionalidade de normas pósconstitucionais.24 Dessa forma, eventual colisão entre o direito pré-constitucional e a nova Constituição deveria ser simplesmente resolvida segundo os princípios de direito intertemporal.25 Assim, caberia à jurisdição ordinária, tanto quanto ao STF, examinar a vigência do direito préconstitucional no âmbito do controle incidente de normas, uma vez que, nesse caso, cuidar-se-ia de simples aplicação do princípio lex posterior derogat priori, e não de um exame de constitucionalidade. Esse problema, que já fora contemplado por Kelsen no famoso Referat sobre a natureza e o desenvolvimento da jurisdição constitucional,26 é tratado de forma diferenciada em cada sistema jurídico. A práxis austríaca parte do princípio de que o objeto do controle abstrato de normas, nos termos do art. 140 da Lei Constitucional, não são apenas as leis federais e estaduais, mas também as antigas leis do Reich e dos Estados, desde que tenham sido recebidas em conformidade com o preceituado nas “Disposições Constitucionais Transitórias” de 1920.27 A discussão sobre a constitucionalidade dessas leis antigas deve ser examinada, todavia, em face das disposições constitucionais vigentes à época.28 Segundo esse entendimento, a colisão entre o direito pré-constitucional e a Constituição configura questão de direito intertemporal, não estando submetida à competência exclusiva da Corte Constitucional.29 Tal questão pode ser apreciada tanto pelo Tribunal Constitucional como por outros tribunais como uma questão preliminar.30 A Corte Constitucional alemã desenvolveu uma espécie de solução de compromisso, assentando 22
João Barbalho, Constituição Federal Brasileira, Comentários, p. 356; cf., sobre o assunto, no Direito Alemão: Ipsen, Jörn. Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, BadenBaden, 1980, p. 161. 23 Repr n. 946, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 82/44; Repr. n. 969, Rel. Min. Antônio Neder, RTJ 99/544. 24 Repr. n. 946, cit., RTJ 99/544. 25 Repr. n.1.012, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 95/990. 26 Kelsen, “Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit”, VVDStRL 5/64, 1929. 27 Cf., a propósito, Adamovich, L. e Spanner, Hans. Handbuch des österreichischen Verfassungsrechts, 6a ed., Viena/Nova York, 1971, p. 456. 28 Cf. Adamovich e Spanner, Handbuch des österreichischen, cit., p. 456; BVerfGE 2/124 (130); 2/138, 218; 3/48; 4/339; 6/64; 7/335; 10/58, 127, 131, 159; 11/129; 12/353; 14/65; 15/183; 16/231; 17/162; 18/252. Crítico, a propósito, Ipsen. Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit… cit., p. 164. 29 Cf. Adamovich e Spanner, Handbuch des österreichischen, cit., p. 456. 30 Adamovich e Spanner, idem, ibidem. Adamovich recomendou que se dotasse a Corte Constitucional Austríaca de competência para decidir com eficácia erga omnes as questões de derrogação (cf. Handbuch des österreichischen, cit., p. 398).
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que tanto as leis pós-constitucionais quanto as pré-constitucionais podem ser objeto do controle abstrato de normas. Estão submetidas, porém, ao processo de controle concreto de normas apenas as leis pós-constitucionais, uma vez que, nesse caso, a decisão sobre a colisão de normas não ameaça a autoridade do legislador constitucional.31 A Corte Constitucional italiana já na sua primeira decisão, em 5.6.56, reconheceu sua competência para examinar a constitucionalidade do direito pré-constitucional,32 porque tanto o art. 134 da Constituição quanto a Lei Constitucional, de 9.2.48, n. 1, cuidavam apenas da constitucionalidade da lei, e entre a lei ordinária e a Constituição existe uma diferença de hierarquia, sendo, por isso, irrelevante a distinção entre direito pré-constitucional e pós-constitucional.33 A Constituição portuguesa, de 1976, consagrou expressamente a chamada “inconstitucionalidade superveniente” (art. 282, § 2o), reconhecendo a competência da Corte Constitucional para examinar a compatibilidade do direito pré-constitucional em face da nova Constituição.34 O Tribunal Constitucional espanhol optou por uma linha intermediária, que lhe permite dividir a competência com a jurisdição ordinária em relação ao direito pré-constitucional, e outorga-lhe em relação ao direito pós-constitucional o monopólio da censura.35 Configura-se, pois, competência concorrente para apreciar a compatibilidade entre o direito pré-constitucional e a nova Constituição.36 A Lei Orgânica do Tribunal Constitucional espanhol prevê, no art. 33, um prazo de três meses para a instauração do processo de controle abstrato de normas a contar da publicação da lei ou do ato normativo com força de lei. Nos termos do art. 2o das “Disposições Transitórias” dessa lei, aplica-se ao controle abstrato de normas, ao recurso constitucional e aos conflitos de competência o prazo previsto de três meses para os atos anteriormente editados, a contar da data de instituição do Tribunal (15.7.80).37 É certo, pois, que, com a exceção da Corte Constitucional austríaca, procuram os modernos Tribunais Constitucionais assegurar sua competência para aferir a constitucionalidade das leis préconstitucionais em face da Constituição vigente.38 A Constituição Brasileira de 1988 não tratou expressamente da questão relativa à constitucionalidade do direito pré-constitucional. A jurisprudência do STF que se desenvolveu sob a vigência da Constituição de 1967/1969 tratava dessa colisão, tal como já mencionado, com base no princípio lex posterior derogat priori. Sob o império da nova Constituição teve o STF oportunidade de discutir amplamente a questão na ADIn n. 2, da relatoria do eminente Min. Paulo Brossard. Embora o tema tenha suscitado controvérsia, provocada pela clara manifestação do Min. Sepúlveda Pertence em favor da revisão da 31
BVerfGE 2/124 (130); 2/138, 218; 3/48; 4/339; 6/64; 7/335; 10/58, 127, 131, 159; 11/129; 12/353; 14/65; 15/183; 16/231; 17/162; 18/252. Crítico, a propósito, Ipsen. Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit… cit., p. 164. 32 Ruffia, Paolo Biscaretti di. Derecho Constitucional, p. 268; Gustavo Zagrebelsky, La Giustizia Costituzionale, p. 42; Franco Pierandrei, “Corte Costituzionale”, in Enciclopedia del Diritto, v. 10, Milão, 1962, p. 908. Cf., a propósito: T. Ritterspach, “Probleme der italienischen Verfassungsgerichtsbarkeit: 20 Jahre Corte Costituzionale”, AöR 104/137 (1380, 1979; Aldo Sandulli, “Die Verfassungsgerichtbarkeit in Italien”, in Mosler, Verfassungsgerichtbarkeit in der Gegenwart, p. 292 (306-307). 33 Acórdão de 05.06.56, n. 1. Cf., a propósito, Gaetano Sciascia, “Die Rechtsprechung des Verfassungsgerichtshofs der Italienischen Republik”, JöR, NF 6/1 (6), 1957. 34 Cf., a propósito, Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, Coimbra, 1986, p. 838. 35 Cf. Weber, A. “Die Verfassungsgerichtsbarkeit in Spanien”, JöR, NF 34/245 (257-258), 1985. 36 Weber. Die Verfassungsgerichtsbarkeit ,cit., JöR, NF 34/245 (258). 37 Cf., a propósito, Weber. Die Verfassungsgerichtsbarkeit , cit., JöR, NF 34/245 (254). 38 Como ressaltado, essa idéia não se aplica de forma irrestrita para a Corte Constitucional Espanhola, uma vez que após o decurso do prazo fixado não dispõe mais de competência para conhecer da questão no juízo abstrato. No sistema italiano, que não conhece o controle abstrato de normas, impôs-se, desde o início, a idéia de uma inconstitucionalidade superveniente.
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jurisprudência consolidada do Tribunal, prevaleceu a tese tradicional, esposada pelo Min. Paulo Brossard. Em síntese, são os seguintes os argumentos expendidos pelo eminente Min. Brossard: “A idéia nuclear do raciocínio reside na superioridade da lei constitucional em relação às demais leis. A Constituição é superior às leis por ser obra do poder constituinte; ela indica os Poderes do Estado, através dos quais a nação se governa, e ainda marca e delimita as atribuições de cada um deles. “Do Legislativo, inclusive. Tendo este a sua existência e a extensão dos seus poderes definidos na Constituição, nesta há de encontrar, com a enumeração de suas atribuições, a extensão delas. E na medida em que as exceder estará praticando atos não autorizados por ela. Procede à semelhança do mandatário que ultrapassa os poderes conferidos no mandato. “Assim, uma lei é inconstitucional se e quando o legislador dispõe sobre o que não tinha poder para fazê-lo, ou seja, quando excede os poderes a ele assinados pela Constituição, à qual todos os Poderes estão sujeitos. “Disse-se que a Constituição é a Lei Maior, ou a Lei Suprema, ou a Lei Fundamental, e assim se diz porque ela é superior à lei elaborada pelo poder constituído. Não fora assim e a lei a ela contrária, obviamente posterior, revogaria a Constituição sem a observância dos preceitos constitucionais que regulam sua alteração. “Decorre daí que a lei só poderá ser inconstitucional se estiver em litígio com a Constituição sob cujo pálio agiu o legislador. A correção do ato legislativo, ou sua incompatibilidade com a lei maior, que o macula, há de ser conferida com a Constituição que delimita os poderes do Poder Legislativo que elabora a lei, e a cujo império o legislador será sujeito. E em relação a nenhuma outra. “O legislador não deve obediência à Constituição antiga, já revogada, pois ela não existe mais. Existiu, deixou de existir. Muito menos à Constituição futura, inexistente, por conseguinte, por não existir ainda. De resto, só por adivinhação poderia obedecê-la, uma vez que futura e, por conseguinte, ainda inexistente. “É por esta singelíssima razão que as leis anteriores à Constituição não podem ser inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver inconciliabilidade, ocorrerá revogação, dado que, por outro princípio elementar, a lei posterior revoga a lei anterior com ela incompatível, e a lei constitucional, como lei que é, revoga as leis anteriores que se lhe oponham.”39 O Min. Sepúlveda Pertence sustentou, por seu turno, a aplicação do princípio da supremacia da Constituição também à lei pré-constitucional. A seguinte passagem contém uma boa síntese dos argumentos expendidos pelo Min. Sepúlveda Pertence: “Indaga, a propósito, o eminente Relator, com a eloqüência que o singulariza, ‘como poderia o legislador observar Constituição inexistente ao tempo em que elaborou a lei, como poderia quebrantar normas constitucionais que só mais tarde viriam a ser promulgadas’. “‘Mesmo que o legislador fosse vidente’ – responde S. Exa – ‘e tivesse a antevisão do que iria acontecer, e de antemão soubesse que uma Constituição com tais e quais preceitos viria a ser promulgada, mesmo assim não lhe poderia obedecer, por estar sujeito aos preceitos e termos da Constituição vigente’. “Com todas as vênias, não me convenci de que o argumento, de fascinante cintilação retórica, tivesse maior peso jurídico. “A inconstitucionalidade é apenas o resultado de um juízo de incompatibilidade entre duas normas, ao qual é de todo alheia qualquer idéia de culpabilidade ou responsabilidade do autor da norma questionada pela ilicitude constitucional. “A razão, por isso, cabe a Jorge Miranda (Manual, cit., II/250) quando anota que ‘a inconstitucionalidade não é primitiva ou subseqüente, originária ou derivada, inicial ou ulterior. A sua 39
“A Constituição e as leis anteriores”, Arquivos do Ministério da Justiça 180/125 (126-127), 1992.
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abstrata realidade jurídico-formal não depende do tempo de produção dos preceitos’. “Atemporal e impessoal, a inconstitucionalidade repele, pois, o que, embora a outro propósito, Calamandrei (“Ilegitimidade constitucional de las leyes”, em Estudios, cit., III/89) chamou de ‘concepção, por assim dizer, antropomórfica do que, na realidade, é somente um conflito objetivo de normas’. “Ao contrário, quando se cuida de inconstitucionalidade superveniente – que advém do cotejo de uma norma editada sob uma ordem constitucional com as normas e princípios de um outro ordenamento, futuro – a declaração da invalidade sucessiva da lei pode até significar o reconhecimento da lealdade do seu autor aos valores constitucionais da sua época. “Tanto assim é, já antes se observou, que o mesmo conteúdo normativo da regra legal fulminada de inconstitucionalidade superveniente poderá seguir regendo os fatos anteriores à nova Lei Fundamental, se assim o determinarem os cânones do direito intertemporal pertinente.”40 As teses acima contrapostas contêm bons argumentos aptos a legitimar qualquer uma das possíveis conclusões. Não se deve olvidar, outrossim, tal como enfatizado pelo Min. Sepúlveda Pertence,41 que o debate sobre a inconstitucionalidade ou revogação do direito pré-constitucional em face do direito constitucional superveniente está imantado por uma opção político-constitucional e pragmática, que, diante da inequívoca razoabilidade das orientações, faz prevalecer uma das duas posições ou, ainda, permite desenvolver fórmulas de compromisso, com vistas à preservação de competência da jurisdição ordinária para conhecer de questões nos sistemas de controle concentrado. É inegável, todavia, que a aplicação do princípio lex posterior derogat priori na relação lei/Constituição não é isenta de problemas, uma vez que esse postulado pressupõe idêntica densidade normativa.42 Até porque, como expressamente contemplado no art. 2o da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, a derrogação do direito antigo não se verifica se a nova lei contiver apenas disposições gerais ou especiais sobre o assunto (lex generalis ou lex specialis). Portanto, pode-se afirmar que o princípio lex posterior derogat priori pressupõe, fundamentalmente, a existência de densidade normativa idêntica ou semelhante,43 estando, primordialmente, orientado para a substituição do direito antigo pelo direito novo.44 A Constituição não se destina, todavia, a substituir normas do direito ordinário.45 Vale registrar, a propósito, o magistério de Ipsen sobre o tema: “As regras de colisão da ordem jurídica não representam juízos lógicos a priori, mas normas que, juntamente com outras regras de interpretação e de aplicação, podem ser designadas como ‘direito de aplicação’ (Rechtsanwendungsrecht). Sua contingência histórica já foi ressaltada inúmeras vezes. O postulado da lex superior é fruto do moderno pensamento constitucional, enquanto o princípio da lex posterior é conseqüência do pensamento jurídico racional. (...). A lei posterior pode ser, simultaneamente, uma lei geral, o que permite indagar se a lei especial ou a lei posterior há de ter a primazia. Esses problemas de aplicação do Direito não se deixam solver de forma abstrata; (...). Temse, assim, que a regra sobre a força derrogatória da lex posterior refere-se a uma constelação totalmente diferente daquela pertinente à supremacia do postulado da lex superior. “Questão relativa à aplicação da lex prior ou da lex posterior somente pode surgir no caso de 40
Cf. ADIn n. 2, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 12.02.92; v., também, Sepúlveda Pertence, José Paulo. Ação direta de inconstitucionalidade e as normas anteriores: as razões dos vencidos, in Arquivos do Ministério da Justiça 180/148 (170), julho-dezembro de 1992. 41 “Ação direta de inconstitucionalidade e as normas anteriores: as razões dos vencidos”, in Arquivos do Ministério da Justiça 180/148 (170). 42 Cf., a propósito: Ipsen. Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit… cit.; Nunes, José de Castro. Teoria e Prática do Poder Judiciário, pp. 603-604. 43 Cf., a propósito, Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit… cit., p. 164. 44 Cf. Ipsen. Richterrecht und Verfassung, Berlim, 1975, p. 165. 45 Cf. Ipsen. Richterrecht und Verfassung, cit., p. 165.
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normas de idêntica densidade normativa. Se duas leis, para situações idênticas, determinarem conseqüências diversas, estará o aplicador do Direito diante do problema sobre a aplicação da lei ‘A’ ou da lei ‘B’, se o conflito não puder ser solvido mediante interpretação (redução teleológica ou extensão). A decisão não fica ao seu alvedrio, devendo, segundo o postulado da lex posterior, deixar de aplicar a lei anterior e decidir a questão segundo os parâmetros da lei posterior. “Outra é a situação quando se tem um conflito entre lei e Constituição. A Constituição estabelece, freqüentemente – seja nos direitos fundamentais, nos princípios constitucionais ou nas disposições programáticas –, apenas assertivas gerais que reclamam concretização para que possam desenvolver eficácia normativa. Se o juiz ou outro aplicador chegar à conclusão de que a lei contraria a Constituição, não poderá ele aplicar, indiscriminadamente, a Constituição em lugar da lei, uma vez que, a despeito de qualquer esforço, dificilmente se logra extrair da Constituição uma regulação positiva sobre situações específicas. (...). Enquanto a regra de colisão relativa à lex posterior pressupõe duas leis contraditórias de idêntica densidade normativa, surge na contradição entre a lei e a Constituição um déficit normativo: a lex superior não logra colmatar diretamente as lacunas surgidas. (...). Pode-se avançar um passo: Quando se cuidar de colisão de normas de diferente hierarquia, o princípio da lex superior afasta outras regras de colisão. A utilização de uma ou de outra regra de colisão poderia levar ao absurdo de permitir que a lei ordinária – enquanto lei especial ou posterior – afastasse a incidência da Constituição enquanto lei geral ou lex prior.”46 Conclusão bastante semelhante foi sustentada por Castro Nunes já nos idos de 1943: “Não contesto que a incompatibilidade se resolve numa revogação, o que resulta da anterioridade da norma. Mas perde-se de vista o outro elemento, a diversidade hierárquica das normas. “A teoria da ab-rogação das leis supõe normas da mesma autoridade. Quando se diz que a lei posterior revoga, ainda que tacitamente, a anterior, supõem-se no cotejo leis do mesmo nível. Mas se a questão está em saber se uma norma pode continuar a viger em face das regras ou princípios de uma Constituição, a solução negativa só é revogação por efeito daquela anterioridade; mas tem uma designação peculiar a esse desnível das normas, chama-se declaração de inconstitucionalidade.”47 Assim, há de se partir do princípio de que, em caso de colisão de normas de diferente hierarquia, o postulado da lex superior afasta outras regras de colisão.48 Do contrário chegar-se-ia ao absurdo, destacado por Ipsen, de que a lei ordinária, enquanto lei especial ou lex posterior, pudesse afastar a norma constitucional enquanto lex generalis ou lex prior.49 Um último argumento – não trazido à baila pelos defensores da tese que equipara, sob o prisma conceitual, a incompatibilidade originária ou superveniente da lei com a Constituição – extrai-se das regras disciplinadoras do recurso extraordinário no Direito Brasileiro. Nos termos do art. 102, III, “a”, “b” e “c”, da CF, o recurso extraordinário somente poderá ser admitido quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. Embora a doutrina e a jurisprudência não tenham dúvida em afirmar o cabimento de recurso extraordinário se se assevera a inconstitucionalidade da lei em face de Constituições anteriores, parece inequívoco que o constituinte concebeu esse instituto, fundamentalmente, para a defesa da Constituição atual. Tanto é que nos casos das alíneas “a” e “c” do art. 102, III, estabelece-se, expressamente, que o recurso será cabível quando a decisão contrariar a Constituição ou quando julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
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Ipsen. Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit… cit., pp. 162-164. Teoria e Prática do Poder Judiciário, pp. 602-603. 48 Cf. Ipsen. Rechtsfolgen der Verfassung, cit., p. 164. 49 Cf., a propósito, Pisen. Rechtsfolgen der Verfassung, cit., p. 164. 47
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É fácil ver que o constituinte não concebeu a contrariedade a esta Constituição, em qualquer de suas formas, inclusive no que concerne à aplicação de leis pré-constitucionais, como simples questão de direito intertemporal, pois do contrário despiciendo seria o recurso extraordinário. Da mesma forma, afirmar a validade de lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição não parece traduzir juízo de mera compatibilidade entre o direito ordinário e a Constituição, tendo em vista também o postulado da lex posterior. Essa conclusão resulta ainda mais evidente da cláusula contida no art. 102, III, “b”, que admite o recurso extraordinário contra decisão que declarar a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal. Significa dizer que qualquer juízo sobre a incompatibilidade entre a lei federal ou o tratado préconstitucional e a Constituição atual levado a efeito pela instância a quo é valorado pela Constituição como declaração de inconstitucionalidade, dando ensejo, por isso, ao recurso extraordinário. Tais reflexões permitem afirmar que, para os fins de controle de constitucionalidade incidenter tantum no âmbito do recurso extraordinário, não assume qualquer relevância o momento da edição da lei, configurando eventual contrariedade à Constituição atual questão de constitucionalidade, e não de mero conflito de normas a se resolver com aplicação do princípio da lex posterior. Diante de todos esses argumentos e considerando a razoabilidade e o significado para a segurança jurídica da tese que recomenda a extensão do controle abstrato de normas também ao direito préconstitucional, não se afigura despropositado cogitar-se da revisão da jurisprudência do STF sobre a matéria. Todavia, a lei que disciplina a argüição de descumprimento de preceito fundamental estabeleceu, expressamente, a possibilidade de exame da compatibilidade do direito pré-constitucional com norma da Constituição Federal. Assim, toda vez que se configurar controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito federal, estadual ou municipal anteriores à Constituição em face de preceito fundamental da Constituição, poderá qualquer dos legitimados para a proposição de ação direta de inconstitucionalidade propor argüição de descumprimento. Também essa solução vem colmatar um lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo STF com eficácia geral e efeito vinculante. O controle direto de constitucionalidade do direito municipal em face da Constituição Federal – A Constituição de 1988 autorizou o constituinte estadual a instituir o controle abstrato de normas do direito estadual e municipal em face da Constituição estadual. Subsistia, porém, ampla insegurança, em razão da falta de um mecanismo expedito de controle de constitucionalidade do direito municipal frente à Constituição Federal. Deve-se observar, outrossim, que, dada a estrutura diferenciada da Federação Brasileira, algumas entidades comunais tem importância idêntica, pelo menos do prisma econômico e social, à de muitas unidades federadas, o que conferia gravidade à ausência de controle normativo eficaz. No contexto da Revisão Constitucional de 1994 esforçou-se para superar, ainda que parcialmente, essa situação, adotando-se o chamado “incidente de inconstitucionalidade”, que haveria de ser suscitado perante o STF, em caso de dúvida ou controvérsia sobre a constitucionalidade de leis ou atos normativos federais, estaduais e municipais.50 A Lei n. 9.882, de 1999, veio, em boa hora, contribuir para a superação dessa lacuna, contemplando expressamente a possibilidade de controle de constitucionalidade do direito municipal no âmbito desse processo especial. Ao contrário do imaginado por alguns, não será necessário que o STF aprecie as questões constitucionais relativas ao direito de todos os Municípios. Nos casos relevantes, bastará que decida uma questão-padrão com força vinculante. 50
V. Relatoria da Revisão Constitucional, 1994, Pareceres Produzidos (Histórico), t. I, Parecer n. 27, pp. 312 e ss.
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Se entendermos, como parece recomendável, que o efeito vinculante abrange também os fundamentos determinantes da decisão, poderemos dizer, com tranqüilidade, que não apenas a lei objeto da declaração de inconstitucionalidade no Município “A” mas toda e qualquer lei municipal de idêntico teor não mais poderão ser aplicadas. Em outras palavras, se o STF afirmar, em um processo de argüição de descumprimento, que a Lei n. “X”, do Município de São Paulo, que prevê a instituição do IPTU, é inconstitucional, essa decisão terá efeito não apenas em relação a esse texto normativo, mas também em relação aos textos normativos de teor idêntico editados por todos os demais entes comunais51. Pedido de declaração de constitucionalidade (ação declaratória) do direito estadual e municipal e argüição de descumprimento – A Lei n. 9.882, de 1999, previu, expressamente, a possibilidade de controle de constitucionalidade do direito estadual e do direito municipal no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental. Poderá ocorrer, assim, a formulação de pleitos com objetivo de obter a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade toda vez que da controvérsia judicial instaurada possa resultar sério prejuízo à aplicação da norma, com possível lesão a preceito fundamental da Constituição. De certa forma, a instituição da argüição de descumprimento de preceito fundamental completa o quadro das “ações declaratórias”, ao permitir que não apenas o direito federal mas também o direito estadual e municipal possam ser objeto de pedido de declaração de constitucionalidade. A lesão a preceito decorrente de mera interpretação judicial – Pode ocorrer lesão a preceito fundamental fundada em simples interpretação judicial do texto constitucional. Nesses casos a controvérsia não tem por base a legitimidade ou não de uma lei ou de um ato normativo, mas se assenta simplesmente na legitimidade ou não de uma dada interpretação constitucional. No âmbito do recurso extraordinário essa situação apresenta-se como um caso de decisão judicial que contraria diretamente a Constituição (art. 102, III, “a”). Não parece haver dúvida de que, diante dos termos amplos do art. 1o da Lei n. 9.882, de 1999, essa hipótese poderá ser objeto de argüição de descumprimento – lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público –, até porque se cuida de uma situação trivial no âmbito de controle de constitucionalidade difuso. Assim, o ato judicial de interpretação direta de um preceito fundamental poderá conter uma violação da norma constitucional. Nessa hipótese caberá a propositura da argüição de descumprimento para afastar a lesão a preceito fundamental resultante desse ato judicial do Poder Público, nos termos do art. 1o da Lei n. 9.882, de 1999. Neste passo vislumbra-se, de lege ferenda, a possibilidade de conjugação dos institutos da argüição de descumprimento e do recurso extraordinário. Assim, o legislador poderia atribuir ao recorrente no recurso extraordinário o direito de propor simultaneamente a argüição, devolvendo ao STF a possibilidade de apreciar a controvérsia posta exclusivamente no recurso ou também na ação especial. Contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial sem base legal (ou fundada em falsa base legal) – Problema igualmente relevante coloca-se em relação às decisões de única ou de última instância que, por falta de fundamento legal, acabam por lesar relevantes princípios da ordem constitucional. Uma decisão judicial que, sem fundamento legal, afete situação individual revela-se igualmente contrária à ordem constitucional, pelo menos ao direito subsidiário da liberdade de ação (Auffang51
Cf. infra, 8a. parte, Controle incidental de normas, item “a suspensão de execução da lei pelo Senado e mutação constitucional”.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes grundrecht).52 Se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os direitos fundamentais vinculam todos os Poderes e que a decisão judicial deve observar a Constituição e a lei, não é difícil compreender que a decisão judicial que se revele desprovida de base legal afronta algum direito individual específico, pelo menos o princípio da legalidade. A propósito, assinalou a Corte Constitucional alemã: “na interpretação do direito ordinário, especialmente dos conceitos gerais indeterminados (Generalklausel), devem os tribunais levar em conta os parâmetros fixados na Lei Fundamental. Se o tribunal não observa esses parâmetros, então ele acaba por ferir a norma fundamental que deixou de observar; nesse caso, o julgado deve ser cassado no processo de recurso constitucional”.53 Não há dúvida de que essa orientação prepara algumas dificuldades, podendo converter a Corte Constitucional em autêntico tribunal de revisão. É que, se a lei deve ser aferida em face de toda a Constituição, as decisões hão de ter sua legitimidade verificada em face da Constituição e de toda a ordem jurídica. Se se admitisse que toda decisão contrária ao direito ordinário é uma decisão inconstitucional, ter-se-ia de acolher, igualmente, todo e qualquer recurso constitucional interposto contra decisão judicial ilegal.54 Enquanto essa orientação prevalece em relação à leis inconstitucionais, não se adota o mesmo entendimento no que concerne às decisões judiciais. Por essas razões, procura o Tribunal formular um critério que limita a impugnação das decisões judiciais mediante recurso constitucional. Sua admissibilidade dependeria, fundamentalmente, da demonstração de que, na interpretação e aplicação do Direito, o juiz desconsiderou por completo ou essencialmente a influência dos direitos fundamentais, de que a decisão se revela grosseira e manifestamente arbitrária na interpretação e aplicação do direito ordinário ou, ainda, de que se ultrapassaram os limites da construção jurisprudencial.55 Não raras vezes observa a Corte Constitucional que determinada decisão judicial afigura-se insustentável porque assente em interpretação objetivamente arbitrária da norma legal.56 Assim, uma decisão que, v.g., amplia o sentido de um texto normativo penal para abranger uma dada conduta é considerada inconstitucional, por afronta ao princípio nullum crimen nulla poena sine lege (Lei Fundamental alemã, art. 103, II). Essa concepção da Corte Constitucional levou à formulação de uma teoria sobre os graus ou sobre a intensidade da restrição imposta aos direitos fundamentais (Stufentheorie), que admite uma aferição de constitucionalidade tanto mais intensa quanto maior for o grau de intervenção no âmbito de proteção dos direitos fundamentais.57 Embora o modelo de controle de constitucionalidade exercido pelo Bundesverfassungsgericht revele especificidades decorrentes sobretudo do sistema concentrado, é certo que a idéia de que a nãoobservância do direito ordinário pode configurar uma afronta ao próprio direito constitucional tem aplicação também entre nós. Essa conclusão revela-se tanto mais plausível se se considera que, tal como a Administração, o Poder Judiciário está vinculado à Constituição e às leis (CF, art. 5o, § 1o). Certamente afigurava-se extremamente difícil a aplicação desse entendimento, entre nós, no âmbito do recurso extraordinário. O caráter marcadamente individual da impugnação, a fragmentariedade das teses apresentadas nesse processo, a exigência estrita de prequestionamento, 52
Schlaich. Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 108. Verfassungsbeschwerde (BVerfGE 7/198 (207); 12/113 (124); 13/318 (325), 18/85 (92 e ss.); cf., também, Rüdiger Zuck, Das Recht der Verfassungsbeschwerde, 2a ed., Munique, 1988, p. 220. 54 Schlaich. Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 109. 55 Cf., sobre o assunto, Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit.,p. 109. 56 BVerfGE 64/389 (394). 57 Zuck, Rüdiger. Das Recht der Verfassungsbeschwerde, 2.ed., Munique, 1988, p. 221. 53
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contribuíam para dificultar a aplicação da orientação acima desenvolvida no âmbito do recurso extraordinário. A argüição de descumprimento de preceito fundamental vem libertar dessas amarras o questionamento da decisão judicial concreta. Omissão legislativa no processo de controle abstrato de normas e na argüição de descumprimento de preceito fundamental – Tal como vem sendo amplamente reconhecido, configura-se omissão legislativa não apenas quando o órgão legislativo não cumpre o seu dever, mas também quando o satisfaz de forma incompleta. Nesses casos – que configuram, em termos numéricos, a mais significativa categoria de omissão na jurisprudência da Corte Constitucional alemã58 – é de se admitir tanto um controle principal, ou direto, como um controle incidental, uma vez que existe, aqui, norma que pode ser objeto de exame judicial.59 Embora a omissão do legislador não possa ser, enquanto tal, objeto do controle abstrato de normas,60 não se deve excluir a possibilidade de que essa omissão venha a ser examinada no controle de normas. Dado que no caso de uma omissão parcial há uma conduta positiva, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade, em princípio, da aferição da legitimidade do ato defeituoso ou incompleto no processo de controle de normas, ainda que abstrato.61 Tem-se, pois, aqui, uma relativa mas inequívoca fungibilidade entre a ação de inconstitucionalidade – direta ou no contexto da argüição de descumprimento – e o processo de controle abstrato da omissão, uma vez que as duas espécies – o controle de normas e o controle da omissão – acabam por ter, formal e substancialmente, o mesmo objeto, isto é, a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompletude. Ressalte-se que o problema do controle da omissão não decorre propriamente do pedido, até porque, em um ou em outro caso, tem-se sempre um pedido de declaração de inconstitucionalidade. Tratando-se de omissão a própria norma incompleta ou defeituosa há de ser suscetível de impugnação na ação direta de inconstitucionalidade, porque é de uma norma alegadamente inconstitucional que se cuida, ainda que a causa da inconstitucionalidade possa residir na sua incompletude. O art. 10 da Lei n. 9.882, de 1999, ao estatuir que o STF fixará as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental vulnerado, abre uma nova perspectiva, não por criar uma nova via processual própria, mas justamente por fornecer suporte legal direto ao desenvolvimento de técnicas que permitam superar o estado de inconstitucionalidade decorrente da omissão. Nesse sentido, o STF dividiu-se, literalmente, a propósito do conhecimento ou não da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 4, movida contra a MP n. 2.019, de 2000, que fixou o valor do salário mínimo: cinco Ministros entenderam admissível a ação (Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ilmar Galvão e Carlos Velloso) e cinco consideraram-na inadmissível (Octávio Gallotti, Nélson Jobim, Maurício Corrêa, Sydney Sanches e Moreira Alves), ficando o desenlace da controvérsia confiado ao voto do Min. Néri da Silveira.62 O Controle do ato regulamentar – Sobre o ato regulamentar objeto da argüição de descumprimento examinar as considerações a propósito do preceito fundamental e princípio da legalidade (infra, “Preceito fundamental e princípio da legalidade: a lesão a preceito fundamental decorrente de ato regulamentar”). 58
BVerfGE 15/46 (76); 22/329 (362); 23/1 (10); 25/101 (110); 32/365 (372); 47/1 (33); 52/369 (379). Cf., a propósito, Gusy, Christoph. Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, Berlim, 1985, p. 152, nota 34. 60 Friesenhahn, Ernst. Die Verfassungsgerichtsbarkeit in der Bundesrepublik Deutschland, Köln, 1963, p. 65. 61 Gusy, Parlamentarischer Gesetzgeber ,cit., p. 152. 62 ADPF n. 4, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJU 1.8.2000. 59
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4. Parâmetro de controle Considerações preliminares – É muito difícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique o processo e julgamento da argüição de descumprimento. Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional. Assim, ninguém poderá negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias individuais (art. 5o, dentre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4o, da CF: o princípio federativo, a separação de Poderes o voto direito universal e secreto. Por outro lado, a própria Constituição explicita os chamados “princípios sensíveis”, cuja violação pode dar ensejo à decretação de intervenção federal nos Estados-membros (art. 34, VII). É fácil de ver que a amplitude conferida às cláusulas pétreas e a idéia de unidade de Constituição (Einheit der Verfassung) acabam por colocar parte significativa da Constituição sob a proteção dessas garantias. Tal tendência não exclui a possibilidade de um engessamento da ordem constitucional, obstando à introdução de qualquer mudança de maior significado.63 Daí afirmar-se, correntemente, que tais cláusulas hão de ser interpretadas de forma restritiva. Essa afirmação simplista, ao invés de solver o problema, pode agravá-lo, pois a tendência detectada atua no sentido não de uma interpretação restritiva das cláusulas pétreas, mas de uma interpretação restritiva dos próprios princípios por elas protegidos. Essa via, ao invés de permitir um fortalecimento dos princípios constitucionais contemplados nas garantias de eternidade, como pretendido pelo constituinte, acarreta, efetivamente, seu enfraquecimento. Assim, parece recomendável que eventual interpretação restritiva se refira à própria garantia de eternidade sem afetar os princípios por ela protegidos.64 Por isso, após reconhecer a possibilidade de que se confira uma interpretação ao art. 79, III, da Lei Fundamental que não leve nem ao engessamento da ordem constitucional, nem à completa nulificação de sua força normativa, afirma Bryde que essa tarefa é prenhe de dificuldades: “Essas dificuldades residem não apenas na natureza assaz aberta e dependente de concretização dos princípios constitucionais, mas também na relação desses princípios com as concretizações que eles acabaram por encontrar na Constituição. Se parece obrigatória a conclusão de que o art. 79, III, da Lei Fundamental não abarcou todas as possíveis concretizações no seu âmbito normativo, não se afigura menos certo que esses princípios seriam despidos de conteúdo se não levassem em conta essas concretizações. Isso se aplica sobretudo porque o constituinte se esforçou por realizar, ele próprio, os princípios básicos de sua obra. O princípio da dignidade humana está protegido tão amplamente fora do âmbito do art. 1o, que o significado da disposição nele contida acabou reduzido a uma questão secundária (defesa da honra), que, obviamente, não é objeto da garantia de eternidade prevista no art. 79, III. Ainda que a referência ao 1o não se estenda, por força do disposto no art. 1o, III, a toda a ordem constitucional, tem-se de admitir que o postulado da dignidade humana protegido no art. 79, III, não se realiza sem contemplar outros direitos fundamentais. Idêntico raciocínio há de se desenvolver em relação a outros princípios referidos no art. 79, III. Para o Estado de Direito da República Federal da Alemanha afigura-se mais relevante o art. 19, IV (garantia da proteção judiciária), do que o princípio da proibição de lei retroativa que a Corte Constitucional extraiu do art. 20. E, fora do âmbito do direito eleitoral, dos direitos dos partidos políticos e dos chamados direitos fundamentais de índole política,
63
Cf. Bryde, Otto-Brun, Verfassungsengsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Baden-Baden, 1982, p. 244. 64 Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 244.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes não há limite para a revisão constitucional do princípio da democracia”.65 Essas assertivas têm a virtude de demonstrar que o efetivo conteúdo das garantias de eternidade somente será obtido mediante esforço hermenêutico. Somente essa atividade poderá revelar os princípios constitucionais que, ainda que não contemplados expressamente nas cláusulas pétreas, guardam estreita vinculação com os princípios por elas protegidos e estão, por isso, cobertos pela garantia de imutabilidade que delas dimana. Tal como enunciado normalmente nas chamadas “cláusulas pétreas”, os princípios merecedores de proteção parecem despidos de conteúdo específico. Que significa, efetivamente, “separação de Poderes” ou “forma federativa”? Que é um “Estado de Direito Democrático”? Que significa “proteção da dignidade humana”? Essas indagações somente podem ser respondidas, adequadamente, no contexto de determinado sistema constitucional. É o exame sistemático das disposições constitucionais integrantes do modelo constitucional que permitirá explicitar o conteúdo de determinado princípio. Ao se deparar com alegação de afronta ao princípio da divisão de Poderes de Constituição estadual em face dos chamados “princípios sensíveis” (representação interventiva), assentou o notável Castro Nunes lição que, certamente, se aplica à interpretação das cláusulas pétreas: “(...). Os casos de intervenção prefigurados nessa enumeração se enunciam por declarações de princípios, comportando o que possa comportar cada um desses princípios como dados doutrinários, que são conhecidos na exposição do direito público. E por isso mesmo ficou reservado o seu exame, do ponto de vista do conteúdo e da extensão e da sua correlação com outras disposições constitucionais, ao controle judicial a cargo do Supremo Tribunal Federal. Quero dizer com estas palavras que a enumeração é limitativa como enumeração. (...). A enumeração é taxativa, é limitativa, é restritiva, e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um desses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo e delimitado na sua extensão. Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas no sentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderá estar limitado, comportando necessariamente a exploração do conteúdo e fixação das características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo a delimitação do que possa ser consentido ou proibido aos Estados”.66 Essa orientação, consagrada pelo STF para os chamados “princípios sensíveis”, há de se aplicar à concretização das cláusulas pétreas e, também, dos chamados “preceitos fundamentais”. É o estudo da ordem constitucional no seu contexto normativo e nas suas relações de interdependência que permite identificar as disposições essenciais para a preservação dos princípio basilares dos preceitos fundamentais em um determinado sistema. Tal como ensina J. J. Gomes Canotilho em relação à limitação do poder de revisão, a identificação do preceito fundamental não pode divorciar-se das conexões de sentido captadas do texto constitucional, fazendo-se mister que os limites materiais operem como verdadeiros limites textuais implícitos.67 Destarte, um juízo mais ou menos seguro sobre a lesão de preceito fundamental consistente nos princípios da divisão de Poderes, da forma federativa do Estado ou dos direitos e garantias individuais exige, preliminarmente, a identificação do conteúdo dessas categorias na ordem constitucional e, especialmente, das suas relações de interdependência. Nessa linha de entendimento, a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio. Tendo em vista as interconexões e interdependências dos princípios e regras, talvez não seja recomendável proceder-se a uma distinção entre essas duas categorias, fixando-se um conceito extensivo de preceito fundamental, abrangente das normas básicas contidas no texto constitucional. 65
Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 245. Repr. n. 94, Rel. Min. Castro Nunes, Archivo Judiciario 85/31 (34-35), 1947. 67 Canotilho. Direito Constitucional, cit., p. 1.136. 66
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Preceito fundamental e princípio da legalidade: a lesão a preceito fundamental decorrente de ato regulamentar – A Constituição Federal de 1988 estabelece ser admissível recurso extraordinário quando a decisão recorrida contrariar dispositivo desta Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face do texto constitucional. Assim, ao contrário do que se verifica em outras ordens constitucionais, que limitam, muitas vezes, o recurso constitucional aos casos de afronta aos direitos fundamentais, optou o constituinte brasileiro por admitir o cabimento do recurso extraordinário contra qualquer decisão que, em única ou última instância, contrariar a Constituição. Portanto, a admissibilidade do recurso constitucional não está limitada, em tese, a determinados parâmetros constitucionais, como é o caso da Verfassungsbeschwerde na Alemanha (Lei Fundamental, art. 93, n. 4), destinada, basicamente, à defesa dos direitos fundamentais. Assinale-se, porém, que mesmo nos sistemas que admitem o recurso constitucional apenas com base na alegação de ofensa aos direitos fundamentais surgem mecanismos ou técnicas que acabam por estabelecer uma ponte entre os direitos fundamentais e todo o sistema constitucional, reconhecendo-se que a lei ou ato normativo que afronta determinada disposição do direito constitucional objetivo ofende, ipso jure, os direitos individuais, seja no que se refere à liberdade de ação, seja no que diz respeito ao princípio da reserva legal. A Corte Constitucional alemã apreciou pela primeira vez a questão no chamado Elfes-Urteil, de 16.1.57, deixando assente que uma norma jurídica lesa a liberdade de ação (Handlungsfreiheit) se contraria disposições ou princípios constitucionais, tanto no que se refere ao aspecto formal quanto no que diz respeito ao aspecto material.68 No referido julgado explicitou a Corte alemã orientação que seria repetida e aperfeiçoada em decisões posteriores: “De tudo o que se afirmou, resulta que uma norma jurídica somente pode restringir, eficazmente, o âmbito da liberdade individual se corresponder às exigências estabelecidas pela ordem constitucional. Do prisma processual, significa dizer: todos podem sustentar, na via do recurso constitucional, que uma lei que estabelece restrição à liberdade individual não integra a ordem constitucional, porque afronta, formal ou materialmente, disposições ou princípios constitucionais; (...)” (Lei Fundamental alemã, art. 2, I).69 Essa decisão permitiu que o Bundesverfassungsgericht apreciasse na via excepcional da Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional) a alegação de afronta não apenas aos direitos fundamentais, mas a qualquer norma ou princípio constitucional. É que, como observa Hans-Jürgen Papier, qualquer inconstitucionalidade de lei restritiva de direito configura, também, afronta aos direitos fundamentais: “O significado dos direitos fundamentais nos termos da Lei Fundamental não se limita mais exclusivamente a garantir a legalidade (Gesetzmässigkeit) das restrições impostas à liberdade individual pelo Executivo e pelo Judiciário. Mediante a vinculação do Poder Legislativo aos direitos fundamentais não se suprime, mas se reforça e se completa a função de proteção dos direitos fundamentais. Administração e Justiça necessitam para a intervenção nos direitos fundamentais de uma dupla autorização. Além da autorização legal (gesetzliche Ermächtigung) para a intervenção, deve-se exigir também uma autorização constitucional para a limitação dos direitos fundamentais. Se os direitos fundamentais da Lei Fundamental não se exaurem na legalidade do segundo e do terceiro Poder, surge, ao lado da reserva legal, a idéia de uma reserva da Constituição. Então afigura-se lícito admitir que, de uma perspectiva jurídico-material, os direitos fundamentais protegem contra restrições ilegais ou contra limitações sem fundamento legal levadas a efeito pelo Poder Executivo ou pelo Poder Judiciário. A legalidade da restrição ao direito de liberdade é uma condição de sua constitucionalidade; a violação à lei constitui uma afronta aos próprios direitos fundamentais”.70 68
BVerfGE 6/32 (36 e ss.; 41). BVerfGE 6/32 (33). 70 Papier, Hans-Jürgen. “Spezifisches 69
Verfassungsrecht’
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und
‘Einfaches
Recht’
als
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Orientação semelhante é enfatizada por Klaus Schlaich, ressaltando que também a incompatibilidade entre as normas regulamentares e a lei formal enseja a interposição de recurso constitucional sob alegação de afronta a um direito geral de liberdade.71 Tal como enunciado por Christian Pestalozza,72 configuram-se hipóteses de afronta ao direito geral de liberdade (Lei Fundamental alemã, art. 2o, I), ou a outra garantia constitucional expressa: – a não-observância pelo regulamento dos limites estabelecidos em lei (Lei Fundamental, art. 80, I);73 – a lei promulgada com inobservância das regras constitucionais de competência;74 – a lei que estabelece restrições incompatíveis com o princípio da proporcionalidade.75 Embora essa orientação pudesse suscitar alguma dúvida, especialmente no que se refere à conversão da relação lei/regulamento numa questão constitucional, é certo que tal entendimento parece ser o único adequado a evitar a flexibilização do princípio da legalidade, tanto sob a forma de postulado da supremacia da lei quanto sob a modalidade de princípio da reserva legal. Do contrário restaria praticamente esvaziado o significado do princípio da legalidade, enquanto princípio constitucional em relação à atividade regulamentar do Executivo. De fato, a Corte Constitucional estaria impedida de conhecer de eventual alegação de afronta, sob o argumento da falta uma ofensa direta à Constituição. Especialmente no que diz respeito aos direitos individuais, não há como deixar de reconhecer que a legalidade da restrição aos direitos de liberdade é uma condição de sua constitucionalidade. Não há dúvida, igualmente, de que esse entendimento aplica-se ao nosso modelo constitucional, que consagra não apenas a legalidade como princípio fundamental (art. 5o, II), mas exige também que os regulamentos observem os limites estabelecidos pela lei (CF, art. 84, IV).
5. Procedimento Em suas linhas gerais, a Lei n. 9.882, de 1999, adotou procedimento similar ao consagrado pela Lei n. 9.868, de 1999. Requisitos da petição inicial e admissibilidade das ações – Tal como a Lei n. 9.868, de 1999, a Lei n. 9.882, de 1999, estabelece que a petição inicial deverá conter (a) a indicação do preceito fundamental que se considera violado, (b) a indicação do ato questionado, (c) a prova da violação do preceito fundamental, (d) o pedido com suas especificações e, se for o caso, (e) a demonstração da controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental questionado. Mais ainda do que nas ações diretas de inconstitucionalidade, a indicação do preceito fundamental violado assume peculiar significado na argüição de descumprimento. Não será suficiente a simples indicação de uma possível afronta à Constituição, devendo caracterizar-se, fundamentadamente, a violação de um princípio ou elemento básico (sobre o assunto cf., supra, “Parâmetro de controle”). Também aqui se faz indispensável fundamentar o pedido em relação a cada uma das impugnações. Tal como nas ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, deverá o
Argumentationsformal des Bundesverfassungsgerichts”, in Bundesverfassungsgericht un Gundgesetz, v. I, Tübingen, 1976, p. 432 (433-434). 71 Schlaich. Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 108. 72 Verfassungsprozessrecht, 2a ed., Munique, 1982, pp. 105-106. 73
BVerfGE 41/88 (116); 42/374 (385). BVerfGE 38/288 (298 e ss.); 40/56 (60); 42/20 (27). 75 BVerfGE 38/288 (298). 74
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes legitimado formular precisamente o pedido, fazendo as devidas especificações.76 Nas ações propostas em razão de processos que tramitam nas diversas instâncias – estes deverão ser os mais relevantes – o requerente deverá demonstrar a existência de controvérsia judicial ou controvérsia jurídica relevante (cf., supra, “Controvérsia judicial ou jurídica nas ações de caráter incidental”). Sobre o assunto aplicam-se as considerações desenvolvidas a propósito de semelhante exigência quanto ao procedimento da ação declaratória (cf., supra, Sexta Parte, relativa à ação direta de inconstitucionalidade e à ação declaratória de constitucionalidade). O parágrafo único do art. 3o da Lei n. 9.882, de 1999, estabelece que ao autor da argüição de descumprimento de preceito fundamental cabe apresentar, juntamente com a petição inicial em duas vias, cópias do ato questionado e documentos necessários à comprovação do alegado. Aludida disposição prevê, também, a necessidade de serem as petições acompanhadas, quando subscritas por advogado, de instrumento de procuração. Tal como já foi destacado em relação à ação direta de inconstitucionalidade, afigura-se recomendável que a procuração contemple poderes específicos para impugnar as normas atacadas na inicial.77 Nos termos da Lei n. 9.882, de 1999, a petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, em caso de manifesta inadequação da ação, na hipótese de não atendimento de qualquer dos requisitos legais ou, ainda, em caso de inépcia da inicial (art. 4o, caput). Da decisão de indeferimento caberá agravo no prazo de cinco dias (art. 4o, § 2o). Ao contrário da Lei n. 9.868, de 1999 (arts. 5o e 16), não se prevê na disciplina da ação de descumprimento de preceito fundamental proibição expressa de desistência. Tendo em vista, porém, o caráter igualmente objetivo desse processo e seu manejo na defesa de interesse público geral, é provável que o STF venha a adotar entendimento semelhante em relação a essa ação especial. Intervenção de terceiros e amicus curiae – A Lei n. 9.882, de 1999, faculta ao relator a possibilidade de ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição (art. 6o, § 1o). Outorga-se, assim, às partes nos processos subjetivos um limitado direito de participação no processo objetivo submetido à apreciação do STF. É que, talvez em decorrência do universo demasiado amplo dos possíveis interessados, tenha pretendido o legislador ordinário outorgar ao relator alguma forma de controle quanto ao direito de participação dos milhares de interessados no processo. Em face do caráter objetivo do processo, é fundamental que não só os representantes de potenciais interessados nos processos que deram origem à ação de descumprimento de preceito fundamental mas também os legitimados para propor a ação possam exercer direito de manifestação. Independentemente das cautelas que hão de ser tomadas para não inviabilizar o processo, deve-se anotar que tudo recomenda que, tal como na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, a argüição de descumprimento de preceito fundamental assuma, igualmente, uma feição pluralista, com a participação de amicus curiae. Informações e manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República – O desenvolvimento do processo de ação de descumprimento de preceito fundamental também está vinculado à existência ou não de pedido de liminar.78 Se não houver pedido de liminar, deverá o relator solicitar informações às autoridades responsáveis pelo ato questionado, que disporão do prazo de 10 dias para oferecê-las (art. 6o, caput). Havendo pedido de liminar, poderá o relator ouvir as autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias (art. 5o, § 2o). Após a decisão haverá novo pedido de informações, desta feita 76
Cf. Sexta Parte, relativa à ação direta de inconstitucionalidade e à ação declaratória de constitucionalidade, no capítulo “Requisitos da petição inicial e admissibilidade das ações”. 77 Cf., sobre o assunto, a ADIn n. 2.187, Rel. Min. Gallotti, Informativo STF 190. 78 Sobre a ação direta de inconstitucionalidade, cf. Sexta Parte, no cap. 4, “Informações e manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República”.
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relativas à própria controvérsia material (art. 6o). A Lei n. 9.882, de 1999, não obriga à audiência do Advogado-Geral da União acerca do ato impugnado, prevendo apenas, caso o relator entenda oportuno, a possibilidade de sua audiência em sede de liminar. Todavia, o próprio STF vem requerendo essa manifestação nos diversos processos sobre a legitimidade do direito estadual ou federal.79 A audiência do Ministério Público (Procurador-Geral da República) somente será obrigatória, após as informações, nas argüições que não forem por ele formuladas (art. 7o, parágrafo único). Apuração de questões fáticas e densificação de informações na ação de descumprimento de preceito fundamental – Na linha do estabelecido nos arts. 9o, § 1o, e 20, § 1o, da Lei n. 9.868, de 1999, que autorizam ao relator, após as manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos e pessoas com experiência e autoridade na matéria, a Lei n. 9.882, de 1999, prevê, igualmente, a possibilidade de o relator autorizar a audiência das partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos e determinar a realização de audiências públicas com experts (art. 6o, § 1o). Tem-se também aqui um processo estruturalmente aberto, que permitirá não só a participação dos interessados nas causas que, eventualmente, tenham dado ensejo à propositura da ação de descumprimento de preceito fundamental, mas também a manifestação de peritos e especialistas no tema. Aplica-se, fundamentalmente, a orientação adotada no processo de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade (cf. Sexta Parte, no cap. 4, “Apuração de questões fáticas no controle de constitucionalidade”).
6. Medida cautelar A Lei n. 9.882, de 1999, prevê a possibilidade de concessão de medida liminar na argüição de descumprimento, mediante decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal. Em caso de extrema urgência ou de perigo de lesão grave, ou ainda durante o período de recesso, a liminar poderá ser concedida pelo relator ad referendum do Tribunal Pleno (art. 5o e § 1o). Diferentemente do estabelecido na Lei n. 9.868, de 1999, não se revela obrigatória a audiência da autoridade responsável pela edição do ato antes da concessão da liminar em argüição de descumprimento. A lei autoriza, porém, o relator a deferir a audiência tanto da autoridade responsável pela edição do ato quanto do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da União (art. 5o, § 2o). Talvez fosse recomendável, tendo em vista a semelhança de situações, que o relator adotasse condutas idênticas nas duas espécies de procedimento, determinando-se a audiência dos responsáveis pela edição do ato impugnado antes da decisão sobre a liminar requerida. Além da possibilidade de decretar a suspensão direta do ato impugnado, admite-se na cautelar prevista para a argüição de descumprimento a determinação de que os juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais ou de qualquer outra medida que guarde 79
Como se revela possível a apreciação de inconstitucionalidade em tese de norma legal ou ato normativo, seria legítimo sustentar a necessidade de audiência do Advogado-Geral da União como decorrência do § 3o do art. 103 da CF. Referido dispositivo constitucional, entretanto, não obriga à defesa do ato, como um dever inexorável, mas determina apenas a necessidade de manifestação. Sustentar, por exemplo, a obrigatoriedade de defesa de ato impugnado, havendo decisão anterior da Suprema Corte, representaria anomalia institucional incompatível com a efetividade das normas constitucionais (sobre o assunto, v. artigo publicado na Revista Justiça e Cidadania 11, ano II, janeiro de 2001, “O Advogado-Geral da União e a ação direta de inconstitucionalidade”, Gilmar F. Mendes).
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relação com a matéria discutida na ação (art. 5o, § 3o). Confere-se, assim, ao Tribunal um poder cautelar expressivo, impeditivo da consolidação de situações contra a possível decisão definitiva que venha a tomar. Nesse aspecto, a cautelar da ação de descumprimento de preceito fundamental assemelha-se à disciplina conferida pela Lei n. 9.868, de 1999, à medida liminar na ação declaratória de constitucionalidade (art. 21). Dessa forma, a liminar passa a ser também um instrumento de economia processual e de uniformização da orientação jurisprudencial. Na ADPF nº 33 – caso sobre a vinculação do quadro de salários das autarquias ao salário mínimo - o Governador do Estado do Pará, com fundamento no art. 2o, inciso I da Lei no 9.882, de 03.12.1999, e arts. 102, § 1o e 103, inciso V da Constituição, apresentou argüição de descumprimento de preceito fundamental que tinha por objeto impugnar o art. 34 do Regulamento de Pessoal do Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP), com o fim de fazer cessar lesão ao princípio federativo e ao direito social ao salário mínimo. Por decisão monocrática foi concedida liminar para determinar a suspensão dos julgamentos com base no ato normativo impugnado, bem como os efeitos das decisões judiciais proferidas sobre a matéria. Por unanimidade, o plenário do Tribunal referendou a decisão referida.80 Na ADPF nº 54 – caso do aborto de feto anencéfalo - foi concedida, em 02.08.2004, liminar requerida para, além de determinar o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, reconhecer o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos. Na sessão de 20.10.2004 o Tribunal negou referendo à liminar concedida81.
7. As decisões do Supremo Tribunal Federal na argüição de descumprimento Procedimento de tomada de decisões – A decisão sobre a argüição de descumprimento somente será tomada se presentes pelo menos dois terços dos Ministros (oito Ministros). Embora o texto seja silente, também aqui se há de aplicar a regra do art. 23 da Lei n. 9.868, de 1999, segundo a qual a decisão de procedência ou improcedência haverá de ser tomada pela maioria absoluta dos membros do Tribunal. Em reforço desse argumento milita a disposição contida na Lei n. 9.882, de 1999, que exige seja a cautelar deferida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal (art. 5o, caput). Não se pode adotar para a decisão definitiva critério menos rigoroso do que aquele fixado para a liminar. Julgada a ação, deverá ser feita comunicação às autoridades responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se, se for o caso, as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental. O Presidente do Tribunal deve determinar o imediato cumprimento da decisão, publicando-se, dentro de 10 dias a contar do trânsito em julgado, sua parte dispositiva em seção especial do Diário de Justiça e do Diário Oficial da União (art. 10, §§ 1o e 2o). Tal como a Lei n. 9.868, de 1999, também a Lei n. 9.882, de 1999 (art. 12), define-se claramente em relação à irrecorribilidade e à não-rescindibilidade da decisão proferida na argüição de descumprimento. Técnicas de decisão, efeitos da declaração de inconstitucionalidade, segurança e estabilidade das decisões – Tendo em vista o amplo objeto de impugnação no âmbito da argüição de descumprimento, o Tribunal, reconhecendo sua procedência ou improcedência, poderá declarar a legitimidade ou ilegitimidade do ato questionado. Se incidir sobre ato normativo adotar-se-ão as técnicas de decisão do controle de constitucionalidade abstrato. Nesse caso aplicam-se integralmente 80
ADPF nº 33, Rel. Min. Gilmar Mendes, cit. ADPF nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio, cit. Em sessão de 27.04.2005, suscitada questão de ordem, o Tribunal, por maioria, admitiu o cabimento da ADPF. A apreciação do mérito da ADPF, entretanto, ainda está pendente. 81
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as considerações desenvolvidas neste estudo a propósito das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade (cf., supra, Sexta Parte, no cap. 6, “Procedimento de tomada de decisões”). Incidindo, porém, sobre ato de efeito concreto (ato administrativo singular, sentença), o tribunal afirmará sua ilegitimidade. Pode ser que o ato singular questionado (v.g., uma decisão judicial) afirme a inconstitucionalidade de uma lei ou de uma dada aplicação ou interpretação do próprio texto constitucional. Nessa hipótese, reconhecida a procedência da ação de descumprimento de preceito fundamental, ter-se-á a declaração de ilegitimidade do ato questionado, com a afirmação da constitucionalidade da lei ou da aplicação constitucional discutida.82 A Lei n. 9.882, de 1999, reconhece igualmente a possibilidade de que por maioria de dois terços se declare a inconstitucionalidade da lei com eficácia ex nunc ou com efeito a partir do momento que venha a ser estabelecido pelo Tribunal (art. 11). Valem aqui as considerações expendidas sobre o art. 27 da Lei n. 9.868, de 1999.83 Assinale-se, ainda, que, nos termos da Lei n. 9.882, de 1999, a decisão (de mérito) proferida na ação de descumprimento de preceito fundamental terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (art. 10, § 3o).84 Quanto à eficácia erga omnes da decisão, não parece haver dúvida de que se cuida de um consectário da natureza objetiva do processo. Trata-se de um processo “sem partes”, no qual se discute amplamente a tutela do interesse público de forma geral. Tal como assinalado na Sexta Parte, cap. 8, “Segurança e estabilidade das decisões em controle abstrato de constitucionalidade”, se concebermos o efeito vinculante como atributo da própria jurisdição constitucional não há dificuldade em reconhecermos legitimidade à decisão legislativa que outorga efeito vinculante a outras decisões constitucionais relevantes tomadas pelo STF.
82
Exemplificativa da submissão de controvérsia constitucional oriunda de ato judicial é a questão posta na ADPF n. 6-8/800 (Rel. Min. Celso de Mello), oferecida pelo Presidente da República. Cuida-se de controvérsia fundada na orientação jurisprudencial do TRF da 2a Região (RJ) que fixou em súmula (n. 17) interpretação do art. 58 do ADCT incompatível com a firme e reiterada jurisprudência do STF sobre o tema – critério de reajuste de benefício previdenciário. Na ação solicitou-se ao STF a suspensão liminar de todos os processos, sobre a matéria, em curso no TRF da 2a Região, bem como dos efeitos de decisões ainda não transitadas em julgado, nos termos do art. 5o, § 3o, da Lei n. 9.882, de 1999, e, ainda, no mérito, a procedência do pedido, impondo-se ao TRF as condições e o modo de interpretação e aplicação do art. 58 do ADCT, com a decorrente eficácia erga omnes e efeito vinculante. Em abril de 2001 o processo ainda pendia do exame da liminar requerida. 83 Cf., a propósito, Sexta Parte, cap. 7, “Efeitos atribuíveis à declaração de inconstitucionalidade”. 84 Na ADIN n. 2.231, o Min. Relator, Néri da Silveira, reconheceu a constitucionalidade do efeito vinculante, previsto na Lei n. 9.882/99, em voto no sentido de indeferir a liminar. A ação, entretanto, pende de julgamento.
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SEXTA PARTE
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE E AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE
1. Introdução: formação histórica do controle abstrato de normas. 2. Legitimidade. 3. Objeto. 4. Parâmetro de Controle 5. Procedimento. 6. Medida cautelar. 7. As decisões do Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas. 8. Efeitos atribuíveis à declaração de inconstitucionalidade. 9. Segurança e estabilidade das decisões em controle abstrato de constitucionalidade.
1. Introdução: formação histórica do controle abstrato de normas A EC n. 16 à Constituição de 1946, de 26.11.65, instituiu, ao lado da representação interventiva, e nos mesmos moldes, o controle abstrato de normas estaduais e federais. A reforma realizada, fruto dos estudos desenvolvidos na Comissão composta por Orozimbo Nonato, Prado Kelly (Relator), Dario de Almeida Magalhães, Frederico Marques e Colombo de Souza, visava a imprimir novos rumos à estrutura do Poder Judiciário. Parte das mudanças recomendadas já havia sido introduzida pelo Ato Institucional n. 2, de 27.10.65. A Exposição de Motivos encaminhada pelo Ministro da Justiça, Dr. Juracy Magalhães, ao Presidente da República ressaltava que “a atenção dos reformadores tem-se detido enfaticamente na sobrecarga imposta ao Supremo Tribunal e ao Tribunal de Recursos”. Não obstante, o próprio STF houve por bem sugerir a adoção de dois novos institutos de legitimidade constitucional, tal como descrito na referida Exposição de Motivos: “a) uma representação de inconstitucionalidade de lei federal, em tese, de exclusiva iniciativa do Procurador-Geral da República, à semelhança do que existe para o Direito estadual (art. 8o, parágrafo único, da Constituição Federal); “b) uma prejudicial de inconstitucionalidade, a ser suscitada, exclusivamente, pelo próprio Supremo Tribunal Federal ou pelo Procurador-Geral da República, em qualquer processo em curso perante outro juízo.
Publicado em: Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança. 28a. edição em 2005. Sexta Parte, p.313-447. A Sexta, a Sétima, a Oitava e a Nona Parte deste livro é da autoria exclusiva do Professor Gilmar Ferreira Mendes. O autor agradece a colaboração prestimosa de Valéria Porto e Daniel Augusto Vila-Nova Gomes.
137
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes “A representação, limitada em sua iniciativa, tem o mérito de facultar desde a definição da ‘controvérsia constitucional sobre leis novas, com economia para as partes, formando precedente que orientará o julgamento dos processos congêneres’. Afeiçoa-se, no rito, às representações de que cuida o citado preceito constitucional para forçar o cumprimento, pelos Estados, dos princípios que integram a lista do inciso VII do art. 7o. De algum modo, a inovação, estendendo a vigilância às ‘leis federais em tese’, completa o sistema de pronto resguardo da Lei Básica, se ameaçada em seus mandamentos. “Já a prejudicial agora proposta, modalidade de avocatória, utilizável em qualquer causa, de qualquer instância, importaria em substituir aos juízos das mais diversas categorias a faculdade, que lhes pertence, no grau da sua jurisdição, de apreciar a conformidade de lei ou de ato com as cláusulas constitucionais. Ao ver da Comissão, avocatória só se explicaria para corrigir omissões de outros órgãos judiciários, se vigorasse entre nós, como vigora por exemplo na Itália, o privilégio de interpretação constitucional por uma Corte especializada, a ponto de se lhe remeter obrigatoriamente toda questão daquela natureza, levantada de ofício ou por uma das partes em qualquer processo, desde que o juiz ou tribunal não a repute manifestamente infundada. “Ao Direito italiano pedimos, todavia, uma formulação mais singela e mais eficiente do que a do art. 64 da nossa Constituição, para tornar explícito, a partir da declaração de ilegitimidade, o efeito erga omnes de decisões definitivas do Supremo Tribunal, poupando ao Senado o dever correlato de suspensão da lei ou do decreto – expediente consentâneo com as teorias de Direito Público em 1934, quando ingressou em nossa legislação, mas presentemente suplantada pela formulação contida no art. 136 do Estatuto de 1948: ‘Quando la Corte dichiara l’illegittimità costituzionale di una norma di legge o di atto avente forza di legge, la norma cessa di avere efficacia dal giorno sucessivo alla publicazione della decisione’.”1 Nos termos do Projeto de Emenda à Constituição, o art. 101, I, “k”, passava a ter a seguinte redação: “ k) a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”. E o art. 5o do Projeto acrescentava os seguintes parágrafos ao art. 101: “§ 1o. Incumbe ao Tribunal Pleno o julgamento das causas de competência originária (inciso I), das prejudiciais de inconstitucionalidade suscitadas pelas Turmas, dos recursos interpostos de decisões delas, se divergirem entre si na interpretação do Direito federal, bem como dos recursos ordinários nos crimes políticos (inciso II, ‘c’) e das revisões criminais (inciso IV). “§ 2o. Incumbe às Turmas o julgamento definitivo das matérias enumeradas nos incisos II, ‘a’ e ‘b’, e III deste artigo. “§ 3o. As disposições de lei ou ato de natureza normativa, consideradas inconstitucionais em decisão definitiva, perderão eficácia, a partir da declaração do Presidente do Supremo Tribunal Federal publicada no órgão oficial da União.” E o art. 64 da CF passava a ter a seguinte redação: “Art. 64. Incumbe ao Presidente do Senado Federal, perdida a eficácia de lei ou ato de natureza normativa (art. 101, § 3o), fazer 1
Brasil, Constituição (1946): Emendas, Emenda à Constituição de 1946, n. 16, Reforma do Poder Judiciário, Brasília, Câmara dos Deputados, 1968, p. 24.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes publicar no Diário Oficial e na Coleção das Leis, a conclusão do julgado que lhe for comunicado”. O parecer aprovado pela Comissão Mista, da lavra do deputado Tarso Dutra, referiu-se, especificamente, ao novo instituto de controle de constitucionalidade: “A letra ‘k’, propondo a representação, a cargo da Procuradoria-Geral da República, contra a inconstitucionalidade em tese da lei, constitui uma ampliação da faculdade consignada no parágrafo único do art. 8o, para tornar igualmente vulneráveis as leis federais por essa medida. Ao anotar-se a conveniência da modificação alvitrada na espécie, que assegurará, com a rapidez dos julgamentos sumários, uma maior inspeção jurisdicional da constitucionalidade das leis, não será inútil configurar o impróprio de uma redação que devia conferir à representação a idéia nítida de oposição à inconstitucionalidade, e o impreciso de uma referência a atos de natureza normativa de que o nosso sistema de poderes indelegáveis (art. 36, §§ 1o e 2o) conhece apenas uma exceção no § 2o do art. 123 da Constituição”.2 A proposta de alteração do disposto no art. 64 da CF, com a atribuição de eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF, foi rejeitada.3 Consagrou-se, todavia, o modelo abstrato de controle de constitucionalidade. A implantação do sistema de controle de constitucionalidade, com o objetivo precípuo de “preservar o ordenamento jurídico da intromissão de leis com ele inconviventes”,4 veio somar, aos mecanismos já existentes, um instrumento destinado a defender diretamente o sistema jurídico objetivo. Finalmente, não se deve olvidar que, no tocante ao controle de constitucionalidade da lei municipal, a EC n. 16 consagrou, no art. 124, XIII, regra que outorgava ao legislador a faculdade para “estabelecer processo de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Município em conflito com a Constituição do Estado”. A Constituição de 1967 não trouxe grandes inovações no sistema de controle de constitucionalidade. Manteve-se incólume o controle difuso. A ação direta de inconstitucionalidade subsistiu, tal como prevista na Constituição de 1946, com a EC n. 16/65. A representação para fins de intervenção, confiada ao Procurador-Geral da República, foi ampliada, com o objetivo de assegurar não só a observância dos chamados princípios sensíveis (art. 10, VII), mas também prover a execução de lei federal (art. 10, VI, primeira parte). A competência para suspender o ato estadual foi transferida para o Presidente da República (art. 11, § 2o). Preservou-se o controle de constitucionalidade in abstracto, tal como estabelecido pela EC n. 16/65 (art. 119, I, “l”). A Constituição de 1967 não incorporou a disposição da EC n. 16, que permitia a criação do processo de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato dos Municípios que contrariassem as Constituições dos Estados. A EC n. 1/69 previu, expressamente, o controle de constitucionalidade de lei 2
Brasil, Constituição (1946), cit., p. 67.
3
Brasil, Constituição (1946), cit., pp. 88-90.
4
Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 5a ed., São Paulo, Saraiva, 1982, p. 65.
139
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes municipal em face da Constituição estadual, para fins de intervenção no Município (art. 15, § 3o, “d”). A EC n. 7/77 introduziu, ao lado da representação de inconstitucionalidade, a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual, outorgando ao Procurador-Geral da República a legitimidade para provocar o pronunciamento do STF (art. 119, I, “e”). E, segundo a Exposição de Motivos apresentada ao Congresso Nacional, esse instituto deveria evitar a proliferação de demandas, com a fixação imediata da correta exegese da lei.5 Finalmente, deve-se assentar que a EC n. 7/77 pôs termo à controvérsia sobre a utilização de liminar em representação de inconstitucionalidade, reconhecendo, expressamente, a competência do STF para deferir pedido de cautelar formulado pelo Procurador-Geral da República (CF 1967/1969, art. 119, I, “p”).6 A Constituição de 1988 – A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao STF mediante processo de controle abstrato de normas. Convém assinalar que, tal como já observado por Anschütz ainda no regime de Weimar, toda vez que se outorga a um tribunal especial atribuição para decidir questões constitucionais limita-se, explícita ou implicitamente, a competência da jurisdição ordinária para apreciar tais controvérsias.7 Portanto, parece quase intuitivo que ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o STF no processo de controle abstrato de normas acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. Assim, se se cogitava no período anterior a 1988 de um modelo misto de controle de constitucionalidade, é certo que o forte acento residia, ainda, no amplo e dominante sistema difuso de controle. O controle direto continuava a ser algo acidental e episódico dentro do sistema difuso. A Constituição de 1988 alterou, de maneira radical, essa situação, conferindo ênfase não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que as questões constitucionais passam a ser veiculadas, fundamentalmente, mediante ação direta de inconstitucionalidade perante o STF, como indica a Tabela I abaixo:
5
Mensagem n. 81, de 1976, Diário do Congresso Nacional. O Texto Magno de 1988 não manteve esse instituto no ordenamento constitucional brasileiro.
6
A Constituição de 1988 manteve a competência do STF para conceder liminar na ação de inconstitucionalidade (art. 102, I, “p”).
7
Gerhard Anschütz, Verhandlungen des 34. Juristentags, v. II, Berlim e Leipzig, 1927, p. 208.
140
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
TABELA I - Ações Diretas de Inconstitucionalidade - Quadro Geral do Número de Processos instaurados no período de 1966 a 2004 Ano 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978
Process os 22 31 1 26 15 23 20 17 18 24 20 29
Ano 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991
Process os 15 40 42 37 26 55 70 81 114 202* 159 256 232
Ano
Process os 165 1992 162 1993 197 1994 211 1995 159 1996 206 1997 181 1998 189 1999 253 2000 210 2001 226 2002 288 2003 276 2004**
* a estatística considera as RPs e as ADIns (sendo 11 ADIns e 191 RPs) ** atualizada até 31.12.2004 (ADIn nº 3.382) Fontes: STF/PGR/AGU
Ressalte-se que essa alteração não se operou de forma ainda profunda porque o Supremo manteve a orientação anterior, que considerava inadmissível o ajuizamento de ação direta contra Direito pré-constitucional em face da nova Constituição. A ampla legitimação, a presteza e a celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, fazem com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle centrado. A particular conformação do processo de controle abstrato de normas confere-lhe, também, novo significado como instrumento federativo, permitindo a aferição da constitucionalidade das leis federais mediante requerimento de um governador do Estado, e a aferição da constitucionalidade das leis estaduais mediante requerimento do Presidente da República. A propositura da ação pelos partidos políticos com representação no Congresso Nacional concretiza, por outro lado, a idéia de defesa das minorias, uma vez que se assegura até às frações parlamentares menos representativas a possibilidade de argüir a inconstitucionalidade de lei. Observe-se que não são numericamente significativas as ações propostas pelas organizações partidárias, como indica a Tabela II:
141
Requerentes
256
1
29 52
10
101 63
-
-
-
1990
3 232
7
39 59
3
55 66
-
-
-
1991
2 165
4
25 21
4
47 62
-
-
-
1992
1 162
1
15 49
7
40 49
-
-
-
1993
1 197
1
28 64
3
33 67
-
-
-
1994
1 211
4
48 49
2
59 48
-
-
-
1995
6 159
2
47 59
8
25 12
-
-
-
1996
1 206
2
46 48
12
59 38
-
-
-
1997
3 181
1
41 73
8
28 27
-
-
-
1998
1 189
3
59 46
12
50 18
-
-
-
1999
2 253
4
75 64
19
68 21
-
-
-
2000
1 210
3
79 53
6
57 11
-
-
-
2001
Ações Diretas de Inconstitucionalidade Quadro Geral sobre os processos ajuizados no período de 1988 a 2004
* a estatística considera as RPs e as ADIns (sendo 11 ADIns e 191 RPs) ** atualizada até 31.12.2004 (ADIn nº 3.382) Fontes: STF/PGR/AGU
5 159
202
5
1
1
58 22
1 191
-
-
-
14 54
-
-
3 6
-
-
1988* 1989
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Presidente da República Mesa do Senado Federal Mesa da Câmara dos Deputados Governador de Estado Procurador-Geral da República Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil Partido Político Confederação Sindical ou Entidade de Classe Mesa da Assembléia Legislativa Outros Total Geral
142
1 226
3
60 44
15
95 8
-
-
-
2002
288
-
43 52
9
67 117
-
-
2003 ** -
5 276
-
41 78
7
53 92
-
-
-
2004
30 3.572
37
673 830
131
886 883
-
-
Total parcial -
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É verdade, porém, que muitos dos temas mais polêmicos submetidos ao STF no processo de controle abstrato foram trazidos à baila mediante iniciativa dos partidos políticos. Assim, a discussão sobre a constitucionalidade da EC n. 2/92, que antecipou o plebiscito sobre a forma e sistema de governo previsto no art. 2o do ADCT;8 o questionamento da legitimidade da lei do salário mínimo9; a controvérsia sobre a legitimidade do pagamento mediante precatório para os créditos de natureza alimentícia.10 Isto para não falar das diversas ações propostas contra a política econômica do Governo.11 Ao lado desta ampla legitimação para a provocação do controle abstrato de normas, cuidou o constituinte de instituir mecanismo (art. 5o, LXXI) para a tutela de direitos subjetivos lesados em decorrência da omissão normativa. No mesmo passo, instituiu-se, ainda, processo de controle abstrato da omissão normativa inconstitucional (art. 103, § 2o), instituto – a exemplo do anterior – ainda carente de conformação definitiva. A criação da ação declaratória de constitucionalidade – No bojo da reforma tributária de emergência introduziu-se no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade a ação declaratória de constitucionalidade. Acolhendo sugestão contida em estudo que elaboramos juntamente com o Professor Ives Gandra, o Deputado Roberto Campos apresentou proposta de Emenda Constitucional12 com o seguinte teor: Art. 102 Ia) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; § 1º - A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. § 2º - As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão 8
Cf. ADIn ns. 829, 830 e 831, R. Min. Moreira Alves, DJ de 20.4.93, p. 6.758.
9
ADIn n. 737, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 22.10.93, p. 22.252. 10
ADIn n. 672, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 04.02.92, p. 499.
11
Cf., v.g.: ADIn n. 357, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 23.11.90, p. 13.622; ADIn n. 562, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 10.9.91, p. 12.254; ADIn n. 605, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 05.03.93; ADIn n. 931, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ de 02.09.93.
12
Proposta de emenda à Constituição nº 130, de 1992.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo. Art. 103 § 4º - A ação declaratória da constitucionalidade poderá ser proposta pelo Presidente da República, pela Mesa do Senado Federal, pela Mesa da Câmara dos Deputados ou pelo Procurador-Geral da República. Parte dessa proposição, com algumas alterações, foi incorporada à Emenda que deu nova redação a alguns dispositivos da ordem constitucional tributária e autorizou a instituição do imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira, mediante iniciativa do Deputado Luiz Carlos Hauly13. A EC n. 3, de 17.3.93, disciplinou o instituto, firmando a competência do STF para conhecer e julgar a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, processo cuja decisão definitiva de mérito possuirá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Executivo e do Judiciário. Conferiu-se legitimidade ativa ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputados e ao Procurador-Geral da República, como se pode depreender da Tabela III abaixo, que descreve as Ações Declaratórias de Constitucionalidade ajuizadas no Supremo Tribunal Federal.
13
. Cf., a propósito, os dois substitutivos apresentados pelo Deputado Benito Gama, Relator da Comissão Especial destinada examinar a Proposta de Emenda à Constituição nº 48-a, de 1991.
144
145
3-0
1997 2-9
1993 1-1
ANO / ADC
Nelson Jobim
Carlos Velloso
Moreira Alves
Associação Brasileira da Indústria de Embalagen s Plásticas Flexíveis Procurador -Geral República
Presidente da República; Mesa do Senado Federal; Mesa da Câmara Federal
MÉRITO
Decisão monocrática: Negado seguimento por ilegitimidade ativa ad causam da requerente Despacho: DJ 19.6.1997
Julgamento: 2.12.1999 Decisão: Julgou procedente a ação e declarou a constituciona-lidade do art. 15, § 1º, inc. I e II, e § 3º da Lei nº 9424/96 Decisão: DJ 14.12.1999
Sem Liminar Dispõe sobre a contribuiç ão social do salárioeducação
Art. 15 da 24.12.199 Lei Federal 6 nº 9424/96
Acórdão: DJ 16.5.1995
procedente
Sem Liminar Dispõe sobre fontes de custeio da Previdênci a Social
Acórdão: DJ 16.6.1995
pela mesma emenda Constitucional.
3/93, bem como do § 2º acrescentado a
102, da Constituição Federal, pela Eme
constitucionalidade da redação dada à
Questão de Ordem: 27.10.1993 Julgamento: 1.12.1993 Decisão: O Tribunal, declarou, inciden Decisão: Ação
LIMINAR
Decreto-lei 30.12.198 Federal nº 6 2318/86
COFINS. Seguridad e Social. Contribuiç ão Social
DATA DE EDIÇÃO ASSUNT O DO ATO
Arts. 1º, 2º, 30.12.199 9º, 10 e 13 1 da Lei compleme ntar Federal nº 70/91
ATO RELATOR REQUERE NORMAN-TE TIVO IMPUGN ADO
TABELA III - Ações Declaratórias de Constitucionalidade ajuizadas no Supremo Tribunal Federal
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
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1999 7-0
6-9
1998 5-2
Maurício Corrêa
Moreira Alves
Nelson Jobim
Câmara Municipal de Chorozinho
Art. 31 da Lei Orgânica do Município de Chorozinho (Ceará)
1993
Confedera- Art. 578 da 1943 CLT ção dos Servidores Públicos do Brasil CSPB
Procurador Arts. 1º, 3º 10.12.199 -Geral da e 5º da Lei 7 República Federal nº 9534/97, que dá nova redação ao art. 30 da Lei nº 6015/73; acrescenta inc. ao art. 1º da Lei nº 9265/96; e altera os arts. 30 e 45 da Lei nº 8935/94
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Decisão monocrática: Negado seguimento por ilegitimidade ativa ad causam Despacho: DJ 20.4.1999
Aguarda julgamento Julgamento: 17.11.1999 Resultado: Liminar deferida, com eficácia ex nunc e força vinculante para, até o julgamento definitivo da presente ação, sustar a prolação de qualquer decisão em processos que digam respeito à legitimidade constitucional, eficácia e aplicação dos dispositivos abaixo mencionados e suspender os efeitos de todas as decisões não transitadas em julgado e de todos os atos normativos que negaram legitimidade constitucional, eficácia e aplicação, parcial ou integral, ao disposto no art. 30 da Lei nº 6015/73, no art. 1º, inciso I, da Lei nº 9265/96 e no art. 45 da lei nº 8935/94, com a redação dada pelos arts. 1º, 3º e 5º da lei nº 9534/97. Decisão: DJ 26.11.1999 Sem liminar Decisão monocrática: Negado seguimento por ilegitimidade ativa ad causam Despacho: DJ 18.9.1998
Mandato Sem Liminar dos membros da Mesa Diretora será de dois anos, podendo ser
Gratuidad e dos serviços notariais e de registros relativos a nasciment os e óbitos, bem como o fornecime nto das respectiva s certidões aos reconheci damente pobres Contribuição sindical prevista no Art. 578 da CLT
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8-8
Celso de Mello
Presidente da República
Arts. 1º e 2º da Lei Federal nº 9783/99
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
1999
reeleitos para o mesmo, para um um único período subsequen te Contribuiç ão dos servidores ativos, inativos e pensionist as para a seguridad e social. Possibilid ade de desconto das alíquotas nas folhas de pagamento. Julgamento: 13.10.1999 Aguarda julgamento Resultado: Deferida, em parte a cautelar para, em caráter vinculante, com eficácia erga omnes e com efeito ex nunc, reconhecer a legitimidade constitucional da contribuição de seguridade social devida pelos servidores públicos civis em atividade (alíquota de 11% art. 1º da lei 9783/99), suspendendo, provisoriamente, até final julgamento desta ação declaratória de constitucionalidade - e apenas quanto aos processos, individuais ou coletivos, em cujo âmbito se haja instaurado controvérsia constitucional em torno da exigibilidade, aos servidores ativos, da contribuição em referência (alíquota de 11% a que alude o art. 1º da lei 9.783/99) - a prolação de dcisões liminares, cautelares ou de mérito e a concessão de tutela antecipada, sustando, ainda, os efeitos futuros inerentes a decisões anteriormente proferidas Decisão: DJ 22.10.1999
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9-6
2001
Néri da Silveira Redatora para o Acórdão Min. Ellen Gracie
Presidente da República Arts. 14 a 18 da Medida Provisória nº 2152-2, de 1.6.2001
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 1.6.2001
Cria e instala a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica GCE e estabelece diretrizes para programas de redução de energia elétrica
Julgamento: 28.6.2001 Resultado: O tribunal, preliminarmente, admitiu a ação declaratória de constitucionalidade. o tribunal, por maioria de votos, deferiu a cautelar, para suspender, com eficácia ex tunc, e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dos artigos 14 a 18 da medida provisória nº 2152-2, de 1º de junho de 2001 decisão: DJ 9.8.2001
Julgamento: 13.12.2001 Decisão: Ação procedente para declarar a constituciona-lidade dos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 da Medida Provisória 2152-2, hoje sob o número 2198-5. Decisão: DJ 6.2.2002
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Considerando a repercussão do instituto, cumpre, agora, cogitar se representa ele um novum no modelo brasileiro de controle de constitucionalidade. Em verdade, o dispositivo não inova. A imprecisão da fórmula adotada na EC n. 16/65 – representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral – não conseguia esconder o propósito inequívoco do legislador constituinte, que era o de permitir, “desde logo, a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas”. Não se fazia mister, portanto, que o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade da norma. Era suficiente o requisito objetivo relativo à existência de “controvérsia constitucional”. Daí ter o constituinte utilizado a fórmula equívoca – representação contra a inconstitucionalidade da lei, encaminhada pelo ProcuradorGeral da República –, que explicitava, pelo menos, que a dúvida ou a eventual convicção sobre a inconstitucionalidade não precisavam ser por ele perfilhadas. Se correta essa orientação, parece legítimo admitir que o Procurador-Geral da República tanto poderia instaurar o controle abstrato de normas, com o objetivo precípuo de ver declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo (ação declaratória de inconstitucionalidade ou representação de inconstitucionalidade), como poderia postular, expressa ou tacitamente, a declaração de constitucionalidade da norma questionada (ação declaratória de constitucionalidade). A cláusula sofreu pequena alteração na Constituição de 1967 e de 1967/1969 (representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual – CF de 1967, art. 115, I, “l”; CF de 1967/1969, art. 119, I, “l”). O Regimento Interno do STF, na versão de 1970,14 consagrou expressamente essa idéia (art. 174): “§ 1o. Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário”. Essa disposição, que, como visto, consolidava tradição já velha no Tribunal, permitia ao titular da ação encaminhar a postulação que lhe fora dirigida por terceiros, manifestando-se, porém, em sentido contrário. Assim, se o Procurador-Geral encaminhava súplica ou representação de autoridade ou de terceiro, com parecer contrário, estava simplesmente a postular uma declaração (positiva) de constitucionalidade. O pedido de representação, formulado por terceiro e encaminhado ao Supremo, materializava, apenas, a existência da “controvérsia constitucional” apta a fundamentar uma “necessidade pública de controle”. Essa cláusula foi alterada, passando o Regimento Interno a conter as seguintes disposições: “Art. 169. O Procurador-Geral da República poderá submeter ao Tribunal, mediante representação, o exame de lei ou ato normativo federal ou estadual, para que seja declarada a sua inconstitucionalidade. “§ 1o. Proposta a representação, não se admitirá desistência, ainda que afinal o
14
DJ de 04.09.70, pp. 3.971 e ss.
149
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Procurador-Geral se manifeste pela sua improcedência.” Parece legítimo supor que essa modificação não alterou, substancialmente, a idéia básica que norteava a aplicação desse instituto. Se o titular da iniciativa manifestava-se, afinal, pela constitucionalidade da norma impugnada é porque estava a defender a declaração de constitucionalidade. Na prática, continuou o Procurador-Geral a oferecer representações de inconstitucionalidade, ressaltando a relevância da questão e manifestando-se a final, muitas vezes, em favor da constitucionalidade da norma. A falta de maior desenvolvimento doutrinário e a própria balbúrdia conceitual instaurada em torno da representação interventiva15 – confusão, essa, que contaminou os estudos do novo instituto – não permitiram que essas idéias fossem formuladas com a necessária clareza. Sem dúvida, a disciplina específica do tema no Regimento Interno do STF serviria à segurança jurídica, na medida em que afastaria, de uma vez por todas, as controvérsias que marcaram o tema no Direito Constitucional brasileiro. Entendida a representação de inconstitucionalidade como instituto de contéudo dúplice ou de caráter ambivalente, mediante o qual o Procurador-Geral da República tanto poderia postular a declaração de inconstitucionalidade da norma como defender a declaração de sua constitucionalidade, afigurar-se-ia legítimo sustentar, com maior ênfase e razoabilidade, a tese relativa à obrigatoriedade de o Procurador-Geral submeter a questão constitucional ao STF quando isto lhe fosse solicitado. A controvérsia instaurada em torno da recusa do Procurador-Geral da República16 em
15
Buzaid, Alfredo. Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro, São Paulo, 1958, p. 107; Barbosa Moreira, José Carlos. “As partes na ação declaratória de inconstitucionalidade”, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado da Guanabara 13/67 (75-76), 1964; Brandão Cavalcanti, Themístocles. Do Controle da Constitucionalidade, Rio, Forense, 1966, pp. 115 e ss.
16
É certo que uma avaliação desse modelo brasileiro de controle abstrato de normas não pode deixar de considerar as circunstâncias políticas dominantes durante todo o período de desenvolvimento desse instituto. Os pressupostos indispensáveis pensados por Kelsen para esse advogado da Constituição – que, segundo ele, deveria ser dotado de todas as garantias imagináveis tanto em face do Governo quanto em face do Parlamento (“Wesen und Entwicklung der Staatgerichtsbarkeit”, VVDStRL 5/30, 1929 (75)) – não poderiam ser assegurados sob o império de um regime de exceção. O Procurador-Geral da República exercia, no controle abstrato de normas, o papel especial de advogado da Constituição, interessado exclusivamente na defesa da ordem constitucional. Com isso logrou o constituinte brasileiro positivar proposta formulado por Kelsen quanto à instituição de um advogado da Constituição (Verfassungsanwalt), que deveria deflagrar o controle de normas ex officio sempre que uma lei se lhe afigurasse incompatível com a Constituição (idem, ibidem). Ao contrário da representação interventiva, que pressupõe um interesse da União na preservação de princípios fundamentais da ordem federativa, o controle abstrato de normas independe de qualquer interesse específico, sendo-lhe estranha mesmo a idéia de interesse jurídico a ser protegido (Repr. n. 700, Rel. Min. Amaral Santos, p. 690 (714); AR n. 848, Rel. Min. Rafael Mayer, RTJ 95/49 (58); Repr. 1.405, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 01.07.88). Por isso, dever-se-iam diferençar, de forma clara, as competências do Procurador-Geral da República. No primeiro processo representava ele o interesse da União em face de um determinado Estado que, efetiva ou supostamente, desrespeitara princípio sensível estabelecido na Constituição. No controle abstrato atuava
150
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes encaminhar ao STF representação de inconstitucionalidade contra o Decreto-lei n. 1.077/70, que instituiu a censura prévia sobre livros e periódicos,17 não serviu – infelizmente – para realçar esse outro lado da representação de inconstitucionalidade.18 De qualquer sorte, todos aqueles que sustentaram a obrigatoriedade de o ProcuradorGeral da República submeter a representação ao STF, ainda quando estivesse convencido da constitucionalidade da norma,19 somente podem ter partido da idéia de que, nesse caso, o Chefe do Ministério Público deveria, necessária e inevitavelmente, formular uma ação declaratória – positiva – de constitucionalidade. Na Rep. nº 1.092, relativa à constitucionalidade do instituto da reclamação, contido no Regimento Interno do antigo TFR, viu-se o Procurador-Geral da República – que instaurou o processo de controle abstrato de normas e se manifestou, no mérito, pela improcedência do pedido – na contingência de ter que opor embargos infringentes da decisão proferida, que julgava procedente a ação proposta, declarando inconstitucional a norma impugnada.20 Ora, ao admitir o cabimento dos embargos infringentes opostos pelo ProcuradorGeral da República contra decisão que acolheu representação de inconstitucionalidade de sua própria iniciativa, o STF contribuiu para realçar esse caráter ambivalente da representação de inconstitucionalidade, reconhecendo implicitamente, pelo menos, que ao titular da ação era legítimo tanto postular a declaração de inconstitucionalidade da lei – se disso estivesse convencido – como pedir a declaração de sua constitucionalidade – se, não obstante convencido de sua constitucionalidade, houvesse dúvidas ou controvérsias sobre sua legitimidade que reclamassem um pronunciamento definitivo do STF. É verdade que a Corte restringiu significativamente essa orientação em acórdão de 8 de setembro de 1988.21 O Procurador-Geral da República encaminhou ao Tribunal petição formulada por grupo de parlamentares que sustentava a inconstitucionalidade de determinadas disposições da Lei de Informática (Lei n. 7.232, de 29.10.84). O Tribunal considerou inepta a representação, entendendo que, como a Constituição previa uma ação de inconstitucionalidade, não poderia o titular da ação demonstrar, de maneira como representante do interesse geral com o propósito de instaurar o controle judicial das normas estaduais ou federais (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das Constituições Rígidas, 2a ed., São Paulo, José Bushatsky Editor, 1980, p. 189; Mendes, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: Aspectos Jurídicos e Políticos, São Paulo, Saraiva, 1990, pp. 230 e ss.). 17
Recl. n. 849, Rel. Min. Adalício Nogueira, RTJ 59/333.
18
Cf., sobre o assunto, registros da discussão travada no Conselho Federal da OAB, em março/71, in Arquivos do Ministério da Justiça 118/23 e ss., 1971. 19
Cf., a propósito: Josaphat Marinho, “Inconstitucionalidade de lei – Representação ao STF”, RDP 12/150; Caio Mário da Silva Pereira, “voto” proferido no Conselho Federal da OAB, Arquivos do Ministério da Justiça 118/25; Themístocles Cavalcanti, “Arquivamento de representação por inconstitucionalidade da lei”, RDP 16/169; Adaucto Lúcio Cardoso, “Voto” na Recl. n. 849, RTJ 50/347-348; Celso Bastos, Curso de Direito Constitucional, 1982, p. 69.
20
Embs. na Repr. n. 1.092, Rel. Min. Néri da Silveira, RTJ 117/921 e ss.
21
Repr. n. 1.349, Rel. Min. Aldir Passarinho, RTJ 129/41 e ss.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes insofismável, que perseguia outros desideratos.22 Embora o STF tenha considerado inadmissível representação na qual o ProcuradorGeral da República afirma, de plano, a constitucionalidade da norma,23 é certo que essa orientação, calcada numa interpretação literal do texto constitucional, não parece condizente, tal como demonstrado, com a natureza do instituto e com a sua praxis desde a sua adoção pela EC n. 16/65. Todavia, a Corte continuou a admitir as representações e, mesmo após o advento da Constituição de 1988, as ações diretas de inconstitucionalidade nas quais o ProcuradorGeral limitava-se a ressaltar a relevância da questão constitucional, pronunciando-se, a final, pela sua improcedência.24 Em substância, era indiferente que o Procurador-Geral sustentasse, desde logo, a constitucionalidade da norma ou que encaminhasse o pedido para, posteriormente, manifestar-se pela sua improcedência. Essa análise demonstra claramente que, a despeito da utilização da expressão “representação de inconstitucionalidade”, o controle abstrato de normas foi concebido e desenvolvido como processo de natureza dúplice ou ambivalente. Se o Procurador-Geral estivesse convencido da inconstitucionalidade poderia provocar o STF para a declaração de inconstitucionalidade. Se, ao revés, estivesse convicto da legitimidade da norma, então poderia instaurar o controle abstrato com finalidade de ver confirmada a orientação questionada. Sem dúvida, a falta de um melhor desenvolvimento doutrinário sobre essa face peculiar da representação de inconstitucionalidade e a decisão do STF na Repr. n. 1.349 – que, praticamente, negou a possibilidade de se instaurar o controle abstrato com pedido de declaração de constitucionalidade – tornaram inevitável a positivação de um instituto específico no ordenamento constitucional, consubstanciado na ação declaratória de constitucionalidade. A Lei n. 9.868, de 10.11.99, e a Lei n. 9.882, de 3.12.99 – Como elemento de consolidação do processo de evolução do controle de constitucionalidade de normas no Brasil, é importante ressaltar a aprovação de dois relevantes diplomas legais: a Lei n. 9.868 e a Lei n. 9.882. Trata-se de dois textos normativos que disciplinam instrumentos processuais destinados ao controle de constitucionalidade. Ao regular o art.102, § 1º, da CF, a Lei n. 9.882 estabeleceu os contornos da ADPF, instituto que confere nova conformação ao controle de constitucionalidade entre nós, especialmente na relação entre o modelo abstrato e o modelo difuso.25 Já a Lei n. 9.868 – que aqui nos interessa mais diretamente – regulamenta o processamento e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) e da ação
22
Repr. n. 1.349, Rel. Min. Aldir Passarinho, RTJ 129/41.
23
Repr. n. 1.349, Rel. Min. Aldir Passarinho, RTJ 129/41.
24
Cf., dentre outras, ADIn n. 716-5, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 29.04.92, p. 5.606.
25
Sobre a ADPF cf., infra, parte VII do presente estudo.
152
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes declaratória de constitucionalidade (ADC), exercendo, agora, um papel que era cumprido, em grande parte, pelo Regimento Interno ou por construções da jurisprudência do STF. Aliás, este diploma legislativo teve, sem dúvida, a preocupação de recolher em seu conteúdo boa parte destas construções, não renunciando, porém, à introdução de algumas importantes modificações em nosso sistema de controle. Nas páginas que se seguem procederemos à análise dos principais pontos relativos à ação direta de inconstitucionalidade e à ação declaratória de constitucionalidade, levando em conta as recentes alterações legislativas.
2. Legitimidade Nos termos do art. 103 da CF de 1988, dispõem de legitimidade para propor a ação direta de inconstitucionalidade o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de uma Assembléia Legislativa, o Governador do Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB, partido político com representação no Congresso Nacional, as confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional. A Lei n. 9.868 repetiu, quase que integralmente, em seu art. 2o, o conteúdo do dispositivo constitucional. A única diferença que deve ser ressaltada é a menção expressa da legitimidade do Governador do Distrito Federal e da Câmara Legislativa Distrital,26 contida nos incisos IV e V do citado artigo legal. A extensa lista da legitimados presentes no texto constitucional e, por via de conseqüência, no texto legal fortalece a impressão de que pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente. No que se refere à ação declaratória de constitucionalidade, o art. 103, § 4o, estabelecia que poderiam propô-la o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa Câmara dos Deputados ou o Procurador-Geral da República (EC nº 3/93). A EC nº 45/2004 (Reforma do Judiciário) confere nova disciplina à matéria e outorgou a todos os legitimados para a ADIn a legitimidade para a propositura da ADC. Também aqui a Lei n. 9.868 nada mais fez do que repetir em seu art. 13 o teor do citado dispositivo constitucional, na sua versão original. Quanto à capacidade postulatória, entende o Supremo Tribunal Federal que “o Governador do Estado e as demais autoridades e entidades referidas no art. 103, incisos I a VII, da Constituição Federal, além de ativamente legitimados à instauração do controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos normativos, federais e estaduais, mediante ajuizamento da ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, possuem capacidade processual plena e dispõem, ex vi da própria norma constitucional, de capacidade postulatória”, estando autorizados, em conseqüência, enquanto ostentarem aquela condição, a praticarem, no processo de ação direta de inconstitucionalidade, quaisquer atos ordinariamente privativos de Advogado27. Assim, com exceção das 26
Sobre o tema, v. infra, subitem “Governador de Estado e do Distrito Federal/Assembléia Legislativa e Câmara Legislativa Distrital”.
153
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional e dos partidos políticos, todos os demais legitimados para a ADI dispõem de capacidade postulatória regular. Presidente da República - O Presidente da República pode exercer, conforme dispõe o texto da CF e nos termos do art. 2°, I, da Lei n. 9.868, o direito de propositura da ADIn, autonomamente, não tendo de submeter a proposta inicialmente ao Procurador-Geral da República28. O exercício do direito de propositura da ADIn poderia revelar-se, todavia, problemático em relação às leis federais, uma vez que, nos termos do art. 66, § 1°, da Constituição, dispõe o Chefe do Executivo federal de poder de veto, com fundamento em eventual inconstitucionalidade da lei29. Idênticas considerações aplicam-se em relação ao Governador do Estado ou do Distrito Federal em face das leis elaboradas nas unidades federadas. Se o Presidente da República não exercer o poder de veto, nos termos do art. 66 da Constituição, é de se indagar se poderia, posteriormente, argüir a inconstitucionalidade da lei perante o Supremo Tribunal Federal. Pode acontecer que a existência de dúvida ou controvérsia sobre a constitucionalidade da lei impeça ou dificulte a sua aplicação, sobretudo no modelo do controle de constitucionalidade vigente no Brasil, onde qualquer juiz ou Tribunal está autorizado a deixar de aplicar a lei em caso concreto se esta for considerada inconstitucional. Nesse caso, não poderia ser negado ao Presidente da República o direito de propor a ação com o propósito de ver confirmada a constitucionalidade da lei30. A nãoaplicação da lei por juízes ou Tribunais diversos ou por outras autoridades está a indiciar o interesse objetivo de esclarecer questão relativa à sua validade. Não está, todavia, aqui respondida a questão sobre a possibilidade de o Presidente da República propor a ação direta com o propósito de ver declarada a inconstitucionalidade de uma lei federal. A Constituição não fornece base para limitação do direito de propositura. Por outro lado, não resta dúvida de que, ao assegurar uma amplíssima legitimação, o constituinte buscou evitar, também, que se estabelecessem limitações a esse direito. Tal como já ressaltado, os titulares do direito de propositura atuam no processo de controle abstrato de normas no interesse da comunidade31 ou, se quisermos adotar a formulação de Friesenhahn32, atuam como autênticos advogados da Constituição. 27
Cf. ADI 127, Relator: Ministro Celso de Mello, DJ de 04.12.1992, ADI 96, Relator Min. Celso de Mello, DJ de 10.11. 1989. 28
Em sentido contrário, Oscar Corrêa, O 160º aniversário do STF..., Arquivos do Ministério da Justiça, cit., p. 67 (76), que sustenta dever o Presidente da República encaminhar o pedido de argüição ao Procurador-Geral da República, que, por sua vez, haverá de submetê-lo ao Supremo Tribunal Federal. 29 A Constituição assegura o direito de veto ao Presidente da República no caso de inconstitucionalidade ou contrariedade ao interesse público (art. 66, § 1º). 30 Sobre a problemática no direito alemão: cf. K. Zeidler, Gedanken zum Fernseh- Urteil des Bundesverfassungsgerichts, AöR 86, 1961, p. 361 (380-1). 31 Cf., sobre a problemática: Söhn, Die abstrakte Normenkontrolle, in Starck, Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, v. 1, p. 292 (306); Stephan, Das Rechtsschutzbedürfnis, 1967, p. 147 e s.; Goessl, Organstreitigkeiten innerhalb des Bundes, p. 173 e 219. 32 Cf. Friesenhahn, Verfassungsgerichtsbarkeit, Jura, 1986, p. 505 (509).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes É de acentuar-se, ainda, que, se o Chefe do Poder Executivo sanciona, por equívoco ou inadvertência, projeto de lei juridicamente viciado, não está ele compelido a persistir no erro, sob pena de, em homenagem a uma suposta coerência, agravar o desrespeito à Constituição. Nesse sentido, já assinalara Miranda Lima, em conhecido Parecer, no qual advogava o descumprimento da lei inconstitucional pelo Executivo à falta de outro meio menos gravoso, que “o Poder Executivo, que deve conferir o Projeto com a Constituição, cooperando com o Legislativo no zelo de sua soberania, se o sanciona por inadvertido de que a ela afronta, adiante, alertado do seu erro, no cumprimento de seu dever constitucional de a manter e defender, há de buscar corrigi-lo, e se outro meio não encontrar para tanto, senão a recusa em a aplicar, deixará de lhe dar aplicação”33. O modelo de ampla legitimação consagrado no art. 103 da Constituição de 1988 e repetido pela Lei n° 9.868 não se compatibiliza, certamente, com o recurso a essa medida de quase-desforço concernente ao descumprimento pelo Executivo da lei considerada inconstitucional. Se o Presidente da República — ou, eventualmente, o Governador do Estado — está legitimado a propor a ADIn perante o Supremo Tribunal Federal, inclusive com pedido de medida cautelar, não se afigura legítimo que deixe de utilizar essa faculdade ordinária para valer-se de recurso excepcional, somente concebido e tolerado, à época, pela impossibilidade de um desate imediato e escorreito da controvérsia34. Todavia, é inegável que um juízo seguro sobre a inconstitucionalidade da lei pode vir a se formar somente após a sua promulgação, o que legitima a propositura da ação, ainda que o Chefe do Poder Executivo tenha aposto a sanção ao projeto de lei aprovado pelas Casas Legislativas. Eventual sanção da lei questionada não obsta, pois, à admissibilidade da ação direta proposta pelo Chefe do Executivo, mormente se se demonstrar que não era manifesta, ao tempo da sanção, a ilegitimidade suscitada. Daí parecer-nos equivocada a orientação esposada pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 80735, segundo a qual, “quando (...) o ato normativo impugnado em sede de fiscalização abstrata tiver emanado também do Chefe do Poder Executivo — a lei, sendo 33
L. C. Miranda Lima, Parecer, RDA, 1965, 81:466 (470). Tal como demonstra Ruy Carlos de Barros Monteiro em minucioso estudo (O argumento de inconstitucionalidade e o repúdio da lei pelo Poder Executivo, RF, 284:101 e s.), a questão sobre eventual descumprimento de lei considerada inconstitucional pelo Poder Executivo deu ensejo a intensa controvérsia doutrinária e jurisprudencial. Pode-se afirmar que, até o advento constitucional da Emenda Constitucional n. 16, de 1965, que introduziu o controle abstrato de normas no nosso sistema, era plenamente majoritária a posição que sustentava a legitimidade da recusa à aplicação da lei considerada inconstitucional (Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição de 1891, n. 226; Miguel Reale, Revogação e anulamento do ato administrativo, Rio de Janeiro, 1968, p. 47; Themístocles Brandão Cavalcanti, Arquivamento de representação por inconstitucionalidade da lei, RDP, 16:169 e s.; Caio Mário da Silva Pereira, Parecer D-24 do Consultor-Geral da República, Diário Oficial, 20 jun. 1961; Adroaldo Mesquita da Costa, Parecer H n. 184, de 7-5-1965, Diário Oficial, 22 jun. 1965; L. C. Miranda Lima, Parecer, RDA, 81:466 e s. Ver, também, as decisões do Supremo Tribunal: RMS 4.211, Rel. Min. Cândido Motta Filho, RTJ, 2:386-7; RMS 5.860, Rel. Min. Vilas Boas, acórdão publicado em audiência de 23-2-1959; Rp. 512, Rel. Min. Pedro Chaves, RDA, 1964, 76:308-9; RE 55.718-SP, Rel. Min. Hermes Lima, RTJ, 32:143-7; RMS 14.557, Rel. Min. Cândido Motta Filho, RTJ, 33:330-8; RMS 13.950, Rel. Min. Amaral Santos, RDA, 1969, 97:116-20). 35 ADIn n° 807-RS (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 13.02.2004. 34
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ato estatal subjetivamente complexo, emerge da conjugação das vontades autônomas do Legislativo e do Executivo — e este figurar, em conseqüência, no pólo passivo da relação processual, tornar-se-á juridicamente impossível o seu ingresso em condição subjetiva diversa daquela que já ostenta no processo”36. De plano, deve-se observar que se trata aqui de um processo objetivo típico, no qual existe autor ou requerente, mas inexiste, propriamente, réu ou requerido. Não se pode, pois, cogitar de relação processual, tal como afirmado expressamente no v. aresto. Mesas do Senado e da Câmara - O reconhecimento do direito de propositura à Mesa da Câmara dos Deputados e à Mesa do Senado Federal, tal como realizado pelo texto constitucional e pelo art. 2°, II e III, da Lei n° 9.868/1999, demonstra que o constituinte não pretendeu assegurar aqui uma proteção específica às minorias parlamentares. Como a direção de cada Casa legislativa é eleita pela maioria dos parlamentares, ainda que observada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva Casa (CF, art. 58, § 1°), concedeu-se, efetivamente, o direito de propositura à maioria nas referidas Casas. É fácil ver, outrossim, que esses órgãos não estão vocacionados a questionar a constitucionalidade de seus próprios atos37 . Assim, o direito de propositura a eles deferido somente ganharia significado prático se se admitisse que a ação direta poderia ser utilizada para constatar, positivamente, a constitucionalidade de uma lei38. Governador de Estado/Assembléia Legislativa e Relação de Pertinência - Consoante o teor do art. 2°, IV e V, da Lei n. 9.868 e o disposto no art. 103 da CF, podem propor ADIn os Governadores de Estado e do Distrito Federal, bem como as Assembléias Legislativas e a Câmara Legislativa Distrital. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem identificado a necessidade de que o Governador de um Estado ou a Assembléia Legislativa que impugna ato normativo de outro demonstre a relevância, isto é, a relação de pertinência da pretensão formulada — da pretendida declaração de inconstitucionalidade da lei39. Essa questão foi discutida na Alemanha sob o império da Constituição de Weimar, verificando-se uma controvérsia doutrinária sobre a admissibilidade ou não de uma ação proposta pelo Estado da Baviera contra lei da Turíngia. 36
ADIn 807, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 11 jun. 1993. Registre-se que, na espécie, após ter sancionado o projeto de lei, o Governador do Estado do Rio Grande do Sul apresentou pedido de ingresso na causa na qualidade de litisconsorte ativo do Procurador-Geral da República, autor originário da impugnação. 37 Cf., também, os comentários de Richard Grau sobre o anteprojeto apresentado pelo Ministro do Interior, Dr. Külz, que outorgava direito de propositura ao Parlamento Federal e ao Conselho Federal (cf. Grau, Zum Gesetzesentwurf über die Prüfung der Verfassungsmässigkeit von Reichsgesetzen und Rechtsverordnung, AöR 11, 1926, p. 287 (298-9). 38 Essa questão é polêmica no direito constitucional brasileiro. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é contrária à admissibilidade de semelhante ação direta (Rp. 1.349, Rel. Min. Aldir Passarinho, RTJ, 129:41, v. 1. 39 ADIn 902, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 22 abr. 1994, p. 8946.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes A falta de autorização constitucional para que o legislador estabeleça outras limitações ao direito de propositura suscita dúvida sobre a correção do entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal. Tendo em vista a natureza objetiva do processo de controle abstrato de normas, seria mais ortodoxo que, na espécie, fosse admitida a ADIn independentemente de qualquer juízo sobre a configuração ou não de uma relação de pertinência. Outra questão relevante a respeito do direito de propositura do Governador afeta a sua capacidade postulatória. Conforme já referido, O Supremo Tribunal Federal entende que cabe ao próprio Governador firmar a petição inicial, se for o caso, juntamente com o Procurador-Geral do Estado ou outro advogado. Entende o STF que o direito de propositura é atribuído ao Governador do Estado e não à unidade federada. Também seriam ineptas as ações diretas propostas, em nome do Governador, firmadas exclusivamente pelo Procurador-Geral do Estado.40
Governador do Distrito Federal e Câmara Distrital - Embora o status do Distrito Federal no texto constitucional de 1988 seja fundamentalmente diverso dos modelos fixados nas Constituições anteriores, não se pode afirmar, de forma apodítica, que a sua situação jurídica é equivalente à de um Estado-Membro. Não seria lícito sustentar, porém, que se estaria diante de modelos tão diversos que, no caso, menos do que uma omissão, haveria um exemplo de silêncio eloqüente, que obstaria à extensão do direito de propositura aos órgãos do Distrito Federal. O texto constitucional, em vários de seus dispositivos, procura distinguir a situação jurídica dos Estados da do Distrito Federal: “Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, (...)”. “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, (...)”. (...) § 3°. Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, (...)”. “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)”. “Art. 20. (...) § 1°. É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como aos órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo (...)”. “Art. 21. Compete à União: (...) XIII — organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios; (...) XIV — organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de 40
ADIn n° 1.814-DF (Rel. Min. Maurício Corrêa), DJ de 12.12.2001.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio”; “Art. 22. “Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XVII — organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios, (...)”. “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (...)”. Essas disposições, se não permitem afirmar que o modelo constitucional consagrado para o Distrito Federal é de todo idêntico ao estatuto dos Estados-Membros, não autorizam, igualmente, sustentar que as dessemelhanças sejam tão acentuadas que deveriam mesmo levar à negação do direito de propositura em sede distrital. Assinale-se que se afigura decisiva para o desate da questão a disciplina contida no art. 32 da Constituição, que outorga ao Distrito Federal poder de auto-organização, atribui-lhe as competências legislativas dos Estados e Municípios e define regras para a eleição de Governador, Vice-Governador e Deputados Distritais, que em nada diferem do sistema consagrado para os Estados-Membros. Dessarte, para os efeitos exclusivos do sistema de controle de constitucionalidade, as posições jurídicas do Governador e da Câmara Legislativa do Distrito Federal não são distintas do status jurídico dos Governadores de Estado e das Assembléias Legislativas. O eventual interesse na preservação da autonomia de suas unidades contra eventual intromissão por parte do legislador federal é em tudo semelhante. Também o interesse genérico na defesa das atribuições específicas dos Poderes Executivo e Legislativo é idêntico. Portanto, ainda que se possam identificar dessemelhanças significativas entre o Estado-Membro e o Distrito Federal e, por isso, também entre os seus órgãos executivos e legislativos, é lícito concluir que, para os fins do controle de constitucionalidade abstrato, as suas posições jurídicas são, fundamentalmente, idênticas. Não haveria razão, assim, para deixar de reconhecer o direito de propositura da ação direta de inconstitucionalidade ao Governador do Distrito Federal e à Mesa da Câmara Legislativa, a despeito do silêncio do texto constitucional. O direito de propositura do Governador do Distrito Federal foi contemplado expressamente pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 645, reconhecendo-se a sua legitimidade ativa “por via de interpretação compreensiva do texto do art. 103, V, da CF/88, c/c o art. 32, § 1°, da mesma Carta”41. Na linha dessa jurisprudência, a Lei n° 9.868/1999 optou por reconhecer expressamente a legitimação do Governador e da Câmara Legislativa do Distrito Federal para a propositura da ADIn de maneira expressa. A questão restou definitivamente superada com a promulgação da EC 45/2004 (Reforma do Judiciário), que conferiu nova redação ao art. 103 da Constituição42. 41
ADIn 645-2, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ, 21 fev. 1992, p. 1693; ver, também, ADIn 665, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ, 24 abr. 1992, p. 5376. 42
“Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)
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Procurador-Geral da República - Também nos termos da Constituição de 1988 e do art. 2°, VI, da Lei n° 9.868/1999, tem legitimação para propor ADIn o Procurador-Geral da República. Deve-se assinalar, no entanto, que esse órgão ganhou nova conformação, passando a atuar, basicamente, como representante do interesse público e não mais como representante da União43. O Procurador-Geral da República, escolhido pelo Presidente da República, dentre os membros do Ministério Público da União, para um mandato de dois anos, após aprovação pelo Senado, somente pode ser destituído após autorização da maioria absoluta do Senado Federal (art. 128, §§ 1° e 2°). Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - O art. 2°, inciso VII, da Lei n° 9.868/1999 estabelece, em conformidade com o texto constitucional, que o Conselho Federal da OAB é legítimo para a propositura da ADIn. Trata-se de legitimidade dada em nítida atenção ao relevo jurídico-institucional do qual é dotado a OAB. O Supremo entende que a Ordem não necessita de demonstração da chamada pertinência temática para a legítima propositura da ação44. Partidos políticos - Tal como referido, o constituinte de 1988 concedeu o direito de propositura da ação direta de inconstitucionalidade aos partidos políticos com representação no Congresso Nacional. A partir de tal preferência rejeitou-se, expressamente, o modelo largamente adotado no Direito Constitucional de outros países, o qual outorga legitimação para instaurar o controle abstrato de normas a um número determinado de parlamentares. A exigência de que o partido esteja representado no Congresso Nacional acaba por I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. § 1º - O Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal. § 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias. § 3º - Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. 43
A Constituição rompeu com o sistema híbrido consagrado nas Constituições anteriores, instituindo a Advocacia-Geral da União, com o escopo de representar os interesses da União em juízo, bem como de exercer as atividades de consultoria do Poder Executivo. 44 Cf. ADIn 3, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 142:363.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes não conter qualquer restrição, uma vez que suficiente afigura-se a presença de uma representação singular para que se satisfaça a exigência constitucional. Ademais, uma vez que se encontra consolidado o entendimento de que, quanto aos partidos políticos, inexiste qualquer exigência de pertinência temática para o reconhecimento da legitimidade para a propositura da ADIn45, é de se concluir que o sistema de fiscalização abstrata de normas confere uma amplíssima compreensão da chamada defesa da minoria no âmbito da jurisdição constitucional. É de se indagar se não seria mais adequado, para a preservação da nobreza do instituto do controle abstrato de normas e para o bom desempenho da jurisdição constitucional, que se convertesse o direito de propositura dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional em direito de propositura de um determinado número de deputados ou de senadores. O Supremo Tribunal Federal entende que, para propor ação direta, suficiente se afigura a decisão do Presidente do Partido, dispensando, assim, a intervenção do diretório partidário. Essa orientação não se aplica se existir prescrição de caráter legal ou estatutário em sentido diverso46. A orientação jurisprudencial encaminhou-se, todavia, no sentido de exigir que da procuração outorgada pelo órgão partidário conste, de maneira detalhada, o número da Lei e os dispositivos a serem impugnados.47 Caso o partido viesse a perder a representação no Congresso Nacional, o Tribunal vinha considerando que a ação havia de ser declarada prejudicada, ressalvando-se apenas a hipótese de já se ter iniciado o julgamento48. Entretanto, em decisão de 24.08.2004, reconheceu o Supremo Tribunal Federal que a perda de representação parlamentar não desqualifica o partido político para propor Ação Direta de Inconstitucionalidade, em reconhecimento ao caráter eminentemente público do processo.49
O direito de propositura das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional - O direito de propositura das confederações sindicais e das organizações de classe de âmbito nacional prepara significativas dificuldades práticas. A existência de diferentes organizações destinadas à representação de determinadas profissões ou atividades e a não-existência de disciplina legal sobre o assunto tornam 45
ADInMC n° 1096-RS (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 22.09.1995, pp. 30589. Cf. ADI-386, ADI-138, RTJ-133/1011, ADI-893, ADI-1114, ADI-902,RE-98444, RTJ-107/1215. 46 Cf. ADIn nº 779-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 11.03.1994. 47 ADIn n° 2552-PR (Rel. Min. Maurício Corrêa), DJ de 19.12.2001. 48 Cf. Questão de Ordem (suscitada pelo Ministro Sepúlveda Pertence) na ADIn nº 2.054-DF (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 09/04/2003; e Agravo Regimental nas ADIn’s nº 2.202-DF, 2.465-RJ e 2.723-RJ (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 13/03/2003. 49
Cf. ADI 2159 e 2618, rel. Ministro Carlos Velloso, DJ de 24.08.2004. Os ministros deram provimento a recursos nas duas ações requeridas pelo Partido Social Liberal (PSL) que, na época do ajuizamento, tinha representação no Congresso Nacional. O Ministro Carlos Velloso, relator das duas ações, determinou o arquivamento delas pois, na época em que examinou a questão, em fevereiro de 2003, o PSL não possuía mais representação parlamentar no Congresso, o que implicaria na perda da legitimidade ativa para propor ADI, de acordo com o artigo 103, inciso VIII, da Constituição Federal. Ao examinar o recurso, entretanto, a maioria do Plenário, vencidos os ministros Carlos Velloso e Celso de Mello, entendeu que a ação não fica prejudicada no caso de perda de representação parlamentar.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes indispensável que se examine, em cada caso, a legitimação dessas diferentes organizações. Causa dificuldade, sobretudo, a definição e a identificação das chamadas entidades de classe, uma vez que, até então, inexistia critério preciso que as diferençasse de outras organizações de defesa de diversos interesses. Por isso, está o Tribunal obrigado a verificar especificamente a qualificação dessa confederação sindical ou organização de classe instituída em âmbito nacional50. O conceito de entidade de classe de âmbito nacional abarca um grupo amplo e diferenciado de associações que não podem ser distinguidas de maneira simples.51 Essa questão tem ocupado o Tribunal praticamente desde a promulgação da Constituição de 198852. Na decisão de 5 de abril de 1989, tentou o Tribunal precisar o conceito de entidade de classe, ao explicitar que é apenas a associação de pessoas que em essência representa o interesse comum de uma determinada categoria53. Em contrapartida, os grupos formados circunstancialmente, como a associação de empregados de uma empresa, não poderiam ser classificados como organizações de classe nos termos do art. 103, IX, da Constituição54. “Não se pode considerar entidade de classe — diz o Tribunal — a sociedade formada meramente por pessoas físicas ou jurídicas que firmem sua assinatura em lista de adesão ou qualquer outro documento idôneo (...), ausente particularidade ou condição, objetiva ou subjetiva, que distingam sócios de não-associados”55. A idéia de um interesse comum essencial de diferentes categorias fornece base para distinção entre a organização de classe, nos termos do art. 103, IX, da Constituição, e outras associações ou organizações sociais. Dessa forma, deixou assente o Supremo Tribunal Federal que o constituinte decidiu por uma legitimação limitada, não permitindo que se convertesse o direito de propositura dessas organizações de classe em autêntica ação popular56. Em outras decisões, deu o Supremo Tribunal Federal continuidade ao esforço de precisar o conceito de entidade de classe de âmbito nacional. Segundo a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, não configuraria entidade de classe de âmbito nacional, para os efeitos do art. 103, IX, organização formada por associados pertencentes a categorias diversas57. Ou, tal como formulado pelo Tribunal, “não se configuram como entidades de classe aquelas instituições que são integradas por membros vinculados a extratos sociais, profissionais ou econômicos diversificados, cujos objetivos, individualmente considerados, revelam-se contrastantes”58. Tampouco se compatibilizam nessa noção, as entidades associativas de outros segmentos da sociedade civil, como, por exemplo a União Nacional dos 50
Cf. ADIn 34-DF (Rel. Min. Octavio Gallotti), RTJ n° 128, p. 481; ADIn n° 43-DF (Rel. Min. Sydney Sanches), RTJ n° 129, p. 959. 51 Cf. ADIn n° 433-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 20.03.1992. 52 ADIn n° 34-DF, (Rel. Min. Octavio Gallotti), RTJ n° 128, p. 481; ADIn n° 39-RJ (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 19/05/1989. 53 Cf. ADIn n° 34-DF (Rel. Min. Octavio Gallotti), RTJ n° 128, p. 481. 54 Cf. ADIn n° 79-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 10.09.1989, RDA n° 188 (1992), p. 144 (146). 55 ADIn n° 52-GO (Rel. Min. Célio Borja), DJ de 29.09.1990. 56 Cf. ADIn n° 79-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 10.09.1989, RDA n° 188 (1992), p. 144 (146). 57
ADIn n° 57-DF (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 13.12.1991, p. 18353; ADIn n° 108-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 05/06/1992, p. 8426.
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ADIn n° 108-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 05.06.1992, p. 8426.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Estudantes – UNE 59. Não se admite, igualmente, a legitimidade de pessoas jurídicas de direito privado, que reúnam, como membros integrantes, associações de natureza civil e organismos de caráter sindical, exatamente em decorrência desse hibridismo, porquanto “noção conceitual (de instituições de classe) reclama a participação, nelas, dos próprios indivíduos integrantes de determinada categoria, e não apenas das entidades privadas constituídas para representá-los”60. Da mesma forma, como regra geral, não se reconhece natureza de entidade de classe àquelas organizações que, “congregando pessoas jurídicas, apresentam-se como verdadeiras associações de associações”, uma vez que, nesse caso, faltar-lhes-ia exatamente a qualidade de entidade de classe61. Entretanto, em decisão de 12.08.2004, o Supremo Tribunal Federal proveu o Agravo Regimental na ADI n° 3153, para dar seguimento à ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Federação Nacional das Associações dos Produtores de Cachaça de Alambique (FENACA). Por oito votos a dois, o Plenário do Tribunal entendeu que a federação teria legitimidade para a propositura da ação direta porque, apesar de composta por associações estaduais, poderia ser equiparada a uma entidade de classe. Desse modo, com base na peculiaridade de que a FENACA é entidade de classe que atua na defesa da categoria social, a Corte Constitucional reconheceu a legitimação excepcional dessa forma de associação.62 Afirmou-se, também, que “não constitui entidade de classe, para legitimar-se à ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103, IX), associação civil (Associação Brasileira de Defesa do Cidadão), voltada à finalidade altruísta de promoção e defesa de aspirações cívicas de toda a cidadania”63. No conceito de entidade de classe na jurisprudência do Tribunal não se enquadra, igualmente, a associação que reúne, como associados, órgãos públicos, sem personalidade jurídica e categorias diferenciadas de servidores (v.g., Associação Brasileira de Conselhos de Tribunal de Contas dos Municípios — Abraccom)64. Quanto ao caráter nacional da entidade, enfatiza-se que não basta simples declaração formal ou manifestação de intenção constante de seus atos constitutivos. Faz-se mister que, além de uma atuação transregional, tenha a entidade membros em pelo menos nove Estados da Federação, número que resulta da aplicação analógica da Lei Orgânica dos Partidos Políticos65. 59
Cf. ADIn n° 894-DF (Rel. Min. Néri da Silveira), DJ de 20.04.1995, p. 9.945. ADIn n° 79-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 10/09/1989, RDA n° 188 (1992), p. 144 (146); ADIn n° 505-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 02/08/1991, p. 9916; ADIn n° 530-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 22/11/1991, p. 16845; ADIn n° 433-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 22/11/1991, p. 16842; ADIn n° 705-SC (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 06/04/1992, p. 4442; ADIn n° 511-DF (Rel. Min. Paulo Brossard), DJ de 15/05/1992, p. 6781; ADIn n° 108-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 05/06/1992, p. 8426; ADIn n° 704-PR (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ de 04.09.1992, p. 14089; e ADIn (AgRg) n° 706-MG (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ de 04.09.1992. 61 ADIn n° 79-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 10.09.1989, RDA n° 188 (1992), p. 144 (146) e ADIn n° 914-DF, (Rel. Min. Sydney Sanches), DJ de 11.03.1994. 62 ADI 3153 AgR/DF, rel. Min. Celso de Mello, rel. p/ acordão Min. Sepúlveda Pertence, 12.8.2004, vencidos os ministros Celso de Mello (relator) e o Min. Carlos Britto. 63 ADIn n° 61-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 28.09.1990, p. 10222. 64 ADIn n° 67-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 15.06.1990, p. 5499. 65 ADIn n° 386-ES (Rel. Min. Sydney Sanches), DJ de 28.06.1991, p. 8904; ADIn n° 108-DF (Rel. Min. 60
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Admitiu-se, inicialmente, a legitimação das federações, porquanto “entidades nacionais de classe”66. Essa orientação foi superada por outra, mais restritiva, passando-se a considerar que apenas as organizações sindicais, cuja estrutura vem disciplinada no art. 535 da Consolidação das Leis do Trabalho, são dotadas de direito de propositura67. Afasta-se, assim, a possibilidade de que associações, federações ou outras organizações de índole sindical assumam o lugar das confederações para os fins do art. 103, IX, da Constituição, que, segundo os termos dos arts. 533 e seguintes do texto consolidado, devem estar organizadas com um mínimo de três federações. Assim, tal como assentado na jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal68, “a legitimação para ação direta de inconstitucionalidade é privativa das confederações cuja inclusão expressa no art. 103, IX, é excludente das entidades sindicais de menor hierarquia, quais as federações e sindicatos ainda que de âmbito nacional”69. Simples associação sindical — Federação Nacional que reúne sindicatos em cinco Estados — não teria legitimidade, segundo essa orientação, para propor ação direta de inconstitucionalidade70. Mencione-se, ainda, que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal, há de se exigir que o objeto da ação de inconstitucionalidade guarde relação de pertinência com a atividade de representação da confederação ou da entidade de classe de âmbito nacional71. A jurisprudência do Supremo Tribunal se, de um lado, revela o salutar propósito de Celso de Mello), DJ de 05.06.1992, p. 8427. 66 ADIn n° 209-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 07.03.1991, p. 2132. 67 Cf. ADIn n° 505-DF (Rel. Ministro Moreira Alves), DJ de 02.08.1991, p. 9916. Ver, também, ADIn n° 569-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 03.09.1991, p. 11866; ADIn n° 713-RJ (Rel. Min. Octavio Gallotti), DJ de 10.04.1992, p. 4801; ADIn n° 731-DF (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 08.05.1992, p. 6270; ADIn n° 745-PE (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ de 04.08.1992, p. 11417; ADIn n° 746-DF (Rel. Néri da Silveira), DJ de 17.08.1992, p. 12446; ADIn n° 744-PE (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 08.09.1992, p. 14293-4; ADIn n° 772-DF (Rel. Ministro Moreira Alves), DJ de 23.10.1992, p. 18780. 68 ADIn n° 275-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 22.02.1991, p. 1258; ADIn n° 17-DF (Rel. Min. Sydney Sanches), DJ de 15.03.1991, p. 2643; ADIn n° 505-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 02.08.1991, p. 9916; ADIn n° 593-GO (Rel. Min. Marco Aurélio), DJ de 09.10.1991, p. 14087; ADInMC nº 599-DF (Rel. Min. Néri da Silveira), DJ de 15.05.1992; ADIn n° 488-DF (Rel. Min. Octavio Gallotti), DJ de 12.06.1992, p. 9028; ADInMC nº 772-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 23.09.1992; ADInMC nº 364-DF (Rel. Min. Sydney Sanches), DJ de 19.02.1993; ADInMC nº 831-DF (Rel. Min. Marco Aurélio), DJ de 23.06.1993; ADInMC n° 868-DF (Rel. Min. Moreira Alves) DJ de 13.08.1993, p. 15.676; ADIn nº 1.006-PE (Rel. Min. Sepulveda Pertence), DJ de 25.03.1994; ADIn(AgRg) nº 1.149-DF (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 19.09.1995; ADIn nº 1.343-AM (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 27.09.1995; ADIn n° 54 (Rel. Min. Marco Aurélio), DJ de 06.09.1996; ADInMC nº 920-DF (Rel. Min. Francisco Rezek), DJ de 11.04.1997; ADIn(QO) nº 1.562-DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 09.05.1997; ADIn n° 1.795-PA (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 30.04.1998; ADIn n° 797-DF (Rel. Min. Marco Aurélio), DJ de 07.08.1998; ADIn n° 1.785-RJ (Rel. Min. Nelson Jobim), DJ de 07.08.1998; ADInMC nº 1003-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 10.09.1999; ADIn n° 2.557-MT (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 12.12.2001; ADIn n° 2.152MS (Rel. Min. Gilmar Mendes), DJ de 08.08/2003. 69 ADIn(QO) nº 1006-PE (Rel.Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 25.03.1994. 70 ADIn n° 398-DF (Rel. Min. Sydney Sanches), DJ de 28.06.1991, p. 8904. 71 Cf. ADIn n° 202-BA (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 02.04.1993, p. 5612; ADIn n° 159-PA (Rel. Min. Octavio Gallotti), DJ de 02.04.1993, p. 5611; ADIn n° 893-PR (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ de 03.09.1993, p. 17743.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes concretizar o conceito de “entidade de classe de âmbito nacional” e de “confederação sindical”, para os efeitos do art. 103, IX, da Constituição, deixa entrever, de outro, uma concepção assaz restritiva do direito de propositura dessas organizações. O esforço que o Tribunal desenvolve para restringir o direito de propositura dessas entidades não o isenta de dificuldades, levando-o, às vezes, a reconhecer a legitimidade de determinada organização, para negá-la num segundo momento. Foi o que ocorreu com a Federação Nacional das Associações dos Servidores da Justiça do Trabalho, que teve a sua legitimidade reconhecida na ADIn n° 37-DF, relativa à Medida Provisória n° 44, de 30 de março de 1989, colhendo inclusive a liminar requerida. Posteriormente, essa entidade veio a ter a sua legitimidade infirmada nas ADIn’ s n° 433-DF, 526-DF e 530DF 72. Relativamente à legitimação das “entidades de classe de âmbito nacional” e das “confederações sindicais”, é difícil admitir a juridicidade da exigência quanto à representação da entidade em pelo menos nove Estados da Federação, como resultado decorrente da aplicação analógica da Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Ainda que se possa reclamar a fixação de um critério preciso sobre tais conceitos vagos — entidade de classe de âmbito nacional e confederação sindical —, não há dúvida de que eles devem ser fixados pelo legislador e não pelo Tribunal, no exercício de sua atividade jurisdicional. O recurso à analogia, aqui, é de duvidosa exatidão. Na ausência de disciplina constitucional ou legal expressa acerca dos critérios definidores do caráter nacional das entidades de classe, o STF optou por fixar idêntico parâmetro ao estabelecido na Lei dos Partidos Políticos73 no pertinente à legitimidade para a propositura de ADIn. Esse critério foi proposto por Moreira Alves, quando da apreciação da Medida Liminar na ADIn n° 386-ES, da relatoria de Sydney Sanches. Porém, nesse mesmo precedente, Moreira Alves preconizou que “esse critério cederá nos casos em que haja comprovação de que a categoria dos associados só existe em menos de nove estados”. Foi com base em tal argumento que, no julgamento da ADIn n° 2866-RN, o Tribunal reconheceu a legitimidade ativa da Associação Brasileira dos Extratores e Refinadores de Sal - ABERSAL74, a qual se enquadrou nessa situação excepcional. Na espécie, constatou-se que, além de a produção de sal ocorrer em apenas alguns estados da 72
ADIn n° 433-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 20/03/1992, p. 3319-20; ADIn n° 526-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 05/03/1993, p. 2896; e ADIn n° 530-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 22/11/1991, p. 16845. 73 Observem-se os seguintes termos da Lei nº 9.096, de 19/09/1995: “Art. 7º. O partido político, após adquirir personalidade jurídica na forma da lei civil, registra seu estatuto no Tribunal Superior Eleitoral. § 1º Só é admitido o registro do estatuto de partido político que tenha caráter nacional, considerando-se como tal aquele que comprove o apoiamento de eleitores correspondente a, pelo menos, meio por cento dos votos dados na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, não computados os votos em branco e os nulos, distribuídos por um terço, ou mais, dos Estados, com um mínimo de um décimo por cento do eleitorado que haja votado em cada um deles.” (grifo nosso) 74 ADIn nº 2866-RN, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 17/10/2003.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Federação, cuidava-se de atividade econômica de patente relevância nacional, haja vista ser notório que o consumo de sal ocorre em todas as unidades da federação. Mais problemática ainda se afigura a exigência de que haja uma relação de pertinência entre o objeto da ação e a atividade de representação da entidade de classe ou da confederação sindical. Cuida-se de inequívoca restrição ao direito de propositura, que, em se tratando de processo de natureza objetiva, dificilmente poderia ser formulada até mesmo pelo legislador ordinário. A relação de pertinência assemelha-se muito ao estabelecimento de uma condição de ação — análoga, talvez, ao interesse de agir —, que não decorre dos expressos termos da Constituição e parece ser estranha à natureza do sistema de fiscalização abstrata de normas. Por isso, a fixação de tal exigência parece ser defesa ao legislador ordinário federal, no uso de sua competência específica. Assinale-se que a necessidade de que se desenvolvam critérios que permitam identificar, precisamente, as entidades de classe de âmbito nacional não deve condicionar o exercício do direito de propositura da ação por parte das organizações de classe à demonstração de um interesse de proteção específico, nem levar a uma radical adulteração do modelo de controle abstrato de normas. Consideração semelhante já seria defeituosa porque, em relação à proteção jurídica dessas organizações e à defesa dos interesses de seus membros, a Constituição assegura o mandado de segurança coletivo (art. 5°, LXX, b), o qual pode ser utilizado pelos sindicatos ou organizações de classe, ou ainda, associações devidamente constituídas há pelo menos um ano. Uma tal restrição ao direito de propositura não se deixa compatibilizar, igualmente, com a natureza do controle abstrato de normas e criaria uma injustificada diferenciação entre os entes ou órgãos autorizados a propor a ação, diferenciação esta que não encontra respaldo na Constituição. Demonstração da existência de controvérsia judicial na ação declaratória de constitucionalidade – Ao lado do direito de propositura da ação declaratória de constitucionalidade – e, aqui, assinale-se, estamos a falar tão-somente da ADC e não da ADIn - há de se cogitar também de uma legitimação para agir in concreto, tal como consagrada no Direito alemão, que se relaciona com a existência de um estado de incerteza gerado por dúvidas ou controvérsias sobre a legitimidade da lei. Há de se configurar, portanto, situação hábil a afetar a presunção de constitucionalidade, que é apanágio da lei. Embora o texto constitucional não tenha contemplado expressamente esse pressuposto, é certo que ele é inerente às ações declaratórias, mormente às ações declaratórias de conteúdo positivo. Assim, não se afigura admissível a propositura de ação direta de constitucionalidade se não houver controvérsia ou dúvida relevante quanto à legitimidade da norma. Evidentemente, são múltiplas as formas de manifestação desse estado de incerteza quanto à legitimidade da norma. A insegurança poderá resultar de pronunciamentos contraditórios da jurisdição ordinária sobre a constitucionalidade de determinada disposição. Assim, se a jurisdição ordinária, através de diferentes órgãos, passar a afirmar a
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes inconstitucionalidade de determinada lei, poderão os órgãos legitimados, se estiverem convencidos de sua constitucionalidade, provocar o STF para que ponha termo à controvérsia instaurada. Da mesma forma, pronunciamentos contraditórios de órgãos jurisdicionais diversos sobre a legitimidade da norma poderão criar o estado de incerteza imprescindível para a instauração da ação declaratória de constitucionalidade. Embora as decisões judiciais sejam provocadas ou mesmo estimuladas pelo debate doutrinário, é certo que simples controvérsia doutrinária não se afigura suficiente para objetivar o estado de incerteza apto a legitimar a propositura da ação, uma vez que, por si só, ela não obsta à plena aplicação da lei. Assim, não configurada dúvida ou controvérsia relevante sobre a legitimidade da norma, o STF não deverá conhecer da ação proposta. Essa questão foi tratada no voto condutor proferido pelo Min. Moreira Alves na Questão de Ordem na ADC n. 1, como se pode ler na seguinte passagem: “(...) é também inteiramente improcedente a alegação de que essa ação converteria o Poder Judiciário em legislador, tornando-o como que órgão consultivo dos Poderes Executivo e Legislativo. Essa alegação não atenta para a circunstância de que, visando a ação declaratória de constitucionalidade à preservação da presunção de constitucionalidade do ato normativo, é ínsito a essa ação, para caracterizar-se o interesse objetivo de agir por parte dos legitimados para propô-la, que preexista controvérsia que ponha em risco essa presunção, e, portanto, controvérsia judicial no exercício do controle difuso de constitucionalidade, por ser esta que caracteriza inequivocamente esse risco. Dessa controvérsia, que deverá ser demonstrada na inicial, afluem, inclusive, os argumentos pró e contra a constitucionalidade, ou não, do ato normativo em causa, possibilitando a esta Corte o conhecimento deles e de como têm sido eles apreciados judicialmente. Portanto, por meio dessa ação, o Supremo Tribunal Federal uniformizará o entendimento judicial sobre a constitucionalidade, ou não, de um ato normativo federal em face da Carta Magna, sem qualquer caráter, pois, de órgão consultivo de outro Poder, e sem que, portanto, atue, de qualquer modo, como órgão de certa forma participante do processo legislativo. Não há, assim, evidentemente, qualquer violação ao princípio da separação de Poderes”.75 Consagrou-se, portanto, na jurisprudência do Tribunal a exigência quanto à necessidade de demonstração da controvérsia judicial sobre a legitimidade da norma a fim de que se possa instaurar o controle abstrato de declaração de constitucionalidade. Também na Lei n. 9.868 é positivada a exigência quanto “à existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória” (art. 14, III). Convém observar que a exigência quanto à configuração de controvérsia judicial para que se possa, validamente, propor a ação declaratória de constitucionalidade enseja, às vezes, aplicação assaz restritiva. Assim, na ADC n. 8, relativa à contribuição de previdência de inativos e pensionistas, manifestou-se o Min. Celso de Mello em favor de uma valoração numérica da controvérsia judicial, enfatizando a necessidade de que “o autor desde logo demonstre que se estabeleceu, em termos numericamente relevantes, ampla controvérsia judicial em 75
RTJ 157(2)/371, voto do Min. Moreira Alves, pp. 385-386.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes torno da validade jurídica da norma federal (...)”, ou que seria “preciso – mais do que a mera ocorrência de dissídio pretoriano – que a situação de divergência jurisdicional, caracterizada pela existência de um volume expressivo de decisões conflitantes, faça instaurar, ante o elevado coeficiente de pronunciamentos judiciais colidentes, verdadeiro estado de insegurança jurídica, capaz de gerar um cenário de perplexidade social e de grave comprometimento da estabilidade do sistema de Direito Positivo vigente no país”.76 Essa orientação fica evidente se se considera a aplicação do juízo formulado em abstrato ao caso da contribuição de servidores ativos, inativos e pensionistas prevista na Lei n. 9.783/99: “Todas estas observações, feitas em torno de um dos pressupostos de admissibilidade da ação declaratória de constitucionalidade, justificam-se ante a circunstância de que o exame dos documentos que instruem a petição inicial evidencia que o autor, visando a demonstrar a existência de situação caracterizadora de grave incerteza, indicou 11 (onze) decisões alegadamente favoráveis à validade constitucional da Lei n. 9.783/99. “É importante destacar, quanto às 11 (onze) decisões arroladas pelo autor da presente ação declaratória, que tais pronunciamentos judiciais, em síntese, encerram o seguinte conteúdo: “a) houve duas decisões proferidas em sede de suspensão de segurança, pela E. Presidência do TRF da 4a Região, sob o fundamento de grave lesão à ordem e à economia públicas (fls. 207-208 e 211-213), sem qualquer análise do fundo da controvérsia mandamental; “b) houve duas decisões indeferitórias de liminar mandamental, ambas proferidas em caráter de cognição extremamente sumária (fls. 229 e 331), cabendo registrar que, dos dois processos, um – o MS n. 23.374-DF, Rel. Min. Octávio Gallotti – resultou extinto, sem julgamento de mérito (fls. 230); “c) houve uma decisão, proferida pela Presidência do TRF da 1a Região, que suspendeu tutela antecipada concedida em primeira instância, sendo de destacar, no entanto, que esse ato de cassação – que sequer analisou o mérito da causa – fundamentouse em aspectos absolutamente estranhos à questão constitucional ora em exame, pois limitou-se a proclamar a inidoneidade da ação civil pública para a defesa de direitos individuais homogêneos e a reconhecer a ilegitimidade ativa do Ministério Público para o ajuizamento dessa ação coletiva (fls. 215-221); “d) houve outra decisão, que, proferida em sede de agravo de instrumento, pelo E. TRF da 1a Região, limitou-se a conceder efeito suspensivo ao recurso, ‘por entender configurada hipótese de dano irreparável a eventual direito da parte’ (fls. 223), sem qualquer incursão, portanto, na análise da controvérsia constitucional ora em debate; “e) registrou-se uma decisão indeferitória de liminar mandamental, por não vislumbrar, o Magistrado que a proferiu, ‘de plano, liquidez e certeza do suposto direito alegado pelos impetrantes’, sem indicar, no entanto, qualquer outra fundamentação que pusesse em evidência, de maneira consistente, a validade constitucional da Lei n. 76
Despacho na ADC n. 8-DF/Medida Cautelar, Rel. Min. Celso de Mello, j. 4.8.99, DJ de 12.08.99, p. 1.076.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 9.783/99 (fls. 239); “f) a decisão de fls. 244-245, que também sequer tangenciou o fundo da controvérsia constitucional, restringiu-se a considerar satisfativa a liminar mandamental pleiteada, motivo pelo qual veio a indeferi-la; “g) houve, finalmente, três decisões indeferitórias de medida liminar, que, de maneira mais específica, porém em caráter de cognição superficial, abordaram a quaestio juris em causa (fls. 233, 234-238 e 240-243). “Esse registro numérico – que, na realidade, se reduz a apenas quatro decisões indeferitórias de medida liminar (‘b’ e ‘g’) – suscita uma indagação relevante: a constatação de reduzidíssimo número de decisões favoráveis à validade da Lei n. 9.783/99, todas proferidas em sede de cognição sumária, permitiria reconhecer, no caso, a ocorrência de situação de incerteza jurídica ou a caracterização de efetivo dissídio judicial na interpretação do diploma legislativo em questão?”77 A tentativa de resolver a controvérsia com dados estatísticos revela-se completamente inadequada. A questão parece estar a merecer um outro enfoque. A exigência quanto à configuração de controvérsia judicial ou de controvérsia jurídica associa-se não só à ameaça ao princípio da presunção de constitucionalidade – esta independe de um número quantitativamente relevante de decisões de um e de outro lado –, mas também, e sobretudo, à invalidação prévia de uma decisão tomada por segmentos expressivos do modelo representativo. A generalização de decisões contrárias a uma decisão legislativa não inviabiliza – antes recomenda – a propositura da ação declaratória de constitucionalidade. É que a situação de incerteza, na espécie, decorre não da leitura e da aplicação contraditória de normas legais pelos vários órgãos judiciais, mas da controvérsia ou dúvida que se instaura entre os órgãos judiciais, que de forma quaseunívoca adotam uma dada interpretação, e os órgãos políticos responsáveis pela edição do texto normativo. É fácil ver, pois, que o estabelecimento de uma comparação quantitativa entre o número de decisões judiciais num ou noutro sentido, com o objetivo de qualificar o pressuposto de admissibilidade da ação declaratória de constitucionalidade, contém uma leitura redutora e equivocada do sistema de controle abstrato na sua dimensão positiva. Parece elementar que se comprove a existência de controvérsia sobre a aplicação da norma em sede de ação declaratória de constitucionalidade, até mesmo para evitar a instauração de processos de controle de constitucionalidade antes mesmo de qualquer discussão sobre eventual aplicação da lei. A questão afeta a aplicação do princípio de separação dos Poderes em sua acepção mais ampla. A generalização de medidas judiciais contra uma dada lei nulifica completamente a presunção de constitucionalidade do ato normativo questionado e coloca em xeque a eficácia da decisão legislativa. A ação declaratória seria o instrumento adequado para a solução desse impasse jurídico-político, permitindo que os órgãos legitimados provoquem o STF com base em dados concretos, e não em simples disputa 77
Despacho na ADC n. 8-DF/Medida Cautelar, Rel. Min. Celso de Mello, j. 4.8.99, DJ de 12.08.99, p. 1.076.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes teórica. Assim, a exigência de demonstração de controvérsia judicial há de ser entendida, nesse contexto, como atinente à existência de controvérsia jurídica relevante, capaz de afetar a presunção de legitimidade da lei e, por conseguinte, a eficácia da decisão legislativa.
3. Objeto Podem ser impugnados por ação direta de inconstitucionalidade, nos termos do art. 102, I, “a”, primeira parte, da CF, leis ou atos normativos federais ou estaduais. Com isso, utilizou-se o constituinte de formulação abrangente de todos os atos normativos da União ou dos Estados. Objeto da ação declaratória - Já a ação declaratória de constitucionalidade, nos termos da segunda parte do mesmo artigo, só poderá versar sobre lei ou ato normativo federal. Por uma dessas ironias do processo legislativo, o legislador constituinte ampliou , na EC 45/2004, o direito de propositura da ADC sem ampliar o seu objeto, que continua a ser o direito federal. É de se esperar que, em um próximo passo, se conclua o aperfeiçoamento dessa ação, com a ampliação do objeto da ADC, que há de abranger também o direito estadual, tal como preconizado na proposta original, apresentada por Roberto Campos78. Antes da entrada em vigor da nova Constituição discutiu-se intensamente sobre a possibilidade de se submeter a lei municipal ao juízo de constitucionalidade abstrato. Enquanto algumas vozes na doutrina admitiam que a Constituição teria uma lacuna de formulação – e, por isso, a referência à lei estadual deveria contemplar também as leis municipais79 –, sustentavam outras opiniões autorizadas que os Estados poderiam, com base na autonomia estadual, instituir o modelo de ação direta com o objetivo de aferir a constitucionalidade da lei municipal.80 O STF afastou não só a possibilidade de aferição da constitucionalidade das leis municipais na via direta perante um tribunal estadual,81 como recusou expressamente a ampliação de sua competência para aferir diretamente a constitucionalidade dessas leis,82 entendendo que tal faculdade para o controle fora confiada estritamente e destinava-se apenas à aferição de constitucionalidade de leis federais ou estaduais. A ampliação dessa competência por via de interpretação traduziria uma ruptura com o sistema.83 A Constituição de 1988 introduziu no art. 125, § 2o, a 78 79
Cf., supra, item sobre a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade. Votos vencidos dos Mins. Cunha Peixoto e Rafael Mayer no RE n. 92.169, RTJ 103/1.085.
80
Ada Pellegrini Grinover, “A ação direta de controle da constitucionalidade na Constituição paulista” (pp. 55-56), Celso Bastos, “O controle judicial da constitucionalidade das leis e atos normativos municipais” (p. 72), J. A. da Silva, “Ação direta de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal” (p. 85), e Dalmo de Abreu Dallari, “Lei municipal inconstitucional” (p. 120), todos in Ação Direta de Controle de Constitucionalidade de Leis Municipais, 1979. 81
RE n. 91.740-RS, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 93(1)/455.
82
Repr. n. 1.405, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 127/394.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes previsão expressa para que o constituinte estadual adote o controle abstrato de normas destinado à aferição da constitucionalidade de leis estaduais ou municipais em face da Constituição estadual.84 Com a entrada em vigor da Lei n. 9.882 – que disciplina a argüição de descumprimento de preceito fundamental – este tema ganha novos contornos. Consoante o parágrafo único do mesmo art. 1o da citada lei, a argüição de descumprimento poderá ser utilizada para – de forma definitiva e com eficácia geral – solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito municipal em face da Constituição Federal pelo STF. Leis e atos normativos federais – Devemos entender como leis e atos normativos federais passíveis de ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade: 1. Disposições da Constituição propriamente ditas. Também entre nós é admissível a aferição de constitucionalidade do chamado direito constitucional secundário, uma vez que, segundo a doutrina e a jurisprudência dominantes, a reforma constitucional deve observar não apenas as exigências formais do art. 60, I, II e III, e §§ 1o, 2o e 3o, da CF, como também as cláusulas pétreas (art. 60, § 4o). O cabimento da aferição da constitucionalidade de uma emenda constitucional, em sentido formal e material, foi reconhecido já em 1926.85 Mais recentemente admitiu o STF a possibilidade de se examinar a constitucionalidade de proposta de emenda constitucional antes mesmo de sua promulgação.86 Já sob o império da Constituição de 1988 foram propostas ações diretas contra normas constitucionais constantes do texto originário,87 contra a EC n. 2, que antecipou a data do plebiscito previsto no art. 2o do ADCT,88 contra as disposições da EC n. 3/93, que instituíram a ação declaratória de constitucionalidade89 e o imposto provisório sobre movimentações financeiras (IPMF).90 2. Leis de todas as formas e conteúdos (observada a especificidade dos atos de efeito 83
Repr. n. 1.405, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 127/394.
Art. 125, § 2o: “Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão”. 84
85
HC n. 18.178, j. 27.9.26, RF 47/748-827.
86
MS n. 20.257, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 99/1.040.
87 ADIn n. 815 (Rel. Min. Moreira Alves), proposta pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul, que foi inadmitida por impossibilidade jurídica do pedido. 88
Cf., também, ADIns ns. 829, 830 e 833, Rel. Min. Moreira Alves, sobre a constitucionalidade da antecipação do plebiscito (EC n. 2, de 25.8.92). 89
ADIn n. 913, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 23.08.93, p. 16.457.
90
ADIn n. 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18.03.94, p. 5.165.
170
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes concreto), uma vez que o constituinte se vinculou à forma legal. Nesse contexto hão de ser contempladas as leis formais e materiais: 2.1 as leis formais ou atos normativos federais, dentre outros; 2.2 as medidas provisórias, expedidas pelo Presidente da República em caso de relevância ou urgência, com força de lei (art. 62, c/c o art. 84, XXVI). Essas medidas perdem a eficácia se não aprovadas pelo Congresso Nacional no prazo de 30 dias (CF, art. 62). Nenhuma dúvida subsiste sobre a admissibilidade do controle abstrato em relação às medidas provisórias.91 O STF tem concedido inúmeras liminares com o propósito de suspender a eficácia dessas medidas como ato dotado de força normativa, ressalvando, porém, a sua validade enquanto proposição legislativa suscetível de ser convertida ou não em lei.92 Não se questiona, diante da jurisprudência tradicional do Tribunal, que, rejeitada expressamente a medida provisória ou decorrido in albis o prazo constitucional para sua apreciação pelo Congresso Nacional, há de se ter por prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade.93 Igualmente pacífico se afigura o entendimento segundo o qual “não prejudica a ação direta de inconstitucionalidade material de medida
91
Em 1990 o Min. Marco Aurélio, no julgamento da ADIn n. 295, chegou a sustentar que não se deveria fazer o controle de constitucionalidade de medida provisória antes de uma deliberação definitiva do Congresso Nacional. A seguinte passagem do voto sintetiza a argumentação desenvolvida pelo eminente Ministro, verbis: “A medida provisória (...) é editada de forma provisória, como está na própria designação, para que ocorra o pronunciamento do Congresso Nacional. E, uma vez decorrendo o prazo – ficando, portanto, fulminada ab initio a medida provisória –, ao Congresso Nacional cumpre disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes. “Indaga-se, frente à harmonia entre os Poderes – base de um entendimento maior: essa apreciação pode ser obstaculizada por uma ação direta de inconstitucionalidade? É esta a matéria que coloco. A meu ver, não pode ser obstaculizada, porque, caso contrário, o Judiciário estará adentrando um campo em relação ao qual se tem a previsão da atuação de um outro Poder, que é o Poder Legislativo. E na apreciação da ação direta de inconstitucionalidade poder-se-á chegar até mesmo à declaração da pecha e, mediante essa declaração, à retirada de qualquer efeito da medida no mundo jurídico. “Vejam os eminentes Pares que a Constituição revela que o Congresso Nacional, na hipótese de decurso do prazo, deve disciplinar as relações jurídicas decorrentes das medidas provisórias. Essa disciplina não pode ser e não é alcançável mediante uma ação direta de inconstitucionalidade. “Por isso, Sr. Presidente, muito embora admitindo a normatividade da medida, tenho para mim que não cabe, contra essa mesma medida, contra esse instituto, ação direta de inconstitucionalidade. “É a matéria preliminar que exponho, convencido que estou da necessidade de se preservar a própria atuação do Legislativo; da necessidade, até mesmo, de se adotar uma política judiciária que homenageie, no caso, a assunção de responsabilidade pelos Poderes da União. Inicialmente, portanto, permito-me, frente até mesmo ao Regimento da Casa, expor esta matéria – não sei se anteriormente foi discutida, porque tomei posse há pouco –, concluindo pela impertinência da ação direta de inconstitucionalidade contra medida provisória” (ADIn n. 295, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 22.08.97). Essa preliminar foi rejeitada categoricamente pelo Tribunal. 92
ADIn n. 293, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 16.04.93, p. 6.429; ADIn n. 427, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 01.02.91, p. 351. 93
ADIn n. 525, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 04.09.91, p. 11.929; ADIn n. 529, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 04.09.91, p. 11.930; ADIn n. 298, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 21.11.90, p. 13.427; ADIn n. 300, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 21.11.90, p. 13.427; ADIn n. 292, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 16.04.93, p. 6.428.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes provisória a sua intercorrente conversão em lei sem alterações, dado que a sua aprovação e promulgação integrais apenas lhe tornam definitiva a vigência, com eficácia ex tunc e sem solução de continuidade, preservada a identidade originária do seu conteúdo normativo, objeto da argüição de invalidade”.94 Não parece, todavia, isenta de dúvida a jurisprudência que entende prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade em decorrência da aprovação da medida provisória com alterações, considerando inadmissível até o eventual aditamento da inicial para os fins de adequação do pedido originariamente formulado à nova conformação do texto normativo.95 As medidas provisórias não se confundem com as leis temporárias exatamente porque suas disposições são dotadas de pretensão de definitividade e se destinam a ser mantidas sob a forma de lei.96 Em outros termos, precária é apenas a medida provisória enquanto ato normativo; as disposições dela constantes estão vocacionadas a uma vigência indeterminada. Relevante, portanto, para o processo de controle de normas, não é saber se determinada medida provisória foi aprovada com alteração, mas sim se essas modificações alteraram, substancialmente, o objeto da ação instaurada, de modo a afetar a sua própria existência. É fácil ver que a aprovação de medida provisória com simples alteração formal do texto originário não deveria suscitar maiores problemas no juízo abstrato de normas, uma vez que restaria íntegro e plenamente válido o pedido formulado, sendo facultado ao Tribunal, se entender devido, requerer novas informações junto ao Poder Executivo, bem como solicitar as informações do Congresso Nacional. As manifestações da Advocacia-Geral da União e do Procurador-Geral da República, se já verificadas, poderiam ser, igualmente, aditadas sem qualquer prejuízo para a ordem processual. Evidentemente, se a medida provisória for aprovada com alterações de tal monta que importem mesmo a derrogação da disposição normativa impugnada,97 nada mais resta senão proceder-se à extinção do processo. Ao contrário, subsistente, na sua essência, a disposição que deu ensejo à propositura da ação, não deve o feito ser extinto, porque resta íntegra a pretensão formulada legitimamente por um dos titulares do direito de propositura, inexistindo solução de continuidade no plano de vigência das normas. Assim, se o art. 1o da medida provisória “X” continua a vigorar, na sua essência, como art. 1o ou como art. 2o da lei “Y” não há que se cogitar de derrogação ou ab-rogação. Dúvidas poderiam surgir se o texto impugnado da medida provisória fosse aprovado com significativas alterações de forma ou conteúdo. Como explicitado, as modificações de índole formal não parecem aptas a afetar a existência do processo de controle abstrato, instaurado com o objetivo de aferir a legitimidade de determinada disposição em face da Constituição, não devendo assumir, por isso, maior importância o fato de a disposição ter sido aprovada como art. 4o da lei “Y” e não como art. 1o, tal como proposto na medida provisória. Da mesma forma, alterações redacionais não devem levar ao entendimento de
94
ADIn n. 691, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 19.06.92, pp. 9.519-9.520.
95
ADIn n. 258, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 28.02.92, p. 2.169.
96
Cf., sobre o assunto, no Direito italiano, Carlo Esposito, “Decreto-legge”, in Enciclopedia del Diritto, v. 11, Varese, 1962, p. 831 (845).
97
ADIn n. 399, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 07.02.92, p. 737.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes que se cuida, agora, de uma outra norma, que, por isso, deve ter a sua constitucionalidade aferida em novo processo. 3. Decreto legislativo que contém a aprovação do Congresso aos tratados e autoriza ao Presidente da República ratificá-los em nome do Brasil (CF, art. 49, I). O decreto legislativo apenas formaliza, na ordem jurídica brasileira, a concordância definitiva do Parlamento em relação ao tratado.98 A autorização para aplicação imperativa somente ocorre, após a sua ratificação, com a promulgação através de decreto.99 O processo do controle abstrato de normas poderia, todavia, ser instaurado após a promulgação do decreto legislativo, uma vez que se trata de ato legislativo que produz conseqüências para a ordem jurídica.100 4. O decreto do Chefe do Executivo que promulga os tratados e convenções. 5. O decreto legislativo do Congresso Nacional que suspende a execução de ato do Executivo, em virtude de incompatibilidade com a lei regulamentada (CF, art. 49, V).101 6. Os atos normativos editados por pessoas jurídicas de direito público criadas pela União, bem como os regimentos dos Tribunais Superiores, podem ser objeto do controle abstrato de normas se configurado seu caráter autônomo, não meramente ancilar. 7. O decreto legislativo aprovado pelo Congresso Nacional com o escopo de sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (CF, art. 49, V).102 8. Também outros atos do Poder Executivo com força normativa, como os pareceres da Consultoria-Geral da República, devidamente aprovados pelo Presidente da República (Decreto n. 92.889, de 7.7.86).103 Leis e atos normativos estaduais – Devem ser considerados como leis ou atos normativos estaduais, podendo ser objeto somente de ação direta de inconstitucionalidade: 1. Disposições das Constituições estaduais, que, embora tenham a mesma natureza das normas da Constituição Federal, devem ser compatíveis com princípios específicos e regras gerais constantes do texto fundamental (CF, art. 25, c/c o art. 34, VII, princípios
98
J. F. Rezek, Direito dos Tratados, Rio, 1984, pp. 382-385.
99
Rezek, Direito dos Tratados, cit., p. 333.
100
Existe pelo menos um processo no qual o controle abstrato de normas foi instaurado após a entrada em vigor do Tratado: Repr. n. 803, Rel. Min. Djaci Falcão, RTJ 84/724 e ss. 101
A Constituição de 1988 incorporou disposição da Constituição que outorgava essa atribuição ao Senado Federal. Tal como reconhecido por Pontes de Miranda, essa competência outorgava ao Senado, ainda que parcialmente, poderes de uma Corte Constitucional (cf. Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, v. 1, p. 364). Cf., também, ADIn n. 748, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 06.11.92, pp. 20.105-20.106. 102
Cf., sobre o assunto, ADIn n. 748, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 06.11.92, p. 20.105.
103
Cf. ADIn n. 4, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 25.06.93, p. 12.637.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes sensíveis). 2. Leis estaduais de qualquer espécie ou natureza, independentemente de seu conteúdo. 3. Leis estaduais editadas para regulamentar matéria de competência exclusiva da União (CF, art. 22, parágrafo único). 4. Decreto editado com força de lei.104 5. Regimentos internos dos tribunais estaduais, assim como os Regimentos das Assembléias Legislativas. 6. Atos normativos expedidos por pessoas jurídicas de direito público estadual podem, igualmente, ser objeto de controle abstrato de normas. Leis e atos normativos distritais – Tal como afirmado,105 não existia razão jurídica para afastar do controle abstrato de constitucionalidade os órgãos superiores do Distrito Federal. Com a promulgação da EC nº 45/2004, a questão ficou definitivamente superada. A nova redação conferida ao art. 103 da CF incluiu o Governador do Distrito Federal e a Mesa da Câmara Legislativa no elenco dos entes e órgãos autorizados a propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. Razões semelhantes já militavam em favor do controle de constitucionalidade na jurisprudência do STF, por via de ação direta de inconstitucionalidade, de ato aprovado pelos Poderes distritais no exercício da competência tipicamente estadual.106 É que, não obstante as peculiaridades que marcam o Distrito Federal, os atos normativos distritais — leis, decretos etc. — são substancialmente idênticos aos atos normativos estaduais, tal como deflui diretamente do art. 32, § 1°, na parte em que atribui ao Distrito Federal as competências legislativas reservadas aos Estados107. Assinale-se, porém, que a própria fórmula constante do art. 32, § 1°, da Constituição está a indicar que o Distrito Federal exerce competências legislativas municipais, editando, por isso, leis e atos normativos materialmente idênticos àqueles editados pelos demais entes comunais. Nessa hipótese, diante da impossibilidade de se proceder ao exame direto de constitucionalidade da lei municipal, perante o Supremo Tribunal Federal, em face da Constituição, tem-se de admitir, que descabe “ação direta de inconstitucionalidade, cujo objeto seja ato normativo editado pelo Distrito Federal, no exercício de competência que Lei Fundamental reserva aos Municípios”108, tal como, por exemplo, “a disciplina e
104
Cf. ADIn n. 460-3, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 10.05.91, p. 5.929; ADIn n. 519-7, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 11.10.91, p. 14.248. 105
Cf., supra, subitem “Governador de Estado e do Distrito Federal/Assembléia Legislativa e Câmara Legislativa Distrital”. 106
Cf. ADIn n. 611, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 11.12.92; ADIn n. 1.375, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 23.02.96. 107 ADIn 665, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ, 24 abr. 1992, p. 5376. 108 ADInMC n° 371-DF (Rel. Min. Paulo Brossard), DJ de 19.02.1993; ADInMC n° 409-DF (Rel. Min. Celso de Mello), DJ de 15.03.1991; ADInMC n° 611-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes polícia do parcelamento do solo”109.
Atos legislativos de efeito concreto – A jurisprudência do STF tem considerado inadmissível a propositura de ação direta de inconstitucionalidade contra atos de efeito concreto. Assim, tem-se afirmado que a ação direta é o meio pelo qual se procede ao controle de constitucionalidade das normas jurídicas in abstracto, não se prestando ela “ao controle de atos administrativos que têm objeto determinado e destinatários certos, ainda que esses atos sejam editados sob a forma de lei – as leis meramente formais, porque têm forma de lei, mas seu conteúdo não encerra normas que disciplinam relações em abstrato”.110 Na mesma linha de orientação, afirma-se que “atos estatais de efeitos concretos, ainda que veiculados em texto de lei formal, não se expõem, em sede de ação direta, à jurisdição constitucional abstrata do Supremo Tribunal Federal”, porquanto “a ausência de densidade normativa no conteúdo do preceito legal impugnado desqualifica-o – enquanto objeto juridicamente inidôneo – para o controle normativo abstrato”.111 Em outro julgado afirmou-se que disposição constante da lei orçamentária que fixava determinada dotação configuraria ato de efeito concreto, insuscetível de controle jurisdicional de constitucionalidade por via de ação (“Os atos estatais de efeitos concretos – porque despojados de qualquer coeficiente de normatividade ou de generalidade abstrata – não são passíveis de fiscalização, em tese, quanto à sua legitimidade constitucional”).112 Identifica-se esforço no sentido de precisar a distinção entre normas gerais e normas de efeito concreto na seguinte reflexão de Pertence:
“ É expressiva dessa orientação jurisprudencial a decisão que não conheceu da ADIn n° 2100, 17.12.99, JOBIM, DJ 01.06.01: "Constitucional. Lei de Diretrizes Orçamentárias. Vinculação de percentuais a programas. Previsão da inclusão obrigatória de 11.12.1992; ADInMC n° 880-DF (Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ de 04.02.1994; ADInMC n° 1.375DF (Rel. Min. Moreira Alves), DJ de 23.02.1996; ADIn n° 1.832-DF (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 07.08.1998; ADIn n° 1.812-DF (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 04.09.1998; ADIn n° 209-DF (Rel. Min. Sydney Sanches), DJ de 11.09.1998; ADInMC n° 1.472-DF (Rel. Min. Ilmar Galvão), DJ de 09.03.2001; ADInMC n° 1.750-DF (Rel. Min. Nelson Jobim), DJ de 14.06.2002; ADInMC n° 2.448-DF (Rel. Min. Sydney Sanches), DJ de 13.06.2003; ADInMC n° 1.706-DF (Rel. Min. Nelson Jobim), DJ de 01.08.2003. 109 ADIn 611-8, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ, 11 dez. 1992, p. 23662. 110
ADIn n. 647, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 27.03.92, p. 3.801.
111
ADIn n. 842, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 14.05.93, p. 9.002; cf., também, ADIn n. 647, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 27.03.92, p. 3.801, e ADIn n. 767, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 18.06.93, p. 12.110. 112
ADIn n. 283, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 12.03.90, p. 1.691.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes investimentos não executados do orçamento anterior no novo. Efeitos concretos. Não se conhece de ação quanto a lei desta natureza. Salvo quando estabelecer norma geral e abstrata. ação não conhecida." A contraposição, no precedente, da disposição legal de efeitos concretos à regra geral e abstrata amolda-se à distinção, na obra póstuma de Hans Kelsen, entre a norma de caráter individual quando se torna individualmente obrigatória uma conduta única - e a norma de caráter geral - na qual "uma certa conduta é universalmente posta como devida" (Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas -, trad. G. Florentino Duarte, Fabris Ed., 1986, p.11). "O caráter individual de uma norma" - explica o mestre da Escola de Viena - "não depende de se a norma é dirigida a um ser humano individualmente determinado ou a várias pessoas individualmente certas ou a uma categoria de homens, ou seja, a uma maioria não individualmente, mas apenas de certas pessoas de modo geral.Também pode ter caráter geral uma norma que fixa como devida a conduta de uma pessoa individualmente designada, não apenas uma conduta única, individualmente determinada, é posta como devida, mas uma conduta dessa pessoa estabelecida em geral. Assim quando, p.ex., por uma norma moral válida - ordem dirigida a seus filhos - um pai autorizado ordena a seu filho Paul ir à igreja todos os domingos ou não mentir. Essas normas gerais são estabelecidas pela autoridade autorizada pela norma moral válida; para os destinatários das normas, são normas obrigatórias, se bem que elas apenas sejam dirigidas a uma pessoa individualmente determinada. Se pela autoridade para tanto autorizada por uma norma moral válida é dirigido um mandamento a uma maioria de sujeitos individualmente determinados e apenas é imposta uma certa conduta individualmente - como, porventura, no fato de um pai que ordenou a seus filhos Paul, Jugo e Friedrich felicitarem seu professor Mayer pelo 50° aniversário - então há tantas normas individuais quantos destinatários de norma. O que é devido numa norma - ou ordenado num imperativo - é uma conduta definida. Esta pode ser uma conduta única, individualmente certa, conduta de uma ou de várias pessoas individualmente; pode, por sua vez, de antemão, ser um número indeterminado de ações ou omissões de uma pessoa individualmente certa ou de uma determinada categoria de pessoas. Esta é a decisiva distinção." 113 A extensão dessa jurisprudência, desenvolvida para afastar do controle abstrato de normas os atos administrativos de efeito concreto, às chamadas leis formais suscita, sem dúvida, alguma insegurança, porque coloca a salvo do controle de constitucionalidade um 113
ADIn n° 2535, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 21.11.2003.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes sem-número de leis. Não se discute que os atos do Poder Público sem caráter de generalidade não se prestam ao controle abstrato de normas, porquanto a própria Constituição elegeu como objeto desse processo os atos tipicamente normativos, entendidos como aqueles dotados de um mínimo de generalidade e abstração. Ademais, não fosse assim, haveria uma superposição entre a típica jurisdição constitucional e a jurisdição ordinária. Outra há de ser, todavia, a interpretação, se se cuida de atos editados sob a forma de lei. Nesse caso, houve por bem o constituinte não distinguir entre leis dotadas de generalidade e aqueloutras, conformadas sem o atributo da generalidade e abstração. Essas leis formais decorrem ou da vontade do legislador ou do desiderato do próprio constituinte, que exige que determinados atos, ainda que de efeito concreto, sejam editados sob a forma de lei (v. g., lei de orçamento, lei que institui empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia e fundação pública). Ora, se a Constituição submete a lei ao processo de controle abstrato, até por ser este o meio próprio de inovação na ordem jurídica e o instrumento adequado de concretização da ordem constitucional, não parece admissível que o intérprete debilite essa garantia da Constituição, isentando um número elevado de atos aprovados sob a forma de lei do controle abstrato de normas e, muito provavelmente, de qualquer forma de controle. É que muitos desses atos, por não envolverem situações subjetivas, dificilmente poderão ser submetidos a um controle de legitimidade no âmbito da jurisdição ordinária. Ressalte-se que não se vislumbram razões de índole lógica ou jurídica contra a aferição da legitimidade das leis formais no controle abstrato de normas, até porque abstrato — isto é, não vinculado ao caso concreto — há de ser o processo e não o ato legislativo submetido ao controle de constitucionalidade. Por derradeiro, cumpre observar que o entendimento acima referido do Supremo Tribunal acaba, em muitos casos, por emprestar significado substancial a elementos muitas vezes acidentais: a suposta generalidade, impessoalidade e abstração ou a pretensa concretude e singularidade do ato do Poder Público. Os estudos e análises no plano da teoria do direito indicam que tanto se afigura possível formular uma lei de efeito concreto — lei casuística — de forma genérica e abstrata quanto seria admissível apresentar como lei de efeito concreto regulação abrangente de um complexo mais ou menos amplo de situações114. Todas essas considerações parecem demonstrar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não andou bem ao considerar as leis de efeito concreto como inidôneas para o controle abstrato de normas. Sem embargo, é importante ressaltar que, recentemente, o referido Tribunal115 reconheceu o caráter normativo de disposições de Lei Orçamentária Anual da União (Lei n° 10.640/2003, que disciplinou a destinação da receita da CIDE-Combustíveis).116 Na espécie, por maioria, acolheu-se a preliminar de cabimento de ação direta de 114
Cf. J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 5. ed., Coimbra, 1992, p. 625-6; Pieroth e Schlink, Grundrechte - Staatsrecht II, Heidelberg, 1988, p. 78. 115 ADIn n° 2925-DF (Rel. Min. Ellen Gracie), julgada em 11/12/2003. 116 Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico dos Combustíveis.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes inconstitucionalidade contra lei orçamentária, sob o argumento de que os dispositivos impugnados eram dotados de suficiente abstração e generalidade. Essa nova orientação parece mais adequada, porque, ao permitir o controle de legitimidade no âmbito da legislação ordinária, garante a efetiva concretização da ordem constitucional. Direito pré-constitucional – O STF admitiu, inicialmente, a possibilidade de examinar no processo do controle abstrato de normas a questão da derrogação do Direito pré-constitucional, em virtude de colisão entre este e a Constituição superveniente. Nesse caso julgava-se improcedente a representação, mas se reconhecia expressamente a existência da colisão e, portanto, a incompatibilidade entre o Direito ordinário préconstitucional e a nova Constituição.117 O Tribunal tratava esse tema como uma questão preliminar, que haveria de ser decidida no processo de controle abstrato de normas. Essa posição foi abandonada, todavia, em favor do entendimento de que o processo do controle abstrato de normas destina-se, fundamentalmente, à aferição da constitucionalidade de normas pós-constitucionais.118 Dessa forma, eventual colisão entre o Direito pré-constitucional e a nova Constituição deveria ser simplesmente resolvida segundo os princípios de Direito Intertemporal.119 Assim, caberia à jurisdição ordinária, tanto quanto ao STF, examinar a vigência do Direito pré-constitucional no âmbito do controle incidente de normas, uma vez que, nesse caso, cuidar-se-ia de simples aplicação do princípio lex posterior derogat priori, e não de um exame de constitucionalidade. Também aqui devemos notar que a Lei n. 9.882, no parágrafo único de seu art. 1o, altera o rumo das discussões. É que, consoante com o teor deste dispositivo, a argüição de descumprimento de preceito fundamental poderá ser utilizado para – de forma definitiva e com eficácia geral – solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito ordinário pré-constitucional em face da nova Constituição. Vale ainda registrar que a sucessão de Emendas Constitucionais está fazendo surgir um outro fenômeno ligado à questão da lei e do direito intertemporal. É que a alteração substancial do parâmetro de controle por Emendas Constitucionais supervenientes tem levado o Tribunal a considerar prejudicada a ação direta.120
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Repr. n. 946, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 82/44; Repr. n. 969, Rel. Min. Antônio Neder, RTJ 99/544. 118
Repr. n. 946, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 82/44; Repr. n. 969, Rel. Min. Antônio Neder, RTJ 99/544. 119
Repr. n. 1.012, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 95/990.
120
Cf. ADIn(MC) nº 949, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 12.11.1993; ADIn(QO) nº 1836, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 04.12.1998; ADIn nº 1137, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 25.03.1999; ADIn(QO) nº 1907, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJ de 26.03.1999; ADIn nº 1674, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 28.05.1999; ADIn(MC) nº 1717, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 25.02.2000; ADIn nº 1434, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 25.02.2000; ADIn(MC) nº 2112, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 11.05.2000; ADIn(MC) nº 561, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.03.2001; ADIn(MC) nº 1946, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 14.09.2001; ADIn nº 1550, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 21.09.2001;
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Entende-se que, neste caso, não se justifica o prosseguimento da ação, tendo em vista o caráter objetivo do processo, devendo o tema ser discutido no âmbito do sistema difuso. Essa orientação merece ser revista, uma vez que acaba por distorcer a função do modelo abstrato de normas, que é o de criar segurança jurídica mediante decisão dotada de eficácia geral. O reconhecimento da prejudicialidade no caso em apreço, embora reflita a orientação defensiva que tem presidido a jurisprudência da Corte, contribui, decisivamente, para a indefinição do tema, remetendo a questão, inicialmente submetida ao controle abstrato, para o sistema difuso. Subsistiria, porém, a indagação quanto ao exame da norma impugnada em face da norma constitucional superveniente.121 Não parece haver razão que impeça o prosseguimento do feito em relação ao parâmetro alterado ou revogado.
Projetos de lei – O controle abstrato de normas pressupõe, também na ordem jurídica brasileira, a existência formal da lei ou do ato normativo após a conclusão definitiva do processo legislativo. Não se faz mister, porém, que a lei esteja em vigor. Tal como explicitado em acórdão recente, a ação direta de inconstitucionalidade somente pode ter “como objeto juridicamente idôneo leis e atos normativos, federais e estaduais, já promulgados, editados e publicados”.122 Essa orientação exclui a possibilidade de se propor ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade de caráter preventivo.123 Ato normativo revogado – A jurisprudência do STF considera inadmissível a propositura da ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo já revogado.124 Sob o império da Constituição de 1967/1969 entendia-se que se a revogação ocorresse após a propositura da ação era possível que o Tribunal procedesse à aferição da constitucionalidade da lei questionada, desde que a norma tivesse produzido algum efeito no passado. Caso contrário proceder-se-ia à extinção do processo por falta de objeto.125 Elidia-se, assim, a possibilidade de que o legislador viesse a prejudicar o exame da questão pelo Tribunal através da simples revogação. Esse entendimento do Tribunal ADIn nº 1717, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 28.03.2003; ADIn(MC) nº 2830, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 02.05.2003; ADIn nº 2009, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 09.05.2003; ADIn nº 2055, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 04.06.2003; ADIn nº 909, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 06.06.2003. 121
Cf., a propósito, minha manifestação na ADI nº 2670, da relatoria do Min. Maurício Corrêa, red. para o acórdão, Min. Ellen Gracie, DJ de 25.10.2004. 122 ADIn n. 466-2, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 10.05.91, pp. 5.929-5.930. 123 ADIn n. 466, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 10.05.91, p. 5.929; v., também, Mendes, Controle de Constitucionalidade, cit., p. 264. 124
Repr. 1.034, Rel. Min. Soares Muñoz, RTJ 111/546; Repr. n. 1.120, Rel. Min. Décio Miranda, RTJ 107/928-930; Repr. n. 1.110, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 25.03.83. 125
Repr. n. 876, Rel. Min. Bilac Pinto, DJ de 15.06.73; Repr. n. 974, Rel. Min. Cunha Peixoto, RTJ 84/39; Repr. n. 1.161, Rel. Min. Néri da Silveira, RTJ 115/576-589.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes impôs-se contra a resistência de algumas vozes. Sustentou-se a opinião de que se a lei não está mais em vigor, isto é, se ela não mais existe, não haveria razão para que se aferisse a sua validade no âmbito do controle de constitucionalidade126. Esse entendimento dominante subsistiu, ainda, sob o regime da Constituição de 1988.127 Tal orientação sofreria mudança a partir do julgamento da ADIn n. 709 (Questão de Ordem), quando o STF passou a admitir que a revogação superveniente da norma impugnada, independentemente da existência ou não de efeitos residuais e concretos, prejudica o andamento da ação direta.128 A posição do Tribunal que obsta ao prosseguimento da ação após a revogação da lei pode levar, seguramente, a resultados insatisfatórios. Se o Tribunal não examina a constitucionalidade das leis já revogadas torna-se possível que o legislador consiga isentar do controle abstrato lei de constitucionalidade duvidosa, sem estar obrigado a eliminar as suas conseqüências inconstitucionais. É que mesmo uma lei revogada configura parâmetro e base legal para os atos de execução praticados durante o período de sua vigência.129-130 A problemática dos tratados - Ao contrário do sistema adotado na Alemanha131, o Congresso Nacional aprova o tratado mediante a edição de decreto legislativo (CF, art. 49, I), ato que dispensa sanção ou promulgação por parte do Presidente da República. Tal como observado, o decreto legislativo contém a aprovação do Congresso Nacional ao tratado e simultaneamente a autorização para que o Presidente da República o ratifique em nome da República Federativa do Brasil.132 Esse ato não contém, todavia, uma ordem de execução do tratado no território nacional, uma vez que somente ao Presidente da República cabe decidir sobre sua ratificação. Com a promulgação do Tratado por meio do decreto do Chefe do Executivo, recebe aquele ato a ordem de execução, passando, assim,
126
Voto vencido do Min. Moreira Alves, Repr. n. 971, Rel. Min. Djaci Falcão, RTJ 87/758 (765).
127
ADIn n. 434, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJ de 17.06.91, p. 8.171; ADIn n. 502, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 27.05.91, p. 6.906.
128
ADIn n. 709, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ de 20.05.92, p. 12.248; ADIn n. 262, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 08.03.93; ADIn n. 712, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 25.02.93, p. 2.287.
129 Rinck, Hans-Justus. Initiative für die Verfassungsmässige Prüfung von Rechtsnormen, EuGRZ 1974, p. 91 (96). 130
Com a regulamentação da ADPF pela Lei n. 9.882 o tema do controle abstrato de constitucionalidade dos atos normativos revogados ganha outro contorno. É que, conforme estabelece o art. 1o, parágrafo único, I, da lei citada, a ADPF – ação destinada, basicamente, ao controle abstrato de normas – é cabível em qualquer controvérsia constitucional relevante sobre ato normativo federal, estadual ou municipal. 131
132
Cf. Mendes, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, p.120. Rezek, José Francisco. Direito dos Tratados . Rio de Janeiro: Forense, 1984, p.332.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes a ser aplicado de forma geral e obrigatória.133 Esse modelo permite a propositura da ação direta para aferição da constitucionalidade do decreto legislativo, possibilitando que a ratificação e, portanto, a recepção do tratado na ordem jurídica interna ainda sejam obstadas. É dispensável, pois, qualquer esforço com vistas a conferir caráter preventivo ao controle abstrato de normas na hipótese. É possível, igualmente, utilizar-se da medida cautelar para retardar ou suspender a ratificação dos tratados até a decisão final (art. 102, I, p, da Constituição).134 Em 1997, o Tribunal teve a oportunidade de apreciar, na ADIn n. 1.480, a constitucionalidade dos atos de incorporação, no direito brasileiro, da Convenção n.158 da OIT. A orientação perfilhada pela Corte é a de que é na Constituição da República que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro, pois o primado da Constituição, em nosso sistema jurídico, é oponível ao princípio do pacta sunt servanda, inexistindo, portanto, em nosso direito positivo, o problema da concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, “cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público”135. É possível, igualmente, utilizar-se da medida cautelar para retardar ou suspender a ratificação dos tratados até a decisão final do julgamento do mérito da ADIn (art. 102, I, p, da Constituição)136. Nos termos do art. 5º, § 3º da Constituição, na versão da EC 45/2004 (Reforma do Judiciário), “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Independentemente de qualquer outra discussão sobre o tema, afigura-se inequívoco que o tratado de direitos humanos que vier a ser submetido a esse procedimento especial de aprovação configurará, para todos os efeitos, parâmetro de controle das normas infraconstitucionais. Lei Estadual e Concorrência de Parâmetros de Controle - Convém alertar que a competência concorrente de Tribunais constitucionais estaduais e federal envolve algumas cautelas. Evidentemente, a sentença de rejeição de inconstitucionalidade proferida por uma Corte não afeta o outro processo, pendente perante outro tribunal, que há de decidir com fundamento em parâmetro de controle autônomo137. Todavia, declarada a inconstitucionalidade de direito local em face da Constituição estadual, com efeito erga omnes, há de se reconhecer a insubsistência de qualquer 133
Rezek, Direito dos Tratados, cit., p.383. Não há clareza na jurisprudência do Tribunal sobre o significado da medida liminar no controle abstrato de normas. Às vezes se cogita de suspensão de vigência ou de suspensão de eficácia, ou, ainda, de uma suspensão de execução (Rp. 933, Rel. Min. Thompson Flores, RTJ, 76:342; Rp. 1.391, Rel. Min. Moreira Alves, p.188 e s.). 135 cf. ADIMC n. 1.480, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 26.06.2001. 136 Não há clareza na jurisprudência do Tribunal sobre o significado da medida liminar no controle abstrato de normas. Às vezes se cogita de suspensão de vigência ou de suspensão de eficácia, ou, ainda, de uma suspensão de execução (Rp. 933, Rel. Min. Thompson Flores, RTJ, 76:342; Rp. 1.391, Rel. Min. Moreira Alves, p. 188 e s.). 137 BVerfGE, 34:52(58); Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 376-7; Stern, Kommentar, cit., art. 100, n° 49. 134
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes processo eventualmente ajuizado perante o Supremo Tribunal Federal que tenha por objeto a mesma disposição. Assim também a declaração de inconstitucionalidade da lei estadual em face da Constituição Federal torna insubsistente (gegenstandslos) ou sem objeto eventual argüição, pertinente à mesma norma, requerida perante Corte estadual138. Ao contrário, a suspensão cautelar da eficácia de uma norma no juízo abstrato, perante o Tribunal de Justiça ou perante o Supremo Tribunal Federal, não torna inadmissível a instauração de processo de controle abstrato em relação ao mesmo objeto, nem afeta o desenvolvimento válido de processo já instaurado perante outra Corte139. Problemática há de se revelar a questão referente aos processos instaurados simultaneamente perante Tribunal de Justiça estadual e perante o Supremo Tribunal Federal no caso de ações diretas contra determinado ato normativo estadual em face de parâmetros estadual e federal de conteúdo idêntico. Se a Corte federal afirmar a constitucionalidade do ato impugnado em face do parâmetro federal, poderá o Tribunal estadual considerá-lo inconstitucional em face de parâmetro estadual de conteúdo idêntico? Essa questão dificilmente pode ser solvida com recurso às conseqüências da coisa julgada e da eficácia erga omnes, uma vez que esses institutos, aplicáveis ao juízo abstrato de normas, garantem a eficácia do julgado enquanto tal, isto é, com base no parâmetro constitucional utilizado. Pretensão no sentido de se outorgar eficácia transcendente à decisão equivaleria a atribuir força de interpretação autêntica à decisão do Tribunal federal. No plano dogmático, pode-se reconhecer essa conseqüência se se admitir que as decisões do Supremo Tribunal Federal são dotadas de efeito vinculante (Bindungswirkung), que se não limita à parte dispositiva, mas se estende aos fundamentos determinantes da decisão. Assim, pelo menos no que se refere às ações diretas de inconstitucionalidade julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, poder-se-ia cogitar de um efeito transcendente se a questão estadual versasse também sobre a norma de reprodução obrigatória pelo Estadomembro. Observe-se, outrossim, que o Tribunal tem entendido que, em caso de propositura de ADIn perante o STF e perante o TJ contra uma dada lei estadual, com base em direito constitucional federal de reprodução obrigatória pelos Estados-membros, há de se suspender o processo no âmbito da Justiça Estadual até a deliberação definitiva da Suprema Corte140. O Supremo Tribunal Federal acabou, portanto, por consagrar uma causa especial de suspensão do processo no âmbito da Justiça local, nos casos de tramitação paralela de ações diretas perante o Tribunal de Justiça e perante a própria Corte relativamente ao mesmo objeto, e com fundamento em norma constitucional de reprodução obrigatória por parte do Estado-membro.
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Cf. Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 376; Stern, Kommentar, cit., art. 100, n° 149. Parece evidente que, deferida a suspensão cautelar perante uma Corte, inadmissível é a concessão de liminar por outra, uma vez que manifesta a ausência dos pressupostos processuais. 140 Cf. ADIn (MC) nº 1423, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 22.11.96; sobre a possibilidade de suspensão do processo, cf. ainda Rcl (Ag.Reg) nº 425, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 22.10.1993. 139
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4. Parâmetro de Controle Considerações preliminares - Nos termos do art. 102, I, a, da Constituição, parâmetro do processo de controle abstrato de normas é, exclusivamente, a Constituição. As constantes mudanças ou revogações de textos constitucionais levaram o Supremo Tribunal Federal a reconhecer a inadmissibilidade do controle abstrato de normas, se se cuida de aferição de legitimidade de ato em face de norma constitucional já revogada141. Enquanto instrumento especial de defesa da ordem jurídica, não seria o controle abstrato de normas o instrumento adequado para a aferição de legitimidade de lei em face de norma constitucional já revogada. Nesse caso, o controle somente seria possível na via incidental. Da mesma forma, infirma-se a possibilidade de exame da constitucionalidade de uma lei se o parâmetro de controle foi modificado após a propositura da ação142. A única distinção relevante entre as duas situações, do prisma dogmático, diz respeito à forma de extinção do processo: a) em caso de ação proposta com objetivo de aferir a constitucionalidade de uma lei em face de parâmetros constitucionais já revogados, reconhece o Tribunal a inadmissibilidade da ação143; b) em caso de revogação de parâmetro de controle, julga-se prejudicada a ação144. Constituição - O conceito de Constituição abrange todas as normas contidas no texto constitucional, independentemente de seu caráter material ou formal. Tal conceito abrange, igualmente, os chamados princípios constitucionais materiais, que não estão mencionados expressamente na Constituição145. Assim, o Tribunal já se utilizou do princípio da proporcionalidade no contexto das limitações a direitos fundamentais, como a liberdade de exercício profissional146, o direito de propriedade147 e o direito de proteção judiciária148. Não estava claro, até muito recentemente, se o Tribunal entendia configurar o princípio da proporcionalidade postulado imanente aos direitos fundamentais, se os extraía do próprio princípio da reserva legal ou do princípio do Estado de Direito149. Na decisão de 11 de maio de 1994, enfatizou, porém, o Ministro Moreira Alves que o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade tinha assento constitucional na cláusula do devido processo legal, entendida enquanto garantia material150. O art. 5º, § 2º, da Constituição, contém cláusula segundo a qual os direitos e 141
Rp. 1.016, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 95, p. 993.
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Rp. 765, Relator: Ministro Soares Muñoz, RTJ n. 98, p. 962. Rp. 1.016, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 95, p. 993. 144 Rp. 765, Relator: Ministro Soares Muñoz, RTJ n. 98, p. 962. 145 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de direito constitucional, p. 11-2; Paulo Bonavides, Direito constitucional, p. 57-8. 146 Rp. 930, Relator: Ministro Rorigues Alckmin, DJ, 2 set. 1977, p. 5969; Rp. 1.054, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 110, p. 937-78. 147 RE 18.331, de 21-9-1951, Relator: Ministro Orozimbo Nonato, RF n. 150, p. 164-9. 148 Rp. 1.077, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 112, p. 34-66. 149 Cf., a propósito, Mendes, Controle de constitucionalidade, p. 54. 150 ADIn 958, Relator: Ministro Marco Aurélio, DJ, 16 maio 1994, p. 11675. 143
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes garantias constantes da Constituição não excluem outros que derivem do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados dos quais o Brasil participe (art. 5º, § 2º). Essa disposição, que reproduz, em parte, princípio tradicional do Direito Constitucional brasileiro151, contém algo de novo, na medida em que faz referência expressa aos direitos garantidos por tratados internacionais. Seria lícito indagar se esses direitos previstos em tratados estariam dotados de força e hierarquia constitucionais. Segundo a opinião dominante, os tratados internacionais têm, em virtude dos atos de execução e transformação, apenas a força de lei federal152. De resto, o próprio texto constitucional, ao definir a competência do Superior Tribunal de Justiça, não estabeleceu distinção fundamental entre o tratado e a lei federal, atribuindo àquela Corte o poder genérico de conhecer, mediante recurso especial, das causas decididas pelos Tribunais federais ou estaduais “quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal” (CF, art. 105, III, a). É certo, por outro lado, que uma solução que viesse a responder afirmativamente à questão colocada teria certamente de admitir que a Constituição concebida como um texto rígido tornar-se-ia flexível, pelo menos para o efeito da adição de novos direitos, até porque, como se sabe, o processo constitucional de aprovação dos tratados, entre nós, reforça a idéia de que é de direito ordinário de que se cuida (aprovação de decreto legislativo, mediante decisão da maioria dos membros presentes de cada uma das Casas, presente a maioria absoluta de seus membros — maioria simples; ratificação mediante decreto do Chefe do Poder Executivo) (CF, arts. 49, I, c/c art. 47, e 84, VIII). É de se indagar, todavia, se a cláusula constante do art. 5º, § 2º, da Constituição, enquanto norma de remissão, permitiria que fossem incorporados ao texto constitucional princípios de direito suprapositivo. Acentue-se que a dimensão do catálogo dos direitos fundamentais previsto na Constituição brasileira torna difícil imaginar um direito fundamental que pudesse ser adicionalmente colocado dentre esses direitos basilares com fundamento nessa norma de remissão.
Direito federal - Ao contrário do direito alemão, não se pode, no sistema brasileiro, invocar o direito federal como parâmetro do controle abstrato de normas. A legislação ordinária federal pode assumir relevância, porém, na aferição de constitucionalidade de leis estaduais, editadas com fundamento na competência concorrente (CF, art. 24, §§ 3º e 4º). É que, existindo lei federal sobre as matérias elencadas no art. 24 (incisos I - XVI), não pode o Estado-Membro fazer uso da competência legislativa plena que lhe é assegurada em caso de “vácuo legislativo”. A norma federal ordinária limita e condiciona essa faculdade153. Também nos casos de colisão entre normas do direito estadual com as leis complementares, admitiu o Supremo Tribunal Federal a existência de inconstitucionalidade154. As duas hipóteses supõem a existência de um bloqueio de competência levado a 151
Já na primeira Constituição republicana, de 1891 (art. 78), assentou-se, inspirado na Emenda IX da Constituição americana, cláusula semelhante. 152 RE 71.154, Relator: Ministro Oswaldo Trigueiro, RTJ n. 58, p. 70 e s.; RE 80.004, Relator: Ministro Cunha Peixoto, RTJ n. 83, p. 809 e s; cf., a propósito, J. F. Rezek, Direito dos tratados, Rio de Janeiro, 1984, p. 464. 153 154
Cf., a propósito, Rp. 1.442, Relator: Carlos Madeira, DJ, 1º jul. 1988. Rp. 1.141, Relator: Decio Miranda, RTJ n. 105, p. 490; Rp. 1.442, Relator: Carlos Madeira, DJ, 1º jul. 1988.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes efeito pelo direito federal, de modo que o direito estadual em contradição com esses limites deve ser considerado nulo155. Todavia, nesses casos, o direito federal não configura exatamente um parâmetro de controle abstrato, mas simples índice para aferição da ilegitimidade ou de nãoobservância da ordem de competência estabelecida na Constituição156.
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Rp. 1.141, Relator: Decio Miranda, RTJ n. 105, p. 490. O constituinte de 1988 entendeu que a referência à lei federal — lei estadual contestada em face da lei federal — obrigava a transferência dessa matéria para o âmbito da competência recursal do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que o problema envolveria simples questão legal, não mais submetida, no novo modelo, à jurisdição do Supremo Tribunal Federal. Raciocínio semelhante foi desenvolvido em relação à representação para fins de intervenção, no caso de recusa à aplicação do direito federal (art. 36, IV). Um exame mais detido do tema certamente teria demonstrado que essas controvérsias são, em verdade, típicas controvérsias constitucionais, porque envolvem discussão sobre a validade de lei local em face da lei federal, contemplando, na sua essência, discussão sobre competências legislativas dos entes políticos. Já o clássico João Barbalho assinalava que o recurso extraordinário, nesse caso, destinava-se “a corrigir as exorbitâncias e usurpações da autoridade estadual legislativa ou executiva”, defendendo a federal, “que de outra sorte ficaria anulada, perdendo a supremacia que lhe cabe quanto aos assuntos de sua competência” (Constituição Federal brazileira, Comentários, 1902, p. 246). O tema mereceu, posteriormente, a reflexão abalizada de Victor Nunes, tendo por base o texto constitucional de 1946: “Confere, porém, a nossa Constituição (art. 101, III, c) recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal nas causas em que ‘se contestar a validade de lei ou ato dos governos locais em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do tribunal local julgar válida a lei ou o ato impugnado’. As constituições anteriores continham o mesmo dispositivo, com pequena diferença de redação. Em face dessa norma, não se deve, porém, concluir ‘que o Supremo deva sempre prover o recurso para julgar inválidas’ as leis estaduais. Esse caso de recurso é autorizado com base exclusivamente na presunção de constitucionalidade das leis federais. A aplicação da lei estadual pelo tribunal local contra uma lei federal contém, implícita ou explicitamente, uma declaração de inconstitucionalidade da norma federal. Num conflito entre a lei federal e a estadual, a primeira só pode ser preterida por motivo de inconstitucionalidade. Mas, como em favor da lei federal milita a presunção de constitucionalidade, remete-se a questão ao Supremo Tribunal Federal, que é o órgão judiciário mais autorizado para interpretar a Constituição” (Victor Nunes Leal, Leis federais e leis estaduais, in Problemas de direito público, Rio de Janeiro, 1960, p. 109 (128). Nenhuma dúvida havia então de que se cuidava na hipótese de uma típica questão constitucional, que, por isso, se submetia à apreciação do Supremo Tribunal. Digna de transcrição afigura-se, igualmente, a seguinte passagem do primoroso texto de Victor Nunes: “Por conseguinte, o recurso extraordinário com fundamento na letra c (aplicação de lei estadual contestada em face da Constituição ou de lei federal) resolve-se, em última análise, no caso da letra b do art. 101, III: ‘quando se questionar sobre a vigência ou validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do tribunal negar aplicação à lei impugnada’. Nesta última hipótese, ainda é a presunção de constitucionalidade da lei federal que fundamenta o recurso. Se a decisão da justiça local aplica a lei federal questionada, o recurso não cabe, porque aquela presunção foi acolhida pelo julgado. Se a lei federal deixou de ser aplicada, então cabe o recurso, porque o tribunal local contrariou a presunção de constitucionalidade da lei federal, devendo pronunciar-se a respeito o órgão mais qualificado, que é o Supremo Tribunal Federal. A diferença entre os dois casos está em que, na hipótese da letra b, a lei federal deixa de ser aplicada por declaração expressa de sua inconstitucionalidade, ao passo que, na hipótese da letra c, na qual também se deixa de lado a lei federal para aplicar a estadual, a inconstitucionalidade da norma federal pode estar contida de modo apenas implícito no julgado recorrido. Mas num ou noutro caso, o que ocorre é a não-aplicação da lei federal por motivo de inconstitucionalidade, motivo que estará expresso numa hipótese, mas que na outra estará expresso ou implícito”. (Leis federais e Leis estaduais, in Problemas de direito público, Rio de Janeiro, 1960, p. 109 (p. 129-30). Criticando a inserção da alínea b do art. 105, III, da nova Constituição, entre os casos de recurso especial, observou o Ministro Moreira Alves: “ (...) as questões da validade de lei ou de ato normativo de governo local em face de lei federal não são questões de natureza legal, mas sim constitucional, pois se resolvem pelo exame de existência, ou não, de invasão de competência da União, ou, se for o caso, do Estado. Hipóteses que deveriam, portanto, dar margem, não a recurso especial, mas a recurso extraordinário, pela sistemática adotada para a divisão de competência entre o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Esse equívoco (...) provavelmente se originou da circunstância de que a questão de lei ou de ato normativo municipal ou estadual contestado em face de lei federal aparentemente (ou melhor, literalmente) se circunscreveria ao campo da legislação não-constitucional. Mas, graças a ele, criaram-se, em verdade, para a mesma questão constitucional, quatro graus de jurisdição sucessivos: dois ordinários (o do juiz singular e o do Tribunal local ou regional) e dois extraordinários (o do Superior Tribunal de Justiça, para julgar o recurso especial que necessariamente terá de ser interposto, pois ainda não se trata de decisão de única ou última instância a admitir recurso extraordinário; e o do Supremo Tribunal Federal para apreciar o recurso extraordinário contra o decidido, a propósito, no recurso especial, certo como é que se trata de matéria constitucional, sobre a qual cabe à Corte Suprema a palavra final)” (O Supremo Tribunal em face da nova Constituição, Arquivos do Ministério da Justiça, n. 173, p. 35 (40). Também no AI 132.755, explicitou o Ministro Moreira Alves essa orientação, enfatizando que não há, entre leis federal e estadual, nesse terreno, quando se julga a validade desta contestada em face daquela, vício de ilegalidade, mas sim, vício de inconstitucionalidade. O confronto entre essas leis se faz para verificar se houve, ou não, invasão de competência por parte da lei local, e não para verificar se a lei estadual violou a lei federal (Decisão de 28-9-89). 156
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5. Procedimento As regras destinadas à disciplina da ação direta de inconstitucionalidade estavam previstas no texto constitucional e no Regimento Interno do STF. A ação declaratória de constitucionalidade foi aplicada, inicialmente, com base em normas constitucionais e em construção jurisprudencial (ADC nº 1, DJ de 16.06.1995).Com a entrada em vigor da Lei n. 9.868, de 10.11.99, este quadro sofreu uma grande alteração. É de se ressaltar, porém, que a nova disciplina legislativa não é, de modo algum, exaustiva, restando ainda diversos pontos importantes no assunto que devem ser esclarecidos pelas construções da jurisprudência do STF. Requisitos da petição inicial e admissibilidade das ações – A Lei n. 9.868/99 trata, em capítulo destacado, da admissibilidade do procedimento da ação direta de inconstitucionalidade (Cap. II) e da admissibilidade e do procedimento da ação declaratória de constitucionalidade, instituída pela EC n. 3/93 (Cap. III).Tendo em vista o caráter “dúplice” ou “ambivalente” das referidas ações, as regras de admissibilidade e de procedimento aplicáveis à ação direta são, na sua essência, extensíveis à ação declaratória. A petição inicial das duas ações não está vinculada a qualquer prazo. Porém, os seus requisitos são disciplinados pelo art. 3o e pelo art. 14 da Lei n. 9.868, para a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade, respectivamente. O primeiro requisito indispensável à petição inicial em qualquer das duas ações é a indicação do dispositivo ou dispositivos sobre os quais versa a ação, bem como dos fundamentos jurídicos do pedido, em relação a cada um deles (arts. 3o, I, e 14, I). A exigência legal em questão já constava da jurisprudência do STF. Nesse sentido, já decidiu o Tribunal ser “necessário, em ação direta de inconstitucionalidade, que venham expostos os fundamentos jurídicos do pedido com relação às normas impugnadas, não sendo de admitir-se alegação genérica sem qualquer demonstração razoável, nem ataque a quase duas dezenas de medidas provisórias em sua totalidade com alegações por amostragem”.157 É interessante notar que, a despeito da necessidade legal da indicação dos fundamentos jurídicos na petição inicial, não fica o STF adstrito a eles na apreciação que faz da constitucionalidade dos dispositivos questionados. Sobre o tema vale dizer, ainda, que já se determinou o desmembramento de ação proposta contra 21 leis de diferentes Estados, entendendo o Tribunal não ser suficiente a identidade de fundamento jurídico para justificar a cumulação, uma vez que o Tribunal não está vinculado ao fundamento jurídico.158 O segundo requisito indispensável à petição inicial presente na lei é a formulação,
157
ADIn n. 259, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19.02.92, p. 2.030.
158
ADIn n. 28, Rel. Min. Gallotti, DJ de 25.10.91.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes pelo legitimado, do pedido com suas especificações (arts. 3o, II, e 14, II). A determinação em questão é fundamental, haja vista que com ela se consagra de forma expressa, entre nós, o princípio do pedido. Tal princípio é essencial para a jurisdição constitucional, uma vez que dele depende, em determinada medida, a qualificação do órgão decisório como um tribunal. A forma judicial constitui característica peculiar que permite distinguir a atuação da jurisdição constitucional de outras atividades, de cunho meramente político. É de se ressaltar que o pedido poderá abranger, além da emissão de um juízo definitivo sobre a constitucionalidade da norma questionada, a emissão de um juízo provisório sobre o tema, mediante a concessão de medida cautelar.159 No que tange à ação declaratória de constitucionalidade há, ainda, legalmente estabelecido um terceiro requisito: a indicação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória (art. 14, III). A propósito dessa questão, considere-se a reflexão desenvolvida sobre o requisito de admissibilidade pertinente à demonstração da existência de controvérsia judicial.160 O parágrafo único do art. 3o e o parágrafo único do art. 14 da Lei n. 9.868/99 determinam, respectivamente, que ao autor da ação direta de inconstitucionalidade ou da ação declaratória de constitucionalidade cabe apresentar, juntamente com a petição inicial em duas vias, cópias da lei ou ato normativo que contenham os dispositivos sobre os quais versa a ação proposta. Os mesmos dispositivos em questão estabelecem, ainda, a necessidade de as petições serem acompanhadas, quando subscritas por advogado, de instrumento de procuração. Em decisão recente estabeleceu o STF que a procuração na ação direta de inconstitucionalidade deve conter poderes específicos quanto à impugnação da norma a ser levada a efeito na ADIn.161 Por fim, atenta à necessidade de conferir certa celeridade aos processos da ação declaratória de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, houve por bem a Lei n. 9.868 deferir ao relator a possibilidade de indeferir liminarmente as petições ineptas, as não-fundamentadas e aquelas manifestamente improcedentes (arts. 4o e 15). Cabe, de toda maneira, agravo da decisão de indeferimento (arts. 4o, parágrafo único, e 15, parágrafo único), no prazo de cinco dias. Há ainda que se ressaltar que, regularmente propostas a ação direta de inconstitucionalidade ou a ação declaratória de constitucionalidade, não será admissível a desistência (arts. 5o e 16). Modificação da petição inicial – Embora o Regimento Interno não contemplasse, expressamente, a possibilidade de alteração da petição inicial, reconheceu a jurisprudência do STF a possibilidade de aditamentos ou emendas à inicial.162 Com a Lei 159
Cf., infra, item sobre as medidas cautelares.
160
Cf., supra, item sobre a demonstração da existência de controvérsia judicial na ação declaratória de constitucionalidade. 161
ADIn n. 2.187, Rel. Min. Gallotti, Informativo STF 190.
187
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes n. 9.868/99, embora ela também não preveja expressamente tal possibilidade, o tema não deverá sofrer grandes alterações na jurisprudência da Corte. É interessante notar que a emenda da inicial já provocou inclusive a revisão de medida cautelar, como se verificou na ADIn n. 722, na qual o Tribunal deferiu requerimento do Procurador-Geral da República para estender a suspensão da eficácia à cláusula de revogação, de modo a permitir a aplicação da lei revogada até a decisão de mérito da ação direta.163 Da mesma forma, já se procedeu à emenda da inicial para reduzir o âmbito do pedido de argüição de inconstitucionalidade, após concessão de liminar, restringindo, assim, o objeto da ação e, por conseguinte, a amplitude da medida cautelar deferida.164 Todavia, o STF não tem admitido o pedido de aditamento após a requisição das informações ao órgão de que emanou o ato ou a medida impugnada.165 Intervenção de terceiros e “amicus curiae” – A Lei n. 9.868 preserva a orientação contida no Regimento Interno do STF que veda a intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade e, agora, também na ação declaratória de constitucionalidade (arts. 7o e 18). Constitui, todavia, inovação significativa no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade a autorização para que o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, admita a manifestação de outros órgãos ou entidades (art. 7o, § 2o). Positiva-se, assim, a figura do amicus curiae no processo de controle de constitucionalidade, ensejando a possibilidade de o Tribunal decidir as causas com pleno conhecimento de todas as suas implicações ou repercussões.166 Trata-se de providência que confere caráter pluralista ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade. Em vista do veto oposto ao § 1o do art. 7o e aos §§ 1o e 2o do art. 18, surgem duas questões: (a) se o direito de manifestação assegurado a eventuais interessados aplica-se à ação declaratória de constitucionalidade e (b) qual o momento para o exercício do direito de manifestação por parte do amicus curiae nessas ações. No que concerne ao prazo para o exercício do direito de manifestação previsto no art. o 7 , parece que tal postulação há de se fazer dentro do lapso temporal fixado para apresentação das informações por parte das autoridades responsáveis pela edição do ato.
162
Repr n. 1.182, Rel. Min. Soares Muñoz, RTJ 112/97 e ss.; ADIn n. 474/AgRg, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 08.11.91, p. 15.952; ADIn n. 722, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19.06.92, p. 9.520. 163
ADIn n. 722, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 09.06.92, p. 9.520.
164
ADIn n. 475, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 08.11.91, p. 15.952.
165
ADIn n. 437, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 09.02.93, p. 2.031.
166
O STF tem entendido que a atuação do amicus curiae fica limitada ao direito de manifestação escrita expresso no art. 7o, § 2o, da Lei n. 9.868/99 (AgADIn n. 2.130, Rel.r Min. Celso de Mello, j. 3.10.2001, DJ de 14.12.2001).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Amicus Curiae na ADC - Tendo em vista a idêntica natureza das ações de constitucionalidade e de inconstitucionalidade, não parece razoável qualquer conclusão que elimine o direito de manifestação na ação declaratória de constitucionalidade. O perfil objetivo desse processo recomenda igualmente a adoção do instituto apto a lhe conferir um caráter plural e aberto. Assim, a despeito do veto aos parágrafos do art. 18 da Lei n. 9.868/99, é de se considerar aplicável à ação declaratória de constitucionalidade a regra do art. 7o, § 2o, da Lei n. 9.868, que admite o direito de manifestação de entidades representativas na ação direta de inconstitucionalidade. Prazo para intervenção - Também no que diz respeito ao momento para o exercício do direito de manifestação há de se operar, em princípio, antes que os autos sejam conclusos ao relator. Assim, o direito de manifestação na ação direta de constitucionalidade será exercido, regularmente, antes do encaminhamento da questão ao Procurador-Geral da República. Parece ser esse pelo menos o espírito da norma constante da parte final do art. 7°, § 2° da Lei 9868/1999. É verdade que essa disposição remete ao parágrafo anterior -- § 1°167 --, que restou vetado pelo Presidente da República. É possível, porém, cogitar de hipóteses de admissão de amicus curiae fora do prazo168, especialmente diante da relevância do caso ou, ainda, em face da notória contribuição que a manifestação possa trazer para o julgamento da causa. Na ADIn n° 2690-RN169, o Relator admitiu a participação do Distrito Federal, dos Estados de Goiás, Pernambuco e Rio de Janeiro, da Associação Brasileira de Loterias Estaduais (ABLE) e, ainda, determinou-se uma nova audiência da Procuradoria-Geral da República. Quanto à atuação do amicus curiae, após ter entendido que ela haveria de limitar-se à manifestação escrita 170, houve por bem o Tribunal admitir a sustentação oral por parte desses peculiares partícipes do processo constitucional.171 Em 30 de março de 2004 foi editada Emenda Regimental,172 que assegurou aos amici curiae, no processo de ADIn, o direito de sustentar oralmente pelo tempo máximo de 15 minutos, e, ainda, quando 167
O § 1° do art. 7° da Lei n° 9868.1999 dispunha que: “Os demais titulares referidos no art. 2° poderão manifestar-se, por escrito, sobre o objeto da ação e pedir a juntada de documentos reputados úteis para o exame da matéria, no prazo das informações, bem como apresentar memoriais.”
168
Essa possibilidade, entretanto, não é majoritária na jurisprudência do STF. A esse respeito, cf. ADI n° 2238-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão – hipótese em que a Associação Paulista dos Magistrados formulou pedido de admissão no feito depois de já iniciado o julgamento da medida liminar. Na espécie, considerouse que a manifestação do amicus curiae é destinada a instruir a ADI, não sendo possível, portanto, admiti-la quando já em andamento o julgamento do feito. Restaram vencidos, os Ministros Ilmar Galvão (Relator) e os Ministros Carlos Velloso que referendavam a decisão monocrática.
169
ADIn n° 2690-RN, Rel. Min. Gilmar Mendes, pedido de medida cautelar ainda não apreciada pelo Tribunal Pleno. 170
ADInMC (QO) 2.223-DF, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 18.10.2001.
171
ADIn (QO) 2675, Rel. Min. Carlos Velloso e ADIn (QO) 2777, Rel. Min. Cezar Peluso. O Tribunal, por maioria, em 26.11.2003, resolvendo questão de ordem, admitiu a sustentação oral dos amici curiae na ação direta de inconstitucionalidade.
172
A Emenda Regimental nº 15 do Supremo Tribunal Federal, de 30 de março de 2004 (DJ de 01.04.2004) acrescentou o § 3º ao artigo 131 do Regimento Interno, para admitir a intervenção de terceiros no processo de controle concentrado de constitucionalidade, facultando-se-lhes a produção de sustentação oral.
189
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes houver litisconsortes não representados pelo mesmo advogado, pelo prazo contado em dobro. Essa nova orientação parece acertada, pois permite, em casos específicos, que a decisão na ação direta de inconstitucionalidade seja subsidiada por novos argumentos e diferentes alternativas de interpretação da Constituição. Informações das autoridades das quais emanou o ato normativo e manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República – No caso da ação direta de inconstitucionalidade, sendo positivo o juízo de admissibilidade feito pelo relator, há duas possibilidades de desenvolvimento do iter procedimental. Na primeira, não há pedido de medida cautelar. Neste caso, o relator pedirá informações aos órgãos ou às autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado através da petição inicial, conforme determina o art. 6o. Os órgãos e as autoridades deverão responder ao pedido de informações no prazo de 30 dias, contados do recebimento do pedido (art. 6o, parágrafo único). Na segunda hipótese há pedido de concessão de medida cautelar. É de se notar que, neste caso, a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou o ato impugnado também se faz necessária para a deliberação do Tribunal sobre este (art. 10), que deverão manifestar-se no prazo de cinco dias. Após o julgamento da cautelar deve, então, o relator pedir as informações a que se refere o art. 6o. Em qualquer hipótese, estabelece o art. 8o da Lei n. 9.868/99 que, decorrido o prazo das informações, serão ouvidos, sucessivamente, o Advogado-Geral da União173 e o Procurador-Geral da República, que deverão manifestar-se, cada qual, no prazo de 15 dias. No que concerne à ação declaratória de constitucionalidade o iter procedimental é bastante simplificado, sendo normativamente prevista apenas a manifestação do Procurador-Geral da República no prazo de 15 dias (art. 19). Havendo pedido de cautelar, poderá haver o julgamento antes da manifestação do Procurador-Geral da República.174 Igualmente relevantes afiguram-se os dispositivos contidos na Lei n. 9.868 que permitem que o relator, tanto na ação direta de inconstitucionalidade como na ação declaratória de constitucionalidade, solicite informações aos Tribunais Superiores, aos Tribunais federais e aos Tribunais estaduais acerca da aplicação da norma impugnada no âmbito de sua jurisdição (arts. 9o, § 2o, e 20, § 2o). Trata-se de providência que, além de aperfeiçoar os mecanismos de informação do Tribunal, permite uma maior integração entre a Corte Suprema e as demais Cortes federais e estaduais. Após a manifestação do Procurador-Geral da República poderá o relator solicitar dia
173
Cf. ADInQO n. 97-RO, Rel. Min. Moreira Alves, j. 22.11.89, DJ de 30.03.90; ADInMCA n. 1.254RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 14.8.96, DJ de 19.09.97; ADInCO n. 72-ES, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 22.3.10, DJ de 25.05.90. 174
Cf. ADC 9, Rel. Min. Néri da Silveira, j. (liminar) 28.06.2002, DJ de 08.08.2001, vista ao PGR em 20.11.2001.
190
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes para o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (Lei n. 9.868/99, art. 9o, caput) ou da ação declaratória de constitucionalidade (art. 20, caput). Apuração de questões fáticas no controle de constitucionalidade175 – Importante inovação consta dos arts. 9o, § 1o, e 20, § 1o, da Lei n. 9.868/99, que autorizam ao relator, após as manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para emitir parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos e pessoas com experiência e autoridade na matéria. Neste passo o legislador afastou-se de uma leitura radical do modelo hermenêutico clássico, a qual sugere que o controle de normas há de se fazer com o simples contraste entre a norma questionada e a norma constitucional superior. Essa abordagem simplificadora tem levado o STF a afirmar, às vezes, que fatos controvertidos ou que demandam alguma dilação probatória não podem ser apreciados em ação direta de inconstitucionalidade.176 Essa abordagem confere, equivocadamente, maior importância a uma précompreensão do instrumento processual do que à própria decisão do constituinte de lhe atribuir a competência para dirimir a controvérsia constitucional. Hoje, entretanto, não há como negar a “comunicação entre norma e fato”, que constitui condição da própria interpretação constitucional.177 É que o processo de conhecimento, aqui, envolve a investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos.178 É bem verdade que se analisarmos criteriosamente a jurisprudência constitucional verificaremos que também entre nós se procede ao exame ou à revisão dos fatos legislativos pressupostos ou adotados pelo legislador. É o que se verifica na jurisprudência do STF sobre a aplicação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade.179 Nos Estados Unidos o chamado Brandeis-Brief – memorial utilizado pelo advogado Louis D. Brandeis no case Müller versus Oregon (1908), contendo 2 páginas dedicadas às questões jurídicas e outras 110 voltadas para os efeitos da longa duração do trabalho sobre a situação da mulher – permitiu que se desmistificasse a concepção dominante, segundo a qual a questão constitucional configurava simples “questão jurídica” de aferição de legitimidade da lei em face da Constituição.180 175
Cf. Mendes, Gilmar Ferreira. Controle de Constitucionalidade: Hermenêutica Constitucional e Revisão de Fatos e Prognoses Legislativos pelo Órgão Judicial, in: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, 3.ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p.461-483. 176 Cf. a propósito, despacho do Min. Celso de Mello prolatado na ADIn n. 1.372, DJ de 17.11.95. 177 Cf. Marenholz, Ernst Gottfried. “Verfassungsinterpretation aus praktischer Sicht”, in Verfassungsrecht zwischen Wissenschaft und Richterkunst, homenagem aos 70 anos de Konrad Hesse, Heidelberg, 1990, p. 53 (54). 178 Marenholz, Verfassungsinterpretation..,. cit., p. 54. 179 Cf., v.g., Repr n. 1.077, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 112/34 (58-59). 180
Cf., a propósito, Kermit L. Hall, The Supreme Court, p. 85.
191
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Restou demonstrado então que até mesmo no chamado controle abstrato de normas não se procede a um simples contraste entre a disposição do Direito ordinário e os princípios constitucionais. Ao revés, também aqui fica evidente que se aprecia a relação entre a lei e o problema que se lhe apresenta em face do parâmetro constitucional.181 Em outros termos, a aferição dos chamados fatos legislativos constitui parte essencial do chamado controle de constitucionalidade, de modo que a verificação desses fatos relaciona-se íntima e indissociavelmente com o exercício do controle pelo Tribunal. Tem-se, assim, que os dispositivos legais acima citados geram um novo instituto, que, se devidamente explorado pelo STF, servirá para modernizar e racionalizar o processo constitucional brasileiro.
6. Medida cautelar No que se refere ao pedido de cautelar na ação direta de inconstitucionalidade optou a Lei n. 9.868/99 por estabelecer que, salvo em caso de excepcional urgência, o Tribunal somente concederá a liminar, por decisão da maioria absoluta de seus membros, após a audiência dos órgãos ou das autoridades das quais emanou a lei ou o ato normativo impugnado (art. 10). Em caso de excepcional urgência poderá ser dispensada a audiência dos órgãos dos quais emanou o ato (art. 10, § 3o). A lei explicita (art. 11), ainda, que a decisão concessiva de cautelar terá eficácia erga omnes, devendo a sua parte dispositiva ser publicada em seção especial do Diário Oficial no prazo de 10 dias a contar do julgamento. Ainda no que tange à medida cautelar no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade o art. 11, § 1o, da Lei n. 9.868 dispõe, em consonância com a jurisprudência do STF, que a cautelar será concedida, regularmente, com eficácia ex nunc, salvo se o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa. Da mesma forma, prevê-se que a medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação do Tribunal em sentido contrário (art. 11, § 2o). Também nesta matéria deve-se observar que a já citada lei contém disposição (art. 12) que autoriza ao relator, em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação, após a prestação das informações, no prazo de 10 dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do ProcuradorGeral da República, sucessivamente, no prazo de 5 dias. Essa providência, além de viabilizar uma decisão definitiva da controvérsia constitucional em curto espaço de tempo, permite que o Tribunal delibere, de forma igualmente definitiva, sobre a legitimidade de medidas provisórias antes mesmo que se convertam em lei. Outro importante ponto presente na Lei n. 9.868 refere-se à admissão de cautelar em
181
Ehmke, Horst. “Prinzipien der Verfassungsinterpretation”, in Ralf Dreier e Schwegmann, Probleme der Verfassungsinterpretion, Baden-Baden, 1976, p. 164 (172).
192
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ação declaratória de constitucionalidade,182 que há de consistir na determinação, por parte da maioria absouta do STF, de que os juízes e tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até o seu julgamento definitivo, que, de qualquer sorte, há de se verificar no prazo de 180 dias (art. 21). Considerando a natureza e o escopo da ação declaratória de constitucionalidade, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante das decisões proferidas nesse processo, parece ter sido acertada a admissão por parte do legislador, de maneira explícita, da concessão de medida cautelar, a fim de evitar o agravamento do estado de insegurança ou de incerteza jurídica que se pretende eliminar.183
7. As decisões do STF no controle abstrato de normas Procedimento de tomada de decisões – No que se refere à decisão na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade, tratada em um único capítulo (Cap. IV), a Lei n. 9.868 preservou a orientação constante de norma regimental do STF que estabelece que o julgamento dessas ações somente será efetuado se presentes na sessão pelo menos oito ministros, devendo-se proclamar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo questionado se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis (arts. 22 e 23). O art. 24 acentua o caráter “dúplice” ou “ambivalente” da ação direta de inconstitucionalidade ou da ação declaratória de constitucionalidade, estabelecendo que, proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória. A Lei n. 9.868, em seu art. 26, assume posição clara em relação à irrecorribilidade e à não-rescindibilidade da decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade ou na ação declaratória de constitucionalidade. Além de ser plenamente condizente com a atuação da jurisdição constitucional, tal providência rende homenagem à segurança jurídica e à economia processual, permitindo o imediato encerramento do processo e evitando a interposição de recursos de caráter notadamente protelatório. A Lei n. 9.868 estabelece, ainda, que, dentro de 10 dias após o trânsito em julgado, o STF fará publicar a parte dispositiva do acórdão proferido, em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça (art. 28).
Extensão
da
declaração
de
inconstitucionalidade
–
A
declaração
de
182
O STF já admitia em sua jurisprudência a possibilidade de concessão de medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade (cf. ADC n. 4, Rel. Min. Sidney Sanches, DJ de 21.05.99, e ADC n. 7, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 22.10.99) 183
Na ADC 9 (Rel. Min. Néri da Silveira) concedeu-se a cautelar solicitada, com eficácia ex nunc.
193
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes inconstitucionalidade de uma lei pode ter diversas extensões: 1. Declaração de inconstitucionalidade total como expressão de unidade técnicolegislativa: Defeitos formais, tais como a inobservância das disposições atinentes à iniciativa da lei ou competência legislativa, levam, normalmente, a uma declaração de inconstitucionalidade total, uma vez que, nesse caso, não se vislumbra a possibilidade de divisão da lei em partes válidas e inválidas. Assim, o STF declarou a inconstitucionalidade de emendas às Constituições estaduais relativas a matérias que, nos termos da Constituição 1967/1969, somente poderiam ser disciplinadas mediante iniciativa do Executivo.184 O mesmo se dá quando o Poder Legislativo invade âmbito de iniciativa de outros órgãos ou poderes (Tribunais de Justiça ou do Tribunal de Contas).185 Também a inobservância de outras normas fixadas na Constituição sobre o procedimento legislativo torna inevitável a declaração de inconstitucionalidade de toda a lei.186 2. Declaração de inconstitucionalidade total: O STF profere a declaração de inconstitucionalidade total de uma lei se identifica uma relação de dependência ou de interdependência entre as partes constitucionais e inconstitucionais do dispositivo.187 Se a disposição principal da lei há de ser considerada inconstitucional, pronuncia o STF a inconstitucionalidade de toda a lei, salvo se algum dispositivo puder subsistir sem a parte considerada inconstitucional. Trata-se, aqui, de uma declaração de inconstitucionalidade em virtude de dependência unilateral.188 A indivisibilidade da lei pode resultar, igualmente, de uma forte integração entre as suas diferentes partes. Nesse caso tem-se a declaração de inconstitucionalidade em virtude da chamada dependência recíproca.189 3. Declaração de inconstitucionalidade parcial: A doutrina e a jurisprudência brasileiras admitem plenamente a teoria da divisibilidade da lei, de modo que, tal como assente, o Tribunal somente deve proferir a inconstitucionalidade daquelas normas viciadas, não devendo estender o juízo de censura às outras partes da lei, salvo se elas não
184
Repr. n. 1.318, Rel. Min. Carlos Madeira, RDA 169/60-66, julho-setembro/87; Repr. n. 1.478, Rel. Min. Octávio Gallotti, RDA 172/95, abril-junho/88; Repr. n. 1.433, Rel. Min. Francisco Rezek, RDA 171/107, janeiro-março/88. 185
Cf. Repr. n. 1.304, Rel. Min. Célio Borja, RDA 171/109-118, janeiro-março/88.
186
Cf., dentre outras: Repr. n. 980, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 96/496 e ss.; ADIn n. 574, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 11.03.94, p. 4.111; ADIn n. 89, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 20.08.93, p. 16.316; ADIn n. 805, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 08.04.94, p. 7.225. 187
Repr. n. 1.305, Rel. Min. Sydney Sanches, RDA 170/46; Repr. n. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 11.09.87. 188
Cf., a propósito: Mendes, Controle de Constitucionalidade..., cit., p. 284; Bittencourt, C. A. Lúcio. O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, Rio, 1968, p. 127. 189
Repr. n. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 11.09.87.
194
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes puderem subsistir de forma autônoma.190 Faz-se mister, portanto, verificar se estão presentes as condições objetivas de divisibilidade. Para isso impõe-se aferir o grau de dependência entre os dispositivos, isto é, examinar se as disposições estão em uma relação de vinculação que impediria a sua divisibilidade.191 Não se afigura suficiente, todavia, a existência dessas condições objetivas de divisibilidade. Impõe-se verificar, igualmente, se a norma que há de subsistir após a declaração de inconstitucionalidade parcial corresponderia à vontade do legislador.192 Portanto, devem ser investigadas não só a existência de uma relação de dependência (unilateral ou recíproca)193 mas também a possibilidade de intervenção no âmbito da vontade do legislador.194 No exame sobre a vontade do legislador assumem peculiar relevo a dimensão e o significado da intervenção que resultará da declaração de nulidade. Se a declaração de inconstitucionalidade tiver como conseqüência a criação de uma nova lei, que não corresponda às concepções que inspiraram o legislador, afigura-se inevitável a declaração de inconstitucionalidade de toda a lei.195 4. Declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto: Já em 1949 identificara Lúcio Bittencourt os casos de inconstitucionalidade da aplicação da lei a determinado grupo de pessoas ou de situações como hipótese de inconstitucionalidade parcial.196 Nesse sentido, ensinava o emérito constitucionalista: “Ainda no que tange à constitucionalidade parcial, vale considerar a situação paralela em que uma lei pode ser válida em relação a certo número de casos ou pessoas e inválida em relação a outros. É a hipótese, v.g., de certos diplomas redigidos em linguagem ampla e que se consideram inaplicáveis a fatos pretéritos, embora perfeitamente válidos em relação às situações futuras. Da mesma forma, a lei que estabelecesse, entre nós, sem qualquer distinção, a obrigatoriedade do pagamento de imposto de renda, incluindo na incidência deste os proventos de qualquer natureza, seria inconstitucional no que tange à remuneração dos jornalistas e professores”.197 Não raro constata o STF a inconstitucionalidade da cobrança de tributo sem a
190
Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., pp. 126-127.
191
Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., p. 127.
192
Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit.,p. 125.
193
Repr. n. 1.305, Rel. Min. Sydney Sanches, RDA 170/46-60, outubro-dezembro/87; Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., pp. 125-127; Mendes, Controle de Constitucionalidade... , cit., p. 269. 194
Repr. n. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 11.9.87. V., também: Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., pp. 125-127; Mendes, Controle de Constitucionalidade..., cit., p. 269. 195
Repr. n. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 11.09.87.
196
Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., p. 128.
197
Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., p. 128.
195
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes observância do princípio da anterioridade (CF de 1946, art. 141, § 34; CF de 1967/1969,198 art. 153, § 29; CF de 1988, art. 150, III, “b”).199 Destarte, firmou-se orientação sumulada segundo a qual “é inconstitucional a cobrança de tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro” (Súmula n. 67). Como se vê, essas decisões não levam, necessariamente, à cassação da lei, uma vez que ela poderá ser aplicada, sem nenhuma mácula, já no próximo exercício financeiro. Em outros casos considera o Tribunal que a aplicação de leis sobre correção monetária a situações já consolidadas revela-se inconstitucional.200 É o que se constata, v.g., na seguinte decisão: “Correção monetária. A fixação da sua incidência a partir do ajuizamento da ação viola o princípio da não-retroatividade da lei (art. 153, § 3o, da Constituição Federal), destoando, inclusive, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Aplicação da Lei n. 6.899, de 8.4.81, aos processos pendentes, a partir de sua vigência (art. 3o do Decreto n. 86.649/81). Provimento do recurso extraordinário”.201 Ou, ainda, na seguinte passagem do voto do Min. Alfredo Buzaid: “É certo que a Lei n. 6.899 dispõe, no art. 1o, que a correção monetária incide sobre qualquer débito resultante de decisão judicial. E depois de dizer no § 1o que, na execução por título de dívida líquida e certa, se calcularia a correção a contar do respectivo vencimento, estabelece, no § 2o, que nos demais casos se procede ao cálculo a partir do ajuizamento da causa. A locução ‘a partir do ajuizamento da causa’ há de referir-se à causa proposta depois que a Lei n. 6.899 entrou em vigor. Interpretação diversa, como a adotada pelo v. acórdão recorrido, importa em atribuir à Lei n. 6.899 efeito retroativo (...)”.202 Também aqui limita-se o Tribunal a considerar inconstitucional apenas determinada hipótese de aplicação da lei, sem proceder à alteração do seu programa normativo. Em decisão mais moderna adotou o STF, expressa e inequivocamente, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, tal como se pode depreender da seguinte passagem da ementa concernente à ADIn n. 319, formulada contra a Lei n. 8.039/90, verbis: “Exame das inconstitucionalidades alegadas com relação a cada um dos artigos da mencionada lei – Ofensa ao princípio da irretroatividade com relação à expressão ‘março’ contida no § 5o do art. 2o da referida lei – Interpretação conforme à 198
Essa disposição foi, igualmente, incorporada à Constituição de 1988 (art. 150, II).
199
RMS n. 11.853, Rel. Min. Luiz Gallotti, DJ de 17.08.66; RMS n. 13.208, Rel. Min. Villas Boas, DJ de 11.05.66; RMS n. 13.694, Rel. Min. Carlos Medeiros da Silva, DJ de 10.08.66; RMS n. 16.588, Rel. Min. Víctor Nunes, DJ de 12.03.68; RMS n. 16.661, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, RTJ 59/185; RE n. 61.102, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ de 14.02.68. 200
RMS n. 16.986, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ 43/575; RMS n. 16.661, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, RTJ 59/185; ERE n. 69.749, Rel. Min. Bilac Pinto, RTJ 61/130; RE n. 63.318, Rel. Min. Víctor Nunes Leal, RTJ 46/205; RE n. 99.180, Rel. Min. Djaci Falcão, RTJ 106/847. 201
RE n. 97.816, Rel. Min. Djaci Falcão, DJ de 12.11.82, p. 11.489.
202
RE n. 100.317, Rel. Min. Alfredo Buzaid, RTJ 114/1.138 (1.140).
196
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Constituição aplicada ao caput do art. 2o, ao § 5o desse mesmo artigo e ao art. 4o, todos da lei em causa – Ação que se julga procedente em parte, para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘março’, contida no § 5o do art. 2o da Lei n. 8.039/90, e, parcialmente, o caput e o § 2o do art. 2o, bem como o art. 4o, os três em todos os sentidos que não aquele segundo o qual de sua aplicação estão ressalvadas as hipóteses em que, no caso concreto, ocorra direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada”.203 Uma redução do âmbito da aplicação da lei pode ser operada, igualmente, mediante simples interpretação conforme à Constituição.204 Assim, ao apreciar a constitucionalidade de dispositivo constante da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 5.540/68), houve por bem o Tribunal afirmar que a exigência de lista tríplice para o preenchimento de cargos de direção superior das Universidades somente se aplicava às Universidades federais,205 com o fundamento de que essa regra não integrava as linhas básicas do sistema de ensino que deveriam estar disciplinadas na referida lei. Com a utilização da expressão “desde que” acabou o Tribunal por excluir as Universidades estaduais do âmbito de aplicação da norma impugnada, como se vê da ementa do acórdão: “Universidades e estabelecimentos oficiais de nível superior. A determinação do número dos componentes das listas destinadas à escolha dos seus dirigentes, não sendo matéria de diretriz e base, escapa à competência legislativa da União, em relação às entidades oficiais de ensino situadas fora do âmbito federal (Constituição, art. 8o, XVII, “q”, e art. 177), valendo, apenas, no que concerne às mantidas pela União. Representação julgada improcedente, desde que se interprete o § 1o, do art. 16, da Lei n. 5.540/68, com a redação dada pela de n. 6.420/77, como somente aplicável às Universidades e estabelecimentos superiores no âmbito federal”. Mais recentemente reconheceu-se a possibilidade de “explicitação, no campo da liminar, do alcance de dispositivos de uma certa lei, sem afastamento da eficácia no que se mostre consentânea com a Constituição Federal”.206 A interpretação conforme à Constituição – Consoante postulado do Direito americano incorporado à doutrina constitucional brasileira, deve o juiz, na dúvida, reconhecer a constitucionalidade da lei. Também no caso de duas interpretações possíveis de uma lei há de se preferir aquela que se revele compatível com a Constituição. Os Tribunais devem, portanto, partir do princípio de que o legislador busca positivar uma norma constitucional.207 203
ADIn n. 319-4, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 30.04.93, p. 7.563.
204
Sobre o conceito de “interpretação conforme à Constituição” e sua relação com a declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, v. infra, subitem “A interpretação conforme à Constituição”. 205
Repr. n. 1.454, Rel. Min. Octávio Gallotti, RTJ 125/997.
206
ADIn n. 1.045, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 06.05.94, p. 10.485.
207
Bittencourt, O Controle Jurisdicional..., cit.,p. 93.
197
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Há muito vale-se o STF da interpretação conforme à Constituição, passando a ser utilizada também no âmbito do controle abstrato de normas.208 Consoante o entendimento ordinário, limita-se o Tribunal a declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição.209 O resultado da interpretação, normalmente, é incorporado, de forma resumida, na parte dispositiva da decisão.210 Segundo a jurisprudência do STF, a interpretação conforme à Constituição conhece limites. Eles resultam tanto da expressão literal da lei quanto da chamada “vontade do legislador”. A interpretação conforme à Constituição é, por isso, apenas admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto211 e não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador. A interpretação conforme à Constituição levava sempre, no Direito brasileiro, à declaração de constitucionalidade da lei.212 Porém, como já se disse, há hipóteses em que este tipo de interpretação pode levar a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto. Tais casos foram levantados pela primeira vez por ocasião da propositura cumulativa de uma representação interpretativa213 e de uma representação de inconstitucionalidade; suscitou-se a indagação sobre o significado dogmático da interpretação conforme à Constituição.214 No caso, o STF, seguindo orientação formulada pelo Min. Moreira Alves, reconheceu que a interpretação conforme à Constituição, quando fixada no juízo abstrato de normas, corresponde a uma pronúncia de inconstitucionalidade. Daí entender incabível a sua aplicação no âmbito da representação interpretativa.215 Não se pode afirmar com segurança se na jurisprudência do STF a interpretação conforme à Constituição há de ser, sempre, equiparada a uma declaração de nulidade sem redução de texto. Deve-se acentuar, porém, que em decisão de 9.11.87 deixou assente o STF que a
208
Repr. n. 948, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 82/55-56; Repr. n. 1.100, RTJ 115/993 e ss.
209
Cf., a propósito, Repr. n. 1.454, Rel. Min. Octávio Gallotti, RTJ 125/997.
210
Cf., a propósito, Repr. n. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ 126/514; Repr. n. 1.454, Rel. Min. Octávio Gallotti, RTJ 125/997; Repr. n. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ de 09.09.88. 211
Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit.,p. 95.
212
Cf., a propósito, Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., p. 95.
213
A chamada “representação interpretativa” foi introduzida no Direito brasileiro pela EC n. 7/77 e deveria contribuir – tal como ressaltado na Exposição de Motivos do Governo – para dirimir controvérsias sobre interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual. O direito de propositura foi confiado exclusivamente ao Procurador-Geral da República (CF de 1967/1969, art. 119, I, “l”). A Constituição de 1988 não incorporou esse instituto. 214
Cf. Repr. n. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 126/48 e ss.
215
Voto na Repr. n. 1.417, DJ de 15.04.88, RTJ 126/48 e ss.
198
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes interpretação conforme à Constituição não deve ser vista como um simples princípio de interpretação, mas sim como uma modalidade de decisão do controle de normas, equiparável a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.216 Assinale-se, porém, que o Tribunal não procedeu, inicialmente, a qualquer alteração na parte dispositiva da decisão, que continuava a afirmar a improcedência da argüição, desde que adotada determinada interpretação. As decisões proferidas nas ADIn ns. 491 e 319, da relatoria do Min. Moreira Alves, parecem sinalizar que pelo menos no controle abstrato de normas o Tribunal tem procurado, nos casos de exclusão de determinadas hipóteses de aplicação ou hipóteses de interpretação do âmbito normativo, acentuar a equivalência dessas categorias.217 De nossa parte, cremos que a equiparação pura e simples da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto à interpretação conforme à Constituição prepara dificuldades significativas. A mais relevante delas advém do fato de que, ao fixar como constitucional dada interpretação e, expressa ou implicitamente, excluir determinada possibilidade de interpretação, por inconstitucional, o tribunal não declara – nem poderia fazê-lo – a inconstitucionalidade de todas as possíveis interpretações de certo texto normativo. Neste tema, parece que o legislador fez, pelo que se depreende do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868, uma clara opção pela separação das figuras da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto e da interpretação conforme à Constituição. A declaração de constitucionalidade das leis – Embora na Exposição de Motivos que encaminhou a proposta de EC n. 16/65 tenha o Governo acentuado que a representação, limitada em sua iniciativa, teria o mérito de facultar desde logo a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas, formando precedente que orientaria o julgamento de processos congêneres,218 a doutrina constitucional brasileira não conferiu maior atenção à decisão que reconhecia a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei no processo de controle abstrato de normas. Considerando que o conteúdo e os efeitos da decisão foram disciplinados apenas de forma fragmentada nas diferentes disposições, não lograram, doutrina e jurisprudência, precisar, inicialmente, o significado dogmático da declaração de constitucionalidade no juízo abstrato.219 Posteriormente passou o Tribunal a admitir que as decisões de inconstitucionalidade proferidas no processo de controle abstrato de normas tinham eficácia erga omnes, deixando, assim, de submetê-las ao Senado Federal.220
216
Repr. n. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 126/48.
217
ADIn n. 491/Medida Cautelar, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 137/90; ADIn n. 319, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 30.04.93. 218
Cf. Emendas à Constituição de 1946, n. 16, Reforma do Poder Judiciário, Câmara dos Deputados, Brasília, 1968, p. 19 (24). 219
Cf., a propósito: Buzaid, Da Ação Direta ..., cit., p. 87; Bittencourt, O Controle Jurisdicional ..., cit., p. 143.
199
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes É que, ao contrário do que se verifica em alguns sistemas, o STF não se limita a declarar a improcedência da ação, declarando expressamente a constitucionalidade da norma por decisão de maioria qualificada (seis votos), presentes pelo menos oito integrantes da Corte. Era o que dispunham os arts. 143 e 173 do Regimento Interno do STF, e agora o art. 23 da Lei n. 9.868/99. Essa orientação corresponde, sem dúvida, à natureza do processo de controle abstrato de normas, que se destina não só a eliminar da ordem jurídica, pronta e eficazmente, a lei inconstitucional, mas também a espancar, de forma definitiva, dúvidas porventura surgidas sobre a constitucionalidade das leis válidas.221 Tal entendimento parece tanto mais plausível se se considera que o STF não está adstrito, no controle abstrato de normas, aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expendidos na inicial.222 A declaração de constitucionalidade e a “lei ainda constitucional” – Em decisão de 23.3.94 teve o STF oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a Defensoria Pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados.223 Ressalvou-se, portanto, de forma expressa, a possibilidade de que o Tribunal possa vir a declarar a inconstitucionalidade da disposição em apreço, uma vez que a afirmação sobre a legitimidade da norma assentava-se em uma circunstância de fato que se modifica 220
Parecer do Min. Rodrigues de Alckmin, de 19.6.75 (sessão administrativa), DJ de 16.05.77, p. 3.124; parecer do Min. Moreira Alves, de 11.11.75 (sessão administrativa), DJ de 16.05.77, p. 3.123. V., também, Bandeira de Mello, O. A. Teoria das Constituições Rígidas, 1980, p. 213. Em 18.6.77 o Presidente do STF, Min. Thompson Flores, determinou que as comunicações ao Senado Federal para os fins do art. 42, VII, da CF de 1967/1969 se restringissem às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidenter tantum (cf. Alencar, Ana Valderez Ayres Neves de. A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos inconstitucionais, RIL 57/260, 1978 (305). 221
Essa orientação, que é dominante na doutrina germânica, parece corresponder, tal como demonstrado acima, à natureza e aos objetivos do processo de controle abstrato adotado no Brasil desde a EC n. 16/65. Deve-se assinalar, porém, que a doutrina constitucional italiana e, mais recentemente, a doutrina espanhola e a portuguesa atribuem eficácia extremamente reduzida à “sentença de rejeição de inconstitucionalidade”. Tal como observado por Zagrebelzky, “le decisioni di rigetto della Corte Costituzionale possegono dunque un’efficacia assai limitata, e comunque non paragonabile a quella propria del giudicato di cui sono fornite regola sentenze della giurisdizione comune” (La Giustizia Costituzionale, Bolonha, 1977, p. 185). Também Raul Sierra Bocanegra rejeita a possibilidade de se outorgar eficácia à sentença confirmatória da constitucionalidade, porquanto “esa sentencia dispondría de un valor superior al de las leyes mismas, un valor constitucional totalmente inaceptable en un instrumento jurídico de esa clase, que vendría a poner en cuestión, por lo demás, muy seriamente, el progreso y la capacidad de cambio y adaptación de la Constitución, al volver definitivamente el sistema hacia uno de los polos que en esta materia entran en tensión” (cf. El Valor de las Sentencias del Tribunal Constitucional, Madri, 1982, p. 254). No mesmo sentido é a opinião de Gomes Canotilho e de Jorge Miranda em relação à sentença de rejeição de inconstitucionalidade proferida pela Corte Constitucional portuguesa (Canotilho, Direito Constitucional, 5a ed. Coimbra, 1992, p. 1.089; Miranda, Manual de Direito Constitucional, 2a ed., t. 2, Coimbra, 1983, p. 384). 222
Cf., a propósito, Mendes, Controle de Constitucionalidade..., cit., p. 268.
223
HC n. 70.514, j. 23.3.94, DJ de 27.06.97.
200
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes no tempo.224 Fica evidente, pois, que a nossa Corte deu um passo significativo rumo à flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, introduzindo, ao lado da declaração de inconstitucionalidade, o reconhecimento de um estado imperfeito, insuficiente para justificar a declaração de ilegitimidade da lei.
8. Efeitos atribuíveis à declaração de inconstitucionalidade Declaração de inconstitucionalidade com efeitos “ex tunc” e declaração de inconstitucionalidade com efeitos “ex nunc” – O poder de que dispõe qualquer juiz ou tribunal para deixar de aplicar a lei inconstitucional a um determinado processo (CF, arts. 97 e 102, III, “a”, “b” e “c”) pressupõe a invalidade da lei e, com isso, a sua nulidade. A faculdade de negar aplicação à lei inconstitucional corresponde ao direito do indivíduo de se recusar a cumprir a lei inconstitucional, assegurando-se-lhe, em última instância, a possibilidade de interpor recurso extraordinário ao STF contra decisão judicial que se apresente, de alguma forma, em contradição com a Constituição (art. 102, III, “a”).225 Tanto o poder do juiz de negar aplicação à lei inconstitucional quanto a faculdade assegurada ao indivíduo de negar observância à lei inconstitucional demonstram que o constituinte pressupôs a nulidade da lei inconstitucional. Daí se segue que a sentença que declara a inconstitucionalidade tem eficácia ex tunc. Porém, a Lei n. 9.868 contém disposição (art. 27) que autoriza o STF, tendo em vista
224
Posteriormente, no RE Crim. n. 147.776-8, da relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, o tema voltou a ser agitado de forma pertinente. A ementa do acórdão revela, por si só, o significado da decisão para a atual evolução das técnicas de controle de constitucionalidade: “Ministério Público – Legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação – CPP, art. 68, ainda constitucional (cf. RE n. 135.328) – Processo de inconstitucionalização das leis. “1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição – ainda quanto teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada – subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a viabilizem. “2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 do CPP – constituindo modalidade de assistência judiciária – deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada. Até que – na União ou em cada Estado considerado – se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 do CPP será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o Plenário no RE n. 135.328” (Lex-JSTF 238/390). 225
Cf., a propósito, Repr. n. 980, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 96/496 (508).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou a estabelecer que ela tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, desde que tal deliberação seja tomada pela maioria de dois-terços de seus membros. A inovação em tela merece ser justificada. A falta de um instituto que permita estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade acaba por obrigar os tribunais, muitas vezes, a se absterem de emitir um juízo de censura, declarando a constitucionalidade de leis manifestamente inconstitucionais. Por isso, assevera García de Enterría, forte na doutrina americana, que “la alternativa a la prospectividad de las sentencia no es, pues, la retroactividad de las mismas, sino la abstención en el descubrimiento de nuevos criterios de efectividad de la Constitución, el estancamiento en su interpretación, la renuncia, pues, a que los Tribunales Constitucionales cumplan una de sus funciones capitales, la de hacer una livingConstitution, la de adaptar paulatinamente esta a las nuevas condiciones sociales”.226 É interessante notar que nos próprios Estados Unidos da América, onde a doutrina acentuara tão enfaticamente a idéia de que a expressão “lei inconstitucional” configurava uma contradictio in terminis, uma vez que “the inconstitutional statute is not law at all”,227 passou-se a admitir, após a Grande Depressão, a necessidade de se estabelecer limites à declaração de inconstitucionalidade.228 A Suprema Corte americana vem considerando o problema proposto pela eficácia retroativa de juízos de inconstitucionalidade a propósito de decisões em processos criminais. Se as leis ou atos inconstitucionais nunca existiram enquanto tais, eventuais condenações neles baseadas quedam ilegítimas e, portanto, o juízo de inconstitucionalidade implicaria a possibilidade de impugnação imediata de todas as condenações efetuadas sob a vigência da norma inconstitucional. Por outro lado, se a declaração de inconstitucionalidade afeta tão-somente a demanda em que foi levada a efeito, não há que se cogitar de alteração de julgados anteriores. Sobre o tema, afirma Tribe: “No caso Linkletter v. Walker, a Corte rejeitou ambos os extremos: ‘a Constituição nem proíbe nem exige efeito retroativo’. Parafraseando o Justice Cardozo pela assertiva de que ‘a Constituição Federal nada diz sobre o assunto’, a Corte de Linkletter tratou da questão da retroatividade como um assunto puramente de política (política judiciária), a ser decidido novamente em cada caso. A Suprema Corte codificou a abordagem de Linkletter no caso Stovall v. Denno: ‘Os critérios condutores da solução da questão implicam (a) o uso a ser servido pelos novos padrões, (b) a extensão da dependência das autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei com 226
García de Enterría, Eduardo. Justicia Constitucional, la doctrina prospectiva en la declaración de ineficacia de las leyes inconstitucionales, RDP 92/5 (14). 227
Cf. Westel Woodbury Willoughby, The Constitutional Law of the United States, v. I, Nova York, 1910, pp. 9-10; cf., também, Thomas M. Cooley, Treatise on the Constitutional Limitations, 4a ed., Boston, 1878, p. 227. 228
Cf. Tribe, Laurence. The American Constitutional Law, The Foundation Press, Mineola, New York, 1988, p. 27.
202
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes relação aos antigos padrões e (c) o efeito sobre a administração da justiça de uma aplicação retroativa dos novos padrões”.229 Por sua vez, a Constituição portuguesa, na versão da Lei Constitucional de 1982, consagrou fórmula segundo a qual quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto em geral (art. 281o-4). Vale registrar, a propósito, a opinião abalizada de Jorge Miranda: “A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização. “Uma norma como a do art. 282o, n. 4, aparece, portanto, em diversos países, se não nos textos, pelo menos na jurisprudência. “Como escreve Bachof, os tribunais constitucionais consideram-se não só autorizados mas inclusivamente obrigados a ponderar as suas decisões, a tomar em consideração as possíveis conseqüências destas. É assim que eles verificam se um possível resultado da decisão não seria manifestamente injusto, ou não acarretaria um dano para o bem público, ou não iria lesar interesses dignos de proteção de cidadãos singulares. Não pode entender-se isto, naturalmente, como se os tribunais tomassem como ponto de partida o presumível resultado da sua decisão e passassem por cima da Constituição e da lei em atenção a um resultado desejado. Mas a verdade é que um resultado injusto, ou por qualquer outra razão duvidoso, é também em regra – embora não sempre – um resultado juridicamente errado. “À primeira vista, oposto à fixação dos efeitos é o judicial self-restraint, que consiste (como o nome indica) numa autolimitação dos tribunais ou do tribunal de constitucionalidade, não ajuizando aí onde considere que as opções políticas do legislador devem prevalecer ou ser insindicáveis. Mas talvez se trate apenas de uma aparente restrição, porquanto não interferir, não fiscalizar, não julgar, pode inculcar, já por si, uma aceitação dos juízos do legislador e das suas estatuições e, portanto, também uma definição (embora negativa) da inconstitucionalidade e dos seus eventuais efeitos.”230 Embora a Constituição espanhola não tenha adotado instituto semelhante, a Corte Constitucional, marcadamente influenciada pela experiência constitucional alemã, passou a adotar, desde 1989, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, como reportado por García de Enterría: “La reciente publicación en el Boletín Oficial del Estado de 2 de marzo último de la ya famosa Sentencia 45/1989, de 20 de febrero, sobre inconstitucionalidad del sistema de liquidación conjunta del impuesto sobre la renta de la ‘unidad familiar’ matrimonial
229
230
Tribe. The American Constitutional Law, cit., p. 30. Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 3a ed., t. II, Coimbra, 1991, pp. 500-502.
203
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes permite a los juristas una reflexión pausada sobre esta importante decisión del Tribunal Constitucional, objeto ya de multitud de comentarios periodísticos. “La decisión es importante, en efecto, por su fondo, la inconstitucionalidad que declara, tema en el cual no parece haberse producido, hasta ahora, discrepancia alguna. Pero me parece bastante más importante aún por la innovación que ha supuesto en la determinación de los efectos de esa inconstitucionalidad, que el fallo remite a lo ‘que se indica en el Fundamento Undécimo’ y éste explica como una eficacia pro futuro, que no permite reabrir las liquidaciones administrativas o de los propios contribuyentes (autoliquidaciones) anteriores.”231 O próprio STF tem apontado as insuficiências existentes no âmbito das técnicas de decisão no processo de controle de constitucionalidade. Os casos de omissão parcial mostram-se extremamente difíceis de serem superados no âmbito do controle de normas em razão da insuficiência das técnicas de controle disponíveis. Essa peculiaridade restou evidenciada na ADIn n. 526, oferecida contra a MP n. 296/91, que concedia aumento de remuneração a segmento expressivo do funcionalismo público em alegado desrespeito ao disposto no art. 37, X, da CF. Convém se registre passagem do voto proferido pelo eminente Relator, Min. Sepúlveda Pertence, no julgamento do pedido de concessão de medida cautelar: “Põe-se aqui, entretanto, um problema sério e ainda não deslindado pela Corte, que é um dos tormentos do controle da constitucionalidade da lei pelo estalão do princípio da isonomia e suas derivações constitucionais. “Se a ofensa à isonomia consiste, no texto da norma questionada, na imposição de restrição a alguém, que não se estenda aos que se encontram em posição idêntica, a situação de desigualdade se resolve sem perplexidade pela declaração da invalidez da constrição discriminatória. “A consagração positiva da teoria da inconstitucionalidade por omissão criou, no entanto, dilema cruciante quando se trate, ao contrário, de ofensa à isonomia pela outorga por lei de vantagem a um ou mais grupos com exclusão de outro ou outros que, sob o ângulo considerado, deveriam se incluir entre os beneficiários. “É a hipótese, no quadro constitucional brasileiro, de lei que, à vista da erosão inflacionária do poder de compra da moeda, não dê alcance universal à revisão de vencimentos, contrariando o art. 37, X, ou que, para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas, fixe vencimentos díspares, negando observância à imposição de tratamento igualitário do art. 39, § 1o, da Constituição. “A alternativa que aí se põe ao órgão de controle é afirmar a inconstitucionalidade positiva de norma concessiva do benefício ou, sob outro prisma, a da omissão parcial consistente em não ter estendido o benefício a quantos satisfizessem os mesmos pressupostos de fato subjacentes à outorga (Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, 1992, pp. 333 ss. e 339; Direito Constitucional, 1986, p. 831; Gilmar F. Mendes, Controle de Constitucionalidade, 1990, pp. 60 e ss.; Regina Ferrari,
231
García de Enterría . Justicia Constitucional, cit., outubro-dezembro/89.
204
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade, 1990, pp. 156 e ss.; Cármem Lúcia Rocha, O Princípio Constitucional da Igualdade, 1990, p. 42): ‘a censurabilidade do comportamento do legislador’ – mostra Canotilho (Constituição Dirigente, cit., p. 334), a partir da caracterização material da omissão legislativa – ‘tanto pode residir no acto positivo – exclusão arbitrária de certos grupos das vantagens legais – como no procedimento omissivo – emanação de uma lei que contempla positivamente um grupo de cidadãos, esquecendo outros’. “Se se adota a primeira solução – a declaração de inconstitucionalidade da lei por ‘não-favorecimento arbitrário’ ou ‘exclusão inconstitucional de vantagem’ –, que é a da nossa tradição (v.g., RE n. 102.553, 21.8.86, RTJ 120/725), a decisão tem eficácia fulminante, mas conduz a iniqüidades contra os beneficiados, quando a vantagem não traduz privilégio, mas imperativo de circunstâncias concretas, não obstante a exclusão indevida de outros, que ao gozo dela se apresentariam com os mesmos títulos. “É o que ocorreria, no caso, com a suspensão cautelar da eficácia da medida provisória, postulada na ADIn n. 525: estaria prejudicado o aumento de vencimentos da parcela mais numerosa do funcionalismo civil e militar, sem que daí resultasse benefício algum para os excluídos do seu alcance. “A solução oposta – a da omissão parcial – seria satisfatória se resultasse na extensão do aumento – alegadamente, simples reajuste monetário – a todos quantos sofrem com a mesma intensidade a depreciação inflacionária dos vencimentos. “A essa extensão da lei, contudo, faltam poderes ao Tribunal, que, à luz do art. 103, § o 2 , da CF, declarando a inconstitucionalidade por omissão da lei – seja ela absoluta ou relativa –, há de cingir-se a comunicá-la ao órgão legislativo competente, para que a supra. “De resto, como assinalam estudiosos de inegável autoridade (v.g., Gilmar Mendes, cit., p. 70), o alvitre da inconstitucionalidade por omissão parcial ofensiva da isonomia – se pôde ser construída, a partir da Alemanha, nos regimes do monopólio do controle de normas pela Corte Constitucional –, suscita problemas relevantes de possível rejeição sistemática se se cogita de transplantá-la para a delicada simbiose institucional que se traduz na convivência, no Direito brasileiro, entre o método de controle direto e concentrado no Supremo Tribunal e o sistema difuso. “Ponderações, que não seria oportuno expender aqui, fazem, porém, com que não descarte de plano a aplicabilidade, no Brasil, da tese da inconstitucionalidade por omissão parcial. Ela, entretanto, não admite antecipação cautelar, sequer, limitados efeitos de sua declaração no julgamento definitivo; muito menos para a extensão do benefício aos excluídos, que nem na decisão final se poderia obter.”232 Evidente, pois, que a declaração de nulidade não configura técnica adequada para a eliminação da situação inconstitucional nesses casos de omissão legislativa. Uma cassação aprofundaria o estado de inconstitucionalidade. Entendeu, portanto, o legislador que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o STF, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois-terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro 232
ADIn n. 526, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, RTJ 145/101 (112-113).
205
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g., lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional. As decisões proferidas na ação direta de inconstitucionalidade por omissão e sua eficácia mandamental – O STF teve oportunidade de apreciar pela primeira vez as questões suscitadas pelo controle de constitucionalidade da omissão em decisão de 23.11.89.233 A inexistência de regras processuais específicas exigia que o Tribunal examinasse, como questão preliminar, a possibilidade de se aplicar esse instituto com base, tãosomente, nas disposições constitucionais. A resposta a essa questão dependia, porém, da definição da natureza e do significado desse novo instituto. A Corte partiu do princípio de que a solução que recomendava a expedição da norma geral ou concreta haveria de ser desde logo afastada. A regra concreta deveria ser excluída em determinados casos, como decorrência da natureza especial de determinadas pretensões – v.g., daquelas eventualmente derivadas dos postulados de Direito Eleitoral.234 Como omissão deveria ser entendida não só a chamada “omissão absoluta” do legislador, isto é, a total ausência de normas, como também a “omissão parcial”, na hipótese de cumprimento imperfeito ou insatisfatório de dever constitucional de legislar.235 Tanto quanto a decisão a ser proferida no processo de controle abstrato da omissão, a decisão que reconhece a inconstitucionalidade da omissão no mandado de injunção tem eficácia mandamental. As duas ações são destinadas a obter uma ordem judicial dirigida a um outro órgão do Estado. Ter-se-ia aqui um exemplo daquela ação que James Goldschmidt236 houve por bem denominar ação mandamental.237 Essa ação mandamental exige a edição de ato normativo por parte do Poder Público. O processo de controle da omissão, previsto no art. 103, § 2o, da CF, é abstrato e, consoante a sua própria natureza, deve a decisão nele proferida ser dotada de eficácia 233
O mandado de injunção havia sido proposto por oficial do Exército contra o Presidente da República, que, segundo se alegava, não teria encaminhado, tempestivamente, ao Congresso Nacional projeto de lei disciplinando a duração dos serviços temporários, tal como expressamente exigido pela Constituição (art. 42, § 9o). O impetrante havia prestado serviço por nove anos e seria compelido a passar para a reserva ao implementar o décimo ano se fosse aplicada a legislação pré-constitucional. Daí ter requerido a promulgação da norma prevista constitucionalmente. Ao lado desse pleito principal requereu ele, igualmente, a concessão de liminar que garantisse o seu status funcional até a pronúncia da decisão definitiva. 234
MI n. 107, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 133/11 e ss.
235
MI n. 107, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 133/11 (31).
236
Goldschmidt, James. Zivilprozessrecht, 2. ed., Berlim, 1932, § 15-a, p. 61.
237
MI n. 107, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 133/11 (35).
206
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes erga omnes.238 Segundo a orientação do STF, o constituinte pretendeu conferir aos dois institutos significado processual semelhante, assegurando às decisões proferidas nesses processos idênticas conseqüências jurídicas. A garantia do exercício de direitos prevista no art. 5o, LXXVI, da CF, pertinente ao mandado de injunção, não se diferencia, fundamentalmente, da garantia destinada a tornar efetiva uma norma constitucional referida no art. 103, § 2o, da CF, concernente ao controle abstrato da omissão.239 As decisões proferidas nesses processos declaram a mora do órgão legiferante em cumprir dever constitucional de legislar, compelindo-o a editar a providência requerida. Destarte, a diferença fundamental entre o mandado de injunção e a ação direta de controle da omissão residiria no fato de que, enquanto o primeiro destina-se à proteção de direitos subjetivos e pressupõe, por isso, a configuração de um interesse jurídico, o processo de controle abstrato da omissão, enquanto processo objetivo, pode ser instaurado independentemente da existência de um interesse jurídico específico.240 É também importante ressaltar que a introdução da declaração de inconstitucionalidade com efeito ex-nunc confere ao STF a possibilidade de solver o intrincado problema da omissão parcial, procedendo à declaração de inconstitucionalidade do complexo normativo sem a pronúncia da nulidade. Nesse caso, a Corte poderá declarar a inconstitucionalidade da situação normativa, sem pronúncia da nulidade, autorizando ou não a aplicação da lei considerada inconstitucional. A limitação de efeitos e o art. 27 da Lei n. 9.868/99 – O princípio da nulidade continua a ser a regra no Direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante, manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como no Direito português, a não-aplicação do princípio da nulidade não se há de basear em consideração de política judiciária, mas em fundamento constitucional próprio. O princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social.241 Entre nós, cuidou o legislador de conceber um modelo restritivo também no aspecto procedimental, consagrando a necessidade de um quorum especial (dois terços dos votos) para a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados. Vê-se, pois, que também entre nós terá significado especial o princípio da
238
MI n. 107, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 133/11 (38-39).
239
MI n. 107, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 133/11 (38-39).
240
MI n. 107, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 133/11 (38-39).
241
Cf., a propósito do Direito português, Medeiros,Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999,p. 716.
207
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes proporcionalidade, especialmente a proporcionalidade em sentido estrito, como instrumento de aferição da justeza da declaração de inconstitucionalidade (como efeito da nulidade), tendo em vista o confronto entre os interesses afetados pela lei inconstitucional e aqueles que seriam eventualmente sacrificados em conseqüência da declaração de inconstitucionalidade.242 Nos termos do art. 27 da Lei n. 9.868/99, o STF poderá proferir, em tese, tanto quanto já se pode vislumbrar, uma das seguintes decisões: a) declarar a inconstitucionalidade apenas a partir do trânsito em julgado da decisão (declaração de inconstitucionalidade ex nunc), com ou sem repristinação da lei anterior; b) declarar a inconstitucionalidade com a suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (declaração de inconstitucionalidade com efeito pro futuro), com ou sem repristinação da lei anterior; c) declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, permitindo que se opere a suspensão de aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, venha a se manifestar sobre a situação inconstitucional (declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade = restrição de efeitos); e e, eventualmente, d) declarar a inconstitucionalidade dotada de efeito retroativo, com a preservação de determinadas situações. Assim, tendo em vista razões de segurança jurídica, o Tribunal poderá afirmar a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc. Nessa hipótese a decisão de inconstitucionalidade eliminará a lei do ordenamento jurídico a partir do trânsito em julgado da decisão (cessação da ultra-atividade da lei)243 (hipótese “a”). Outra hipótese (hipótese “b”) expressamente prevista no art. 27 diz respeito à declaração de inconstitucionalidade com eficácia a partir de um dado momento no futuro (declaração de inconstitucionalidade com efeito pro futuro). Nesse caso a lei reconhecida como inconstitucional, tendo em vista fortes razões de segurança jurídica ou de interesse social, continuará a ser aplicada dentro do prazo fixado pelo Tribunal. A eliminação da lei declarada inconstitucional do ordenamento submete-se a um termo pré-fixo. Considerando que o legislador não fixou o limite temporal para a aplicação excepcional da lei inconstitucional, caberá ao próprio Tribunal essa definição. Como se sabe, o modelo austríaco consagra fórmula que permite ao Tribunal assegurar a aplicação da lei por período que não exceda dezoito meses. Ressalte-se que o prazo a que se refere o art. 27 tem em vista assegurar ao legislador um período adequado para a superação do modelo jurídico-legislativo considerado inconstitucional. Assim, ao decidir pela fixação de prazo deverá o Tribunal estar atento a essa peculiaridade. Poderão ainda surgir casos que recomendem a adoção de uma pura declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade (suspensão de aplicação da lei e suspensão dos processos em curso) (hipótese “c”). Poderá ser o caso de determinadas
242
Cf., sobre o assunto, Medeiros. A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., pp. 703-704.
243
Cf., sobre especificidades, infra, item referente à repercussão da decisão restritiva em relação aos casos concretos.
208
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes lesões ao princípio da isonomia (exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade). Nessas situações, muitas vezes não pode o Tribunal eliminar a lei do ordenamento jurídico, sob pena de suprimir uma vantagem ou avanço considerável. A preservação dessa situação sem qualquer ressalva poderá importar, outrossim, o agravamento do quadro de desigualdade verificado. Assim, um juízo rigoroso de proporcionalidade poderá recomendar que se declare a inconstitucionalidade sem nulidade, congelando a situação jurídica existente até o pronunciamento do legislador destinado a superar a situação inconstitucional. Finalmente, poderá ser declarada a inconstitucionalidade com efeito retroativo (hipótese “d”), desde que sejam preservadas situações singulares (v.g., razões de segurança jurídica) que, segundo entendimento do Tribunal, devam ser mantidas incólumes. A declaração de inconstitucionalidade restritiva e sua repercussão sobre as decisões proferidas nos casos concretos – Questão relevantíssima no sistema misto brasileiro diz respeito à repercussão da decisão limitadora tomada pelo STF no controle abstrato de normas sobre os julgados proferidos pelos demais juízes e tribunais no sistema difuso244. O tema não é novo e foi suscitado, inicialmente na Áustria, tendo em vista os reflexos da decisão da Corte Constitucional sobre os casos concretos que deram origem ao incidente de inconstitucionalidade. Optou-se ali por atribuir efeito ex tunc excepcional à repercussão da decisão de inconstitucionalidade sobre o caso concreto (Constituição Austríaca, art. 140, n. 7). No Direito americano o tema poderia assumir maior delicadeza, tendo em vista o caráter incidental ou difuso do sistema. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, não é rara a pronúncia de inconstitucionalidade sem atribuição de eficácia retroativa, especialmente nas decisões judiciais que introduzem alteração de jurisprudência (prospective overruling). Em alguns casos a nova regra afirmada para decisão aplica-se aos processos pendentes (limited prospectivity); em outros a eficácia ex tunc exclui-se de forma absoluta (pure prospectivity).245 Embora tenham surgido no contexto das alterações jurisprudenciais de precedentes, as prospectivity têm integral aplicação às hipóteses de mudança de orientação que leve à declaração de inconstitucionalidade de uma lei antes considerada constitucional.246 A prática da prospectivity no sistema de controle americano demonstra, pelo menos, que o controle concreto não é incompatível com a idéia da limitação de efeitos na decisão de inconstitucionalidade. De qualquer sorte, o tema assume entre nós peculiar complexidade, tendo em vista a inevitável convivência entre os modelos difuso e direto. Quais serão, assim, os efeitos da decisão ex nunc do STF, proferida in abstracto, sobre as decisões já proferidas pelas instâncias afimadoras da inconstitucionalidade com eficácia ex tunc? 244
Sobre a aplicação do art. 27 da Lei n. 9868/99 ao modelo difuso de controle de constitucionalidade, cf. , infra, item sobre “O controle incidental e a aplicação do art. 27 da Lei n. 9868/99”. 245 Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 743. 246 Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 743.
209
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Um argumento que pode ser suscitado diz respeito ao direito fundamental de acesso à justiça, tal como já argüido no Direito português, afirmando-se que haveria a frustração da expectativa daqueles que obtiveram o reconhecimento jurisdicional do fundamento de sua pretensão.247 A propósito dessa objeção, Rui Medeiros apresenta as seguintes respostas: “É sabido, desde logo, que existem domínios em que a restrição do alcance do julgamento de inconstitucionalidade não é, por definição, susceptível de pôr em causa esse direito fundamental (v.g., invocação do n. 4 do art. 282 para justificar a aplicação da norma penal inconstitucional mais favorável ao argüido do que a norma repristinada). “Além disso, mostra-se claramente claudicante a representação do direito de acção judicial como um direito a uma sentença de mérito favorável, tudo apontando antes no sentido de que o art. 20 da Constituição não vincula os tribunais a uma obrigaçãoresultado (procedência do pedido), mas a uma mera obrigação-meio, isto é, a encontrar uma solução justa e legal para o conflito de interesse entre as partes. “Acresce que, mesmo que a limitação de efeitos contrariasse o direito de acesso aos tribunais, ela seria imposta por razões jurídico-constitucionais e, por isso, a solução não poderia passar pela absoluta prevalência do interesse tutelado pelo art. 20 da Constituição, postulando ao invés uma tarefa de harmonização entre os diferentes interesse em conflito. “Finalmente, a admissibilidade de uma limitação de efeitos na fiscalização concreta não significa que um tribunal possa desatender, com base numa decisão puramente discricionária, a expectativa daquele que iniciou um processo jurisdicional com a consciência da inconstitucionalidade da lei que se opunha ao reconhecimento da sua pretensão. A delimitação da eficácia da decisão de inconstitucionalidade não é fruto de ‘mero decisionismo’ do órgão de controlo. O que se verifica é tão-somente que, à luz do ordenamento constitucional no seu todo, a pretensão do autor à não-aplicação da lei desconforme com a Constituição não tem, no caso concreto, fundamento.”248 Essas colocações têm a virtude de demonstrar que a declaração de inconstitucionalidade in concreto também se mostra passível de limitação de efeitos. A base constitucional dessa limitação – necessidade de um outro princípio que justifique a não-aplicação do princípio da nulidade – parece sugerir que, se aplicável, a declaração de inconstitucionalidade restrita revela-se abrangente do modelo de controle de constitucionalidade como um todo. É que nesses casos, tal como já argumentado, o afastamento do princípio da nulidade da lei assenta-se em fundamentos constitucionais, e não em razões de conveniência. Se o sistema constitucional legitima a declaração de inconstitucionalidade restrita, no controle abstrato, esta decisão poderá afetar, igualmente, os processos do modelo concreto ou incidental de normas. Do contrário poder-se-ia ter inclusive um esvaziamento ou uma perda de significado da própria declaração de inconstitucionalidade restrita ou limitada. É claro que, nesse contexto, tendo em vista os próprios fundamentos legitimadores da restrição de efeitos, poderá o Tribunal declarar a inconstitucionalidade restrita, fazendo, 247
Cf., a propósito, Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 746 248
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit.,pp. 746-747.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes porém, a ressalva dos casos já decididos ou dos casos pendentes até um determinado momento (v.g., até o momento da decisão in abstracto). É o que ocorre no sistema português, onde o Tribunal Constitucional ressalva freqüentemente os efeitos produzidos até a data da publicação da declaração de inconstitucionalidade no Diário da República ou, ainda, acrescenta no dispositivo que são excetuadas aquelas situações que estejam pendentes de impugnação contenciosa.249 Assim, pode-se entender que se o STF declarar a inconstitucionalidade restrita, sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos idênticos de declaração de inconstitucionalidade pendentes de decisão nas diversas instâncias. Os próprios fundamentos constitucionais legitimadores da restrição embasam a declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex nunc nos casos concretos. A inconstitucionalidade da lei há de ser reconhecida a partir do trânsito em julgado. Os casos concretos ainda não transitados em julgado hão de ter o mesmo tratamento (decisões com eficácia ex nunc) se e quando submetidos ao STF.250 É verdade que, tendo em vista a autonomia dos processos controle incidental ou concreto e de controle abstrato, entre nós, mostra-se possível um distanciamento temporal entre as decisões proferidas nos dois sistemas (decisões anteriores, no sistema incidental, com eficácia ex tunc e decisão posterior, no sistema abstrato, com eficácia ex nunc). Esse fato poderá ensejar uma grande insegurança jurídica. Daí parecer razoável que o próprio STF declare, nesses casos, a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc, ressalvando, porém, os casos já julgados ou, em determinadas situações, até mesmo os casos sub judice, até a data de ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade. Essa ressalva assenta-se também em razões de índole de constitucional, especialmente no princípio da segurança jurídica. Ressalte-se aqui que, além da ponderação central entre o princípio da nulidade e outro princípio constitucional, com a finalidade de definir a dimensão básica da limitação, deverá fazer outras ponderações, tendo em vista a repercussão da decisão tomada no processo de controle in abstracto nos diversos processos de controle concreto. Dessa forma, tem-se, a nosso ver, uma adequada solução para o difícil problema da convivência entre os dois modelos de controle de constitucionalidade existentes entre nós, também no que diz respeito à técnica de decisão. A aplicação do art. 27 da Lei 9868/99 na jurisprudência do STF - Em três casos recentes teve o Supremo Tribunal Federal a oportunidade de discutir a aplicação do art. 27 da Lei n. 9868/99. Em dois deles, tratava-se de controle incidental de normas.251 No primeiro, controvertia-se sobre a constitucionalidade do § único do art. 6º da Lei
249
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 748.
250
Questão interessante diz respeito à possibilidade de o STF apreciar recurso extraordinário no qual se alegue, fundamentalmente, que o acórdão do tribunal a quo, ao dar pela inconstitucionalidade, não atentou para os eventuais danos ao principio da segurança jurídica decorrentes da retroatividade da decisão (cf., infra, “O Controle Incidental de Normas”). 251
Cf. RE 197.917, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 07.05.2004 e Rcl n. 2.391, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para o acórdão, Min. Joaquim Barbosa. Julgamento não concluído.
211
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Orgânica 222, de 31 de março de 1990, do Município de Mira-Estrela- SP, que teria fixado seu número de vereadores em afronta ao disposto no art. 29, IV, da Constituição. É que tal disposição prevê que o número de vereadores seja fixado proporcionalmente à população local, observando-se, nos Municípios de até um milhão de habitantes, a relação de um mínimo de 9 e um máximo de 21. Entendi corretas as premissas assentes no voto do relator, Maurício Corrêa, como também a conclusão, na parte em que declarava a inconstitucionalidade da lei orgânica do município paulista, para fixar que, na espécie, o número de vereadores não poderia ser superior a 9. Tendo em vista, porém, a repercussão que a decisão teria para o caso concreto, achei por bem recomendar que se adotasse, na espécie, a declaração de inconstitucionalidade com efeito “pro futuro”. O segundo caso diz respeito à mudança de orientação jurisprudencial a propósito da exigência de recolhimento à prisão para que o acusado pudesse apelar. Cuidava-se de hipótese em que a jurisprudência pacífica do Tribunal encaminhava-se no sentido de considerar legítima a fórmula legislativa, constante do direito pré-constitucional e que vinha sendo reproduzida em diversos textos legislativos posteriores. A 1ª Turma, na Reclamação nº. 2391, posicionou-se no sentido de afetar a matéria ao Pleno, uma vez que a decisão poderia acarretar a revisão da jurisprudência da Corte. Cezar Peluso manifestara-se no sentido da concessão do habeas corpus de ofício, no que foi acompanhado por Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio. Sustentou-se a inconstitucionalidade do artigo 9º da Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995. Com relação ao artigo 3º da Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998, propôs-se interpretação conforme à Constituição Federal, para se interpretar que o juiz decidirá, fundamentadamente, se o réu poderá apelar ou não em liberdade, no sentido de se verificar se estão presentes ou não os requisitos da prisão cautelar.252 O Supremo vinha reconhecendo, sob o regime constitucional em vigor, a legitimidade da exigência do recolhimento à prisão para interposição de recurso. A questão foi bastante discutida no HC 72.366, da relatoria de Néri da Silveira, quando o Plenário, por maioria, reconheceu a validade do art. 594 do Código de Processo Penal em face da Constituição de 1988. Tal entendimento veio a ser estendido para as leis especiais que exigem a prisão do condenado para a interposição de recurso de apelação. No presente caso, proferi voto-vista acompanhando os votos proferidos pelos Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, no sentido da concessão do habeas corpus de ofício e propus que se declarasse, incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 9º da Lei 9.034/95, emprestando ao art. 3º da Lei 9.613/98 interpretação conforme à Constituição, no sentido de que o juiz, na hipótese de sentença condenatória, fundamentasse a existência ou não dos requisitos para a prisão cautelar. Considerando o fato de que, na espécie, estaríamos revisando jurisprudência firmada pelo STF, amplamente divulgada e com inegáveis repercussões no plano material e processual, admiti a possibilidade da limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade prevista no art. 27 da Lei 9.868/99, em sede de controle difuso, ao emprestar efeitos ex nunc à sua decisão.
252
Cf. Rcl n. 2.391, Rel. Min. Marco Aurélio, red. para o acórdão, Min. Joaquim Barbosa. Foram proferidos cinco votos. A matéria pende de definição de pedido de vista, solicitado pela Ministra Ellen Gracie.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
9. Segurança e estabilidade das decisões em controle abstrato de constitucionalidade Eficácia “erga omnes” e a declaração de constitucionalidade – O art. 102, § 2o, da CF e o art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868 prevêem que as decisões declaratórias de constitucionalidade têm eficácia erga omnes. Também a jurisprudência utiliza-se largamente do conceito de “eficácia erga omnes”. Não obstante, não cuidou a doutrina brasileira, até aqui, de conferir ao termo em questão maior densidade teórica. Parece assente entre nós orientação segundo a qual a eficácia erga omnes da decisão do STF refere-se à parte dispositiva do julgado. Se o STF chegar à conclusão de que a lei questionada é constitucional, haverá de afirmar expressamente a sua constitucionalidade, julgando procedente a ação declaratória de constitucionalidade proposta. Da mesma forma, se afirmar a improcedência da ação direta de inconstitucionalidade, deverá o Tribunal declarar a constitucionalidade da lei que se queria ver declarada inconstitucional. Do prisma estritamente processual a eficácia geral ou a eficácia erga omnes obsta, em primeiro plano, a que a questão seja submetida uma vez mais ao STF. Portanto, não se tem uma mudança qualitativa da situação jurídica. Enquanto a declaração de nulidade importa a cassação da lei, não dispõe a declaração de constitucionalidade de efeito análogo. A validade da lei não depende da declaração judicial e a lei vige, após a decisão, tal como vigorava anteriormente.253 Não fica o legislador, igualmente, impedido de alterar ou, mesmo, de revogar a norma em apreço. Questão que tem ocupado os doutrinadores diz respeito, todavia, à eventual vinculação do Tribunal no caso da declaração de constitucionalidade. Poderia ele vir a declarar, posteriormente, a inconstitucionalidade da norma declarada constitucional? Estaria ele vinculado à decisão anterior? O tema suscitou controvérsias na Alemanha. A força de lei da decisão da Corte Constitucional que confirma a constitucionalidade revelar-se-ia problemática se o efeito vinculante geral, que se lhe reconhece, impedisse que o Tribunal se ocupasse novamente da questão.254 Por isso, sustenta Vogel que a aplicação do disposto no § 31-2 da Lei Orgânica do Tribunal às decisões confirmatórias somente tem significado para o dever de publicação, uma vez que a lei não pode atribuir efeitos que não foram previstos pela própria Constituição. Do contrário ter-se-ia a possibilidade de que outras pessoas não-vinculadas pela coisa julgada ficassem impedidas de questionar a constitucionalidade da lei, o que acabaria por 253
Maunz, Theodor. in: Maunz e outros, Bundesverfassungsgerichtsgesetz, § 31, n. 42; Gusy, Christoph. Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, Berlim, 1985, p. 223. 254 Cf., a propósito: BVerfGE 33/199 (203 e ss.); Brox, Hans. Zur Zulässigkeit der erneuten Überprüfung einer Norm durch das Bundesverfassungsgericht, in Festschrift für W. Geiger, p. 810 (825); Lange, Klaus . Rechtskraft, Bindungswirkung und Gesetzeskraft der Entscheidung des Bundesverfassungsgerichts, JuS 1978, p. 1 (6 e ss.).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes atribuir à chamada eficácia erga omnes (força de lei) o significado de autêntica norma constitucional.255 É o que afirma na seguinte passagem de seu estudo sobre a eficácia das decisões da Corte Constitucional: “A proteção para as decisões confirmatórias da Corte Constitucional que transcendesse a própria coisa julgada não encontraria respaldo no art. 94, II, da Lei Fundamental. Semelhante proteção, que acabaria por impedir que pessoas não-atingidas pela coisa julgada sustentassem que a decisão estaria equivocada e que, em verdade, a lei confirmada seria inconstitucional, importaria na conversão da força de lei em força de Constituição. (...). O § 31, II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional faz com que a força de lei alcance também as decisões confirmatórias de constitucionalidade. Essa ampliação somente se aplica, porém, ao dever de publicação, porque a lei não pode conferir efeito que a Constituição não prevê (...)”.256 A Lei Fundamental e a Lei Orgânica da Corte Constitucional não legitimam essa conclusão, seja porque a norma constitucional autoriza expressamente o legislador a definir as decisões da Corte Constitucional que devem ser dotadas de força de lei, seja porque o legislador não restringiu a eficácia erga omnes apenas às decisões de índole cassatória. É certo, por outro lado, que a conclusão de Vogel afigurar-se-ia obrigatória se, tal como ressaltado por Bryde, se conferisse caráter material à força de lei prevista no § 31-2 da Lei Orgânica da Corte Constitucional.257 Se, todavia, se considera a força de lei, tal como a doutrina dominante, como instituto especial de controle de normas – e, por isso, como um instituto de índole processual258 –, não expressa esse conceito outra idéia senão a de que não pode o Tribunal, num novo processo, proferir decisão discrepante da anteriormente proferida.259 Convém registrar, a propósito, o pensamento de Bryde: “Essa idéia (que reduz a força de lei, nos casos de declaração de constitucionalidade, ao simples dever de publicação) somente se afigura obrigatória se se considerar a força de lei nos termos do § 31, II, da Lei Orgânica da Corte constitucional como um instituto de caráter material. Efetivamente, uma decisão da Corte Constitucional não pode transformar uma lei inconstitucional em uma lei conforme à Constituição. Todavia, se se contempla a força de lei como instituto de coisa julgada específico para o controle de normas, então a vinculação erga omnes não significa uma convalidação de eventual inconstitucionalidade da lei confirmada, mas, tão-somente, que essa questão já não mais poderá ser suscitada no processo constitucional. Contra essa concepção não se levantam objeções de índole constitucional. A idéia de Estado de Direito (mais exatamente, a vinculação constitucional da atividade legislativa, art. 20) exige a possibilidade de controle de 255
Vogel, Klaus. “Rechtskraft und Gesetzeskraft”, in Christian Starck (org.), Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, v. I, Tübingen, 1976, p. 568 (613).
256
Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraf”, cit., p. 568 (613). Bryde, Brun-Otto. Verfassungsengsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Baden-Baden, 1982, p. 408. 258 Brox. Zur Zulässigkeit … cit., p. 809 (818); Maunz, Bundesverfassungsgerichtsgesetz, cit., n. 42; Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 409. 259 Lange, Rechtskraft, Bindungswirkung und Gesetzeskraft … cit., p. 1 (6 e ss.); Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 408. 257
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes normas, mas não impõe a abertura de incontáveis vias para esse fim”.260 Não se pode cogitar, portanto, de superação ou de convalidação de eventual inconstitucionalidade da lei que não teve a sua impugnação acolhida pelo Tribunal.261 A fórmula adotada pelo constituinte brasileiro, e agora pelo legislador ordinário, não deixa dúvida, também, de que a decisão de mérito proferida na ação declaratória de constitucionalidade tem eficácia contra todos (eficácia erga omnes) e efeito vinculante para os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário. Do prisma estritamente processual a eficácia geral ou a eficácia erga omnes obsta, em primeiro plano, a que a questão seja submetida uma vez mais ao STF. Portanto, não se tem uma mudança qualitativa da situação jurídica. Enquanto a declaração de nulidade importa a cassação da lei, não dispõe a declaração de constitucionalidade de efeito análogo. A validade da lei não depende da declaração judicial e a lei vige, após a decisão, tal como vigorava anteriormente.262 Não fica o legislador, igualmente, impedido de alterar ou, mesmo, de revogar a norma em apreço. É certo, pois, que, declarada a constitucionalidade uma norma pelo Supremo Tribunal, ficam os órgãos do Poder Judiciário obrigados a seguir essa orientação, uma vez que a questão estaria definitivamente decidida pelo STF. Limites objetivos da eficácia “erga omnes”: a declaração de constitucionalidade da norma e a reapreciação da questão pelo STF – Se o instituto da eficácia “erga omnes” entre nós, tal como a força de lei no Direito tedesco, constitui categoria de Direito Processual específica, afigura-se lícito indagar se seria admissível a submissão de lei que teve a sua constitucionalidade reconhecida a um novo juízo de constitucionalidade do STF. Analisando especificamente o problema da admissibilidade de uma nova aferição de constitucionalidade de norma declarada constitucional pelo Bundesverfassungsgericht, Hans Brox a considera possível desde que satisfeitos alguns pressupostos. É o que anota na seguinte passagem de seu ensaio sobre o tema: “Se se declarou, na parte dispositiva da decisão, a constitucionalidade da norma, então se admite a instauração de um novo processo para aferição de sua constitucionalidade se o requerente, o tribunal suscitante (controle concreto) ou o recorrente (recurso constitucional = Verfassungsbeschwerde) demonstrar que se cuida de uma nova questão. Tem-se tal situação se, após a publicação da decisão, se verificar uma mudança do conteúdo da Constituição ou da norma objeto do controle, de modo a permitir supor que outra poderá ser a conclusão do processo de subsunção. Uma mudança substancial das relações fáticas ou da concepção jurídica geral pode levar a essa alteração”.263 Na mesma linha de entendimento, fornece Bryde resposta afirmativa à indagação formulada: 260
Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., pp. 408-409.
261
Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 408; Maunz, Bundesverfassungsgerichtsgesetz,cit., n. 37. Maunz, Bundesverfassungsgerichtsgesetz, cit., n. 42; Gusy, Christoph. Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, Berlim, 1985, p. 223. 263 Brox, Zur Zulässigkeit …cit., p. 809 (826). 262
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes “Se se considera que o Direito e a própria Constituição estão sujeitos a mutação e, portanto, que uma lei declarada constitucional pode vir a tornar-se inconstitucional, temse de admitir a possibilidade da questão já decidida poder ser submetida novamente à Corte Constitucional. Se se pretendesse excluir tal possibilidade, ter-se-ia a exclusão dessas situações, sobretudo das leis que tiveram sua constitucionalidade reconhecida pela Corte Constitucional, do processo de desenvolvimento constitucional, ficando elas congeladas no estágio do parâmetro de controle à época da aferição. O objetivo deve ser uma ordem jurídica que corresponda ao respectivo estágio do Direito Constitucional, e não uma ordem formada por diferentes níveis de desenvolvimento, de acordo com o momento da eventual aferição de legitimidade da norma a parâmetros constitucionais diversos. Embora tais situações não possam ser eliminadas faticamente, é certo que a ordem processual-constitucional deve procurar evitar o surgimento dessas distorções. “A aferição da constitucionalidade de uma lei que teve a sua legitimidade reconhecida deve ser admitida com base no argumento de que a lei pode ter-se tornado inconstitucional após a decisão da Corte. (...). Embora não se compatibilize com a doutrina geral da coisa julgada, essa orientação sobre os limites da coisa julgada no âmbito das decisões da Corte Constitucional é amplamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Não se controverte, pois, sobre a necessidade de que se considere eventual mudança das ‘relações fáticas’. Nossos conhecimentos sobre o processo de mutação constitucional exigem, igualmente, que se admita nova aferição da constitucionalidade da lei no caso de mudança da concepção constitucional.”264 Em síntese, declarada a constitucionalidade de uma lei, ter-se-á de concluir pela inadmissibilidade de que o Tribunal se ocupe uma vez mais da aferição de sua legitimidade, salvo no caso de significativa mudança das circunstâncias fáticas265 ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes.266 Também entre nós se reconhece, tal como ensinado por Liebman com arrimo em Savigny,267 que as sentenças contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus,268 de modo que as alterações posteriores que alterem a realidade normativa bem como eventual modificação da orientação jurídica sobre a matéria podem tornar inconstitucional norma anteriormente considerada legítima (inconstitucionalidade superveniente).269
264
Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., pp. 412-413. BVerfGE 33/199 e 39/169. 266 Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 409; Brox, Zur Zulässigkeit … cit., p. 809 (818); Stern, Bonner Komentar, art. 100, n. 139; Gusy, Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, p. 228. 267 Cf. Liebman, Enrico Túlio. Eficácia e Autoridade da Coisa Julgada, Rio, 1984, pp. 25-26: “De certo modo, todas as sentenças contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus (Savigny, Sistema (trad. it.), VI, p. 378), enquanto a coisa julgada não impede absolutamente que se tenham em conta os fatos que intervierem sucessivamente à emanação da sentença (...). O que há de diverso nestes casos – refere-se às chamadas sentenças determinativas ou dispositivas – não é a rigidez menor da coisa julgada, mas a natureza da relação jurídica, que continua a viver no tempo com conteúdo ou medida determinados por elementos essencialmente variáveis, de maneira que os fatos que sobrevenham podem influir nela, não só no sentido de extingui-la, fazendo, por isso, extinguir o valor da sentença, mas também no sentido de exigir mudança na determinação dela, feita anteriormente”. 268 Cf., também, dentre outros, Schönke, Adolf. Derecho Procesal Civil, tradução da 5a ed. alemã, Barcelona, 1950, pp. 273 e ss. 269 Mendes. Controle de Constitucionalidade..., cit., p. 73. 265
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Daí parecer-nos plenamente legítimo que se suscite perante o STF270 a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional, em ação direta ou em ação declaratória de constitucionalidade. Eficácia “erga omnes” na declaração de inconstitucionalidade proferida em ação declaratória de constitucionalidade ou em ação direta de inconstitucionalidade – É possível que o STF venha a reconhecer a improcedência da ação declaratória de constitucionalidade ou a procedência da ação direta de inconstitucionalidade. Nesses casos haverá de declarar a inconstitucionalidade da lei questionada. Em face dos termos expressos do texto constitucional e da Lei n. 9.868 não subsiste dúvida de que a decisão de mérito sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade é dotada de eficácia contra todos. Significa dizer que, declarada a inconstitucionalidade de uma norma na ação declaratória de constitucionalidade, deve-se reconhecer, ipso jure, a sua imediata eliminação do ordenamento jurídico, salvo se, por algum fundamento específico, puder o Tribunal restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade (v.g., declaração de inconstitucionalidade com efeito a partir de um dado momento no futuro). Aceita a idéia de nulidade da lei inconstitucional, sua eventual aplicação após a declaração de inconstitucionalidade equivaleria à aplicação de cláusula juridicamente inexistente. Efeito necessário e imediato da declaração de nulidade há de ser, pois, a exclusão de toda ultra-atividade da lei inconstitucional. A eventual eliminação dos atos praticados com fundamento na lei inconstitucional há de ser considerada em face de todo o sistema jurídico, especialmente das chamadas “fórmulas de preclusão”. A eficácia “erga omnes” da declaração de nulidade e os atos singulares praticados com base no ato normativo declarado inconstitucional – A ordem jurídica brasileira não dispõe de preceitos semelhantes aos constantes do § 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht, que prescreve a intangibilidade dos atos não mais suscetíveis de impugnação.271 Não se deve supor, todavia, que a declaração de inconstitucionalidade afeta todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. Embora a ordem jurídica brasileira não contenha regra expressa sobre o assunto e se aceite, genericamente, a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, 270
O STF reconhece expressamente a possibilidade de alteração da coisa julgada provocada por mudança nas circunstâncias fáticas (cf., a propósitio, RE n. 105.012-8, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 01.07.88).
271
§ 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht: “(1) É legítimo o pedido de revisão criminal nos termos do Código de Processo Penal contra a sentença condenatória penal que se baseia em uma norma declarada inconstitucional (sem a pronúncia da nulidade) ou nula, ou que se assenta em uma interpretação que o Bundesverfassungsgericht considerou incompatível com a Lei Fundamental. “(2) No mais, ressalvado o disposto no § 92 (2) , da Lei do Bundesverfassungsgericht ou uma disciplina legal específica, subsistem íntegras as decisões proferidas com base em uma lei declarada nula, nos termos do § 78. É ilegítima a execução de semelhante decisão. Se a execução forçada tiver de ser realizada nos termos das disposições do Código de Processo Civil, aplica-se o disposto no § 767 do Código de Processo Civil. Excluem pretensões fundadas em enriquecimento sem causa.”
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes igualmente, de iliceidade,272 concede-se proteção ao ato singular, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo e no plano do ato singular mediante a utilização das fórmulas de preclusão.273 Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade.274 Em outros termos, somente serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade com eficácia geral os atos ainda suscetíveis de revisão ou impugnação. Importa, portanto, assinalar que a eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade não opera uma depuração total do ordenamento jurídico. Ela cria, porém, as condições para a eliminação dos atos singulares suscetíveis de revisão ou de impugnação. A eficácia “erga omnes” da declaração de inconstitucionalidade e a superveniência de lei de teor idêntico – Poder-se-ia indagar se e eficácia erga omnes teria o condão de vincular o legislador, de modo a impedi-lo de editar norma de teor idêntico àquela que foi objeto de declaração de inconstitucionalidade. A doutrina tedesca, firme na orientação segundo a qual a eficácia erga omnes – tal como a coisa julgada – abrange exclusivamente a parte dispositiva da decisão, responde negativamente à indagação.275 Uma nova lei, ainda que de teor idêntico ao do texto normativo declarado inconstitucional, não estaria abrangida pela força de lei. Também o STF tem entendido que a declaração de inconstitucionalidade não impede o legislador de promulgar lei de conteúdo idêntico ao do texto anteriormente censurado.276 Tanto é assim que, nessas hipóteses, tem o Tribunal processado e julgado nova ação direta, entendendo legítima a propositura de uma nova ação direta de inconstitucionalidade. Conceito de efeito vinculante – A expressão efeito vinculante não era de uso comum entre nós. O Regimento Interno do STF, ao disciplinar a chamada representação interpretativa, introduzida pela EC n. 7/77,277 estabeleceu que a decisão proferida na representação interpretativa seria dotada de efeito vinculante (art. 187 do Regimento Interno do STF278). Em 1992 o efeito vinculante das decisões proferidas em sede de 272
Cf., a propósito, RMS n. 17.976, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ 55/744. Ipsen, Jörn. Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Normen und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, pp. 174 e ss. 274 Cf. RE n. 86.056, Rel. Min. Rodrigues de Alckmin, DJ de 01.07.77. 275 Cf. Pestalozza, Christian. Verfassungsprozessrecht, 3a ed., Berlim, 1991, p. 333; Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 407. 276 ADIn n. 907, Rel. Min. Ilmar Galvão, RTJ 150/726; ADIn n. 864, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 151/416. 277 Cf. EC n. 7/77, art. 9o: “A partir da data da publicação da ementa do acórdão no Diário Oficial da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante, implicando sua não-observância negativa de vigência do texto interpretado”. 278 Eis o teor do art. 187 do Regimento Interno do STF: “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e ementa, no Diário da Justiça da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante para todos os efeitos”. 273
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes controle abstrato de normas foi referido em Projeto de Emenda Constitucional apresentado pelo deputado Roberto Campos (PEC n. 130/92). No aludido Projeto distinguia-se nitidamente a eficácia geral (erga omnes) do efeito vinculante.279 Tal como assente em estudo que produzimos sobre este assunto, que foi incorporado às justificações apresentadas no aludido Projeto, a eficácia “erga omnes” e o efeito vinculante deveriam ser tratados como institutos afins, mas distintos.280 A EC n. 3, promulgada em 16.3.93, que, no que diz respeito à ação declaratória de constitucionalidade, inspirou-se direta e imediatamente na Emenda Roberto Campos, consagra que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do
279
A Proposta de Emenda n. 130/92, apresentada pelo deputado Roberto Campos, tinha o seguinte teor: “Art. 1o. Suprima-se o inciso X do art. 52, renumerando-se os demais.
“Art. 2o. Os arts. 102 e 103 da Constituição passam a vigorar com a seguinte redação: “‘Art. 102. (...). “‘§ 1o. A argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma desta Lei. “‘§ 2o. As decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal, nos processos de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos e no controle de constitucionalidade da omissão, têm eficácia erga omnes e efeito vinculante para os órgãos e agentes públicos. “‘§ 3o. Lei complementar poderá outorgar a outras decisões do Supremo Tribunal Federal eficácia erga omnes, bem como dispor sobre o efeito vinculante dessas decisões para os órgãos e agentes públicos.’ “‘Art. 103. (...). “‘(...). “§ 4o. Os órgãos ou entes referidos nos incisos I a X deste artigos podem propor ação declaratória de constitucionalidade, que vinculará as instâncias inferiores, quando decidida no mérito.’” 280
Vale transcrever, a propósito, a seguinte passagem da justificação desenvolvida: “Além de conferir eficácia ‘erga omnes’ às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade, a presente Proposta de Emenda Constitucional introduz no Direito brasileiro o conceito de efeito vinculante em relação aos órgãos e agentes públicos. Trata-se de instituto jurídico desenvolvido no Direito Processual alemão, que tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas por aquela Corte Constitucional, assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Gründe). “A declaração de nulidade de uma lei não obsta à sua reedição, ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal. Tanto a coisa julgada quanto a força de lei (eficácia erga omnes) não lograriam evitar esse fato. Todavia, o efeito vinculante, que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) da decisão, obriga o legislador a observar estritamente a interpretação que o tribunal conferiu à Constituição. Conseqüência semelhante se tem quanto às chamadas normas paralelas. Se o tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma lei do Estado ‘A’, o efeito vinculante terá o condão de impedir a aplicação de norma de conteúdo semelhante do Estado ‘B’ ou ‘C’ (cf. Christian Pestalozza, “Comentário ao § 31, I, da Lei do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgerichtsgesetz)”, in Direito Processual Constitucional (Verfassungsprozessrecht), 2a ed., Munique, Verlag C.H. Beck, 1982, pp. 170-171, que explica o efeito vinculante, suas conseqüências e a diferença entre ele e a eficácia seja inter partes ou erga omnes)” (Proposta de Emenda Constitucional n. 130/92, DCN-1, 2.9.92, p. 19.956, col. 1).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Poder Judiciário e do Poder Executivo” (art. 102, § 2o). Embora o texto inicialmente aprovado revelasse algumas deficiências técnicas,281 não parecia subsistir dúvida de que também o legislador constituinte, tal como fizera a Emenda Roberto Campos, procurava distinguir a eficácia “erga omnes” (eficácia contra todos) do efeito vinculante, pelo menos no que concerne à ação declaratória de constitucionalidade. A Lei n. 9.868, por sua vez, em seu art. 28, parágrafo único, conferiu tratamento uniforme e coerente à matéria, prevendo que as declarações de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme à Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública federal, estadual e municipal.
Limites objetivos do efeito vinculante – A concepção de efeito vinculante consagrada pela EC n. 3/93 está estritamente vinculada ao modelo germânico disciplinado no § 31-2 da Lei Orgânica da Corte Constitucional. A própria justificativa da proposta apresentada pelo deputado Roberto Campos não deixa dúvida de que se pretendia outorgar não só eficácia erga omnes, mas também efeito vinculante à decisão, deixando claro que estes não estariam limitados apenas à parte dispositiva. Embora a EC n. 3/93 não tenha incorporado a proposta na sua inteireza, é certo que o efeito vinculante, na parte que foi positivada, deve ser estudado à luz dos elementos contidos na proposta original. Assim, parece legítimo que se recorra à literatura alemã para explicitar o significado efetivo do instituto. A primeira indagação, na espécie, refere-se às decisões que seriam aptas a produzir o efeito vinculante. Afirma-se que, fundamentalmente, são vinculantes as decisões capazes de transitar em julgado.282 Tal como a coisa julgada, o efeito vinculante refere-se ao momento da decisão. Alterações posteriores não são alcançadas.283 Problema de inegável relevo diz respeito aos limites objetivos do efeito vinculante, isto é, à parte da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas. Em suma, indaga-se, tal como em relação à coisa julgada e à força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão ou se ele se estende também aos chamados “fundamentos determinantes”, ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obiter dicta.284 281
O tratamento diferenciado conferido à ação declaratória suscita inúmeros problemas. Por que conferir legitimação específica a determinados órgãos? Qual a razão de se limitar o objeto da ação declaratória apenas ao Direito federal? Ademais, a atribuição expressa de efeito vinculante à decisão definitiva proferida em ação declaratória permite indagar, inevitavelmente, sobre a qualidade da decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade. 282
Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 324.
283
Cf. Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 325.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Enquanto em relação à coisa julgada e à força de lei domina a idéia de que elas hão de se limitar à parte dispositiva da decisão, sustenta o Tribunal Constitucional alemão que o efeito vinculante se estende, igualmente, aos fundamentos determinantes da decisão.285 Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros.286 Outras correntes doutrinárias sustentam que, tal como a coisa julgada, o efeito vinculante limita-se à parte dispositiva da decisão, de modo que, do prisma objetivo, não haveria distinção entre a coisa julgada e o efeito vinculante.287 A diferença entre as duas posições extremadas não é meramente semântica ou teórica,288 apresentando profundas conseqüências também no plano prático. Enquanto o entendimento esposado pelo Tribunal Constitucional alemão importa não só a proibição de que se contrarie a decisão proferida no caso concreto em toda a sua dimensão, mas também a obrigação de todos os órgãos constitucionais de adequar sua conduta, nas situações futuras, à orientação dimanada da decisão,289 considera a concepção que defende uma interpretação restritiva do § 31-I, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional que o efeito vinculante há de ficar limitado à parte dispositiva da decisão, realçando, assim, a qualidade judicial da decisão.290 A aproximação dessas duas posições extremadas é feita mediante o desenvolvimento de orientações mediadoras que acabam por fundir elementos das concepções principais. Assim, propõe Vogel que a coisa julgada ultrapasse os estritos limites da parte dispositiva, abrangendo também a norma decisória concreta.291 A norma decisória concreta seria aquela “idéia jurídica subjacente à formulação contida na parte dispositiva, que, concebida de forma geral, permite não só a decisão do caso concreto, mas também a decisão de casos semelhantes”.292 Por seu lado, sustenta Martin Kriele que a força dos 284
Cf. Maunz, cit., § 31, I, n. 16.
285
BVerfGE 1/14 (37), 4/31 (38), 5/34 (37), 19/377 (392), 20/56 (86), 24/289 (294), 33/199 (203) e 40/88 (93). Cf., também: Maunz, cit., § 31, I, n. 16; Wischermann Norbert. Rechtskraft und Bindungswirkung, Berlin, 1979, p. 42. 286
BVerfGE 19/377.
287
Cf., sobre o assunto, Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 42.
288
Subjacente à discussão sobre a amplitude do efeito vinculante reside uma questão mais profunda, relativa à própria idéia de jurisdição constitucional (Verfassungsgerichtsbarkeit) (Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 43). 289
Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 45.
290
Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 43.
291
Vogel. Rechtskraft und Gesetzeskraft , cit., , in BVerfG und GG I/568 (589).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes precedentes, que presumivelmente vincula os tribunais, é reforçada no Direito alemão pelo disposto no § 31-I da Lei do Tribunal Constitucional alemão.293 A semelhante resultado chegam as reflexões de Otto Bachof, segundo o qual o papel fundamental do Tribunal Constitucional alemão consiste na extensão de suas decisões aos casos ou situações paralelas.294 Tal como já anotado, parecia inequívoco o propósito do legislador alemão, ao formular o § 31 da Lei Orgânica do Tribunal, de dotar a decisão de uma eficácia transcendente.295 É certo, por outro lado, que a limitação do efeito vinculante à parte dispositiva da decisão tornaria de todo despiciendo esse instituto, uma vez que ele pouco acrescentaria aos institutos da coisa julgada e da força de lei. Ademais, tal redução diminuiria significativamente a contribuição do Tribunal para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional.296 Aceita a idéia de uma eficácia transcendente à própria coisa julgada, afigura-se legítimo indagar sobre o significado do efeito vinculante para os órgãos estatais que não são partes do processo. Segundo a doutrina dominante, são as seguintes as conseqüências do efeito vinculante para os não-partícipes do processo: “(1) ainda que não tenham integrado o processo os órgãos constitucionais estão obrigados, na medida de suas responsabilidades e atribuições, a tomar as necessárias providências para o desfazimento do estado de ilegitimidade; “(2) assim, declarada a inconstitucionalidade de uma lei estadual, ficam os órgãos constitucionais de outros Estados, nos quais vigem leis de teor idêntico, obrigados a revogar ou a modificar os referidos textos legislativos;297 “(3) também os órgãos não-partícipes do processo ficam obrigados a observar, nos limites de suas atribuições, a decisão proferida, sendo-lhes vedado adotar conduta ou praticar ato de teor semelhante àquele declarado inconstitucional pelo Bundesverfassungericht (proibição de reiteração em sentido lato: Wiederholungsverbot im weiteren Sinne oder Nachahmungsverbot).298 A Lei do Tribunal Constitucional alemão autoriza o Tribunal, no processo de recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde), a incorporar a proibição de reiteração da medida considerada 292
Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraft …cit., in BVerfG und GG I/568 (599).
293
Kriele, Martin. Theorie der Rechtsgewinnung, 2a ed., Berlim, 1976, pp. 291 e 312-313.
294
Bachof, Otto. Die Prüfungs und Verwerfungskompetenz der Verwaltung gegenüber dem verfassungswidrigen und bundesrechtswidrigen Gesetz, AöR 87/25, 1962. 295
296
Cf. Bryde. Verfassungsentwicklung, cit., p. 420. Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 420.
297
Cf. BVerfGE 40/88; v., também, Maunz, cit., § 31, I, n. 25.
298
Cf. Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 323.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes inconstitucional na parte dispositiva da decisão (§ 95, I, 2).”299 A posição do Tribunal sobre o tema está bem sintetizada na ementa da decisão na Reclamação n. 2.143 (Agravo Regimental), da relatoria de Celso de Mello, verbis: “Reclamação — alegação de desrespeito a acórdão do Supremo Tribunal Federal resultante de julgamento proferido em sede de controle normativo abstrato — inocorrência — seqüestro de rendas públicas legitimamente efetivado — medida constritiva extraordinária justificada, no caso, pela inversão da ordem de precedência de apresentação e de pagamento de determinado precatório — irrelevância de a preterição da ordem cronológica, que indevidamente beneficiou credor mais recente, decorrer da celebração, por este, de acordo mais favorável ao poder público — necessidade de a ordem de precedência ser rigidamente respeitada pelo poder público — seqüestrabilidade, na hipótese de inobservância dessa ordem cronológica, dos valores indevidamente pagos ou, até mesmo, das próprias rendas públicas — Recurso Improvido. EFICÁCIA VINCULANTE E FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE — LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO ART. 28 DA LEI N. 9.868/99. As decisões consubstanciadoras de declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive aquelas que importem em interpretação conforme à Constituição e em declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de fiscalização normativa abstrata, revestem-se de eficácia contra todos (‘erga omnes’) e possuem efeito vinculante em relação a todos os magistrados e Tribunais, bem assim em face da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal, impondo-se, em conseqüência, à necessária observância por tais órgãos estatais, que deverão adequarse, por isso mesmo, em seus pronunciamentos, ao que a Suprema Corte, em manifestação subordinante, houver decidido, seja no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade, seja no da ação declaratória de constitucionalidade, a propósito da validade ou da invalidade jurídico-constitucional de determinada lei ou ato normativo. Precedente. O DESRESPEITO À EFICÁCIA VINCULANTE, DERIVADA DE DECISÃO EMANADA DO PLENÁRIO DA SUPREMA CORTE, AUTORIZA O USO DA RECLAMAÇÃO. O descumprimento, por quaisquer juízes ou Tribunais, de decisões proferidas com efeito vinculante, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade, autoriza a utilização da via reclamatória, também vocacionada, em sua específica função processual, a resguardar e a fazer prevalecer, no que concerne à Suprema Corte, a integridade, a autoridade e a eficácia subordinante dos comandos que emergem de seus atos decisórios. Precedente: Rcl 1.722/RJ, Rel. Min. Celso de Mello (Pleno). LEGITIMIDADE ATIVA PARA A RECLAMAÇÃO NA HIPÓTESE DE INOBSERVÂNCIA DO EFEITO VINCULANTE. — Assiste plena legitimidade ativa, em sede de reclamação , àquele — particular ou não — que venha a ser afetado, em sua esfera jurídica, por decisões de outros magistrados ou Tribunais que se revelem
299
O Bundesverfassungsgericht pode estabelecer também que qualquer repetição da providência questionada configura lesão à Lei Fundamental (“... Das Bundesverfassungsgericht kann zugleich aussprechen, dass auch jede Wiederholung der beanstandeten Massnahme das Grundgesetz verletzt”).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes contrárias ao entendimento fixado, em caráter vinculante, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos processos objetivos de controle normativo abstrato instaurados mediante ajuizamento, quer de ação direta de inconstitucionalidade, quer de ação declaratória de constitucionalidade. Precedente. A SIGNIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL DA NECESSIDADE DE EXPEDIÇÃO DOS PRECATÓRIOS JUDICIÁRIOS. O regime constitucional de execução por quantia certa contra o Poder Público, qualquer que seja a natureza do crédito exeqüendo (RTJ 150/337) - ressalvadas as obrigações definidas em lei como de pequeno valor impõe a necessária extração de precatório, cujo pagamento deve observar, em obséquio aos princípios ético-jurídicos da moralidade, da impessoalidade e da igualdade, a regra fundamental que outorga preferência apenas a quem dispuser de precedência cronológica (prior in tempore, potior in jure). A exigência constitucional pertinente à expedição de precatório - com a conseqüente obrigação imposta ao Estado de estrita observância da ordem cronológica de apresentação desse instrumento de requisição judicial de pagamento - tem por finalidade (a) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever estatal de solver. os débitos judicialmente reconhecidos em decisão transitada em julgado. (RTJ 108/463), (b) impedir favorecimentos pessoais indevidos e (c) frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ou preterições motivadas por razões destituídas de legitimidade jurídica. PODER PÚBLICO - PRECATÓRIO INOBSERVÂNCIA DA ORDEM CRONOLÓGICA DE SUA APRESENTAÇÃO. A Constituição da República não quer apenas que a entidade estatal pague os seus débitos judiciais. Mais do que isso, a Lei Fundamental exige que o Poder Público, ao solver a sua obrigação, respeite a ordem de precedência cronológica em que se situam os credores do Estado. - A preterição da ordem de precedência cronológica - considerada a extrema gravidade desse gesto de insubmissão estatal às prescrições da Constituição configura comportamento institucional que produz, no que concerne aos Prefeitos Municipais, (a) conseqüências de caráter processual (seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito, ainda que esse ato extraordinário de constrição judicial incida sobre rendas públicas), (b) efeitos de natureza penal (crime de responsabilidade, punível com pena privativa de liberdade - DL 201/57, art. 1º, XII) e (c) reflexos de índole político-administrativa (possibilidade de intervenção do Estado-membro no Município, sempre que essa medida extraordinária revelar-se essencial à execução de ordem ou decisão emanada do Poder Judiciário - CF, art. 35, IV, in fine). PAGAMENTO ANTECIPADO DE CREDOR MAIS RECENTE - CELEBRAÇÃO, COM ELE, DE ACORDO FORMULADO EM BASES MAIS FAVORÁVEIS AO PODER PÚBLICO ALEGAÇÃO DE VANTAGEM PARA O ERÁRIO PÚBLICO - QUEBRA DA ORDEM CONSTITUCIONAL DE PRECEDÊNCIA CRONOLÓGICA INADMISSIBILIDADE. - O pagamento antecipado de credor mais recente, em detrimento daquele que dispõe de precedência cronológica, não se legitima em face da Constituição, pois representa comportamento estatal infringente da ordem de prioridade temporal, assegurada, de maneira objetiva e impessoal, pela carta Política, em favor de todos os credores do Estado. O legislador constituinte, ao editar a norma inscrita no art. 100 da Carta Federal, teve por objetivo evitar a escolha de credores pelo Poder Público. Eventual vantagem concedida ao erário público, por credor mais recente, não justifica, para efeito de pagamento antecipado de seu crédito, a quebra da ordem constitucional de precedência cronológica. O pagamento antecipado que dai resulte - exatamente por caracterizar escolha ilegítima de credor - transgride o postulado constitucional que
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes tutela a prioridade cronológica na satisfação dos débitos estatais, autorizando, em conseqüência - sem prejuízo de outros efeitos de natureza jurídica e de caráter políticoadministrativo -, a efetivação do ato de seqüestro (RTJ 159/943-945), não obstante o caráter excepcional de que se reveste essa medida de constrição patrimonial. Legitimidade do ato de que ora se reclama. Inocorrência de desrespeito à decisão plenária do Supremo Tribunal Federal proferida na ADI 1.662/SP.” Cabe ressaltar ainda a decisão na Reclamação nº 1880 (Agravo Regimental e Questão de Ordem), da relatoria de Maurício Corrêa, que decidiu que todos aqueles que fossem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido em ADIn seriam considerados parte legítima para a propositura de reclamação, e declarou a constitucionalidade do § único do art. 28 da Lei 9.868/99300. Nesses termos, resta evidente que o efeito vinculante da decisão não está restrito à parte dispositiva, mas abrange também os próprios fundamentos determinantes. É certo, por outro lado, que qualquer pessoa afetada ou atingida pelo ato contrário à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal disporá de legitimidade para promover a reclamação. Como se vê, com o efeito vinculante, pretendeu-se conferir eficácia adicional à decisão do Supremo Tribunal Federal, outorgando-lhe amplitude transcendente ao caso concreto. Os órgãos estatais abrangidos pelo efeito vinculante devem observar, pois, não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão, mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, que determinado tipo de situação, conduta ou regulação — e não apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional — é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado. Com a positivação dos institutos da eficácia erga omnes e do efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na ação declaratória de constitucionalidade e na ação direta de inconstitucionalidade, deu-se um passo significativo no rumo da modernização e racionalização da atividade da jurisdição constitucional entre nós.
Limites subjetivos – A primeira questão relevante no que concerne à dimensão subjetiva do efeito vinculante refere-se à possibilidade de a decisão proferida vincular ou não o próprio STF. Embora a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional alemão não seja explícita a propósito, entende a Corte Constitucional ser inadmissível construir-se, aqui, uma autovinculação. Essa orientação conta com o aplauso de parcela significativa da doutrina, pois, além de contribuir para o congelamento do Direito Constitucional, tal solução obrigaria o Tribunal a sustentar teses que considerasse errôneas ou já superadas.301 A fórmula adotada pela EC n. 3/93, e repetida pela Lei n. 9.868, parece excluir 300
Rcl 1880 AgR-QO Rel. Min. Maurício Corrêa DJ de 19.03.2004. No mesmo sentido, cf. ainda decisão na Rcl 1987, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 21.05.2004. 301 Cf., a propósito: Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 426; Maunz, cit., § 31, I, n. 20.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes também o STF do âmbito de aplicação do efeito vinculante. A expressa referência ao efeito vinculante em relação “aos demais órgãos do Poder Judiciário” legitima esse entendimento. De um ponto vista estritamente material também é de se excluir uma autovinculação do STF aos fundamentos determinantes de uma decisão anterior, pois isto poderia significar uma renúncia ao próprio desenvolvimento da Constituição, afazer imanente dos órgãos de jurisdição constitucional. Todavia, parece importante, tal como assinalado por Bryde, que o Tribunal não se limite a mudar uma orientação eventualmente fixada, mas que o faça com base em uma crítica fundada do entendimento anterior que explicite e justifique a mudança.302 Ao contrário do estabelecido na proposta original, que se referia à vinculação dos órgãos e agentes públicos, o efeito vinculante consagrado na EC n. 3/93 ficou reduzido, no plano subjetivo, aos órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo. Proferida a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei objeto da ação declaratória, ficam os tribunais e órgãos do Poder Executivo obrigados a guardarlhe plena obediência. Tal como acentuado, o caráter transcendente do efeito vinculante impõe que sejam considerados não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, a proposição de que determinado tipo de situação, conduta ou regulação – e não apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional – é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado.303 É certo, pois, que a não-observância da decisão caracteriza grave violação de dever funcional, seja por parte das autoridades administrativas, seja por parte do magistrado (cf., também, CPC, art. 133, I). Em relação aos órgãos do Poder Judiciário convém observar que eventual desrespeito a decisão do STF legitima a propositura de reclamação, pois estará caracterizada, nesse caso, inequívoca lesão à autoridade de seu julgado (CF, art. 102, I, “l”).
Efeito vinculante da cautelar em ação declaratória de constitucionalidade – O silêncio do texto constitucional quanto à possibilidade de concessão cautelar em sede de ação declaratória deu ensejo a significativa polêmica quando o Presidente da República e as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal intentaram ação declaratória com objetivo de ver confirmada a constitucionalidade da Lei n. 9.494/97, que proibia a concessão de tutela antecipada para assegurar o pagamento de vantagens ou vencimentos a servidores públicos.304
302
Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 426.
303
Cf., a propósito, Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 428.
304
Cf. ADC n. 4, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 16.02.98.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Na Ação Declaratória nº 4, da relatoria do Ministro Sydney Sanches, o Supremo Tribunal considerou cabível a medida cautelar em sede de ação declaratória. Entendeu-se admissível que o Supremo Tribunal Federal exerça, em sede de ação declaratória de constitucionalidade, o poder cautelar que lhe é inerente, “enfatizando, então, no contexto daquele julgamento, que a prática da jurisdição cautelar acha-se essencialmente vocacionada a conferir tutela efetiva e garantia plena ao resultado que deverá emanar da decisão final a ser proferida naquele processo objetivo de controle abstrato”. É que, como bem observado pelo Ministro Celso de Mello, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao deferir o pedido de medida cautelar na ADC nº 4, expressamente atribuiu, à sua decisão, eficácia vinculante e subordinante, com todas as conseqüências jurídicas daí decorrentes. O Supremo Tribunal Federal, ao conceder o provimento cautelar requerido na ADC nº 4, proferiu, por maioria de nove votos a dois, a seguinte decisão: “O Tribunal, por votação majoritária, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar, para suspender, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494, de 10/9/97, sustando, ainda, com a mesma eficácia, os efeitos futuros dessas decisões antecipatórias de tutela já proferidas contra a Fazenda Pública, vencidos, em parte, o Ministro Néri da Silveira, que deferia a medida cautelar em menor extensão, e, integralmente, os Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio, que a indeferiam.”305 O conteúdo dessa decisão foi explicitado pelo Ministro Celso de Mello em despacho proferido em pedido de suspensão de tutela antecipada, esclarecendo que a decisão cautelar: "(a) incide, unicamente, sobre pedidos de tutela antecipada, formulados contra a Fazenda Pública, que tenham por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494/97; (b) inibe a prolação, por qualquer juiz ou Tribunal, de ato decisório sobre o pedido de antecipação de tutela, que, deduzido contra a Fazenda Pública, tenha por pressuposto a questão específica da constitucionalidade, ou não, da norma inscrita no art. 1º da Lei nº 9.494/97; 305
Cf. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4, decisão liminar publicada no DJ de 16.02.98.
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(c) não se aplica retroativamente aos efeitos já consumados (como os pagamentos já efetuados) decorrentes de decisões antecipatórias de tutela anteriormente proferidas; (d) estende-se às antecipações de tutela, ainda não executadas, qualquer que tenha sido o momento da prolação do respectivo ato decisório; (e) suspende a execução dos efeitos futuros, relativos a prestações pecuniárias de trato sucessivo, emergentes de decisões antecipatórias que precederam ao julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do pedido de medida cautelar formulado na ADC nº 4-DF".306 Portanto, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a decisão concessiva da cautelar afetava não apenas os pedidos de tutela antecipada ainda não decididos, mas todo e qualquer efeito futuro da decisão proferida nesse tipo de procedimento. Segundo essa orientação, o efeito vinculante da decisão concessiva da medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade não apenas suspende o julgamento de qualquer processo que envolva a aplicação da lei questionada (suspensão dos processos), mas também retira toda ultra-atividade (suspensão de execução dos efeitos futuros) das decisões judiciais proferidas em desacordo com o entendimento preliminar esposado pelo Supremo Tribunal.
Efeito vinculante da decisão concessiva de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade - No quadro de evolução da nossa jurisdição constitucional, parece difícil aceitar o efeito vinculante em relação à cautelar na ação declaratória de constitucionalidade e deixar de admiti-lo em relação à liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Na primeira hipótese, tal como resulta do art. 21 da Lei nº 9.868, de 1999, tem-se a suspensão do julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou ato normativo objeto da ação declaratória até seu término; na segunda, tem-se a suspensão de vigência da lei questionada na ação direta e, por isso, do julgamento de todos os processos que envolvam a aplicação da lei discutida. Assim, o sobrestamento dos processos, ou pelo menos das decisões ou julgamentos que envolvam a aplicação da lei que teve a sua vigência suspensa em sede de ação direta de inconstitucionalidade, haverá de ser uma das conseqüências inevitáveis da liminar em ação direta. Em outras palavras, a suspensão cautelar da norma afeta sua vigência provisória, o que impede que os tribunais, a administração e outros órgãos estatais apliquem a disposição que restou suspensa. 306
Cf. Petição em medida cautelar nº 1416/SP, Relator Ministro Celso de Mello, publicada no DJ de 01.04.98, p. 11.
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Esse foi o entendimento firmado pelo STF no julgamento do RE nº 168.277: “EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO FUNDADO NO ART. 4º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI GAÚCHA Nº 9.117/90, CUJA EFICÁCIA FOI SUSPENSA PELO STF NA ADI Nº 656. Configuração de hipótese em que se impõe a suspensão do julgamento do recurso. Diretriz fixada na oportunidade, pelo Tribunal, no sentido de que deve ser suspenso o julgamento de qualquer processo que tenha por fundamento lei ou ato estadual cuja eficácia tenha sido suspensa, por deliberação da Corte, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, até final julgamento desta. Questão de ordem acolhida.”307 Estando assente que a liminar deferida opera no plano da vigência da lei, podendo ter o condão até mesmo de restaurar provisoriamente a vigência de norma eventualmente revogada, não há como deixar de reconhecer que a aplicação da norma suspensa pelos órgãos ordinários da jurisdição implica afronta à decisão do STF. Em absoluta coerência com essa orientação mostra-se a decisão tomada também em Questão de Ordem, na qual se determinou a suspensão de todos os processos que envolvessem a aplicação de determinada vantagem a servidores do TRT da 15ª Região, tendo em vista a liminar concedida na ADI nº 1.244/SP, contra resolução daquela Corte que havia autorizado o pagamento do benefício. É o que foi afirmado pela Corte na ADI nº 1.244/SP (Questão de Ordem), rel. Néri da Silveira, D.J. de 28.5.99, de cujo voto se extrai: “Se é certo que, em princípio, não cabe reclamação por descumprimento de decisão do STF em ação direta de inconstitucionalidade, se o ato contrário ao julgado não provém de requerido na demanda de inconstitucionalidade, eis que a previsão judicial desta Corte concerne, tão-só, à validade, em abstrato, da lei ou ato normativo impugnado, compreendo, entretanto, que, no plano dos efeitos do decisum do STF, em medida judicial dessa natureza, quanto à regra em tese, cumpre conferir-lhe um mínimo de eficácia erga omnes, de referência a fatos jurídicos eventualmente nascidos por virtude de invocação da lei ou ato normativo, posteriormente à decisão desta Corte, suspendendo-lhe, erga omnes, a vigência, até o julgamento final da ação. Refiro-me, em especial, a decisões judiciais prolatadas ostensivamente em conflito com o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, por provocação dos próprios destinatários da lei ou ato normativo com 307
RE nº 168.277/RS (Questão de Ordem), Plenário, rel. Min. Ilmar Galvão, D.J. de 29.05.1998.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes eficácia suspensa, erga omnes. Se o STF determina que fique suspensa certa norma e, por conseqüência imediata, o pagamento de vantagem nela prevista, por natural efeito de suspender a norma que o autorizaria, não é possível admitir que os destinatários da mesma norma suspensa, contornando a proibição deste Tribunal, por via oblíqua, em decisão cautelar ou em antecipação de tutela, possam usufruir, imediatamente, daquilo que o STF ordenou não lhes fosse entregue até o julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade, por virtude, direta e imediata, da suspensão de vigência da norma que ampararia a outorga.” Nesse mesmo julgamento, consignou Sepúlveda Pertence: “Tenho sustentado que, necessariamente, o mesmo efeito vinculante há de ser dado à decisão tomada em ação direta de inconstitucionalidade, que é também uma ação dúplice, da qual, segundo a nossa doutrina, explicitada no artigo 173 do Regimento, tanto pode resultar a declaração de inconstitucionalidade quanto a declaração de constitucionalidade da lei. Disso continuo convencido, ao menos nos limites da ação declaratória de constitucionalidade, vale dizer, quando o objeto da argüição for lei ou ato normativo federal. Claro, tudo isso se diz das decisões definitivas, a meu ver, nas duas ações de controle abstrato da constitucionalidade de normas. Quid juris com relação à decisão cautelar? A decisão cautelar, lemos nos compêndios, destina-se a resguardar, a salvaguardar o efeito útil do processo contra o risco de sua própria demora. Não vejo outra solução, Sr. Presidente, admitido o efeito vinculante que terá a decisão de mérito, a não ser atribuir à decisão cautelar efeito suspensivo dos processos cuja decisão pende da aplicação, inaplicação ou declaração de inconstitucionalidade em concreto da lei que teve a sua eficácia suspensa por força de decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal. Do contrário, a convivência, já difícil, dos dois sistemas de controle de constitucionalidade que praticamos conduzirá ao caos. Note-se: sequer para adotar decisão no sentido da decisão cautelar do Supremo, poderá ser julgada a ação proposta perante o juízo ordinário, porque da nossa decisão de mérito poderá resultar, afinal, em sentido contrário, a declaração de constitucionalidade da lei. Desse modo, a cautelar não compele o juiz a que julgue a causa como se a lei fosse inconstitucional, porque a lei ainda não está declarada inconstitucional. A única solução, assim, é a suspensão do andamento do feito ou, pelos menos, a suspensão da decisão que nele se tenha que tomar, num ou noutro sentido, até a decisão de mérito da ação direta no Supremo Tribunal Federal.”
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Na Rcl 1507, desenvolveu Sepúlveda Pertence a seguinte consideração: “[...] Creio que é a primeira vez em que o Tribunal está a aplicar o efeito vinculante da decisão anterior, em ação direta de inconstitucionalidade, de modo a cassar decisão administrativa de um Governador de Estado. Assinalo-o apenas para marcar o evento. No mérito, não tenho dúvida. Trata-se de impugnação a uma lei que revogou as leis anteriores do sistema previdenciário do Estado do Rio de Janeiro por completo. Revogação de um sistema por outro. É manifesto que, em tal hipótese, não há cogitar-se, se se declaram inconstitucionais tópicos da lei nova, da repristinação de tópicos da lei antiga. A irmos assim nessa toada descoberta pelo Governo fluminense chegaríamos muito em breve à repristinação de textos das Ordenações Filipinas - quiçá, do seu Livro V - o dia em que se pretender ‘descriminalizar’ ou descriminar alguma conduta tipificada na lei penal de hoje, como nelas, igualmente, mais severamente incriminadas.” (Questão de Ordem na Rcl nº 1.507/RJ, DJ. de 1º.3.2002, rel. Min. Néri da Silveira). Vê-se, pois, que a decisão concessiva de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade é também dotada de efeito vinculante. A concessão da liminar acarreta a necessidade de suspensão dos julgamentos que envolvam a aplicação ou a desaplicação da lei cuja vigência restou suspensa. Esse entendimento foi sufragado no julgamento da Rcl nº 2.256, do Rio Grande do Norte, de minha relatoria308 Efeito vinculante de decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade – Questão interessante diz respeito à possível extensão do efeito vinculante à decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade. Aceita a idéia de que a ação declaratória configura uma ação direta de inconstitucionalidade com sinal trocado, tendo ambas caráter dúplice ou ambivalente, afigura-se difícil não admitir que a decisão proferida em sede de ação direta de inconstitucionalidade tenha efeitos ou conseqüências diversos daqueles reconhecidos para a ação declaratória de constitucionalidade. Argumenta-se que ao criar a ação declaratória de constitucionalidade de lei federal estabeleceu o constituinte que a decisão definitiva de mérito nela proferida – incluída aqui, pois, aquela que, julgando improcedente a ação, proclamar a inconstitucionalidade da norma questionada – “produzirá eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo”.309 308
309
Cf Rcl nº 2256, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 30.04.2004. Art. 102, § 2o, da CF de 1988.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Portanto, afigurava-se correta a posição de vozes autorizadas do STF, como a do Min. Sepúlveda Pertence, segundo o qual, “quando cabível em tese a ação declaratória de constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá de ser atribuída à decisão definitiva da ação direta de inconstitucionalidade”.310 De certa forma, esse foi o entendimento adotado pelo STF na ADC n. 4, ao reconhecer efeito vinculante à decisão proferida em sede de cautelar, a despeito do silêncio do texto constitucional. Nos termos dessa orientação, a decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo federal haveria de ser dotada de efeito vinculante, tal como ocorre com aquela proferida na ação declaratória de constitucionalidade. Observe-se, ademais, que, se entendermos que o efeito vinculante da decisão está intimamente vinculado à própria natureza da jurisdição constitucional em um dado Estado Democrático e à função de guardião da Constituição desempenhada pelo tribunal, temos de admitir, igualmente, que o legislador ordinário não está impedido de atribuir, como, aliás, o fez por meio do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868, essa proteção processual especial a outras decisões de controvérsias constitucionais proferidas pela Corte. Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais. Na sessão de 07.11.2002, o STF pacificou a discussão sobre a legitimidade da norma contida no parágrafo único do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9868/99, que reconhecia efeito vinculante às decisões de mérito proferidas em sede de ADIn. O Tribunal entendeu que "todos aqueles que forem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF, no julgamento do mérito proferido em ação direta de inconstitucionalidade, sejam considerados como parte legítima para a propositura de reclamação"311.
310
Despacho na Recl. n. 167, RDA 206/246 (247).
311
"Informativo/STF" n. 289/2002, 4 a 8/11/2002. (AgRCL n.1880/SP(QO), Rel. Maurício Corrêa).
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NONA PARTE
A REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVAx 1. Introdução 2. Pressupostos de Admissibilidade da Representação Interventiva 2.1. Considerações Preliminares 2.2. Legitimação ativa ad causam 2.3. Objeto da controvérsia 2.3.1. Considerações preliminares 2.3.2. Representação interventiva e atos concretos 2.3.3. Representação interventiva e recusa à execução de lei federal 2.4. Parâmetro de Controle 3. Procedimento 3.1. Considerações gerais 3.2. Procedimento da representação interventiva segundo a Lei nº 4337/64 e o Regimento Interno do STF 3.2.1. Cautelar na Representação interventiva 3.2.2. Procedimento da representação interventiva: necessidade de nova lei 4. Decisão 5. À guisa de Conclusão
1. Introdução A ação direta de inconstitucionalidade foi introduzida, entre nós, como elemento do processo interventivo, nos casos de ofensa aos chamados princípios constitucionais sensíveis (CF de 1934, art. 12, § 2º; CF de 1946, art. 8º, parágrafo único; CF de 1967/1969, art. 11, § 1º, c; CF de 1988, art. 34, VII c/ c art. 36. III). Inicialmente, provocava-se o Supremo Tribunal Federal com o objetivo de obter a declaração de constitucionalidade da lei interventiva (CF de 1934, art. 12, § 2º)1. A Constituição de 1946 consagrou, porém, a ação direta de inconstitucionalidade, nos casos de lesão aos princípios estabelecidos no art. 7º, VII. Imprimiuse, assim, traço próprio ao nosso modelo de controle de constitucionalidade, afastando-o do sistema norte-americano2. Não se cuidava de fórmula consultiva, mas de um litígio constitucional, que poderia dar ensejo à intervenção federal3. Outorgou-se a titularidade da ação ao ProcuradorGeral da República, a quem, como chefe do Ministério Público Federal, competia defender os interesses da União (art. 126). Esse mecanismo não descaracteriza a representação interventiva como peculiar modalidade de composição de conflitos entre a União e os Estados-Membros. A x
Publicado em: Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança. 28a. edição em 2005. Nona Parte, p. 603637. 1 A Constituição de 1934 previa, no § 1º do art. 12 que "na hipótese do nº VI (reorganização das finanças dos Estados que, sem motivo de força maior, suspender, por mais de dois anos consecutivos, o serviço de sua dívida fundada), assim como para assegurar a observância dos princípios constitucionais (art. 7º, I) a intervenção será decretada por lei federal, que lhe fixará a amplitude e a duração, prorrogável por nova lei". O § 2º do art. 12 estabelecia também que, "ocorrendo o primeiro caso do nº V (assegurar a observância dos princípios constitucionais especificados nas letras aa a h do art. 7º, I"), a intervenção só se efetuará depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República tomar conhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade." 2 Buzaid, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 100. 3 Buzaid, Da ação direta, cit., p. 100-7.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes fórmula adotada parece revelar que, na ação direta interventiva, menos que um substituto processual4, ou parte5, o Procurador-Geral exerce o mister de representante judicial da União6. No Estado federal, a Constituição impõe deveres aos Estados-Membros, cuja inobservância pode acarretar providências de índole interventiva, visando a assegurar a integridade do ordenamento constitucional ou, como pretende Kelsen, da constituição total (Gesamtverfassung). Assim, a violação de um dever pelo Estado-Membro é condição da intervenção federal7. "O fato ilícito é imputado ao estado enquanto tal, assim como a intervenção federal se dirige contra o estado enquanto tal, e não contra o indivíduo"8. Na Constituinte de 1891 já se esboçara tendência no sentido de judicializar os conflitos federativos, para fins de intervenção, tal como ficou assente nas propostas formuladas por João Pinheiro e Júlio de Castilhos9. A reforma constitucional de 1926 consagrou, expressamente, os princípios constitucionais da União (art. 6º, II), outorgando ao Congresso Nacional a competência privativa para decretar a intervenção (art. 6º, § 1º). Reconheceu-se, assim, ao Parlamento, a faculdade de caracterizar, preliminarmente, a ofensa aos princípios constitucionais sensíveis, atribuindo-se-lhe, ainda que de forma limitada e ad hoc, uma função de controle de constitucionalidade10. A Constituição de 193411 e, posteriormente, as Constituições de 1946 e de 1967/1969 consolidaram a forma judicial como modalidade de verificação prévia de ofensa constitucional, no caso de controvérsia sobre a observância dos princípios constitucionais da União, ou para prover à execução de lei federal (CF 1967/1969, art. 10, VI). Em verdade, o Procurador-Geral da República representava, sob a Constituição de 1946, e essa orientação subsistiu sob os textos posteriores, os interesses da União nessa relação processual, atinente à observância de determinados deveres federativos. E esta orientação afigura-se tanto mais plausível, se se considerar que, nas Constituições, desde 1891, cumpria ao Procurador-Geral da República desempenhar, a um tempo, as funções de chefe do Ministério Público Federal e de representante judicial da União12. 4
Buzaid, Da ação direta, cit., p. 107. Barbosa Moreira, José Carlos. As partes na ação declaratória de inconstitucionalidade, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado da Guanabara, 13:75-6. 6 Bandeira de Mello, Oswaldo Aranha. Teoria das constituições rígidas, 2. ed., São Paulo: Bushatsky, 1980, p. 192. 7 Kelsen, Hans. L'esecuzione federale, in La giustizia costituzionale, Milano, Giuffrè, 1981, p. 87. 8 Kelsen, L'esecuzione federale, in: La giustizia costituzionale, cit., p. 87. La fattispecie illectita -- afirma Kelsen -- viene imputata allo stato in quanto tale e cosi pure l'esecuzione federale si dirige contro lo stato in quanto tale e non già contro il singolo individuo “O fato ilícito é imputado ao estado enquanto tal, assim como a intervenção federal se dirige contra o estado enquanto tal, e não contra o indivíduo” 9 Brasil. Assembléia Constituinte (1891), Annaes, cit., p. 432; cf., também, Leme, Ernesto. A intervenção federal nos Estados, cit., p. 90-1. 10 "O desrespeito aos princípios constitucionaes da União pode ser de fato e de direito. De facto, "se o Estado embaraça, por atos materiaes, o exercicio desses direitos". De direito, "se o Estado elabora leis contrarias a essas disposições, negando em leis locaes esses direitos affirmados pela Constituição Federal" (Herculano Freitas, Intervenção federal nos Estados, RT, 47:73). 11 A Constituição de 1934 estabeleceu, no § 1º do art. 12 que "na hipótese do nº VI (reorganização das finanças dos Estados que, sem motivo de força maior , suspender, por mais de dois anos consecutivos, o serviço de sua dívida fundada) , assim como para assegurar a observância dos princípios constitucionais (art. 7º, I) a intervenção será decretada por lei federal, que lhe fixará a amplitude e a duração, prorrogável por nova lei". Acrescentava-se, ainda, que a Câmara dos Deputados poderia eleger o Interventor ou autorizar o Presidente a nomeá-lo. O § 2º do referido art. 12 estabelecia também que, "ocorrendo o primeiro caso do nº V (assegurar a observância dos princípios constitucionais especificados nas letras aa a h do art. 7º, I"), a intervenção só se efetuará depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República tomar conhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade." 12 Bandeira de Mello, Teoria das constituições rígidas, cit., p. 192. 5
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Tem-se, pois, uma relação conflitiva, decorrente de eventual violação de deveres constitucionais, competindo ao órgão especial, ou ao próprio órgão encarregado de intervenção, verificar a configuração do ilícito13. Tal colocação demonstra, inequivocamente, a existência de uma relação contenciosa, consistente na eventual inobservância de deveres constitucionais, que há de ser aferida como antecedente necessário de qualquer providência interventiva. “Ainda quando não se estabeleça para tal investigação um procedimento particular – ensina Kelsen –está prevista a intervenção federal para o caso de ilícito – ela não pode ser entendida coerentemente de outra forma, se aceitamos que, ao menos, quando se confia a decisão sobre a intervenção a um determinado órgão, há de se autorizá-lo a apurar, de modo autêntico, a ocorrência do ilícito” 14. A Constituição de 1988 manteve o sistema anterior de controle de legitimidade dos atos estaduais em face dos princípios sensíveis perante o Supremo Tribunal Federal (art. 34, VII c/c 36, III). Outorgou-se, porém, ao Superior Tribunal de Justiça a competência para julgar a representação do Procurador-Geral da República no caso de recusa à execução da lei federal (CF, art. 34, VI, primeira parte, c/c art. 36, IV). Essa fórmula sofreu alteração com o advento da Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional nº 45/ 2004), que devolveu ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar a representação nos casos de recusa à execução de lei federal (CF, art. 36, III). A fórmula adotada parece traduzir aquilo que Kelsen houve por bem denominar "accertamento giudiziale dell'illecito [...] che condiziona l'esecuzione federale"15. Evidentemente, esse accertamento giudiziale, ou o contencioso da inconstitucionalidade, como referido por Castro Nunes16, diz respeito ao próprio conflito de interesses potencial ou efetivo, entre União e Estado, no tocante à observância de determinados princípios federativos. Portanto, o Procurador-Geral da República instaura o contencioso de inconstitucionalidade não como parte autônoma, mas como representante judicial da União Federal, que "tem interesse na integridade da ordem jurídica, por parte dos Estados-membros"17. Esta colocação empresta adequado enquadramento dogmático à chamada representação interventiva, diferenciando-a do controle abstrato de normas, propriamente dito, no qual se manifesta o interesse público genérico na preservação da ordem jurídica.
2. Pressupostos de Admissibilidade da Representação Interventiva 2.1 Considerações Preliminares
13 Kelsen, L'esecuzione federale, in La giustizia costituzionale, cit., p. 113. "La differenza decisiva tra guerra nel senso del diritto internazionale ed esecuzione federale non consiste tanto nella loro fattispecie esterna, rispetto alla quale sono uguali, ma -- com'è statto già accennato -- nel fatto che, prevedendo la costituzione, in caso d'illeciti compiuti da uno stato-membro, l'esecuzione federale, essa deve prevedere l'accertamento della fattispecie illecita o da parte di un organo specifico o da parte dell'organo incaricato di tale esecuzione". 14 Kelsen, L'esecuzione federale, in La giustizia costituzionale, cit., p. 113. "Anche quando non stabilisce per tale accertamento una particolare procedura -- ensina Kelsen – essa se prevede l'esecuzione per il caso d'illecito -- non può evidentemente essere intesa se non nel senso, quanto meno, che quando affida la decisione sull'esecuzione federale ad un determinato organo, lo autorizza, con ciò stesso, ad accertare in modo autentico che è stato compiuto un illecito". 15 Kelsen, L'esecuzione federale, in La giustizia costituzionale, cit., p. 114 e s. 16 Rp. 94-DF, AJ, 85:33. 17 Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967; com a Emenda nº 1, de 1969, 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, Tomo II (arts.8º-31), 1970, p. 253; cf., também, Bandeira de Mello, Teoria das constituições rígidas, cit., p. 186 e s.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Caracterizada a questão constitucional sobre a observância dos princípios sensíveis ou a execução de lei federal pelo Estado-Membro como uma controvérsia entre a União e Estado, não se vislumbram maiores dificuldades em se afirmar a existência, na representação interventiva, de uma relação processual contraditória, instaurada pelo poder central com o escopo de assegurar a observância de princípios fundamentais do sistema federativo (CF 1967/1969, art. 10, VII e VI, 1ª parte, c/c o art. 11, § 1º, c). Embora tenha preservado a sistemática consagrada pela Constituição de 1967/1969 (representação do Procurador-Geral da República agora dirigida ao Supremo Tribunal Federal, se se tratar de ofensa aos princípios constantes do art. 34, VII, ou ao Superior Tribunal de Justiça, no caso de recusa à execução de lei federal -- art. 34, VI), o constituinte de 1988 fixou como princípios básicos, cuja lesão pelo Estado-Membro poderá dar ensejo à intervenção federal: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; e d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta (art. 34, VII). A alteração adotada pela versão primeira da Constituição de 1988 parece resultar de um equívoco produzido pelo literalismo, que levou o constituinte a atribuir ao Superior Tribunal de Justiça matéria que envolvesse a aplicação de lei federal. De qualquer sorte, cumpre ressaltar que o Supremo Tribunal entendeu, em alguns julgados, que se cuidava de um conflito federativo, tendo assentado na Rp. 94 (Rel. Min. Castro Nunes) que a decisão proferida punha fim ao contencioso de inconstitucionalidade18. Na Rp. 95 (rel. Min. Orozimbo Nonato), esse entendimento foi reafirmado de forma ainda mais inequívoca. Embora o Procurador-Geral da República tivesse proposto a representação em forma de consulta, antecipando a sua opinião quanto à constitucionalidade do art. 2º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de Pernambuco, o Supremo Tribunal houve por bem conhecer do pedido, admitindo a caracterização da controvérsia constitucional, na medida em que o interventor federal se recusava a transferir a chefia do Executivo ao Presidente da Assembléia Legislativa, tal como previsto na Carta estadual. Nesse sentido, parecem elucidativas as considerações constantes do voto do eminente Ministro Orozimbo Nonato: "Não há, insistimos, no caso dos autos, simples consulta ao Supremo Tribunal Federal, que não é órgão consultivo, senão judicante, mas a exposição de um conflito de natureza constitucional, elementarmente constitucional, não ocultando a forma, algo dubitativa, das comunicações a ocorrência do tumulto, uma vez que, apesar de promulgada a Constituição, que defere a Chefia do Executivo, no caso, e episodicamente, ao Presidente da Assembléia, o Interventor persiste em continuar a ocupar aquela Chefia e o Governo Federal declara abster-se de qualquer providência, antes da deliberação do Judiciário. Tais atitudes apenas encontram explicação em se haver por inconstitucional o texto aludido, embora essa convicção se desvele na forma discreta de hesitação e de dúvida. Por outro lado, a opinião do eminente Sr. Procurador-Geral da República constitui, sem dúvida, dado precioso à solução da controvérsia, por seu prestígio pessoal de publicista, por sua autoridade de doutrinador. Mas não exclui a postulação da controvérsia, uma vez que ele tomou, formalmente, a iniciativa a que alude o § único do art. 8º da Constituição Federal, isto é, submeteu
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AJ, 85:33.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ao Supremo Tribunal Federal o exame do ato argüido de inconstitucionalidade"19. Como se vê, assumia relevância não a manifestação do Procurador-Geral da República, por si só, mas a caracterização da controvérsia constitucional, consistente no juízo dos agentes federais -- no caso, representados pelo Interventor e pelo Ministro da Justiça -quanto à inconstitucionalidade do preceito em discussão. 2.2. Legitimação ativa ad causam Embora a doutrina não o tenha afirmado expressamente20, é certo que, se o titular da ação encaminhava ao Supremo Tribunal Federal um pedido de argüição de inconstitucionalidade com manifestação em sentido contrário, era porque estava postulando não a declaração de inconstitucionalidade, mas sim a declaração de constitucionalidade da norma questionada. A representação interventiva não se confundia com um processo de controle abstrato de normas. Ao contrário, cuidava-se propriamente da judicialização de um conflito entre União e Estado, no tocante à observância dos princípios sensíveis. O Procurador-Geral da República, nesse processo, não era o substituto processual da sociedade, como pretendeu Buzaid21, nem atuava nesse processo como custos legis22, mas sim como representante judicial de União. A atuação do Procurador-Geral da República não dependia de provocação de terceiros, como imaginado inicialmente, porquanto a matéria relativa à observância dos princípios sensíveis dizia respeito exclusivamente ao interesse da União na observância destes. Toda essa confusão conceitual, se não teve outra virtude, serviu, pelo menos, para aplainar o caminho que haveria de levar à instituição do controle abstrato de normas no direito constitucional brasileiro. Deve-se ressaltar, pois, que na prática distorcida do instituto da representação interventiva está o embrião da representação de inconstitucionalidade em tese, da ação direta de inconstitucionalidade, e, naturalmente, da ação declaratória de constitucionalidade23, positivada agora no art. 102, I, "a", da Constituição Federal. A instauração do processo de controle de constitucionalidade, para fins de intervenção, é privativa do Procurador-Geral da República, como representante judicial da União. Têm legitimidade passiva os órgãos estaduais que editaram o ato questionado. Como assentado, diversamente do que ocorre no processo de controle abstrato de normas, que é um processo objetivo (objektives Verfahren), tem-se na representação interventiva, uma relação processual contraditória entre União e Estado-Membro, atinente à observância de deveres constitucionalmente impostos ao ente federado (Lei nº 4.337/64, arts. 1º, 2º e 3º; RISTF, arts. 169 e 170).
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Rp. 95-DF, AJ, 85:58-9. Única exceção parece ser Victor Nunes Leal, que em palestra proferida na VII Conferência Nacional da OAB - Curitiba, 1978, reconheceu expressamente que "em caso de representação com parecer contrário, o que se tem, na realidade, [...] é uma representação de constitucionalidade" (Cf. Representação de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal: um aspecto inexplorado, RDP 53-54, p. 25 (33). 21 Buzaid. Da ação direta, cit., p. 107. 22 Cavalcanti, Themístocles Brandão. Do Controle da Constitucionalidade, Rio de Janeiro: Forense, 1966, p.115-118. 23 No art. 12, § 2º. da Constituição de 1934 formulava-se pretensão de mera declaração de constitucionalidade da lei federal que decretava a intervenção. 20
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Como enfaticamente acentuado, a representação interventiva pressupõe a configuração de controvérsia constitucional entre a União, que "tem interesse na integridade da ordem jurídica, por parte dos Estados-Membros", e o Estado-Membro. Identifica-se aqui, pois, nitidamente, o interesse jurídico (Rechtsschutzbedürfnis) da União, como guardiã dos postulados federativos, na observância dos princípios constitucionais sensíveis. E mesmo a outorga da representação processual ao Procurador-Geral da República (CF 1988, art. 36, III) -- acentue-se que, tal como nos modelos constitucionais de 1946 e de 1967/1969, o Procurador-Geral da República atua nesse processo, hoje em caráter excepcionalíssimo, como representante judicial da União -- não se mostra hábil a descaracterizar a representação interventiva como peculiar modalidade de composição judicial de conflitos entre a União e a unidade federada. A propósito, relembre-se que Pontes de Miranda chegou a sustentar que “se foi o Presidente da República que remeteu a espécie ao Procurador-Geral da República, para exame pelo Supremo Tribunal Federal, o Supremo Tribunal Federal declara, não desconstitui, e o Procurador-Geral da República não tem arbítrio para representar ou não.”24
2.3. Objeto da controvérsia 2.3.1. Considerações preliminares A controvérsia envolve os deveres do Estado-Membro quanto à observância dos princípios constitucionais sensíveis (CF 1988, art. 34, VII; CF de 1969, arts. 13, I, e 10, VII) e à aplicação da lei federal (CF 1988, art. 34, VI; CF 1967/1969, art. 10, VI, 1ª parte). Essa violação de deveres consiste, fundamentalmente, na edição de atos normativos infringentes dos princípios federativos previstos no art. 34, VII, da Constituição de 198825. "O legislador constituinte usou da palavra ato -- lecionava Castro Nunes -- na sua acepção mais ampla e compreensiva, para abranger no plano legislativo as normas de qualquer hierarquia que comprometam algum dos princípios enumerados"26. Na mesma linha de entendimento, ressalta Pontes de Miranda: " [...] a regra jurídica referente à intervenção por infração de princípios sensíveis (art. 10, VII) assegura o respeito do direito escrito, ou não-escrito, da Constituição estadual e das leis estaduais ou municipais àqueles princípios; o inciso IV diz que se atenda ao reclamo dos Estados-membros, ainda quando, existindo Constituição ou lei perfeitamente acorde com os princípios enumerados como sensíveis, se não esteja a realizar, como fora de mister, a vida das instituições estaduais"27. Vê-se, pois, que a afronta aos princípios contidos no art. 10, VII, da Constituição Federal de 1967/1969, haveria de provir, basicamente, de atos normativos dos poderes estaduais, não se afigurando suficiente, em princípio, a alegação da ofensa, em concreto. "A violação, em concreto, por parte do Estado federado, -- ensinava Bandeira de
24
Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1967, Tomo II, cit., p. 257. Bandeira de Mello, Teoria das constituições rígidas, cit., p. 189. 26 Rp. 94-DF, AJ, 85:32. 27 Pontes de Miranda. Comentários à Constituição de 1967, Tomo II, cit., p. 219 e 223. 25
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Mello, -- não diz respeito aos princípios constitucionais propriamente ditos, a que devia observar, mas ao exercício da ação dos poderes federais, de execução das leis federais [...]"28. A Constituição de 1967/1969 manteve essa orientação, ao condicionar a intervenção, no caso de execução de lei federal, ao provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República (art. 10, VI, 1ª parte, c/c o art. 11, § 1º, c). Daí assentar Pontes de Miranda que "enquanto a intervenção federal para assegurar a observância dos princípios constitucionais inerentes à forma republicana, à independência dos poderes e outros cânons, consignados na Constituição de 1967, concerne, no despeito, ainda em geral, e in abstracto, das regras jurídicas principais, a do art. 10, VI, é tipicamente referente a casos concretos [...]"29. Sem dúvida, a execução de lei federal pode ser obstada pela promulgação de ato normativo estadual, em desrespeito à competência legislativa da União. Nesse caso, afirmada, preliminarmente, a validade da lei federal, há de se proferir a declaração de inconstitucionalidade do diploma estadual. Todavia, a execução da lei federal envolve, igualmente, a edição de atos administrativos e a criação de pressupostos e condições necessários à realização da vontade do legislador federal. Assim, tanto a ação quanto a omissão do Poder Público estadual podem exigir que se proveja à execução da lei federal, submetendo-se a questão, previamente, à Excelsa Corte (CF 1967/1969, art. 10, VI)30. A Constituição de 1988 preservou a representação interventiva, de iniciativa do Procurador-Geral da República, para os casos de eventual afronta aos chamados princípios sensíveis (Cf, art. 34, VII c/c art. 36, III).
2.3.2. Representação interventiva e atos concretos A indagação que se colocou, já sob a vigência da Constituição de 1988, diz respeito à utilização da representação interventiva não apenas para atos normativos que se revelassem afrontosos aos princípios, mas também aos atos concretos ou às omissões atribuíveis a autoridades do Estado-membro que se mostrassem incompatíveis com aludidos postulados. Discutia-se, na espécie, representação interventiva proposta pelo Procurador-Geral da República, sob o fundamento de lesão aos direitos da pessoa humana, que teria sido perpetrada pelo Estado de Mato Grosso. Alegava-se que, ao não oferecer proteção adequada a presos, que foram arrancados por populares exaltados das mãos de policiais e assassinados em praça pública (linchamento), o Estado teria lesado os direitos da pessoa humana inscritos no art. 34, VII, “b”, da Constituição31. O Ministro Celso de Mello manifestou-se pelo não conhecimento da representação interventiva, por entender que o desrespeito a concreto aos direitos da pessoa humana, mesmo que lamentavelmente traduzidos em atos tão desprezíveis quão inaceitáveis, como estes, decorrentes do tríplice linchamento ocorrido em Matupá-MT, não tem o condão de 28
Sobre a Constituição de 1967/69, veja Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Teoria das constituições rígidas, cit., p. 189. Em verdade, temos de reconhecer que não se mostra imune à crítica a afirmação segundo a qual a lesão aos princípios sensíveis há de provir, exclusivamente, de atos normativos. Evidentemente, a Constituição do Estado-Membro pode não incorporar princípios basilares estabelecidos na Constituição Federal. Nesse caso, a lesão decorrerá não do ato normativo propriamente dito, mas da omissão do constituinte estadual, que deixou de atender às exigências expressas da Constituição Federal. 29 Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967, Tomo II, cit., p. 223. 30 A Constituição de 1988 outorgou ao Superior Tribunal de Justiça a competência para julgar a representação do Procurador-Geral da República, no caso de recusa à execução de lei federal (art. 36, IV). 31 IF 114, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ 27.09 96, RTJ 160/1. p.3.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes justificar a cognoscibilidade desta representação interventiva, cujo objeto -- reitero — só pode ser ato estatal, de caráter normativo, apto a ofender, de modo efetivo ou potencial, qualquer dos princípios sensíveis elencados no inciso VII do art. 34 da Constituição Federal"32. Posição idêntica foi sustentada pelo Ministro Moreira Alves33. Por maioria de votos, o Tribunal entendeu de conhecer da ação. Os argumentos em favor da cognoscibilidade ação foram expendidos no voto do Ministro Pertence, ao observar que, a despeito de não ignorar a própria disposição do texto constitucional, que cogita de suspensão do ato impugnado por decreto do Poder Executivo (CF, art. 36, § 3º), não poderia ignorar a parte final do dispositivo, concebida forma condicional (...o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade). Acrescentou, ainda, Pertence que, ao contrário dos textos de 1934 — "A intervenção só se efetivará depois de o Supremo Tribunal Federal declarar a constitucionalidade da lei que a decretar" -- e de 1946 — [...] depois que o Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República, julgar inconstitucional o ato impugnado" --, nos textos constitucionais seguintes afirma-se, tão-somente que, em tais hipóteses, a intervenção dependerá de provimento pelo Supremo Tribunal Federal de representação do Procurador-Geral da República, “se for o caso, representação fundada na violação dos princípios constitucionais sensíveis, violação que [...] tanto pode dar-se por atos formais, normativos ou não, quanto por ação material , ou omissão de autoridade estadual"34. Daí ter concluído Pertence: [...] já não há agora o obstáculo que a literalidade das Constituições de 1934 e de 1946 representavam, para a representação interventiva, que, no passado, era exclusivamente uma representação por inconstitucionalidade de atos sirva, hoje, à verificação de situações de fato. É claro que isso imporá adequações, se for o caso, do procedimento desta representação à necessidade da verificação, não da constitucionalidade de um ato formal, mas da existência de uma grave situações de fato atentatórias à efetividade dos princípios constitucionais, particularmente, aos direitos humanos fundamentais"35. Dessarte, restou assentado, com boas razões, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que não só os atos normativos estaduais, mas também atos administrativos, atos concretos ou até omissões poderiam dar ensejo à representação interventiva no contexto da Constituição de 198836.
2.3.3.
Representação interventiva e recusa à execução de lei federal
No caso de recusa à execução de lei federal — talvez seja mais indicado falarse em recusa à execução do direito federal -- atribuiu-se, inicialmente, ao Superior Tribunal de Justiça a competência para julgar a representação (CF. art. 34, VI, primeira parte c/c art. 37, VI).
32
IF 114, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ 27.09 96, RTJ 160/1. p.3. IF 114, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ 27.09 96, RTJ 160/1. p.3. 34 IF 114, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ 27.09 96, RTJ 160/1. p.3. 35 IF 114, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ 27.09 96, RTJ 160/1. p.3. 36 Em trabalho desenvolvido em 1987, para o mestrado em Direito da Universidade de Brasília, posteriormente publicado sob o título Controle de Constitucionalidade — Aspectos Jurídicos e Políticos, Saraiva, 1990, sustentei que a representação interventiva seria voltada, fundamentalmente, para o ato normativo estadual. Parece-me, porém, que essa orientação, fortemente calcada na jurisprudência do STF, desenvolvida sob a Constituição de 1946, já não mais se sustenta. 33
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Cuida-se de equívoco cometido a partir da análise errônea de que a aplicação da lei federal envolveria, naturalmente, a competência do STJ. Na Reforma do Judiciário aprovada em dezembro de 2004 (EC 45/2004), essa confusão foi superada, passando-se ao Supremo Tribunal Federal também a competência para processar e julgar a representação no caso de recusa à execução da lei federal por parte do Estado-membro (Constituição Federal, com a redação da EC 45/2004, art. 36, III). Portanto, o Supremo assume, de direito, a competência para processar e julgar a representação interventiva, não apenas nos casos de violação dos princípios sensíveis, mas também naqueles vinculados à recusa de aplicação da lei federal. Em geral, identifica-se, nesses casos, negativa de vigência do direito federal por parte da autoridade local, com base na afirmação de que há conflito entre o direito federal e o direito estadual, devendo se reconhecer a legitimidade deste. Pode ocorrer, igualmente, que recuse ao cumprimento de lei federal independentemente da invocação de legitimidade do direito local. Em todas essas hipóteses, caberá a representação interventiva perante o Supremo Tribunal Federal.
2.4. Parâmetro de Controle Nos termos da Constituição de 1988, são os seguintes princípios sensíveis, cuja violação pode dar ensejo à propositura da representação interventiva: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta; e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (34, VII). Tem-se, como se pode constatar, uma alteração substancial, pelo menos quanto ao aspecto nominal, em relação ao elenco de princípios constante da Constituição Federal de 1967/69 (.CF, art. 10, VII, a) forma republicana representativa; temporariedade dos mandatos eletivos, cuja duração não excederá a dos mandatos federais correspondentes; c) independência e harmonia entre os poderes; d) garantias do Poder judiciário; e) autonomia municipal; f) prestação de contas da administração e, g) proibição do Deputado estadual de prática de ato ou do exercício de cargo, função ou emprego mencionados nos itens I e II do art. 34, salvo o de Secretário de Estado ). O caráter aberto dos chamados "princípios sensíveis" exige um significativo esforço hermenêutico. Quando se terá como caracterizada uma lesão ao princípio da forma republicana? Em que caso se pode afirmar que a unidade federada feriu o princípio representativo ou o regime democrático? Essas indagações somente podem ser respondidas, adequadamente, no contexto de determinado sistema constitucional. É o exame sistemático das disposições constitucionais integrantes do modelo constitucional que permitirá explicitar o conteúdo de determinado princípio.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Ao se deparar com alegação de afronta ao princípio da divisão de Poderes de Constituição estadual em face dos chamados “princípios sensíveis” (representação interventiva), assentou o notável Castro Nunes lição que continua prenhe de atualidade: “[...] Os casos de intervenção prefigurados nessa enumeração se enunciam por declarações de princípios, comportando o que possa comportar cada um desses princípios como dados doutrinários, que são conhecidos na exposição do direito público. E por isso mesmo ficou reservado o seu exame, do ponto de vista do conteúdo e da extensão e da sua correlação com outras disposições constitucionais, ao controle judicial a cargo do Supremo Tribunal Federal. Quero dizer com estas palavras que a enumeração é limitativa como enumeração. [...]. A enumeração é taxativa, é limitativa, é restritiva, e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um desses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo e delimitado na sua extensão. Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas no sentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderá estar limitado, comportando necessariamente a exploração do conteúdo e fixação das características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo a delimitação do que possa ser consentido ou proibido aos Estados".37 Assim, o elenco do art. 34, VII, da Constituição, é fixado de forma taxativa ou em numerus clausus. Na Rp. 95, o tema voltou a ser apreciado. Registre-se, uma vez mais, o magistério de Castro Nunes: "Devo dizer ao Tribunal que considero a atribuição hoje conferida ao Supremo Tribunal excepcionalíssima, só quando for possível entroncar o caso trazido ao nosso conhecimento a algum dos princípios enumerados no art. 7º nº 7, será possível conhecer da argüição. Não basta ser levantada uma dúvida constitucional, não basta que exista uma controvérsia constitucional. Se não for possível entroncá-la com um dos princípios enumerados, penso que o Tribunal deverá abster-se de qualquer deliberação. Nesse sentido, aliás, foi o voto do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que salientou também esse aspecto, igualmente ressaltado pelo eminente Sr. Ministro Relator, em seu voto. No caso de dúvida, ou quando duvidosa ou remota aquela articulação, o Tribunal não deverá conhecer da representação que poderia transformar em expediente de rotina ou meio de consulta do Governo em todos os casos em que lhe conviesse provocar uma manifestação do Supremo Tribunal. Aliás o caráter excepcional da atribuição decorre da sanção mesma, que é a intervenção"38. Sobre o significado da forma republicana, anota Magnus Cavalcante de Albuquerque, em dissertação de mestrado apresentada à UnB sobre o tema:
37 38
Rp. nº 94, Rel. Min. Castro Nunes, Archivo Judiciario 85/31 (34-35), 1947. Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:70.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes “Da idéia de república, pela quase unanimidade doutrinal, infere-se a noção de temporariedade e eletividade da Chefia de Estado, o que a singulariza em relação a outras espécies de organização governamental. Sampaio Dória , porém, acena com mais seis outros princípios por ele considerados corolários do regime republicano: a inelegibilidade continuada do Chefe do Executivo, o alheamento do presidente na escolha do seu sucessor , a responsabilidade dos funcionários, a representação das minorias, a seleção do eleitorado e a liberdade política"39 É ainda Magnus Albuquerque que recorda ter o Supremo Tribunal Federal afirmado que a dualidade de governos em uma unidade federada configura grave perturbação da ordem republicana40. Convém registrar a seguinte passagem do acórdão proferido no HC 6.008, de 1920: “A dualidade de governos em um Estado da Federação importa em grave perturbação da forma republicana federativa, o que autoriza a intervenção do Governo Federal para assegurá-la. O preceito constitucional que rege a intervenção federal quando se referiu à ´forma republicana federativa´ não pôs a vista exclusivamente no Governo Nacional; preocupou-se, ao contrário, e, principalmente, com a organização governamental dos Estados"41. No Mandado de Segurança MS 20.25742, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a prorrogação de mandato de prefeitos, para fazê-los coincidir com os mandatos estaduais e federais, não configurava afronta ao princípio republicano, uma vez que não se cuidava de um projeto de que traduzisse continuidade ou permanência dos mandatos, mas simples prorrogação por razões técnico-políticas (coincidência das eleições nos planos federal, estaduais e municipais). A propósito da Emenda Constitucional que prorrogava o mandato de prefeitos e vereadores pelo prazo de dois anos, ressaltou o eminente Ministro Moreira Alves: "A emenda constitucional, em causa, não viola, evidentemente, a República, que pressupõe a temporariedade dos mandatos eletivos. De feito, prorrogar mandato de dois para quatro anos, tendo em vista a conveniência da coincidência de mandatos nos vários níveis da Federação, não implica introdução do princípio de que os mandatos não mais são temporários, nem envolve, indiretamente, sua adoção de fato, como sustentam os impetrantes, sob a alegação de que, a admitir-se qualquer prorrogação, ínfima que fosse, estar-se-ia a admitir prorrogação por vinte, trinta ou mais anos. Julga-se à vista do fato concreto, e não de suposição, que, se vier a concretizar-se, merecerá, então, julgamento para aferir-se da existência, ou não, de fraude à proibição constitucional"43.
39 Albuquerque, Magnus, Aspectos do Instituto da Intervenção Federal no Brasil, (dissertação/mestrado), UnB, Brasília, 1985, p. 135. 40 Albuquerque, Magnus. Aspectos do Instituto da Intervenção Federal, cit., p.135. 41 Cf. transcrição in Albuquerque, Magnus. Aspectos do Instituto da Intervenção Federal , cit., p.135. 42 MS 20.257, Relator: Ministro Moreira Alves, DJ de 27.02.1981, RTJ, 99(3):1040. 43 MS 20.257, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ 99/1031.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Alerte-se que o conceito de República envolve também a não-patrimonialização do poder e sua não colocação a serviço de grupos ou pessoas.44 Quanto ao sistema representativo e democrático, o texto constitucional prevê que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, como valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular (CF, art. 14). As normas sobre elegibilidade e inelegibilidade estão fixadas na Constituição, podendo Lei Complementar federal estabelecer outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação (CF, art. 14, § 9º). Convém observar que, tendo em vista as claras prescrições constitucionais federais sobre os direitos políticos (art. 14), o número de deputados, o sistema eleitoral, eleição de Governador e de Vice-Governador, inviolabilidade e imunidade, remuneração, perda de mandato, licenças e impedimentos (arts. 27 e 28), dificilmente o Estado-membro terá condições de atentar contra o regime democrático representativo formal mediante ato normativo sem que incorra em flagrante inconstitucionalidade. De mais a mais, a própria legislação eleitoral é de competência privativa da União (art. 22, I). Assim, é possível que eventual lesão ao regime representativo e democrático, se vier a se verificar, derivará de atos concretos. Questão interessante envolve saber se no conceito de “regime democrático” (CF, art. 34, VII, “a”) estariam presentes os princípios relativos à independência e harmonia entre os Poderes e às garantias do Poder Judiciário, constantes dos textos constitucionais anteriores. Desde logo pode-se afirmar que o regime democrático de cuida o art. 34, VII, in fine, somente poderá ser o regime do Estado Democrático de Direito, tal como enunciado no art. 1º, da Constituição. Nesse contexto, afigura-se igualmente inequívoco que a independência e harmonia entre os Poderes é inseparável da própria idéia de estado de direito democrático. Nesse sentido, anota Canotilho que o princípio do Estado de Direito é informado por duas idéias ordenadoras: “ (1) idéia de ordenação subjectiva, garantindo um status jurídico aos indivíduos essencialmente ancorado nos direitos fundamentais; (2) idéia de ordenação objectiva, assente no princípio estruturante da divisão de poderes”. Da mesma forma, o próprio conceito de Estado de Direito democrático pressupõe, como demonstrado, o respeito aos direitos fundamentais e à independência dos poderes, assumindo a independência do Poder Judiciário papel central no funcionamento desse sistema. Em verdade, como anota Martin Kriele, um catálogo de direitos fundamentais é perfeitamente compatível o absolutismo, com a ditadura e com o totalitarismo. A Inglaterra garantiu, porém, os direitos humanos sem necessidade de uma Constituição escrita45. É que a independência judicial, conclui ele, é mais importante que o catálogo de direitos fundamentais contidos na Constituição46. Parece inquestionável que, também entre nós, as garantias do Poder Judiciário integram o próprio conceito de Estado de Direito democrático e, para os fins de intervenção, o conceito de “regime democrático”.
44
Cf. Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23a. ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p.103-104. 45 Cf. Kriele, Martin. Introducción a la Teoría del Estado, Buenos Aires, 1980, p. 160. 46 Kriele. Introducción a la Teoría del Estado, cit., p. 159-160.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes No texto de 1988, a inclusão dos "direitos da pessoa humana" no elenco dos princípios sensíveis amplia a perplexidade ou a insegurança, na medida em que se exige do Tribunal a identificação não do conteúdo de um dado princípio, mas de todos os possíveis conteúdos dos princípios relacionados com os direitos da pessoa humana. Ainda que se busque fundamento na própria ordem constitucional para explicitar o conteúdo desse “princípio sensível”, é certo que se não poderá fazer abstração do princípio da dignidade humana, previsto no art. 1º, III, e dos postulados constantes do catálogo de direitos e garantias individuais (CF, art. 5º e §§ 1º e 2º). Evidentemente, o Tribunal terá de desenvolver critério relativo ao significado amplo e a intensidade da lesão, tendo em vista a necessária compatibilização do processo interventivo - marcadamente excepcional - com a autonomia do entende federado47. Daí por que o Tribunal, na IF 114-MT, embora tenha considerado deploráveis os fatos (linchamento de presos arrancados das mãos da polícia)48, houve por bem julgar improcedente a representação interventiva formulada pelo Procurador-Geral da República. Embora o Supremo Tribunal tenha considerado admissível a representação interventiva contra ato concreto ou omissão administrativa do Estado-membro, cuidou de estabelecer que tal ação judicial não há de ser aceita para questionar fatos isolados, episódicos, que não sejam aptos a indicar uma sistemática violação dos direitos da pessoa humana. Enfatizou-se que orientação contrária poderia afetar, gravemente, o próprio princípio federativo, Nesse sentido, observou Sepúlveda Pertence ser necessário que “haja uma situação de fato de insegurança global de direitos humanos, desde que imputável não apenas a atos jurídicos estatais, mas à ação material ou à omissão por conivência, por negligência ou por impotência, dos poderes estaduais responsáveis”49. Na oportunidade, anotou Pertence que, se se cuidasse de fato isolado, apto a comprometer gravemente a ordem pública no Estado, estar-se-ia face a outra hipótese de intervenção federal, não dependente da representação do Procurador-Geral, mas da iniciativa privativa do Presidente da República50 (CF, art. 34, III). Na linha da tradição brasileira (CF 1946, art. 7º, VII , "e"; CF 1967/69, art. 10, VII, “e”), manteve-se a autonomia municipal como princípio sensível (CF, art. 34, VII, “c”). Observe-se que o texto constitucional de 1988 conferiu ênfase ao município no sistema constitucional federativo, referindo-se a ele até mesmo como integrante do sistema federativo (art. 1º). Reconheceu-se ao município competência para legislar sobre assuntos de interesse local, suplementar a legislação federal e estadual no que couber, instituir e arrecadar os tributos de sua competência (taxas, imposto predial e territorial urbano, transmissão inter vivos, por ato oneroso de bens imóveis, serviços de qualquer natureza) (art. 30 e 156) e previu-se a aprovação de uma lei orgânica municipal, com a observância dos princípios estabelecidos na Constituição (eleição de prefeito, vice-prefeito e vereadores, número de vereadores, sistema remuneratório dos agentes políticos, iniciativa popular, inviolabilidade dos vereadores por suas opiniões palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do município, limites de gastos do Poder Legislativo municipal, sistema de prestação de contas e de controle externo (art.s 28 e 29). Em reforço à autonomia municipal, estabelece a Constituição um sistema de
47
Cf. sobre o tema, decisão proferida na IF 114- MT, Relator: Ministro Néri da Silveira, DJ 27.09.96. Cf. considerações acima desenvolvidas sobre o objeto da representação interventiva. 49 IF 114, Relator: Néri da Silveira, DJ 27.09.96; Cf. voto de Sepúlveda Pertence, RTJ 160/1, p.3. 50 IF 114, Relator: Néri da Silveira, DJ 27.09.96, Cf. voto de Sepúlveda Pertence, RTJ 160/1, p.3. 48
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes transferência de recursos do Estado-membro e da União para os Municípios(art. 158, IV; 159, I, "a"). Esses contornos institucionais permitem fornecer alguma densidade para o parâmetro de controle da autonomia municipal. Atos normativos ou administrativos, ou até mesmo atos concretos que violem essa garantia poderão ser atacados em sede de representação interventiva. A Constituição de 1988 consagra, ainda, como “princípio sensível” a prestação de contas da administração pública, direta e indireta (CF, art. 34, VI "d"). Trata-se da especificação do princípio republicano, que impõe ao administrador o dever de prestar contas relativas à res publica. Finalmente, o texto constitucional prevê, enquanto princípio de observância obrigatória por parte do Estado-membro, sob pena de intervenção, a aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (Cf, art. 34, VII, “e”). O art. 212 da Constituição estabelece que a União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito por cento, e os Estados. O Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. No caso das ações e serviços de saúde, prevê a Constituição que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão anualmente, recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre o produto de arrecadação de impostos e outros recursos, na forma prevista em lei complementar (CF, art.198,§ §2º e 3º). Enquanto não for editada a Lei complementar de que trata o art. 198, § 2º da Constituição aplicam-se as regras constantes do art. 77 do ADCT.
3. Procedimento 3.1 Considerações gerais
Os limites constitucionais da representação interventiva mereceram a precisa reflexão de Castro Nunes. Na Rp. 94, enfatizou-se o caráter excepcional desse instrumento: “Outro aspecto, e condizente com a atitude mental do intérprete, em se tratando de intervenção — ensinava — é o relativo ao caráter excepcional dessa medida, pressuposta neste regímen a autonomia constituinte, legislativa e administrativa dos Estadosmembros, e, portanto, a preservação dessa autonomia ante o risco de ser elidida pelos Poderes da União".41 Castro Nunes aduzia que a enumeração contida no art. 7.º, VII, da Constituição de 1946, ´é taxativa, é limitativa, é restritiva e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal Federal´".51 A Lei nº 2.271, de 22.07.1954, determinou que se aplicasse à argüição de inconstitucionalidade o processo do mandado de segurança (art. 4.º). A primeira fase continuou a ser processada, porém, na Procuradoria-Geral da República, tal como no período anterior ao 51
Rp. 94, de 17.7.1947, Rel. Min. Castro Nunes, AJ, 85:31.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes advento da disciplina legal (art. 2.º). "Era o Procurador-Geral — diz Themístocles Cavalcanti — quem recebia a representação da parte e, no prazo de 45 dias improrrogáveis, contados da comunicação da respectiva assinatura, ouvia, sobre as razões da impugnação do ato, os órgãos que o tivessem elaborado ou praticado".52 A Lei nº 4.337, de 1964, modificou o procedimento então adotado, determinando que, após a argüição, o relator ouvisse sobre as razões de impugnação do ato, no prazo de trinta dias, os órgãos que o tivessem elaborado ou expedido. Admitia-se, contudo, o julgamento imediato do feito, em caso de urgência e relevância do interesse de ordem pública, dando-se ciência da supressão do prazo às partes. Cuidava-se, na Lei n. 2.271/1954, de rito processual curioso: o ProcuradorGeral da República poderia submeter a representação ao exame do Supremo Tribunal toda vez que tivesse conhecimento de infração ao art. 7º, inciso VII, da Constituição. Se se cuidasse, porém, de representação de “parte interessada”, deveria o Procurador-Geral submeter ao conhecimento do Supremo Tribunal no prazo de noventa (art. 1º, parágrafo único). Nesse caso, competia ao Procurador-Geral pedir informações aos órgãos responsáveis pela sua elaboração ou expedição, no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias. Submetido o processo à apreciação do Supremo Tribunal Federal, aplicava-se o rito procedimental do mandado de segurança, sendo admissíveis embargos (infringentes) de decisão não-unânime.
3.2 Procedimento da representação interventiva segundo a Lei nº 4337/ 64 e o Regimento Interno do STF A Lei nº 4337, de 1964, alterou substancialmente o procedimento da representação interventiva, que pode sem assim resumido: a) no caso de representação por parte de interessado, disporia o ProcuradorGeral da República do prazo de 30 dias para apresentar o pedido ao Supremo Tribunal Federal (art. 2º); b) o relator designado deveria ouvir os órgãos responsáveis pela elaboração ou expedição do ato no prazo de trinta dias. A fase das informações passava-se a realiza no âmbito do próprio Tribunal. Findo o prazo para informações, disporia de prazo idêntico para apresentar o relatório (art. 3º); c) apresentado o relatório, cujas cópias seriam remetidas a todos os ministros, competia ao Presidente designar o dia do julgamento pelo Tribunal Pleno, dando ciência aos interessados. Na sessão de julgamento, findo o relatório, podiam usar da palavra, na forma do Regimento Interno do Tribunal, o Procurador-Geral da República, sustentando a argüição, e o Procurador dos órgãos estaduais interessados, defendendo a constitucionalidade do ato impugnado (art. 4º e parágrafo único); d) se, ao receber os autos, ou no curso do Processo, o Ministro Relator entendesse que a decisão de espécie era urgente em face de relevante interesse de ordem pública, poderia requerer, com prévia ciência das partes, a imediata convocação do Tribunal, e este, sentindo-se esclarecido, poderia suprimir os prazos do artigo 3º e proferir seu pronunciamento, com as cautelas do artigo 200 da Constituição Federal (Voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal) (art. 5º) ; e) eram admissíveis embargos (infringentes), caso houvesse pelo menos três votos divergentes (art. 6º); f) se a decisão final fosse pela inconstitucionalidade, o Presidente do Supremo Tribunal Federal imediatamente a comunicaria aos órgãos estaduais interessados e, publicado que fosse o acórdão, levá-lo-ia ao conhecimento do Congresso Nacional para os fins dos artigos 8º, parágrafo único ("No caso do nº VII,o ato argüido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador-Geral ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, este a declarar, será 52
Cavalcanti. Do controle..., cit., p. 127
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes decretada intervenção".), e 13 da Constituição Federal de 1946 (“Nos casos do art. 7º, nº VII, observado o disposto no art. 8º, parágrafo único, o Congresso Nacional se limitará a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionalidade se essa medida bastar para o restabelecimento da normalidade do Estado”); g) Caso não se revelassem suficientes as providências determinadas no artigo 7º e, sem prejuízo da iniciativa que pudesse competir ao Poder Legislativo, o Procurador-Geral da República poderia solicitar fosse decretada a intervenção federal nos termos do art. 8º, parágrafo único, da Constituição Federal. O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que passou a disciplinar a matéria por força dos disposto no art. 119, § 3º, da Constituição de 1967/69, fixou procedimento único para a representação interventiva e para a representação de inconstitucionalidade in abstracto (artigos 169 a 175). Com a edição da Lei nº 9.868/ 99, as disposições regimentais referidas passaram a ser aplicáveis exclusivamente ao processo da representação interventiva. A ação há de ser proposta pelo Procurador-Geral da República, não se admitindo desistência, ainda que a final o requerente se manifeste pela sua improcedência53 (RISTF, art. 169, §§ 1º). Compete ao Relator designado solicitar informações à autoridade da qual tiver emanado o ato, que deverão ser prestadas no prazo de trintas dias, contados do recebimento do pedido (RISTF, art. 169, § 2º). O relator poderá dispensar a apresentação de informações, ad referendum do Plenário. Caso haja pedido de liminar, o relator deverá submetê-la à apreciação do Plenário e somente após a decisão haverá de solicitar a informações (RISTF, art. 169, § 1º). Se o relator, ao receber os autos, ou no curso do processo entender que a decisão é urgente, em face de relevante interesse de ordem pública, poderá, com prévio conhecimento das partes, submetê-lo ao conhecimento do Tribunal, que poderá julgá-lo com os elementos de que dispuser (RISTF, art. 170, § 3º). Recebidas as informações, deve ser aberta vista ao Procurador-Geral da República, pelo prazo de quinze dias, para emitir parecer (RISTF, art 171). Decorrido o prazo do art. 171 ou dispensadas as informações em razão da urgência, será lançado o relatório, do qual a Secretaria remeterá cópia a todos Ministros, e solicitado dia para julgamento (RISTF, art. 172).
3.2.1 Cautelar na Representação interventiva O Supremo Tribunal Federal viu-se confrontado com pedido de supensão provisória de ato normativo no julgamento da Representação nº 94, de 17 de julho de 1947, atinente às disposições parlamentaristas constantes da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Naquela oportunidade, deixou assente o eminente Relator, Ministro Castro Nunes, verbis: "Devo informar ao Tribunal que o Exmo. Sr. Procurador encaminhou-me petição o pedido formulado pelo Governador do Estado para que fosse suspensa provisoriamente a Constituição, até o pronunciamento provocado. Mandei juntar aos autos a petição, 53
Essa prática — de encaminhamento do pedido e emissão de parecer em sentido contrário -desenvolveu-se ainda no início da vigência da Constituição de 1946.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes sem despachar. O pedido de suspensão provisória não poderia ser deferido por analogia com o que se prescreve no processamento do mandado de segurança. A atribuição ora conferida ao Supremo tribunal é sui generis, não tem por objeto ato governamental ou administrativo, senão ato constituinte ou legislativo; não está regulada em lei, que, aliás, não poderia dispor para estabelecer uma tramitação que entorpecesse a solução, de seu natural expedita, da crise institucional prefigurada. Acresce por sobre tudo isso que o poder de suspender o ato argüído de inconstitucional pertence ao Congresso, nos termos expressos do art. 13, como sanção articulada com a declaração da inconstitucionalidade"54. Entendeu-se, então que não era admissível a cautelar em sede de representação interventiva, dadas as singularidades do processo político em que se encontrava inserida aquela ação. A Lei nº 2.271, de 1954, que regulamentou o processo da representação interventiva, previsto no art. 13, parágrafo único, da Constituição de 1946, fixou, no art. 4º, a seguinte regra: “Aplica-se ao Supremo Tribunal Federal o rito do processo do mandado de segurança, de cuja decisão caberão embargos caso não haja unanimidade”. Essa disposição permitiu que o Supremo Tribunal, ainda que com alguma resistência, passasse a deferir o pedido de liminar, suspendendo a eficácia do ato normativo impugnado, em consonância com a orientação consagrada na Lei do Mandado de Segurança55. A Lei nº 4337/64 não previu, expressamente, a concessão de cautelar, estabelecendo, no art. 5º, que, “se, ao receber os autos, ou no curso do Processo, o Ministro Relator entender que a decisão de espécie é urgente em face de relevante interesse de ordem pública, poderá requerer, com prévia ciência das partes, a imediata convocação do Tribunal, e este, sentindo-se esclarecido, poderá suprimir os prazos do artigo 3º desta lei (30 dias para informações e 30 dias para apresentação de relatório) e proferir seu pronunciamento, com as cautelas do artigo 200 da Constituição Federal (maioria absoluta)". A Lei nº 5.778, de 1972, que disciplina a representação interventiva no âmbito municipal (CF 1967/69 art. 15, § 3º, “d”), estabeleceu que poderia o relator, a requerimento do chefe do ministério público estadual, mediante despacho fundamentado, suspender liminarmente o ato impugnado.
3.2.2 Procedimento da representação interventiva: necessidade de nova lei A clara separação entre a ação direta de inconstitucionalidade, agora, sob a Constituição de 1988, submetida a um regime de iniciativa múltipla, até mesmo do ProcuradorFeral da República, e a representação interventiva, que continua a ser a iniciativa do ProcuradorGeral da República, está a exigir uma revisão completa do rito processual desta ação peculiar inserida no contexto complexo da intervenção federal. É certo, ademais, que a nítida separação entre o controle abstrato de normas e a representação interventiva, fruto do desenvolvimento dos estudos sobre controle de constitucionalidade, reclama também uma revisão da disciplina processual do tema.
54 55
Rp. nº 96, Relator Min.Castro Nunes, Archivo Judiciario 85:31 (32). Rp. nº 466, rel. Min. Ari Franco, RTJ 23, p.1 (8), Rp. 467, rel. Min.Victor Nunes, RTJ 19, p.5.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Parece imperiosa a necessidade de promulgação de lei especial que confira adequada conformação ao instituto, com as devidas adequações do instituto aos novos tempos e sem as deformações e deturpações do passado. Na nova disciplina processual, há de se reconhecer que o Procurador-Geral da República atua, na representação interventiva, como representante judicial da União, o que justifica que se confira realce também à manifestação desta, por parte do Advogado-Geral e de outros representantes do Poder Público federal. Este processo, que resulta de um conflito federativo, é tipicamente subjetivo, relacionado aos direitos e deveres da União e dos Estadosmembros, e, por isso, há de assumir perfil inequivocamente contraditório, assegurando-se às partes plena igualdade de oportunidade de demonstrar a correção dos entendimentos perfilhados. A adoção de parâmetros de controle como os direitos da pessoa humana, a nãoaplicação de percentual de recursos na educação e na saúde parece indicar que a representação interventiva já não se limita mais ao simples exame de constitucionalidade lei ou ato normativo, destinando-se também à verificação de situações de fato. É claro, observa Pertence, “que isso imporá adequações, se for o caso, do procedimento desta representação à necessidade verificação, não da constitucionalidade de um ato formal, mas da existência de uma grave situação atentatória à efetividade doa princípios constitucionais, particularmente aos direitos humanos fundamentais.”56 Tema delicado diz respeito à admissão da cautelar em sede de representação interventiva. A rigor, não seria de admitir-se a cautelar com objetivo de suspender lei ou ato normativo estadual, especialmente se se considera que a decisão que se profere é meramente declaratória da infração (e não da inconstitucionalidade do ato normativo), traduzindo, por isso, simples juízo de constatação (Feststellungsurteil) que legitimaria o a deflagração do processo interventivo. Como se viu, porém, a tradição brasileira encaminhou-se para reconhecer o cabimento da cautelar em sede de representação interventiva, a partir da aplicação, por extensão, da lei do mandado de segurança. Essa tradição legislativo-constitucional e a peculiar atividade desenvolvida pelo Supremo Tribunal nos demais conflitos federativos, enquanto Tribunal da Federação, parecem recomendar a preservação da cautelar como instrumento de dissuasão e solução antecipada de discórdias federativas. Outra indagação relevante afeta a admissão ou não de amicus curiae na representação interventiva. Tendo em vista o caráter subjetivo do processo, poder-se-ia sustentar que tal participação seria indevida. O elevado interesse contido nas controvérsias federativas, para as demais unidades federadas e, muitas vezes, para os cidadãos em geral, parece recomendar resposta positiva a essa questão.
4. Decisão O julgamento há de efetuar-se com o quorum de oito ministros, devendo-se declarar a inconstitucionalidade ou constitucionalidade da norma impugnada se num ou noutro 56
IF 114, rel. Min. Néri da Silveira, voto de Sepúlveda Pertence, DJ 27.09 96, RTJ 160/1. p.3.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes sentido se tiverem manifestado seis ministros. Não alcançada a maioria necessária, estando licenciados ou ausentes Ministros em número que possa influir no julgamento, este será suspenso a fim de aguardar-se o comparecimento de ministros ausentes (RISTF, art. 173 e parágrafo único). Na representação interventiva, se o Tribunal julgar improcedente a ação, haverá de reconhecer a constitucionalidade da medida questionada em face dos chamados princípios sensíveis (CF, art. 34, VII) ou a não-configuração de indevida recusa à execução de lei federal (CF, art. 34, VI). Como ressaltado, a preocupação com uma modalidade de accertamento giudiziale dell'illecito, nos casos de intervenção federal, remonta à Constituinte de 1891, quando João Pinheiro e Julio de Castilhos formularam propostas com o objetivo de submeter à apreciação do Supremo Tribunal Federal as controvérsias relativas à ofensa de princípio cardeal da Constituição pelo Estado-Membro57. A disciplina da matéria, incorporada ao texto constitucional de 1934, ganhou forma definitiva na Constituição de 1946 (art. 7º, VII, c/c o art. 8º, parágrafo único). Nos termos do art. 8º, caput, e parágrafo único da Constituição de 1946, a intervenção haveria de ser decretada por lei federal, após a declaração de inconstitucionalidade do ato estadual pelo Supremo Tribunal, em representação formulada pelo Procurador-Geral da República. O ato interventivo limitar-se-ia a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionalidade, se essa medida bastasse para o restabelecimento da normalidade do Estado (art. 13). Essa mesma orientação foi preservada na Constituição de 1967/1969, atribuindo-se ao Presidente da República a função anteriormente deferida ao Congresso Nacional (art. 10, VII e VI, 1ª parte, c/c o art. 11, § 1º, c, e § 2º). Na Constituição de 1988, o art. 34, § 3º também estabelece que, nos casos do art. 34, VI (recusa à execução de lei federal) e 34, VII (ofensa aos princípios sensíveis), dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional, o decreto há de limitar-se a suspender a execução do ato impugnado, se a medida for suficiente para a superação do estado de anormalidade. Não se cuida aqui, obviamente, de aferir a constitucionalidade in abstracto da norma estadual, mas de verificar, para fins de intervenção e no contexto de um conflito federativo, se determinado ato, editado pelo ente federado, afronta princípios basilares da ordem federativa, ou se determinada ação ou omissão do Poder Público estadual impede a execução da lei federal. Não se declara a nulidade ou a ineficácia do ato questionado, limitando-se a afirmar a violação do texto constitucional no âmbito de um procedimento complexo que poderá levar à decretação da intervenção federal. Nesse sentido a lição de Pontes de Miranda: “ Se a decisão do Supremo Tribunal Federal é para a intervenção federal, a carga preponderável é só declarativa, pois a suspensão pelo Presidente da República é que desconstitui. Se a decisão não é para a finalidade da intervenção federal, não: desconstitui-se o ato estadual, inclusive a lei, in casu.”58 É o que entende o Supremo Tribunal Federal, conforme se depreende de voto proferido por Moreira Alves: 57 58
Brasil. Assembléia Constituinte (1891), Annaes, cit., p. 432. Pontes de Miranda. Comentários, cit., p.257.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
"A representação interventiva é instrumento jurídico que se integra num processo político -- a intervenção -- para legitimá-lo. Embora diga respeito à lei em tese, não se apresenta, propriamente, como instrumento de controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade nela obtida não opera erga omnes, mas apenas possibilita (como elo de uma cadeia em que se conjugam poderes diversos) ao Presidente da República (ou ao Governador, ser for o caso) suspender a execução do ato impugnado"59.
Vê-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal limita-se, em princípio, a constatar ou a declarar a ofensa aos princípios sensíveis ou a recusa à execução da lei federal. A decisão configura, portanto, aquilo que a doutrina constitucional alemã denomina Feststellungsurteil (sentença meramente declaratória)60. Do ponto de vista estritamente formal, o julgado não elimina a lei eventualmente declarada inconstitucional do ordenamento jurídico e não obriga, per se , o ente federado, não o condena, expressamente, a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. A decisão insere-se no contexto do processo político de intervenção como um elemento essencial à decisão a ser adotada pelo Presidente da República. Tal como estabelecido no ordenamento constitucional brasileiro, a decisão do Supremo Tribunal constitui conditio juris das medidas interventivas, que não poderão ser empreendidas sem a declaração judicial de inconstitucionalidade. Todavia, o julgado não tem o condão de anular ou de retirar eficácia do ato impugnado. Tanto é assim que os constituintes de 1946, de 1967/1969, e de 1988 referiram-se à suspensão do ato (CF de 1946, art. 13; CF de 1967/1969, art. 11, § 2º; CF 1988, art. 34, § 3º), pressupondo, pois, a sua subsistência mesmo após a pronúncia de ilegitimidade. Esse mecanismo foi incorporado à Constituição de 1988, conforme se pode depreender da leitura do art. 36, § 3º (Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade). Portanto, também no atual Texto Magno, limita-se o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade da providência ou do ato normativo estadual, sem lhe retirar a eficácia. O ato impugnado somente será retirado do ordenamento jurídico mediante providência do ente federado (revogação), ou através da suspensão, nos termos do art. 36, § 3º. Tem-se aqui um inequívoco exemplo de que a inconstitucionalidade de uma lei nem sempre implica a sua nulidade. Tal como no chamado Feststellungsurteil, que o Bundesverfassungsgericht pronuncia no conflito entre órgãos (Organstreitigkeiten) e na controvérsia entre União e Estado 59
RE 92.169-SP, RTJ, 103(3):1112-13. Pestalozza, Christian. Verfassungsprozessrecht., 2. ed., Munique, C. H. Beck, 1982, p. 65-6; Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht; Stellung Verfahren, Entscheidungen, 1. ed. Munique, C. H. Beck, 1985, p. 158 e 47-8; Klaus Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraft der Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, in Christian Starck (org.), Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, 1. Aufl., Tübingen, Mohr, 1976, v. 1, p. 587-8; Theo Ritterspach, Legge sul Tribunale Costituzionale della Repubblica Federale di Germania, Firenze, CEDEUR, 1982, p. 115-16. "La sentenza riguardante la richiesta del ricorrente stabilisce soltanto che un determinato comportamento (azione od omissione) del convenuto, ha violato una specifica disposizione costituzionale (vedi in proposito E 20, 120, 44, 127; 45, 3 s.). La sentenza non stabilisce nessuna sanzione per la condotta errata e riserva agli organi costituzionali interessati la facoltà di trarre le conclusioni del caso (eventualmente politiche). L'interpretazione della costituzione che conduce al dispositivo della sentenza, è esposta solo nella motivazione. In un procedimento relativo alla controversia tra organi non può essere, nè accertata l'inefficacia di una disposizione, nè dichiarata nulla una legge [E 1, 351(371); 20, 119, 129]. Al contrario è ammesso aggiungere ad una sentenza che respinge l'instanza, un 'capoverso esplicativo' [E 1, 351(352, 371 e s.)]." 60
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes (föderative Streitigkeiten), a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na representação interventiva, constata a existência ou inexistência de violação à ordem federativa, vinculando as partes representadas na relação processual. Não se tem aqui, propriamente, uma declaração de nulidade ou de ineficácia do ato estadual, mas uma declaração de que determinado ato, provimento, ou medida, promulgada pelos Poderes Públicos estaduais, afronta princípios fundamentais da Federação ou obsta à execução de lei federal. Não obstante a aparente sutileza, a distinção assume relevância na sistemática do controle de constitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade pronunciada in abstracto importa, em princípio, no reconhecimento da nulidade da lei. A decisão proferida na representação interventiva, concebida como um accertamento giudiziale dell'illecito, para fins interventivos, limita-se a constatar a configuração da ofensa constitucional. A suspensão do ato pelo Presidente da República, com a conseqüente outorga de eficácia erga omnes ao julgado, somente se dará se o Estado-Membro não empreender, moto próprio, a suspensão ou a revogação do ato declarado incompatível com a ordem federativa61. Se se cuidar de recusa à execução de lei federal, esta poderá decorrer tanto de norma ou ato editado pelo Estado-membro, como de conduta administrativa calcada em interpretação que faz da Constituição e da competência do Estado-membro. Na primeira hipótese (eventual incompatibilidade entre o direito federal e o direito estadual), o Tribunal poderá julgar procedente a representação interventiva e declarar a inconstitucionalidade da norma estadual. Se, porém, o Tribunal entender que a lei estadual não extravasa a competência da unidade federada, pode-se estar diante de aplicação da lei federal em desconformidade com a Constituição. Aqui, a lei federal poderá reclamar interpretação conforme ou até mesmo ensejar uma declaração incidental de inconstitucionalidade (julga-se improcedente a representação e declara-se, incidentalmente, a inconstitucionalidade da lei federal cuja execução se reclamava). Finalmente, cumpriria indagar sobre os efeitos da decisão proferida em sede de representação interventiva. Tal como já ressaltado, a decisão que se profere aqui limita-se a constatar a eventual lesão a um "princípio sensível" ou a possível recusa à execução da lei federal. A decisão que constata ou declara a eventual inconstitucionalidade não elimina a lei do ordenamento jurídico, não tem, pois, eficácia erga omnes. Todavia, tal decisão poderá ser dotada de efeito vinculante – se assim vier a estabelecer a legislação -- para os órgãos públicos e a administração em geral, tendo em vista o significado singular do julgado para o sistema federal.
5. À Guisa de Conclusão Tal como se percebe, a representação interventiva, cuja positivação, no direito constitucional brasileiro se deu, de forma incipiente, em 1934, ganhou nova conformação com o advento da Constituição de 1946 (A Constituição de 1937 não cuidava da representação interventiva). A atribuição da legitimação ao Procurador-Geral da República para propor a ação gerou uma forte insegurança conceitual. Atuava o Procurador-Geral como representante judicial da União ou como Chefe do Ministério Público nesse peculiar processo? Ainda que essa questão não tenha sido posta como toda clareza perante o Supremo Tribunal Federal, parece que o Tribunal manifestava uma compreensão ambivalente sobre o tema: ora, reconhecia-se que 61
Pacheco, Cláudio. Tratado das Constituições Brasileiras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965, vol. III, p. 78-9.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Procurador-Geral era o representante judicial da União num conflito federativo típico, ora admitia-se que ele era um autêntico custos legis, legitimado a provocar a instauração do controle abstrato de normas. Não há dúvida de que essa ambigüidade contribuiu para que se avançasse na singular experiência brasileira do controle abstrato de normas. Foi o que se verificou sob a vigência da Constituição de 1946 e especialmente após o advento da Emenda 16/65, que introduziu o controle abstrato normas por iniciativa do Procurador-Geral da República. É verdade também que o novo instituto (representação de inconstitucionalidade interventiva abstrata) acabou por absorver a representação naquilo que ela significava controle de leis ou atos normativos estaduais em face da Constituição Federal. A distinção entre a representação de inconstitucionalidade (controle abstrato) e a representação interventiva desapareceu praticamente, tendo o Regimento Interno do STF estabelecido que se a lei estadual viesse a ser declarada inconstitucional com base em algum princípio sensível, dar-se-ia a comunicação ao Presidente da República para os fins da suspensão do ato questionado. Ao conferir nova sistemática ao controle abstrato de constitucionalidade, com ruptura do monopólio da ação por parte do Procurador-Geral da República e a ampliação do direito de propositura da ação direta de inconstitucionalidade, a Constituição de 1988 abriu o caminho para a revisão do modelo desenvolvido sob a Constituição anterior, dando ensejo a uma clara separação entre os dois sistemas de controle de constitucionalidade. A adoção de novos parâmetros de controle no âmbito da representação interventiva, como o princípio dos direitos da pessoa humana, indica que essa ação já não mais se ocupará, exclusivamente, de lei ou ato normativo estadual, abrangendo também os atos administrativos, omissões e até mesmo os atos concretos da Administração. O exame de outros atos que não apenas os atos administrativos conferem novas perspectivas à representação interventiva, afastando a possibilidade de sua completa absorção no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade. A outorga ao Supremo Tribunal Federal da competência para aferir a legitimidade da recusa à execução de lei federal, no âmbito da representação, realizada agora pela Emenda Constitucional nº 45/2004, reforça também o instituto como instrumento tipicamente federativo e autônomo em relação à ação direta de inconstitucionalidade. É que aqui haverá um controle direto, o da lei estadual, do ato administrativo ou do ato concreto em face do direito federal. Finalmente, as novas configurações atribuídas à representação interventiva estão a exigir a edição de lei que supere os vetustos paradigmas estabelecidos pela Lei nº 4337/64 e pelo Regimento Interno do STF. Daí a sugestão que fazemos, apresentando o anteprojeto referido no Apêndice deste estudo (cf. apêndice único). De lege ferenda, seria de cogitar-se até mesmo de, em eventual reforma da Constituição, outorgar-se a legitimação não mais ao Procurador-Geral da República, mas sim ao Advogado-Geral da União. Nesse caso, caberia ao Procurador-Geral do Estado — e não ao Procurador-Geral da Justiça — a propositura da representação interventiva no âmbito do Estado-membro.
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APÊNDICE ÚNICO PROJETO DE LEI SOBRE A REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA
Dispõe sobre o processo e julgamento da representação interventiva perante o Supremo Tribunal Federal nos termos do art. 36, III da Constituição Federal (redação dada pela EC nº 45, de 8 de dezembro de 2004)
Art. 1º Esta lei dispõe sobre o processo e julgamento da representação interventiva prevista no art. 36, III da Constituição Federal. Art. 2º A representação será proposta pelo Procurador-Geral da República, em caso de violação aos princípios referidos no art. 37, VII, da Constituição ou de recusa por parte do Estado-membro à execução de lei federal. Art. 3º A petição inicial deverá conter: I - a indicação do princípio constitucional que se considera violado, ou, se for o caso de recusa à aplicação lei federal, das disposições questionadas; II - a indicação do ato normativo, do ato administrativo, do ato concreto ou da omissão eventualmente questionados; III - a prova da violação do princípio constitucional ou da recusa de execução de lei federal; IV - o pedido, com suas especificações. Parágrafo único. A petição inicial será apresentada em duas vias, devendo conter, se for o caso, cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação. Art. 4o A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de representação interventiva, faltar algum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta. Parágrafo único. Da decisão de indeferimento da petição inicial caberá agravo, no prazo de cinco dias. Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na representação interventiva. § 1o Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno. § 2o O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias. § 3o A liminar poderá consistir na determinação de que se suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais ou administrativas, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da representação interventiva. Art. 6o Apreciado o pedido de liminar, o relator solicitará as informações às autoridades responsáveis pela prática do ato questionado, no prazo de dez dias. Parágrafo único. Decorrido o prazo de informações, será ouvido o Procurador-Geral da República, no prazo de 10 (dez) dias. Art. 7º Se entender necessário, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. Parágrafo único. Poderá ser autorizada, a critério do relator, a manifestação e a juntada de documentos por parte de interessados no processo.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Art. 8o Vencidos os prazos previstos no art. 6º, ou, se for o caso, realizadas as diligências previstas no artigo anterior, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os ministros, e pedirá dia para julgamento. Art. 9o A decisão sobre a representação interventiva somente será tomada se presentes na sessão pelo menos oito Ministros. Art. 10 Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados e, se a decisão final for pela procedência da representação interventiva, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, publicado que seja o acórdão, levá-lo-á ao conhecimento do Presidente da República para os fins do art. 36, §§ 1º e 3º da Constituição Federal. § 1o Dentro do prazo de dez dias contado a partir do trânsito em julgado da decisão, a parte dispositiva será publicada em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União. § 2o A decisão será dotada de efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público. Art. 11. A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido de representação interventiva é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória. Art. 12. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
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1. COMENTÁRIOS AOS CAPÍTULOS IV E V GILMAR FERREIRA MENDES
1.1. AS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS (ARTS. 22 A 26) Capítulo IV DA DECISÃO NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE
E
NA
AÇÃO
Art. 22. A decisão sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo somente será tomada se presentes na sessão pelo menos oito Ministros. Art.23. Efetuado o julgamento, proclamar-se-á a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou da norma impugnada se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis Ministros, quer se trate de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade. Parágrafo único. Se não for alcançada a maioria necessária à declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, estando ausentes Ministros em número que possa influir no julgamento, este será suspenso a fim de aguardar-se o comparecimento dos Ministros ausentes, até que se atinja o número necessário para prolação da decisão num ou noutro sentido. Art. 24. Proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória. Art. 25. Julgada a ação, far-se-á a comunicação à autoridade ou ao órgão responsável pela expedição do ato. Art. 26. A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória.
1.1.1. Introdução No que se refere à decisão na ADIn e na ADC, tratada em um único capítulo (Capítulo IV), a Lei n. 9.868 preservou a orientação, constante de norma regimental do Supremo Tribunal Federal, que estabelece que o julgamento dessas ações somente será efetuado se presentes na sessão pelo menos oito ministros, devendo-se proclamar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ou do ato normativo questionado, se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis (arts. 22 e 23). O parágrafo único do art. 23 ainda prevê a suspensão do julgamento, caso não seja alcançada a maioria necessária à deliberação. O art. 24 acentua o caráter “dúplice” ou “ambivalente” da ADIn ou da ADC, estabelecendo que, proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória, e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória. Em geral, no julgamento, tem-se admitido a sustentação oral por parte do requerente, do requerido, do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República. Em decisão de 30 de março de 2004, o Tribunal admitiu também a sustentação de amicus curiae.1
1.1.1.1. Comunicação à autoridade responsável pela edição do ato e caráter irrecorrível da decisão O art. 25 prevê que, julgada a ação, seja feita comunicação à autoridade ou ao órgão responsável pela expedição do ato. Tal comunicação é obrigatória, qualquer que seja o resultado do julgamento. Essa norma já estava prevista no Regimento Interno do STF (art. 175), e reproduz texto estabelecido na Lei n. 1.533/51 (Lei do Mandado de Segurança). A Lei n. 9.868, assume, em seu art. 26, posição clara em relação à irrecorribilidade e à nãorescindibilidade da decisão proferida na ADIn ou na ADC. Além de ser plenamente condizente com a atuação da jurisdição constitucional, tal providência rende homenagem à segurança jurídica e à economia processual, permitindo o imediato encerramento do processo e evitando a interposição de recursos de caráter notadamente protelatório. No modelo anterior, admitia-se a oposição de embargos infringentes no caso de decisão nãounânime proferida pelo Tribunal (art.333, IV, RISTF). Essa orientação restou, porém, superada, com o advento da Lei n. 9868/99. Em relação aos casos julgados antes da promulgação da Lei em apreço, entendeu o Tribunal que eram cabíveis os embargos infringentes.2 O art. 26, in fine, admite, expressamente a oposição de embargos declaratórios. Eles hão de ser apresentados no prazo de 5 dias (art. 337,§ 1º, RISTF; art. Art.536, CPC) pelo requerente ou pelo requerido. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fixada em Questão de Ordem, revela-se “incabível a interposição de qualquer espécie de
recurso por quem, embora legitimado para a propositura da ação direta, nela não figure como requerente ou requerido”.3 O entendimento do Tribunal é igualmente pacífico no sentido de admitir recurso interposto pelos entes ou órgãos legitimados para a ação direta e não pelas pessoas jurídicas correspondentes. Assim, “o Estado-membro não dispõe de legitimidade para interpor recurso em sede de controle normativo abstrato, ainda que a 1
ADIn (QO) 2675, Rel. Min. Carlos Velloso e ADIn (QO) 2777, Rel. Min. Cezar Peluso. O Tribunal, por maioria, em 26.11.2003, resolvendo questão de ordem, entendeu permitir a sustentação oral dos amici curiae na ação direta de inconstitucionalidade. Em decisão na Sessão Administrativa de 25.03.2004, o Tribunal editou a Emenda Regimental nº 15, DJ de 01.04.2004, que acrescentou o § 3º ao artigo 131 do Regimento Interno, para admitir a intervenção de terceiros no processo de controle concentrado de constitucionalidade, facultando-lhes a produção de sustentação oral. Esta proposta envolve cuidados quanto à divisão do tempo em face da possibilidade de se fazerem presentes múltiplos amici curiae. 2 Cf. ADIn 1591 (EI), Rel. Sepúlveda Pertence, DJ de 12.09.03; Cf. também Embargos Infringentes na ADIn 1289, Rel. Gilmar Mendes, DJ de 27.02.04. 3 ADI 1105 – ED – QO, Rel.Maurício Corrêa, DJ 16.11.2001, p. 20.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ação direta de inconstitucionalidade tenha sido ajuizada pelo respectivo Governador, a quem assiste a prerrogativa legal de recorrer contra as decisões proferidas pelo Relator da causa (Lei nº 9.868/99,art. 4º, parágrafo único) ou, excepcionalmente, contra aquelas emanadas do próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal (Lei nº 9.868/99, art. 26). Também segundo a jurisprudência do Tribunal não cabe a contagem em dobro de prazos recursais em sede de controle abstrato de normas. Na ADI 2130 Ag. R, fixou-se que “não se aplica, ao processo objetivo de controle abstrato de constitucionalidade, a norma inscrita no art. 188 do CPC, cuja incidência restringe-se, unicamente, ao domínio dos processos subjetivos, que se caracterizam pelo fato de admitirem, em seu âmbito, a discussão de situações concretas e individuais.4 Questão sensível diz respeito ao cabimento de embargos de declaração com efeitos modificativos. Diante da expressa proibição quanto ao uso dos embargos infringentes, há de entender que os embargos de declaração hão de ter, fundamentalmente, função aclaratória, e não de modificação do julgado. É verdade que poderá ocorrer erro ou equívoco que, ao ser corrigido, importe a revisão do julgado. Em matéria de embargos de declaração com efeitos infringentes, o Tribunal tem assentado a sua inadmissibilidade.5 Outro tema que vem sendo objeto de debate diz respeito ao cabimento de embargos de declaração para explicitar que, em dada hipótese, a decisão haveria de ter efeitos limitados ou restritos e não eficácia retroativa “ex tunc”. Na ADI 1498, discutiu-se a admissibilidade dos embargos de declaração para fixar que a declaração de inconstitucionalidade de lei estadual do Rio Grande do Sul, que dispunha sobre o regime de cartórios, teria eficácia a partir da decisão concessiva da cautelar. Por seis votos a cinco, o Tribunal não conheceu dos embargos, vencidos Ilmar Galvão, Maurício Corrêa, Nelson Jobim , Ellen Gracie e Gilmar Mendes, que os acolhiam.6 Se se entender que o fundamento para a limitação dos efeitos é de índole constitucional7 e que, presentes os requisitos para a declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos, não poderá o Tribunal fazê-lo com eficácia ex tunc, afigura-se inevitável o acolhimento dos embargos de declaração nas hipóteses em que de fato se configura uma omissão do Tribunal na apreciação dessas circunstâncias. A propósito, assinala Rui Medeiros, tendo em vista a experiência portuguesa: “A solução neste tipo de situações decorre, quanto a nós, dos próprios limites da força obrigatória geral da declaração de inconstitucionalidade. O puro silêncio do Tribunal Constitucional não contém um julgamento implícito sobre a admissibilidade dou não da limitação dos efeitos da declaração. Como escrever Miguel Galvão Teles, quando os juízes constitucionais não limitam os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, não estão de forma alguma a fixar implicitamente os efeitos da inconstitucionalidade. Tais efeitos resultam tão só e unicamente da Constituição. Ora, em nossa opinião, a declaração de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes vale nos precisos limites e temos em que julga.
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Cf. ADIn 2130 Ag. R, Rel. Celso de Mello, DJ de 04.12.2001, p. 31. Cf. EmbDecl na ADI 2713, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 07.05.2004. 6 Cf. ADIn 1498, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ. De 05.12.2003. 7 Cf. infra, item 7.2 - Efeitos da decisão no controle abstrato. 5
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes É certo que, se a questão fosse equacionada nos estritos quadros da teoria processual civil sobre o caso julgado, o chamado efeito preclusivo da sentença e, mais concretamente, a regra de que o caso julgado civil cobre o deduzido e o dedutível poderiam eventualmente pôr em causa uma tal conclusão. Mas, em face da singularidade do processo de fiscalização abstracta da constitucionalidade, o que importa é sublinhar que não se vislumbram quaisquer razões jurídico-constitucionais imperiosas que imponham a rejeição da possibilidade de, em momento ulterior à declaração de inconstitucionalidade, se reconhecer a existência de fundamento para uma limitação do alcance da declaração de inconstitucionalidade. Pelo contrário, perante a verificação a posteriori de que uma declaração de inconstitucionalidade com eficácia retroactiva e repristinatória envolveria um sacrifício intolerável de outros interesses constitucionalmente protegidos, manda o princípio da proporcionalidade que se admita a superveniente limitação de efeitos.”8
Assim, se se entende que a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados ou restritos é uma imposição da própria Constituição, não se há de atribuir valor definitivo a uma eventual omissão por parte do Tribunal. Daí a possibilidade de que se reconheça a omissão no âmbito nos embargos de declaração para os fins de explicitar a necessária limitação de efeitos da decisão de inconstitucionalidade.
1.1.1.2. Decisões de mérito em sede de controle abstrato de normas A Lei n. 9.868 estabelece, ainda, que, dentro de dez dias após o trânsito em julgado, o Supremo Tribunal Federal fará publicar a parte dispositiva do acórdão proferido em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça (art. 28). O Tribunal poderá, no julgamento da ação, declarar a constitucionalidade da lei. Poderá, porém, declarar a inconstitucionalidade. Nessa hipótese, a declaração de inconstitucionalidade corresponde a uma declaração de nulidade ipso jure da lei. A lei declarada inconstitucional será eliminada com eficácia ex tunc. Na tradição brasileira, julgada procedente a ADIn ou improcedente a ADC, ter-se-á uma declaração de nulidade da lei inconstitucional. Eventual decisão de caráter restritivo há de ser expressa, nos termos do art. 27 da Lei n. 9868/99.
1.1.2. Extensão da declaração de nulidade A declaração de inconstitucionalidade de uma lei pode ter diversas extensões: 1.1.2.1. Declaração de nulidade total como expressão de unidade técnico-legislativa Defeitos formais, tais como a inobservância das disposições atinentes à iniciativa da lei ou competência legislativa, levam, normalmente, à declaração de inconstitucionalidade total, uma vez que, nesse caso, não se vislumbra a possibilidade de divisão da lei em partes válidas e inválidas. 8
Cf. Medeiros, Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Católica, 1999, p. 738-739.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Assim, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de emendas às Constituições estaduais relativas a matérias que, nos termos da Constituição 1967/69, somente poderiam ser disciplinadas mediante iniciativa do Executivo9. O mesmo se dá quando o Poder Legislativo invade âmbito de iniciativa de outros órgãos ou poderes (Tribunais de Justiça ou Tribunal de Contas)10. Também a inobservância de outras normas fixadas na Constituição sobre o procedimento legislativo torna inevitável a declaração de inconstitucionalidade de toda a lei11. 1.1.2.2. Declaração de nulidade total O Supremo Tribunal profere a declaração de inconstitucionalidade total de uma lei se identifica relação de dependência ou de interdependência entre as partes constitucionais e inconstitucionais do dispositivo12. Se a disposição principal da lei há de ser considerada inconstitucional, pronuncia o Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade de toda a lei, salvo se algum dispositivo puder subsistir sem a parte considerada inconstitucional. Trata-se aqui de uma declaração de inconstitucionalidade em virtude de dependência unilateral13. A indivisibilidade da lei pode resultar, igualmente, de uma forte integração entre as suas diferentes partes. Nesse caso, tem-se a declaração de inconstitucionalidade em virtude da chamada dependência recíproca14. 1.1.2.3. Declaração de nulidade parcial A doutrina e a jurisprudência brasileiras admitem plenamente a teoria da divisibilidade da lei, de modo que, tal como assente, o Tribunal somente deve proferir a inconstitucionalidade daquelas normas viciadas, não devendo estender o juízo de censura às outras partes da lei, salvo se elas não puderem subsistir de forma autônoma15. Faz-se mister, portanto, verificar se estão presentes as condições objetivas de divisibilidade. Para isso, impõe-se aferir o grau de dependência entre os dispositivos, isto é, examinar se as disposições estão em relação de vinculação que impediria a sua divisibilidade16. Não se afigura suficiente, todavia, a existência dessas condições objetivas de divisibilidade. Impõe-se verificar, igualmente, se a norma que há de subsistir após a declaração de inconstitucionalidade parcial corresponderia à vontade do legislador17. Portanto, devem ser investigadas não só a existência de uma relação de dependência (unilateral ou recíproca)18, mas também a possibilidade de intervenção no âmbito da vontade do legislador19. 9
Rp. 1.318, Rel. Min. Carlos Madeira, RDA, jul./set. 1987, 169:60-6; Rp. 1.478, Rel. Octavio Gallotti, RDA, abr./jun. 1988, 172:95; Rp. 1.433, Rel. Min. Francisco Rezek, RDA, jan./mar. 1988, 171:107. 10 Cf. Rp. 1.304, Rel. Min. Célio Borja, RDA, jan./mar. 1988, 171:109-18. 11 Cf., dentre outras, Rp. 980, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 96:496 e s.; ADIn 574, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ, 11 mar. 1994, p. 4111; ADIn 89, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ, 20 ago. 1993, p. 16316; ADIn 805, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 8 abr. 1994, p. 7225. 12 Rp. 1.305, Rel. Min. Sydney Sanches, RDA, 170:46; Rp. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 11 set. 1987. 13 Cf., a propósito, Mendes, Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos, São Paulo, 1990, p. 284; Bittencourt, O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1968, p. 127. 14 Rp. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 11 set. 1987. 15 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 126-7. 16 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 127. 17 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 125. 18 Rp. 1.305, Rel. Sydney Sanches, RDA, out./dez. 1987, 170:46-60; Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 125-7; Mendes, Controle de constitucionalidade; cit., p. 269. 19 Rp. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 11 set. 1987. Ver, também, Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 125-7; Mendes, Controle de constitucionalidade, cit., p. 269.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes No exame sobre a vontade do legislador assume peculiar relevo a dimensão e o significado da intervenção que resultará da declaração de nulidade. Se a declaração de inconstitucionalidade tiver como conseqüência a criação de uma nova lei, que não corresponda às concepções que inspiraram o legislador, afigura-se inevitável a declaração de inconstitucionalidade de toda a lei20. 1.1.2.4. Declaração parcial de nulidade sem redução de texto Já em 1949 identificara Lúcio Bittencourt os casos de inconstitucionalidade da aplicação da lei a determinado grupo de pessoas ou de situações como hipótese de inconstitucionalidade parcial21. Nesse sentido, ensinava o emérito constitucionalista: “Ainda no que tange à constitucionalidade parcial, vale considerar a situação paralela em que uma lei pode ser válida em relação a certo número de casos ou pessoas e inválida em relação a outros. É a hipótese, verbi gratia, de certos diplomas redigidos em linguagem ampla e que se consideram inaplicáveis a fatos pretéritos, embora perfeitamente válidos em relação às situações futuras. Da mesma forma, a lei que estabelecesse, entre nós, sem qualquer distinção, a obrigatoriedade do pagamento de imposto de renda, incluindo na incidência deste os proventos de qualquer natureza, seria inconstitucional no que tange à remuneração dos jornalistas e professores”22.
Não raro constata o Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade da cobrança de tributo sem a observância do princípio da anterioridade (Constituição de 1946, art. 141, § 34; Constituição de 1967/6923, art. 153, § 29; Constituição de 1988, art. 150, III, b)24. Dessarte, firmou-se orientação sumulada segundo a qual “é inconstitucional a cobrança de tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro” (Súmula 67). Como se vê, essas decisões não levam, necessariamente, à cassação da lei, uma vez que ela poderá ser aplicada, sem nenhuma mácula, já no próximo exercício financeiro. Em outros casos, considera o Tribunal que a aplicação de leis sobre correção monetária a situações já consolidadas revela-se inconstitucional25. É o que se constata, v. g., na seguinte decisão: “Correção monetária. A fixação da sua incidência a partir do ajuizamento da ação viola o princípio da não-retroatividade da Lei (art. 153, § 3º, da Constituição Federal), destoando, inclusive da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Aplicação da Lei n. 6.899, de 8-4-81, aos processos pendentes, a partir de sua vigência (art. 3º do Decreto n. 86.649/81). Provimento do recurso extraordinário”26.
Ou, ainda, na seguinte passagem do voto de Alfredo Buzaid: “É certo que a Lei n. 6.899 dispõe, no art. 1º, que a correção monetária incide sobre qualquer débito resultante de decisão judicial. E depois de dizer no § 1º que, na execução por título de dívida líquida e certa, se calcularia a correção a contar do respectivo vencimento, estabelece, no § 2º, que nos demais casos se procede ao cálculo a partir do ajuizamento da causa. A locução ‘a partir do ajuizamento da causa’ há de referir-se à causa proposta depois que a Lei n. 6.899 entrou em vigor. Interpretação diversa, como a adotada
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Rp. 1.379, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 11 set. 1987. Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 128. 22 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 128. 23 Essa disposição foi, igualmente, incorporada à Constituição de 1988 (art. 150, II). 24 RMS 11.853, Rel. Min. Luiz Gallotti, DJ, 17 ago. 1966; RMS 13.208, Rel. Min. Vilas Boas, DJ, 11 maio 1966; RMS 13.694, Rel. Min. Carlos Medeiros da Silva, DJ, 10 ago. 1966; RMS 16.588, Rel. Min. Victor Nunes, DJ, 12 mar. 1968; RMS 16.661, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, RTJ, 59:185; RE 61.102, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, DJ, 14 fev. 1968. 25 RMS 16. 986, Rel. Min. Aliomar Baleeiro, RTJ, 43:575; RMS 16.661, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, RTJ, 59:185; ERE 69.749, Rel. Min. Bilac Pinto, RTJ, 61:130; RE 63.318, Rel. Min. Victor Nunes Leal, RTJ, 46:205; RE 99.180, Rel. Min. Djaci Falcão, RTJ, 106:847. 26 RE 97.816, Rel. Min. Djaci Falcão, DJ, 12 nov. 1982, p. 11489. 21
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes pelo v. acórdão recorrido, importa em atribuir à Lei 6.899 efeito retroativo (...)”27.
Também aqui se limita o Tribunal a considerar inconstitucional apenas determinada hipótese de aplicação da lei, sem proceder à alteração do seu programa normativo. Em decisão mais moderna, adotou o Supremo Tribunal Federal, expressa e inequivocamente, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, tal como se pode depreender da seguinte passagem da ementa, concernente à ADIn 319, formulada contra a Lei n. 8.039, de 1990, verbis: “Exame das inconstitucionalidades alegadas com relação a cada um dos artigos da mencionada Lei. Ofensa ao princípio da irretroatividade com relação à expressão ‘março’ contida no parágrafo 5º do artigo 2º da referida Lei. Interpretação conforme à Constituição aplicada ao ‘caput’ do artigo 2º, ao parágrafo 5º desse mesmo artigo e ao artigo 4º, todos da Lei em causa. Ação que se julga procedente em parte, para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘março’, contida no parágrafo 5º do artigo 2º da Lei n. 8.039/90, e, parcialmente, o ‘caput’ e o parágrafo 2º do artigo 2º, bem como o artigo 4º, os três em todos os sentidos que não aquele segundo o qual de sua aplicação estão ressalvadas as hipóteses em que, no caso concreto, ocorra direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada”28.
Uma redução do âmbito da aplicação da lei pode ser operada, igualmente, mediante simples interpretação conforme à Constituição29. Assim, ao apreciar a constitucionalidade de dispositivo constante da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 5.540/68), houve por bem o Tribunal afirmar que a exigência de lista tríplice para o preenchimento de cargos de direção superior das Universidades somente se aplicava às universidades federais30, com o fundamento de que essa regra não integrava as linhas básicas do sistema de ensino que deveriam estar disciplinadas na referida lei. Com a utilização da expressão “desde que”, acabou o Tribunal por excluir as universidades estaduais do âmbito de aplicação da norma impugnada como se vê da ementa do acórdão: “Universidades e estabelecimentos oficiais de nível superior. A determinação do número dos componentes das listas destinadas à escolha dos seus dirigentes, não sendo matéria de diretriz e base, escapa à competência legislativa da União, em relação às entidades oficiais de ensino, situadas fora do âmbito federal (Constituição, art. 8º, XVII, q, e art. 177), valendo, apenas, no que concerne às mantidas pela União. Representação julgada improcedente, desde que se interprete o § 1º da Lei n. 5.540/68, com a redação dada pela de n. 6.420/77, como somente aplicável às Universidades e estabelecimentos superiores, no âmbito federal”.
Mais recentemente, reconheceu-se a possibilidade de “explicitação, no campo da liminar, do alcance de dispositivos de uma certa lei, sem afastamento da eficácia no que se mostre consentânea com a Constituição Federal”31. 1.1.3. A interpretação conforme à Constituição
1.1.3.1. Introdução Consoante postulado do direito americano incorporado à doutrina constitucional brasileira, deve o juiz, na dúvida, reconhecer a constitucionalidade da lei. Também no caso de duas interpretações possíveis de uma lei, há de se preferir aquela que se revele compatível com a Constituição. Na doutrina menciona-se, freqüentemente, a frase de Cooley: 27
RE 100.317, Rel. Min. Alfredo Buzaid, RTJ, 114:1138 (1140). ADIn 319-4, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 30 abr. 1993, p. 7563. 29 Sobre ao conceito de interpretação conforme à Constituição e sua relação com a declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto, ver p. 294. 30 Rp. 1.454, Rel. Min. Octavio Gallotti, RTJ, 125:997. 31 ADIn 1.045, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 6 maio 1994, p. 10485. 28
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes “The court, if possible, must give the statute such a construction as will enable it to have effect”32.
Os Tribunais devem, portanto, partir do princípio de que o legislador busca positivar uma norma constitucional33. Há muito se vale o Supremo Tribunal Federal da interpretação conforme à Constituição. Essa variante de decisão não prepara maiores embaraços no âmbito do controle incidental de normas, uma vez que aqui o Tribunal profere decisão sobre um caso concreto que vincula apenas as partes envolvidas. A interpretação conforme à Constituição passou a ser utilizada, igualmente, no âmbito do controle abstrato de normas34. Consoante a prática vigente, limita-se o Tribunal a declarar a legitimidade do ato questionado desde que interpretado em conformidade com a Constituição35. O resultado da interpretação, normalmente, é incorporado, de forma resumida, na parte dispositiva da decisão36. Na Rp. 948 (Rel. Min. Moreira Alves), argüiu-se a inconstitucionalidade do art. 156 da Constituição do Estado de Sergipe, segundo o qual, “cessada a investidura do cargo de Governador do Estado, quem o tiver exercido por mais da metade do prazo do mandato respectivo fará jus, a título de representação, desde que não tenha sofrido suspensão dos direitos políticos, a um subsídio mensal e vitalício igual aos vencimentos do cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça”. Afirmava-se que a omissão quanto ao caráter permanente do exercício, contemplado no art. 184 da Constituição Federal, configurava vício insanável. No julgado de 27 de outubro de 1976, deu-se pela improcedência da ação, pelos seguintes fundamentos: “No caso, o texto — ou seja, o caput do art. 156 da Constituição do Estado de Sergipe —, cuja inconstitucionalidade se argüiu, se afastaria do modelo federal em dois pontos: a) omite-se a referência a que o exercício no cargo de Governador tenha sido em caráter permanente; e b) inclui-se a restrição do exercício ‘por mais da metade do prazo do mandato respectivo’. Quanto à inclusão da restrição, o texto não padece de inconstitucionalidade, segundo a orientação já firmada por esta Corte. Dispenso-me, por isso, de maiores considerações a propósito. A questão se restringe, pois, à falta de referência expressa ao caráter permanente do exercício do cargo de Governador. Também nesse ponto parece-me improcedente a representação. Se não me fosse possível, com base na interpretação do espírito do texto ora impugnado, concluir que, com fundamento nele, se pode extrair a conclusão de que está implícito o caráter de permanência exigido na Constituição Federal, daria pela sua inconstitucionalidade, uma vez que o dispositivo constitucional estadual estaria admitindo alteração quanto ao destinatário do benefício, o que, no caso, é essencial à sua concessão. Sucede, porém, que a restrição é de tal ordem, que, a não ser em casos excepcionalíssimos, poderia sua interpretação literal levar à concessão do subsídio a substituto eventual do Governador. Parece-me evidente que, ao estabelecer regra mais rigorosa do que a contida na Constituição Federal, sua finalidade foi a de aumentar os requisitos para a obtenção do subsídio, e, não, de permitir que ele fosse concedido, em contraposição à Constituição Federal, a quem não estivesse no exercício em caráter permanente do cargo de Governador. Esta interpretação — que afasta a incidência do dispositivo constitucional em causa em favor de quem não tenha exercido, em caráter permanente, o cargo de Governador por tempo superior à metade do respectivo mandato — ajusta o texto impugnado com o preceito federal que lhe serviu de modelo. Em conclusão, e com a interpretação que dou ao caput do art. 156 da Constituição do Estado de Sergipe, julgo improcedente a presente Representação”29.
Afastou-se, aqui, qualquer possibilidade de se emprestar outra interpretação ao texto. 32
Cooley, Treatise on the constitutional limitations, 4. ed., Boston, 1878, p. 228. Cf. também Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 93. 33 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 93. 34 Rp. 948, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 82:55-6; Rp. 1.100, RTJ, 115:993 e s. 35 Cf., a propósito, Rp. 1.454, Rel. Min. Octavio Gallotti, RTJ, 125:997. 36 Cf., a propósito, Rp. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ, 126:514; Rp. 1.454, Rel. Min. Octavio Gallotti, RTJ, 125:997; Rp. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ, 9 set. 1988.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Por outro lado, convém observar que, na hipótese, não se cuidava tão-somente de excluir outras possibilidades de interpretação, mas também de colmatar lacuna identificada no texto constitucional estadual com base em premissas extraídas diretamente da Constituição Federal. Também na Rp. 1.100 (Rel. Min. Francisco Rezek), aventou-se a possibilidade de se dar pela improcedência da ação, desde que se emprestasse dada interpretação ao texto impugnado. Embora a proposta de decisão formulada por Néri da Silveira não tenha sido acolhida, vale mencioná-la como exemplo inequívoco de interpretação conforme à Constituição: “(...) a disposição atacada (artigo 15, letra c, da Lei Estadual n. 1.427, de 16-12-1980), do Estado do Amazonas, pode subsistir, como compatível com a ordem constitucional, emprestando-se-lhe compreensão, segundo a qual os antigos aldeamentos indígenas abandonados por seus habitantes, de que se cuida, na mesma norma estadual em foco, como terras devolutas estaduais, são apenas aqueles terrenos relativos a aldeamentos extintos, anteriormente à Constituição de 1891, e os posteriores, cujo abandono definitivo por seus habitantes tenha ocorrido até o advento do Decreto-lei n. 9.760, de 1946. A partir daí, os terrenos de aldeamentos indígenas, que vieram a se extinguir, passaram, já, a integrar os bens da União, ut art. 2º, letra h, citada, desse diploma legal. Dando, de tal maneira, à norma estadual, objeto da Representação, esse alcance, não cabe afirmar sua inconstitucionalidade”30.
Da mesma forma, na Rp. 1.163 (Rel. Min. Francisco Rezek), na qual se discutia a legitimidade de diploma estadual que isentava determinados cargos do regime concursivo, manifestou-se a Excelsa Corte pela improcedência, assentando-se que a fórmula adotada não era infringente da sistemática constitucional, uma vez que contemplava apenas servidores efetivos, presumivelmente admitidos mediante concurso público, e para os quais a designação não representava a primeira investidura em cargo público31 .
1.1.3.2. Admissibilidade e limites da interpretação conforme à Constituição Também entre nós utilizam-se doutrina e jurisprudência de uma fundamentação diferenciada para justificar o uso da interpretação conforme à Constituição. Ressalta-se, por um lado, que a supremacia da Constituição impõe que todas as normas jurídicas ordinárias sejam interpretadas em consonância com seu texto37. Em favor da admissibilidade da interpretação conforme à Constituição milita também a presunção da constitucionalidade da lei, fundada na idéia de que o legislador não poderia ter pretendido votar lei inconstitucional38. Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a interpretação conforme à Constituição conhece limites. Eles resultam tanto da expressão literal da lei quanto da chamada vontade do legislador. A interpretação conforme à Constituição é, por isso, apenas admissível se não configurar violência contra a expressão literal do texto39 e não alterar o significado do texto normativo, com mudança radical da própria concepção original do legislador. A prática demonstra que o Tribunal não confere maior significado à chamada intenção do legislador, ou evita investigá-la, se a interpretação conforme à Constituição se mostra possível dentro dos limites da expressão literal do texto40.
1.1.3.3. Qualificação da interpretação conforme à Constituição A interpretação conforme à Constituição levava sempre, no direito brasileiro, à declaração de
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Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 93-4. Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 95. 39 Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 95. 40 Rp. 1.454, Rel. Min. Octavio Gallotti, RTJ, 125:997; Rp. 1.389, Rel. Min. Oscar Corrêa, RTJ, 126:514; Rp. 1.399, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ, 9 set. 1988. 38
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes constitucionalidade da lei41. Porém, como já se disse, há hipóteses em que esse tipo de interpretação pode levar a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto. Tais casos foram levantados pela primeira vez por ocasião da propositura cumulativa de uma representação interpretativa42 e de uma representação de inconstitucionalidade, suscitando-se a indagação sobre o significado dogmático da interpretação conforme à Constituição43. No caso, o Supremo Tribunal, seguindo orientação formulada por Moreira Alves, reconheceu que a interpretação conforme à Constituição, quando fixada no juízo abstrato de normas, corresponde a uma pronúncia de inconstitucionalidade. Daí entender incabível a sua aplicação no âmbito da representação interpretativa44. Não se pode afirmar com segurança se, na jurisprudência do Supremo Tribunal, a interpretação conforme à Constituição há de ser, sempre, equiparada a uma declaração de nulidade sem redução de texto. Deve-se acentuar, porém, que, em decisão de 9 de novembro de 1987, deixou assente o Supremo Tribunal Federal que a interpretação conforme à Constituição não deve ser vista como simples princípio de interpretação, mas sim como modalidade de decisão do controle de normas, equiparável a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto45. Assinale-se, porém, que o Tribunal não procedeu, inicialmente, a qualquer alteração na parte dispositiva da decisão, que continua a afirmar a improcedência da argüição, desde que adotada determinada interpretação. As decisões proferidas nas ADIns 491 e 319, todas da relatoria de Moreira Alves, parecem sinalizar que, pelo menos no controle abstrato de normas, o Tribunal tem procurado, nos casos de exclusão de determinadas hipóteses de aplicação ou hipóteses de interpretação do âmbito normativo, acentuar a equivalência dessas categorias46. De nossa parte, cremos que a equiparação pura e simples da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto à interpretação conforme à Constituição prepara dificuldades significativas. A primeira delas diz respeito à conversão de uma modalidade de interpretação sistemática, utilizada por todos os tribunais e juízes, em técnica de declaração de inconstitucionalidade. Isso já exigiria especial qualificação da interpretação conforme à Constituição, para afirmar que somente teria a característica de uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto aquela interpretação conforme à Constituição desenvolvida pela Corte Constitucional, ou, em nosso caso, pelo Supremo Tribunal Federal. Até porque, do contrário, também as questões que envolvessem interpretação conforme à Constituição teriam de ser submetidas ao Pleno dos Tribunais ou ao seu órgão especial (CF, art. 97). Portanto, se essa equiparação parece possível no controle abstrato de normas, já não se afigura isenta de dificuldades a sua extensão ao chamado controle incidental ou concreto, uma vez que, nesse caso, ter-se-ia de conferir, também no âmbito dos tribunais ordinários, tratamento especial à interpretação conforme à Constituição. Maior dificuldade ainda adviria do fato de que, ao fixar como constitucional dada interpretação 41
Cf., a propósito, Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 95. A chamada representação interpretativa foi introduzida no direito brasileiro pela Emenda Constitucional n. 7, de 1977, e deveria contribuir — tal como ressaltado na Exposição de Motivos do Governo — para dirimir controvérsias sobre interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual. O direito de propositura foi confiado exclusivamente ao Procurador-Geral da República (CF de 1967/69, art. 119, I, l). A Constituição de 1988 não incorporou esse instituto. 43 Cf. Rp. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 126:48 e s. 44 Voto na Rp. 1.417, DJ, 15 abr. 1988. 45 Rp. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 126:48. 46 ADIn 491 (Medida Cautelar), Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 137:90; ADIn 319, Rel. Min. Moreira Alves, DJ, 30 abr. 1993. 42
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes e, expressa ou implicitamente, excluir determinada possibilidade de interpretação, por inconstitucionalidade, o Tribunal não declara — nem poderia fazê-lo — a inconstitucionalidade de todas as possíveis interpretações de certo texto normativo. Por outro lado, a afirmação de que a interpretação conforme à Constituição e a declaração de inconstitucionalidade são uma e mesma categoria, se parcialmente correta no plano das Cortes Constitucionais e do Supremo Tribunal Federal, é de todo inadequada na esfera da jurisdição ordinária, cujas decisões não são dotadas de força vinculante geral47. Ainda que se não possa negar a semelhança dessas categorias e a proximidade do resultado prático de sua utilização, é certo que, enquanto na interpretação conforme à Constituição se tem, dogmaticamente, a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, constata-se, na declaração de nulidade sem redução de texto, a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinadas hipóteses de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, se se pretende realçar que determinada aplicação do texto normativo é inconstitucional, dispõe o Tribunal da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, que, além de mostrar-se tecnicamente adequada para essas situações, tem a virtude de ser dotada de maior clareza e segurança jurídica expressa na parte dispositiva da decisão (a lei X é inconstitucional se aplicável a tal hipótese; a lei Y é inconstitucional se autorizativa da cobrança do tributo em determinado exercício financeiro). A decisão proferida na ADIn 491 parece indicar que o Supremo Tribunal Federal está disposto a afastar-se da orientação anterior, que equiparava a interpretação conforme à Constituição à declaração de nulidade parcial sem redução de texto, passando a deixar explícito, no caso de declaração de nulidade sem redução de texto, que determinadas hipóteses de aplicação, constantes de programa normativo da lei, são inconstitucionais e, por isso, nulas48. Cuidava-se de discussão sobre a constitucionalidade do art. 86, parágrafo único, da Constituição do Estado do Amazonas, que consagra as seguintes normas: “Art. 86. Lei Orgânica, de iniciativa facultativa do Procurador-Geral de Justiça, disporá sobre a organização e o funcionamento do Ministério Público, observando em relação aos seus membros: ............................................................................................................ Parágrafo único. Aplicam-se, no que couber, aos membros do Ministério Público os princípios estabelecidos no art. 64, I, II e IV a XIII, desta Constituição”.
O art. 64 da Constituição estadual, ao qual faz remissão expressa a disposição impugnada, consagra as seguintes regras: “Art. 64. A Magistratura Estadual terá seu regime jurídico estabelecido no Estatuto da Magistratura instituído por lei complementar de iniciativa do Tribunal de Justiça, observados os seguintes princípios: ............................................................................................................ V — os vencimentos dos magistrados serão fixados com diferença não superior a dez por cento de uma para outra das categorias da carreira, não podendo, a título nenhum, exceder os dos Ministros do Supremo Tribunal Federal”49.
O Supremo Tribunal, após reconhecer que a inconstitucionalidade argüida visava apenas à extensão de vantagens ao Ministério Público, contida implicitamente na referência aos incisos “IV a XIII” do art. 64, optou por suspender — sem redução de texto — a aplicação do parágrafo único do art. 86 da Constituição estadual no que concerne à remissão ao inciso V do art. 64 dela constante. Também na ADIn 939, na qual se questionava a cobrança do IPMF, declarou o Tribunal a inconstitucionalidade sem redução do texto dos arts. 3º, 4º e 8º da Lei Complementar n. 77/93, nos 47
Cf. Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, München, C. H. Beck, 1985, p. 187. ADIn 491 (Medida Cautelar), Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 137:90. 49 Cf. transcrição na ADIn 491 (Medida Liminar), Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 137:90 (93). 48
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes pontos em que determinou a incidência da exação sobre as pessoas jurídicas de Direito Público e as demais entidades ou empresas referidas nas alíneas a, b, c e d do inciso VI do art. 150 da Constituição50. Mais recentemente, reconheceu-se a possibilidade de “explicitação, no campo da liminar, do alcance de dispositivos de uma certa lei, sem afastamento da eficácia no que se mostre consentânea com a Constituição Federal”51. Esses precedentes estão a denotar que a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto parece ter ganho autonomia como técnica de decisão no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Tudo indica, pois, que, gradual e positivamente, o Supremo Tribunal afastou-se da posição inicialmente fixada, que equiparava simplesmente a interpretação conforme à Constituição à declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Neste tema, parece que o legislador fez, pelo que se depreende do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868, uma clara opção pela separação das figuras da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto e a interpretação conforme à Constituição. 1.1.4.Declaração de nulidade e prazo para impugnação do ato concreto
Acentue-se, desde logo, que, no Brasil, jamais se aceitou a idéia de que a nulidade da lei importaria na eventual nulidade de todos os atos que com base nela viessem a ser praticados. Embora a ordem jurídica brasileira não disponha de preceitos semelhantes aos constantes do § 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht, que prescreve a intangibilidade dos atos não mais suscetíveis de impugnação52, não se deve supor que a declaração de nulidade afeta todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. É verdade que o nosso ordenamento não contém regra expressa sobre o assunto, aceitando-se, genericamente, a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de iliceidade.53 Concede-se, porém, proteção ao ato singular, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato singular (Einzelaktebene) mediante a utilização das chamadas fórmulas de preclusão.54 Assim, os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade. Vislumbra-se uma outra exceção expressa a esse entendimento na sentença condenatória penal, uma vez que aqui inexiste prazo, fixado pela legislação ordinária, para a propositura 50
ADIn 939, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ, 18 mar. 1994, p. 5165-6. ADIn 1.045, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 6 maio 1994, p. 10485. 52 § 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht: “(1) É legítimo o pedido de revisão criminal nos termos do Código de Processo Penal contra a sentença condenatória penal que se baseia em uma norma declarada inconstitucional (sem a pronúncia da nulidade) ou nula, ou que se assenta em uma interpretação que o Bundesverfassungsgericht considerou incompatível com a Lei Fundamental. (2) No mais, ressalvado o disposto no § 92 (2), da Lei do Bundesverfassungsgericht ou uma disciplina legal específica, subsistem íntegras as decisões proferidas com base em uma lei declarada nula, nos termos do § 78. É ilegítima a execução de semelhante decisão. Se a execução forçada tiver de ser realizada nos termos das disposições do Código de Processo Civil, aplica-se o disposto no § 767 do Código de Processo Civil. Excluem-se pretensões fundadas em enriquecimento sem causa”. 53 Cf., a propósito, RMS 17.976, Relator: Ministro Amaral Santos, RTJ n. 55, p. 744. 54 Cf., a propósito, Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit. 51
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes da revisão. Nos termos do art. 621 do Código de Processo Penal, a revisão pode ser proposta a qualquer tempo se a sentença condenatória for contrária a texto expresso da lei penal. Esse fundamento abrange, inequivocamente, a sentença penal condenatória proferida com base na lei inconstitucional.55 Essa constatação mostra também que a preservação dos efeitos dos atos praticados com base na lei inconstitucional passa por uma decisão do legislador ordinário. É ele quem define, em última instância a existência e os limites das fórmulas de preclusão, fixando ipso jure os próprios limites da própria idéia de retroatividade contemplada no princípio da nulidade. Fica evidente, assim, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal procede à diferenciação entre o plano da norma (Normebene) e o plano do ato concreto (Einzelaktebene) também para excluir a possibilidade de anulação deste em virtude da inconstitucionalidade do ato normativo que lhe dá respaldo. Admite-se que uma das causas que pode dar ensejo à instauração da ação rescisória no âmbito do processo civil — violação a literal disposição de lei (art. 485, V, do CPC) — contempla, também, a inconstitucionalidade de uma lei na qual se fundou o juiz para proferir a decisão transitada em julgado.56 Todavia, a rescisão de sentença proferida com base em uma lei considerada inconstitucional somente pode ser instaurada dentro do prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado da decisão (CPC, arts. 485 e 495). No modelo consagrado pelo § 79, (3), da Lei do Bundesverfassungsgericht, admite-se a possibilidade de que a execução de sentença calcada em lei inconstitucional seja impugnada mediante embargos à execução (CPC alemão, § 767). Inicialmente, a impugnação de sentença trânsita em julgado, no sistema brasileiro, somente haveria de se verificar por via de ação rescisória. Em julgado de 13 de setembro de 1968, explicitou-se essa orientação: “A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional. Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação rescisória, sendo impróprio o mandado de segurança (...)”.57 Esse entendimento foi reiterado posteriormente, enfatizando-se que a execução judicial de uma decisão transitada em julgado não pode ser obstada com a oposição de embargos, uma vez que a nulidade dessa decisão deve ser aferida do âmbito da ação rescisória58. Em acórdão mais recente, ressaltou-se que “a execução (...) está amparada no respeito à coisa julgada, que se impõe ao Juízo executante, e que impede que, sobre ela (e até que venha a ser regularmente desconstituída a sentença que lhe deu margem), tenha eficácia o acórdão posterior desta Corte”.59 A Medida Provisória nº 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, introduziu regra segundo a qual, para os fins de execução judicial, “considera-se inexigível o título judicial fundado 55
HC 45.232, Relator: Ministro Themístocles Cavalcanti, RTJ n. 44, p. 322 e s. MS 17.976, Relator: Ministro Amaral Santos, RTJ n. 55, p. 744 e s.; RE 86.056, Relator: Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 1º. jul.1977. 57 RMS 17.076, Relator: Ministro Amaral Santos, RTJ n. 55, p. 744. 58 RE 86.056, Relator: Ministro Rodrigues Alckmin, DJ, 1.o jul. 1977. 59 Recl. 148, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 109, p. 463. 56
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal”. (art. 741, parágrafo único do CPC; art. 836, parágrafo único, CLT). Assim sendo, ressalvada a hipótese de uma declaração de inconstitucionalidade com limitação de efeitos (art. 27, Lei 9.868/ 99), a declaração de nulidade (com eficácia ex tunc) em relação a sentenças já transitadas em julgado poderá ser invocada, eficazmente, tanto em ação rescisória, como nos embargos à execução. Às vezes, invoca-se diretamente fundamento de segurança jurídica para impedir a repercussão da decisão de inconstitucionalidade sobre as situações jurídicas concretas. Nessa linha tem-se asseverado a legitimidade dos atos praticados por oficiais de justiça investidos na função pública por força de lei posteriormente declarada inconstitucional. No RE nº 79.620, da relatoria de Aliomar Baleeiro, declarou-se ser "válida a penhora feita por agentes do Executivo, sob as ordens dos juízes, nos termos da lei estadual de São Paulo s/nº, de 3.12.71, mormente se nenhum prejuízo disso adveio para o executado.60 Orientação semelhante foi firmada no RE nº 78.594, da relatoria de Bilac Pinto, assentando-se que, "apesar de proclamada a ilegalidade da investidura do funcionário público na função de oficial de justiça, em razão da declaração de inconstitucionalidade da lei estadual que autorizou tal designação, o ato por ele praticado é válido”.61 Em outros termos, razões de segurança jurídica podem obstar à revisão do ato praticado com base na lei declarada inconstitucional.62 Registre-se ainda, por amor à completude, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal contempla, uma peculiaridade no que se refere aos efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade da lei concessiva de vantagens a segmentos do funcionalismo, especialmente aos magistrados. Anteriormente já havia o Supremo Tribunal afirmado que "a irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados garante, sobretudo, o direito que já nasceu e que não pode ser suprimido sem que sejam diminuídas as prerrogativas que suportam o seu cargo".63 Por essa razão, tal garantia superaria o próprio efeito ex tunc da declaração de inconstitucionalidade da norma.64 Decisão mais recente, publicada em 08.04.1994, também relativa à remuneração de magistrados, retrata entendimento no sentido de que a "retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade 60
RE n. 79.620, Relator: Ministro Aliomar Baleeiro, DJ, 13.12.74; Cf., também, RE n. 78.809, Relator: Ministro Aliomar Baleeiro, DJ, 11.10.74. 61 RE n. 78.594, Relator: Ministro Bilac Pinto, DJ, 04.11.74. 62 No âmbito do Direito Administrativo tem-se acentuado que, não raras vezes, fica a Administração impedida de rever o ato ilegítimo por força do princípio da segurança jurídica. Nesse sentido, convém mencionar o magistério de Hans-Uwe Erichsen: "O princípio da legalidade da Administração é apenas um dentre os vários elementos do princípio do Estado de Direito. Esse princípio contém, igualmente, o postulado da segurança jurídica (Rechtssicherheit und Rechtsfriedens), do qual se extrai a idéia de proteção da confiança. Legalidade e segurança jurídica enquanto derivações do princípio do Estado de Direito têm o mesmo valor e a mesma hierarquia. Disso resulta que uma solução adequada para o caso concreto depende de um juízo de ponderação que leve em conta todas as circunstâncias que caracterizam a situação singular" (in: Hans-Uwe Erichsen e Wolfgang Martens, Allgemeines Verwaltungsrecht, 6a. edição, Berlim, p. 240). 63
RE n. 105.789, Relator: Ministro Carlos Madeira, RTJ 118, p. 301.
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RE n. 105.789, Relator: Ministro Carlos Madeira, RTJ 118, p. 301.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes inquestionada da lei declarada inconstitucional -- mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade”.65 Essa tentativa, um tanto quanto heterodoxa, de preservar as vantagens pecuniárias já pagas a servidores públicos, com base numa lei posteriormente declarada inconstitucional, parece carecer de fundamentação jurídica consistente em face da doutrina da nulidade da lei inconstitucional. Ela demonstra, ademais, que o Tribunal, na hipótese, acabou por produzir uma mitigação de efeitos com base em artifícios quase que exclusivamente retóricos. Mais apropriado seria reconhecer que, nos casos referidos, a retroatividade plena haveria de ser afastada com fundamento no princípio da segurança jurídica, que, como se sabe, também entre nós é dotado de hierarquia constitucional (expressão do Estado de Direito).
1.1.5. A declaração de constitucionalidade das leis
Embora na exposição de motivos que encaminhou a proposta de Emenda Constitucional n. 16/65 tenha o Governo acentuado que a representação, limitada em sua iniciativa, teria o mérito de facultar desde logo a definição da controvérsia constitucional sobre leis novas, formando precedente que orientaria o julgamento de processos congêneres66, a doutrina constitucional brasileira não conferiu maior atenção à decisão que reconhecia a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei no processo de controle abstrato de normas. Considerando que o conteúdo e os efeitos da decisão foram disciplinados apenas de forma fragmentada nas diferentes disposições, não lograram doutrina e jurisprudência precisar, inicialmente, o significado dogmático da declaração de constitucionalidade no juízo abstrato67. Posteriormente, passou o Tribunal a admitir que as decisões de inconstitucionalidade proferidas no processo de controle abstrato de normas tinham eficácia erga omnes, deixando, assim, de submetê-las ao Senado Federal68. É que, ao contrário do que se verifica em alguns sistemas, o Supremo Tribunal não se limita a declarar a improcedência da ação, afirmando expressamente a constitucionalidade da norma por decisão de maioria qualificada (seis votos), presentes pelo menos oito integrantes da Corte. Era o que dispunham os arts. 143 e 173 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e agora o art. 23 da Lei n. 9.868/99. Essa orientação corresponde, sem dúvida, à natureza do processo de controle abstrato de normas, que se destina não só a eliminar da ordem jurídica, pronta e eficazmente, a lei inconstitucional, mas também a espancar, de forma definitiva, dúvidas porventura surgidas sobre a 65
RE 122.202, Relator: Ministro Francisco Rezek, DJ, 08.04. 94. 66 Cf. Constituição (1946): Emendas. Emendas à Constituição de 1946, n. 16: Reforma do Poder Judiciário, Brasília, Câmara dos Deputados, 1968, p. 19 (24). 67 Cf., a propósito, Buzaid, Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1958, p. 87; Carlos Alberto Lucio Bittencourt, O controle jurisdicional, cit., p. 143. 68 Parecer do Ministro Rodrigues Alckmin, de 19-6-1975 (sessão administrativa), DJ, 16 maio 1977, p. 3124; Parecer do Ministro Moreira Alves, de 11-11-1975 (sessão administrativa), DJ, 16 maio 1977, p. 3123. Ver, também, O. A. Bandeira de Mello, Teoria das Constituições rígidas, 2. ed., São Paulo, Bushatsky, 1980, p. 213. Em 18-6-1977, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Thompson Flores, determinou que as comunicações ao Senado Federal, para os fins do art. 42, VII, da Constituição de 1967/69, se restringissem às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidenter tantum (cf. Alencar, A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos inconstitucionais, Revista de Informação Legislativa, 1978, 57:260 (305).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes constitucionalidade das leis válidas69. Tal entendimento parece tanto mais plausível se se considera que o Supremo Tribunal Federal não está adstrito, no controle abstrato de normas, aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expendidos na inicial70.
1.1.5.1. A declaração de constitucionalidade e a “lei ainda constitucional” Em decisão de 23 de março de 1994, teve o Supremo Tribunal Federal oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a Defensoria Pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados71. Assim, o Relator, Sydney Sanches, ressaltou que a inconstitucionalidade do § 5º do art. 5º da Lei n. 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, acrescentado pela Lei n. 7.871, de 8 de novembro de 1989, não haveria de ser reconhecida, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, “ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível da organização do respectivo Ministério Público”. Da mesma forma se pronunciou Moreira Alves, como se pode depreender da seguinte passagem de seu voto: “A única justificativa que encontro para esse tratamento desigual em favor da Defensoria Pública em face do Ministério Público é a de caráter temporário: a circunstância de as Defensorias Públicas ainda não estarem, por sua recente implantação, devidamente aparelhadas como se acha o Ministério Público. Por isso, para casos como este, parece-me deva adotar-se a construção da Corte Constitucional alemã no sentido de considerar que uma lei, em virtude das circunstâncias de fato, pode vir a ser inconstitucional, não o sendo, porém, enquanto essas circunstâncias de fato não se apresentarem com a intensidade necessária para que se tornem inconstitucionais. Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a Defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar”.
Afigura-se, igualmente, relevante destacar o voto de Sepúlveda Pertence, que assim feriu a questão: “No Habeas Corpus 67.930, quando o Tribunal afirmou a subsistência, sob a Constituição de 88, da legitimação de qualquer do povo, independentemente de qualificação profissional e capacidade postulatória, para a impetração de habeas corpus, tive oportunidade de realçar essa situação de fato da Defensoria Pública. 69
Essa orientação, que é dominante na doutrina germânica, parece corresponder, tal como demonstrado acima, à natureza e aos objetivos do processo de controle abstrato adotado no Brasil desde a Emenda n. 16, de 1965. Deve-se assinalar, porém, que a doutrina constitucional italiana e, mais recentemente, a doutrina espanhola e a portuguesa atribuem eficácia extremamente reduzida à “sentença de rejeição de inconstitucionalidade”. Tal como observado por Zagrebelzky, “le decisioni di rigetto della corte costituzionale possegono dunque un’efficacia assai limitata, e comunque non paragonabile a quella propria del giudicato di cui sono fornite regola sentenze della giurisdizione comune” (La giustizia costituzionale, Bologna, 1977, p. 185). Também Bocanegra Sierra rejeita a possibilidade de se outorgar eficácia à sentença confirmatória da constitucionalidade, porquanto “esa sentencia dispondría de un valor superior al de las leyes mismas, un valor constitucional totalmente inaceptable en un instrumento jurídico de esa clase, que vendría a poner en cuestión, por lo demás, muy seriamente, el progreso y la capacidad de cambio y adaptación de la Constitución, al volver definitivamente el sistema hacia uno de los polos que en esta materia entran en tensión” (cf. Raul Sierra Bocanegra, El valor de las sentencias del Tribunal Constitucional, Madrid, 1982, p. 254). No mesmo sentido é a opinião de Gomes Canotilho e de Jorge Miranda em relação à sentença de rejeição de inconstitucionalidade proferida pela Corte Constitucional portuguesa (Canotilho, Direito constitucional, 5. ed., Coimbra, 1992, p. 1089; Miranda, Manual de direito constitucional, 2. ed., Coimbra, 1983, t. 2, p. 384). 70 Cf., a propósito, Mendes, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade, cit., p. 268. 71 HC 70.514, j. 23-3-1994.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes E, por isso, ao acompanhar o eminente Relator acentuei que, dada essa pobreza dos serviços da Assistência Judiciária, e até que ela venha a ser superada, a afirmação da indispensabilidade do advogado, para requerer habeas corpus, que seria o ideal, viria, na verdade, a ser um entrave de fato, à salvaguarda imediata da liberdade. Agora, em situação inversa, também esse mesmo estado de fato me leva, na linha dos votos até aqui proferidos, com exceção do voto de Marco Aurélio — a quem peço vênia —, a acompanhar o eminente Relator e rejeitar a prejudicial de inconstitucionalidade rebus sic stantibus”.
Ressalvou-se, portanto, de forma expressa, a possibilidade de que o Tribunal possa vir a declarar a inconstitucionalidade da disposição em apreço, uma vez que a afirmação sobre a legitimidade da norma assentava-se em uma circunstância de fato que se modifica no tempo. Posteriormente, no Recurso Extraordinário Criminal n. 147.776, da relatoria de Sepúlveda Pertence, o tema voltou a ser agitado de forma pertinente. A ementa do acórdão revela, por si só, o significado da decisão para atual evolução das técnicas de controle de constitucionalidade: “Ministério Público: Legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135.328): processo de inconstitucionalização das leis. 1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da constituição — ainda quanto teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada — subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem. 2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68, C. Pr. Penal — constituindo modalidade de assistência judiciária — deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68, C. Pr. Pen. Será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135.328”72.
Tendo em vista a relevância do caso, convém se registre a íntegra do voto proferido por Sepúlveda Pertence, verbis: “No RE 135.328 — depois dos votos do Relator originário, o em. Ministro Marco Aurélio, seguido pelos em. Ministros Rezek, Galvão e Velloso, negando a qualificação do Ministério Público para as ações cogitadas e daquele do em. Ministro Celso de Mello, em sentido contrário, proferi voto vista nestes termos: A questão deste RE está em saber, à luz do art. 129, IX, da Constituição, se foi recebido pela ordem constitucional vigente o art. 68 C. Pr. Pen. e, em conseqüência, se o Ministério Público retém a atribuição nele prevista — e a conseqüente legitimação ad causam ou capacidade postulatória, conforme seja ela entendida — para promover, a requerimento do interessado, a execução civil da sentença penal condenatória (CPP, art. 63) ou ação civil de reparação de danos ex delicto (art. 64), quando for pobre o titular da pretensão. (...) De logo, estou convencido de que a tese do Ministro Marco Aurélio — a de não caber a atribuição questionada na norma de encerramento do art. 129, IX, CF, por ser ela incompatível com as finalidades institucionais do Ministério Público — passa necessariamente — como ficou explícito no voto de S. Exa. — pelo art. 134 da Lei fundamental, que erige também a Defensoria Pública em ‘instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV’. Do fato de ser a reparação do dano resultante do crime, quando sofrido por particular, um direito privado, patrimonial e disponível, não posso extrair a inexistência de um interesse social em que se propicie ao lesado, quando desprovido de recursos, o patrocínio em juízo de sua pretensão: prova-o o art. 245 da Constituição — que, segundo as considerações de Ada Grinover, lembradas pelo Ministro Celso de Mello — 72
RECrim 147.776-8, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Lex-JSTF, 238:390.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes se alinha à preocupação internacional com a proteção da vítima de atos criminosos, ‘que transcende à satisfação pessoal, para inserir-se no quadro dos interesses que afetam a comunidade como um todo e o próprio Estado’. O aludido art. 245 da Constituição impôs ao Poder Público o dever de assumir a ‘assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crimes dolosos, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito’: parece óbvio que se a efetivação desta reclama (sic) assistência judiciária — independentemente da previsão geral do art. 5º, LXXIV — o Estado há de propiciá-la, em nome de um interesse social específico, qualificado pelo preceito da Lei Fundamental. Não obstante — como acentuou o em. Ministro Rezek — se há outra instituição do Estado votada (sic) a esse mister, não há como explicar se impunha (sic) ao fardo do Ministério Público ‘algo que não é ínsito às suas tarefas’. Redargúi, é certo, o Ministro Celso de Mello que a Constituição não outorgou às atribuições da Defensoria Pública o predicado da exclusividade. O argumento, data venia, não se me afigura decisivo. Quando a Constituição cria uma instituição lhe atribui determinado poder ou função pública, a presunção é que o faça em caráter privativo, de modo a excluir a ingerência na matéria de outros órgãos do Estado. ‘A adjudicação de prerrogativas diferentes a entidades distintas’ — ensinou Ruy (Comentários à Constituição Federal, Col. H. Pires, 1/408) —, ‘imprime ipso facto o caracter de usurpação ao ingresso de uma no domínio de outra’. Certo, no julgamento liminar da ADIn 558, de 16.08.91 (RTJ 146/434/438), de que fui relator, entendeu o Plenário, na linha do meu voto, que não usurpava a função do MP de promover a ação civil pública para a proteção de interesses coletivos a atribuição à Defensoria Pública do seu patrocínio, quando propostas por entidades civis destinadas à sua defesa: é que, no ponto, ao passo que ao Ministério Público se outorgou legitimação ativa ad causam, para agir em nome próprio, à Defensoria Pública, ao contrário, o que se conferiu foi a atribuição, tipicamente sua de assistência judiciária a terceiros, concorrentemente legitimados com o Ministério Público para aquele tipo de demanda. O mesmo, entretanto, não parece ocorrer na hipótese do art. 68, C. Pr. Penal: aqui, a subordinação da ação do Ministério Público ao requerimento do interessado indica cuidar-se de patrocínio em juízo de demanda alheia e não de legitimação extraordinária para a causa. Impressionaram-me, contudo, na discussão que antecedeu o pedido de vista, as ponderações acerca da precariedade de fato, na maioria dos Estados, do funcionamento da assistência judiciária. Por isso, chegou-se a aventar — salvo engano em intervenção do em. Ministro Moreira Alves —, a possibilidade de condicionar-se o termo da vigência do art. 68, C. Pr. Penal a que já exista órgão de assistência judiciária, no forum competente para cada causa. A sugestão se inspira na construção germânica do processo de inconstitucionalização da lei (Cf. Gilmar F. Mendes, Controle de Constitucionalidade, 1990, p. 88 ss.; J. C. Béguin, Le Contrôle de Constitutionalité des Lois en R. F. F. d’Allemagne, 1982, p. 273 ss.; Wolfgang Zeidler, relatório VII Conf. dos Tribunais Constitucionais Europeus, em Justiça Constitucional e Espécies, Conteúdo e Efeitos das Decisões sobre a Constitucionalidade de Normas, Lisboa, 1987, 2ª parte, p. 47, 62 ss.). Tenho o alvitre como fértil e oportuno.”
Em seguida, arrematou Sepúlveda Pertence, com peculiar precisão: “O caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou ainda, na hipótese de lei ordinária pré-constitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da perda de vigência desde a data da Constituição. Essas alternativas radicais — além dos notórios inconvenientes que gera — faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia limitada —, subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem. É tipicamente o que sucede com as normas constitucionais que transferem poderes e atribuições de uma instituição preexistente para outra criada pela Constituição, mas cuja implantação real pende não apenas de legislação infraconstitucional, que lhe dê organização normativa, mas também de fatos materiais que lhe possibilitem atuação efetiva.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Isso o que se passa com a Defensoria Pública, no âmbito da União e no da maioria das Unidades da Federação. Certo, enquanto garantia individual do pobre e correspondente dever do Poder Público, a assistência judiciária alçou-se ao plano constitucional desde o art. 141, § 35, da Constituição de 1946 e subsistiu nas cartas subseqüentes (1967, art. 150, § 32; 1969, art. 153, § 32) e na Constituição em vigor, sob a forma ampliada de ‘assistência jurídica integral’ (art. 5º, LXXIV). Entretanto, é inovação substancial do texto de 1988 a imposição à União e aos Estados da instituição da Defensoria Pública, organizada em carreira própria, com membros dotados da garantia constitucional da inamovibilidade e impedidos do exercício privado da advocacia. O esboço constitucional da Defensoria Pública vem de ser desenvolvido em cores fortes pela LC 80, de 12.1.94, que, em cumprimento do art. 134 da Constituição, ‘organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados’. Do diploma se infere a preocupação de assimilar, quanto possível, o estatuto da Defensoria e o dos seus agentes aos do Ministério Público: assim, a enumeração dos mesmos princípios institucionais de unidade, indivisibilidade e independência funcional (art. 3º); a nomeação a termo, por dois anos, permitida uma recondução, do Defensor Público Geral da União (art. 6º) e do Distrito Federal (art. 54); a amplitude das garantias e prerrogativas outorgadas aos Defensores Públicos, entre as quais, de particular importância, a de ‘requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições’ (arts. 43, X; 89, X e 128, X). A Defensoria Pública ganhou, assim, da Constituição e da lei complementar, um equipamento institucional incomparável — em termos de adequação às suas funções típicas —, ao dos agentes de outros organismos públicos — a exemplo da Procuradoria de diversos Estados —, aos quais se vinha entregando individualmente, sem que constituíssem um corpo com identidade própria, a atribuição atípica da prestação de assistência judiciária aos necessitados. Ora, no direito pré-constitucional, o art. 68, C. Pr. Pen. — ao confiá-lo ao Ministério Público —, erigiu em modalidade específica e qualificada de assistência judiciária o patrocínio em juízo da pretensão reparatória do lesado pelo crime. Estou em que, no contexto da Constituição de 1988, essa atribuição deva efetivamente reputar-se transferida do Ministério Público para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68, C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente. O caso concreto é de São Paulo, onde, notoriamente, não existe Defensoria Pública, persistindo a assistência jurídica como tarefa atípica de Procuradores do Estado. O acórdão — ainda não publicado — acabou por ser tomado nesse sentido por unanimidade, na sessão plenária de 1.6.94, com a reconsideração dos votos antes proferidos em contrário. Ora, é notório, no Estado de São Paulo a situação permanece a mesma considerada no precedente: à falta de Defensoria Pública instituída e implementada segundo os moldes da Constituição, a assistência judiciária continua a ser prestada pela Procuradoria-Geral do Estado ou, na sua falta, por advogado”73. Fica evidente, aqui, que a nossa Corte deu um passo significativo rumo à flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, introduzindo, ao lado da fórmula apodítica da declaração de inconstitucionalidade, o reconhecimento de um estado imperfeito, insuficiente para justificar a declaração de ilegitimidade da lei.
1. 2. EFEITOS DA DECISÃO NO CONTROLE ABSTRATO ____________________________________________________________________________ Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração 73
RECrim 147.776-8, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Lex-JSTF, 238:390-9 (393-7).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
1.2.1.Histórico O texto inscrito na Lei n. 9.868/99 é resultado da proposta constante do Projeto de Lei n. 2.960/97. Na Exposição de Motivos do aludido projeto afirmava-se, a propósito: “ [...] Coerente com evolução constatada no Direito Constitucional comparado, a presente proposta permite que o próprio Supremo Tribunal Federal, por uma maioria diferenciada, decida sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, de outro (art. 27). Assim, o princípio da nulidade somente será afastado “in concreto” se, a juízo do próprio Tribunal, se puder afirmar que a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional. Entendeu, portanto, a Comissão que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ez nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g.: lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional.[...]”74 O projeto continha disposição que autorizava o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de estabelecer que ela tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, desde que tal deliberação seja tomada pela maioria de dois terços de seus membros. O Tribunal tem apontado as insuficiências existentes no âmbito das técnicas de decisão no processo de controle de constitucionalidade. É que, como anotado, com precisão por Sepúlveda Pertence, “a alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo (...).”75 Essa deficiência se mostrou igualmente notória, na decisão de 23.3.94, na qual o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a defensoria pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados.76 74
Exposição de Motivos nº 189, de 07.04.1997, ao Projeto de Lei nº 2960, de 1997. RE 14.7776, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 19.06.1998. 76 HC no 70.514, julgamento em 23.03.94. 75
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Tais decisões demonstram que a criação de nova técnica de decisão decorre do próprio sistema constitucional, especialmente do complexo processo de controle de constitucionalidade das leis adotado entre nós. Coerente com evolução constatada no Direito Constitucional comparado, a proposta permitia que o próprio Supremo Tribunal Federal, por uma maioria diferenciada, decida sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo um juízo rigoroso de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional, de um lado, e os postulados da segurança jurídica e do interesse social, de outro (art. 27). Assim, o princípio da nulidade somente será afastado “in concreto” se, a juízo do próprio Tribunal, se puder afirmar que a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional. Entendeu, portanto, a Comissão que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g.: lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional”. Promulgada a Lei n.9868, de 10.11.99, a Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL e a Ordem dos Advogados do Brasil propuseram ações diretas de inconstitucionalidade contra alguns dispositivos da referida lei, dentre eles o próprio artigo 27.77
1.2.2. A questão dos efeitos da decisão no direito comparado A falta de um instituto que permita estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade acaba por obrigar os Tribunais, muitas vezes, a se abster de emitir um juízo de censura, declarando a constitucionalidade de leis manifestamente inconstitucionais. Por isso, assevera Garcia de Enterría, que "a alternativa à prospectividade das sentenças não é, pois, a retroatividade das mesmas, mas a abstenção na descoberta de novos critérios de efetividade da Constituição, o estancamento (estagnação) na sua interpretação, a renúncia, pois, a que os tribunais constitucionais cumpram uma de sua funções capitais, a de fazer uma constituição viva, a de adaptá-la paulatinamente às novas condições sociais" 78. 1.2.2.1. A questão no direito americano É interessante notar que, nos próprios Estados Unidos da América, onde a doutrina acentuara tão enfaticamente a idéia de que a expressão “lei inconstitucional” configurava uma contradictio in terminis, uma vez que “the inconstitutional statute is not law at all”79, passou-se a admitir, após a Grande Depressão, a necessidade de se estabelecerem limites à declaração de inconstitucionalidade.80 A Suprema Corte americana vem considerando o problema proposto pela eficácia retroativa de juízos de inconstitucionalidade a propósito de decisões em processos 77
Cf. ADIns nº 2154 e 2258, Rel Min. Sepúlveda Pertence, ainda não julgadas.
78
Garcia de Enterría,Eduardo. Justicia Constitucional, la doctrina prospectiva en la declaración de ineficacia de las leyes inconstitucionales, RDP 92, p.5 (14). 79 Willoughby, Westel Woodbury. The Constitutional Law of the United States, New York, 1910, v. 1, p. 910; cf., e. Cooley, Thomas M., Treaties on the Constitutional Limitations, 1878, p. 227. 80
Tribe, Laurence. The American Constitutional Law, The Foundation Press, Mineola, New York,1988.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes criminais. Se as leis ou atos inconstitucionais nunca existiram enquanto tais, eventuais condenações nelas baseadas quedam ilegítimas, e, portanto, o juízo de inconstitucionalidade implicaria a possibilidade de impugnação imediata de todas as condenações efetuadas sob a vigência da norma inconstitucional. Por outro lado, se a declaração de inconstitucionalidade afeta tão-somente a demanda em que foi levada a efeito, não se há que cogitar de alteração de julgados anteriores. Sobre o tema, afirma Tribe: “No caso Linkletter v. Walker, a Corte rejeitou ambos os extremos: ‘a Constituição nem proíbe nem exige efeito retroativo.’ Parafraseando o Justice Cardozo pela assertiva de que ‘a constituição federal nada diz sobre o assunto’, a Corte de Linkletter tratou da questão da retroatividade como um assunto puramente de política (política judiciária), a ser decidido novamente em cada caso. A Suprema Corte codificou a abordagem de Linkletter no caso Stovall v. Denno: ‘Os critérios condutores da solução da questão implicam (a) o uso a ser servido pelos novos padrões, (b) a extensão da dependência das autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei com relação aos antigos padrões, e (c) o efeito sobre a administração da justiça de uma aplicação retroativa dos novos padrões”. 81 Ressalte-se que Linkleter havia sido condenado com base em sistema de provas que, posteriormente, a Suprema Corte veio a considerar contrário ao princípio do due process of law. Com base nessa orientação, Linkleter pediu a revisão do seu caso, o que lhe foi negado pela Suprema Corte, forte no argumento de que a pretensão formulada não tinha fundamento constitucional (a questão dos efeitos não tinha definição constitucional)82. Em verdade, toda a polêmica surgiu com o caso Mapp v. Ohio 367 US 643 (1961), no qual o a Suprema Corte reconheceu que, em consonância com a 4a.Emenda, a prova obtida ilegalmente não seria admissível em um juízo penal. Restou, assim, superada a doutrina estabelecida em Wolf v. Colorado, 338 US 25 (1949). Como era de se esperar, inúmeras petições de habeas corpus foram apresentadas com o objetivo de assegurar a aplicação retroativa do precedente Mapp nos casos já julgados.83 Daí ter afirmado o juiz Clark que as regras fixadas em Mapp tinham como objetivo desestimular as ações ilegais da polícia, proteger a privacidade das vítimas e ensejar que os órgãos federais e estaduais operassem com base nos mesmos padrões jurídicos. Conferir a Mapp efeitos retroativos, na opinião de Clark, acabaria por quebrantar a confiança que órgãos do Estado depositaram em Wolf v. Colorado e imporia uma desmedida carga de trabalho para administração da Justiça84. A condenação de Dolree Mapp foi obtida com base em evidências obtidas pela polícia quando adentraram sua residência, em 1957, apesar de não disporem de mandado de busca e apreensão. A Suprema Corte, contrariando o julgamento da 1a. instância, declarou que a ´regra de exclusão’ (baseada na 4a.Emenda da Constituição), que proíbe o uso de provas obtidas por meios ilegais nas Cortes federais, deveria ser estendida também às Cortes estaduais. A decisão provocou muita controvérsia, mas os proponentes da ´regra de exclusão’ afirmavam constituir esta a única forma de assegurar que provas obtidas ilegalmente não fossem utilizadas.
81
Tribe, American Constitutional Law, cit., p.30. Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., RDP 92, p. 5. 83 Cf. Sesma, Victoria Iturralde, El Precedente en el Common Law, Madri, 1995, p. 173. 84 Sesma, El Precedente, cit., p. 173. 82
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes A decisão de Mapp v. Ohio superou o precedente Wolf v. Colorado, 338 U.S. 25 (1949), tornando a regra obrigatória aos Estados, e àqueles acusados, cujas investigações e processos não tinham atendido a estes princípios, era conferido o direito de habeas corpus. Em 1965 a Suprema Corte americana julgou o caso Linkletter v. Walker, 381 U.S. 618, onde um condenado por arrombamento na Corte de Louisiana requereu o direito de habeas corpus , com fundamento na decisão do caso Mapp v. Ohio. A Suprema Corte decidiu contrariamente à aplicação retroativa da norma, naqueles casos com julgamento final anterior à decisão proferida em Mapp. Essa mudança foi descrita por Christina Aires Lima em sua dissertação de Mestrado, “O Princípio da Nulidade das Leis Inconstitucionais”: “Apesar do entendimento da Corte Federal do Distrito de Lousiana e da Corte de Apelação do Estado, de que no caso Linkletter as investigações sobre a pessoa e bens do acusado foram feitas de modo ilegal, tais Cortes decidiram que a regra estabelecida no caso Mapp não poderia ser aplicada retroativamente às condenações das cortes estaduais, que se tornaram finais antes do anúncio da decisão do referido precedente. As decisões dessas Cortes foram fundadas no entendimento de que, conferir-se efeito retroativo aos casos que tiveram julgamento final antes da decisão do caso Mapp, causaria um enorme e preocupante problema para a administração da Justiça. A Suprema Corte americana admitiu o certiorari requerido por Linkletter, restrito à questão de saber se deveria, ou não, aplicar efeito retroativo à decisão proferida no caso Mapp.” (Lima, Christina Aires Corrêa. O Princípio da Nulidade das Leis Inconstitucionais, UnB, 2000, p. 84) Ao justificar o indeferimento da aplicação da norma retroativamente, a opinião majoritária da Corte Suprema americana, no julgamento do caso Linkletter v. Walker, foi no seguinte sentido: “Uma vez aceita a premissa de que não somos requeridos e nem proibidos de aplicar uma decisão retroativamente, devemos então sopesar os méritos e deméritos em cada caso, analisando o histórico anterior da norma em questão, seu objetivo e efeito, e se a operação retrospectiva irá adiantar ou retardar sua operação. Acreditamos que essa abordagem é particularmente correta com referência às proibições da 4a. Emenda, no que concerne às buscas e apreensões desarrazoadas. Ao invés de ‘depreciar’ a Emenda devemos aplicar a sabedoria do Justice Holmes que dizia que ‘na vida da lei não existe lógica: o que há é experiência’.” (United States Reports, Vol. 381, p. 629). E mais adiante ressaltou: “A conduta imprópria da polícia, anterior à decisão em Mapp, já ocorreu e não será corrigida pela soltura dos prisioneiros envolvidos. Nem sequer dará harmonia ao delicado relacionamento estadual-federal que discutimos como parte do objetivo de Mapp. Finalmente, a invasão de privacidade nos lares das vítimas e seus efeitos não podem ser revertidos. A reparação chegou muito tarde.” (United States Reports, Vol. 381, p. 637).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Segundo a doutrina, a jurisprudência americana evoluiu para admitir, ao lado da decisão de inconstitucionalidade com efeitos retroativos amplos ou limitados (limited retrospectivity), a superação prospectiva (prospective overruling), que tanto pode ser limitada (limited prospectivity)85, aplicável aos processos iniciados após a decisão, inclusive ao processo originário, como ilimitada (pure prospectivity), que sequer se aplica ao processo que lhe deu origem.86 Vê-se, pois, que o sistema difuso ou incidental mais tradicional do mundo passou a admitir a mitigação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e, em casos determinados, acolheu até mesmo a pura declaração de inconstitucionalidade com efeito exclusivamente pro futuro87. 1.2.2.2. A questão no direito austríaco O modelo austríaco não reconhece caráter meramente declaratório à pronúncia de inconstitucionalidade41. Já em 1932 deixava assente o Verfassungsgerichtshof que “uma lei contrária à Constituição não é inválida, ou melhor, não é absolutamente nula, mas sim um ato inconstitucional, que preserva a força jurídica até a sua cassação” (Ein Gesetz, das der Verfassung widerspricht, ist nicht, ungultig, ist also nicht absolut nichtig, sondern ein zwar verfassungswidriger, aber bis zur allfälligen Aufhebung rechtsverbindlicher Akt)42. E, por isso, afirma-se, com exatidão, que o Verfassungsgerichtshof exerce o papel de um legislador negativo (negativer Gesetzgeber)43. A cassação (ou anulação) da lei inconstitucional tanto pode ser total quanto parcial. A interpretação conforme à Constituição é utilizada pela Corte Constitucional, excluindo-se a possibilidade de aplicar-se a lei com o sentido reputado inconstitucional44. Não raras vezes o Tribunal rompe com esse papel de legislador negativo, estabelecendo a única interpretação compatível com o texto constitucional45. A pronúncia de inconstitucionalidade tem eficácia ex nunc (a contar da data da publicação do julgado), salvo se o Tribunal estabelecer prazo para a entrada em vigor da cassação (Constituição, art. 140, par. 5º, 2º período). De qualquer forma, esse prazo não poderá exceder de dezoito meses (art. 140, par. 5º, 3º período). Não obstante, reconhece-se eficácia retroativa à decisão proferida no caso concreto. Entende-se que o conceito de caso concreto não se restringe ao processo que deu ensejo à pronúncia de inconstitucionalidade, abrangendo os demais processos pendentes perante a Corte por ocasião do julgamento46. Evidentemente, a lei cuja cassação foi pronunciada pela Corte Constitucional continua a ter aplicação aos fatos anteriormente verificados, salvo expressa ressalva do Tribunal (Constituição, arts. 140, par. 7º, e 139, par. 6º)47. Finalmente, afigura-se relevante anotar que a decisão cassatória poderá repristinar diploma revogado pela lei agora julgada inconstitucional, tal como assente no art. 140, par. 6º, da Constituição48. Nos termos do referido preceito, que se propõe a evitar uma situação de vácuo legislativo49, a repristinação da lei deverá ser ordenada pelo Tribunal, salvo se isso não se afigurar recomendável. Todavia, a repristinação mostra-se, as mais das vezes, problemática ou impossível, sobretudo quando se cuida de inconstitucionalidade parcial50. 85
Victoria Iturralde Sesma observa que a adoção da doutrina quase prospectiva tem como objetivos indicar que se trata de uma decisão, não de um mero dictum e oferecer algum inventivo aos litigantes na busca da revisão das normas existentes (El Precedente, cit., p. 182). 86 Palu, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade, São Paulo 2a. ed., 2001, p. 173; Medeiros,Rui. A Decisão de Inconstitucionalidade, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999. 87 Cf. a propósito, Sesma, El Precedente, cit., p. 174 s.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes A propósito, é interessante a resenha apresentada pelo Professor Rui Medeiros, em seu rico estudo sobre a “Decisão de Inconstitucionalidade”: “No ordenamento austríaco, a anulação da lei inconstitucional tem, em regra, eficácia ex nunc. Mas esta regra não vale ilimitadamente. Já se disse atrás que a decisão de inconstitucionalidade tem eficácia retroactiva em relação ao caso que esteve na base do controlo concreto da constitucionalidade da lei (entendido em termos amplos) e que o Tribunal Constitucional pode ainda optar com eficácia pro praeterito. É tempo agora de sublinhar que, nos termos do nº 5 do art. 140 da respectiva Constituição, o Tribunal Constitucional austríaco pode fixar, na sentença anulatória de uma lei, um prazo de até 18 meses durante o qual a lei inconstitucional continue a produzir os seus efeitos. E, se assim for, a lei deve ser aplicada a todos os factos ocorridos até ao termo desse prazo, com excepção do caso pretexto, por força do nº 7 do mesmo artigo”88;
1.2.2.3. A questão no direito espanhol Embora nem a Constituição espanhola nem a lei orgânica da Corte Constitucional tenham adotado expressamente uma declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos, a Corte Constitucional, marcadamente influenciada pela experiência constitucional alemã, passou a adotar, desde 1989, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, como reportado por Garcia de Enterría: “A recente publicação no Boletim Oficial do Estado de 2 de março último da já famosa Sentença 45/1989, de 20 de fevereiro, sobre inconstitucionalidade do sistema de liquidação conjunta do imposto sobre a renda da unidade familiar matrimonial, permite aos juristas uma reflexão pausada sobre esta importante decisão do Tribunal Constitucional, objeto já de múltiplos comentários periodísticos. A decisão é importante, com efeito, por seu fundamento, a inconstitucionalidade que declara, tema no qual não haver sido produzido até agora, discrepância alguma. Mas parece-me bastante mais importante ainda pela inovação que se supõe na determinação dos efeitos dessa inconstitucionalidade, que a sentença remete ao que se indica no décimo-primeiro fundamento e este explica como uma eficácia para o futuro, que não permite reabrir as liquidações administrativas ou dos próprios contribuintes (auto-liquidações) anteriores”89. Na mesma linha de entendimento, a Corte constitucional tem declarado a inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade de dispositivos constantes de leis orçamentárias. Assim, na STC 13/92/17 assentou-se que “a anulação dessas dotações orçamentárias poderia acarretar graves prejuízos e perturbações aos interesses gerais, também na Catalunha, afetando 88 89
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 681. Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., RDP n. 92, p. 5.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes situações jurídicas consolidadas e particularmente a política econômica e financeira do Estado” 90 1.2.2.4. A questão no direito português No Direito português, reconhece-se expressamente, a possibilidade de o Tribunal Constitucional limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos no art. 282, (4), da Constituição: “Quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos nº 1 e 2.”. Vale registrar, a propósito, a opinião abalizada de Jorge Miranda: “A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização. Uma norma como a do art. 282, nº 4, aparece, portanto, em diversos países, senão nos textos, pelo menos na jurisprudência. Como escreve Bachof, os tribunais constitucionais consideramse não só autorizados mas inclusivamente obrigados a ponderar as suas decisões, a tomar em consideração as possíveis conseqüências destas. É assim que eles verificam se um possível resultado da decisão não seria manifestamente injusto, ou não acarretaria um dano para o bem público, ou não iria lesar interesses dignos de proteção de cidadãos singulares. Não pode entender-se isto, naturalmente, como se os tribunais tomassem como ponto de partida o presumível resultado da sua decisão e passassem por cima da Constituição e da lei em atenção a um resultado desejado. Mas a verdade é que um resultado injusto, ou por qualquer outra razão duvidoso, é também em regra — embora não sempre — um resultado juridicamente errado.”91 Deve-se anotar que, além de razões estritamente jurídicas – segurança jurídica e eqüidade –, o constituinte português consagrou, aparentemente, uma cláusula justificadora da limitação de efeito também de caráter político – o interesse público de excepcional relevo.92 Ressalte-se, ademais, que o instituto vem tendo ampla utilização, desde a sua adoção. Segundo Rui Medeiros, entre 1983 e 1986, quase um terço das declarações de inconstitucionalidade 90
Campo, Javier Jiménez .Que hacer con la ley inconstitucional, in: La sentencia sobre la constitucionalidad de la ley, Madri, 1997, p. 15 (64). 91 Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional, 3. ed., Coimbra, 1991, t. 2, p. 500-2. 92 Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 704.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes com força obrigatória geral tiveram efeitos restritos. Essa tendência mantém-se também entre 1989 e 1997: das 50 declarações de inconstitucionalidade proferidas em processos de controle abstrato de normas pelo menos 18 teriam sido com limitação de efeitos.93 A despeito do caráter de cláusula geral ou conceito jurídico indeterminado que marca o art. 282 (4), da Constituição portuguesa, a doutrina e jurisprudência entendem que a margem de escolha conferida ao Tribunal para a fixação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade não legitima a adoção de decisões arbitrárias, estando condicionada pelo princípio de proporcionalidade. A propósito, Rui Medeiros assinala que as três vertentes do princípio da proporcionalidade têm aplicação na espécie (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Peculiar relevo assume a proporcionalidade em sentido estrito na visão de Rui Medeiros: “A proporcionalidade nesta terceira vertente tanto pode ser perspectivada pelo lado da limitação de efeitos como pelo lado da declaração de inconstitucionalidade. Tudo se reconduz, neste segundo caso, a saber se à luz do princípio da proporcionalidade as conseqüências gerais da declaração de inconstitucionalidade são ou não excessivas. Impõe-se, para o efeito, ponderação dos diferentes interesses em jogo, e, concretamente, o confronto entre interesses afectado pela lei inconstitucional e aqueles que hipoteticamente seriam sacrificados em conseqüência da declaração de inconstitucionalidade com eficácia retroactiva e repristinatória. Todavia, ainda quanto a esta terceira vertente do princípio da proporcionalidade, não é constitucionalmente indiferente perspectivar o problema das conseqüências da declaração de inconstitucionalidade do lado da limitação de efeitos ou do lado da própria declaração de inconstitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex tunc tem, manifestamente prioridade de aplicação. Todo o sistema de fiscalização de constitucionalidade português está orientado para a expurgação de normas inconstitucionais. É, aliás, significativa a recusa de atribuição de força obrigatória geral às decisões de não inconstitucionalidade. Não basta, pois, afirmar que “o Tribunal Constitucional deve fazer um juízo de proporcionalidade, cotejando o interesse na reafirmação da ordem jurídica -- que a eficácia ex tunc da declaração plenamente potencia – com o interesse na eliminação do factor de incerteza e de insegurança – que a retroactividade, em princípio, acarreta (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 308/93)”. É preciso acrescentar que o Tribunal Constitucional deve declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral e eficácia retroactiva e repristinatória, a menos que uma tal solução envolva o sacrifício excessivo da segurança jurídica, da eqüidade ou de interesse público de excepcional relevo”.94 Acentue-se que, ao contrário do imaginado por alguns autores, também o conceito indeterminado relativo ao interesse público de excepcional relevo não é um mero conceito de índole política. Em verdade, tal como anota Rui Medeiros, a referência ao interesse público de excepcional relevo não contrariou qualquer intenção restritiva nem teve o propósito de substituir a constitucionalidade estrita por uma constitucionalidade política ou de colocar a razão de Estado 93
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 689.
94
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 703-704.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes em lugar da razão da lei. Essa opção nasceu da constatação de que “a segurança jurídica e eqüidade, não esgotavam o universo dos valores últimos do direito que, em situações manifestamente excepcionais, podiam justificar uma limitação de efeitos”. Resta, assim, evidente que o art. 282 (4), da Constituição portuguesa adota, também em relação ao interesse público de excepcional relevo, um conceito jurídico indeterminado para abarcar os interesses constitucionalmente protegidos não subsumíveis nas noções de segurança jurídica e de eqüidade. Essa orientação enfatiza que os conceitos de segurança jurídica, eqüidade e interesse público de excepcional relevo expressam valores constitucionais e não simples fórmulas de política judiciária. 95
1.2.2.5. A questão no direito alemão A doutrina considera que o princípio da nulidade da lei inconstitucional é aceito como dominante. Daí a predominância da declaração de nulidade da lei inconstitucional no sistema tedesco. Em nenhum sistema de controle de normas, seja ele incidental ou concentrado, logra-se identificar, porém, formas de decisão tão variadas como as desenvolvidas pela Corte Constitucional.96 É o que se materializa com o desenvolvimento das técnicas de apelo ao legislador e da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade. Os problemas que a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade e a decisão de apelo devem resolver foram há muito identificados na doutrina. Na literatura jurídica alemã do começo desse século pode-se constatar pelo menos uma tendência nesse sentido. Assim, sustentava Triepel, no famoso Referat sobre a “natureza e o desenvolvimento da jurisdição estatal”97, que, quanto mais política fosse determinada questão submetida à jurisdição constitucional, mais pareceria inadequada a adoção de processo judicial ordinário. “Quanto menos se falar de processo, de ação, de condenação e de cassação de atos estatais — ressaltava Triepel —, mais fácil será a resolução, na via judicial, das questões políticas, que, ao mesmo tempo, são questões jurídicas”. 98 Quase simultaneamente sustentava Walter Jellinek99 que o conteúdo normativo do artigo 13, II, da Constituição de Weimar deveria ser limitado, de modo que o Reichsgericht somente deveria decidir com base nesse preceito se a pronúncia da nulidade da lei se mostrasse apta a resolver a questão. Essa seria a hipótese se, em lugar da lei declarada inconstitucional ou nula, surgisse uma norma apta a preencher eventual lacuna do ordenamento jurídico. Do contrário, deveria o Tribunal abster-se de pronunciar a nulidade. Assim, não poderia o Tribunal declarar a nulidade de uma lei que contrariasse o art. 17 da Constituição de Weimar (princípio da eleição proporcional), uma vez
95
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade.,cit., p. 705 a 715, que, por isso, sublinha a diferença, nesse ponto, entre o direito português e o direito austríaco. 96 A Corte Constitucional austríaca detém ampla margem de discrição para dispor sobre as conseqüências jurídicas de suas decisões. Ela tanto pode estabelecer que a lei não é mais aplicável a outros processos ainda não cobertos pela coisa julgada (Constituição da Áustria, art. 140, VII, 2.o período), ou fixar prazo de até dezoito meses, dentro do qual se mostra legítima a aplicação da lei (art. 140, V e VII). 97 Triepel, Heinrich. Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, WDStRL, 5, 1929. 98
Triepel, Wesen und Entwicklung,cit., p. 26. Jellinek,Walter.Verfassung und Verwaltung des Reichs und der Länder, p. 27; cf., também, Flad, Wolfgang.Verfassungsgerichtsbarkeit und Reichsexekution, Heidelberg, 1929, p. 38.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes que “a consequência seria caos, o Estado-membro não teria uma lei eleitoral”100. Isso demonstra que, já no início deste século, existia alguma preocupação com o perigo da adoção pura e simples, pela jurisdição constitucional, das formas de decisão consagradas pela jurisdição ordinária. Tal como observado, o princípio dominante no direito alemão é o da nulidade. Se a Corte Constitucional se convencer, num dos processos de controle de normas (controle concreto de normas, controle abstrato, recurso constitucional), que o direito federal ou o direito estadual se revela incompatível com a Lei Fundamental, então ela declara a nulidade da lei nos termos do § 78, 1o período, da sua Lei de organização.101 A fórmula tradicional explicita que a lei “é inconstitucional e, por isso, nula”.102 Vincula-se, dessarte, uma determinada situação — a inconstitucionalidade — à conseqüência jurídica — a nulidade.103 A lei inconstitucional é considerada nula ipso jure.104 Embora esse entendimento não tenha encontrado expressão inequívoca nem na Lei Fundamental, nem na Lei orgânica da Corte Constitucional, sustenta a doutrina dominante, fundada no princípio da supremacia da Constituição, que deve ser conferida “hierarquia constitucional” (Verfassungsrang) ao postulado da nulidade da lei inconstitucional.105 Essa concepção vem sendo atacada, nos últimos tempos, sobretudo com a alegação de que o dever imposto ao juiz para submeter a questão à Corte Constitucional, no controle concreto de normas (Lei Fundamental 100, I), estaria a demonstrar que as leis inconstitucionais não são nulas ipso jure. É que — argumenta-se — o juiz não poderia, no caso da nulidade, ainda estar vinculado à lei ou obrigado a submetê-la ao Tribunal Constitucional. 106
1.2.2.5.1. Apelo ao legislador Não raro reconhece a Corte que a lei ou a situação jurídica não se tornou “ainda” inconstitucional, conclamando o legislador a que proceda — às vezes dentro de determinado prazo — à correção ou à adequação dessa “situação ainda constitucional” (Appellentscheidung)107. Tanto 100
Jellinek, Verfassung und Verwaltung, cit., p. 27. Cf., também, § 82, (1), 95, (3) da Lei orgânica da Corte Constitucional 102 Das Gesetz ist Verfassungswidrig und daher nichtig; cf. BVerfGE 3, 19; BVerfGE 40, 37 (40); BVerfGE 61, 149 (151); BVerfGE 65, 1 (3) 103 Gusy,Christoph . Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, p. 183. 101
104
Schlaich,Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, p.161; Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, 1980, p. 160 e s.; Stern, Staatsrecht der Bundesrepublik, v. 2, p. 1.039.
105
arts. 1o, III, 20, III, 79, § 1o, 1o período, 79, § 3o, 123, I, da Lei Fundamental) (Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 159-160 e s. 173; Stern, Bonner Kommentar, art. 93, n. 271). 106
Böckenförde,Ernst-Wolfgang. Die sogenannte Nichtigkeit verfassungswidriger Gesetze, p.41; Söhn, Hartmut. Anwendungspflicht oder Aussetzungspflicht bei festgestellter Verfassungswidrigkeit von Gesetzen, p. 14; Moench, Christoph. Verfassungswidriges Gesetz und Normenkontrolle,cit., p.123; Schneider,Bernd Jürgen. Funktion der Normenkontrolle, p.47, 105 e s. 107 BVerfGE 7, 282; 16, 130; 21, 12 (42); 25, 167. Cf., entre outros, Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 132; Zeidler, Wolfgang. Die Verfassungsrechtsprechung im Rahmen der staatlichen Funktionen, EuGRZ 1988, p. 207 (210 e s.); Pestalozza, Christian.“Noch verfassungsmässige” und “bloss verfassungswidrige” Rechtslagen, in Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, v. 1, p. 520 (540); Schulte, Martin. Appellentscheidungen, des Bundesverfassungsgerichts, DVBl. 1988, p. 1200 e s.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes quanto é possível precisar, a decisão proferida em 4 de maio de 1954 sobre o Estatuto do Sarre (Saarstatut)108 constitui o ponto de partida para o desenvolvimento da Appellentscheidung na jurisprudência da Corte Constitucional. Ficou assente, no referido julgado, que as providências legislativas empreendidas com vistas a superar o “estatuto de ocupação” — ainda que se mostrassem imperfeitas ou incompletas — contribuíam para uma gradual compatibilização da situação jurídica com a Lei Fundamental e deveriam, por isso, ser consideradas ainda constitucionais (noch verfassungsgemäss).109 A expressão “Appellentscheidung” foi utilizada, porém, pela primeira vez, no conhecido escrito de Rupp v. Brünneck, de 1970, no qual a antiga Juíza da Corte Constitucional defendeu a pronúncia, em determinados casos, da sentença de rejeição de inconstitucionalidade vinculada a uma conclamação ao legislador para que empreendesse as medidas corretivas necessárias.110 A própria designação Appellentscheidung (decisão de apelo; apelo ao legislador) não expressa conceito unívoco na doutrina. Designa-se Appellentscheidung a decisão na qual o Tribunal reconhece a situação como “ainda constitucional”, anunciando a eventual conversão desse estado de constitucionalidade imperfeita numa situação de completa inconstitucionalidade.111 Alguns autores utilizam a denominação Appellentscheidung também para designar as decisões do Bundesverfassungsgericht que declaram a inconstitucionalidade da norma sem, no entanto, pronunciar a sua nulidade.112 A utilização do “apelo ao legislador” não colhe aplausos unânimes na doutrina. Afirma-se que o Tribunal não dispõe de base legal para proferir esse tipo de decisão.113 Sustenta-se, ademais, que o “apelo ao legislador” expressa tentativa de compensar, mediante decisão judicial, o déficit identificado no processo de decisão parlamentar (Kompensation parlamentarischer Entscheidungsdefizite). A Appellentscheidung demitiria o legislador da responsabilidade de concretizar a ordem fundamental114. Observa-se, ainda, que a Corte Constitucional não dispõe de competência para estabelecer prognósticos, sendo limitada a sua capacidade de fazer previsões.115 108
Nessa decisão, formulou a Corte Constitucional a chamada “Teoria da Aproximação” (Annäherungslehre), que recomenda ao Tribunal abster-se de pronunciar a inconstitucionalidade nos casos em que se reconhece estar o legislador empreendendo esforços para superar, gradualmente, o estado de inconstitucionalidade. 109 BVerfGE 4, 157 (177-8); cf., também, Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 181; Pestalozza, “Noch verfassungsmässige”, cit., v. 1, 547. Ver crítica, a propósito, Lerche, Peter. Das Bundesverfassungsgericht und die Vorstellung der Annäherung an verfassungsgewollten Zustand, DöV 1971, p. 721 e s. 110 Rupp-v. Brüneck, Wiltraut. Darf das Bundesverfassungsgericht an den Gesetzgeber appellieren? in Festschrift für Gerbhard Müller, p. 355 e s.; cf. também Schefold, Dian e Leske, Klaus-Rüdiger. Hochschulvorschaltgesetz: verfassungswidrig aber nicht nichtig, NJW 1973, p. 1297 (1299); Söhn, Anwendungspflicht oder Aussetzungspflicht , cit., p. 37 e s.; Maurer, Hartmut. Zur Verfassungswidrigererklärung von Gesetzen, in Festschrift für Werner Weber, p. 363; Pestalozza,“Noch verfassungsmässige”, cit., p. 519 (540); Moench, Verfassungswidriges Gesetz und Normenkontrolle, cit.,p. 70 e s. 111 Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 132; Pestalozza, “Noch verfassungsmässige” cit., p. 540; Schulte, Appellentscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, cit., 1200 (1201). 112 Schefold e Leske, Hochschulvorschaltgesetz,cit., p. 1297 (1299); Söhn, Anwendungspflicht oder Aussetzungspflicht bei festgestellter Verfassungswidrigkeit von Gesetzen? , cit., p. 37. 113 Klein,Eckart. Verfassungsprozessrecht-Versuch einer Systematik an Hand der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts, AöR 108 (1983), p. 410 (434); Bryde, Brun-Otto.Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, p. 395. 114 Cf., Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik, cit., p. 397/398; Starck, Christian. Das Bundesverfassungsgericht im politischen Prozess der Bundesrepublik, p. 27. 115 Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht, cit.,,p. 397; Klein, Verfassungsprozessrecht , cit., p. 410 (434); Gusy, Parlamentarischer Gesetzgeber und
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Não pode ela estabelecer, portanto, com segurança, o exato momento da conversão de uma “situação ainda constitucional” em um estado de inconstitucionalidade.116 A objeção concernente à eventual falta de fundamento legal para pronúncia da Appellentscheidung não se afigura irretorquível, sobretudo se considerada esta decisão como peculiar sentença de rejeição da inconstitucionalidade.117 Se admitido que uma situação considerada constitucional pode tornar-se inconstitucional, não se deve excluir a possibilidade de que, no momento da decisão, ainda não se tenha operado essa conversão. Assim, de uma perspectiva formal, o “apelo ao legislador” nada mais expressaria do que a constatação desse incompleto processo de inconstitucionalização.118 A Appellentscheidung poderia ser vista, assim, tal como proposto por Ebsen, como técnica específica para atuar sobre essas “situações imperfeitas” sem que se tenha de pronunciar a inconstitucionalidade ou a nulidade da lei.119 Se se analisarem, porém, os grupos singulares da Appellentscheidung, pode-se duvidar da correção dessa tipificação processual. Em verdade, abstém-se o Tribunal, muitas vezes, de emitir um juízo de desvalor sobre a norma para evitar conseqüências práticas danosas.120 No entanto, não deve pairar qualquer dúvida de índole jurídico-funcional quanto à possibilidade de o Tribunal ressaltar, nas chamadas “situações ainda constitucionais”, as deficiências da norma impugnada e a necessidade de sua substituição, derrogação ou complementação.121 Conceda-se, porém, que a tentativa de identificar a consumação do processo de inconstitucionalização não se afigura isenta de problemas, uma vez que o Tribunal não está legitimado a proferir decisões sobre o desenvolvimento futuro com base apenas em prognósticos.122 O “apelo” para que se corrija uma situação ainda constitucional (noch Verfassungsmäßige Rechtslage), antes que se consolide o estado de inconstitucionalidade, não obriga, juridicamente, o órgão legislativo a empreender qualquer providência.123 Esse entendimento há de aplicar-se, igualmente, na hipótese de a Corte Constitucional incorporar o “apelo” à parte dispositiva da decisão124, uma vez que apenas o conteúdo de decisões expressamente previstas na lei — declaração de constitucionalidade, declaração de inconstitucionalidade, declaração de nulidade — pode fazer
Bundesverfassungsgericht, p. 212. 116 Klein, Verfassungsprozessrecht , cit., p. 410 (434). 117 Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 181. 118 Ebsen, Ingwer.Das Bundesverfassungsgericht als Element gesellschaftlicher Selbstregulierung, p. 96. 119 Ebsen, Das Bundesverfassungsgericht als Element gesellschaftlicher Selbstregulierung, cit., p. 96-7. 120 Rupp-v. Brünneck, Wiltraut. Darf das Bundesverfassungsgericht an den Gesetzgeber appellieren?, in Festschrift für Gebhard Müller, p.355 (396); Pestalozza, “Noch verfassungsmässige”, cit., p. 520 (536 e s.); Bryde,.Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik, cit., p. 396; Ebsen, Das Bundesverfassungsgericht als Element gesellschaftlicher Selbstregulierung, cit., p. 97. 121 Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik ,cit., p. 396; Schulte, Appellentscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, DVBl. 1988, p.1200 (1205); Gerontas, Die Appellentscheidungen, Sondervotumsappelle und die blosse Unvereinbarkeitsfeststellung als Ausdruck der Funktionellen Grenzen der Verfassungsgerichtsbarkeit, DVBl. 1982, p. 486 (487); Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 179. Crítico, a propósito, Klein, Verfassungsprozessrecht , cit., p. 410 (454). 122 Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik,cit., p. 397; Klein, Verfassungsprozessrecht , cit., p. 410 (434). 123 Pestalozza, “Noch verfassungsmässige”, cit., p. 556; Stern, Bonner Kommentar, art. 93, n. 319; Moench, Verfassungswidriges Gesetz und Normenkontrolle, cit., p. 186-187; Gerontas, Apostolo. Die Appellentscheidungen, Sondervotumsappelle und die blosse Unvereinbarkeitsfeststellung als Ausdruck der funktionellen Grenzen der Verfassungsgerichtsbarkeit, DVBl. 1982, p. 486 (487). 124 BVerfGE 53, 257 (258); BVerfGE 65, 1 (3).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes coisa julgada ou ser dotado de força de lei.125 A manifestação do Bundesverfassungsgericht sobre o processo de inconstitucionalização há de ser considerada simples obiter dictum.126 É muito provável que a qualificação do “apelo ao legislador” como mero obiter dictum não corresponda à intenção da Corte Constitucional127, que, não raras vezes, estabelece, de forma imperativa, a situação que há de subsistir após a decisão, como, v.g., no julgado sobre os filhos havidos fora do casamento (Lei Fundamental, art. 6, V)128. Outras vezes, determina o Tribunal que o legislador proceda às mudanças reclamadas dentro de determinado lapso de tempo129. É fácil de compreender, no entanto, que a sentença de rejeição de inconstitucionalidade não pode ser proferida com a imposição de um dever de legislar. Esse dever não pode assentar-se no § 31, (1), da Lei do Bundesverfassungsgericht, uma vez que o efeito vinculante não abrange todos e quaisquer fundamentos da decisão130, mas, tão-somente, aqueles imprescindíveis à prolação do julgado131.
1.2.2.5.2. Declaração de Inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade Ao lado da declaração de nulidade, prevista no § 78 da Lei do Bundesverfassungsgericht, desenvolveu o Tribunal outra variante de decisão, a declaração de incompatibilidade ou declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade132. Desde 1970 prevê o § 31, (2), 2.o e 3.o períodos, da Lei do Bundesverfassungsgericht, que o Tribunal poderá declarar a constitucionalidade, a nulidade ou a inconstitucionalidade (sem a pronúncia da nulidade) de uma lei. No que respeita à sentença penal condenatória, o § 79, (1), da Lei do Bundesverfassungsgericht equiparou a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade à declaração da nulidade. A expressão literal da lei, todavia, não se mostra unívoca. Enquanto no § 78, 1.o período, da Lei do Bundesverfassungsgericht, assenta-se que a lei incompatível com a Constituição deve ser declarada nula, os §§ 31, (2), e 79, (1), da Lei do Bundesverfassungsgericht distinguem entre a lei inconstitucional e a lei nula133. Enquanto até 1969/70 ainda não se podia falar de um tipo autônomo de decisão134, pode-se 125
Stern, Bonner Kommentar, art. 93, n. 319; Sachs, Michael, Tenorierung bei Normenkontrollentscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, DöV 1982, p. 23 (29), destaca que a incorporação de uma recomendação (Anweisung) dirigida ao legislador na parte dispositiva da decisão configura um novum, destinado, nitidamente, a emprestar maior eficácia ao julgado. 126 Cf., a propósito, Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik, cit., p. 397 e s.; Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 125. Sobre a diferenciação entre ratio decidendi e obter dictum (coisa dita de passagem), (acessoriamente) ver Rónai, Paulo. Não perca o seu latim, Rio de Janeiro, 1984, isto é, entre os fundamentos essenciais à prolação do julgado e aquelas considerações que integram os fundamentos da decisão, mas que são perfeitamente dispensáveis (Schlüter, Wilfried. Das Obiter Dictum, Munique, 1973, p. 77 e s.). 127 Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik, cit., p. 396. 128 BVerfGE 25, 167 (188). 129 BVerfGE 33, 1; ver também BVerfGE 39, 169. 130 Moench, Verfassungswidriges Gesetz und Normenkontrolle, cit., p. 186. 131 Moench, Verfassungswidriges Gesetz und Normenkontrolle, cit., p. 186; Sachs, Tenorierung bei Normenkontrollentscheidungen, cit., p. 23 (29); Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik, cit., p. 397. 132 Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 168. 133 Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 168. 134 Cf. Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 107; Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p.169. Inicialmente, a Corte Constitucional não incorporava a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade na parte dispositiva, limitando-se a esclarecer as razões da renúncia à declaração de nulidade nos fundamentos da decisão. Uma exceção a essa prática pode ser identificada na decisão BVerfGE 13, 248 (249).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes afirmar que, a partir de 1969, passou a Corte Constitucional a abster-se, com freqüência, de pronunciar a nulidade de uma lei135. Ponto de partida para o desenvolvimento dessa variante de decisão foi a chamada “exclusão do benefício incompatível com o princípio da igualdade”, que se verifica quando a lei, de forma arbitrária, concede benefícios a um determinado grupo de cidadãos, excluindo, expressa ou implicitamente, outros segmentos ou setores (v.g. benefícios sociais, salários ou vencimentos, subvenções etc.)136. A jurisprudência do Tribunal não se limitou, porém, a esses casos. A orientação desenvolvida para os casos “exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade” foi estendida a outras hipóteses nas quais o Tribunal identificou, igualmente, a necessidade de declarar a inconstitucionalidade da lei sem pronunciar a sua nulidade137. 1.2.2.5.3. A exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia e outras ofensas ao princípio da igualdade Tem-se uma exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas. Essa exclusão pode verificar-se de forma concludente ou explícita. Ela é concludente se a lei concede benefícios apenas a determinado grupo138; e explícita139, se a lei geral que outorga determinados benefícios a certo grupo exclui sua aplicação a outros segmentos140. Abstraídos os casos de exigência constitucional inequívoca141, a lesão ao princípio da isonomia pode ser afastada de diversas maneiras: pela supressão do próprio benefício; pela inclusão dos grupos eventualmente discriminados ou até mediante a edição de uma nova regra, que condicione a outorga de benefícios à observância de determinados requisitos decorrentes do princípio da igualdade142. Assim, poderia ser objeto da declaração de nulidade, em sentido técnico, tanto a disposição que outorga o benefício, como eventual cláusula de exclusão, desde que estabelecida expressamente por uma norma143. A Corte Constitucional abstém-se de pronunciar a nulidade da norma. Nesses casos, sob a alegação de que o legislador disporia de diferentes possibilidades para afastar a ofensa ao princípio da isonomia144, a 135
Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 108; Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 169. 136 Cf. Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p.345 (348); Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 170; Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 109. 137 BVerfGE 38, 187 (205); 39, 196 (204); 40, 196 (227). 138 Cf. BVerfGE 18, 288 (301); 22, 349 (360). 139 Cf. BVerfGE 25, 101. 140 Cf., a propósito, Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung, cit., p. 345 (349); Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 109; Jülicher, Friedrich. Die Verfassungsbeschwerde gegen Urteile bei gesetzgeberischem Unterlassen, p. 51 e s. 141 Cf., também, BVerfGE 21, 329 (338, 343, 353); 22, 163 (174 e s.); 27, 220 (230); 27, 364 (374); 27, 391 (399); 29, 283 (303); 39, 196 (204). 142 Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (348); Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 109. 143 Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (349); Schneider, Funktion der Normenkontrolle, p. 174. 144 Cf. BVerfGE 8, 28 (36 e s.); 14, 308 (311 e s.); 15, 46 (59 f.; 75 e s.); 15, 121 (125 e s.); 17, 122 (134 e s.); 18, 257 (273); 18, 288 (301 e s.); 21, 329 (337 e s.; 353 e s.); 22, 163 (174 e s.); BVerfGE 22, 349 (359 e s.); 26, 100 (110, 115); 26, 163 (171 e s.); 27, 220 (230 e s.); 27, 364 (374 e s.); 28, 324 (361 e s.); 29, 1 (10); 29, 57 (70 e s.); 29, 71 (83); 29, 283 (303 e s.); 31, 187 e s.; 32, 362 (362 e s.); 37, 154; 37, 217; 38, 1 (22); 38, 41; 38, 61; 38, 213; 42, 176; 42, 369; 43, 58; 45, 104; 45, 376; 46, 97; 47, 1; 48, 227; 56, 192; 62, 256; 63, 119; 67, 348; 71, 1; 71, 146; 71, 224.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes cassação acabaria por suprimir o próprio fundamento em que se assenta a pretensão do impetrante145. Isso implicaria, nos casos em que a disposição se mostrasse aplicável apenas a determinado grupo, que, após a declaração de nulidade, nenhuma pretensão poderia ser dela derivada. Todavia, a cassação da norma que não contempla determinado grupo no seu âmbito de aplicação não assegura, por si só, o gozo do direito pretendido ao eventual postulante. O Tribunal não está autorizado, salvo em situações excepcionais, a proferir a declaração de inconstitucionalidade de eventual cláusula de exclusão, em virtude das repercussões orçamentárias que resultariam, inevitavelmente, da concessão do benefício146. Por outro lado, a declaração de nulidade de todo o complexo normativo revelaria, como assentado por Ipsen, “uma esquisita compreensão do princípio de justiça, que daria ao postulante pedra ao invés de pão” (Steine statt Brot)147. Vê-se assim que, nos casos de ofensa ao princípio de isonomia, manifestam-se problemas que não podem ser resolvidos mediante simples declaração de nulidade. O postulado da igualdade pressupõe a existência de, pelo menos, duas situações que se encontram numa relação de comparação148. Essa relatividade do postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a uma inconstitucionalidade relativa (relative Verfassungswidrigkeit) não no sentido de uma inconstitucionalidade menos grave. É que inconstitucional não se afigura a norma “A” ou “B”, mas a disciplina diferenciada das situações (die Unterschiedlichkeit der Regelung)149. Essa relação normativa inconstitucional (Verfassungswidrige Normrelation)150 não pode ser superada, em princípio, mediante decisão de índole cassatória, pois esta ou não atingiria os objetivos pretendidos ou acabaria por suprimir algo mais do que a ofensa constitucional que se pretende eliminar151. Também em relação às leis que consagram obrigações de forma incompatível com o princípio da igualdade houve por bem a Corte Constitucional abandonar a orientação que recomendava a simples pronúncia da nulidade152. Algumas decisões mais recentes revelam que o Tribunal limita-se, também nesses casos, a declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, sob a alegação de que a ofensa ao princípio da igualdade pode ser eliminada de diferentes formas153. Dessarte, em inúmeros casos, atinentes às leis tributárias e a diplomas concessivos de benefícios sociais, tem-se valido o Tribunal do topos “liberdade de conformação do legislador” (Gesetzgeberische Gestaltungsfreiheit) para declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade154. 1.2.2.5.4. A omissão legislativa Ao lado da ofensa ao princípio da igualdade, a omissão legislativa assume relevo para fundamentar a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade na jurisprudência
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BVerfGE 13, 248 (260); 18, 288 (301 e s.). Cf. Starck, C. Die Bindung des Richters an Gesetz und Verfassung, VVDStRL 34 (1976), p. 43 (83). 147 Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 110. Ver, também, Jülicher, Die Verfassungsbeschwerde, cit., p. 52. Cf. também BVerfGE 22, 349 (359); 25, 236 (246, 252); 32, 157 (163); 52, 369 (379); 56, 196 (215). 148 Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (354). 149 Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (354). 150 Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 214. 151 Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (354); Stern, Staatsrecht der Bundesrepublik, v. 2, p. 960. 152 BVerfGE 8, 28 (37); 8, 51 (70 e s.); 6, 273 (281); 9, 291 (301). Cf., também, Schneider, B.J.Funktion der Normenkontrolle, p. 188; Pestalozza, “Noch verfassungsmässige”, cit.,v. 1, p. 520 (535). 153 Cf., também, BVerfGE 23, 1 (10 e s.); 33, 90 (105 e s.). 154 BVerfGE 23, 1 (10); 25, 101 (110); 28, 227 (242 e s.); 33, 90 (105 e s.); 33, 106 (114 e s.); 45, 104 (114); 51, 1 (9 e s.); 61, 319 (320, 356 e s.); 62, 256 (288 e s.). 146
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes do Tribunal constitucional155. A declaração de nulidade é de excluir-se na ausência de ato normativo156 ou, tal como formulado pelo Bundesverfassungsgericht, não se pode declarar a nulidade da lacuna157. A omissão inconstitucional pressupõe um dever constitucional de legislar158, que tanto pode ser derivado de ordens concretas contidas na Lei Fundamental quanto de princípios desenvolvidos mediante interpretação159. Semelhanças com a chamada omissão total são identificadas naqueles casos em que existe uma atividade legislativa que, no entanto, não atende às exigências constitucionais ou que as satisfaz de maneira incompleta ou imperfeita160. Esses casos dizem respeito, v. g., às hipóteses em que o legislador não editou as regras, que, no contexto de um determinado complexo normativo, deveriam ter sido promulgadas161. Embora exista, nesse caso, uma lei que poderia ser declarada nula, abstém-se o Tribunal de proferir a nulidade sob a alegação de que a ofensa constitucional decorre não da regulação, mas de sua incompletude162, seja porque o legislador foi omisso em proceder à complementação do complexo normativo163, seja porque não contemplou determinado grupo na regra impugnada164. 1.2.2.5.5. A liberdade de conformação do legislador Não raro justifica-se a renúncia à declaração de nulidade em virtude de uma intolerável intervenção no poder ou na liberdade de conformação do legislador165. Esse fundamento — a liberdade ou o poder de conformação do legislador — tem sua origem, na jurisprudência do Tribunal, nos julgados relativos à ofensa ao princípio da igualdade, nos quais esse topos é sempre referido166. No desenvolvimento de sua jurisprudência, houve por bem o Bundesverfassungsgericht estender a utilização desse topos a outros casos, justificando, assim, a escolha de uma determinada variante de decisão167. Dessarte, a liberdade de conformação do legislador tornou-se quase uma espécie de cláusula geral para justificar a aplicação da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade168. O argumento sobre a existência de várias alternativas para a eliminação 155
Cf., a propósito, BVerfGE 6, 257; 8, 1; 15, 46 (59); 18, 288 (301); 22, 349 (360); 23, 1 (11). Jülicher, Die Verfassungsbeschwerde, cit., p. 53 e s.; Gusy, Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, cit., p. 189. 157 BVerfGE 22, 349 (360 e s.). Cf., também, Jülicher, Die Verfassungsbeschwerde, cit., p. 53 e s. 158 BVerfGE 6, 257 (264). Cf., também, Pestalozza, “Noch verfassungsmässige” und “bloss verfassungswidrige” Rechtslagen, in Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, v.1, p.526; Jülicher, Die Verfassungsbeschwerde, cit., p. 13. 159 BVerfGE 56, 54 (70 e s.); 55, 37 (53); Hein, Peter. Die Unvereinbarerklärung verfassungswidriger Gesetze durch das Bundesverfassungsgericht, p. 57; BVerfG, Vorprüfungsausschuss, NJW 1983, 2931 (Waldsterben). 160 Lerche, Das Bundesverfassungsgericht,cit., p. 341 (352); Jülicher, Die Verfassungsbeschwerde, cit.,, p. 33; Stern, Bonner Kommentar, cit., art. 93, n. 285; Lechner, NJW 1955, cit., p. 181 e s.; Schmidt e Bleibtreu, in Maunz, entre outros, BVerfGG, § 90, n. 121. 161 Pestalozza,Christian. “Noch verfassungsmässige”, cit.,v. 1, p. 519 (532). 162 BVerfGE 21, 173 (183); 25, 236 (252); 30, 292 (332 e s.); 31, 229 (242); 34, 71 (80); 35, 79 (148); 39, 334 (375). 163 BVerfGE 8, 28 (35); 13, 248 (260);18, 288 (301); 31, 275 (291); 34, 71 (80). 164 BVerfGE 15, 46 (75); 22, 349 (360 e s.); 43, 58 (74); 52, 369 (379). 165 Pohle, Albrecht-Peter. Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, p. 78 e s; Moench, Verfassungswidriges Gesetz und Normenkontrolle, cit., p. 47. 166 BVerfGE 8, 28 (36 e s.); 14, 308 (311); 15, 121 (125); 17, 148 (152 e s.); 18, 288 (302); 21, 329 (337); 23, 1 (10); 28, 227 (247). 167 Hein, Peter. Die Unvereinbarerklärung verfassungswidriger Gesetze durch das Bundesverfassungsgericht, p. 79. 168 BVerfGE 61, 43 (68); 61, 358; 62, 117 (153); 62, 256 (257, 288 e s.); 62, 374 (391); 64, 323 (366); 64, 367 156
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes da inconstitucionalidade já foi utilizado, inclusive, para justificar a declaração da inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade em casos de flagrante intervenção nos direitos de liberdade169. A invocação desse poder de conformação do legislador tem merecido sérias críticas na doutrina170. Segundo alguns autores, a liberdade de conformação do legislador não seria afetada na maioria dos casos, uma vez que este poderia editar as novas regras exigidas tanto após uma declaração de nulidade quanto depois da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade171. Acentue-se, por outro lado, que a discricionariedade do legislador não legitima a conservação parcial de uma norma inconstitucional, assim como a discricionariedade administrativa não obsta à cassação do ato administrativo eivado de ilegalidade172. 1.2.2.5.6. O argumento sobre as conseqüências jurídicas da declaração de nulidade Alguns casos de declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade referemse às chamadas lacunas jurídicas ameaçadoras (bedröhliche Rechtslücken), que poderiam, em caso de uma pronúncia de nulidade, ter sérias conseqüências, ensejando mesmo eventual caos jurídico173. Esses casos têm o seu ponto comum na chamada inexeqüibilidade da decisão cassatória (Undurchsetzbarkeit der Normaufhebung)174. A declaração de nulidade levaria a uma minimização (Minimierung), ao invés de levar a uma otimização (Optimierung) na concretização da vontade constitucional175. A lacuna resultante da declaração de nulidade poderia fazer surgir uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional176. A necessidade de renúncia à declaração de nulidade tornou-se evidente nos casos relativos ao pagamento de vencimentos de funcionários públicos (Besoldungsfällen), nos quais o Tribunal reconheceu que, se afirmasse a nulidade, não haveria fundamento legal para que a Administração procedesse ao pagamento de vencimentos de determinados segmentos do funcionalismo177. Portanto, a imperfeição identificada deveria ser corrigida pelo próprio legislador. Semelhança com esses casos, relativos aos vencimentos de funcionários públicos, pode ser identificada nas chamadas questões de status (Statusfälle), que se referem à estruturação de determinado órgão ou instituição178. No acórdão sobre a constitucionalidade da lei universitária, de 18 de julho de 1972, promulgada pelo Estado de Hamburgo, limitou-se o Bundesverfassungsgericht (388); 65, 325 (357). Cf., também, Stern, Bonner Kommentar, art. 93 n. 282; Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 171; Hein, Peter. Die Unvereinbarerklärung verfassungswidriger Gesetze durch das Bundesverfassungsgericht, p.79 e s. 169 BVerfGE 21, 173; 31, 275; 34, 71. 170 Cf., a propósito, Skouris, Wassilios.Teilnichtigkeit von Gesetzen, p. 52; Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (357); Ipsen, JZ 1983, p. 41 (44). 171 Cf., Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (357); Ipsen, JZ 1983, cit., p.41 (44); Sachs,Tenorierung bei Normenkontrollentscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, DöV 1982, p. 23 (27). 172 Skouris, Wassilios.Teilnichtigkeit von Gesetzen, p. 52. 173 Pohle, Albrecht Peter. Die Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, p. 70 e s.; Pestalozza, “Noch verfassungsmässige”, cit., v. 1, p. 519 (537 e s.); Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 170; Moench, Verfassungswidriges Gesetz und Normenkontrolle, cit., p. 39 e s. 174 Maywald, Anwendbarkeit für verfassungswidrig erklärter Gesetze?, BayVBl. 1971, p. 91, Pohle, Die Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, p. 70. Cf., também, BVerfGE 8, 1 (19); 33, 303 (347); 34, 9 (43); 35, 79; 40, 296; 44, 249. 175 Schneider, Bernd Jürgen. Funktion der Normenkontrolle, p. 196. 176 BVerfGE 32, 199 (217 f.); 34, 9 (43 f.); Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit.,p. 345 (350); Pohle, Die Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, p. 70. 177 BVerfGE 8, 1 (19); 32, 199 (217); 44, 249 (272); 56, 146 (169). 178 Cf., a propósito, Pohle, A.P. Die Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, p. 73; Schneider, Funktion der Normenkontrolle, p. 203.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes a declarar a inconstitucionalidade do seu § 17 sem pronunciar a nulidade, uma vez que a ausência de norma que disciplinasse o sistema de admissão nas Universidades criaria uma situação ainda mais distante daquela pretendida pela Constituição179. Essa orientação foi aplicada, igualmente, à decisão relativa aos subsídios dos parlamentares (Diäten-Entscheidung), na qual o Tribunal declarou que os privilégios tributários outorgados aos parlamentares estaduais afiguravam-se inconstitucionais (arts. 38, 48, 3, I, da Lei Fundamental)180. Absteve-se a Corte, todavia, de pronunciar a nulidade da norma porque, dessa forma, “suprimir-se-ia parcialmente a base jurídica que assegura a situação ou status dos parlamentares”181. A independência deles, enquanto parlamentares, dependia, fundamentalmente, da percepção dos subsídios182. Essa orientação foi confirmada em outras decisões do Tribunal183. Vê-se, pois, que, a despeito da nítida valoração do princípio da nulidade como princípio constitucional, assumiu realce, no Direito alemão, a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade (Unvereinbarkeitserklärung) como técnica alternativa de decisão utilizável em todas as situações nas quais a declaração de nulidade se mostrasse inadequada (omissão parcial; exclusão de benefício incompatível com o princípio da isonomia) ou absolutamente intolerável para a segurança jurídica (ameaça de caos jurídico, lacunas ameaçadoras, etc).
1.2.2.6. A questão no direito italiano, no direito comunitário e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos184 No direito italiano, segundo Medeiros, merecem destaque: “1a) a técnica da inconstituzionalità sopravvenuta em sentido amplo ou differita; 2a) a técnica da doppia pronuncia – a Corte começa por proferir uma decisão de costituzionalità provvisoria ou, se se quiser, uma decisão de infondatezza ou de inammissibilità esortative ou monitorie, na qual, à maneira de uma crônica de uma inconstitucionalidade anunciada, adverte o legislador na motivação para a possibilidade de um ulterior juízo de inconstitucionalidade, deixando para momento posterior, e caso o vício se mantenha, a declaração de inconstitucionalidade da norma. A primeira técnica de decisão é um instrumento particularmente adequado à limitação do alcance da sentença de acolhimento na sua vertente pro praeterito. A segunda, por seu turno, permite evitar os efeitos negativos pro futuro de uma eventual declaração de inconstitucionalidade. Refira-se, entre parênteses, que as técnicas referidas não constituem necessariamente uma forma de limitação das conseqüências da decisão de inconstitucionalidade. O que acontece é tão-somente que 179
BVerfGE 33, 303 ( 347); cf., também, BVerfGE 35, 79. BVerfGE 40, 296 (329). 181 BVerfGE 40, 296 ( 329). 182 BVerfGE 40, 296 ( 329); cf., também, 37, 217 (261). 183 BVerfGE 56, 146 (169); 56, 175 (184); 62, 374 (391). 184 No direito francês, entende-se que, em razão da natureza objetiva do controle, a decisão de “nãoconformidade” proferida pelo Conselho Constitucional tem eficácia “erga omnes” , sendo os efeitos imediatos e prospectivos (Cf. Carlos Roberto Siqueira Castro, Carlos Roberto. Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus efeitos em face das Leis n. 9868 e 9882/99, in: Sarmento, Daniel, O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9868/99 (organizador), Rio de Janeiro, 2001, p. 39 (p 80). 180
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes elas são por vezes utilizadas para alcançar tal desiderato. É o que sucede quando a decisão em causa surge num processo de ponderação entre valores constitucionais conflituantes, servindo por exemplo para tomar em consideração o princípio constitucional da cobertura financeira das despesas ou da continuidade do ordenamento. O recurso à figura da incostituzionalità sopravvenuta ou differita é ilustrativo. Com efeito, embora nos casos de verdadeira inconstitucionalidade superveniente ou deslizante não haja limitação de efeitos, a excessiva ampliação dessa figura transforma-a numa espécie de passe partout de confins nebulosos utilizado para restringir os efeitos das decisões de acolhimento. O mesmo se diga da técnica da doppia pronuncia ou da decisão de costituzionalità provvisoria. Trata-se de uma técnica que, na perspectiva dos seus efeitos, está mais próxima das decisões apelativas alemãs do que das decisões de incompatibilidade também proferidas pelo Bundesverfassungsgericht, pois não envolvem por definição qualquer bloqueio de aplicação da norma. E à maneira das decisões apelativas do Tribunal Constitucional Federal alemão, é uma técnica utilizada, tanto em casos em que a norma ainda é conforme com a Constituição, como em hipóteses em que, apesar da existência de inconstitucionalidade, se pretende evitar um resultado ainda mais inconstitucional. Ou seja, além das verdadeiras sentenças de constitucionalidade provisória, este tipo de decisão serve também para proferir sentenças de inconstitucionalidade accertata ma non dichiarata” 185 . Situação semelhante verifica-se também em relação ao Direito Comunitário: “Em relação ao Direito Comunitário, o no 2 do artigo 174o do Tratado de Roma que instituiu a Comunidade Européia confere ao Tribunal de Justiça, em caso de procedência de um recurso contra um regulamento comunitário, o poder de fixar os efeitos da invalidade. ‘Os autores dos tratados acharam conveniente limitar as perturbações que poderiam resultar do completo restabelecimento do stato quo ante, permitindo ao Tribunal decidir, quando o considerar necessário, que não sejam postos em causa certos efeitos produzidos pelo acto impugnado’. Não se julgue, porém, que o interesse da lição comunitária reside apenas na expressa previsão de um poder de limitação dos efeitos da decisão de invalidade de um regulamento. É fundamental não esquecer que este poder consagrado no artigo 174o é interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente pelo Tribunal de Justiça. Três situações merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, embora o Tratado se refira apenas aos regulamentos, a jurisprudência aceita, sem dificuldade, restringir igualmente os efeitos da invalidade de uma directiva comunitária. Além disso, raciocinando por analogia, o Tribunal de Justiça estende a faculdade que lhe confere o artigo 174o aos casos em que é chamado a julgar da questão prejudicial da validade de um acto comunitário. O significado desta jurisprudência salta à vista. Basta que 185
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 684-685.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes se atenda às semelhanças entre o processo das questões prejudiciais e o processo interno de fiscalização concreta (maxime, em sistemas de mero incidente de inconstitucionalidade como o italiano ou o alemão) e ao facto, que tantas dúvidas suscitou, de a decisão de limitação de efeitos se poder projectar no próprio giudizio a quo. Enfim, e este terceiro aspecto é também particularmente significativo, o Tribunal de Justiça admite, inclusivamente, uma limitação in futuro dos efeitos da anulação. Assim, quando da anulação de uma directiva que concretizara e regulamentara o direito de residência de estudantes nacionais de um Estado-membro, o Tribunal de Justiça começou por observar que a anulação pura e simples da directiva impugnada poderia prejudicar o exercício de um direito que decorria do próprio Tratado de Roma ou, mais concretamente, do direito de residência dos estudantes com vista a uma formação profissional. Acrescentou de seguida que, no caso em apreciação, a legitimidade do conteúdo normativo essencial da directiva não era questionada. Nessas circunstâncias, concluiu o Tribunal de Justiça, razões importantes de segurança jurídica impunham que se mantivessem provisoriamente todos os efeitos da directiva anulada, até que o Conselho a viesse a substituir por uma nova directiva adoptada com base jurídica adequada.” 186 A propósito, Garcia de Enterría traz à colação o caso Defrenne, de 08 de abril de 1976. O Tribunal de Justiça da Comunidade Européia considerou incompatível com o Tratado de Roma, de 25 de março de 1957, a legislação belga que adiou o termo inicial da aplicação do princípio da igualdade entre trabalhadores do sexo masculino e feminino, cuja vigência haveria de ter início em 1º de janeiro de 1962. Na espécie, tendo em vista os possíveis efeitos maléficos para a atividade econômica, houve por bem o Tribunal de Justiça da Comunidade declarar a não-aplicação da norma nacional com eficácia ex nunc 187. Também o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao julgar o Markx, em 13.06.1979, adotou orientação semelhante, considerando incompatível como Convênio Europeu de Liberdades e Direitos Humanos, aprovado em Roma em 1950, a norma do Código Civil da Bélgica que conferia aos filhos havidos fora do casamento direitos sucessórios diversos dos conferidos aos filhos legítimos. Tendo em vista, porém, a repercussão da decisão sobre situações consolidadas atribuiuse à decisão eficácia ex nunc188. 1.2.2.7. Notas conclusivas A análise de direito comparado demonstra uma forte tendência no sentido da universalização de alternativas normativas ou jurisprudenciais em relação à técnica de nulidade. Pode-se dizer que, independentemente do modelo de controle adotado, de perfil difuso ou concentrado, a criação de técnicas alternativas é comum aos mais diversos sistemas constitucionais. Também o Tribunal da Comunidade Européia e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos curvaram-se à necessidade de adoção de uma técnica alternativa de decisão. É certo, outrossim, que esse desenvolvimento se faz 186
Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 686-687. Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., in RDP 92, p. 5 (7;14), Siqueira Castro, Da Declaração de Inconstitucionalidade, cit., p. 39 (81). Garcia de Enterría destaca que, nesses casos, não se tratava de aplicar o art.174, parágrafo único, do Tratado, mas sim de uma questão prejudicial relativa à aplicação direta do disposto no art. 119 do Tratado da CEE (igualdade de remuneração entre homens e mulheres) em face da legislação belga (cit., p. 7). 188 Siqueira Castro, Da Declaração de Inconstitucionalidade, cit., p. 81. 187
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes com base em previsões constitucionais ou legais expressas ou implícitas, ou ainda, com base em simples opção de política judiciária, como se reconhece nos Estados Unidos. Em muitos casos, como visto, a adoção de uma declaração de inconstitucionalidade mitigada decorreu de construção pretoriana. São os exemplos da Alemanha, na fase inicial, e da Espanha. Nesses dois sistemas, dominava a idéia do princípio da nulidade como princípio constitucional não-escrito (§ 78 da Lei da Corte constitucional alemã; art 39 da Lei orgânica da Corte constitucional espanhola). Essa orientação, todavia, não impediu que, em casos determinados, ambas as Cortes constitucionais se afastassem da técnica da nulidade e passassem a desenvolver fórmulas alternativas de decisão. Em outras palavras, a adoção formal do princípio da nulidade não impediu a adoção de técnica alternativa de decisão naqueles casos em que a nulidade poderia revelar inadequada (v.g. casos de omissão parcial) ou trazer conseqüências intoleráveis para o sistema jurídico (ameaça de caos jurídico ou situação de insegurança jurídica). Ressalte-se, ainda, que a evolução das técnicas de decisão em sede de controle judicial de constitucionalidade deu-se no sentido da quase integral superação do sistema que Canotilho denominou de “silogismo tautológico”: (1) uma lei inconstitucional é nula; (2) uma lei é nula porque inconstitucional; (3) a inconstitucionalidade reconduz-se à nulidade e a nulidade à inconstitucionalidade)189. Tal como demonstrado, a técnica da nulidade revela-se adequada para solver as violações das normas constitucionais de conteúdo negativo ou proibitivo (v.g., direitos fundamentais enquanto direitos negativos), mas mostra-se inepta para arrostar o quadro de imperfeição normativa, decorrente de omissão legislativa parcial ou da lesão ao princípio da isonomia. Assente, igualmente,que o princípio da segurança jurídica é um valor constitucional relevante, tanto quanto a própria idéia de legitimidade. Resta evidente que a teoria da nulidade não poderia ser aplicada na linha do velho adágio “fiat justitia, pereat mundus”. Não se poderia declarar a nulidade de uma lei que pudesse importar na criação de um caos jurídico ou, em casos extremos, produzir aquilo que alguém chamou de um “suicídio democrático”, cujo melhor exemplo seria a declaração de nulidade de uma lei eleitoral de aplicação nacional a regular a posse dos novos eleitos. Restou, assim, superada, por fundamentos diversos, a fórmula apodítica “constitucionalidade/ nulidade” anteriormente dominante. Não se poderia negar que muitas situações imperfeitas de uma perspectiva constitucional dificilmente seriam superadas com a simples utilização da declaração de nulidade. 1.3. EFEITOS DA DECISÃO NO CONTROLE ABSTRATO NO DIREITO BRASILEIRO 1.3.1. Considerações preliminares sobre os efeitos da decisão no sistema anterior ao advento da Constituição de 1988 O dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence à tradição do direito brasileiro. A teoria da nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas.190 Fundada na antiga doutrina americana, segundo a qual “the inconstitutional statute is not law at all”191, significativa parcela da doutrina brasileira posicionou-se pela 189
Canotilho J. J. Gomes, Direito constitucional, 4. ed., Coimbra, 1986, p. 729. Barbosa, Rui .Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo, in Trabalhos jurídicos, p. 70-1; e O direito do Amazonas ao Acre Septentrional, v. 1, p. 103;. Campos, F. Direito constitucional, 1956, v. 1, p. 430-1; Buzaid,Alfredo. Da ação direta da declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro, p. 1302; Nunes, J. Teoria e prática do Poder Judiciário, p. 589. 191 Willoughby, The Constitutional law,cit., v. 1, p. 9-10. Cf., também, Cooley, Thomas M. Treaties on the constitutional limitations, 1878, p. 227. 190
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes equiparação entre inconstitucionalidade e nulidade. Afirmava-se, em favor dessa tese, que o reconhecimento de qualquer efeito a uma lei inconstitucional importaria na suspensão provisória ou parcial da Constituição.192 Convém observar, porém, que recepção da doutrina americana não contribuiu significativamente para o desenvolvimento de uma teoria da nulidade da lei inconstitucional no direito brasileiro. Também a fundamentação dogmática na chamada nulidade de pleno direito ou ipso jure jamais se afigurou precisa entre nós. Assim, constatou Lúcio Bittencourt que os constitucionalistas brasileiros não lograram fundamentar nem a eficácia erga omnes, nem a chamada retroatividade ex tunc da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal. É o que se lê na seguinte passagem de seu magno trabalho: “(...) as dificuldades e problemas surgem, precisamente, no que tange à eficácia indireta ou colateral da sentença declaratória da inconstitucionalidade, pois, embora procurem os autores estendê-la a situações jurídicas idênticas, considerando indiretamente anulada a lei, porque a ‘sua aplicação não obteria nunca mais o concurso da justiça’, não têm, todavia, conseguido apresentar fundamento técnico, razoavelmente aceitável, para justificar essa extensão. Não o apontam os tratadistas americanos — infensos à sistematização, que caracteriza os países onde se adota a codificação do direito positivo — limitando-se a enunciar o princípio, em termos categóricos: a lei declarada inconstitucional deve ser considerada, para todos os efeitos, como se jamais, em qualquer tempo, houvesse possuído eficácia jurídica — is to be regarded as having never, at any time, been possessed of any legal force. Os nossos tratadistas também não indicam a razão jurídica determinante desse efeito amplo. Repetem a doutrina dos escritores americanos e as afirmações dos tribunais, sem buscar-lhes o motivo, a causa ou o fundamento. Nem o grande Rui, com o seu gênio estelar, nem os que subseqüentemente, na sua trilha luminosa, versaram o assunto com a proficiência de um Castro Nunes. É que em face dos princípios que orientam a doutrina de coisa julgada e que são comumente aceitos entre nós, é difícil, senão impossível, justificar aqueles efeitos, que aliás, se verificam em outras sentenças como, por exemplo, as que decidem matéria de estado civil, as quais, segundo entendimento geral prevalecem erga omnes193. Em verdade, ainda que não pertencente ao universo específico da judicial review, o instituto do stare decisis desonerava os constitucionalistas americanos, pelo menos em parte, de um dever mais aprofundado de fundamentação na espécie. Como esse mecanismo assegura, em alguma medida, efeito vinculante às decisões das Cortes Superiores, em caso de declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte tinha-se a segurança de que, em princípio, nenhum tribunal haveria de conferir eficácia à norma objeto de censura. Assim, a ausência de mecanismo
192 193
Cf. Buzaid, Da ação direta ,cit., p. 128-32. Bittencourt, Carlos Alberto Lúcio, O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis, p. 140-141.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes processual assemelhado à “força de lei” (Gesetzeskraft) do direito alemão não impediu que os autores americanos sustentassem a nulidade da lei inconstitucional. Sem dispor de um mecanismo que emprestasse força de lei ou que, pelo menos, conferisse caráter vinculante às decisões do Supremo Tribunal Federal, tal como o stare decisis americano194, contentava-se a doutrina brasileira em ressaltar a evidência da nulidade da lei inconstitucional 195 e a obrigação dos órgãos estatais de se absterem de aplicar disposição que teve a sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal196. O constituinte de 1934 introduziu a chamada suspensão de execução da lei mediante intervenção do Senado Federal (art. 91, IV) com o propósito inequívoco de emprestar força normativa às declarações de inconstitucionalidade proferidas incidentalmente pelo Supremo Tribunal Federal197. Esse instituto
194
Cf., sobre o assunto, a observação de Rui Barbosa a propósito do direito americano: “ (...) se o julgamento foi pronunciado pelos mais altos tribunais de recurso , a todos os cidadãos se estende, imperativo e sem apelo,, no tocante aos princípios constitucionais sobre o que versa”. Nem a legislação “tentará contrariá-lo, porquanto a regra stare decisis exige que todos os tribunais daí em diante o respeitem como res judicata (...)” (Cf. Comentários `Constituição Federal Brasileira, coligidos por Homero Pires, vol IV, p. 268). A propósito, anotou Bittencourt que a regra stare decisis não tinha o poder que lhe atribuíra Rui, muito menos o de eliminar a lei do ordenamento jurídico (Bittencourt, cit., p. 143, nota 17). 195 Cf., a propósito, Bittencourt, O controle jurisdicional , cit., p. 140-141. 196 Bittencourt, O controle jurisdicional , cit., p. 144; Nunes, Teoria e prática do Poder Judiciário, p. 592. 197 Cf., a propósito, Prado Kelly, Discurso na Assembléia Constituinte, in Ana Valderez Ayres Neves de Alencar, A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados inconstitucionais, RIL n. 57, 1978 [jan/mar], p. 260; ver, também, MS 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, RTJ n. 38, p. 23, 28, 81) .Na discussão travada no Plenário da Constituinte, destacaram-se as objeções de Levi Carneiro, contrário à incorporação do instituto ao Texto Magno. Prevaleceu a tese perfilhada, dentre outros, por Prado Kelly, tal como resumida na seguinte passagem: "Na sistemática preferida pelo nobre Deputado, Sr. Levi Carneiro, o Supremo Tribunal decretaria a inconstitucionalidade de uma lei, e os efeitos dessa decisão se limitariam às partes em litígio. Todos os demais cidadãos, que estivessem na mesma situação da que foi tutelada num processo próprio, estariam ao desamparo da lei. Ocorreria, assim, que a Constituição teria sido defendida na hipótese que permitiu o exame do Judiciário, e esquecida, anulada, postergada em todos os outros casos (...) Certas constituições modernas têm criado cortes jurisdicionais para defesa da Constituição. Nós continuamos a atribuir à Suprema Corte a palavra definitiva da defesa e guarda da Constituição da República. Entretanto, permitimos a um órgão de supremacia política estender os efeitos dessa decisão, e estendê-los para o fim de suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando o Poder Judiciário os declara inconstitucionais"197 (Alencar, A competência do Senado Federal..., Revista de Informação Legislativa, cit., p. 247). Na Assembléia Constituinte de 1946, reencetou-se o debate, tendo-se destacado, uma vez mais, na defesa do instituto, a voz de Prado Kelly: "O Poder Judiciário só decide em espécie.É necessário, porém, estender os efeitos do julgado, e esta é atribuição do Senado. Quanto ao primeiro ponto, quero lembrar que na Constituição de 34 existe idêntico dispositivo.Participei da elaboração da Constituição de 34. De fato, tentou-se a criação de um quarto poder; entretanto, já há muito o Senado exercia a função controladora, fiscalizadora do Poder Executivo. O regime democrático é um regime de legalidade. No momento em que o Poder Executivo pratica uma ilegalidade, a pretexto de regulamentar uma lei votada pelo Congresso, exorbita nas suas funções. Há a esfera do Judiciário, e este não está impedido, desde que é violado o direito patrimonial do indivíduo, de apreciar o direito ferido. Se, entretanto, se reserva ao órgão do Poder Legislativo, no caso o Senado, a atribuição fiscalizadora da lei, não estamos diante de uma função judicante, mas de fiscal do arbítrio do Poder Executivo. O dispositivo já constava da Constituição de 34 e não foi impugnado por nenhum autor ou comentador que seja, do meu conhecimento. Ao contrário, foi um dos dispositivos
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes foi incorporado à Constituição de 1946 (art. 64), à Constituição de 1967/69 (art. 42, VII) e mantido na Constituição de 1988 (art. 52, X). Esse ato do Senado Federal conferia eficácia erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida no caso concreto198. No MS 16.512 (Rel. Min. Oswaldo Trigueiro), de 25 de maio de 1966, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de discutir largamente a natureza do instituto, infirmando a possibilidade de o Senado Federal revogar o ato de suspensão anteriormente editado, ou de restringir o alcance da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Cuidava-se de Mandado de Segurança impetrado contra a Resolução nº 93, de 14 de outubro de 1965, que revogou a Resolução anterior (nº 32, de 25-3-1965), pela qual o Senado suspendera a execução de preceito do Código Paulista de Impostos e Taxas. A Corte pronunciou a inconstitucionalidade da resolução revogadora, contra os votos de Aliomar Baleeiro e Hermes Lima, conhecendo do mandado de segurança como representação, tal como proposto pelo Procurador-Geral da República, Dr. Alcino Salazar199. O Supremo Tribunal Federal reconheceu que o Senado não estava obrigado a proceder à suspensão do ato declarado inconstitucional. Nessa linha de entendimento, ensinava Victor Nunes: "(...) o Senado terá seu próprio critério de conveniência e oportunidade para praticar o ato de suspensão. Se uma questão foi aqui decidida por maioria escassa e novos Ministros são nomeados, como há pouco aconteceu, é de todo razoável que o Senado aguarde novo pronunciamento antes de suspender a lei. Mesmo porque não há sanção específica nem prazo certo para o Senado se manifestar"200. Todavia, em se procedendo à suspensão do ato que teve a inconstitucionalidade pronunciada pelo Supremo Tribunal Federal, não poderia aquela Alta Casa do Congresso revogar o ato anterior.201 Da mesma forma, o ato do Senado haveria de se ater à "extensão do julgado do Supremo Tribunal",202 não tendo "competência para examinar o mérito da decisão (...), para interpretá-la, para ampliá-la ou restringi-la".203 Vê-se, pois, que, tal como assentado no acórdão do Supremo Tribunal Federal, o ato do Senado tem o condão de outorgar eficácia ampla à decisão judicial, vinculativa, inicialmente, mas festejados pela crítica, porque atendia, de fato, às solicitações do meio político brasileiro" (Alencar, A competência do Senado Federal..., Revista de Informação Legislativa, cit., p. 260). E, ante as críticas tecidas por Gustavo Capanema, ressaltou Nereu Ramos que: "A lei ou regulamentos declarados inconstitucionais são juridicamente inexistentes, entre os litigantes. Uma vez declarados, pelo Poder Judiciário, inconstitucionais ou ilegais, a decisão apenas produz efeito entre as partes. Para evitar que os outros interessados, amanhã, tenham de recorrer também ao Judiciário, para obter a mesma coisa, atribui-se ao Senado a faculdade de suspender o ato no todo ou em parte, quando o Judiciário haja declarado inconstitucional, porque desde que o Judiciário declara inconstitucional, o Presidente da República não pode declarar constitucional" (Alencar, A competência do Senado Federal..., Revista de Informação Legislativa, cit., p. 268). 198 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves .Curso de direito constitucional, p. 35; Silva, J.A. da. Curso de direito constitucional positivo, p. 52. 199 RTJ, 38(1):8-9. 200
Voto do Min. Victor Nunes Leal, MS 16.512, RTJ, 38(1):23.
201
Nesse sentido, v. votos proferidos pelos ministros Gonçalves de Oliveira e Cândido Motta Filho, RTJ, 38(1):26.
202 203
Voto do Min. Victor Nunes Leal, MS 16.512, RTJ, 38(1):23. Voto do Min. Pedro Chaves, MS 16.512, RTJ, 38(1):12.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes apenas para os litigantes. Cobra relevo ressaltar, igualmente, que, segundo esse entendimento, a inércia do Senado não afeta a relação entre os poderes, não se podendo vislumbrar qualquer violação constitucional na eventual recusa à pretendida extensão de efeitos. Portanto, ainda que se aceite que, em princípio a suspensão da execução da lei pelo Senado retira a lei do ordenamento jurídico com eficácia ex tunc, esse instituto, tal como foi interpretado e praticado, entre nós, configura antes a negação do que a afirmação da teoria da nulidade da lei inconstitucional. A não-aplicação geral da lei depende da vontade de um órgão eminentemente político e não dos órgãos judiciais incumbidos da aplicação cotidiana do direito. Tal fato reforça a idéia de que, embora tecêssemos loas à teoria da nulidade da lei inconstitucional, consolidávamos institutos que iam de encontro à sua implementação. Assinale-se, apenas por amor à completude, que se a doutrina e a jurisprudência entendiam que lei inconstitucional era ipso jure nula, deveriam ter defendido, de forma coerente, que o ato de suspensão a ser praticado pelo Senado haveria de destinar-se exclusivamente a conferir publicidade à decisão do STF, tal como já ocorria no texto austríaco de 1920/1929. Essa foi a posição sustentada por Lúcio Bittencourt: “Se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir todos os seus efeitos regulares que, de fato, independem de qualquer dos poderes. O objetivo do art. 45, IV da Constituição – a referência é ao texto de 1967 – é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos. Dizer que o Senado “suspende a execução” da lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo “inexistente” ou “ineficaz”, não pode ter suspensa a sua execução” 204. Tal concepção, que se afigura absolutamente coerente com o discurso da nulidade da lei inconstitucional, restou absolutamente isolada. A criação da representação interventiva não contribuiu para alterar a situação de incongruência apontada. É verdade que a sua instituição, iniciada em 1934 e consolidada em 1946, deu ensejo a alguns devaneios teóricos em torno dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida nessa sede. Assim, após afirmar que o Procurador-Geral da República atua nesses processos como substituto processual de toda coletividade empenhada em expurgar a ordem jurídica de atos políticos, manifestamente inconstitucionais e capazes e pôr em risco a estrutura do Estado205, e que essa era a única ação direta que tinha como objeto principal a declaração de inconstitucionalidade206, sustentou Buzaid, em obra clássica, publicada em 1958, o seguinte entendimento sobre os efeitos da decisão proferida na representação interventiva: “A decisão do Supremo vale como lex specialis, com eficácia erga omnes, mas a decisão precisa ser remetida ao Congresso, para que este suspenda a execução do ato. A eficácia do julgado é retroativa, abrangendo todos os atos praticados sob o império da lei declarada inconstitucional. Declarada a inconstitucionalidade, o efeito da sentença retroage ex tunc à data da publicação da lei ou ato, porque de outro modo se chegaria à conclusão verdadeiramente paradoxal de que a validade da lei si et in quantum tem a virtude de ab-rogar o dispositivo
204 205 206
Cf. Controle de Constitucionalidade, cit., p. 145/146. Buzaid, Da ação direta, cit., p. 107. Buzaid, Da ação direta, cit., p. 113.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes constitucional violado (...)”.207 Diante de um dispositivo claro como o do art. 13 da Constituição de 1946, que determinava fosse o ato, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal, suspenso pelo Congresso Nacional, afigurava-se difícil sustentar, dogmaticamente, a tese perfilhada por Buzaid. Parece evidente, outrossim, que o Procurador-Geral da República atuava como representante judicial da União desse processo, e não como substituto processual de toda comunidade. Não se tratava de decisão com eficácia erga omnes, nem a declaração de inconstitucionalidade tinha o condão de produzir a nulidade com eficácia retroativa, conforme demonstrado em voto proferido por Moreira Alves já sob a Constituição de 1967/69: "A representação interventiva é instrumento jurídico que se integra num processo político -- a intervenção -- para legitimá-lo. Embora diga respeito à lei em tese, não se apresenta, propriamente, como instrumento de controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade nela obtida não opera erga omnes, mas apenas possibilita (como elo de uma cadeia em que se conjugam poderes diversos) ao Presidente da República (ou ao Governador, ser for o caso) suspender a execução do ato impugnado".208 Vê-se, pois, que, na representação interventiva, o Supremo Tribunal Federal limitase a constatar ou a declarar a ofensa aos princípios sensíveis. A decisão parece configurar aquilo que a doutrina constitucional alemã denomina Feststellungsurteil (sentença declaratória)209. O julgado não obriga, per se, o ente federado, não o condena, expressamente, a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Tal como estabelecido no ordenamento constitucional brasileiro, a decisão do Supremo Tribunal constitui conditio juris das medidas interventivas, que não poderão ser empreendidas sem a declaração judicial de inconstitucionalidade. Todavia, o julgado não tem o condão de anular ou de retirar eficácia do ato impugnado. Tanto é assim que os constituintes de
207 208
Buzaid, Da ação direta, cit., p. 137-138. RE 92.169-SP, RTJ, 103(3):1112-13.
209
Pestalozza,, Verfassungsprozessrecht, cit., Die Verfassungsgerichtsbarkeit des Bundes und der länder, 2. Aufl., München, C. H. Beck, 1982, p. 65-6; Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, cit.; Stellung Verfahren, Entscheidungen, 1. Aufl., München, C. H. Beck, 1985, p. 158 e 47-8; Klaus Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraft der Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, in Christian Starck (org.), Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, 1. Aufl., Tübingen, Mohr, 1976, v. 1, p. 587-8; Theo Ritterspach, Legge sul Tribunale Costituzionale della Repubblica Federale di Germania, Firenze, CEDEUR, 1982, p. 11516. "La sentenza riguardante la richiesta del ricorrente stabilisce soltanto che un determinato comportamento (azione od omissione) del convenuto, ha violato una specifica disposizione costituzionale (vedi in proposito E 20, 120, 44, 127; 45, 3 s.). La sentenza non stabilisce nessuna sanzione per la condotta errata e riserva agli organi costituzionali interessati la facoltà di trarre le conclusioni del caso (eventualmente politiche). L'interpretazione della costituzione che conduce al dispositivo della sentenza, è esposta solo nella motivazione. In un procedimento relativo alla controversia tra organi non può essere, nè accertata l'inefficacia di una disposizione, nè dichiarata nulla una legge [E 1, 351(371); 20, 119, 129]. Al contrario è ammesso aggiungere ad una sentenza che respinge l'instanza, un 'capoverso esplicativo' [E 1, 351(352, 371 e s.)]."
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 1946 e de 1967/1969, referiram-se à suspensão do ato (CF de 1946, art. 13; CF de 1967/1969, art. 11, § 2º), pressupondo, pois, a sua subsistência, mesmo após a pronúncia de ilegitimidade.210 Tal como no chamado Feststellungsurteil, que o Bundesverfassungsgericht pronuncia no conflito entre órgãos (Organstreitigkeiten) e na controvérsia entre União e Estado (föderative Streitigkeiten), a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na representação interventiva, constata a existência ou inexistência de violação à ordem federativa, vinculando as partes representadas na relação processual. Não se tem aqui, propriamente, uma declaração de nulidade ou de ineficácia do ato estadual, mas uma declaração de que determinado ato, provimento, ou medida, promulgada pelos Poderes Públicos estaduais, afronta princípios fundamentais da Federação ou obsta à execução de lei federal. Não obstante a aparente sutileza, a distinção assume relevância na sistemática do controle de constitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade pronunciada in abstracto importa no reconhecimento da nulidade da lei. A decisão proferida na representação interventiva, concebida como um accertamento giudiziale dell'illecito, para fins interventivos, limita-se a constatar a configuração da ofensa constitucional. A suspensão do ato pelo Presidente da República, com a conseqüente outorga de eficácia erga omnes ao julgado, somente se dará se o Estado-Membro não empreender, motu proprio, a suspensão ou a revogação do ato declarado incompatível com a ordem federativa.211 Mais uma vez aqui a doutrina acabou por divorciar-se por completo dos referenciais dogmáticos existentes, contribuindo para a mantença da confusão dominante. A representação interventiva não se confundia com o controle abstrato de normas; era, ao revés, simples fórmula de judicialização de um procedimento político especial. 1.3.2. A declaração inconstitucionalidade in abstracto
de
inconstitucionalidade
na
representação
de
A proposta de Emenda à Constituição nº 16, de 1965,212 continha cláusula que outorgava eficácia erga omnes às decisões declaratórias de inconstitucionalidade proferidas pelo 210
Esse mecanismo foi incorporado à Constituição de 1988, conforme se pode depreender da leitura do art. 36, § 3. (Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade). Portanto, também no atual Texto Magno, limita-se o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade da providência ou do ato normativo estadual, sem lhe retirar a eficácia. O ato impugnado somente será retirado do ordenamento jurídico mediante providência do ente federado (revogação), ou através da suspensão, nos termos do art. 36, § 3. 211 Pacheco, Cláudio. Tratado das Constituições Brasileiras, Rio de Janeiro, 1965, v.3, p. 78-9. 212 A Emenda n. 16, de 26 de novembro de 1965, instituiu, ao lado da representação interventiva, e nos mesmos moldes, o controle abstrato de normas estaduais e federais. A reforma realizada, fruto dos estudos desenvolvidos na Comissão composta por Orozimbo Nonato, Prado Kelly (Relator), Dario de Almeida Magalhães, Frederico Marques e Colombo de Souza, visava a imprimir novos rumos à estrutura do Poder Judiciário. Parte das mudanças recomendadas já havia sido introduzida pelo Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965. A Exposição de Motivos encaminhada pelo Ministro da Justiça, Dr. Juracy Magalhães, ao Presidente da República, ressalta que "a atenção dos reformadores tem-se detido enfaticamente na sobrecarga imposta ao Supremo Tribunal e ao Tribunal de Recursos". Não obstante, o próprio Supremo Tribunal Federal houve por bem sugerir a adoção de dois novos institutos de legitimidade constitucional, tal como descrito na referida Exposição de Motivos: "a) uma representação de inconstitucionalidade de lei federal, em tese, de exclusiva iniciativa do Procurador-Geral da República, à semelhança do que existe para o direito estadual (art. 8., parágrafo único, da Constituição Federal); b) uma prejudicial de inconstitucionalidade, a ser suscitada, exclusivamente, pelo próprio Supremo Tribunal Federal ou pelo Procurador-Geral da República, em qualquer processo em curso perante outro juízo".
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Supremo Tribunal Federal – “As disposições de lei ou ato de natureza normativa consideradas inconstitucionais em decisão definitiva perderão eficácia, a partir da declaração do Presidente do Supremo Tribunal Federal publicada no órgão oficial da União” [Proposta de emenda, art. 5o]. E o art. 64 da Constituição, que disciplinava a suspensão da execução pelo Senado Federal, passava a ter a seguinte redação: "Art. 64. Incumbe ao Presidente do Senado Federal, perdida a eficácia de lei ou ato de natureza normativa (art. 101, § 3º), fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção das leis, a conclusão do julgado que lhe for comunicado". A Exposição de Motivos da comissão justificava a opção adotada nos seguintes termos: “Ao direito italiano pedimos, todavia, uma formulação mais singela e mais eficiente do que a do art. 64 da nossa Constituição, para tornar explícito, a partir da declaração de ilegitimidade, o efeito erga omnes de decisões definitivas do Supremo Tribunal, poupando ao Senado o dever correlato de suspensão da lei ou do decreto -- expediente consentâneo com as teorias de direito público em 1934, quando ingressou em nossa legislação, mas presentemente suplantada pela formulação contida no art. 136 do estatuto de 1948: 'Quando la Corte dichiara l'illegittimità costituzionale di una norma di legge o di atto avente forza di legge, la norma cessa di avere efficacia dal giorno sucessivo alla publicazione della decisione”.213 Assim, tentava-se, pela primeira vez, consolidar um modelo dogmático coincidente com o discurso teórico. A fórmula proposta não foi aprovada pelo Congresso Nacional, subsistindo, pois, a necessidade de que se encaminhassem as declarações de inconstitucionalidade ao Senado Federal para que se efetivasse a suspensão de execução do dispositivo declarado inconstitucional. Restou aprovado, porém, o controle abstrato de normas, sob a forma da representação de inconstitucionalidade (art.101,alínea k , da Constituição de 1946, na redação conferida pela Emenda Constitucional 16/65). A disciplina da representação de inconstitucionalidade foi preservada sob a Constituição de 1967/69. Na fase inaugural do novo instituto, limitou-se o Tribunal, tal como fazia no controle incidental, a informar o Senado Federal sobre a declaração de inconstitucionalidade também no processo de controle abstrato de normas. A este caberia decidir sobre a definitiva suspensão da aplicação da lei declarada inconstitucional.214 Após longa discussão, iniciada em 1970, o Supremo Tribunal Federal deixou assente, em 1977, que, ao contrário da decisão proferida na representação interventiva, a pronúncia de inconstitucionalidade no processo de controle abstrato de normas era dotada de eficácia erga omnes.215 Essa orientação foi fixada em resposta a uma consulta formulada pelo Senado Federal216. 213
Brasil. Constituição (1946): Emendas. Emendas à Constituição de 1946, n. 16: reforma do Poder Judiciário, Brasília, Câmara dos Deputados, 1968, p. 24.
214
Rp. 933 - liminar, Rel. Min. Thompson Flores, RTJ n. 76, p. 343. Parecer do Min. Rodrigues Alckmin, de 19.6.1974, DJ de 16.5.1977, p. 3.124; Parecer do Min. Moreira Alves, de 11.11.1975, DJ de 16.5.1977, p. 3.123. 216 Parecer do Min. Moreira Alves, de 11.11.1975, DJ de 16.5.1977, p. 3.123; v., também, O. A. Bandeira de Mello, Teoria da Constituições rígidas, p.213. 215
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Segundo a orientação estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal, a eficácia erga omnes da pronúncia de inconstitucionalidade proferida no processo de controle abstrato de normas estava vinculada, fundamentalmente, à natureza do processo e não dependia, portanto, de qualquer fundamento legal.217 Desde então, não mais se coloca em dúvida, na doutrina e na jurisprudência, a eficácia erga omnes da pronúncia de inconstitucionalidade proferida no processo de controle abstrato de normas.218 Uma alteração posterior do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal deixou assente que, apenas na hipótese de decisão proferida no controle incidental de normas estava a Corte obrigada a informar o Senado Federal sobre a declaração de inconstitucionalidade (art. 178, do Regimento Interno do STF na versão de 15.10.1980). A doutrina passou a admitir que a eficácia erga omnes da pronúncia de inconstitucionalidade, no controle abstrato de normas, tem hierarquia constitucional. Sustenta-se, com base no argumento a contrario, lastreado no art. 52, X, da Constituição, que a suspensão da aplicação da lei inconstitucional pelo Senado Federal é exigida apenas nos casos de declaração incidental de inconstitucionalidade219. A Lei no 9.868, de 10 de novembro de 1999, consagrou expressamente a eficácia contra todos como uma qualidade da declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade proferida na ação direta de inconstitucionalidade e na ação declaratória de constitucionalidade (art. 28, parágrafo único). Observe-se ainda que, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pode-se identificar uma tímida tentativa, levada a efeito em 1977, no sentido de, com base na doutrina de Kelsen e em concepções desenvolvidas no direito americano, abandonar a teoria da nulidade em favor da chamada teoria da anulabilidade para o caso concreto.220 Segundo essa concepção, a lei inconstitucional não pode ser considerada nula, porque, tendo sido editada regularmente, gozaria de presunção de constitucionalidade, e sua aplicação continuada produziria conseqüências que não poderiam ser olvidadas.221 A lei inconstitucional não seria, portanto, nula ipso jure, mas apenas anulável. A declaração de inconstitucionalidade teria, assim, caráter constitutivo.222 Da mesma forma que o legislador poderia dispor sobre os efeitos da lei inconstitucional, seria facultado ao Tribunal reconhecer que a lei aplicada por longo período haveria de ser considerada como fato eficaz, apto a produzir conseqüências pelo menos nas relações jurídicas entre pessoas privadas e o Poder Público.223 Esse seria também o caso se, com a cassação de um ato administrativo, se configurasse uma quebra da segurança jurídica e do princípio da boa-fé.224 É interessante registrar a síntese da argumentação desenvolvida por Leitão de Abreu: 217
Parecer do Min. Moreira Alves, de 11.11.1975, DJ de 16.5.1977, p. 3.123). Em favor da tese da anulabilidade da lei inconstitucional, confira, porém, o excelente trabalho de Regina Maria Macedo Nery Ferrari, Efeitos da declaração de inconstitucionalidade, 3ª ed., São Paulo, 1992, p. 98; Cf., a propósito, J. A. da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 51-2. 219 Silva, J. A. Curso de direito constitucional positivo, p. 52; Ferreira Filho, Curso de direito constitucional, p. 33-5. 220 Em verdade, no caso específico, considerou o relator que a matéria não comportava a aplicação da doutrina restritiva, pois, ao celebrar o negócio jurídico, o recorrido não tomara em consideração a regra posta no ato legislativo declarado inconstitucional (RTJ 82, p. 795-6). Assim, parece claro que toda argumentação desenvolvida por Leitão de Abreu, na espécie, não passa de obiter dictum. 218
221
RE 79.343, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ n. 82, p. 795. Cf. também, Pontes de Miranda, Comentários à Constituição Federal de 1967/69, v. 3, p. 619. 223 RE 79.343, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ n. 82, p. 795. 224 RE 79.343, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ n. 82, p. 795. 222
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes “Hans Kelsen, enfrentando o problema, na sua General Theory of Law and State, inclina-se pela opinião que dá pela anulabilidade, não pela nulidade da lei inconstitucional. Consigna ele, em nota que figura à p. 160, desse livro: The void ab initio theory is not generally accepted.(Cf. for instance Chief Justice Hughes in Chicot County Drainage District v. Baxter State Bank, 308, U. S. 371 (1940)). The best formulation of the problem is to be found in Wellington et al. Petitioners, 16 Piock. 87 (Mass., 1834), at 96: ‘Perhaps, however, it may be well doubted whether a formal act of legislation can ever with strict legal propriety be said to be void; It seems more consistent with the nature of the subject, and the principles apliccable to analogous cases, to treat it as voidable’. Com base nessa orientação jurisprudencial, escreve o famoso teórico do direito: ‘A decisão tomada pela autoridade competente de que algo que se apresenta como norma é nulo ab initio, porque preenche os requisitos da nulidade determinados pela ordem jurídica, é um ato constitutivo; possui um efeito legal definido; sem esse ato e antes dele o fenômeno em questão não pode ser considerado ‘nulo’. Donde não se tratar de decisão ‘declaratória’, não constituindo, como se afigura, declaração de nulidade: é uma verdadeira anulação, uma anulação com força retroativa, pois se faz mister haver legalmente existente a que a decisão se refira. Logo o fenômeno em questão não pode ser algo nulo ab initio, isto é, o não ser legal. É preciso que esse algo seja considerado como uma força anulada com força retroativa pela decisão que a declarou nula ab initio’ (Ob. cit., p. 161). Acertado se me afigura, também, o entendimento de que se não deve ter como nulo ab initio ato legislativo que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade, impondo-se, em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, à obediência pelos destinatários dos seus comandos. Razoável é a inteligência, a meu ver, de que se cuida, em verdade de ato anulável, possuindo caráter constitutivo a decisão que decreta nulidade. Como, entretanto, em princípio, os efeitos dessa decisão operam retroativamente, não se resolve, com isso, de modo pleno, a questão de saber se é mister haver como delitos do orbe jurídico atos ou fatos verificados em conformidade com a norma que haja sido pronunciada como inconsistente com a ordem constitucional. Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o Corpus Juris Secundum, de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação de inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo”.225
225
RE 79.343, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ n. 82, p. 791/795.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Essa posição não provocou qualquer mudança no entendimento anterior relativo à nulidade ipso jure.226 E, em verdade, é possível até que não fosse apta a provocar qualquer mudança. É que o próprio relator, Leitão de Abreu, ao julgar o RE nº 93.356, julgado em 24 de março de 1981, destacou, verbis: “Nos dois casos, a tese por mim sustentada pressupunha a existência de situação jurídica formalmente constituída, com base em ato praticado, de boa-fé, sob a lei que só posteriormente veio a ser declarada inconstitucional. Ora, como assinala com precisão o parecer da Procuradoria-Geral da República, não é esse o caso dos autos, pois que o poder público não chegou a reconhecer ao recorrente o direito ao cômputo do tempo de serviço, a que reporta”.227 Orientação semelhante já havia sido adotada no caso mais famoso, apresentado no RE 79.343, tendo realçado que não havia falar-se de proteção de boa-fé, pois restara claro que, ao concluir o negócio jurídico, não tomara o recorrido em consideração a regra posta no ato legislativo posteriormente declarado inconstitucional.228 Assim, talvez seja lícito dizer que Leitão de Abreu limitou-se a propor uma reflexão sobre o tema da limitação dos efeitos, no caso concreto, em alguma questão apropriada. Nessa parte, as considerações por ele trazidas equivalem a simples obiter dicta. Ressalte-se, porém, que, se aceita a tese esposada por Leitão, ter-se-ia a possibilidade de limitação de efeitos da decisão no próprio controle incidental ou da decisão in concreto. Em outras palavras, o tribunal poderia declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, com eficácia restrita, o que daria ensejo à aplicação da norma inconstitucional no caso concreto. Importa assinalar, portanto, segundo a orientação amplamente dominante do Supremo Tribunal, a lei inconstitucional não poderia criar direitos, nem impor obrigações, de modo que tanto os órgãos estatais como o indivíduo estariam legitimamente autorizados a negar obediência às prescrições incompatíveis com a Constituição229. Embora o Tribunal não tenha logrado formular essa conclusão com a necessária nitidez, é certo que parecia partir da premissa de que o princípio da nulidade da lei inconstitucional tem hierarquia constitucional230. Essa orientação afigurava-se extremamente facilitada em face do entendimento consagrado a partir de 1977 sobre a eficácia geral da decisão proferida em sede de controle abstrato de normas.
1.3.3. Notas conclusivas Um balanço da orientação adotada pela doutrina brasileira sobre o tema, até 1977, há demonstrar que a rigor, tal como já observara Lúcio Bittencourt em 1949, a teoria da nulidade entre nós carecia de fundamentos mais precisos. A falta de um instrumento de generalização dos efeitos da decisão, seja na forma da “Gesetzeskraft” (força de lei) alemã, seja na forma do stare decisis americano, retirava do nosso sistema qualquer possibilidade para conferir consistência a uma teoria da nulidade da lei inconstitucional. Não era por outra razão que Lúcio Bittencourt dizia que, embora os nossos autores procurassem estender os efeitos das decisões de inconstitucionalidade a situações jurídicas idênticas, considerando indiretamente anulada a lei, porque a ‘sua aplicação não obteria nunca mais o concurso da justiça’, não conseguiam apresentar
226
Cf. RE 93.356, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ n. 97, p. 1.369. Cf. RE 93.356, Relator: Ministro Leitão de Abreu, RTJ n. 97, p. 1369 (1372). 228 Cf. RE 79.343, Relator: Ministro Leitão de Abreu, RTJ 82, p. 791 (795-796). 229 Rp. 980, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ n. 96, p. 508. 230 Cf. RE 103.619, Rel. Min. Oscar Corrêa, RDA n. 160, p. 80 e s. 227
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes fundamento técnico, razoavelmente aceitável, para justificar essa extensão.231 A generalização de efeitos pela via da intervenção do Senado Federal, consagrado pela Constituição de 1934 e reproduzida nos textos subseqüentes, não contribuiu para a consolidação da doutrina da nulidade. Ao revés, a outorga desse poder a um órgão político mais negava do que afirmava a teoria da nulidade. Na reforma constitucional de 1965 (Emenda nº 16) tentou-se superar essa orientação, mas, nesse passo, houve a rejeição da fórmula proposta pelo Executivo. A adoção do controle abstrato de normas (representação de inconstitucionalidade) obrigou o Supremo Tribunal Federal a enfrentar a questão, descobrindo, depois de longas discussões, que a eficácia da decisão de inconstitucionalidade proferida nessa ação não poderia depender da suspensão pelo Senado. Como era largamente aceita a idéia da nulidade da lei inconstitucional entre nós, tornou-se lugar comum afirmar a nulidade da lei declarada inconstitucional no processo da representação de inconstitucionalidade. É notório, pois, que, não tendo sido capaz de fundamentar um mecanismo de expulsão ou uma justificativa para a não-aplicação da lei nos primeiros tempos da República (18891934), e tendo em vista a instituição da suspensão de execução da lei declarada inconstitucional na Constituição de 1934, não restou à doutrina nacional outra alternativa senão declamar, sem qualquer efeito prático, a teoria da nulidade, em completo divórcio com o estabelecido no sistema positivo. A rigor, somente com o advento da Emenda 16/65 é que se criou, no direito positivo, uma base normativa para a velha teoria da nulidade. E, ainda assim, somente em 1977, passados 12 anos da promulgação da aludida Emenda, veio o Supremo reconhecer a qualidade de eficácia erga omnes à decisão proferida na representação. Merece registro, portanto, que o casamento entre as concepções teóricas sobre a nulidade da lei inconstitucional e a dogmática constitucional somente veio a se realizar em fins da década de 70, quase um século após a afirmação inicial da teoria da nulidade entre nós.
1.4. A controvérsia sob a Constituição de 1988 Na Assembléia Constituinte de 1986-88, foi proposta a introdução de dispositivo que autorizava o Supremo Tribunal Federal a determinar se a lei que teve sua inconstitucionalidade declarada no controle abstrato de normas haveria de perder eficácia ex tunc, ou se a decisão deixaria de ter eficácia a partir da data de sua publicação. O Projeto, do Senador Maurício Corrêa estabelecia, verbis: "Art.127................................... § 2o Quando o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, determinará se eles perderão eficácia desde a sua entrada em vigor, ou a partir da publicação da decisão declaratória”. Esse projeto, que observava, em linhas gerais, o modelo estabelecido no art. 282, nº 4, da Constituição portuguesa ("Quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos nº 1 e 2."), foi rejeitado.232
231
Bittencourt, O controle jurisdicional , cit., p. 140 s.
232
Cf., a propósito, J. Néri da Silveira, A dimensão política do Judiciário, Arquivos do Ministério da Justiça n. 173, p. 55.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Preservou-se, assim, a orientação tradicional quanto à nulidade da lei inconstitucional. Todavia, a Lei no 9.868, de 1999, introduziu disposição (art. 27) que autoriza o Supremo Tribunal Federal, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, a restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou a estabelecer que ela tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, desde que tal deliberação seja tomada pela maioria de dois terços de seus membros. Certamente, a inovação em tela merece ser justificada. A aceitação do princípio da nulidade da lei inconstitucional não impede, porém, a nosso ver, que se reconheça a possibilidade de adoção, entre nós, de uma declaração de inconstitucionalidade alternativa. É o que demonstra a experiência do direito comparado, acima referida. Ao revés, a adoção de uma decisão alternativa é inerente ao modelo de controle de constitucionalidade amplo, que exige, ao lado da tradicional decisão de perfil cassatório com eficácia retroativa, também decisões de conteúdo outro, que não importem, necessariamente, na eliminação direta e imediata da lei do ordenamento jurídico. (...) De forma direta, a questão da limitação dos efeitos foi colocada perante o Supremo Tribunal Federal, inicialmente na ADIn nº 513, proposta contra dispositivo da Lei nº 8.134/90, que instituía índice de correção aplicável a fatos anteriores (art. 11, parágrafo único). Célio Borja cuidou, fundamentalmente, de indagar acerca da eventual ocorrência de “excepcional interesse social” que legitimasse o afastamento do princípio da nulidade da lei inconstitucional, verbis: “Alegação de só poder ter efeito ex nunc a decisão que nulifica lei que instituiu ou aumentou tributo auferido pelo tesouro e já aplicado em serviços ou obras públicas. Sua inaplicabilidade à hipótese dos autos que não cogita, exclusivamente, de tributo já integrado ao patrimônio público, mas, de ingresso futuro a ser apurado na declaração anual do contribuinte e recolhido posteriormente. Também não é ela atinente a eventual restituição de imposto pago a maior, porque está prevista em lei e terá seu valor reduzido pela aplicação de coeficiente menos gravoso. Não existe ameaça iminente à solvência do tesouro, à continuidade dos serviços públicos ou a algum bem política ou socialmente relevante, que justifique a supressão, in casu, do efeito próprio, no Brasil, do juízo de inconstitucionalidade da norma, que é a sua nulidade. É de repelir-se, portanto, a alegada ameaça de lacuna jurídica ameaçadora (Bedrohliche Rechtslucke)”. 233 Nesses termos, ainda que Célio Borja, no caso concreto sob exame, tenha negado a ocorrência dos pressupostos aptos a afastar a incidência do princípio da nulidade da lei inconstitucional, não negou ele a legitimidade de proceder-se a uma tal ponderação. Posteriormente, na preocupação com o problema:
ADIn nº 1116, Maurício Corrêa tornou manifesta sua
“Creio não constituir-se afronta ao ordenamento constitucional exercer a Corte política judicial de conveniência, se viesse a adotar sistemática, caso por caso, para a aplicação de quais os efeitos que deveriam ser impostos, quando, como nesta hipótese, defluísse situação 233
ADIn 513/DF, Relator Ministro Célio Borja, RTJ vol. 141, pág. 739.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes tal a recomendar, na salvaguarda dos superiores interesses do Estado e em razão da calamidade dos cofres da Previdência Social, se buscasse o dies a quo, para a eficácia dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a data do deferimento da cautelar. (...) Ressalvada a minha posição pessoal quanto aos efeitos para a eficácia da decisão que, em nome da conveniência e da relevância da segurança social, seriam a partir da concessão da cautelar deferida em 9 de setembro de 1994, e acolhendo a manifestação do Procurador-Geral da República, julgo procedentes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos 1.102-2, 1.108-1 e 1.116-2, para, confirmando a liminar concedida pela maioria, declarar a inconstitucionalidade das expressões ‘empresários’ e ‘autônomos’ contidas no inciso I do artigo 22 da Lei no 8.212, de 25 de julho de 1991”.234 Não se pode dizer também aqui que a Corte tivesse rejeitado a adoção de uma decisão com efeitos restritos sob o regime constitucional de 1988. Tal como se depreende do voto proferido por Sepúlveda Pertence, entendeu-se que o caso não se mostrava adequado para suscitar a discussão. Vale registrar a seguinte passagem de seu voto: “De logo – a observação é de Garcia de Enterría – a conseqüente eficácia ex tunc da pronúncia de inconstitucionalidade gera, no cotidiano da Justiça Constitucional, um sério inconveniente, que é o de levar os tribunais competentes, até inconscientemente, a evitar o mais possível a declaração de invalidade da norma, à vista dos efeitos radicais sobre o passado. O caso presente, entretanto, não é adequado para suscitar a discussão. O problema dramático da eficácia da declaração de inconstitucionalidade surge, quando ela vem surpreender uma lei cuja validade, pelo menos, era “dada de barato”, e de repente, passados tempos, vem a Suprema Corte a declarar-lhe a invalidez à origem. Não é este o caso: a incidência da contribuição social sobre a remuneração de administradores, autônomos e avulsos vem sendo questionada desde a vigência da Lei 7.787, e creio que, nas vias do controle difuso, poucas terão sido as decisões favoráveis à Previdência Social. (...) Sou em tese favorável a que, com todos os temperamentos e contrafortes possíveis e para situações absolutamente excepcionais, se permita a ruptura do dogma da nulidade ex radice da lei inconstitucional, facultando-se ao tribunal protrair o início da eficácia erga omnes da declaração. Mas, como aqui já se advertiu, essa solução, se generalizada, traz também o grande perigo de estimular a inconstitucionalidade”.235 Entendeu-se, quando do julgamento da ADIn nº 1116, que, embora aceitável, em tese, a discussão sobre a restrição de efeitos, o caso não se mostrava adequado, tendo em vista que o 234 235
ADIn 1116-DF, Relator Ministro Maurício Corrêa, RTJ vol. 160, pág. 805. ADIn 1102, Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ 09.09.94.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes modelo legal adotado vinha sendo sistematicamente impugnado pelo Judiciário, inclusive pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
1.4.1. Da Constitucionalidade do art. 27 da Lei 9.868/99 1.4.1.1. Considerações preliminares Há muito vem a doutrina ressaltando as limitações da simples pronúncia da nulidade ou da mera a cassação da lei para solver todos os problemas relacionados à inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo. Não são poucos os que apontam a insuficiência ou a inadequação da declaração de nulidade da lei para superar algumas situações de inconstitucionalidade, sobretudo no âmbito do princípio da isonomia e da chamada inconstitucionalidade por omissão.236 Esse problema revela-se tanto mais sério se se considera que, satisfeitas as principais exigências constitucionais dirigidas ao legislador, passará a assumir relevo a chamada omissão parcial, decorrente da execução defeituosa do dever constitucional de legislar. É certo, outrossim, que, muitas vezes, a aplicação continuada de uma lei por diversos anos torna quase impossível a declaração de sua nulidade, recomendado a adoção de alguma técnica alternativa, com base no próprio princípio constitucional da segurança jurídica. Aqui, o princípio da nulidade deixaria de ser aplicado com base no princípio da segurança jurídica. A visão dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa (Abwehrrecht) revela-se insuficiente para assegurar a pretensão de eficácia que dimana do texto constitucional. Tal como observado por Krebs, não se cuida apenas de ter liberdade em relação ao Estado (Freiheit vom...), mas de desfrutar essa liberdade através do Estado (Freiheit durch...).237 A moderna dogmática dos direitos fundamentais discute a possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e sobre a possibilidade de eventual titular do direito dispor de pretensão a prestações por parte do Estado.238 Se alguns sistemas constitucionais, como aquele fundado pela Lei Fundamental de Bonn, comportam discussão sobre a existência de direitos fundamentais de caráter social (soziale Grundrechte)239, é certo que tal controvérsia não assume maior relevo entre nós, uma vez que o constituinte, embora em capítulos destacados, houve por bem consagrar os direitos sociais, que também vinculam o Poder Público, por força inclusive da eficácia vinculante que se extrai da garantia processual-constitucional do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.240 Não subsiste dúvida, tal como enfatizado, de que a garantia da liberdade do exercício profissional ou da inviolabilidade do domicílio não assegura pretensão ao trabalho ou à
236
Cf., sobre o assunto, Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (368). Krebs, Walter.Freiheitsschutz durch Grundrechte, JURA 1988, p. 617 (624). 238 Krebs, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p.617 (624). 239 Cf. Krebs, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p.617 (624-5); Alexy, Theorie der Grundrechte, 1986, p.395 s. 240 As disposições constitucionais que instituem o mandado de injunção, para assegurar direitos e liberdades constitucionais, sempre que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o seu exercício (CF, art. 5., LXXI), e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2.), destinada a tornar efetiva norma constitucional, expressam, no plano material, o efeito vinculante para o legislador das normas que reclamam expedição de ato normativo. 237
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes moradia. Tais pretensões exigem não só ação legislativa, como, não raras vezes, medidas administrativas.241 Se o Estado está constitucionalmente obrigado a prover tais demandas, cabe indagar se, e em que medida, as ações com o propósito de satisfazer tais pretensões podem ser juridicizadas, isto é, se, e em que medida, tais ações se deixam vincular juridicamente.242 Outra peculiaridade dessas pretensões a prestações de índole positiva é a de que elas estão voltadas mais para a conformação do futuro do que para a preservação do status quo. Tal como observado por Krebs, pretensões à conformação do futuro (Zukunftgestaltung) impõem decisões que estão submetidas a elevados riscos: o direito ao trabalho (Cf, art. 6º) exige uma política estatal adequada de criação de empregos. Da mesma forma, o direito à educação (CF, art. 205 c/c art. 6º), o direito à assistência social (CF, art. 203 c/c art. 6º) e à previdência social (CF, art. 201 c/c art. 6º) dependem da satisfação de uma série de pressupostos de índole econômica, política e jurídica. A submissão dessas posições a regras jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas de natureza política em situações jurídicas. Tem-se, pois, a juridicização do processo decisório, acentuando-se a tensão entre direito e política.243 Observe-se que, embora tais decisões estejam vinculadas juridicamente, é certo que a sua efetivação está submetida, dentre outras condicionantes, à reserva do financeiramente possível ("Vorbehalt des finanziell Möglichen"). Nesse sentido, reconheceu a Corte Constitucional alemã, na famosa decisão sobre "numerus clausus" de vagas nas Universidades ("numerus-clausus Entscheidung"), que pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado direito estão submetidas à "reserva do possível" ("Vorbehalt des Möglichen").244 Tal peculiaridade ressalta a necessidade de que se desenvolvam novas técnicas de declaração de inconstitucionalidade, tendo em vista inclusive a notória insuficiência da declaração de nulidade para solver os problemas relativos à prestação de índole positiva. Se concordarmos que os direitos fundamentais desempenham diferentes funções na ordem jurídica, teremos de admitir que a técnica tradicional de declaração de nulidade ou de anulabilidade (cassação) mostra-se adequada para eliminar as diversas modalidades de ofensa aos direitos de liberdade enquanto direitos de defesa (Abwehrrechte). A propósito da lesão ao princípio da isonomia, já anotara Maurer que a declaração de nulidade, que se mostra adequada para afastar as ofensas aos direitos de liberdade e de propriedade, não logra abranger a chamada inconstitucionalidade relativa (relative Verfassungswidrigkeit)245, isto é, aquela situação em que a inconstitucionalidade não reside nesta ou naquela norma, mas na disciplina normativa diferenciada (Unterschiedlichkeit der Regelung).246 Em outros termos, tem-se, nessa hipótese, a inconstitucionalidade de uma relação normativa (verfassungswidrige Normrelation).247 Da mesma forma, deve-se concluir que a técnica da declaração da nulidade ou a cassação é, fundamentalmente, inepta para solver os problemas decorrentes da chamada omissão inconstitucional, isto é, daqueles casos em que se identifica um imediato dever constitucional de legislar (Verfassungsauftrag). Tal como já afirmado pela Corte Constitucional alemã, não se declara a nulidade de uma lei pelo fato de não contemplar determinada norma.248 241
Cf. Krebs, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (624-5); Alexy, Theorie der Grundrechte, 1986, p. 395 s. 242 Cf. Krebs, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (625). 243 Cf. Krebs, Freiheitsschutz durch Grundrechte, cit., p. 617 (625). 244 BVerfGE 33, 303 (333). 245 Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (354). 246 Cf., Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (354). 247 Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 213 s. 248 BVerfGE 22, 349 (360 s.).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Essa constatação fez com que a Corte Constitucional alemã desenvolvesse a chamada declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade (Unvereinbarkeitserklärung), destinada, inicialmente, a superar a inconstitucionalidade da chamada exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade (willkürlicher Begünstigungsausschluss)249 e a inconstitucionalidade por omissão.250 É que, como a ofensa inconstitucional resulta aqui da ausência de normas, não se pode eliminar a inconstitucionalidade, salvo em casos excepcionais, mediante a declaração da nulidade. Como anota Maurer, essa técnica processual foi concebida, fundamentalmente, para superar a ilegitimidade de atos restritivos de direitos individuais.251 1.4.1.2. A inconstitucionalidade da omissão parcial e a inidoneidade da declaração da nulidade Assinale-se que a Constituição de 1988 abriu a possibilidade para o desenvolvimento sistemático da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, na medida em que atribuiu particular significado ao controle de constitucionalidade da chamada "omissão do legislador". O art. 5º, LXXI, da Constituição, previu expressamente a concessão do mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Ao lado desse instrumento, destinado, fundamentalmente, à defesa de direitos individuais contra a omissão do ente legiferante, introduziu o constituinte, no art. 103, § 2º, um sistema de controle abstrato da omissão. Assim, reconhecida a procedência da ação, deve o órgão legislativo competente ser informado da decisão, para as providências cabíveis. Se se tratar de órgão administrativo, está ele obrigado a colmatar a lacuna dentro de um prazo de 30 dias. A adoção pela Constituição brasileira de instituto especial, destinado à defesa dos direitos subjetivos constitucionalmente assegurados contra a omissão do legislador, não dá ensejo a qualquer dúvida quanto à configuração de direito subjetivo público a uma ação positiva de índole normativa por parte do legislador. É de assinalar-se, porém, que tanto a introdução de processo especial destinado a garantir direitos subjetivos, quanto à adoção de um processo de controle abstrato da omissão estão a demonstrar que o constituinte brasileiro partiu de uma precisa distinção entre a ofensa constitucional através de atividade positiva do legislador e a afronta constitucional resultante da omissão. É fácil ver que a tentativa de proceder-se a essa rigorosa diferenciação esbarra em obstáculos sérios.252 Se se considerar que, após algum tempo, o legislador terá editado as leis mais relevantes exigidas expressamente no texto constitucional, não há como deixar de reconhecer que os casos significativos de omissão passarão a ser aqueles referentes à execução insatisfatória ou imperfeita de dever constitucional de legislar (omissão parcial), seja porque o legislador editou norma que não atende plenamente às exigências constitucionais, seja porque as mudanças nas situações fáticas ou jurídicas estão a exigir uma ação corretiva do legislador.253 É certo, pois, que, com a ressalva de alguns casos especiais, não mais se encontrará uma omissão pura do legislador. 249
Cf., Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (348); Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 109 250 Cf., sobre o assunto, 6, 257 (264); Pestalozza, "Noch verfassungsmässige", cit., p. 526. 251 Cf., Maurer, Zur Verfassungswidrigerklärung von Gesetzen, cit., p. 345 (p. 354); Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Norm und Einzelakt, cit., p. 214. 252 Erichsen,Hans-Uwe. Staatsrecht und Verfassungsgerichtsbarkeit, vol. II, p. 169-170. 253 Cf. a propósito, Jülicher, Die Verfassungsbeschwerde, cit., p. 33; Lerche, Das Bundesverfassungsgericht,cit., cit., p. 341 (352).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Não há como negar que o cumprimento imperfeito ou insatisfatório de uma determinada exigência constitucional configura ofensa ao dever que o constituinte impôs ao legislador.254 A afirmação de que o legislador não satisfez determinada exigência constitucional contém, normalmente, censura ou crítica ao direito positivado.255 Vê-se, pois, que a declaração da inconstitucionalidade de uma omissão parcial do legislador -- mesmo nesses processos especiais no controle da omissão, como o mandado de injunção e o controle abstrato da omissão -- contém, implicitamente, uma afirmação sobre a inconstitucionalidade da lei.256 Portanto, a distinção imprecisa entre a ofensa constitucional praticada mediante uma atividade do legislador ou mediante eventual omissão257 leva, necessariamente, a uma relativização do significado processualconstitucional desses instrumentos, concebidos especialmente para defesa da ordem constitucional e de direitos subjetivos contra eventual inércia do legislador. Vê-se, pois, que a declaração da inconstitucionalidade de uma omissão parcial do legislador - mesmo nesses processos especiais no controle da omissão, como o mandado de injunção e o controle abstrato da omissão - contém, implicitamente, uma afirmação sobre a inconstitucionalidade da lei.258 Portanto, a distinção imprecisa entre a ofensa constitucional praticada mediante uma atividade do legislador ou mediante eventual omissão259 leva, necessariamente, a uma relativização do significado processual-constitucional desses instrumentos, concebidos especialmente para defesa da ordem constitucional e de direitos subjetivos contra eventual inércia do legislador. Essa peculiaridade restou evidenciada na ADIn 526, oferecida contra a Medida Provisória nº 296, de 1991, que concedia aumento de remuneração a segmento expressivo do funcionalismo público, em alegado desrespeito ao disposto no art. 37, X, da Constituição. Convém se registre passagem do voto proferido pelo Relator, Sepúlveda Pertence, no julgamento do pedido de concessão de medida cautelar: “Põe-se aqui, entretanto, um problema sério e ainda não deslindado pela Corte, que é um dos tormentos do controle da constitucionalidade da lei pelo estalão do princípio da isonomia e suas derivações constitucionais. Se a ofensa à isonomia consiste, no texto da norma questionada, na imposição de restrição a alguém, que não se estenda aos que se encontram em posição idêntica, a situação de desigualdade se resolve sem perplexidade pela declaração da invalidez da constrição discriminatória. A consagração positiva da teoria da inconstitucionalidade por omissão criou, no entanto, dilema cruciante, quando se trate, ao contrário, de ofensa à isonomia pela outorga por lei de vantagem a um ou mais grupos com exclusão de outro ou outros que, sob o ângulo considerado, deveriam incluir entre os beneficiários. É a hipótese, no quadro constitucional brasileiro, de lei que, à 254
Schenke Wolf-Rüdiger. Rechtsschutz bei Normativem Unrecht, p. 169; Gusy, Gesetzgeber, cit., p. 152; Schneider, B.J.Funktion der Normenkontrolle, p. 148. 255 Lerche, Das Bundesverfassungsgericht,cit., S. 341 (352); Ulsamer, G.in: Maunz, dentre outros, Bundesverfassungsgericht Grundgesetz, § 78 n. 22, n. 3; cf. a propósito BVerfGE 1, 101; 6, 257 (264), 8, 1 (10). 256 Cf. BVerfGE 8, 1 (10); 22, 349 (360). 257 Erichsen, Hans-Uwe. Staatsrecht und Verfassungsgerichtsbarkeit, II, p. 129-170; Pestalozza, "Noch verfassungsmäßige", cit., p. 519 (526, 530). 258 Cf. BVerfGE 8, 1 (10); 22, 349 (360). 259 Erichsen, Hans-Uwe. Staatsrecht und Verfassungsgerichtsbarkeit, II, p. 129-170; Pestalozza, "Noch verfassungsmäßige", cit., p. 519 (526, 530).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes vista da erosão inflacionária do poder de compra da moeda, não dê alcance universal à revisão de vencimentos, contrariando o art. 37, X, ou que, para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas, fixe vencimentos díspares, negando observância à imposição de tratamento igualitário do art. 39, § 1.º da Constituição. A alternativa que aí se põe ao órgão de controle é afirmar a inconstitucionalidade positiva de norma concessiva do benefício ou, sob outro prisma, a da omissão parcial consistente em não ter estendido o benefício a quantos satisfizessem os mesmos pressupostos de fato subjacentes à outorga ( Canotilho,Constituição Dirigente, cit., 333 ss.; 339; Direito Constitucional, 1986, pág. 831; Gilmar F. Mendes, Controle de Constitucionalidade, 1990, págs. 60 ss.; Regina Ferrari, Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade, 1990, págs. 156 ss.; Cármen Lúcia Rocha, O Princípio Constitucional da Igualdade, 1990, pág. 42): ‘a censurabilidade do comportamento do legislador’ — mostra Canotilho (Canotilho, Constituição Dirigente, cit., pág. 334) a partir da caracterização material da omissão legislativa — ‘tanto pode residir no acto positivo — exclusão arbitrária de certos grupos das vantagens legais — como no procedimento omissivo — emanação de uma lei que contempla positivamente um grupo de cidadão, esquecendo outros’260. Daí concluir Pertence: “Se se adota a primeira solução — a declaração de inconstitucionalidade da lei por ‘não favorecimento arbitrário’ ou ‘exclusão inconstitucional de vantagem’ — que é a da nossa tradição (RE 102.553, 21-8-86, RTJ 120/725)- — a decisão tem eficácia fulminante, mas conduz a iniqüidades contra os beneficiados, quando a vantagem não traduz privilégio, mas imperativo de circunstâncias concretas, não obstante a exclusão indevida de outros, que ao gozo dela se apresentariam com os mesmos títulos. É o que ocorreria, no caso, com a suspensão cautelar da eficácia da medida provisória, postulada na ADIn 525: estaria prejudicado o aumento de vencimentos da parcela mais numerosa do funcionalismo civil e militar, sem que daí resultasse benefício algum para os excluídos do seu alcance. A solução oposta — a da omissão parcial —,seria satisfatória, se resultasse na extensão do aumento — alegadamente, simples reajuste monetário — a todos quantos sofrem com a mesma intensidade a depreciação inflacionária dos vencimentos. A essa extensão da lei, contudo, faltam poderes ao Tribunal, que, à luz do art. 103, § 2.o, CF, declarando a inconstitucionalidade por omissão da lei — seja ela absoluta ou relativa, há de cingir-se a comunicá-la ao órgão legislativo competente, para que a supra. De resto, como assinalam estudiosos de inegável autoridade (v. g. Gilmar Mendes, cit., pág. 70), o alvitre da inconstitucionalidade por omissão parcial ofensiva da isonomia — se pôde ser construída, a partir da Alemanha, nos regimes do monopólio do controle de normas pela Corte Constitucional — suscita problemas relevantes de possível rejeição sistemática, se se cogita de transplantá-la para a delicada simbiose 260
ADIn 526, Relator:Ministro Sepúlveda Pertence, RTJ 145, p. 101 (112).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes institucional que se traduz na conveniência, no direito brasileiro, entre o método de controle direto e concentrado no Supremo Tribunal e o sistema difuso. Ponderações que não seria oportuno expender aqui fazem, porém, com que não descarte de plano a aplicabilidade, no Brasil, da tese da inconstitucionalidade por omissão parcial. Ela, entretanto, não admite antecipação cautelar, sequer, limitados efeitos de sua declaração no julgamento definitivo; muito menos para a extensão do benefício aos excluídos, que nem na decisão final se poderia obter”.261 Vê-se, pois, que o próprio Pertence admitiu expressamente a possibilidade da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade em casos assemelhados, destacando que uma cassação poderia aprofundar o estado de inconstitucionalidade, tal como já admitido pela Corte Constitucional alemã em algumas decisões. Se não se colocam, em princípio, razões jurídicas contra eventual aferição de ofensa à Constituição decorrente de omissão parcial do legislador, no processo de controle de normas incidental ou principal, seria lícito imaginar que esse tipo de ofensa poderia ser impugnado inclusive no âmbito da ação direta de inconstitucionalidade. A aceitação desse entendimento leva a admitir que um tipo de declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade pode constituir nova modalidade de decisão no processo de controle de normas, especialmente nos casos de omissão inconstitucional.262 Nesses casos, é provável até mesmo que, tal como no direito alemão, se acolha idéia entre nós segundo a qual a declaração de inconstitucionalidade há de acarretar, em princípio, a suspensão de aplicação da lei questionada (eficácia ex nunc da decisão). Aceita a idéia geral de que a declaração de inconstitucionalidade da omissão parcial exige a suspensão de aplicação dos dispositivos impugnados, não se deve perder de vista que, em determinados casos, a aplicação excepcional da lei inconstitucional traduz exigência do próprio ordenamento constitucional.263 Isto poderia ser demonstrado com base no exame de algumas normas constitucionais que requerem, expressamente, a promulgação de leis. Um único exemplo há de explicitar esse entendimento. Nos termos do art. 7º, IV, da Constituição, o trabalhador faz jus a "salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo (...)". Essa
261
ADIn 526, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, RTJ n. 145, p. 101 (112-113). Ao contrário do sustentado no douto voto do Ministro Sepúlveda Pertence, em escrito mais recente (A Declaração de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia da Nulidade como Técnica de Decisão da Omissão Legislativa Parcial e o Cabimento de Cautelar nos Casos de Omissão Parcial, IOB, no. 15, p.592-597, 1a. quinz.ago.2002), entendemos cabível a cautelar em alguns casos de omissão parcial. Se se puder afirmar que, numa avaliação preliminar, o resultado do julgamento final haverá de recomendar a suspensão da aplicação da lei (declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade ortodoxa), não se vislumbrariam razões para que o Tribunal deixasse de suspender a aplicação da lei de imediato. Cf. ADIMC-1458/DF – A jurisprudência do STF firmou-se no sentido de proclamar incabível a medida liminar nos casos de ação direta de inconstitucionalidade por omissão. 262 Cf. Gusy, C.Gesetzgeber, p. 152, nota 34. 263
Cf., sobre a problemática, no direito alemão, Mendes, Gilmar. Die abstrakte Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht und vor dem brasilianischen Supremo Tribunal Federal. Berlim: Duncker & Humblot, 1991, 240p. Tese de doutorado - Universidade de Münster, RFA, p. 172.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes norma contém expresso dever constitucional de legislar, obrigando o legislador a fixar saláriomínimo que corresponda às necessidades básicas dos trabalhadores. Se o Supremo Tribunal Federal chegasse à conclusão, em processo de controle abstrato da omissão ou mesmo em processo de controle abstrato de normas264 -- tal como ocorreu com o Bundesverfassungsgericht, a propósito da lei de retribuição dos funcionários públicos, em processo de recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde)265, que a lei que fixa o salário-mínimo não corresponde às exigências estabelecidas pelo constituinte, configurando-se, assim, típica inconstitucionalidade em virtude de omissão parcial, a suspensão de aplicação da lei inconstitucional - assim como sua eventual cassação - acabaria por agravar o estado de inconstitucionalidade. É que, nesse caso, não haveria lei aplicável à espécie. Portanto, a suspensão de aplicação da norma constitui conseqüência fundamental da decisão que, em processo de controle abstrato da inconstitucionalidade por omissão e no mandado de injunção, reconhece a existência de omissão parcial. Todavia, ter-se-á de reconhecer, inevitavelmente, que a aplicação da lei, mesmo após a pronúncia de sua inconstitucionalidade, pode ser exigida pela própria Constituição.266 Trata-se daqueles casos em que a aplicação da lei mostrase, do prisma constitucional, indispensável no período de transição, até a promulgação da nova lei. Não tem razão, portanto, aqueles que, como Oswaldo Luiz Palu, sustentam que o art. 27 seria inconstitucional caso se pretendesse extrair daí uma permissão para que a lei declarada inconstitucional continuasse a ser aplicada a casos futuros.267 É que, como demonstrado, a decisão do Supremo Tribunal não decorre da disposição legislativa contida no art. 27, mas da própria aplicação sistemática do texto constitucional. Como a Constituição não contém qualquer decisão a respeito, devem ser regulamentadas por lei as importantes questões relacionadas com a superação desse estado de inconstitucionalidade. No interesse da segurança, da clareza e determinação jurídicas, afigurava-se recomendável a edição de regra sobre suspensão de aplicação apta a legitimar o Supremo Tribunal Federal a, sob determinadas condições, autorizar a aplicação do direito inconstitucional, nos casos constitucionalmente exigidos. É o que admite expressamente o texto do art. 27 da Lei nº 9.868/99, ao autorizar que o Tribunal declare a inconstitucionalidade com eficácia a partir de um dado momento no futuro. Deve-se admitir, assim, que, com a adoção desses peculiares mecanismos de controle da omissão do legislador, criou-se a possibilidade de se desenvolver nova modalidade de decisão no processo constitucional brasileiro. Se se partir do princípio de que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no processo de mandado de injunção e no controle abstrato da omissão, tem conteúdo obrigatório ou mandamental para o legislador e que a decisão que reconhece a subsistência de uma omissão parcial, contém, ainda que implicitamente, a declaração de inconstitucionalidade da regra defeituosa, há de se concluir, inevitavelmente, que a superação da situação inconstitucional deve ocorrer em duas etapas (Zweiaktverfahren).268 Como demonstrado, a declaração de nulidade não configura técnica adequada para a eliminação da situação inconstitucional. Uma cassação aprofundaria, nos casos típicos de omissão do legislador, o estado de inconstitucionalidade, tal como já admitido pelo Bundesverfassungsgericht em algumas decisões.269 264
A questão deixou de ser meramente acadêmica, uma vez que o PDT formulou ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei n. 8.419, de 7 de maio de 1992, que fixava o salário-mínimo em Cr$ 230.000,00 (ADIn n. 737, Relator: Ministro Moreira Alves). 265 BVerfGE 8, 1 (19). 266 Cf. sobre a problemática no direito alemão, Mendes, Die abstrakte Normenkontrolle, cit., p. 168 s. e p. 172 s. 267 Cf. Palu, Controle de Constitucionalidade, cit., p. 186. 268 Sobre esse conceito, Cf., Hoffmann-Riem, Die Beseitigung verfassungswidriger Rechtslagen im Zweiaktverfahren, DVbl. 1971, p. 842. 269 Cf. Mendes, Die abstrakte Normenkontrolle, cit., p. 163 s. e 215 s.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes A principal problemática da omissão do legislador situa-se menos na necessidade da instituição de determinados processos para o controle da omissão legislativa do que no desenvolvimento de fórmulas que permitam superar, de modo satisfatório, o estado de inconstitucionalidade.270 A introdução de um sistema peculiar para o controle da omissão e o entendimento de que, em caso de constatação de uma ofensa constitucional em virtude da omissão do legislador, independentemente do processo em que for verificada, a falha deve ser superada mediante ação do órgão legiferante, colocaram, também no direito brasileiro, os pressupostos para o desenvolvimento de uma declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade. Resta evidente, assim, que o controle de constitucionalidade da omissão parcial torna inevitável, senão imperiosa, a adoção de técnica de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade no sistema brasileiro.
1.4.1.3. As situações imperfeitas e a “lei ainda constitucional”: fundamento de segurança jurídica Em decisão de 23 de março de 1994, teve o Supremo Tribunal Federal oportunidade de ampliar a já complexa tessitura das técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, admitindo que lei que concedia prazo em dobro para a Defensoria Pública era de ser considerada constitucional enquanto esses órgãos não estivessem devidamente habilitados ou estruturados.271 Assim, o Relator, Sydney Sanches, ressaltou que a inconstitucionalidade do § 5.o do art. 5.o da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, acrescentado pela Lei nº 7.871, de 8 de novembro de 1989, não haveria de ser reconhecida, no ponto em que confere prazo em dobro, para recurso, às Defensorias Públicas, “ao menos até que sua organização, nos Estados, alcance o nível da organização do respectivo Ministério Público”. Da mesma forma pronunciou-se Moreira Alves, como se pode depreender da seguinte passagem de seu voto: “A única justificativa que encontro para esse tratamento desigual em favor da Defensoria Pública em face do Ministério Público é a de caráter temporário: a circunstância de as Defensorias Públicas ainda não estarem, por sua recente implantação, devidamente aparelhadas como se acha o Ministério Público. Por isso, para casos como este, parece-me deva adotar-se a construção da Corte Constitucional alemã no sentido de considerar que uma lei, em virtude das circunstâncias de fato, pode vir a ser inconstitucional, não o sendo, porém, enquanto essas circunstâncias de fato não se apresentarem com a intensidade necessária para que se tornem inconstitucionais. Assim, a lei em causa será constitucional enquanto a Defensoria Pública, concretamente, não estiver organizada com a estrutura que lhe possibilite atuar em posição de igualdade com o Ministério Público, tornando-se inconstitucional, porém, quando essa circunstância de fato não mais se verificar”. Afigura-se, igualmente, relevante destacar o voto de Sepúlveda Pertence, que assim feriu a questão: 270 271
Cf. Mendes, Die abstrakte Normenkontrolle, cit., p. 163 s. e 215 s. HC 70.514, julgamento em 23-3-1994.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes “No Habeas Corpus 67.930, quando o Tribunal afirmou a subsistência, sob a Constituição de 88, da legitimação de qualquer do povo, independentemente de qualificação profissional e capacidade postulatória, para a impetração de habeas corpus, tive oportunidade de realçar essa situação de fato da Defensoria Pública. E, por isso, ao acompanhar o eminente Relator acentuei que, dada essa pobreza dos serviços da Assistência Judiciária, e até que ela venha a ser superada, a afirmação da indispensabilidade do advogado, para requerer habeas corpus, que seria o ideal, viria, na verdade, a ser um entrave de fato, à salvaguarda imediata da liberdade. Agora, em situação inversa, também esse mesmo estado de fato me leva, na linha dos votos até aqui proferidos, com exceção do voto do Ministro Marco Aurélio — a quem peço vênia —, a acompanhar o eminente Relator e rejeitar a prejudicial de inconstitucionalidade rebus sic stantibus”.272 Ressalvou-se, portanto, de forma expressa, a possibilidade de que o Tribunal pudesse vir a declarar a inconstitucionalidade da disposição em apreço, uma vez que a afirmação sobre a legitimidade da norma assentava-se em uma circunstância de fato que se modifica no tempo. Posteriormente, no Recurso Extraordinário Criminal nº 147.776, da relatoria de Sepúlveda Pertence, o tema voltou a ser agitado de forma pertinente. A ementa do acórdão revela, por si só, o significado da decisão para atual evolução das técnicas de controle de constitucionalidade: “Ministério Público: Legitimação para promoção, no juízo cível, do ressarcimento do dano resultante de crime, pobre o titular do direito à reparação: C. Pr. Pen., art. 68, ainda constitucional (cf. RE 135.328): processo de inconstitucionalização das leis. 1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da constituição — ainda quanto teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada — subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem. 2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68, C. Pr. Penal — constituindo modalidade de assistência judiciária — deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68, C. Pr. Pen. Será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE 135.328”.273 272 273
HC 70.514, Relator: Ministro Sydney Sanches, DJ 27.06.97. REcrim 147.776-8, Rel Min. Sepúlveda Pertence, Lex-JSTF, 238, p. 390.
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Tendo em vista a relevância do caso, convém se registre a íntegra do voto proferido por Sepúlveda Pertence, verbis: “No RE 135.328 — depois dos votos do Relator originário, o em. Ministro Marco Aurélio, seguido pelos em. Ministros Rezek, Galvão e Velloso, negando a qualificação do Ministério Público para as ações cogitadas e daquele do em. Ministro Celso de Mello, em sentido contrário, proferi voto vista nestes termos: A questão deste RE está em saber, à luz do art. 129, IX, da Constituição, se foi recebido pela ordem constitucional vigente o art. 68 C. Pr. Pen. e, em conseqüência, se o Ministério Público retém a atribuição nele prevista — e a conseqüente legitimação ad causam ou capacidade postulatória, conforme seja ela entendida — para promover, a requerimento do interessado, a execução civil da sentença penal condenatória (CPP, art. 63) ou ação civil de reparação de danos ex delicto (art. 64), quando for pobre o titular da pretensão. (...) De logo, estou convencido de que a tese do Ministro Marco Aurélio — a de não caber a atribuição questionada na norma de encerramento do art. 129, IX, CF, por ser ela incompatível com as finalidades institucionais do Ministério Público — passa necessariamente — como ficou explícito no voto de S. Exa. — pelo art. 134 da Lei fundamental, que erige também a Defensoria Pública em ‘instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5.o, LXXIV’. Do fato de ser a reparação do dano resultante do crime, quando sofrido por particular, um direito privado, patrimonial e disponível, não posso extrair a inexistência de um interesse social em que se propicie ao lesado, quando desprovido de recursos, o patrocínio em juízo de sua pretensão: prova-o o art. 245 da Constituição — que, segundo as considerações de Ada Grinover, lembradas pelo Ministro Celso de Mello — se alinha à preocupação internacional com a proteção da vítima de atos criminosos, ‘que transcende à satisfação pessoal, para inserir-se no quadro dos interesses que afetam a comunidade como um todo e o próprio Estado’. O aludido art. 245 da Constituição impôs ao Poder Público o dever de assumir a ‘assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crimes dolosos, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito’: parece óbvio que se a efetivação desta reclama (sic) assistência judiciária — independentemente da previsão geral do art. 5.o, LXXIV — o Estado há de propiciá-la, em nome de um interesse social específico, qualificado pelo preceito da Lei Fundamental. Não obstante — como acentuou o em. Ministro Rezek — se há outra instituição do Estado voltada a esse mister, não há como explicar se imponha ao fardo do Ministério Público ‘algo que não é ínsito às suas tarefas’.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Em seguida, acrescentou Pertence: “Redargúi, é certo, o Ministro Celso de Mello que a Constituição não outorgou às atribuições da Defensoria Pública o predicado da exclusividade. O argumento, data venia, não se me afigura decisivo. Quando a Constituição cria uma instituição lhe atribui determinado poder ou função pública, a presunção é que o faça em caráter privativo, de modo a excluir a ingerência na matéria de outros órgãos do Estado. ‘A adjudicação de prerrogativas diferentes a entidades distintas’ — ensinou Ruy (Comentários à Constituição Federal, Col. H. Pires, 1/408) —, ‘imprime ipso facto o caracter de usurpação ao ingresso de uma no domínio de outra’. Certo, no julgamento liminar da ADIn 558, de 16.08.91 (RTJ 146/434/438), de que fui relator, entendeu o Plenário, na linha do meu voto, que não usurpava a função do MP de promover a ação civil pública para a proteção de interesses coletivos a atribuição à Defensoria Pública do seu patrocínio, quando propostas por entidades civis destinadas à sua defesa: é que, no ponto, ao passo que ao Ministério Público se outorgou legitimação ativa ad causam, para agir em nome próprio, à Defensoria Pública, ao contrário, o que se conferiu foi a atribuição, tipicamente sua de assistência judiciária a terceiros, concorrentemente legitimados com o Ministério Público para aquele tipo de demanda. O mesmo, entretanto, não parece ocorrer na hipótese do art. 68, C. Pr. Penal: aqui, a subordinação da ação do Ministério Público ao requerimento do interessado indica cuidar-se de patrocínio em juízo de demanda alheia e não de legitimação extraordinária para a causa. Impressionaram-me, contudo, na discussão que antecedeu o pedido de vista, as ponderações acerca da precariedade de fato, na maioria dos Estados, do funcionamento da assistência judiciária. Por isso, chegou-se a aventar — salvo engano em intervenção do em. Ministro Moreira Alves —, a possibilidade de condicionar-se o termo da vigência do art. 68, C. Pr. Penal a que já exista órgão de assistência judiciária, no forum competente para cada causa. A sugestão se inspira na construção germânica do processo de inconstitucionalização da lei (Cf. Mendes, Gilmar F. Controle de Constitucionalidade, 1990, p. 88 ss.; J. C. Béguin, Le Contrôle de Constitutionalité des Lois en R. F. F. d´Allemagne, 1982, p. 273 ss.; Wolfgang Zeidler, relatório VII Conf. dos Tribunais Constitucionais Europeus, em Justiça Constitucional e Espécies, Conteúdo e Efeitos das Decisões sobre a Constitucionalidade de Normas, Lisboa, 1987, 2.a parte, p. 47, 62 ss). Tenho o alvitre como fértil e oportuno”. Pertence arrematou com peculiar precisão: “O caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou ainda, na hipótese de lei ordinária préconstitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da perda de vigência desde a data da Constituição.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Essas alternativas radicais — além dos notórios inconvenientes que gera — faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia limitada —, subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem. É tipicamente o que sucede com as normas constitucionais que transferem poderes e atribuições de uma instituição preexistente para outra criada pela Constituição, mas cuja implantação real pende não apenas de legislação infraconstitucional, que lhe dê organização normativa, mas também de fatos materiais que lhe possibilitem atuação efetiva. Isso o que se passa com a Defensoria Pública, no âmbito da União e no da maioria das Unidades da Federação. Certo, enquanto garantia individual do pobre e correspondente dever do Poder Público, a assistência judiciária alçou-se ao plano constitucional desde o art. 141, § 35, da Constituição de 1946 e subsistiu nas cartas subseqüentes (1967, art. 150, § 32; 1969, art. 153, § 32) e na Constituição em vigor, sob a forma ampliada de ‘assistência jurídica integral’ (art. 5.o, LXXIV). Entretanto, é inovação substancial do texto de 1988 a imposição à União e aos Estados da instituição da Defensoria Pública, organizada em carreira própria, com membros dotados da garantia constitucional da inamovibilidade e impedidos do exercício privado da advocacia. O esboço constitucional da Defensoria Pública vem de ser desenvolvido em cores fortes pela LC 80, de 12.1.94, que, em cumprimento do art. 134 da Constituição, ‘organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados’. Do diploma se infere a preocupação de assimilar, quanto possível, o estatuto da Defensoria e o dos seus agentes aos do Ministério Público: assim, a enumeração dos mesmos princípios institucionais de unidade, indivisibilidade e independência funcional (art. 3.o); a nomeação a termo, por dois anos, permitida uma recondução, do Defensor Público Geral da União (art. 6.o) e do Distrito Federal (art. 54); a amplitude das garantias e prerrogativas outorgadas aos Defensores Públicos, entre as quais, de particular importância, a de ‘requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições’ (arts. 43, X; 89, X e 128, X). A Defensoria Pública ganhou, assim, da Constituição e da lei complementar, um equipamento institucional incomparável — em termos de adequação às suas funções típicas —, ao dos agentes de outros organismos públicos — a exemplo da Procuradoria de diversos Estados —, aos quais se vinha entregando individualmente, sem que constituíssem um corpo com identidade própria, a atribuição atípica da prestação de assistência judiciária aos necessitados. Ora, no direito pré-constitucional, o art. 68, C. Pr. Pen. — ao confiá-lo ao Ministério Público —, erigiu em modalidade específica e qualificada de assistência judiciária o patrocínio em juízo da pretensão
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes reparatória do lesado pelo crime. Estou em que, no contexto da Constituição de 1988, essa atribuição deva efetivamente reputar-se transferida do Ministério Público para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que — na União ou em cada Estado considerado —, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68, C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente. O caso concreto é de São Paulo, onde, notoriamente, não existe Defensoria Pública, persistindo a assistência jurídica como tarefa atípica de Procuradores do Estado. O acórdão — ainda não publicado — acabou por ser tomado nesse sentido por unanimidade, na sessão plenária de 1.6.94, com a reconsideração dos votos antes proferidos em contrário. Ora, é notório, no Estado de São Paulo a situação permanece a mesma considerada no precedente: à falta de Defensoria Pública instituída e implementada segundo os moldes da Constituição, a assistência judiciária continua a ser prestada pela Procuradoria-Geral do Estado ou, na sua falta, por advogado”.274 Como mencionado anteriormente, fica evidente o expressivo passo dado pelo Supremo Tribunal com relação à flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, ao reconhecer um estado insuficiente para justificar a declaração de ilegitimidade da lei ou bastante para justificar a sua aplicação provisória. Expressiva nesse sentido é a observação de Pertence, ao destacar que “o caso mostra, com efeito, a inflexível estreiteza da alternativa da jurisdição constitucional ortodoxa, com a qual ainda jogamos no Brasil: consideramo-nos presos ao dilema entre a constitucionalidade plena e definitiva da lei ou a declaração de sua inconstitucionalidade com fulminante eficácia ex tunc; ou ainda, na hipótese de lei ordinária pré-constitucional, entre o reconhecimento da recepção incondicional e a da perda de vigência desde a data da Constituição. Daí observar, ainda, os reflexos dessa orientação no plano da segurança jurídica, ao enfatizar que essas “alternativas radicais — além dos notórios inconvenientes que gera — faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade da realização da norma da Constituição — ainda quando teoricamente não se cuide de um preceito de eficácia limitada —, subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fáctica que a viabilizem”.275 É inegável que a opção desenvolvida pelo Supremo Tribunal inspira-se diretamente no uso que a Corte Constitucional alemã faz do “apelo ao legislador”, especialmente nas situações imperfeitas ou no “processo de inconstitucionalização”. Nessas hipóteses, avalia-se, igualmente, que, tendo em vista razões de segurança jurídica, a supressão da norma poderá ser mais danosa para o sistema do que a sua aplicação temporária. Não há negar, ademais, que aceita a idéia da situação “ainda constitucional”, deverá o Tribunal, se tiver que declarar a inconstitucionalidade da norma, em outro momento, fazê-lo com eficácia restritiva ou limitada. Em outros termos, o “apelo ao legislador” e a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados ou restritos estão intimamente ligados. Assim, razões de segurança jurídica podem revelar-se, igualmente, aptas a justificar a nãoaplicação do princípio da nulidade da lei inconstitucional. 274 275
REcrim 147.776-8, Rel: Min. Sepúlveda Pertence, Lex –JSTF 238, p. 390-9 (393-7). Cf., RECrim 147.776, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, Lex –JSTF 238: 390-9 (393-7).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes É o que demonstra estudo de André Serrão, apresentado na ADIn nº 2.154, verbis: “Se, do ponto de vista da política constitucional, é inquestionável a relevância da adoção de uma flexibilização do dogma da nulidade da lei inconstitucional, do ponto de vista estritamente jurídicodogmático, resta ainda uma indagação que a mera reprodução dos já conhecidos e matizados posicionamentos sobre a mais adequada disciplina da matéria não é capaz de revelar. Ao se afirmar que o princípio da nulidade da lei inconstitucional possui status constitucional, a legitimidade de sua flexibilização por lei ordinária estaria a depender da identificação de um fundamento de hierarquia igualmente constitucional que a autorizasse. Assim posta a questão, não se cuida de saber se o princípio da nulidade da lei inconstitucional possui status constitucional, mas sim se sua flexibilização poderia contar com fundamento de igual hierarquia e assim apto a legitimá-la. É lição comezinha da doutrina constitucional contemporânea a existência de tensões entre princípios constitucionais (CANOTILHO, op. cit., pp. 171 e s.). A solução de tais conflitos de princípios jurídicos não se dá, todavia, por meio da exclusão de um dos princípios colidentes, mas antes por meio de uma ponderação em que se determina, sob determinadas circunstâncias, a prevalência de um dos princípios contrapostos. Esse procedimento metódico recebe diversas denominações (ponderação, colisão de direitos ou princípios fundamentais, equilíbrio de direitos, etc.) que podem ser reconduzidas à idéia geral de cotejo da adequação de cada princípio às circunstâncias fáticas e normativas do caso a decidir (vide, a respeito, a internacionalmente prestigiosa obra de ALEXY, Robert, Teoría de los Derechos Fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, em que se sustenta que a ponderação de direitos obedece, em última análise, às máximas do princípio da proporcionalidade ou, entre nós, do devido processo legal em sentido material: art. 5o, LIV). De fato, a regra inserta no art. 27 da Lei sob exame traduz uma autorização legislativa (e sempre haverá uma reserva legal implícita em todo o conflito entre normas ou princípios constitucionais com vistas ao estabelecimento de padrões normativos para a sua solução: CANOTILHO, op. cit., p. 619-622) para que a Corte Constitucional proceda à ponderação entre o princípio constitucional da nulidade da lei inconstitucional e “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, por meio da qualificadíssima maioria de dois terços de seus membros. O legislador fixou, dessarte, os termos fundamentais da ponderação a que será submetido o princípio da nulidade da lei inconstitucional: exigência de maioria extraordinariamente qualificada, e oposição do princípio da nulidade à segurança jurídica e ao excepcional interesse social. A questão decisiva para manifestar-se acerca da legitimidade dessa autorização legislativa reside, portanto, em definir se os princípios da segurança jurídica e o excepcional interesse social possuem status constitucional. Se o possuírem, sua ponderação com o princípio da nulidade da lei inconstitucional – tal como expressamente autorizada pelo legislador – será indubitavelmente legítima”.276 276
ADIn 2154/DF, Relator:Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento pendente.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Como admitir, para ficarmos no exemplo de Walter Jellinek, a declaração de inconstitucionalidade total com efeitos retroativos de uma lei eleitoral tempos depois da posse dos novos eleitos em um dado Estado? Nesse caso, adota-se a teoria da nulidade e declara-se inconstitucional e ipso jure a lei, com todas as conseqüências, ainda que dentre elas esteja a eventual acefalia do Estado? Questões semelhantes podem ser suscitadas em torno da inconstitucionalidade de normas orçamentárias. Há de se admitir, também aqui, a aplicação da teoria da nulidade tout court? Dúvida semelhante poderia suscitar o pedido de inconstitucionalidade, formulado anos após a promulgação da lei de organização judiciária que instituiu um número elevado de comarcas, como já se verificou entre nós.277 Ou, ainda, o caso de declaração de inconstitucionalidade de regime de servidores aplicado por anos sem contestação. Essas questões -- e haveria outras igualmente relevantes -- parecem suficientes para demonstrar que, sem abandonar a doutrina tradicional da nulidade lei inconstitucional, é possível e, muitas vezes,inevitável, com base no princípio da segurança jurídica, afastar a incidência do princípio da nulidade em determinadas situações. Observe-se que sequer o argumento de que a existência de um decisão alternativa acabaria por debilitar a aplicação da norma constitucional há de ter acolhida aqui. Como observa Garcia de Enterría, se não se aceita o pronunciamento prospectivo, não se declara a inconstitucionalidade de um número elevado de leis, permitindo que crie um estado de greater restraint.278 Tudo indica, pois, que é a ausência de uma técnica alternativa à simples declaração de nulidade que pode enfraquecer a aplicação da norma constitucional. Vê-se, nesse passo, que o art. 27 da Lei 9.868/99 limita-se a explicitar orientação que decorre do próprio sistema de controle de constitucionalidade. Não se nega, pois, o caráter de princípio constitucional ao princípio da nulidade da lei inconstitucional. Entende-se, porém, que tal princípio não poderá ser aplicado nos casos em que se revelar absolutamente inidôneo para a finalidade perseguida (casos de omissão; exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade), bem como nas hipóteses em que a sua aplicação pudesse trazer danos para o próprio sistema jurídico constitucional (grave ameaça à segurança jurídica). Assim, configurado eventual conflito entre o princípio da nulidade e o princípio da segurança jurídica, que, entre nós, tem status constitucional, a solução da questão há de ser, igualmente, levada a efeito em um processo de complexa ponderação. Em muitos casos, então, há de se preferir a declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos à insegurança jurídica de uma declaração de nulidade, como demonstram os múltiplos exemplos do direito comparado e do nosso direito. Nesses termos, resta evidente que a norma contida no art. 27 da Lei 9.868/99 tem caráter fundamentalmente interpretativo, desde que se entenda que os conceitos jurídicos indeterminados utilizados – segurança jurídica e excepcional interesse social – se revestem de base constitucional. No que diz respeito à segurança jurídica, parece não haver dúvida de que encontra expressão no próprio princípio do Estado de Direito consoante, amplamente aceito pela doutrina pátria e alienígena. Excepcional interesse social pode encontrar fundamento em diversas normas constitucionais. O que importa assinalar é que, consoante a interpretação aqui preconizada, o princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de interesse social.279 277
Cf., RE 104393/GO, Relator Ministro Moreira Alves,2a. turma, DJ de 24/05/85. Cf., Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., p. 13. 279 Cf., a propósito do direito português, Medeiros, Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 716. 278
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Portanto, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante manifestado sob a forma de interesse social relevante. Assim, aqui, como no direito português, a não-aplicação do princípio da nulidade não se há de basear em consideração de política judiciária, mas em fundamento constitucional próprio. Entre nós, cuidou o legislador de conceber um modelo restritivo também no aspecto procedimental, consagrando a necessidade de um quorum especial (dois terços dos votos) para a declaração de inconstitucionalidade com efeitos limitados. Terá significado especial o princípio da proporcionalidade, especialmente a proporcionalidade em sentido estrito, como instrumento de aferição da justeza da declaração de inconstitucionalidade (com efeito da nulidade), tendo em vista o confronto entre os interesses afetados pela lei inconstitucional e aqueles que seriam eventualmente sacrificados em conseqüência da declaração de inconstitucionalidade.280 Não parecem procedentes, pois, as impugnações contra a constitucionalidade do art. 27 da Lei 9.868/99. O Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou, definitivamente, sobre a constitucionalidade do art. 27 da Lei nº. 9868/99. Pende ainda, de julgamento, as ADIns nº. 2154 e nº. 2258, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, que impugnou, dentre outras, essa disposição. É notório, porém, que o Tribunal já está a aplicar o art. 27 aos casos de controle incidental281 e ao controle abstrato. Em julgamento de 18.08.2004, a Corte declarou a inconstitucionalidade do art.45 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, e de expressão contida na alínea "a", do Anexo II, da Lei Complementar Estadual nº 10194, de 30 de maio de 1994, também do Estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo, porém, que a decisão haveria de ter eficácia a partir de 03.12.2004 (ADI nº.3022).282 Desse modo, parece superado o debate sobre a legitimidade da fórmula positivada no referido artigo. 1.4.2. Repercussão da decisão proferida em ADIn sobre casos concretos e admissão da limitação de efeitos no sistema difuso Embora a Lei nº. 9.868, de 10 de novembro de 1999, tenha autorizado o Supremo Tribunal Federal a declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, é lícito indagar sobre a admissibilidade do uso dessa técnica de decisão no âmbito do controle difuso. Assinale-se que, antes do advento da Lei nº 9.868, de 1999, talvez fosse o STF, muito provavelmente, o único órgão importante de jurisdição constitucional a não fazer uso, de modo expresso, da limitação de efeitos na declaração de inconstitucionalidade. Não só a Suprema Corte americana (caso Linkletter v. Walker)283, mas também uma série expressiva de Cortes Constitucionais e Cortes Supremas adotam a técnica da limitação de efeitos (Cf. v.g. Corte Constitucional austríaca (Constituição, art. 140), a Corte Constitucional alemã (Lei Orgânica, § 31, 2 e 79, 1), a Corte Constitucional espanhola (embora não expressa na Constituição, adotou, desde 1989, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade. Cf. Garcia de Enterría, Justicia Constitucional, cit., p. 5), a Corte Constitucional portuguesa (Constituição, art. 282, n. 4), o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia (art.174, 2 do Tratado de Roma), o
280
Cf., Medeiros, Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 703-704. Cf. RE 197.917, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 07.05.2004 e Rcl n. 2.391, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para o acórdão, Min. Joaquim Barbosa. Julgamento não concluído. Sobre os referidos julgamentos, cf. item 7.4.3., infra. 282 ADI 3022, Rel. Joaquim Barbosa, DJ de 18.08.2004. 283 Cf. , supra, item 7.2.2.1. – A questão no direito americano. 281
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Tribunal Europeu de Direitos Humanos (caso Markx, de 13 de junho de 1979.284 No que interessa para a discussão da questão em apreço, ressalte-se que o modelo difuso não se mostra incompatível com a doutrina da limitação dos efeitos. Sem dúvida, afigura-se relevante no sistema misto brasileiro o significado da decisão limitadora tomada pelo Supremo Tribunal Federal no controle abstrato de normas sobre os julgados proferidos pelos demais juízes e tribunais no sistema difuso. O tema relativo à compatibilização de decisões nos modelos concreto e abstrato não é exatamente novo e foi suscitado, inicialmente, na Áustria, tendo em vista os reflexos da decisão da Corte Constitucional sobre os casos concretos que deram origem ao incidente de inconstitucionalidade (1920-1929). Optou-se ali por atribuir efeito ex tunc excepcional à repercussão da decisão de inconstitucionalidade sobre o caso concreto (Constituição austríaca, art. 140, n.7, 2a. parte). No direito americano, o tema poderia assumir feição delicada tendo em vista o caráter incidental ou difuso do sistema, isto é, modelo marcadamente voltado para a defesa de posições subjetivas. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, não é rara a pronúncia de inconstitucionalidade sem atribuição de eficácia retroativa, especialmente nas decisões judiciais que introduzem alteração de jurisprudência (prospective overruling). Em alguns casos, a nova regra afirmada para decisão aplica-se aos processos pendentes (limited prospectivity); em outros, a eficácia ex tunc exclui-se de forma absoluta (pure prospectivity). Embora tenham surgido no contexto das alterações jurisprudenciais de precedentes, as prospectivity têm integral aplicação às hipóteses de mudança de orientação que leve à declaração de inconstitucionalidade de uma lei antes considerada constitucional.285 A prática da prospectivity, em qualquer de suas versões, no sistema de controle americano, demonstra, pelo menos, que o controle incidental não é incompatível com a idéia da limitação de efeitos na decisão de inconstitucionalidade. Há de se reconhecer que o tema assume entre nós peculiar complexidade tendo em vista a inevitável convivência entre os modelos difuso e direto. Quais serão, assim, os efeitos da decisão ex nunc do Supremo Tribunal Federal, proferida in abstracto, sobre as decisões já proferidas pelas instâncias afirmadoras da inconstitucionalidade com eficácia ex tunc? Um argumento que pode ser suscitado diz respeito ao direito fundamental de acesso à justiça, tal como já argüido no direito português, afirmando-se que haveria a frustração da expectativa daqueles que obtiveram o reconhecimento jurisdicional do fundamento de sua pretensão.286 A propósito dessa objeção, Rui Medeiros apresenta as seguintes respostas: “-- É sabido, desde logo, que existem domínios em que a restrição do alcance do julgamento de inconstitucionalidade não é, por definição, susceptível de pôr em causa esse direito fundamental (v.g., invocação do nº 4 do art. 282 para justificar a aplicação da norma penal inconstitucional mais favorável ao argüído do que a norma repristinada); -- Além disso, mostra-se claramente claudicante a representação do direito de acção judicial como um direito a uma sentença de mérito favorável, tudo apontando antes no sentido de que o artigo 20 da Constituição não vincula os tribunais a ‘uma obrigação-resultado (procedência do pedido) mas a uma mera obrigação-meio, isto é, a 284
Cf. Siqueira Castro, Carlos Roberto. Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus efeitos em face das Leis nº 9.868 e 9882/99, in: Sarmento, Daniel. O Controle de Constitucionalidade e a Lei 9.868/99 (organizador), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
285 286
Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 743. Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 746.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes encontrar uma solução justa e legal para o conflito de interesse entre as partes’; -- Acresce que, mesmo que a limitação de efeitos contrariasse o direito de acesso aos tribunais, ela seria imposta por razões jurídicoconstitucionais e, por isso, a solução não poderia passar pela absoluta prevalência do interesse tutelado pelo art. 20 da Constituição, postulando ao invés uma tarefa de harmonização entre os diferentes interesse em conflito; -- Finalmente, a admissibilidade de uma limitação de efeitos na fiscalização concreta não significa que um tribunal possa desatender, com base numa decisão puramente discricionária, a expectativa daquele que iniciou um processo jurisdicional com a consciência da inconstitucionalidade da lei que se opunha ao reconhecimento da sua pretensão. A delimitação da eficácia da decisão de inconstitucionalidade não é fruto de ‘mero decisionismo’ do órgão de controlo. O que se verifica é tão-somente que, à luz do ordenamento constitucional no seu todo, a pretensão do autor à não-aplicação da lei desconforme com a Constituição não tem, no caso concreto, fundamento.”287 Essas colocações têm a virtude de demonstrar que a declaração de inconstitucionalidade in concreto também se mostra passível de limitação de efeitos. A base constitucional dessa limitação – necessidade de um outro princípio que justifique a não-aplicação do princípio da nulidade – parece sugerir que, se aplicável, a declaração de inconstitucionalidade restrita revela-se abrangente do modelo de controle de constitucionalidade como um todo. É que, nesses casos, tal como já argumentado, o afastamento do princípio da nulidade da lei assenta-se em fundamentos constitucionais e não em razões de conveniência. Se o sistema constitucional legitima a declaração de inconstitucionalidade restrita no controle abstrato, esta decisão poderá afetar, igualmente, os processos do modelo concreto ou incidental de normas. Do contrário, poder-se-ia ter inclusive um esvaziamento ou uma perda de significado da própria declaração de inconstitucionalidade restrita ou limitada. A questão tem relevância especial no direito português, porque, ao lado do modelo abstrato de controle, de perfil concentrado, adota a Constituição um modelo concreto de perfil incidental à semelhança do sistema americano ou brasileiro. Trata-se de herança do sistema adotado pela Constituição portuguesa de 1911. É claro que, nesse contexto, tendo em vista os próprios fundamentos legitimadores da restrição de efeitos, poderá o Tribunal declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados, fazendo, porém, a ressalva dos casos já decididos ou dos casos pendentes até um determinado momento (v.g., até a decisão in abstracto). É o que ocorre no sistema português, onde o Tribunal Constitucional ressalva, freqüentemente, os efeitos produzidos até à data da publicação da declaração de inconstitucionalidade no Diário da República ou, ainda, acrescenta no dispositivo que são excetuadas aquelas situações que estejam pendentes de impugnação contenciosa (Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 748). Essa orientação afigura-se integralmente aplicável ao sistema brasileiro. Assim, pode-se entender que se o STF declarar a inconstitucionalidade restrita, sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos idênticos pendentes de decisão nas diversas instâncias. Os próprios fundamentos constitucionais legitimadores da restrição embasam a declaração de inconstitucionalidade com eficácia ex nunc nos casos concretos. A inconstitucionalidade da lei há de ser reconhecida a partir do trânsito em julgado. Os casos concretos ainda não transitados em julgado hão de ter o mesmo tratamento (decisões com eficácia 287
Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 746-747.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes ex nunc) se e quando submetidos ao STF. É verdade que, tendo em vista a autonomia dos processos de controle incidental ou concreto e de controle abstrato, entre nós, mostra-se possível um distanciamento temporal entre as decisões proferidas nos dois sistemas (decisões anteriores, no sistema incidental, com eficácia ex tunc e decisão posterior, no sistema abstrato, com eficácia ex nunc). Esse fato poderá ensejar uma grande insegurança jurídica. Daí parecer razoável que o próprio STF declare, nesses casos, a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc na ação direta, ressalvando, porém, os casos concretos já julgados ou, em determinadas situações, até mesmo os casos sub judice, até a data de ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade. Essa ressalva assenta-se em razões de índole constitucional, especialmente no princípio da segurança jurídica. Ressalte-se aqui que, além da ponderação central entre o princípio da nulidade e outro princípio constitucional, com a finalidade de definir a dimensão básica da limitação, deverá a Corte fazer outras ponderações, tendo em vista a repercussão da decisão tomada no processo de controle in abstracto nos diversos processos de controle concreto. Dessa forma, tem-se, a nosso ver, uma adequada solução para o difícil problema da convivência entre os dois modelos de controle de constitucionalidade existentes no direito brasileiro, também no que diz respeito à técnica de decisão. Aludida abordagem responde a uma outra questão intimamente vinculada a esta. Trata-se de saber se o STF poderia, ao apreciar recurso extraordinário, declarar a inconstitucionalidade com efeitos limitados. Não parece haver dúvida de que, tal como já exposto, a limitação de efeito é apanágio do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quanto no controle incidental. 1.4.3. As decisões com base no art. 27 da Lei 9868 Em três casos recentes, teve o Supremo Tribunal Federal a oportunidade de discutir a aplicação do art. 27 da Lei n. 9868/99. Em dois deles, tratava-se de controle incidental de normas.288 No primeiro, controvertia-se sobre a constitucionalidade do parágrafo único do art. 6º da Lei Orgânica 222, de 31 de março de 1990, do Município de Mira-Estrela- SP, que teria fixado seu número de vereadores em afronta ao disposto no art. 29, IV, da Constituição. É que tal disposição prevê que o número de vereadores seja fixado proporcionalmente à população local, observando-se, nos Municípios de até um milhão de habitantes, a relação de um mínimo de 9 e um máximo de 21. Entendi corretas as premissas assentes no voto do relator, Maurício Corrêa, como também a conclusão, na parte em que declarava a inconstitucionalidade da lei orgânica do município paulista, para fixar que, na espécie, o número de vereadores não poderia ser superior a 9. Tendo em vista, porém, a repercussão que a decisão teria para o caso concreto, achei por bem recomendar que se adotasse, na espécie, a declaração de inconstitucionalidade com efeito “pro futuro”. Eis a conclusão apresentada no aludido voto:
“Na espécie, não parece haver dúvida de que um juízo rigoroso de proporcionalidade recomenda a preservação do modelo legal existente na atual legislatura. É um daqueles casos notórios, em que a eventual decisão de caráter cassatório acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade constitucional. A propósito, recorde-se a decisão do Bundesverfassungsgericht de 22 de maio de 1963, que revela exemplo 288
Cf. RE 197.917, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 07.05.2004 e Rcl n. 2.391, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para o acórdão, Min. Joaquim Barbosa. Julgamento não concluído.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes clássico do processo de inconstitucionalização (Verfassungswidrigwerden) em virtude de uma mudança nas relações fáticas. Ressaltou-se, nesse acórdão, que, em virtude da significativa alteração na estrutura demográfica das diferentes unidades federadas, a divisão dos distritos eleitorais, realizada em 1949 e preservada nas sucessivas leis eleitorais, não mais atendia às exigências demandadas do princípio de igualdade eleitoral (BVerfGE 16, 130 s.) (Lei Fundamental, art. 38). O Tribunal absteve-se, porém, de pronunciar a inconstitucionalidade sob a alegação de que tal situação não podia ser constatada na data da promulgação da lei (setembro de 1961) (BVerfGE 16, 130 (141/142)). O Bundesverfassungsgericht logrou infirmar, assim, a ofensa ao art. 38 da Lei Fundamental. Conclamou-se, porém, o legislador “a empreender as medidas necessárias à modificação dos distritos eleitorais, com a redução da discrepância existente para patamares toleráveis”. Essa exortação do Tribunal foi atendida com a promulgação da Lei de 14 de fevereiro de 1964 (Gesetz zur Änderung des Bundeswahlgesetzes). Assinale-se que esse caso estava marcado por peculiar dilema. Caso o Bundesverfassungsgericht tivesse declarado a inconstitucionalidade da lei que disciplinava a divisão dos distritos eleitorais, ter-se-ia de reconhecer a invalidade das últimas eleições parlamentares e, por conseguinte, a ilegitimidade do Parlamento e do próprio Governo. Nessa hipótese, inexistiria órgão com legitimidade para promulgar uma nova lei eleitoral, uma vez que a legislatura anterior já se havia encerrado (Lei Fundamental, art. 39, parágrafo 1º, 2º período) e a disposição sobre o estado de necessidade legislativa (Gesetzgebungsnotstand) não se mostrava aplicável à situação em apreço (Lei Fundamental, art. 81).289 Como se pode depreender, tinha-se, na hipótese discutida no RE nº. 197.917, um caso típico de decisão que, se dotada de efeito retroativo, provocaria enorme instabilidade jurídica, colocando em xeque as decisões tomadas pela Câmara de Vereadores nos períodos anteriores, com conseqüências não de todo divisáveis no que concerne às leis aprovadas, às decisões de aprovação de contas e outras deliberações da Casa Legislativa. Ademais, como a decisão repercute sobre o próprio processo eleitoral, o reconhecimento de efeito retroativo importaria quase no refazimento a posteriori desse processo, até mesmo com a redefinição dos eleitos no último pleito. É que a nova fixação do número de vereadores importaria na obtenção de um novo quociente eleitoral e um novo quociente partidário. O segundo caso diz respeito à mudança de orientação jurisprudencial a propósito da exigência de recolhimento à prisão para que o acusado pudesse apelar. Cuidava-se de hipótese em que a jurisprudência pacífica do Tribunal encaminhava-se no sentido de considerar legítima a fórmula legislativa, constante do direito pré-constitucional e que vinha sendo reproduzida em diversos textos legislativos posteriores. A 1ª Turma, na Reclamação nº. 2391, posicionou-se no sentido de afetar a matéria ao Pleno, uma vez que a decisão poderia acarretar a revisão da jurisprudência da Corte. Cezar Peluso manifestara-se no sentido da concessão do habeas corpus de ofício, no que foi acompanhado por Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio. Sustentou-se a inconstitucionalidade do artigo 9º da Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995. Com relação ao artigo 3º da Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998, propôs-se interpretação conforme à Constituição Federal,
289
Rupp v. Brüneck, Darf das Bundesverfassungsgericht an den Gesetzgeber appellieren?, 1970, p. 372; Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, 1985, p. 182; Gusy, Christoph. Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, Berlim, 1985, p. 211.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes para se interpretar que o juiz decidirá, fundamentadamente, se o réu poderá apelar ou não em liberdade, no sentido de se verificar se estão presentes ou não os requisitos da prisão cautelar.290 Assim dispõem os referidos dispositivos: “Art. 9º. O réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta lei.” (Lei nº 9.034, de 1995) “Art. 3º Os crimes disciplinados nesta Lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.” (Lei nº 9.613, de 1998) Consoante a proposta apresentada por Cezar Peluso, a discussão gira em torno de se saber se esses dois dispositivos são compatíveis com a Constituição de 1988. Proclama a Constituição em seu art. 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Há, portanto, que se examinar a compatibilidade entre o princípio da presunção de inocência e a proibição ex lege de se apelar em liberdade, quando ainda não houver decisão judicial transitada em julgado contra o acusado. Também há que se perquirir se essa prisão compulsória para recorrer não vulnera outros dispositivos da Constituição. O Supremo vinha reconhecendo, sob o regime constitucional em vigor, a legitimidade da exigência do recolhimento à prisão para interposição de recurso. A questão foi bastante discutida no HC 72.366, da relatoria de Néri da Silveira, quando o Plenário, por maioria, reconheceu a validade do art. 594 do Código de Processo Penal em face da Constituição de 1988, verbis: “Habeas Corpus. 2. Condenado reincidente. Prisão resultante da sentença condenatória. Aplicabilidade do art. 594, do Código de Processo Penal. 3. Os maus antecedentes do réu, ora paciente, foram reconhecidos, na sentença condenatória, e, também, outros aspectos da sua personalidade violenta. 4. Código de Processo Penal, art. 594: norma recepcionada pelo regime constitucional de 1988. Ora, se este artigo é válido, o benefício que dele decorre, de poder apelar em liberdade, há de ficar condicionado à satisfação dos requisitos ali postos, isto é, o réu deve ter bons antecedentes e ser primário. 5. Habeas Corpus denegado e cassada a medida liminar.”291 Tal entendimento veio a ser estendido para as leis especiais que exigem a prisão do condenado para a interposição de recurso de apelação. Destaquem-se as seguintes decisões: “HABEAS CORPUS. LEI DOS CRIMES HEDIONDOS. SENTENÇA CONDENATÓRIA. NECESSIDADE DE CUSTÓDIA PARA APELAR. Apelação não conhecida ao argumento de que, negado o benefício da liberdade, o réu não se recolhera à prisão para recorrer. O artigo 2. par. 2. da lei de crimes hediondos prevê, como regra, a compulsoriedade 290
Cf. Rcl n. 2.391, Rel. Min. Marco Aurélio, red. para o acórdão, Min. Joaquim Barbosa. Foram proferidos cinco votos. A matéria pende de definição de pedido de vista, solicitado pela Ministra Ellen Gracie. 291 HC 72.366, Rel. Min. Néri da Silveira, julg. 13.09.95, DJ 26.11.99. Essa orientação já era a dominante em ambas as Turmas do Tribunal. Nesse sentido, dentre outras, foram as decisões proferidas no HC 69.263, 2ª Turma, Rel. para acórdão Min. Carlos Velloso, julg. 07.04.92, DJ 09.10.92; HC 69.559, 1ª Turma, Rel. Min. Octavio Gallotti, julg. 22.09.92, DJ 30.10.92; HC 71.053, 1ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 22.02.94, DJ 10.06.94.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes do encarceramento. Habeas corpus indeferido.” (HC 70.634, Rel. Min. Francisco Rezek, 2ª Turma, julg. 09.11.93, DJ 24.06.94). “HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. ASSOCIAÇÃO. CRIME HEDIONDO. APELAÇÃO EM LIBERDADE. Não tem direito a apelar em liberdade, réu condenado por crime de tráfico ilícito de entorpecentes em associação, pois trata-se de crime hediondo (L. 8072/90, art. 2º). A constitucionalidade da L. 8.072/90 é reconhecida pela jurisprudência do Tribunal. Habeas indeferido.” (HC 80.412, 2ª Turma, Rel. Min. Nelson Jobim, julg. 03.10.00, DJ 17.08.01) “PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TÓXICOS. SENTENÇA CONDENATÓRIA. APELAÇÃO. RECOLHIMENTO À PRISÃO. LEI 6.368/76, art. 35. I. - O condenado por crime previsto no art. 12 da Lei 6.368/76 não pode apelar sem recolher-se à prisão (Lei 6.368/76, art. 35). II. - H.C. indeferido.” (HC 72.603, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 26.09.95, DJ 24.11.95) “Habeas corpus. Interpretação conjugada do artigo 35 da Lei n. 6.368/76 com o parágrafo 2. do artigo 2. da Lei n. 8.072/90. A presunção de inocência não impede a prisão em virtude de sentença condenatória ainda pendente de recurso. - Da conjugação dos artigos 35 da Lei 6.368/76 e do parágrafo 2. do artigo 2. da Lei 8.072/90, resulta que a proibição absoluta imposta por aquele foi parcialmente alterada por este (o que importa derrogação e não ab-rogação), transformando-se em proibição relativa, já que admite que a regra - que e a proibição de apelar solto - seja afastada (o que e exceção) por decisão fundamentada do Juiz em sentido contrário. - Esta Corte já decidiu, inclusive por seu Plenário, que a presunção de inocência constante no artigo 5º, LVII, da atual Constituição não impede a prisão em virtude de sentença condenatória ainda pendente de recurso. Habeas corpus indeferido.” (HC 69.667, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, julg. 01.12.93, DJ 26.02.93) “PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME HEDIONDO. APELAÇÃO. NECESSIDADE DE O RÉU RECOLHER-SE À PRISÃO. ARTS. 12 E 35 DA LEI 6.368/76 (LEI DE TÓXICOS), C/C ART. 2º, PAR. 2º, DA LEI 8.072/90 (CRIMES HEDIONDOS). I. Necessidade de o réu recolher-se à prisão para apelar. II. - Não se aplica o disposto no art. 2º, par. 2º, da Lei 8.072/90, se o réu já se encontrava preso quando da sentença condenatória. III. - A presunção de não culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória C.F., art. 5º, LVII – não revogou o art. 594 do C.P.P. IV. - H.C. indeferido.” (HC 71.889, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 29.11.94, DJ 24.02.95)
Relativamente a uma das leis objeto da presente discussão, assim firmou a Primeira Turma deste Supremo Tribunal Federal, verbis:
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes "Habeas corpus. - Se, em se tratando de crime de quadrilha ou bando, não pode o réu apelar em liberdade (artigo 9º da Lei 9.034/95), não tem ele direito à liberdade provisória enquanto não for julgado seu recurso especial e não transitar em julgado sua condenação. Habeas corpus indeferido.” (HC 75.583, Rel. Min. Moreira Alves, julg. 09.09.97, DJ 10.10.97)
É verdade, também, que essa posição foi fortemente contestada em diversos votos vencidos. Registre-se passagem de Marco Aurélio manifestada reiteradamente: “Procede o inconformismo dos Recorrentes quanto à incompatibilidade da regra do artigo 594 em comento com a nova ordem constitucional. Esta é explícita ao revelar como garantia constitucional que ‘ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar definidos em lei’ (inciso LXI, do artigo 5º). Ora, de prisão em flagrante delito não se cuida nem de hipótese de prisão preventiva em que se exige ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Também não se tem no caso dos autos o envolvimento de transgressão militar ou de crime propriamente militar. Excluídas as hipóteses contempladas no referido inciso, conclui-se que a prisão deve estar lastreada na certeza da culpa do condenado. Se o inciso LVII do mesmo artigo 5º consigna que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória, impossível é ter como harmônica com a Constituição Federal a regra do artigo 594 do Código de Processo Penal. Trata-se de extravagante pressuposto de recorribilidade que conflita até mesmo com o objetivo do recurso. É contraditório exigir-se daquele que deseja recorrer e, portanto, mostra-se inconformado com o provimento condenatório que se apresente no estabelecimento penal para verdadeiro início do cumprimento da pena. Por outro lado, a inexistência da primariedade e dos bons antecedentes não é de molde a respaldar a prisão. Diz respeito a procedimentos pretéritos do condenado que não formam base ao título condenatório, em relação ao qual se insurge. Impossível é conceber que o recolhimento a ser efetuado seja fruto da inexistência da primariedade e dos bons antecedentes, pois, caso contrário, estar-se-ia incidindo em verdadeiro bis in idem. O que se nota é o balizamento rígido pela Constituição Federal das hipóteses que podem motivar a prisão. Já havendo provimento condenatório, indispensável é que se tenha a culpa do condenado como intangível, ou seja, revelada em sentença judicial trânsita em julgado. A ênfase emprestada pela atual Carta à liberdade exclui que se possa cogitar de verdadeira antecipação do cumprimento da pena, o que ocorrerá caso se imponha o recolhimento do condenado para que possa ver conhecido o recurso que interpôs. O exercício da ampla defesa – e neste está compreendida a interposição de recurso – fica comprometido a partir do momento em que se impõe a necessidade de atender-se a pressuposto que nada tem a ver em si com o recurso, porque ligado à observância, embora temporária, da própria sentença condenatória. Na verdade, subsiste como único móvel da expedição do
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes mandado de prisão o provimento condenatório que, até o trânsito em julgado, por si só, não a respalda, sob pena de presumir-se o extravagante, ou seja, a culpa.” (HC 69.263, Rel. para acórdão Min. Carlos Velloso, DJ 09.10.92) Também Sepúlveda Pertence opunha-se à intangibilidade da prisão para apelar sob a égide da Constituição de 1988: “(...) quando se trata de prisão que tenha por título sentença condenatória recorrível, de duas, uma: ou se trata de prisão cautelar, ou de antecipação do cumprimento da pena. Ora, não nego que ainda que o réu tenha respondido ao processo em liberdade, a superveniência da sentença condenatória, somada às circunstâncias do caso, possa aconselhar o seu recolhimento à prisão, a título de medida cautelar. Mas, como toda medida cautelar, ela há de ser fundamentada; fundamentada na necessidade cautelar da prisão. Senão Senhor Presidente, a privação da liberdade será, de fato, antecipação de execução de pena. E antecipação de execução da pena, de um lado, com a regra constitucional de que ninguém será considerado culpado antes que transite em julgado a condenação, são coisas, data venia, que hurlent de se trouver ensemble.” (HC 69.964, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 01.07.93) Ilmar Galvão assim fundamentava a sua posição: “O mandado de prisão, expedido em cumprimento a sentença condenatória transita em julgado, é fora de dúvida que satisfaz à exigência constitucional de ordem escrita e fundamentada. O fundamento está na própria condenação, quando já insuscetível de modificação pelos meios ordinários. Sentença, nas condições apontadas, é sentença preparada para execução que, no caso da pena privativa de liberdade, se inicia pela expedição do mandado de prisão. Diversa é a situação da sentença condenatória ainda sujeita a recurso. Em face do princípio da presunção da ausência de culpa, insculpido no inc. LVII (art. 5º), não pode servir de fundamento a uma ordem de prisão. Eventual mandado de prisão que, em função dela, for expedido, configurará hipótese de prisão desfundamentada e, por conseguinte, desautorizada no inc. LXI. (...) Não se prestam, pois, para a demonstração do requisito do periculum in mora, simples presunções legais, proscritas pelo inc. LVIII, como a decorrente da qualificação subjetiva do agente, da tipologia do crime e do estado do processo.” (HC 72.366, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 26.11.99) Maurício Corrêa assim se manifestou sobre essa questão: “Além do mais, atento ao que claramente expressa o § 2º do artigo 5º da C.F. que em sintonia com o tratado que o Brasil aderiu a respeito dos direitos humanos – o chamado Pacto de São José da Costa Rica –, a propósito da garantia do cumprimento do duplo grau de jurisdição,
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes concluo que o artigo 594 do Código de Processo Penal não foi recepcionado pela atual Carta Política da República, pela simples razão de que , por ele, não se assegura ao cidadão o exercício dessa garantia.” (HC 72.366, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 26.11.99)
No seu voto, sustentou Cezar Peluso: “Além de infringir princípios básicos de justiça – porque uma eventual reforma da decisão, em que o réu tenha sido preso, não encontra nenhuma medida no campo jurídico capaz de restaurar o estado anterior, pois se trata de privação de liberdade, e sequer a indenização de ordem pecuniária, prevista na Constituição, por erro na prisão compensa a perda da liberdade, que é o bem supremo do cidadão – é absolutamente incompatível – e aqui invoco o princípio da proporcionalidade – com o que sucede na área civil, onde uma sentença de caráter condenatório que sirva de título executivo sem o seu trânsito em julgado, não acarreta execução definitiva, por resguardo de conseqüências de ordem puramente patrimonial que podem ser revertidas. Noutras palavras: teríamos, num caso em que está em jogo a liberdade física, admitido uma execução provisória de sentença condenatória, quando o sistema não admite na área civil.”. (Rcl 2391,Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para o acórdão, Min. Joaquim Barbosa. Julgamento não concluído) Em voto vista, entendi também como inevitável a adesão a essa orientação, especialmente em do nítido caráter de execução provisória da medida e de sua manifesta desproporcionalidade. Era relevante, porém, a discussão em torno dos efeitos da decisão, uma vez que se estava a desenhar a superação da jurisprudência anterior, com repercussão sobre os casos já julgados. Não se poderia negar, porém, que se estava diante de uma proposta de revisão de jurisprudência amplamente consolidada no âmbito do Supremo Tribunal Federal e, que, pela sua importância e aplicação, vinha sendo reafirmada e aplicada cotidianamente no âmbito desta e de outras Cortes do País. Sobre o assunto, desenvolvi algumas reflexões, nos termos seguintes. Talvez um dos temas mais ricos da teoria do direito e da moderna teoria constitucional seja aquele relativo à evolução jurisprudencial e, especialmente, a possível mutação constitucional. Se a sua repercussão no plano material é inegável, são inúmeros os desafios no plano do processo em geral e, em especial, do processo constitucional. Nesse sentido, vale registrar a douta observação de Larenz: “De entre os factores que dão motivo a uma revisão e, com isso, freqüentemente, a uma modificação da interpretação anterior, cabe uma importância proeminente à alteração da situação normativa. Trata-se a este propósito de que as relações fácticas ou usos que o legislador histórico tinha perante si e em conformidade aos quais projectou a sua regulação, para os quais a tinha pensado, variaram de tal modo que a norma dada deixou de se ‘ajustar’ às novas relações. É o factor temporal que se faz notar aqui. Qualquer lei está, como facto histórico, em relação
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes actuante com o seu tempo. Mas o tempo também não está em quietude; o que no momento da gênese da lei actuava de modo determinado, desejado pelo legislador, pode posteriormente actuar de um modo que nem sequer o legislador previu, nem, se o pudesse ter previsto, estaria disposto a aprovar. Mas, uma vez que a lei, dado que pretende ter também validade para uma multiplicidade de casos futuros, procura também garantir uma certa constância nas relações inter-humanas, a qual é, por seu lado, pressuposto de muitas disposições orientadas para o futuro, nem toda a modificação de relações acarreta por si só, de imediato, uma alteração do conteúdo da norma. Existe a princípio, ao invés, uma relação de tensão que só impele a uma solução - por via de uma interpretação modificada ou de um desenvolvimento judicial do Direito - quando a insuficiência do entendimento anterior da lei passou a ser ‘evidente’.”292 Daí afirmar Larenz: “A alteração da situação normativa pode assim conduzir à modificação - restrição ou extensão - do significado da norma até aqui prevalecente. De par com a alteração da situação normativa, existem factos tais como, sobretudo, modificações na estrutura da ordem jurídica global, uma nítida tendência da legislação mais recente, um novo entendimento da ratio legis ou dos critérios teleológico-objectivos, bem como a necessidade de adequação do Direito pré-constitucional aos princípios constitucionais, que podem provocar uma alteração de interpretação. Disto falámos nós já. Os tribunais podem abandonar a sua interpretação anterior porque se convenceram que era incorrecta, que assentava em falsas suposições ou em conclusões não suficientemente seguras. Mas ao tomar em consideração o factor temporal, pode também resultar que uma interpretação que antes era correcta agora não o seja.”293 Por isso, ensina, Larenz, de forma lapidar: “O preciso momento em que deixou de ser ‘correcta’ é impossível de determinar. Isto assenta em que as alterações subjacentes se efectuam na maior parte das vezes de modo contínuo e não de repente. Durante um ‘tempo intermédio’ podem ser ‘plausíveis’ ambas as coisas, a manutenção de uma interpretação constante e a passagem a uma interpretação modificada, adequada ao tempo. É também possível que uma interpretação que aparecia originariamente como conforme à Constituição, deixe de o ser na seqüência de uma modificação das relações determinantes. Então é de escolher a interpretação, no quadro das possíveis, segundo os outros critérios de interpretação, que seja agora a única conforme à Constituição”.
292 293
Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, 3a. Edição, Lisboa, 1997, p. 495. Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 498-500 .
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes No plano constitucional, esse tema mereceu uma análise superior no trabalho de Inocêncio Mártires Coelho sobre interpretação constitucional.294 No Capítulo 4 da obra em referência, que trata das conseqüências da diferença entre lei e Constituição, propicia-se uma releitura do fenômeno da chamada mutação constitucional, asseverando-se que as situações da vida são constitutivas do significado das regras de direito, posto que é somente no momento de sua aplicação aos casos ocorrentes que se revelam o sentido e o alcance dos enunciados normativos. Com base em Perez Luño e Reale, enfatiza-se que, em verdade, a norma jurídica não é o pressuposto, mas o resultado do processo interpretativo ou que a norma é a sua interpretação. Essa colocação coincide, fundamentalmente, com a observação de Häberle, segundo a qual não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen), ressaltando-se que interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública (Einen Rechssatz “auslegen” bedeutet, ihn in die Zeit, d.h. in die öffentliche Wirklichkeit stellen – um seiner Wirksamkeit willen). Por isso, Häberle introduz o conceito de pós-compreensão (Nachverständnis), entendido como o conjunto de fatores temporalmente condicionados com base nos quais se compreende “supervenientemente” uma dada norma. A pós-compreensão nada mais seria, para Häberle, do que a pré-compreensão do futuro, isto é, o elemento dialético correspondente da idéia de précompreensão. Tal concepção permite a Häberle afirmar que, em sentido amplo, toda lei interpretada – não apenas as chamadas leis temporárias – é uma lei com duração temporal limitada (In einem weiteren Sinne sind alle – interpretierten – Gesetzen “Zeitgesetze” – nicht nur die zeitlich befristeten). Em outras palavras, o texto, confrontado com novas experiências, transforma-se necessariamente em um outro. Essa reflexão e a idéia segundo a qual a atividade hermenêutica nada mais é do que um procedimento historicamente situado autorizam Häberle a realçar que uma interpretação constitucional aberta prescinde do conceito de mutação constitucional (Verfassungswandel) enquanto categoria autônoma. Nesses casos, fica evidente que o Tribunal não poderá fingir que sempre pensara dessa forma. Daí a necessidade de, em tais casos, fazer-se o ajuste do resultado, adotando-se técnica de decisão que, tanto quanto possível, traduza a mudança de valoração. No plano constitucional, esses casos de mudança na concepção jurídica podem produzir uma mutação normativa ou a evolução na interpretação, permitindo que venha a ser reconhecida a inconstitucionalidade de situações anteriormente consideradas legítimas. A orientação doutrinária tradicional, marcada por uma alternativa rigorosa entre atos legítimos ou ilegítimos (entweder als rechtmässig oder als rechtswidrig), encontra dificuldade para identificar a consolidação de um processo de inconstitucionalização (Prozess des Verfassungswidrigwerdens). Prefere-se admitir que, embora não tivesse sido identificada, a ilegitimidade sempre existira. Daí afirmar Häberle:
“O Direito Constitucional vive, prima facie, uma problemática temporal. De um lado, a dificuldade de alteração e a conseqüente duração e 294
Coelho, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional, Porto Alegre: Sergio Fabris, 1997.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes continuidade, confiabilidade e segurança; de outro, o tempo envolve agora mesmo, especificamente no Direito Constitucional. E o processo de reforma constitucional deverá ser feito de forma flexível e a partir de uma interpretação constitucional aberta. A continuidade da Constituição somente será possível se passado e futuro estiverem nela associados.”295 Häberle indaga:
“O que significa tempo? Objetivamente, tempo é a possibilidade de se introduzir mudança, ainda que se não haja a necessidade de produzila”.296 Não é raro que essas alterações de concepções se verifiquem, dentre outros campos, exatamente em matéria de defesa dos direitos fundamentais. Aqui talvez se mesclem as mais diversas concepções existentes na própria sociedade e o processo dialético que as envolve. E os diversos entendimentos de mundo convivem, sem que, muitas vezes, o “novo” tenha condições de superar o “velho”. É natural também que esse tipo de situação se coloque de forma bastante evidente no quadro de uma nova ordem constitucional. Aqui, entendimentos na jurisprudência, doutrina e legislação tornam, às vezes, inevitável, que a interpretação da Constituição se realize, em um primeiro momento, com base na situação jurídica pré-existente. Assim, até mesmo institutos novos poderão ser interpretados segundo entendimento consolidado na jurisprudência e na legislação. Nesse caso, é, igualmente, compreensível, que uma nova orientação hermenêutica reclame cuidados especiais. Nesse sentido, refiro-me mais uma vez às lições de Larenz: “O que é para os tribunais civis, quando muito, uma excepção, adequa-se em muito maior medida a um Tribunal Constitucional. Decerto que se poderá, por exemplo, resolver muitas vezes sobre recursos constitucionais de modo rotineiro, com os meios normais da argumentação jurídica. Aqui tão-pouco faltam casos comparáveis. Mas nas resoluções de grande alcance político para o futuro da comunidade, estes meios não são suficientes. Ao Tribunal Constitucional incumbe uma responsabilidade política na manutenção da ordem jurídico-estadual e da sua capacidade de funcionamento. Não pode proceder segundo a máxima: fiat justitia, pereat res publica. Nenhum juiz constitucional procederá assim na prática. Aqui a ponderação das conseqüências é, portanto, de todo irrenunciável, e neste ponto tem KRIELE razão. Certamente que as conseqüências (mais remotas) tão pouco são susceptíveis de ser entrevistas com segurança por um Tribunal Constitucional, se bem que este disponha de possibilidades muito mais amplas do que um simples juiz civil de conseguir uma imagem daquelas. Mas isto tem que ser aceite. No que se refere à avaliação das conseqüências previsíveis, esta avaliação só pode estar orientada à idéia de ‘bem comum’, especialmente à manutenção ou aperfeiçoamento da capacidade funcional do Estado de Direito. É, neste sentido, uma avaliação política, mas devendo exigir-se 295
Häberle, Peter. Zeit und Verfassung. Prelegomena zu einem “ zeitgerechten” Verfassungsverständnis . In: Dreier, Ralf; Schwegmann, Friedrich. Probleme der Verfassungsinterpretation, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1976, p. 293 (312-313). 296 Häberle. Zeit und Verfassung , cit., p. 293 (300).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes de cada juiz constitucional que se liberte, tanto quanto lhe seja possível e este é, seguramente, em larga escala o caso - da sua orientação política subjectiva, de simpatia para com determinados grupos políticos, ou de antipatia para com outros, e procure uma resolução despreconceituada, ‘racional’.”297 Talvez o caso historicamente mais relevante da assim chamada mutação constitucional seja expresso na concepção da igualdade racial nos Estados Unidos. Em 1896, no caso Plessy versus Ferguson, a Corte Suprema americana reconheceu que a separação entre brancos e negros em espaços distintos, no caso específico – em vagões de trens – era legítima. Foi a consagração da fórmula “equal but separated”. Essa orientação veio a ser superada no já clássico Brown versus Board of Education (1954), no qual se assentou a incompatibilidade dessa separação com os princípios básicos da igualdade. Nos próprios Estados Unidos, a decisão tomada em Mapp versus Ohio, 367 U.S. 643 (1961), posteriormente confirmada em Linkletter versus Walker, 381 U.S. 618 (1965), a propósito da busca e apreensão realizada na residência da Sra. Dollree Mapp, acusada de portar material pornográfico, em evidente violação às leis de Ohio, traduz uma significativa mudança de orientação até então esposada pela Corte Suprema. No direito alemão, refira-se o famoso caso sobre o regime da execução penal (Strafgefangene), de 14 de março de 1972. Segundo a concepção tradicional, o estabelecimento de restrições aos direitos fundamentais dos presidiários mediante atos normativos secundários era considerada, inicialmente, compatível com a Lei Fundamental. Na espécie, cuidava-se de Verfassungsbeschwerde proposta por preso que tivera carta dirigida a uma organização de ajuda aos presidiários interceptada, porque continha críticas à direção do presídio. A decisão respaldavase em uma portaria do Ministério da Justiça do Estado. A Corte Constitucional alemã colocou em dúvida esse entendimento na decisão proferida sobre problemática da execução penal, como se logra depreender da seguinte passagem do acórdão:
“O constituinte contemplou, por ocasião da promulgação da Lei Fundamental, a situação tradicional da execução da pena, tal como resulta dos artigos 2º, parágrafo 2º, 2º período, e 104, parágrafos 1º e 2º da Lei Fundamental, não existindo qualquer sinal de que ele partira da premissa de que o legislador haveria de editar uma lei imediatamente após a entrada em vigor da Lei Fundamental. Na apreciação da questão sobre o decurso de prazo razoável para o legislador disciplinar a matéria e, por conseguinte, sobre a configuração de ofensa à Constituição, deve-se considerar também que, até recentemente, admitiase, com fundamento das relações peculiares de poder (besondere Gewaltverhältnisse), que os direitos fundamentais do preso estavam submetidos a uma restrição geral decorrente das condições de execução da pena. Cuidar-se-ia de limitação implícita, que não precisava estar prevista expressamente em lei. Assinale-se, todavia, que, segundo a orientação que se contrapõe à corrente tradicional, a Lei Fundamental, enquanto ordenação objetiva de valores com ampla proteção dos direitos fundamentais, não pode admitir uma restrição ipso jure da proteção dos 297
Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 517.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes direitos fundamentais para determinados grupos de pessoas. Essa corrente somente impôs-se após lento e gradual processo.” (BVerfGE 33, 1 (12))
A especificidade da situação impunha, todavia, que se tolerassem, provisoriamente, as restrições aos direitos fundamentais dos presidiários, ainda que sem fundamento legal expresso. O legislador deveria emprestar nova disciplina à matéria, em consonância com a orientação agora dominante sobre os direitos fundamentais. A evolução do entendimento doutrinário e jurisprudencial – uma autêntica mutação constitucional – passava a exigir, no entanto, que qualquer restrição a esses direitos devesse ser estabelecida mediante expressa autorização legal. Nesses termos, considerando todas as possíveis repercussões que a declaração de inconstitucionalidade haveria de ter no campo civil, processual e penal, sustentei que, ante a nova orientação que se desenha, a decisão somente poderia ser tomada com eficácia ex nunc, permitindo que o juiz, em cada caso, avalie a necessidade/possibilidade de decretação da prisão provisória nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. É que, como observa Larenz, também a justiça constitucional não se opera sob o paradigma do “fiat justitia, pereat res publica”. Assente que se cuida de uma revisão de jurisprudência, de um autêntico “overruling”, e entendia que o Tribunal deveria fazê-lo com eficácia restrita. E, certamente, elas não eram – nem deveriam ser consideradas – inconstitucionais, quando proferidas. Daí ter concluído: “Com essas considerações, também eu, Senhor Presidente, declaro a inconstitucionalidade do artigo 9º da Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995, e fixo a interpretação conforme à Constituição do disposto no artigo 3º da Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998, para se interpretar que o juiz decidirá fundamentadamente, se o réu poderá apelar ou não em liberdade, no sentido de verificar se estão presentes ou não os requisitos da prisão cautelar. Faço isso, com efeito ex nunc, nos termos do artigo 27 da Lei nº 9.868, de 1999, que entendo aplicável à espécie” . A matéria ainda pende de definição, em razão de pedido de vista. É certo, porém, que além de indicar a aplicação do art. 27 ao controle incidental de normas, a discussão demonstra que os casos de mudança de interpretação podem dar ensejo à declaração de inconstitucionalidade com efeitos restritos. Por derradeiro, refira-se à decisão proferida na ADI nº 3022, de 18.08.2004,298 na qual o Tribunal declarou a inconstitucionalidade de lei do Rio Grande do Sul. Nesse julgamento, a Corte declarou a inconstitucionalidade do art. 45 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, e de expressão contida na alínea “a”, do Anexo II, da Lei Complementar Estadual nº. 10.194, de 30 de maio de 1994, também do Estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo, porém, que a decisão haveria de ter eficácia a partir de 03.12.2004. Trata-se do primeiro caso no qual se declarou a inconstitucionalidade de dispositivo legal, reconhecendo-se, entretanto, que a decisão teria eficácia pro futuro.
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Cf., supra, comentário sobre a referida ADI nº.3022, Rel. Joaquim Barbosa, DJ de 18.08.2004, item 7.4.1.3. As situações imperfeitas e a “lei ainda constitucional”: fundamento de segurança jurídica.
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1.5. SEGURANÇA E ESTABILIDADE DAS DECISÕES (ART. 28) Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão. Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. 1.5.1. Eficácia “erga omnes” O art. 102, § 2º, da CF e o art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868 prevêem que as decisões declaratórias de constitucionalidade têm eficácia erga omnes. Também a jurisprudência se utiliza largamente do conceito de eficácia erga omnes. Não obstante esse estado de coisas, não cuidou a doutrina brasileira até aqui de conferir ao termo em questão maior densidade teórica. Parece assente, entre nós, orientação segundo a qual a eficácia erga omnes da decisão do Supremo Tribunal se refere à parte dispositiva do julgado. Se o Supremo Tribunal Federal chegar à conclusão de que lei questionada é constitucional, haverá de afirmar expressamente a sua constitucionalidade, julgando procedente a ADC proposta. Da mesma forma, se afirmar a improcedência da ADIn, deverá o Tribunal declarar a constitucionalidade da lei que se queria ver declarada inconstitucional. Do prisma estritamente processual, a eficácia geral ou a eficácia erga omnes obsta, em primeiro plano, que a questão seja submetida uma vez mais ao Supremo Tribunal Federal. Portanto, não se tem uma mudança qualitativa da situação jurídica. Enquanto a declaração de nulidade importa na cassação da lei, não dispõe a declaração de constitucionalidade de efeito análogo. A validade da lei não depende da declaração judicial, e a lei vige, após a decisão, tal como vigorava anteriormente299. Não fica o legislador, igualmente, impedido de alterar ou mesmo de revogar a norma em apreço. Questão que tem ocupado os doutrinadores diz respeito, todavia, à eventual vinculação do Tribunal no caso da declaração de constitucionalidade. Poderia ele vir a declarar, posteriormente, a inconstitucionalidade da norma declarada constitucional? Estaria ele vinculado à decisão anterior? O tema suscitou controvérsias na Alemanha. A força de lei da decisão da Corte Constitucional que confirma a constitucionalidade revelarse-ia problemática se o efeito vinculante geral, que se lhe reconhece, impedisse que o Tribunal se ocupasse novamente da questão300. Por isso, sustenta Vogel que a aplicação do disposto no § 31, (2), da Lei orgânica do Tribunal 299
Theodor Maunz, in Maunz et al., Bundesverfassungsgerichtsgesetz, § 31 n. 42; Gusy, Christoph. Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, Berlin, 1985, p. 223. 300 Cf., a propósito, BVerfGE 33, p. 199 (203 e s.); Hans Brox, Zur Zulässigkeit der erneuten Überprüfung einer Norm durch das Bundesverfassungsgericht, in Festschrift für W. Geiger, p. 810 (825); Klaus Lange, Rechtskraft, Bindungswirkung und Gesetzeskraft der Entscheidung des Bundesverfassungsgerichts, JuS 1978, p. 1 (6 e s.).
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes às decisões confirmatórias somente tem significado para o dever de publicação, uma vez que a lei não pode atribuir efeitos que não foram previstos pela própria Constituição. Do contrário, ter-se-ia a possibilidade de que outras pessoas não vinculadas pela coisa julgada ficassem impedidas de questionar a constitucionalidade da lei, o que acabaria por atribuir à chamada eficácia erga omnes (força de lei) o significado da autêntica norma constitucional301. É o que afirma na seguinte passagem de seu estudo sobre a eficácia das decisões da Corte Constitucional: “A proteção para as decisões confirmatórias da Corte Constitucional que transcendesse a própria coisa julgada não encontraria respaldo no art. 94, II, da Lei Fundamental. Semelhante proteção, que acabaria por impedir que pessoas não atingidas pela coisa julgada sustentassem que a decisão estaria equivocada e que, em verdade, a lei confirmada seria inconstitucional, importaria na conversão da força de lei em força de Constituição. (...) O § 31, II, da Lei orgânica da Corte Constitucional faz com que a força de lei alcance também as decisões confirmatórias de constitucionalidade. Essa ampliação somente se aplica, porém, ao dever de publicação, porque a lei não pode conferir efeito que a Constituição não prevê (...)”302.
A Lei Fundamental e a Lei orgânica da Corte Constitucional não legitima essa conclusão, seja porque a norma constitucional autoriza expressamente o legislador a definir as decisões da Corte Constitucional que devem ser dotadas de força de lei, seja porque o legislador não restringiu a eficácia erga omnes apenas às decisões de índole cassatória. É certo, por outro lado, que a conclusão de Vogel afigurar-se-ia obrigatória se, tal como ressaltado por Bryde, se conferisse caráter material à força de lei prevista no § 31, (2), da Lei orgânica da Corte Constitucional303. Se, todavia, se considera a força de lei, tal como a doutrina dominante, como instituto especial de controle de normas — e, por isso, como instituto de índole processual304 —, não expressa esse conceito outra idéia senão a de que não pode o Tribunal, num novo processo, proferir decisão discrepante da anteriormente proferida305. Convém registrar, a propósito, o pensamento de Bryde: “Essa idéia (que reduz a força de lei, nos casos de declaração de constitucionalidade, ao simples dever de publicação) somente se afigura obrigatória se se considerar a força de lei nos termos do § 31, II da Lei orgânica da Corte constitucional como um instituto de caráter material. Efetivamente, uma decisão da Corte Constitucional não pode transformar uma lei inconstitucional em uma lei conforme à Constituição. Todavia, se se contempla a força de lei como instituto de coisa julgada específico para o controle de normas, então a vinculação erga omnes não significa uma convalidação de eventual inconstitucionalidade da lei confirmada, mas, tão-somente, que essa questão já não mais poderá ser suscitada no processo constitucional. Contra essa concepção não se levantam objeções de índole constitucional. A idéia de Estado de Direito (mais exatamente, a vinculação constitucional da atividade legislativa, art. 20) exige a possibilidade de controle de normas, mas não impõe a abertura de incontáveis vias para esse fim”306.
301
Vogel, Klaus. Rechtskraft und Gesetzeskraft, in Christian Starck (org.), Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz, Tübingen, 1976, v. 1, p. 568 (613). 302 Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraft, cit., v. 1, p. 568 (613). 303 Bryde, Brun-Otto. Verfassungsengsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Baden-Baden, 1982, p. 408. 304 Brox, Zur Zulässigkeit der erneuten Überprüfung einer Norm durch das Bundesverfassungsgericht, in Festschrift für W. Geiger, p. 809 (818); Maunz, in Maunz et al., Bundesverfassungsgerichtsgesetz, § 31, n. 42; Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 409. 305 Lange, Rechtskraft, Bindungswirkung und Gesetzeskraft der Entscheidung des Bundesverfassungsgerichts, JuS 1978, p. 1 (6 e s.); Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 408. 306 Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 408-9.
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Não se pode cogitar, portanto, de superação ou de convalidação de eventual inconstitucionalidade da lei que não teve a sua impugnação acolhida pelo Tribunal307. A fórmula adotada pelo constituinte brasileiro, e agora pelo legislador ordinário, não deixa dúvida, também, de que a decisão de mérito proferida na ADC tem eficácia contra todos (eficácia erga omnes) e efeito vinculante para os órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário. Do prisma estritamente processual, a eficácia geral ou a eficácia erga omnes obsta, em primeiro plano, que a questão seja submetida uma vez mais ao Supremo Tribunal Federal. Portanto, não se tem uma mudança qualitativa da situação jurídica. Enquanto a declaração de nulidade importa na cassação da lei, não dispõe a declaração de constitucionalidade de efeito análogo. A validade da lei não depende da declaração judicial, e a lei vige, após a decisão, tal como vigorava anteriormente308. Não fica o legislador, igualmente, impedido de alterar ou mesmo de revogar a norma em apreço. É certo, pois, que, declarada a constitucionalidade de uma norma pelo Supremo Tribunal, ficam os órgãos do Poder Judiciário obrigados a seguir essa orientação, uma vez que a questão estaria definitivamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal. 1.5.2. Limites objetivos da eficácia “erga omnes”: a declaração de constitucionalidade da norma e a reapreciação da questão pelo Supremo Tribunal Se o instituto da eficácia erga omnes entre nós, tal como a força de lei no direito tedesco, constitui categoria de direito processual específica, afigura-se lícito indagar se seria admissível a submissão de lei que teve a sua constitucionalidade reconhecida a um novo ao juízo de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal. Analisando especificamente o problema da admissibilidade de uma nova aferição de constitucionalidade de norma declarada constitucional pelo Bundesverfassungsgericht, Hans Brox a considera possível, desde que satisfeitos alguns pressupostos. É o que anota na seguinte passagem de seu ensaio sobre o tema: “Se se declarou, na parte dispositiva da decisão, a constitucionalidade da norma, então se admite a instauração de um novo processo para aferição de sua constitucionalidade se o requerente, o Tribunal suscitante (controle concreto) ou o recorrente (recurso constitucional = Verfassungsbeschwerde) demonstrar que se cuida de uma nova questão. Tem-se tal situação se, após a publicação da decisão, se verificar uma mudança do conteúdo da Constituição ou da norma objeto do controle, de modo a permitir supor que outra poderá ser a conclusão do processo de subsunção. Uma mudança substancial das relações fáticas ou da concepção jurídica geral pode levar a essa alteração”309.
Na mesma linha de entendimento, fornece Bryde resposta afirmativa à indagação formulada: “Se se considera que o direito e a própria Constituição estão sujeitos à mutação e, portanto, que uma lei declarada constitucional pode vir a tornar-se inconstitucional, tem-se de admitir a possibilidade da questão já decidida poder ser submetida novamente à Corte Constitucional. Se se pretendesse excluir tal possibilidade, ter-se-ia a exclusão dessas situações, sobretudo das leis que tiveram sua constitucionalidade reconhecida pela Corte constitucional, do processo de desenvolvimento constitucional, ficando elas congeladas no estágio do parâmetro de controle à época da aferição. O objetivo deve ser uma ordem jurídica que corresponda ao
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Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 408; Maunz, in Maunz et al., Bundesverfassungsgerichtsgesetz, § 31, n. 37. 308 Maunz, Theodor. In: Maunz et al., Bundesverfassungsgerichtsgesetz, § 31, n. 42, Christoph Gusy, Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht, Berlin, 1985, p. 223. 309 Brox, Zur Zulässigkeit..., in Festschrift für W. Geiger, p. 809 (826).
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respectivo estágio do direito constitucional e não uma ordem formada por diferentes níveis de desenvolvimento, de acordo com o momento da eventual aferição de legitimidade da norma a parâmetros constitucionais diversos. Embora tais situações não possam ser eliminadas faticamente, é certo que a ordem processual-constitucional deve procurar evitar o surgimento dessas distorções. A aferição da constitucionalidade de uma lei que teve a sua legitimidade reconhecida deve ser admitida com base no argumento de que a lei pode ter-se tornado inconstitucional após a decisão da Corte. (...) Embora não se compatibilize com a doutrina geral da coisa julgada, essa orientação sobre os limites da coisa julgada no âmbito das decisões da Corte Constitucional é amplamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Não se controverte, pois, sobre a necessidade de que se considere eventual mudança das ‘relações fáticas’. Nossos conhecimentos sobre o processo de mutação constitucional exigem, igualmente, que se admita nova aferição da constitucionalidade da lei no caso de mudança da concepção constitucional”310.
Em síntese, declarada a constitucionalidade de uma lei, ter-se-á de concluir pela inadmissibilidade de que o Tribunal se ocupe, uma vez mais, da aferição de sua legitimidade, salvo no caso de significativa mudança das circunstâncias fáticas311 ou de relevante alteração das concepções jurídicas dominantes312. Também entre nós se reconhece, tal como ensinado por Liebman com arrimo em Savigny313, que as sentenças contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus314, de modo que as alterações posteriores que alterem a realidade normativa, bem como eventual modificação da orientação jurídica sobre a matéria, podem tornar inconstitucional norma anteriormente considerada legítima (inconstitucionalidade superveniente)315. Daí parecer-nos plenamente legítimo que se suscite perante o Supremo Tribunal Federal316 a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional, em ação direta ou em ação declaratória de constitucionalidade. 1.5.3. Eficácia “erga omnes” na declaração de inconstitucionalidade proferida em ADC ou em ADIn É possível que o Supremo Tribunal Federal venha a reconhecer a improcedência da ADC ou a procedência da ADIn. Nesses casos, haverá de declarar a inconstitucionalidade da lei questionada.
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Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 412-3. BVerfGE 33, 199; 39, 169. 312 Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 409; Brox, Zur Zulässigkeit..., in Festschrift für W. Geiger, p. 809 (818); Stern, Bonner Komentar, Art. 100, n. 139; Gusy, Parlamentarischer, cit., p. 228. 313 Cf. Liebman, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da coisa julgada, Rio de Janeiro, 1984, p. 25-6: “De certo modo, todas as sentenças contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus (Savigny, Sistema (trad. ital.), VI, p. 378), enquanto a coisa julgada não impede absolutamente que se tenham em conta os fatos que intervierem sucessivamente à emanação da sentença (...). O que há de diverso nestes casos — refere-se às chamadas sentenças determinativas ou dispositivas — não é a rigidez menor da coisa julgada, mas a natureza da relação jurídica, que continua a viver no tempo com conteúdo ou medida determinados por elementos essencialmente variáveis, de maneira que os fatos que sobrevenham podem influir nela, não só no sentido de extingui-la, fazendo, por isso extinguir o valor da sentença, mas também no sentido de exigir mudança na determinação dela, feita anteriormente”. 314 Cf., também, dentre outros, Adolf Schönke, Derecho procesal civil, trad. da 5. ed. alemã, Barcelona, 1950, p. 273 s. 315 Mendes, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade, cit., p. 73. 316 O Supremo Tribunal reconhece expressamente a possibilidade de alteração da coisa julgada provocada por mudança nas circunstâncias fáticas (cf., a propósito, RE 105.012-8, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ, 1º jul. 1988). 311
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Em face dos termos expressos do texto constitucional e da Lei n. 9.868, não subsiste dúvida de que a decisão de mérito sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade é dotada de eficácia contra todos. Significa dizer que, declarada a inconstitucionalidade de uma norma, na ADC, deve-se reconhecer, ipso jure, a sua imediata eliminação do ordenamento jurídico, salvo se, por algum fundamento específico, puder o Tribunal restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade (v. g., declaração de inconstitucionalidade com efeito a partir de dado momento no futuro). Aceita a idéia de nulidade de lei inconstitucional, sua eventual aplicação após a declaração de inconstitucionalidade equivaleria à aplicação de cláusula juridicamente inexistente. Efeito necessário e imediato da declaração de nulidade há de ser, pois, a exclusão de toda ultra-atividade da lei inconstitucional. A eventual eliminação dos atos praticados com fundamento na lei inconstitucional há de ser considerada em face de todo o sistema jurídico, especialmente das chamadas fórmulas de preclusão. 1.5.4. A eficácia “erga omnes” da declaração de nulidade e os atos singulares praticados com base no ato normativo declarado inconstitucional A ordem jurídica brasileira não dispõe de preceitos semelhantes aos constantes do § 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht, que prescreve a intangibilidade dos atos não mais suscetíveis de impugnação317. Não se deve supor, todavia, que a declaração de inconstitucionalidade afeta todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional. Embora a ordem jurídica brasileira não contenha regra expressa sobre o assunto e se aceite, genericamente, a idéia de que o ato fundado em lei inconstitucional está eivado, igualmente, de iliceidade318, concede-se proteção ao ato singular, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo e no plano do ato singular mediante a utilização das fórmulas de preclusão319. Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade320. Em outros termos, somente serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade com eficácia geral os atos ainda suscetíveis de revisão ou impugnação. Importa, portanto, assinalar que a eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade não opera uma depuração total do ordenamento jurídico. Ela cria, porém, as condições para a eliminação dos atos singulares suscetíveis de revisão ou de impugnação.
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§ 79 da Lei do Bundesverfassungsgericht: “(1) É legítimo o pedido de revisão criminal nos termos do Código de Processo Penal contra a sentença condenatória penal que se baseia em uma norma declarada inconstitucional (sem a pronúncia da nulidade) ou nula, ou que se assenta em uma interpretação que o Bundesverfassungsgericht considerou incompatível com a Lei Fundamental. (2) No mais, ressalvado o disposto no § 92 (2), da Lei do Bundesverfassungsgericht ou uma disciplina legal específica, subsistem íntegras as decisões proferidas com base em uma lei declarada nula, nos termos do § 78. É ilegítima a execução de semelhante decisão. Se a execução forçada tiver de ser realizada nos termos das disposições do Código de Processo Civil, aplica-se o disposto no § 767 do Código de Processo Civil. Excluem pretensões fundadas em enriquecimento sem causa”. 318 Cf., a propósito, RMS 17.976, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ, 55:744. 319 Jörn Ipsen, Rechtsfolgen der Verfassungswidrigkeit von Normen und Einzelakt, Baden-Baden, 1980, p. 174 e s. 320 Cf. RE 86.056, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJ, 1º jul. 1977.bbb
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 1.5.5. A eficácia “erga omnes” da declaração de inconstitucionalidade e a superveniência de lei de teor idêntico Poder-se-ia indagar se a eficácia erga omnes teria o condão de vincular o legislador, de modo a impedi-lo de editar norma de teor idêntico àquela que foi objeto de declaração de inconstitucionalidade. A doutrina tedesca, firme na orientação segundo a qual a eficácia erga omnes — tal como a coisa julgada — abrange exclusivamente a parte dispositiva da decisão, responde negativamente à indagação321. Uma nova lei, ainda que de teor idêntico ao do texto normativo declarado inconstitucional, não estaria abrangida pela força de lei. Também o Supremo Tribunal tem entendido que a declaração de inconstitucionalidade não impede o legislador de promulgar lei de conteúdo idêntico ao do texto anteriormente censurado322. Tanto é assim, que, nessas hipóteses, tem o Tribunal processado e julgado nova ação direta, entendendo legítima a propositura de uma nova ação direta de inconstitucionalidade. 1.5.6. Conceito de efeito vinculante O que se deve entender por efeito vinculante? A expressão não é de uso comum entre nós. O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, ao disciplinar a chamada representação interpretativa, introduzida pela Emenda n. 7, de 1977323, estabelecia que a decisão proferida na representação interpretativa seria dotada de efeito vinculante (art. 187 do RISTF324 ). Em 1992, o efeito vinculante das decisões proferidas em sede de controle abstrato de normas foi referido em Projeto de Emenda Constitucional apresentado pelo Deputado Roberto Campos (PEC n. 130/92). No aludido projeto, distinguia-se nitidamente a eficácia geral (erga omnes) do efeito vinculante325. 321
Cf. Christian Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, 3. ed., Berlin, 1991, p. 333; Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 407. 322 ADIn 907, Rel. Min. Ilmar Galvão, RTJ, 150:726; ADIn 864, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ, 151:416. 323 Cf. Emenda Constitucional n. 7, de 1977, art. 9º: “A partir da data da publicação da ementa do acórdão no Diário Oficial da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante, implicando sua nãoobservância negativa de vigência do texto interpretado”. 324 Eis o teor do art. 187 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal: “A partir da publicação do acórdão, por suas conclusões e ementa, no Diário da Justiça da União, a interpretação nele fixada terá força vinculante para todos os efeitos”. 325 A proposta de Emenda n. 130/92, apresentada pelo Deputado Roberto Campos, tinha o seguinte teor: “Art. 1º Suprima-se o inciso X do art. 52, renumerando-se os demais. Art. 2º Os arts. 102 e 103 da Constituição passam a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 102. ............................................................................................ § 1º A argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma desta lei. § 2º As decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal, nos processos de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos e no controle de constitucionalidade da omissão, têm eficácia erga omnes e efeito vinculante para os órgãos e agentes públicos. § 3º Lei complementar poderá outorgar a outras decisões do Supremo Tribunal Federal eficácia erga omnes, bem como dispor sobre o efeito vinculante dessas decisões para os órgãos e agentes públicos’. ‘Art. 103. ............................................................................................ § 1º ..................................................................................................... § 2º .....................................................................................................
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Tal como assente em estudo que produzimos sobre esse assunto, que foi incorporado às justificações apresentadas no aludido Projeto, a eficácia “erga omnes” e o efeito vinculante deveriam ser tratados como institutos afins, mas distintos326. A Emenda Constitucional n. 3, promulgada em 16 de março de 1993, que, no que diz respeito à ação declaratória de constitucionalidade, inspirou-se direta e imediatamente na Emenda Roberto Campos, consagra que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo” (art. 102, § 2º). Embora o texto aprovado revele algumas deficiências técnicas327, não parece subsistir dúvida de que também o legislador constituinte, tal como fizera a Emenda Roberto Campos, procurou distinguir a eficácia “erga omnes” (eficácia contra todos) do efeito vinculante, pelo menos no que concerne à ação declaratória de constitucionalidade. A Lei n. 9.868, por sua vez, em seu art. 28, parágrafo único, trouxe afinal um tratamento uniforme e coerente à matéria, prevendo que as declarações de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme à Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública federal, estadual e municipal.
1.5.6.1. Limites objetivos do efeito vinculante A concepção de efeito vinculante consagrada pela Emenda n. 3, de 1993, está estritamente vinculada ao modelo germânico disciplinado no § 31, (2), da Lei orgânica da Corte Constitucional. A própria justificativa da proposta apresentada pelo Deputado Roberto Campos não deixa dúvida de que se pretendia outorgar não só eficácia erga omnes mas também efeito vinculante à decisão, § 3º ..................................................................................................... § 4º Os órgãos ou entes referidos nos incisos I a X deste artigo podem propor ação declaratória de constitucionalidade, que vinculará as instâncias inferiores, quando decidida no mérito”. 326 Vale transcrever, a propósito, a seguinte passagem da justificação desenvolvida: “Além de conferir eficácia “erga omnes” às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade, a presente proposta de emenda constitucional introduz no direito brasileiro o conceito de efeito vinculante em relação aos órgãos e agentes públicos. Trata-se de instituto jurídico desenvolvido no Direito processual alemão, que tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas por aquela Corte Constitucional, assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Gründe). A declaração de nulidade de uma lei não obsta à sua reedição, ou seja, a repetição de seu conteúdo em outro diploma legal. Tanto a coisa julgada quanto a força de lei (eficácia erga omnes) não lograriam evitar esse fato. Todavia, o efeito vinculante, que deflui dos fundamentos determinantes (tragende Gründe) da decisão, obriga o legislador a observar estritamente a interpretação que o tribunal conferiu à Constituição. Conseqüência semelhante se tem quanto às chamadas normas paralelas. Se o tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma Lei do Estado A, o efeito vinculante terá o condão de impedir a aplicação de norma de conteúdo semelhante do Estado B ou C (cf. Christian Pestalozza, comentário ao § 31, I, da Lei do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgerichtsgesetz) in Direito Processual Constitucional (Verfassungsprozessrecht), 2ª edição, Verlag C. H. Beck, Munique, 1982, pp. 170/171, que explica o efeito vinculante, suas conseqüências e a diferença entre ele e a eficácia seja inter partes ou erga omnes. (Proposta de Emenda Constitucional n. 130, de 1992, DCN, 1, 2 set. 1992, p. 19956, col. 01). 327 O tratamento diferenciado conferido à ação declaratória suscita inúmeros problemas. Por que conferir legitimação específica a determinados órgãos? Qual a razão de limitar o objeto da ação declaratória apenas ao direito federal? Ademais, a atribuição expressa de efeito vinculante à decisão definitiva proferida em ação declaratória permite indagar, inevitavelmente, sobre a qualidade da decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes deixando claro que estes não estariam limitados apenas à parte dispositiva. Embora a Emenda n. 3/93 não tenha incorporado a proposta na sua inteireza, é certo que o efeito vinculante, na parte que foi positivada, deve ser estudado à luz dos elementos contidos na proposta original. Assim, parece legítimo que se recorra à literatura alemã para explicitar o significado efetivo do instituto. A primeira indagação, na espécie, refere-se às decisões que seriam aptas a produzir o efeito vinculante. Afirma-se que, fundamentalmente, são vinculantes as decisões capazes de transitar em julgado328. Tal como a coisa julgada, o efeito vinculante refere-se ao momento da decisão. Alterações posteriores não são alcançadas329. Problema de inegável relevo diz respeito aos limites objetivos do efeito vinculante, isto é, à parte da decisão que tem efeito vinculante para os órgãos constitucionais, tribunais e autoridades administrativas. Em suma, indaga-se, tal como em relação à coisa julgada e à força de lei, se o efeito vinculante está adstrito à parte dispositiva da decisão ou se ele se estende também aos chamados fundamentos determinantes, ou, ainda, se o efeito vinculante abrange também as considerações marginais, as coisas ditas de passagem, isto é, os chamados obiter dicta330. Enquanto em relação à coisa julgada e à força de lei domina a idéia de que elas hão de se limitar à parte dispositiva da decisão, sustenta o Tribunal Constitucional alemão que o efeito vinculante se estende, igualmente, aos fundamentos determinantes da decisão331. Segundo esse entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os tribunais e autoridades nos casos futuros332. Outras correntes doutrinárias sustentam que, tal como a coisa julgada, o efeito vinculante limita-se à parte dispositiva da decisão, de modo que, do prisma objetivo, não haveria distinção entre a coisa julgada e o efeito vinculante333. A diferença entre as duas posições extremadas não é meramente semântica ou teórica334, apresentando profundas conseqüências também no plano prático. Enquanto o entendimento esposado pelo Tribunal Constitucional alemão importa não só na proibição de que se contrarie a decisão proferida no caso concreto em toda a sua dimensão, mas também na obrigação de todos os órgãos constitucionais de adequar a sua conduta, nas situações futuras, à orientação dimanada da decisão335, considera a concepção que defende uma interpretação restritiva do § 31, I, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional que o efeito vinculante há de ficar limitado à parte dispositiva da decisão, realçando, assim, a qualidade judicial da decisão336. A aproximação dessas duas posições extremadas é feita mediante o desenvolvimento de orientações mediadoras, que acabam por fundir elementos das concepções principais.
328
Christian Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 324. Cf. Christian Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 325. 330 Cf. Maunz, in Maunz, et al., BVerfGG, cit., § 31, I, n. 16. 331 BVerfGE 1, 14 (37); 4, 31 (38); 5, 34 (37); 19, 377 (392); 20, 56 (86); 24, 289 (294); 33, 199 (203); 40, 88 (93); cf., também, Maunz, dentre outros, BVerfGG, § 31, I, n. 16; Norbert Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, Berlin, 1979, p. 42. 332 BVerfGE 19, 377. 333 Cf., sobre o assunto, Norbert Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 42. 334 Subjacente à discussão sobre a amplitude do efeito vinculante reside uma questão mais profunda, relativa à própria idéia de jurisdição constitucional (Verfassungsgerichtsbarkeit) (Norbert Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 43). 335 Norbert Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 45. 336 Norbert Wischermann, Rechtskraft und Bindungswirkung, cit., p. 43. 329
347
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Assim, propõe Vogel que a coisa julgada ultrapasse os estritos limites da parte dispositiva, abrangendo também a “norma decisória concreta”337. A norma decisória concreta seria aquela “idéia jurídica subjacente à formulação contida na parte dispositiva, que, concebida de forma geral, permite não só a decisão do caso concreto, mas também a decisão de casos semelhantes”338. Por seu lado, sustenta Kriele que a força dos precedentes, que presumivelmente vincula os Tribunais, é reforçada no direito alemão pelo disposto no § 31, I, da Lei do Tribunal Constitucional alemão339. A semelhante resultado chegam as reflexões de Bachof, segundo o qual o papel fundamental do Tribunal Constitucional alemão consiste na extensão de suas decisões aos casos ou situações paralelas340. Tal como já anotado, parecia inequívoco o propósito do legislador alemão, ao formular o § 31 da Lei Orgânica do Tribunal, de dotar a decisão de uma eficácia transcendente341. É certo, por outro lado, que a limitação do efeito vinculante à parte dispositiva da decisão tornaria de todo despiciendo esse instituto, uma vez que ele pouco acrescentaria aos institutos da coisa julgada e da força de lei. Ademais tal redução diminuiria significativamente a contribuição do Tribunal para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional342. Aceita a idéia de uma eficácia transcendente à própria coisa julgada, afigura-se legítimo indagar sobre o significado do efeito vinculante para os órgãos estatais que não são partes do processo. Segundo a doutrina dominante, são as seguintes as conseqüências do efeito vinculante para os não-partícipes do processo: “(1) ainda que não tenham integrado o processo os órgãos constitucionais estão obrigados, na medida de suas responsabilidades e atribuições, a tomar as necessárias providências para o desfazimento do estado de ilegitimidade; (2) assim, declarada a inconstitucionalidade de uma lei estadual, ficam os órgãos constitucionais de outros Estados, nos quais vigem leis de teor idêntico, obrigados a revogar ou a modificar os referidos textos legislativos343; (3) também os órgãos não partícipes do processo ficam obrigados a observar, nos limites de suas atribuições, a decisão proferida, sendo-lhes vedado adotar conduta ou praticar ato de teor semelhante àquele declarado inconstitucional pelo Bundesverfassungericht (proibição de reiteração em sentido lato: Wiederholungsverbot im weiteren Sinne oder Nachahmungsverbot)344. A Lei do Tribunal Constitucional alemão autoriza o Tribunal, no processo de recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde), a incorporar a 345 proibição de reiteração da medida considerada inconstitucional na parte dispositiva da decisão (§ 95, I, 2)” .
337
Klaus Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraft, in BVerfG und GG, cit., v. 1, p. 568 (589). Klaus Vogel, Rechtskraft und Gesetzeskraft, in BVerfG und GG, cit., v.1, p. 568 (599). 339 Martin Kriele, Theorie der Rechtsgewinnung, 2. ed., Berlin, 1976, p. 291, 312 e 313. 340 Otto Bachof, Die Prüfungs und Verwerfungskompetenz der Verwaltung gegenüber dem verfassungswidrigen und bundesrechtswidrigen Gesetz. AöR 87 (1962), p. 25. 341 Cf. Brun-Otto Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 420. 342 Brun-Otto Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 420. 343 Cf. BVerfGE 40, 88; ver, também, Maunz, in Maunz et al., BverfGG, cit., § 31, I, n. 25. 344 Cf. Christian Pestalozza, Verfassungsprozessrecht, cit., p. 323. 345 O Bundesverfassungsgericht pode estabelecer também que qualquer repetição da providência questionada configura lesão à Lei Fundamental (... Das Bundesverfassungsgericht kann zugleich aussprechen, dass auch jede Wiederholung der beanstandeten Massnahme das Grundgesetz verletzt). 338
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 1.5.6.2. Limites subjetivos A primeira questão relevante no que concerne à dimensão subjetiva do efeito vinculante refere-se à possibilidade de a decisão proferida vincular ou não o próprio Supremo Tribunal Federal. Embora a Lei orgânica do Tribunal Constitucional alemão não seja explícita a propósito, entende a Corte Constitucional ser inadmissível construir-se aqui uma autovinculação. Essa orientação conta com aplauso de parcela significativa da doutrina, pois, além de contribuir para o congelamento do direito constitucional, tal solução obrigaria o Tribunal a sustentar teses que considerasse errôneas ou já superadas346. A fórmula adotada pela Emenda n. 3, de 1993, parece excluir também o Supremo Tribunal Federal do âmbito de aplicação do efeito vinculante. A expressa referência ao efeito vinculante em relação “aos demais órgãos do Poder Judiciário” legitima esse entendimento. De um ponto de vista estritamente material também é de se excluir uma autovinculação do Supremo Tribunal aos fundamentos determinantes de uma decisão anterior, pois isso poderia significar uma renúncia ao próprio desenvolvimento da Constituição, afazer imanente aos órgãos de jurisdição constitucional Todavia, parece importante, tal como assinalado por Bryde, que o Tribunal não se limite a mudar uma orientação eventualmente fixada, mas que o faça com base em crítica fundada do entendimento anterior que explicite e justifique a mudança347. Ao contrário do estabelecido na proposta original, que se referia à vinculação dos órgãos e agentes públicos o efeito vinculante consagrado na Emenda n. 3, de 1993, ficou reduzido, no plano subjetivo, aos órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo. Proferida a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei objeto da ação declaratória, ficam os Tribunais e órgãos do Poder Executivo obrigados a guardar-lhe plena obediência. Tal como acentuado, o caráter transcendente do efeito vinculante impõe que sejam considerados não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão, mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, a proposição de que determinado tipo de situação, conduta ou regulação — e não apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional — é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado348. É certo, pois, que a não-observância da decisão caracteriza grave violação de dever funcional, seja por parte das autoridades administrativas, seja por parte do magistrado (cf., também, CPC, art. 133, I). Em relação aos órgãos do Poder Judiciário, convém observar que eventual desrespeito à decisão do Supremo Tribunal Federal legitima a propositura de reclamação, pois estará caracterizada, nesse caso, inequívoca lesão à autoridade de seu julgado (CF, art. 102, I, l). Assim, se havia dúvida sobre o cabimento da reclamação no processo de controle abstrato de normas349, a Emenda Constitucional n. 3 encarregou-se de espancá-la, pelo menos no que respeita às decisões proferidas na ação declaratória de constitucionalidade.
346
Cf., a propósito, Brun-Otto Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 426; Maunz, in Maunz et al., cit., § 31, I, n. 20. 347 Brun-Otto Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 426. 348 Cf., a propósito, Brun-Otto Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 428. 349 Cf., sobre o assunto, Reclamação n. 397, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 21 maio 1993.
349
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1.5.6.3.
Efeito vinculante inconstitucionalidade
de
decisão
proferida
em
ação
direta
de
Questão interessante diz respeito à possível extensão do efeito vinculante à decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade. Aceita a idéia de que a ação declaratória configura uma ADIn com sinal trocado, tendo ambas caráter dúplice ou ambivalente, afigura-se difícil não admitir que a decisão proferida em sede de ação direta de inconstitucionalidade tenha efeitos ou conseqüências diversos daqueles reconhecidos para a ação declaratória de constitucionalidade. Argumenta-se que, ao criar a ação declaratória de constitucionalidade de lei federal, estabeleceu o constituinte que a decisão definitiva de mérito nela proferida — incluída aqui, pois, aquela que, julgando improcedente a ação, proclamar a inconstitucionalidade da norma questionada — “produzirá eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo”350. Portanto, afigura-se correta a posição de vozes autorizadas do Supremo Tribunal Federal, como a de Sepúlveda Pertence, segundo o qual, “quando cabível em tese a ação declaratória de constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá de ser atribuída à decisão definitiva da ação direta de inconstitucionalidade”351. Nos termos dessa orientação, a decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo federal haveria de ser dotada de efeito vinculante, tal como ocorre com aquela proferida na ação declaratória de constitucionalidade. Observe-se, ademais, que, se entendermos que o efeito vinculante da decisão está intimamente vinculado à própria natureza da jurisdição constitucional em dado Estado democrático e à função de guardião da Constituição desempenhada pelo Tribunal, temos de admitir, igualmente, que o legislador ordinário não está impedido de atribuir essa proteção processual especial a outras decisões de controvérsias constitucionais proferidas pela Corte. Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais. De certa forma, esse foi o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal na ADEC 4, ao reconhecer efeito vinculante à decisão proferida em sede de cautelar, a despeito do silêncio do texto constitucional. Na sessão de 07.11.2002, o STF pacificou a discussão sobre a legitimidade da norma contida no parágrafo único do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9868/99, que reconhecia efeito vinculante às decisões de mérito proferidas em sede de ADIN. A alegação era a de que a Constituição somente previra o efeito vinculante para a ADC (CF, art. 102, III, § 2º). O Tribunal entendeu, porém, que, "todos aqueles que forem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF, no julgamento do mérito proferido em ação direta de inconstitucionalidade, sejam considerados como parte legítima para a propositura de reclamação".352 A posição do Tribunal sobre o tema está bem sintetizada na seguinte passagem do voto do Ministro Maurício Corrêa, Relator da Recl. 1.987:
350
Art. 102, § 2º da Constituição Federal de 1988. Reclamação n. 167, despacho, RDA, 206:246 (247). 352 Cf. Informativo STF nº 289/2002, 4 a 8/11/2002 (AgR/QO na Rcl n. 1880/SP, Rel. Maurício Corrêa). 351
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
“ [...] Não há dúvida, portanto, de que o Tribunal, no julgamento de mérito da ADI 1662-SP, decidiu que a superveniência da EC 30/00 não trouxe qualquer alteração à disciplina dos seqüestros no âmbito dos precatórios trabalhistas, reiterando a cautelar que o saque forçado de verbas públicas somente está autorizado pela Constituição Federal no caso de preterição do direito de precedência do credor, sendo inadmissíveis quaisquer outras modalidades. Se assim é, qualquer ato, administrativo ou judicial, que determine o seqüestro de verbas públicas, em desacordo com a única hipótese prevista no artigo 100 da Constituição, revela-se contrário ao julgado e desafia a autoridade da decisão de mérito tomada na ação direta em referência, sendo passível, pois, de ser impugnado pela via da reclamação. Não vejo como possa o Tribunal afastar-se dessa premissa. No caso, a medida foi proposta por parte legítima e o ato impugnado afronta o que decidido de forma definitiva pela Corte,razão pela qual deve ser conhecida e provida, sob pena de incentivo ao descumprimento sistemático das decisões da mais alta Corte do País, em especial essas que detêm eficácia vinculante, o que é inaceitável. Oportuna a lição da doutrina de José Frederico Marques: “O Supremo Tribunal, sob pena de se comprometerem as elevadas funções que a Constituição lhe conferiu, não pode ter seus julgados desobedecidos (por meios diretos ou oblíquos), ou vulnerada sua competência. Trata-se (...) de medida de Direito Processual Constitucional, porquanto tem como causa finalis assegurar os poderes e prerrogativas que o Supremo Tribunal foram dados pela Constituição da República.” (apud Celso de Mello, RCLQO 1.723-CE, DJ de 06/04/01 – grifei) Como visto, revela-se de fundamental importância o resguardo à eficiência das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, sendo inadmissível a desobediência perpetrada contra a exegese constitucional consagrada em seus julgados, mesmo naquelas hipóteses em que a violação ocorre de forma oblíqua. No presente caso, a autoridade reclamada, pretendendo afastar-se da regra suspensa, procurou em outra norma jurídica o fundamento para o ato, embora a circunstância fática fosse exatamente a mesma rejeitada pela Corte. A ordem impugnada contrariou, em substância, o entendimento por ela assentado no julgamento do pedido liminar e, de forma direta e literal, o que expressamente fixado quando da apreciação do mérito. (...) A questão fundamental é que o ato impugnado não apenas contrastou a decisão definitiva proferida na ADI 1662, como, essencialmente, está em confronto com seus motivos determinantes. A propósito, reporto-me à recente decisão do Ministro Gilmar Mendes (RCL 2126, DJ de 19/08/02), sendo relevante a consideração de importante corrente doutrinária, segunda a qual a ‘eficácia da decisão do Tribunal transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados da parte dispositiva e dos fundamentos determinantes sobre a interpretação da Constituição devem ser observados por todos os Tribunais e autoridades nos casos futuros’, exegese que fortalece a
351
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes contribuição do Tribunal para preservação e desenvolvimento da ordem constitucional.” 353
Nesses termos, resta evidente que o efeito vinculante da decisão não está restrito à parte dispositiva, mas abrange também os próprios fundamentos determinantes. Como se vê, com o efeito vinculante pretendeu-se conferir eficácia adicional à decisão do STF, outorgando-lhe amplitude transcendente ao caso concreto. Os órgãos estatais abrangidos pelo efeito vinculante devem observar, pois, não apenas o conteúdo da parte dispositiva da decisão, mas a norma abstrata que dela se extrai, isto é, que determinado tipo de situação, conduta ou regulação – e não apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional – é constitucional ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado. Cabe ressaltar ainda a decisão na Recl. n. 1880 (AgRg e QO), da relatoria de Maurício Corrêa, que decidiu que todos aqueles que fossem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pelo STF no julgamento de mérito proferido em ação direta de inconstitucionalidade seriam considerados partes legítimas para a propositura de reclamação e declarou a constitucionalidade do parágrafo único do art. 28 da Lei n. 9.868/99.48 Com a positivação dos institutos da eficácia erga omnes e do efeito vinculante das decisões proferidas pelo STF na ação declaratória de constitucionalidade e na ação direta de inconstitucionalidade deu-se um passo significativo no rumo da modernização e racionalização da atividade da jurisdição constitucional entre nós.
1.5.6.4. A eficácia erga omnes e efeito vinculante das decisões deferitórias de cautelar em Adin e ADC Consagrando o texto constitucional a possibilidade de concessão de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 102, I, “p”), parece que também essa decisão há de ser dotada de eficácia geral. E que se cuida de suspender a vigência de uma norma até o pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal. Como uma conseqüência direta da natureza objetiva do processo, a decisão concessiva de liminar em sede de ação direta de inconstitucionalidade produz eficácia com relação a todos. Por isso, também se afigura imprescindível que se confira a devida publicidade à decisão concessiva da liminar. Daí ter a Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, estabelecido que a parte dispositiva da decisão cautelar, dotada de eficácia contra todos, haveria de ser publicada no Diário Oficial da União e no Diário da Justiça no prazo de dez dias (art. 11, caput). Se não subsiste dúvida relativamente à eficácia erga omnes da decisão proferida em sede de cautelar na ação direta de inconstitucionalidade, é licito indagar se essa decisão seria, igualmente, dotada de efeito vinculante. Essa indagação tem relevância especialmente porque da qualidade especial do efeito vinculante decorre, no nosso sistema de controle direto, a possibilidade de propositura de reclamação. Aceita a idéia de que a ação declaratória configura uma ADI com sinal trocado, tendo ambas caráter dúplice ou ambivalente, afigura-se difícil admitir que a decisão proferida em
353
Recl. 1.987, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 21.05.2004.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes sede de ação direta de inconstitucionalidade seria dotada de efeitos ou conseqüências diversos daqueles reconhecidos para a ação declaratória de constitucionalidade. Argumenta-se que, ao criar a ação declaratória de constitucionalidade de lei federal, estabeleceu o constituinte que a decisão definitiva de mérito nela proferida — incluída aqui, pois, aquela que, julgando improcedente a ação, proclamar a inconstitucionalidade da norma questionada — “produzirá eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo” (Art. 102, § 2º da Constituição Federal de 1988). Portanto, sempre se me afigurou correta a posição de vozes autorizadas do Supremo Tribunal Federal, como a de Sepúlveda Pertence, segundo a qual, “quando cabível em tese a ação declaratória de constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá de ser atribuída à decisão definitiva da ação direta de inconstitucionalidade”.354 Nos termos dessa orientação, a decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade contra lei ou ato normativo federal haveria de ser dotada de efeito vinculante, tal como ocorre com aquela proferida na ação declaratória de constitucionalidade. Daí ter o Supremo Tribunal Federal reconhecido, no AgR/QO na Rcl nº 1.880/SP, sessão de 7.11.2002, rel. Ministro Maurício Corrêa, a constitucionalidade do art. 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868, de 1999, que atribui efeito vinculante às decisões de mérito proferidas em ação direta de inconstitucionalidade. Se entendermos que o efeito vinculante da decisão está intimamente vinculado à própria natureza da jurisdição constitucional em um dado Estado democrático e à função de guardião da Constituição desempenhada pelo Tribunal, temos de admitir, igualmente, que o legislador ordinário e o próprio Supremo Tribunal Federal não estão impedidos de reconhecer essa proteção processual especial a outras decisões de controvérsias constitucionais proferidas pela Corte. Assinale-se, nessa mesma linha, que o STF não estará exorbitando de suas funções ao reconhecer efeito vinculante a decisões paradigmáticas por ele proferidas na guarda e na defesa da Constituição. Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais. Em outra oportunidade, já havia sustentado que, independentemente da positivação do instituto no direito ordinário, o argumento decisivo em favor da adoção da cautelar em ação declaratória advinha da própria especificidade do instituto, destinado a solver controvérsias constitucionais de grande magnitude entre os diversos órgãos judiciários, administrativos e políticos. Entendi, então, que da própria competência que se outorga ao Supremo Tribunal Federal para decidir, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a ação declaratória de constitucionalidade, tendo em vista a necessidade de definição de uma controvérsia constitucional, decorre a atribuição para conceder cautelar que, pelo menos, suspenda o julgamento dos processos ou seus efeitos até a prolação de sua decisão definitiva.355 Na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 4, rel. Min. Sydney Sanches, D.J. de 21.5.1999, o Supremo Tribunal acabou por adotar, nas suas linhas básicas, a argumentação acima expendida, consagrando o cabimento da medida cautelar em sede de ação declaratória, para que os juízes e os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação do ato normativo impugnado. Entendeu-se admissível que o Tribunal passasse a exercer, em sede de ação declaratória de constitucionalidade, o poder cautelar que lhe é inerente, “enfatizando-se que a prática da jurisdição cautelar acha-se essencialmente vocacionada a conferir tutela efetiva e 354
Reclamação no 167, despacho, RDA 206, p. 246 (247). 355 Cf. Mendes, Gilmar Ferreira. Repertório de Jurisprudência IOB, 2a. quinzena de outubro de 1997 - nq 20/97 - Caderno I - p. 504/501).
353
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes garantia plena ao resultado que deverá emanar da decisão final a ser proferida naquele processo objetivo de controle abstrato”. É que, como bem observado por Celso de Mello, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao deferir o pedido de medida cautelar na ADC 4-DF, expressamente atribuiu, à sua decisão, eficácia vinculante e subordinante, com todas as conseqüências jurídicas daí decorrentes. O Supremo Tribunal Federal, ao conceder o provimento cautelar requerido na ADC nº 4-DF, proferiu, por maioria de nove votos a dois, a seguinte decisão: “O Tribunal, por votação majoritária, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar, para suspender, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494, de 10/9/97, sustando, ainda, com a mesma eficácia, os efeitos futuros dessas decisões antecipatórias de tutela já proferidas contra a Fazenda Pública, vencidos, em parte, o Ministro Néri da Silveira, que deferia a medida cautelar em menor extensão, e, integralmente, os Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio, que a indeferiam.”356 Na interpretação de Celso de Mello, a decisão proferida pela Suprema Corte teria o seguinte conteúdo: “(a) incide, unicamente, sobre pedidos de tutela antecipada, formulados contra a Fazenda Pública, que tenham por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494/97; (b) inibe a prolação, por qualquer juiz ou Tribunal, de ato decisório sobre o pedido de antecipação de tutela, que, deduzido contra a Fazenda Pública, tenha por pressuposto a questão específica da constitucionalidade, ou não, da norma inscrita no art. 1º da Lei nº 9.494/97; (c) não se aplica retroativamente aos efeitos já consumados (como os pagamentos já efetuados) decorrentes de decisões antecipatórias de tutela anteriormente proferidas; (d) estende-se às antecipações de tutela, ainda não executadas, qualquer que tenha sido o momento da prolação do respectivo ato decisório; (e) suspende a execução dos efeitos futuros, relativos a prestações pecuniárias de trato sucessivo, emergentes de decisões antecipatórias que precederam ao julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do pedido de medida cautelar formulado na ADC nº 4-DF.” 357 Portanto, entendeu o Tribunal que a decisão concessiva da cautelar afetava não apenas os pedidos de tutela antecipada ainda não decididos, mas todo e qualquer efeito futuro da decisão proferida nesse tipo de procedimento. Em outros termos, o Poder Público Federal ficava desobrigado de observar as decisões judiciais concessivas de tutela fundadas na eventual inconstitucionalidade da Lei nº 9.494, de 1997, a partir da data da decisão concessiva da cautelar em ação declaratória, independentemente de a decisão judicial singular ter sido proferida em período anterior. E, mais, que, em caso de não-observância por parte dos órgãos jurisdicionais ordinários, o remédio adequado haveria de ser a reclamação.
356 357
ADC no. 4, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 21.05.1999. Pet 1404, DJ de 12.03.1998, p. 13.
354
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes No quadro de evolução da nossa jurisdição constitucional, parece difícil aceitar o efeito vinculante em relação à cautelar na ação declaratória de constitucionalidade e deixar de admiti-lo em relação à liminar na ação direta de inconstitucionalidade. Na primeira hipótese, tal como resulta do art. 21 da Lei nº 9.868, de 1999, tem-se a suspensão do julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou ato normativo objeto da ação declaratória até seu término; na segunda, tem-se a suspensão de vigência da lei questionada na ação direta e, por isso, do julgamento de todos os processos que envolvam a aplicação da lei discutida. Assim, o sobrestamento dos processos, ou pelo menos das decisões ou julgamentos que envolvam a aplicação da lei que teve a sua vigência suspensa em sede de ação direta de inconstitucionalidade, haverá de ser uma das conseqüências inevitáveis da liminar em ação direta. Em outras palavras, a suspensão cautelar da norma afeta sua vigência provisória, o que impede que os tribunais, a administração e outros órgãos estatais apliquem a disposição que restou suspensa. Esse foi o entendimento firmado pelo STF no julgamento do RE nº 168.277: “EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO FUNDADO NO ART. 4º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI GAÚCHA Nº 9.117/90, CUJA EFICÁCIA FOI SUSPENSA PELO STF NA ADI Nº 656. Configuração de hipótese em que se impõe a suspensão do julgamento do recurso. Diretriz fixada na oportunidade, pelo Tribunal, no sentido de que deve ser suspenso o julgamento de qualquer processo que tenha por fundamento lei ou ato estadual cuja eficácia tenha sido suspensa, por deliberação da Corte, em sede de ação direta de inconstitucionalidade, até final julgamento desta. Questão de ordem acolhida.”358 Estando assente que a liminar deferida opera no plano da vigência da lei, podendo ter o condão até mesmo de restaurar provisoriamente a vigência de norma eventualmente revogada, não há como deixar de reconhecer que a aplicação da norma suspensa pelos órgãos ordinários da jurisdição implica afronta à decisão do STF. Em absoluta coerência com essa orientação mostra-se a decisão tomada também em Questão de Ordem, na qual se determinou a suspensão de todos os processos que envolvessem a aplicação de determinada vantagem a servidores do TRT da 15ª Região, tendo em vista a liminar concedida na ADI nº 1.244/SP, contra resolução daquela Corte que havia autorizado o pagamento do benefício. É o que foi afirmado pela Corte na ADI nº 1.244/SP (Questão de Ordem), rel. Néri da Silveira, D.J. de 28.5.99, de cujo voto se extrai: “Se é certo que, em princípio, não cabe reclamação por descumprimento de decisão do STF em ação direta de inconstitucionalidade, se o ato contrário ao julgado não provém de requerido na demanda de inconstitucionalidade, eis que a previsão judicial desta Corte concerne, tão-só, à validade, em abstrato, da lei ou ato normativo impugnado, compreendo, entretanto, que, no plano dos efeitos do decisum do STF, em medida judicial dessa natureza, quanto à regra em tese, cumpre conferir-lhe um mínimo de eficácia erga omnes, de referência a fatos jurídicos eventualmente nascidos por virtude de invocação da lei ou ato normativo, posteriormente à decisão 358
RE nº 168.277: /RS (Questão de Ordem), Plenário, rel. Min. Ilmar Galvão, D.J. de 29.5.1998.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes desta Corte, suspendendo-lhe, erga omnes, a vigência, até o julgamento final da ação. Refiro-me, em especial, a decisões judiciais prolatadas ostensivamente em conflito com o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, por provocação dos próprios destinatários da lei ou ato normativo com eficácia suspensa, erga omnes. Se o STF determina que fique suspensa certa norma e, por conseqüência imediata, o pagamento de vantagem nela prevista, por natural efeito de suspender a norma que o autorizaria, não é possível admitir que os destinatários da mesma norma suspensa, contornando a proibição deste Tribunal, por via oblíqua, em decisão cautelar ou em antecipação de tutela, possam usufruir, imediatamente, daquilo que o STF ordenou não lhes fosse entregue até o julgamento final da ação direta de inconstitucionalidade, por virtude, direta e imediata, da suspensão de vigência da norma que ampararia a outorga.” Nesse mesmo julgamento, consignou Sepúlveda Pertence: “Tenho sustentado que, necessariamente, o mesmo efeito vinculante há de ser dado à decisão tomada em ação direta de inconstitucionalidade, que é também uma ação dúplice, da qual, segundo a nossa doutrina, explicitada no artigo 173 do Regimento, tanto pode resultar a declaração de inconstitucionalidade quanto a declaração de constitucionalidade da lei. Disso continuo convencido, ao menos nos limites da ação declaratória de constitucionalidade, vale dizer, quando o objeto da argüição for lei ou ato normativo federal. Claro, tudo isso se diz das decisões definitivas, a meu ver, nas duas ações de controle abstrato da constitucionalidade de normas. Quid juris com relação à decisão cautelar? A decisão cautelar, lemos nos compêndios, destina-se a resguardar, a salvaguardar o efeito útil do processo contra o risco de sua própria demora. Não vejo outra solução, Sr. Presidente, admitido o efeito vinculante que terá a decisão de mérito, a não ser atribuir à decisão cautelar efeito suspensivo dos processos cuja decisão pende da aplicação, inaplicação ou declaração de inconstitucionalidade em concreto da lei que teve a sua eficácia suspensa por força de decisão cautelar do Supremo Tribunal Federal. Do contrário, a convivência, já difícil, dos dois sistemas de controle de constitucionalidade que praticamos conduzirá ao caos. Note-se: sequer para adotar decisão no sentido da decisão cautelar do Supremo, poderá ser julgada a ação proposta perante o juízo ordinário, porque da nossa decisão de mérito poderá resultar, afinal, em sentido contrário, a declaração de constitucionalidade da lei. Desse modo, a cautelar não compele o juiz a que julgue a causa como se a lei fosse inconstitucional, porque a lei ainda não está declarada inconstitucional. A única solução, assim, é a suspensão do andamento do feito ou, pelos menos, a suspensão da decisão que nele se tenha que tomar, num ou noutro sentido, até a decisão de mérito da ação direta no Supremo Tribunal Federal.”
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Na Rcl 1507, desenvolveu Sepúlveda Pertence a seguinte consideração: “[...] creio que é a primeira vez em que o Tribunal está a aplicar o efeito vinculante da decisão anterior, em ação direta de inconstitucionalidade, de modo a cassar decisão administrativa de um Governador de Estado. Assinalo-o apenas para marcar o evento. No mérito, não tenho dúvida. Trata-se de impugnação a uma lei que revogou as leis anteriores do sistema previdenciário do Estado do Rio de Janeiro por completo. Revogação de um sistema por outro. É manifesto que, em tal hipótese, não há cogitar-se, se se declaram inconstitucionais tópicos da lei nova, da repristinação de tópicos da lei antiga. A irmos assim nessa toada descoberta pelo Governo fluminense chegaríamos muito em breve à repristinação de textos das Ordenações Filipinas - quiçá, do seu Livro V - o dia em que se pretender ‘descriminalizar’ ou descriminar alguma conduta tipificada na lei penal de hoje, como nelas, igualmente, mais severamente incriminadas.” 359
Vê-se, pois, que a decisão concessiva de cautelar em ação direta de inconstitucionalidade há de ser também dotada de efeito vinculante. A concessão da liminar acarreta a necessidade de suspensão dos julgamentos que envolvam a aplicação ou a desaplicação da lei cuja vigência restou suspensa. 1.5.6.5. O efeito vinculante da decisão indeferitória da cautelar em ADIN? Com alguma freqüência apresenta-se ao Tribunal pedido de reclamação contra decisões tomadas pelas instâncias ordinárias que afirmam a inconstitucionalidade de uma ou outra lei federal ou estadual em face da Constituição Federal. Essas reclamações alegam que a competência pode estar sendo usurpada exatamente porque o Supremo Tribunal Federal indeferiu pedido de liminar formulado com objetivo de se suspender a norma impugnada em sede de ADIN. Outras vezes alegase que a matéria pende de apreciação no âmbito do controle abstrato de normas perante o Supremo Tribunal, cabendo a ele conferir orientação uniforme ao tema. Na primeira hipótese, alega-se que já no julgamento da liminar na ADIN, o Supremo, ainda que em um juízo preliminar, afastou a inconstitucionalidade da lei. Assim, não poderiam as instâncias ordinárias deliberar em sentido contrário. É o caso da Reclamação 2.121, da relatoria de Nelson Jobim. O art. 1º da Lei 227/92, alterado pela Lei 464/93 dispõs:
“Art.1º- Ficam isentas de Imposto Territorial Urbano, e das taxas e tarifas pelo fornecimento de água e energia elétrica, as entidades assistenciais e beneficentes, declaradas de utilidade pública do Distrito Federal.”
Em 1998 foi editada a Lei 2.010, que, no parágrafo único do art. 1º, estabelece:
359
Questão de Ordem na Rcl nº 1.507/RJ, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 01.03.2002.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes “Art.1º- Fica reconhecida como entidade de utilidade pública do Distrito Federal a Fundação Universidade de Brasília - FUB, instituição educacional de nível superior. Parágrafo único - Fica aplicado à Fundação Universidade de Brasília, FUB - o disposto no artigo 1º da Lei nº227, de 9 de janeiro de 1992, alterada pela Lei nº464, de 22 de julho de 1993.”
Em 21 de setembro de 1994, o STF, na ADIn 1.104, proferiu a seguinte decisão em sede de cautelar: “Ação direta de inconstitucionalidade. Medida cautelar. Lei nº 464, de 22/6/1993, do Distrito Federal, art. 1º. Norma que isentou das taxas e tarifas pelo fornecimento de água e energia elétrica as entidades assistenciais e beneficentes, declaradas de utilidade pública, atuando no Distrito Federal. 2. Alegação de ofensa aos arts. 21, XII, ‘b’, e 22, IV, ambos da Constituição Federal. 3. Não se trata, na espécie, de lei distrital sobre água e energia elétrica, mas, apenas, no dispositivo atacado, se dispõe acerca de isenção de retribuição pelos serviços de água e energia elétrica. 4. Medida cautelar indeferida, por não presentes os pressupostos à concessão“.
No plano da jurisdição ordinária, a Associação das Pioneiras Sociais impetrou mandado de segurança contra o Juiz da 4ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal. A Companhia Energética de Brasília - CEB - figurou como litisconsorte passiva. Em 13 de março de 1996, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu, em argüição de inconstitucionalidade no Mandado de Segurança nº 4.448/95: “ARGÜIÇÃO DE INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI. ARTIGOS 206 A 209 DO REGIMENTO INTERNO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. LEI DISTRITAL Nº464/93. ISENÇÃO POR LEI LOCAL DE PAGAMENTO DE TARIFA DE ENERGIA ELÉTRICA. SUSCITAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE ACOLHIDA. I - O incidente de Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público pode ser suscitado pela parte, como via de defesa, até a sustentação oral, inclusive sendo lícito ao órgão fracionário suscitá-lo ‘ex officio’, desde que em momento anterior à proclamação do acórdão. (Precedentes do E. Superior de Justiça). II - Não pode o Poder Público local estabelecer isenção pagamento de tarifas ou preço público para entidades assistenciais e beneficentes, pois a União é o ente político de direito público competente para discriminar isenções, sob pena de usurpação e invasão de sua competência. III - À União compete, com exclusividade, dispor, disciplinar e legislar sobre a política tarifária, e energia elétrica. IV - Afronta aos artigos 22, inciso IV e 175, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal reconhecida. Remessa ao órgão especial do
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Tribunal para análise do acórdão e prolação da inconstitucionalidade (artigo 97 da Constituição Federal).
declaração
de
A CEB propôs ação de cobrança contra a Fundação Universidade de Brasília - FUB exigindo o pagamento de importâncias relativas à prestação de serviço de energia elétrica. A reclamante ajuizou ação declaratória de isenção tributária e ação cautelar inominada contra a CEB. O Juiz da 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal julgou improcedentes as ações da reclamante e procedente a da CEB. Daí a reclamação contra a referida da instância monocrática, sob a alegação de ofensa a julgado do STF. Jobim deferiu liminar, em 11. 09. 2002, pleiteada com base nos seguintes fundamentos: “Na espécie, afigura-se inequívoco que o Supremo Tribunal Federal indeferiu a liminar pelos fundamentos resumidos na ementa do acórdão:“Ação direta de inconstitucionalidade. Medida cautelar. Lei nº 464, de 22/6/1993, do Distrito Federal, art. 1º. Norma que isentou das taxas e tarifas pelo fornecimento de água e energia elétrica as entidades assistenciais e beneficentes, declaradas de utilidade pública, atuando no Distrito Federal. 2. Alegação de ofensa aos arts. 21, XII, “b”, e 22, IV, ambos da Constituição Federal. 3. Não se trata, na espécie, de lei distrital sobre água e energia elétrica, mas, apenas, no dispositivo atacado, se dispõe acerca de isenção de retribuição pelos serviços de água e energia elétrica. 4. Medida cautelar indeferida, por não presentes os pressupostos à concessão”.Como se pode depreender, não se trata de uma simples decisão de indeferimento, por ausência dos pressupostos processuais formais. Na espécie, resta evidente que, pelo menos num juízo severo de exame liminar, o Tribunal afastou a ilegitimidade da Lei em questão.Observe-se, outrossim, que o Tribunal tem entendido que, em caso de propositura semelhante de ADIN perante o STF e perante o TJ contra Lei estadual, há de se suspender o processo no âmbito da Justiça Estadual até a deliberação definitiva desta Corte.Há precedentes.“Rejeição das preliminares de litispendência e de continência, porquanto, quando tramitam paralelamente duas ações diretas de inconstitucionalidade, uma no Tribunal de Justiça local e outra no Supremo Tribunal Federal, contra a mesma lei estadual impugnada em face de princípios constitucionais estaduais que são reprodução de princípios da Constituição Federal, suspende-se o curso da ação direta proposta perante o Tribunal estadual até o julgamento final da ação direta proposta perante o Supremo Tribunal Federal, conforme sustentou o relator da presente ação direta de inconstitucionalidade em voto que proferiu, em pedido de vista, na Reclamação 425.”( ADIMC 1423, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 22.11.96). Ainda,“Julgado o pedido de medida liminar em ação direta ajuizada pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil - ATRICON contra o § 3º do art. 47 da Lei 12.509/95, do Estado do Ceará, acrescentado por força do art. 2ºda Lei 13.037/2000, do mesmo Estado, que retira, do controle do Tribunal de Contas Estadual, o conteúdo de pesquisas e consultorias solicitadas pela Administração para direcionamento de suas ações, bem como de documentos relevantes, cuja
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes divulgação possa importar em danos para o Estado. Preliminarmente, o Tribunal rejeitou o alegado prejuízo da ADIN pelo ajuizamento concomitante de representação de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará - contra a mesma norma em face de preceito da Constituição Estadual que reproduziu dispositivo da Constituição Federal, - e determinou a suspensão da representação perante o Tribunal de Justiça até o julgamento da ADIn pelo STF. Precedente citado: RCL (AGRG) 425-RJ (DJU de 22.10.93). ADInMC 2.361, rel. Min. Maurício Corrêa, 11.10.2001. (ADI-2361).” (Informativo 245).E mais: ADIMC 824, FRANCISCO REZEK;ADI 2146, SEPÚLVEDA PERTENCE.O próprio caráter dúplice ou ambivalente sugere cuidado na compreensão da decisão que indefere a liminar afirmando, ‘in genere’, a possível legitimidade da lei.O Tribunal ao negar a liminar na ADI 1.104, a ‘contrario sensu’, presume-se declarar a constitucionalidade da Lei 464/93.A lei distrital continua vigente para reconhecer a isenção da Fundação Universidade de Brasília.Estão presentes os requisitos da liminar.Defiro-a.Suspendo a eficácia das decisões proferidas pelo Juiz da 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal e de todo e qualquer ato dela resultante (Ação Ordinária nº 2000.34.00.021446-3; Ação Cautelar Inominada nº 1999.34.00.033578-7 e da Ação Ordinária nº 1999.34.00.036446-5).É de manter-se a plena eficácia da Lei 464, de 22.06.93, até a decisão de mérito na ADI 1104, que tramita neste Tribunal.”360
A questão posta na referida reclamação mostra uma nova faceta da relação entre os dois sistemas de controle de constitucionalidade, agora no que concerne a decisão do Supremo Tribunal Federal que indefere o pedido de cautelar em ADIN. Como acentuado na decisão da relatoria de Jobim, há casos em que, ao indeferir a cautelar, o Tribunal enfatiza ou quase a não-plausibilidade da impugnação. Em outras hipóteses, o indeferimento assenta-se em razões formais, como o tempo decorrido da edição da lei ou não-configuração de urgência. Na primeira hipótese, não se afigura impossível justificar a reclamação sob o argumento de violação da autoridade da decisão do Supremo Tribunal. Na segunda, o argumento é mais tênue, uma vez que sequer houve uma manifestação substancial do Tribunal sobre o assunto. É verdade, porém, que em ambas as situações podem ocorrer conflitos negativos para a segurança jurídica, com pronunciamentos contraditórios por parte de instâncias judiciais diversas. Assim, talvez se pudesse cogitar, em semelhantes casos (indeferimento de liminar na ADIn com possibilidade de repercussão nas instâncias ordinárias) , de se adotar fórmula semelhante à prevista no art. 21 da Lei 9868/99, para a ação declaratória de constitucionalidade: determina-se a suspensão dos julgamentos que envolvam a aplicação da lei até a decisão final do Supremo Tribunal sobre a controvérsia constitucional. A vantagem técnica dessa fórmula é a de que ela alcança resultado semelhante, no que concerne à segurança jurídica, sem afirmar, a priori, o efeito vinculante da decisão provisória adotada pelo Tribunal em sede de cautelar.
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Rcl 2121, Rel. Min. Eros Grau, decisão de 17.09. 2002, julgamento ainda não concluído.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes 1.6 ABERTURA PROCEDIMENTAL (ART. 29 — ART. 482 DO CPC) Capítulo V DAS DISPOSIÇÕES GERAIS E FINAIS
Art. 29. O art. 482 do Código de Processo Civil fica acrescido dos seguintes parágrafos: “Art. 482. .......................................................................... § 1º O Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, se assim o requererem, poderão manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade, observados os prazos e condições fixados no Regimento Interno do Tribunal. § 2º Os titulares do direito de propositura referidos no art. 103 da Constituição poderão manifestar-se, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação pelo órgão especial ou pelo Pleno do Tribunal, no prazo fixado em Regimento, sendo-lhes assegurado o direito de apresentar memoriais ou de pedir a juntada de documentos. § 3º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades”. 1.6.1. Considerações gerais A Lei n. 9.868 alterou o art. 482 do Código de Processo Civil, para admitir que o Ministério Público, as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado e os titulares do direito de propositura, referidos no art. 103 da Constituição, exerçam direito de manifestação no incidente de inconstitucionalidade, assegurando-se-lhes o direito de apresentar memoriais ou de pedir a juntada de documentos. Ademais, o § 3º do art. 482, acrecentado pela Lei n. 9.868, determina que, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades. Tais providências conferem um caráter pluralista também ao processo incidental de controle de constitucionalidade, permitindo que o Tribunal decida com pleno conhecimento dos diversos aspectos envolvidos na questão. A possibilidade de manifestação de outros órgãos ou entidades representativas prevê a figura do amicus curiae no processo de controle de constitucionalidade, similarmente ao já disposto em outras passagens da Lei n. 9.868. Assente-se que o Plenário somente pode pronunciar-se sobre o que, efetivamente, foi acolhido pelo órgão fracionário, sendo-lhe defeso emitir juízo sobre a parte julgada inadmissível ou rejeitada pela Turma ou Câmara. A argüição de inconstitucionalidade será acolhida se lograr reunir a maioria absoluta dos votos, pelo menos em relação a um dos vários fundamentos. Do contrário, independentemente do resultado da votação, as conseqüências são as mesmas361. A decisão do Plenário, que é irrecorrível362, vincula o órgão fracionário, no caso concreto, incorporando-se ao “julgamento do recurso ou da causa, como premissa inafastável”363. Publicado o acórdão, reinicia-se o julgamento da questão concreta perante o órgão fracionário. Acentue-se que a aplicação do art. 97 da Constituição de 1988 obriga a que se proceda à juntada do acórdão proferido no Pleno ou no órgão especial sobre a inconstitucionalidade da lei, sob 361
José Carlos Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1973, v. 5, p. 53. 362 Súmula 513 do STF; cf., também, Súmula 293. 363 Moreira, Comentários, cit., p. 54.
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pena de, no caso de interposição de recurso extraordinário, entender o Supremo Tribunal Federal que não pode conhecer do apelo extremo, por ausência de peça essencial para o julgamento definitivo. É o que se lê, v. g., no AgRgRE 158.540, da relatoria de Celso de Mello, no qual se acentua que “a ausência do acórdão plenário que reconheceu a ilegitimidade constitucional de atos normativos emanados do Poder Público impede — ante a essencialidade de que se reveste essa peça processual — que o Supremo Tribunal Federal aprecie, de modo adequado, a controvérsia jurídica suscitada”364. A jurisprudência do Tribunal enfatiza não ser suficiente a transcrição do decidido pelo órgão especial ou pelo Plenário ou a juntada do voto condutor, porquanto “é no acórdão do Plenário que se há de buscar a motivação da decisão recorrida, com respeito à argüição de inconstitucionalidade”365. Ao contrário, se se trata de declaração incidente de constitucionalidade — e não de inconstitucionalidade —, “o acórdão do Plenário que, decidindo incidente suscitado em outro processo, já houver resolvido no mesmo sentido, a prejudicial de inconstitucionalidade é mero precedente de jurisprudência, que não integra, formalmente, porém, a decisão da Câmara ou da Turma”366. É que a competência para decidir pela constitucionalidade de lei é da turma367. Outro ponto digno de nota, no que se refere à interpretação do art. 97 da Constituição, tem por base a necessidade ou não de se provocar o Plenário ou o órgão especial do Tribunal toda vez que se renovar, em outro caso, a discussão sobre a constitucionalidade de uma lei que já teve a sua legitimidade discutida no âmbito do Tribunal. O Supremo Tribunal Federal tem entendido que, fixada a orientação do Pleno ou do órgão especial, nos termos do art. 97 da Constituição, em um caso qualquer, poderá o órgão fracionário decidir como de direito, devendo guardar observância da decisão sobre a questão constitucional368. Em outros termos, um novo procedimento na forma do art. 97 da Constituição somente seria necessário no caso de uma mudança de orientação por parte do próprio Tribunal. Questão interessante agitada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal diz respeito à necessidade de se utilizar o procedimento previsto no art. 97 da Constituição, na hipótese de existir pronunciamento da Suprema Corte que afirme a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo. Em acórdão proferido no RE 190.728, teve a 1a Turma do Supremo Tribunal Federal a oportunidade de, por maioria de votos, vencido Celso de Mello369, afirmar a dispensabilidade de se 364
AgRgRE 158.540-4, Rel. Min. Celso de Mello, DJ, 23 maio 1997, p. 21375. AgRgRE 164.569, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ, fev. 1994, p. 923. 366 AgRgRE 149.478, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ, 23 abr. 1993, p. 6926. 367 AgRgRE 161.475, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ, 11 fev. 1994, p. 1496. 368 RE 190.728, Rel. p/ acórdão Min. Ilmar Galvão, DJ, 30 maio 1997. 369 O voto do Ministro Celso de Mello enfatiza os seguintes aspectos: “O sistema de fiscalização incidental de constitucionalidade acha-se regido, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pelos arts. 176/177 e 101 de seu Regimento Interno, que foram recebidos, nesse ponto, pelo novo ordenamento constitucional, com força normativa de lei. Tratando-se, no entanto, dos demais tribunais judiciários, o controle de constitucionalidade pelo sistema difuso está disciplinado pelos arts. 480 a 482 do Código de Processo Civil, em normas que, ao contrário do que prescreve o art. 101 do RISTF, não atribuem à decisão emanada do Plenário caráter vinculante fora do âmbito daquele específico processo em que foi suscitada, concretamente, a argüição incidental. Daí, a observação feita por José Carlos Barbosa Moreira que, ao tratar do tema pertinente à eficácia da decisão plenária proferida no julgamento da questão prejudicial de inconstitucionalidade, esclarece, com inteira propriedade, que: ‘A decisão do plenário (ou do órgão especial), num sentido ou noutro, é naturalmente vinculativa para o órgão fracionário, no caso concreto. Mais exatamente, a solução dada à prejudicial incorpora-se no julgamento do recurso ou da causa, como premissa inafastável. Nenhuma regra legal existe, porém, que a torne obrigatória ad futurum. Se a inconstitucionalidade foi 365
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encaminhar o tema constitucional ao Plenário do Tribunal, desde que o Supremo Tribunal já se tenha pronunciado sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei questionada. É o que se pode depreender do voto proferido por Ilmar Galvão, designado relator para o acórdão, verbis: “Esta nova e salutar rotina que, aos poucos vai tomando corpo — de par com aquela anteriormente assinalada, fundamentada na esteira da orientação consagrada no art. 101 do RI/STF, onde está prescrito que ‘a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, pronunciada por maioria qualificada, aplica-se aos novos feitos submetidos às Turmas ou ao Plenário’ — além de, por igual, não merecer a censura de ser afrontosa ao princípio insculpido no art. 97, da CF, está em perfeita consonância não apenas com o princípio da economia processual, mas também com o da segurança jurídica, merecendo, por isso, todo encômio, como procedimento que vem ao encontro da tão desejada racionalização orgânica da instituição judiciária brasileira. Tudo, portanto, está a indicar que se está diante de norma que não deve ser aplicada com rigor literal, mas, ao revés, tendo-se em mira a finalidade objetivada, o que permite a elasticidade do seu ajustamento às variações da realidade circunstancial”370.
Na ocasião, acentuou-se que referido entendimento fora igualmente adotado pela 2ª Turma, como consta da ementa do acórdão proferido no AgRgAI 168.149, da relatoria de Marco Aurélio: “Versando a controvérsia sobre o ato normativo já declarado inconstitucional pelo guardião maior da Carta Política da República — o Supremo Tribunal Federal — descabe o deslocamento previsto no artigo 97 do referido Diploma maior. O julgamento de plano pelo órgão fracionado homenageia não só a racionalidade, como também implica interpretação teleológica do artigo 97 em comento, evitando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade. A razão de ser do preceito está na necessidade de evitar-se que órgãos fracionados apreciem, pela vez primeira, a pecha de inconstitucionalidade argüida em relação a um certo ato normativo”371.
Orientação semelhante vem de ser reiterada, em decisão recente, na qual se explicitou que “o declarada, o órgão fracionário não pode deixar de levá-la em conta ao decidir; mas, ressuscitada que seja a questão a propósito de outro recurso ou de outra causa da sua competência originária, ou devolvida por força do art. 475, fica o órgão fracionário, à luz do Código, livre de entender constitucional a mesma lei ou o mesmo ato e, sendo o caso, aplicar este ou aquela à nova espécie. Se não se declarou a inconstitucionalidade, nenhum dispositivo do Código obsta a que, noutro feito, volte a argüição a ser suscitada, acolhida pelo órgão fracionário e, eventualmente, pelo próprio tribunal pleno, ou pelo ‘órgão especial’. No plano da lei, a eficácia do pronunciamento é só intraprocessual. Não há que cogitar aqui de auctoritas rei iudicatae. O Código expressamente limita a extensão objetiva da coisa julgada ao julgamento da lide (art. 468) e exclui desse âmbito ‘a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo’ (art. 469, inciso III) (‘Comentários ao Código de Processo Civil’, v/42, item n. 37, 6ª ed., 1993, Forense — grifei). A disciplina ritual que rege a declaração incidental de inconstitucionalidade, especialmente no ponto em que se impunha a atuação do princípio da reserva de Plenário, não foi observada no caso presente. Como já enfatizado, o acórdão ora questionado nesta sede recursal extraordinária — e que veiculou declaração de inconstitucionalidade de ato de caráter legislativo — emanou de simples órgão fracionário do Tribunal a quo, circunstância esta que faz transparecer, de modo evidente, o claro descumprimento, no caso em análise, do postulado constitucional da reserva de Plenário consagrado pelo art. 97 da Constituição. Sendo assim, conheço e dou provimento ao recurso extraordinário fundado no art. 102, III, a, da Constituição, para, cassando o acórdão ora impugnado, determinar que o órgão fracionário do Tribunal a quo — tendo presente a disciplina ritual fixada pelo CPC (art. 480/482) e, sobretudo, a regra inscrita no art. 97 da Carta Política, proceda como entender de direito (RE 190.728, DJ, 30.5.1997)”. 370 DJ de 30 de maio de 1997. 371 AgRgAgI 168.149, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 4 ago. 1995, p. 22520.
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acórdão recorrido deu aplicação ao decidido pelo STF nos RREE 150.755-PE e 150.764-PE”, não havendo necessidade, por isso, de a questão ser submetida ao Plenário do Tribunal372. Em acórdão de 22 agosto de 1997, houve por bem o Tribunal ressaltar, uma vez mais, que a reserva de plenário da declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo funda-se na presunção de constitucionalidade que os protege, somada a razões de segurança jurídica. Assim sendo, “a decisão plenária do Supremo Tribunal declaratória de inconstitucionalidade de norma, posto que incidente, sendo pressuposto necessário e suficiente a que o Senado lhe confira efeitos erga omnes, elide a presunção de sua constitucionalidade; a partir daí, podem os órgãos parciais dos outros tribunais acolhê-la para fundar a decisão de casos concretos ulteriores, prescindindo de submeter a questão de constitucionalidade ao seu próprio plenário”373. Essa orientação racionaliza o procedimento relativo ao incidente de controle de constitucionalidade no âmbito dos Tribunais. Não há necessidade de que se renove, continuamente, o complexo processo previsto no art. 97 da Constituição, se a posição do Tribunal não sofreu alteração significativa. Esse entendimento jurisprudencial marca uma evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, ainda que de forma tímida, os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto. A decisão do Supremo Tribunal Federal, tal como colocada, antecipa o efeito vinculante de seus julgados em matéria de controle de constitucionalidade incidental, permitindo que o órgão fracionário se desvincule do dever de observância da decisão do Pleno ou do Órgão Especial do Tribunal a que se encontra vinculado. Decide-se autonomamente com fundamento na declaração de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade) do Supremo Tribunal Federal proferida incidenter tantum. A Lei n. 9.756, de 17 de dezembro de 1998, introduziu parágrafo único no art. 481 da Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), que positiva a orientação jurisprudencial acima referida, nos seguintes termos: “Art. 481............................................................................................. Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”.
A fórmula adotada consagra in totum a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, assentando a dispensabilidade da submissão da questão constitucional ao tribunal pleno ou ao órgão especial na hipótese de o próprio Tribunal já ter adotado posição sobre o tema, ou, ainda, no caso de o plenário do Supremo Tribunal Federal já se ter pronunciado sobre a controvérsia. Todavia, diante dos múltiplos aspectos que envolvem a própria argumentação relacionada com os fundamentos da inconstitucionalidade, afigura-se razoável — senão obrigatório — que se reconheça a todos aqueles que participam de demandas semelhantes no âmbito do primeiro grau o direito de participação no julgamento a ser levado a efeito pelo Pleno ou pelo órgão especial do Tribunal. Assim, afigura-se plenamente justificável a alteração feita no art. 482 do Código de Processo Civil, de modo a assegurar o direito de manifestação no incidente de inconstitucionalidade aos demais interessados na controvérsia constitucional submetida ao plenário ou órgão especial do Tribunal. 1.6.2.Recurso extraordinário nos juizados especiais e abertura procedimental
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Ag.RgAgI 167.444, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ, 15 set. 1995, p. 29537. RE 191.898, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ, 22 ago. 1997, p. 38781.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes No que concerne ao recurso extraordinário, a Lei n. 10.259, de 2001, fixou os parâmetros básicos, confiando ao Supremo Tribunal Federal a sua disciplina no âmbito regimental. É um avanço significativo a previsão de que apenas alguns recursos subirão ao STF, ficando os demais sobrestados nas instâncias recursais. Definida a questão no âmbito do Supremo Tribunal Federal, os órgãos recursais dos juizados poderão declarar a prejudicialidade do recursos (se tese nele contida estiver em consonância com a jurisprudência do STF) ou exercer a faculdade de retratação, se for o caso. Cabe ressaltar aqui a proposta de alteração regimental no Supremo Tribunal Federal, formulada pelo Presidente Maurício Corrêa, no sentido de se adequar o Regimento Interno do STF, para que se estabeleça uma disciplina específica quanto aos RE´s interpostos contra decisões dos Juizados Especiais Federais, conforme regras estabelecidas nos arts. 14 e 15 e parágrafos da Lei no. 10.259 de 2001. Neste sentido, confiram-se as alterações ao Regimento Interno, objeto da Emenda Regimental no. 12, publicada no DJ de 17 de dezembro de 2003: Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001
Emenda regimental no.12
“Art. 14. (...)
Art. 1º O artigo 321 do Regimento Interno passa a vigorar com a seguinte redação:
(...)
“Art.321 - O recurso extraordinário para o Tribunal será interposto no prazo estabelecido na lei processual pertinente, com indicação do dispositivo que o autorize, dentre os casos previstos nos artigos 102, II, a, b, c, e 121, § 3º, da Constituição Federal.”
Art. 2º Fica acrescido ao artigo 321 do Regimento Interno o § 5º, incisos I a VIII, com o seguinte teor: “§ 5º Ao recurso extraordinário interposto no âmbito dos Juizados Especiais Federais, instituídos pela Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, aplicam-se as seguintes regras: (Conferir o § 10º do art. 14, e o art. 15 da Lei, que atribuem ao STF o poder de disciplinar suas disposições em sede regimental)
(...)
I – verificada a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio da ocorrência de dano de difícil reparação, em especial quando a decisão recorrida contrariar súmula ou jurisprudência dominante do Supremo
§ 4º Quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência.
Tribunal Federal, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, ad referendum do Plenário, medida liminar para determinar o sobrestamento, na origem, dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida, até o pronunciamento desta Corte sobre a matéria;” (Conferir o § 5º do art. 14 da Lei)
§ 5º No caso do § 4º, presente a plausibilidade do direito invocado e havendo fundado receio de dano de difícil reparação, poderá o relator conceder, de ofício ou a requerimento do interessado, medida liminar determinando a suspensão dos processos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.
VI – eventuais recursos extraordinários que versem idêntica controvérsia constitucional, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais ou de Uniformização, ficarão sobrestados, aguardando-se o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal; (Conferir o § 6º do art. 14 da Lei)
§ 6º Eventuais pedidos de uniformização idênticos, recebidos subseqüentemente em quaisquer Turmas Recursais, ficarão retidos nos autos, aguardando-se pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça.
II – o relator, se entender necessário, solicitará informações ao Presidente da Turma Recursal ou ao Coordenador da Turma de Uniformização, que serão prestadas no prazo de 05 (cinco) dias;”. (Conferir o § 7º do art. 14 da Lei)
§ 7º Se necessário, o relator pedirá informações ao Presidente da Turma Recursal ou Coordenador da Turma de Uniformização e ouvirá o Ministério Público, no prazo de cinco dias. Eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de trinta dias
III - eventuais interessados, ainda que não sejam partes no processo, poderão se manifestar, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da publicação da decisão concessiva da medida cautelar prevista no inciso I deste § 5º; (Conferir o § 7º do art. 14 da Lei) IV - o relator abrirá vista dos autos ao Ministério Público Federal, que deverá pronunciar-se no prazo de 05 (cinco) dias;” (Conferir o § 7º do art. 14 da
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Lei) V - recebido o parecer do Ministério Público Federal, o relator lançará relatório, colocando-o à disposição dos demais Ministros, e incluirá o processo em pauta para julgamento, com preferência sobre todos os demais feitos, à exceção dos processos com réus presos, habeas-corpus e mandado de segurança; (Conferir o § 8º do art. 14 da Lei)
. § 8º Decorridos os prazos referidos no § 7º, o relator incluirá o pedido em pauta na Seção, com preferência sobre todos os demais feitos, ressalvados os processos com réus presos, os ‘habeas corpus’ e os mandados de segurança.
VII- publicado o acórdão respectivo, em lugar especificamente destacado no Diário da Justiça da União, os recursos referidos no inciso anterior serão apreciados pelas Turmas Recursais ou de Uniformização, que poderão exercer juízo de retratação ou declarálos prejudicados, se cuidarem de tese não acolhida pelo Supremo Tribunal Federal;” (Conferir o § 9º do art. 14 da Lei)
§ 9º Publicado o acórdão respectivo, os pedidos retidos referidos no § 6º serão apreciados pelas Turmas Recursais, que poderão exercer juízo de retratação ou declará-los prejudicados, se veicularem tese não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça.
VIII – o acórdão que julgar o recurso extraordinário conterá, se for o caso, súmula sobre a questão constitucional controvertida, e dele será enviada cópia ao Superior Tribunal de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais, para comunicação a todos os Juizados Especiais federais e às Turmas Recursais e de Uniformização.
§ 10 Os Tribunais Regionais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, no âmbito de suas competências, expedirão normas regulamentando a composição dos órgãos e os procedimentos a serem adotados para o processamento e o julgamento do pedido de uniformização e do recurso extraordinário.
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Art. 15. O recurso extraordinário, para os efeitos desta lei, será processado e julgado segundo o estabelecido nos §§ 4º a 9º do art. 14, além da observância das normas do Regimento.”
Tal proposta, no meu entender, representa uma fiel concretização da Lei dos Juizados Federais, pois o novo modelo legal trazido pela Lei no. 10.259 traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que tem caracterizado o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segundo a qual “a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo”, dotado de uma “dupla função”, subjetiva e objetiva, “consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo”.374 Essa orientação há muito mostra-se dominante também no direito americano. Já no primeiro quartel do século passado, afirmava Triepel que os processos de controle de normas deveriam ser concebidos como processos objetivos. Assim, sustentava ele, no conhecido Referat sobre "a natureza e desenvolvimento da jurisdição constitucional", que, quanto mais políticas fossem as questões submetidas à jurisdição constitucional, tanto mais adequada pareceria a adoção de um processo judicial totalmente diferenciado dos processos ordinários. "Quanto menos se cogitar, nesse processo, de ação (...), de condenação, de cassação de atos estatais - dizia Triepel - mais facilmente poderão ser resolvidas, sob a forma judicial, as questões políticas, que são, igualmente, questões jurídicas".375 Triepel acrescentava, então, que “os americanos haviam desenvolvido o mais objetivo dos processos que se poderia imaginar (Die Amerikaner haben für Verfassungsstreitigkeiten das objektivste Verfahren eingeführt, das sich denken lässt).376 Portanto, há muito resta evidente que a Corte Suprema americana não se ocupa da correção de eventuais erros das Cortes ordinárias. De certa forma, é essa visão que, com algum atraso e relativa timidez, ressalte-se, a Lei nº 10.259, de 2001, busca imprimir aos recursos extraordinários, ainda que, inicialmente, apenas para aqueles interpostos contra as decisões dos juizados especiais federais. Também é certo que a proposta atende a imperativos de índole constitucional que estão implícitos na própria idéia dos juizados especiais. Não parece, pois, consentânea com o espírito da inovação constitucional qualquer exegese que acabe por reproduzir, no âmbito dos juizados, os conhecidos e criticados vícios da processualística tradicional dos recursos extraordinários. Tais vícios são amplamente conhecidos por esta Corte e por certo ainda serão objeto de um reexame, uma vez que têm implicado uma autêntica inviabilização funcional do Supremo. O fato inegável é que a concepção subjetivista, e um exercício individualizado da jurisdição do STF no âmbito do recurso extraordinário não se mostra sequer viável. A atual situação da Corte mostra isto de um modo constrangedor.
374
Häberle, Peter. O Recurso de Amparo no Sistema Germânico de Justiça Constitucional. In: Direito Público, Nº 2, Brasília: IDP/Síntese, out-dez 2003, p.83-137 375 Triepel, Heinrich, Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit, VVDStRL, Vol. 5 (1929), p. 26. 376 Triepel, Wesen und Entwicklung , cit., p. 26.
368
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Admitindo-se que todas as normas constitucionais possuem pretensão de eficácia e que, dentre essas, as normas de competência do Supremo assumem uma função instrumental para a concretização de toda a ordem constitucional, não me parecem aceitáveis quaisquer interpretações dos instrumentos constitucionais de acesso à Corte que permitam debilitar sua atuação eficiente. A função do Supremo nos recursos extraordinários – ao menos de modo imediato – não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das cortes inferiores. O processo entre partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos. Tal perspectiva, a par de fortalecer o papel principal da Corte, qual seja a defesa da Constituição, representa a única alternativa possível para a viabilização do Supremo. A disciplina do recurso extraordinário no âmbito dos juizados especiais atende a uma perspectiva de ampliação do acesso à Justiça. Pretende-se, em última análise, que os procedimentos simplificados e menos onerosos dos juizados permitam que um número maior de pessoas possa vir a defender suas posições junto ao Judiciário. Em síntese, o amplo acesso à Justiça que é almejado no âmbito dos juizados ficaria obliterado, caso tais procedimentos sejam contaminados pelos vícios do sistema recursal tradicional. Há um outro aspecto a ser enfatizado. O modelo recursal trazido pela lei dos juizados e que ora se pretende consolidar na esfera do Supremo não constitui sequer novidade em nosso sistema processual. Basta lembrar do incidente de inconstitucionalidade no âmbito dos tribunais de segunda instância. Ali, a questão constitucional é submetida ao Pleno ou ao órgão especial apenas uma vez, não havendo uma prestação de jurisdição individualizada no que toca às questões constitucionais. E mais, se já houver pronunciamento do Supremo, a própria decisão do órgão especial ou do Plenário dos tribunais é dispensada, nos termos do Art. 481, parágrafo único, do Código de Processo Civil. Mesmo no âmbito do RE, cabe asseverar, já não há, de um modo efetivo e amplo, uma autêntica jurisdição individualizada. O que há é uma burocratização que não interessa às partes. Firmado o precedente, a Corte passa a prestar uma jurisdição “massificada”, que obviamente não traduz uma perspectiva de efetiva prestação subjetiva, singular, individualizada de jurisdição. O efetivo acesso à Corte, com a consideração detida das razões apresentadas pelas partes, só se verifica em um momento, quando do julgamento do precedente. Daí a regra proposta, permitindo que as partes se manifestem quando da formação do leading case! Talvez estejamos diante de um modelo que, se exitoso, permitirá a modernização do próprio recurso extraordinário convencional.
1.7. O DISTRITO FEDERAL E O CONTROLE ABSTRATO DE NORMAS (ART. 30 — ALTERAÇÃO DA LEI N. 8.185, DE 1991) Art. 30. O art. 8º da Lei n. 8.185, de 14 de maio de 1991, passa a vigorar acrescido dos seguintes dispositivos: “Art. 8º ............................................................................. I — ................................................................................... .......................................................................................... n) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Distrito Federal em face da sua Lei Orgânica; .......................................................................................... § 3º São partes legítimas para propor a ação direta de inconstitucionalidade: I — o Governador do Distrito Federal; II — a Mesa da Câmara Legislativa;
369
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes III — o Procurador-Geral de Justiça; IV — a Ordem dos Advogados do Brasil, seção do Distrito Federal; V — as entidades sindicais ou de classe, de atuação no Distrito Federal, demonstrando que a pretensão por elas deduzida guarda relação de pertinência direta com os seus objetivos institucionais; VI — os partidos políticos com representação na Câmara Legislativa. § 4º Aplicam-se ao processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios as seguintes disposições: I — o Procurador-Geral de Justiça será sempre ouvido nas ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade; II — declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma da Lei Orgânica do Distrito Federal, a decisão será comunicada ao Poder competente para adoção das providências necessárias, e, tratando-se de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias; III — somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou de seu órgão especial, poderá o Tribunal de Justiça declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do Distrito Federal ou suspender a sua vigência em decisão de medida cautelar. § 5º Aplicam-se, no que couber, ao processo de julgamento da ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Distrito Federal em face da sua Lei Orgânica as normas sobre o processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”. Art. 31. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 10 de novembro de 1999; 178º da Independência e 111º da República. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO José Carlos Dias
1.7.1. A instituição de uma ação direta no âmbito do Distrito Federal Tal como observado, a Constituição dotou o Distrito Federal de autonomia política, outorgando-lhe competências legislativas específicas dos Estados-membros e dos Municípios e atribuindo-lhe poder para votar uma Lei Orgânica. Cumpre indagar se ao Distrito Federal seria lícito, igualmente, definir um modelo de controle de constitucionalidade, tal como previsto no art. 125, § 2º, da Carta Magna. A pergunta pode ser assim formulada: estamos diante de uma lacuna que pode ser superada por analogia ou, ao revés, diante de inequívoco silêncio eloqüente do texto constitucional? Não subsiste dúvida de que, ao contrário da Constituição de 1967/69, o texto constitucional de 1988 fez uma opção deliberada em favor de um duplo sistema de controle direto do direito estadual e um sistema de controle direto do direito municipal em face da Constituição estadual (CF, art. 125, § 2º). Tendo o Distrito Federal personalidade jurídica de direito público e autonomia política que lhe permite não só editar uma Lei Orgânica, a título de Constituição local, mas também legislar, no âmbito de seu território, sobre todas as matérias de competência dos Estados e Municípios, afigurase, sem dúvida, estranho se lhe negue aquilo que se assegura a todos os entes federados. É bem verdade que se revela complexa uma leitura ampliativa do art. 125, § 2º, para admitir que a própria Câmara Legislativa do Distrito Federal possa dispor sobre a instituição da ação direta perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. É que, como se sabe, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal é um órgão federal, competindo
370
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
à União dispor sobre a sua organização e sobre a organização do Poder Judiciário do Distrito Federal (CF, art. 21, XIII). Ainda que haja boas razões para justificar a extensão ao Distrito Federal do tratamento constitucional que, na matéria, se conferiu ao Estados-membros, há de se ter por inquestionável que, se o Tribunal de Justiça não é um órgão integrante do Distrito Federal, não pode ter suas competências acrescidas por decisão do órgão legislativo distrital. Essa observação parece obstar que a própria Câmara Legislativa do Distrito Federal venha a instituir a ação direta de inconstitucionalidade. Todavia, se se entende — como estamos a fazê-lo — que, em verdade, o texto constitucional não proíbe — antes recomenda — a instituição de um modelo duplo de controle direto de constitucionalidade do direito de índole estadual, então se afigura legítimo indagar se a própria União não poderia disciplinar, com fundamento em sua competência para legislar sobre direito processual federal e para dispor sobre organização do Judiciário local, a ação direta do direito distrital em face da Lei Orgânica do Distrito Federal. Poder-se-ia sustentar, como referido, que o silêncio do texto constitucional, na espécie, é um silêncio eloqüente, não se podendo superar a lacuna verificada senão mediante emenda constitucional. Embora não se possa negar que eventual emenda constitucional daria solução definitiva à questão377, é certo que a sistemática constitucional vigente sugere a possibilidade de disciplina do tema mediante decisão legislativa ordinária, desde que exercida pelos órgãos competentes. A adoção de uma interpretação restritiva acabaria por estabelecer uma capitis diminutio para o Distrito Federal em face das demais unidades federadas, que como observado, dispõem de amplíssima faculdade para instituir o processo de controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal no seu âmbito. A despeito das peculiaridades existentes no status jurídico do Distrito Federal, não se vislumbram razões que justifiquem a eliminação do sistema de duplo controle direto estabelecido pela Constituição Federal em relação ao direito de caráter estadual. O nãoreconhecimento da competência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios para proceder ao controle de constitucionalidade direto suprimiria a possibilidade de exercício do controle abstrato de normas do direito de caráter municipal no âmbito do Distrito Federal. Uma leitura atenta do texto constitucional parece indicar que o controle abstrato do direito de caráter estadual e municipal assumiu foros de normalidade (e não de excepcionalidade) sob a Constituição de 1988. Assim, o legislador ordinário federal, ao disciplinar a ação direta de inconstitucionalidade no âmbito do Distrito Federal como feito pelo art. 30 da Lei n. 9.868, está a concretizar, de forma clara e insofismável, o propósito do constituinte na formulação de um modelo regular de duplo controle do direito estadual e de necessidade de controle abstrato do direito de caráter municipal. E tanto a competência para legislar sobre direito processual como a faculdade para dispor sobre a organização judiciária do Distrito Federal legitimam a norma ora em análise. Tal como assente no Relatório que explicita as razões das propostas formuladas, o anteprojeto propõe que se altere a legislação ordinária federal (Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal) para admitir, expressamente, o controle abstrato de normas e o controle abstrato da omissão no âmbito do Distrito Federal com o propósito inequívoco de “colmatar significativa lacuna no sistema de controle de normas, uma vez que o texto constitucional não cuidou diretamente do tema”. Como se pode depreender da leitura do dispositivo em questão, ao disciplinar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Distrito Federal em face da lei orgânica, o legislador adotou os lineamentos básicos do controle de constitucionalidade direto aplicáveis no 377
Cf., a respeito, Proposta da Relatoria da Revisão Constitucional (Pareceres produzidos), Brasília, 1994, t. 2, p. 60 e s.
371
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes âmbito do Supremo Tribunal Federal, determinando que as normas sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal são aplicáveis, no que couber, ao processo e julgamento do controle de constitucionalidade no âmbito do Distrito Federal. A solução adotada parece inteiramente compatível com o ordenamento constitucional brasileiro, que reconhece hoje o processo abstrato de normas como instrumento regular de controle de constitucionalidade, também no âmbito das unidades federadas.
372
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
ACÓRDÃOS PENDENTES DE PUBLICAÇÃO
ADI 2548/PR: DECISÃO: No tocante à Petição no 66.661/2005, da Federação das Indústrias do Estado do Paraná - FIEP, requerendo seu ingresso no feito na qualidade de amicus curiae, compete ao Relator, por meio de despacho irrecorrível, acolher ou não pedido de interessados para que atuem na situação de amici curiae, hipótese diversa da figura processual da intervenção de terceiros. Esclareço que, em princípio, a eventual manifestação deveria ocorrer no prazo das informações (arts. 6o e 7o , § 2o , da Lei no 9.868/1999). Em recente julgamento, porém, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, resolveu questão de ordem no julgamento das ADIn’s nos 2.675-PE (Rel. Min. Carlos Velloso) e 2.777-SP (Rel. Min. Cezar Peluso), ambas julgadas em 27.11.2003, para reconhecer, excepcionalmente, a possibilidade de realização de sustentação oral por terceiros, admitidos no processo de fiscalização abstrata de normas, sob a condição de amicus curiae. Essa nova orientação, apesar de ter contrariado os precedentes existentes [ADIn (MC) no 2.321-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 31.10.2000; ADIn (MC) no 2.130SC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 02.02.2001; ADIn (QO) no 2.223-DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 26.10.2001], garante a possibilidade de que o procedimento de instrução da ação direta de inconstitucionalidade seja subsidiado por novos argumentos e diferentes alternativas de interpretação da Constituição. Esse parece ser, pelo menos, o espírito da norma constante da parte final do art. 7o, § 2o da Lei no 9.868/1999. É verdade que essa disposição remete ao parágrafo anterior § 1º -, que restou vetado pelo Presidente da República (O § 1º do art. 7o da Lei no 9.868/1999 dispunha que: “Os demais titulares referidos no art. 2° poderão manifestarse, por escrito, sobre o objeto da ação e pedir a juntada de documentos reputados úteis para o exame da matéria, no prazo das informações, bem como apresentar memoriais.”). No entanto, especialmente diante da relevância do caso ou, ainda, em face da notória contribuição que a manifestação possa trazer para o julgamento da causa, é possível cogitar de hipóteses de admissão de amicus curiae, ainda que fora desse prazo. Necessário é ressaltar, contudo, que essa possibilidade não é unânime na jurisprudência do STF. A esse respeito, vale mencionar a ADIn no 2.238-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão. Nesse caso, o relator considerou ser impossível a admissão de amicus curiae quando o julgamento do feito já estiver em andamento, por considerar tal manifestação destinada, unicamente, a instruir a ADIn. Na ADIn no 2.690-RN (Rel. Min. Gilmar Mendes), o Relator, considerando a conversão da ação para o rito do art. 12 da Lei no 9.868/99, admitiu a participação do Distrito Federal, dos Estados de Goiás, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, da Associação Brasileira de Loterias Estaduais (ABLE) e, ainda, determinou uma nova audiência da Procuradoria Geral da República. Essa construção jurisprudencial sugere a adoção de um modelo procedimental que ofereça alternativas e condições para permitir, de modo cada vez mais intenso, a
373
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões. Essa nova realidade pressupõe, além de amplo acesso e participação de sujeitos interessados no sistema de controle de constitucionalidade de normas, a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado. A constatação de que, no processo de controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições necessárias para proceder a essa aferição. Esse modelo pressupõe não só a possibilidade de o Tribunal se valer de todos os elementos técnicos disponíveis para a apreciação da legitimidade do ato questionado, mas também um amplo direito de participação por parte de terceiros (des)interessados. O chamado “Brandeis-Brief” - memorial utilizado pelo advogado Louis D. Brandeis, no “case Müller versus Oregon” (1908), contendo duas páginas dedicadas às questões jurídicas e outras 110 voltadas para os efeitos da longa duração do trabalho sobre a situação da mulher - permitiu que se desmistificasse a concepção dominante, segundo a qual a questão constitucional configurava simples “questão jurídica” de aferição de legitimidade da lei em face da Constituição. (Cf., a propósito, HALL, Kermit L. (organizador), The Oxford Companion to the Supreme Court of United States, Oxford, New York, 1992, p. 85). Hoje não há como negar a “comunicação entre norma e fato” (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt), que, como ressaltado, constitui condição da própria interpretação constitucional. É que o processo de conhecimento aqui envolve a investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos. (Cf., MARENHOLZ, Ernst Gottfried, Verfassungsinterpretation aus praktischer Sicht, in: Verfassungsrecht zwischen Wissenschaft und Richterkunst, Homenagem aos 70 anos de Konrad Hesse, Heidelberg, 1990, p. 53 (54)). Nesse sentido, a prática americana do amicus curiae brief permite à Corte Suprema converter o processo aparentemente subjetivo de controle de constitucionalidade em um processo verdadeiramente objetivo (no sentido de um processo que interessa a todos) -, no qual se assegura a participação das mais diversas pessoas e entidades. A propósito, referindo-se ao caso Webster versus Reproductive Health Services (....), que poderia ensejar uma revisão do entendimento estabelecido em Roe versus Wade (1973), sobre a possibilidade de realização de aborto, afirma Dworkin que a Corte Suprema recebeu, além do memorial apresentado pelo Governo, 77 outros memoriais (briefs) sobre os mais variados aspectos da controvérsia - possivelmente o número mais expressivo já registrado - por parte de 25 senadores, de 115 deputados federais, da Associação Americana de Médicos e de outros grupos médicos, de 281 historiadores, de 885 professores de Direito e de um grande grupo de organizações contra o aborto (cf. DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law. Cambridge- Massachussetts. 2.ª ed., 1996, p. 45). Evidente, assim, que essa fórmula procedimental constitui um excelente instrumento de informação para a Corte Suprema. Não há dúvida, outrossim, de que a participação de diferentes grupos em processos judiciais de grande significado para toda a sociedade cumpre uma função de integração extremamente relevante no Estado de Direito. Em consonância com esse modelo ora proposto, Peter Häberle defende a necessidade de que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere às audiências públicas e às “intervenções de eventuais interessados”, assegurando-se novas formas de participação das potências
374
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição (cf. Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1997, p. 47-48). Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”. Essa inovação institucional, além de contribuir para a qualidade da prestação jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimação dos julgamentos do Tribunal no âmbito de sua tarefa precípua de guarda da Constituição. É certo, também, que, ao cumprir as funções de Corte Constitucional, o Tribunal não pode deixar de exercer a sua competência, especialmente no que se refere à defesa dos direitos fundamentais em face de uma decisão legislativa, sob a alegação de que não dispõe dos mecanismos probatórios adequados para examinar a matéria. Entendo, portanto, que a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais em um Estado Democrático de Direito. Assim, em face do art. 7o, § 2o, da Lei no 9.868/1999, defiro o pedido da Federação das Indústrias do Estado do Paraná - FIEP, para que possa intervir no feito, na condição de amicus curiae. Junte-se aos autos a petição de no 66.661/2005. À Seção de Autuação de Originários para a inclusão dos nomes do interessado e de seu patrono. Publique-se. Brasília, 18 de outubro de 2005. Ministro Gilmar Mendes Relator
375
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
ACÓRDÃOS PENDENTES DE PUBLICAÇÃO: ADI 2777/SP, Sepúlveda Pertence, Informativo 349, pendente de publicação ADI 2777/SP
Decisão: Sr. Presidente, cheguei a sustentar, na questão de ordem na Petição 2.223, que a lei não admitia a sustentação oral dos amici curiae. Fundei-me, para isso, numa interpretação do art. 7º da Lei nº 9.868, em combinação, aliás, com um parágrafo anterior vetado, que fora, de certo modo, até uma sugestão minha, na discussão da ADC 1, de um procedimento-edital pelo qual se desse ciência aos legitimados do ingresso de uma ação direta de inconstitucionalidade, ou de uma ação declaratória de constitucionalidade, para que pudessem eles intervir no processo e, eventualmente, propor uma ação em sentido contrário. Esse parágrafo foi vetado (um dia vou contar, nas memórias, que espero não escrever, por influência de quem). Mas o certo é que nele se previa que, naquele prazo, é que o Relator admitiria a manifestação do amicus curiae. Enquanto corria o prazo do edital para que os outros legitimados viessem ao processo, o Relator poderia, além deles, que teriam o ingresso assegurado, admitir os outros, como amici curiae. Hoje me convenço que a questão, a rigor, não é legal; é menor, é regimental. Basta ler a L. 9.868. Ela, impondo uma virada na orientação regimental anterior, previu, como direito do requerente e do requerido, a sustentação oral no julgamento cautelar, mas não se previu no julgamento de mérito. Então, se reduzíssemos o problema da sustentação oral ao plano da interpretação literal, chegaríamos à solução paradoxal de que, mesmo as partes formais, nesse processo sui generis de controle abstrato, só poderiam falar no julgamento liminar, não no definitivo. O que mostra, rigorosamente, que a lei pode impor sustentações orais em determinados momentos que considere essenciais. Mas, deixa sempre em aberto o que não regulou, para que o Tribunal a admita, ou não, em outras fases. Comovido sinceramente pelos valores que os Ministros Celso de Mello, Carlos Britto e Gilmar Mendes realçaram hoje nessa questão, aparentemente menor tenho, porém — talvez pela responsabilidade de estar sentado agora nesta cadeira de decano, tenho de recordar, também — como o faria o meu insigne antecessor nela — uma outra responsabilidade do Tribunal: a responsabilidade com a sua sobrevivência, sua viabilidade e sua funcionalidade. Com as manifestações havidas, vou admitir, hoje, a sustentação requerida para provocar o Tribunal. Mas entendo urgente, que, mediante norma regimental, venhamos a encontrar uma fórmula que, sem comprometer a viabilidade do funcionamento do Tribunal – nesta, que é a sua função mais nobre: o julgamento dos processos objetivos do controle de constitucionalidade -, possamos, ouvir, o que me parece extremamente relevante, o amicus curiae admitido. Admito, hoje, a sustentação oral e insto o Tribunal a que imaginemos uma fórmula regimental que a discipline, em especial, para as hipóteses em que sejam muitos os admitidos à discussão da causa.
376
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
27/04/2005
TRIBUNAL PLENO
QUEST. ORD. EM ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO FUNDAMENTAL 54-8 DISTRITO FEDERAL
DE
PRECEITO
V O T O
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES -
Introdução
O
Ministro
Marco
Aurélio
traz
à
análise
deste
Plenário questão de ordem levantada pelo Procurador-Geral da República
“alusiva
ao
não
cabimento
da
via
eleita
ao
tratamento do tema, como apresentado.” A presente ADPF tem o seguinte pedido principal:
“(...)
requer
seja
julgado
procedente
o
presente pedido para o fim de que esta Eg. Corte, procedendo à interpretação conforme a Constituição dos arts. 125, 126 e 128, I e II,
do
2.848/40),
Código declare
Penal
(Decreto-lei
inconstitucional,
nº com
eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação
de
impeditivos
da
parto
casos
em
anencefálico,
377
tais
dispositivos
antecipação de
terapêutica
gravidez
diagnosticados
como
por
de
do feto
médico
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
habilitado,
reconhecendo-se
o
direito
subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento
sem
a
necessidade
de
apresentação prévia de autorização judicial ou
qualquer
outra
forma
de
permissão
específica do Estado.”
Requer-se ainda alternativamente, verbis:
“
(...)
caso
descabimento presente
V.
da
Exa.
ADPF
recebida
na
entenda
hipótese,
como
ação
pelo seja
direta
a de
inconstitucionalidade, uma vez que o que se pretende
é
a
interpretação
conforme
a
Constituição dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, sem redução de texto (...).”
Alega-se
estarem
preenchidos
os
pressupostos
de
cabimento da ADPF, pois estão vulnerados por aqueles artigos do Código Penal (ato do poder público) os seguintes preceitos fundamentais: “princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º,
IV),
cláusula
um
dos
geral
fundamentos
da
da
liberdade,
República
extraída
do
brasileira; princípio
a da
legalidade (art. 5º, II), direito fundamental previsto no Capítulo dedicado aos direitos individuais e coletivos; e o direito à saúde (arts. 6º e 196), contemplado no Capítulo dos direitos
sociais
e
reiterado
no
Título
reservado
à ordem
social.” Quanto ao pressuposto da subsidiaridedade sustentase que “as disposições questionadas encontram-se no Código
378
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Penal, materializado no Decreto-lei nº 2.848, de 7.12.40. Trata-se, como se percebe singelamente, de diploma legal préconstitucional, suscetíveis
não
de
sendo
seus
controle
dispositivos
mediante
ação
originais direta
de
inconstitucionalidade, consoante pacífica jurisprudência do Supremo
Tribunal
declaratória
de
Federal.
Não
seria
constitucionalidade
nem
hipótese de
de
ação
qualquer
outro
processo objetivo.” Passemos
à
análise
do
cabimento
da
presente
argüição.
Considerações preliminares
Tal como já afirmei quando do julgamento da medida cautelar na ADPF 33, nos termos da Lei no 9.882, de 3 de dezembro
de
1999,
cabe
a
argüição
de
descumprimento
de
preceito fundamental para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público (art. 1o, caput). O parágrafo único do art. 1o explicita que caberá também a argüição de descumprimento quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo
federal,
estadual
ou
municipal,
inclusive
anteriores à Constituição (leis pré-constitucionais). Vê-se, poderá
ser
assim,
manejada
que
para
a
argüição
solver
de
descumprimento
controvérsias
sobre
a
constitucionalidade do direito federal, do direito estadual e também do direito municipal. Pode-se dizer que a argüição de descumprimento vem
379
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
completar o sistema de controle de constitucionalidade de perfil
relativamente
questões
até
abstrato
então
de
concentrado não
no
apreciadas
STF, no
constitucionalidade
inconstitucionalidade
e
uma
âmbito (ação
ação
vez do
que
as
controle
direta
de
declaratória
de
constitucionalidade) poderão ser objeto de exame no âmbito do novo procedimento.
Parâmetro de controle
É muito difícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique
o
processo
e
o
julgamento
da
argüição
de
descumprimento. Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional. Assim,
ninguém
poderá
negar
a
qualidade
de
preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias
individuais
(art.
5o,
dentre
outros).
Da
mesma
forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4o, da Constituição, quais sejam, a forma federativa de Estado, a separação de Poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico. Por outro lado, a própria Constituição explicita os chamados ensejo
à
“princípios decretação
sensíveis”, de
cuja
intervenção
violação
federal
nos
pode
dar
Estados-
membros (art. 34, VII). É fácil ver que a amplitude conferida às cláusulas
380
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
pétreas e a idéia de unidade da Constituição (Einheit der Verfassung)
acabam
por
colocar
parte
significativa
da
Constituição sob a proteção dessas garantias. Tal tendência não
exclui
a possibilidade
de
um
‘engessamento’
da ordem
constitucional, obstando à introdução de qualquer mudança de maior
significado
(Cf.
Verfassungsengsentwicklung,
Otto-Brun
Stabilität
Bryde,
und
Dynamik
im
Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, Baden-Baden, 1982, p. 244). Daí afirmar-se, correntemente, que tais cláusulas hão de ser interpretadas de forma restritiva. Essa
afirmação
simplista,
ao
invés
de
solver
o
problema, pode agravá-lo, pois a tendência detectada atua no sentido não de uma interpretação restritiva das cláusulas pétreas, mas de uma interpretação restritiva dos próprios princípios por elas protegidos. Essa via, em lugar de permitir fortalecimento dos princípios
constitucionais
eternidade’,
como
contemplados
pretendido
pelo
nas
‘garantias
constituinte,
de
acarreta,
efetivamente, seu enfraquecimento. Assim, interpretação eternidade
parece
restritiva
sem
afetar
recomendável se
os
refira
à
princípios
que
própria por
ela
eventual garantia
de
protegidos
(Bryde, cit., p. 244). Por isso, após reconhecer a possibilidade de que se confira uma interpretação ao art. 79, III, da Lei Fundamental que não leve nem ao engessamento da ordem constitucional, nem à completa nulificação de sua força normativa, afirma Bryde que essa tarefa é prenhe de dificuldades: “Essas dificuldades residem não apenas na natureza assaz aberta e dependente de
381
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
concretização dos princípios constitucionais, mas também na relação
desses
princípios
com
as
concretizações
que
eles
acabaram por encontrar na Constituição. Se parece obrigatória a conclusão de que o art. 79, III, da Lei Fundamental não abarcou
todas
as
possíveis
concretizações
no
seu
âmbito
normativo, não se afigura menos certo que esses princípios seriam despidos de conteúdo se não se levassem em conta essas concretizações.
Isso
constituinte
esforçou
princípios
se
básicos
se
de
aplica, por
sua
sobretudo,
realizar,
obra.
O
ele
princípio
porque
o
próprio,
os
da
dignidade
humana está protegido tão amplamente fora do âmbito do art. 1o,
que
o
significado
da
disposição
nele
contida
acabou
reduzido a uma questão secundária (defesa da honra), que, obviamente, não é objeto da garantia de eternidade prevista no art. 79, III. Ainda que a referência ao 1o não se estenda, por
força
do
disposto
no
tem-se
de
constitucional,
1o,
art.
admitir
III,
a
toda
a
ordem
que
o
postulado
da
dignidade humana protegido no art. 79, III, não se realiza sem
contemplar
outros
raciocínio
há
princípios
referidos
Direito
da
de
direitos
se
desenvolver
no
República
fundamentais.
art.
Federal
79, da
em III.
relação Para
Alemanha
o
Idêntico a
outros
Estado
afigura-se
de
mais
relevante o art. 19, IV (garantia da proteção judiciária), do que o princípio da proibição de lei retroativa que a Corte Constitucional
extraiu
do
art.
20.
E,
fora
do
âmbito
do
direito eleitoral, dos direitos dos partidos políticos e dos chamados direitos fundamentais de índole política, não há limite
para
a
revisão
constitucional
do
princípio
da
democracia” (Bryde, cit., p. 245). Essas assertivas têm a virtude de demonstrar que o efetivo conteúdo das ‘garantias de eternidade’ somente será
382
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
obtido mediante esforço hermenêutico. Apenas essa atividade poderá revelar os princípios constitucionais que, ainda que não contemplados expressamente nas cláusulas pétreas, guardam estreita vinculação com os princípios por elas protegidos e estão, por isso, cobertos pela garantia de imutabilidade que delas dimana. Os enunciados
princípios normalmente
merecedores nas
de
chamadas
proteção, “cláusulas
tal
como
pétreas”,
parecem despidos de conteúdo específico. O
que
significa,
efetivamente,
“separação
de
Poderes” ou “forma federativa”? O que é um “Estado de Direito Democrático”? Qual o significado da “proteção da dignidade humana”?
Qual a dimensão do “princípio federativo”? Essas
indagações
adequadamente,
no
constitucional.
É
constitucionais
integrantes
somente
contexto o
exame
podem
de
ser
determinado
sistemático do
respondidas,
modelo
das
sistema
disposições
constitucional
que
permitirá explicitar o conteúdo de determinado princípio. Ao se deparar com alegação de afronta ao princípio da divisão de Poderes de Constituição estadual em face dos chamados “princípios sensíveis” (representação interventiva), assentou o notável Castro Nunes lição que, certamente, se aplica
à
interpretação
casos
de
intervenção
das
cláusulas
prefigurados
pétreas: nessa
“(...).
enumeração
Os se
enunciam por declarações de princípios, comportando o que possa
comportar
doutrinários,
que
cada são
um
desses
conhecidos
princípios na
exposição
como do
dados direito
público. E por isso mesmo ficou reservado o seu exame, do ponto de vista do conteúdo e da extensão e da sua correlação com outras disposições constitucionais, ao controle judicial a cargo do Supremo Tribunal Federal. Quero dizer com estas
383
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
palavras
que
a
enumeração
é
limitativa
como
enumeração.
(...). A enumeração é taxativa, é limitativa, é restritiva, e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um desses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo e delimitado na sua extensão. Daí
decorre
que
a
interpretação
é
restritiva
apenas
no
sentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderá estar limitado, comportando necessariamente
a
exploração
do
conteúdo
e
fixação
das
características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo
a
delimitação
do
que possa
ser
consentido ou
proibido aos Estados” (Repr. n. 94, Rel. Min. Castro Nunes, Archivo Judiciário 85/31 (34-35), 1947). Essa orientação, consagrada por esta Corte para os chamados
“princípios
sensíveis”,
há
de
se
aplicar
à
concretização das cláusulas pétreas e, também, dos chamados “preceitos fundamentais”. É o estudo da ordem constitucional no seu contexto normativo e nas suas relações de interdependência que permite identificar as disposições essenciais para a preservação dos princípios
basilares
dos
preceitos
fundamentais
em
um
determinado sistema. Tal como ensina J.J. Gomes Canotilho em relação à limitação do poder de revisão, a identificação do preceito fundamental não pode divorciar-se das conexões de sentido captadas do texto constitucional, fazendo-se mister que os limites materiais operem como verdadeiros ‘limites textuais
implícitos’
(J.J.Gomes
Canotilho,
Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2002, p. 1.049). Destarte, um juízo mais ou menos seguro sobre a lesão de preceito fundamental consistente nos princípios da
384
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
divisão de Poderes, da forma federativa do Estado ou dos direitos e garantias individuais exige, preliminarmente, a identificação
do
constitucional
e,
conteúdo
dessas
especialmente,
categorias das
suas
na
ordem
relações
de
interdependência. Nessa linha de entendimento, a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na
ordem
constitucional,
mas
também
a
disposições
que
confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio. Tendo em vista as interconexões e interdependências dos
princípios
proceder-se fixando-se abrangente
a um
e uma
regras, distinção
conceito
das
talvez entre
extensivo
normas
não essas
de
básicas
seja duas
preceito contidas
recomendável categorias, fundamental, no
texto
constitucional. No caso em exame, o pedido funda-se no “princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV), na cláusula geral da liberdade, extraída do princípio da legalidade (art. 5º, II), e no direito à saúde (arts. 6º e 196).” A existência ou não de violação a tais preceitos será objeto de exame quando do julgamento do mérito. Mas cabe enfatizar, nesse ponto, que este requisito legal para a admissibilidade da ADPF restou cumprido na inicial.
Direito pré-constitucional
As Constituições brasileiras de 1891 (art. 83), de 1934 (art. 187) e de 1937 (art. 183) estabeleceram cláusulas
385
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
de
recepção,
que,
Constituição
de
tal
como
Weimar
as
e
cláusulas
da
de
recepção
Constituição
de
da
Bonn
(respectivamente, art. 178, II, e art. 123, I), continham duas disposições: a) assegurava-se, de um lado, a vigência plena do direito pré-constitucional; b) estabelecia-se, de outro, que o direito pré-constitucional incompatível com a nova ordem perdia a vigência desde a entrada em vigor da nova Constituição.
(João
Barbalho,
Constituição
Federal
Brasileira, Comentários, p. 356; cf., sobre o assunto, no direito
alemão:
Jörn
Verfassungswidrigkeit
von
Ipsen, Norm
und
Rechtsfolgen
der
Einzelakt, Baden-Baden,
1980, p. 161). O Supremo Tribunal Federal admitiu inicialmente a possibilidade de examinar, no processo do controle abstrato de
normas,
a
questão
da
derrogação
do
direito
pré-
constitucional em virtude de colisão entre a Constituição superveniente julgava-se
e
o
direito
improcedente
expressamente
a
incompatibilidade
a
pré-constitucional. representação,
existência entre
da o
mas
colisão
e,
direito
constitucional e a nova Constituição (Rp n de
Albuquerque,
RTJ
82/44;
Rp
caso,
reconhecia-se portanto,
ordinário o
Xavier
Nesse
no
a
pré-
946, Rel. Min. 969,
Rel.
Min.
Antônio Neder, RTJ 99/544). O Tribunal tratava esse tema como uma
questão
preliminar,
que
haveria
de
ser
decidida
no
processo de controle abstrato de normas. Essa posição foi abandonada, todavia, em favor do entendimento segundo o qual o processo do controle abstrato de
normas
destina-se,
fundamentalmente,
à
aferição
da
constitucionalidade de normas pós-constitucionais (Rp no 946, Rel. Min. Xavier de Albuquerque, RTJ 82/44; Rp no 969, Rel. Min.
Antônio
Neder,
RTJ
99/544).
386
Dessa
forma,
eventual
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
colisão
entre
o
direito
pré-constitucional
e
a
nova
Constituição deveria ser simplesmente resolvida segundo os princípios de direito intertemporal (Rp no 1.012, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 95/990). Assim, caberia à jurisdição ordinária, tanto quanto ao STF, examinar a vigência do direito pré-constitucional no âmbito do controle incidente de normas, uma vez que, nesse caso,
cuidar-se-ia
posterior
de
derogat
simples
priori,
aplicação e
não
do
de
princípio um
lex
exame
de
constitucionalidade. Esse problema, que já fora contemplado por Kelsen no famoso Referat sobre a natureza e o desenvolvimento da jurisdição constitucional, é tratado de forma diferenciada em cada sistema jurídico (Kelsen - “Wesen und Entwicklung der Staatsgerichts-barkeit”, VVDStRL 5/64, 1929). A
práxis
austríaca
parte
do
princípio
de
que
o
objeto do controle abstrato de normas, nos termos do art. 140 da Lei Constitucional, não são apenas as leis federais e estaduais, mas também as antigas leis do Reich e dos Estados, desde
que
tenham
sido
recebidas
em
conformidade
com
o
preceituado nas “Disposições Constitucionais Transitórias” de 1920 (Cf., a propósito, L. Adamovich e Hans Spanner, Handbuch des
österreichischen
6a
Verfassungsrechts,
ed.,
Viena/Nova
York, 1971, p. 456). A discussão sobre a constitucionalidade dessas leis antigas deve ser examinada, todavia, em face das disposições constitucionais vigentes à época (Cf. Adamovich e Spanner,cit., p. 456; BVerfGE 2/124 (130); 2/138, 218; 3/48; 4/339; 6/64; 7/335; 10/58, 127, 131, 159; 11/129; 12/353; 14/65; 15/183; 16/231; 17/162; 18/252. Crítico, a propósito, Ipsen, cit.,p. 164). Segundo
esse
entendimento,
387
a
colisão
entre
o
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
direito pré-constitucional e a Constituição configura questão de direito intertemporal, não estando submetida à competência exclusiva da Corte Constitucional (Cf. Adamovich e Spanner, cit., p. 456). Tal questão pode ser apreciada tanto pelo Tribunal Constitucional como por outros tribunais como uma questão
preliminar
(Adamovich
e
Spanner,
idem,
ibidem).
Adamovich recomendou que se dotasse a Corte Constitucional Austríaca de competência para decidir com eficácia erga omnes as questões de derrogação (cf. Adamovich e Spanner, Handbuch des
österreichischen
Verfassungsrechts,
5a
ed.,
Viena/Nova
York, 1957, p. 398). A
Corte
Constitucional
alemã
desenvolveu
uma
espécie de solução de compromisso, assentando que tanto as leis pós-constitucionais quanto as pré-constitucionais podem ser objeto do controle abstrato de normas. Estão submetidas, porém, ao processo de controle concreto de normas apenas as leis pós-constitucionais, uma vez que, nesse caso, a decisão sobre
a
colisão
de
normas
não
ameaça
a
autoridade
do
legislador constitucional (BVerfGE 2/124 (130); 2/138, 218; 3/48;
4/339;
6/64;
7/335;
10/58,
127,
131,
159;
11/129;
12/353; 14/65; 15/183; 16/231; 17/162; 18/252. Crítico, a propósito, Ipsen,cit., p. 164). A Corte Constitucional italiana já na sua primeira decisão, em 5.6.56, reconheceu competência para examinar a constitucionalidade
do
direito
pré-constitucional
(Paolo
Biscaretti di Ruffia, Derecho Constitucional, p. 268; Gustavo Zagrebelsky, Pierandrei,
La
Giustizia
“Corte
Costituzionale,
Costituzionale”,
in
p.
42;
Franco
Enciclopedia
del
Diritto, v. 10, Milão, 1962, p. 908. Cf., a propósito: T. Ritterspach,
“Probleme
der
italienischen
Verfassungsgerichtsbarkeit: 20 Jahre Corte Costituzionale”,
388
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
AöR
104/137
(1380,
1979;
Verfassungsgerichtbarkeit
Aldo
in
Sandulli,
Italien”,
in
“Die Mosler,
Verfassungsgerichtbarkeit in der Gegenwart, p. 292 (306-307), porque
tanto
o
art.
Constitucional,
134
de
constitucionalidade
da
Constituição
9.2.48,
da
lei,
e
quanto
cuidavam entre
a
a
Lei
apenas
lei
da
ordinária
e
a
Constituição existe uma diferença de hierarquia, sendo, por isso,
irrelevante
a
distinção
entre
direito
pré-
constitucional e pós-constitucional (Acórdão de 5.6.56, n. 1. Cf., a propósito, Gaetano Sciascia, “Die Rechtsprechung des Verfassungsgerichtshofs der Italienischen Republik”, JöR, NF 6/1 (6), 1957). A
Constituição
portuguesa,
de
1976,
consagrou
expressamente a chamada “inconstitucionalidade superveniente” §
4o),
Constitucional
para
(art.
282,
pré-constitucional
reconhecendo examinar
em
face
a
a
competência
compatibilidade
da
nova
da do
Constituição
Corte direito
(Cf.,
a
propósito, Canotilho, cit., p. 1288). O Tribunal Constitucional Espanhol optou por uma linha intermediária, que lhe permite dividir a competência com
a
jurisdição
constitucional,
e
ordinária
em
outorga-lhe
relação
em
relação
ao ao
direito
pré-
direito
pós-
constitucional o monopólio da censura (Cf. A. Weber, “Die Verfassungsgerichtsbarkeit in Spanien”, 258), para
1985).
Configura-se,
pois,
apreciar
a
compatibilidade
constitucional
e
a
nova
JöR, NF 34/245 (257-
competência entre
Constituição
o (A.
concorrente
direito
pré-
Weber,
“Die
Verfassungsgerichtsbarkeit in Spanien”, JöR, NF 34/245 (258), 1985). A Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Espanhol prevê, no art. 33, um prazo de três meses para a instauração do
processo
de
controle
abstrato
389
de
normas
a
contar
da
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
publicação da lei ou do ato normativo com força de lei. Nos termos do art. 2o das “Disposições Transitórias” dessa lei, aplica-se
ao
controle
constitucional
e
aos
abstrato
de
conflitos
normas,
de
ao
recurso
competência
o
prazo
previsto de três meses para os atos anteriormente editados, a contar da data de instituição do Tribunal (15.7.80) (Cf., a propósito,
A.
Weber,
“Die
Verfassungsgerichtsbarkeit
in
Spanien”, JöR, NF 34/245 (254), 1985). É
certo,
pois,
Constitucional
austríaca,
Constitucionais
assegurar
que,
com
procuram sua
a os
exceção
da
modernos
competência
para
Corte
Tribunais aferir
a
constitucionalidade das leis pré-constitucionais em face da Constituição aplica
de
vigente. forma
Ressalte-se
irrestrita
para
que a
essa Corte
idéia
não
se
Constitucional
espanhola, uma vez que, após o decurso do prazo fixado, não dispõe mais de competência para conhecer da questão no juízo abstrato. No sistema italiano, que não conhece o controle abstrato de normas, impôs-se, desde o início, a idéia de uma inconstitucionalidade superveniente. A
Constituição
brasileira
de
1988
não
tratou
expressamente da questão relativa à constitucionalidade do direito pré-constitucional. A jurisprudência do STF, que se desenvolveu
sob
a
vigência
da
Constituição
de
1967/1969,
tratava dessa colisão com base no princípio lex posterior derogat priori. Já sob o império da nova Constituição, teve o STF oportunidade de discutir amplamente a questão na ADIn no 2, da relatoria do eminente Min. Paulo Brossard. Embora o tema tenha
suscitado
controvérsia,
provocada
pela
clara
manifestação de Sepúlveda Pertence em favor da revisão da jurisprudência
consolidada
do
390
Tribunal,
prevaleceu
a
tese
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
tradicional, esposada por Paulo Brossard. Em síntese, são os seguintes os argumentos expendidos por Brossard:
“A idéia nuclear do raciocínio reside na superioridade relação
às
superior
da
lei
demais
às
leis.
leis
constituinte;
constitucional
por
ela
A
Constituição
ser
indica
em
obra os
do
é
poder
Poderes
do
Estado, através dos quais a nação se governa, e ainda marca e delimita as atribuições de cada um deles. Do Legislativo, inclusive. Tendo este a sua existência e a extensão dos seus poderes definidos
na
encontrar,
Constituição,
com
a
nesta
enumeração
há
de
de suas
atribuições, a extensão delas. E na medida em que
as
exceder
estará
praticando
atos
não
autorizados por ela. Procede à semelhança do mandatário
que
ultrapassa
os
poderes
conferidos no mandato. Assim, uma lei é inconstitucional se e quando o legislador dispõe sobre o que não tinha
poder
para
fazê-lo,
excede
os
poderes
a
ou
ele
seja,
quando
assinados
pela
Constituição, à qual todos os Poderes estão sujeitos. Disse-se Maior,
ou
Fundamental, superior
à
que
a
Constituição
a
Lei
e
assim lei
391
Suprema, se
diz
elaborada
é
ou porque pelo
a a
Lei Lei
ela
é
poder
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
constituído. Não fora assim e a lei a ela contrária, obviamente posterior, revogaria a Constituição sem a observância dos preceitos constitucionais que regulam sua alteração. Decorre
daí
que
a
lei
só
poderá
ser
inconstitucional se estiver em litígio com a Constituição
sob
cujo
pálio
agiu
o
legislador. A correção do ato legislativo, ou sua incompatibilidade com a lei maior, que o macula,
há
de
ser
conferida
com
a
Constituição que delimita os poderes do Poder Legislativo império
o
que
elabora
legislador
a
lei,
será
e
a
sujeito.
cujo E
em
relação a nenhuma outra. O
legislador
Constituição
não
antiga,
deve
já
obediência
revogada,
pois
à ela
não existe mais. Existiu, deixou de existir. Muito
menos
à
Constituição
futura,
inexistente, por conseguinte, por não existir ainda. De resto, só por adivinhação poderia obedecê-la,
uma
vez
que
futura
e,
por
conseguinte, ainda inexistente. É por esta singelíssima razão que as leis anteriores
à
Constituição
não
podem
ser
inconstitucionais em relação a ela, que veio a ter existência mais tarde. Se entre ambas houver
inconciliabilidade,
revogação,
dado
elementar,
a
lei
posterior
com
ela
incompatível,
anterior
constitucional,
392
que,
como
por
lei
ocorrerá
outro
que
princípio
revoga
é,
e
a
lei
a
lei
revoga
as
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
leis
anteriores
que
se
lhe
oponham.”
(A
Constituição e as leis anteriores, Arquivos do Ministério da Justiça 180/125 (126-127), 1992).
Sepúlveda
Pertence
sustentou,
por
seu
turno,
a
aplicação do princípio da supremacia da Constituição também à lei pré-constitucional. A seguinte passagem contém uma boa síntese dos argumentos expendidos por Sepúlveda Pertence:
“Indaga, a propósito, o eminente Relator, com
a
poderia
eloqüência o
que
o
legislador
singulariza,
observar
‘como
Constituição
inexistente ao tempo em que elaborou a lei, como
poderia
quebrantar
normas
constitucionais que só mais tarde viriam a ser promulgadas’. ‘Mesmo que o legislador fosse vidente’ – responde S. Exa – ‘ e tivesse a antevisão do que iria acontecer, e de antemão soubesse que uma Constituição com tais e quais preceitos viria a ser promulgada, mesmo assim não lhe poderia
obedecer,
por
estar
sujeito
aos
preceitos e termos da Constituição vigente’. Com todas as vênias, não me convenci de que
o
argumento,
de
fascinante
cintilação
retórica, tivesse maior peso jurídico. A
inconstitucionalidade
resultado
de
um
juízo
de
é
apenas
o
incompatibilidade
entre duas normas, ao qual é de todo alheia
393
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
qualquer
idéia
de
responsabilidade
culpabilidade
do
autor
da
ou norma
questionada pela ilicitude constitucional. A razão, por isso, cabe a Jorge Miranda (Manual, cit., II/250) quando anota que ‘a inconstitucionalidade
não
é
primitiva
ou
subseqüente, originária ou derivada, inicial ou
ulterior.
A
jurídico-formal
sua
não
abstrata
depende
realidade
do
tempo
de
produção dos preceitos’. Atemporal
e
impessoal,
inconstitucionalidade embora
a
outro
repele,
pois,
propósito,
a o
que,
Calamandrei
(“Ilegitimidade constitucional de las leyes”, em
Estudios,
‘concepção,
cit.,
III/89)
chamou
de
por assim dizer, antropomórfica
do que, na realidade, é somente um conflito objetivo de normas’. Ao
contrário,
quando
inconstitucionalidade
se
cuida
superveniente
–
de que
advém do cotejo de uma norma editada sob uma ordem
constitucional
com
as
normas
e
princípios de um outro ordenamento, futuro – a declaração da invalidade sucessiva da lei pode
até
lealdade
significar
o
do
autor
seu
reconhecimento aos
da
valores
constitucionais da sua época. Tanto assim é, já antes se observou, que o
mesmo
fulminada
conteúdo de
normativo
da
regra
legal
inconstitucionalidade
superveniente poderá seguir regendo os fatos
394
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
anteriores à nova Lei Fundamental, se assim o determinarem
os
intertemporal
cânones
pertinente.”
do
(Cf.
direito
ADIn
no
2,
Rel. Min. Paulo Brossard, DJU 12.2.92; v., também, José Paulo Sepúlveda Pertence, “Ação direta de inconstitucionalidade e as normas anteriores: Arquivos
as
do
razões
Ministério
dos da
vencidos”, Justiça
in
180/148
(170), julho-dezembro de 1992).
As teses acima contrapostas contêm bons argumentos, aptos a legitimar qualquer uma das possíveis conclusões. Não se deve olvidar, outrossim, tal como enfatizado por Sepúlveda Pertence, (Ação direta de inconstitucionalidade e as normas anteriores: as razões dos vencidos, in Arquivos do Ministério da Justiça 180/148(170)), que o debate sobre a inconstitucionalidade constitucional
ou
em
superveniente
está
constitucional
e
revogação
face
do
do
direito
direito
pré-
constitucional
imantado
por
uma
opção
pragmática,
que,
diante
da
políticoinequívoca
razoabilidade das orientações, faz prevalecer uma das duas posições
ou,
compromisso,
ainda, com
vistas
permite à
desenvolver
preservação
de
fórmulas competência
de da
jurisdição ordinária para conhecer de questões nos sistemas de controle concentrado. É inegável, todavia, que a aplicação do princípio lex posterior derogat priori na relação lei/Constituição não é isenta de problemas, uma vez que esse postulado pressupõe idêntica densidade normativa (Cf., a propósito: Ipsen, cit., p. 163; José de Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário,
pp.
603-604).
Até
395
porque,
como
expressamente
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
contemplado no art. 2o da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, a derrogação do direito antigo não se verifica se a nova lei contiver apenas disposições gerais ou especiais sobre o assunto (lex generalis ou lex specialis). Portanto, posterior
derogat
pode-se priori
existência
de
(Cf.,
propósito,
a
densidade
primordialmente, antigo
pelo
afirmar pressupõe,
normativa
Ipsen,
orientado
direito
que
princípio
lex
fundamentalmente,
idêntica
cit.,
p.
para
a
(Cf.
Ipsen,
novo
o
ou
semelhante
164),
substituição cit.,
a
estando, do
p.
direito 165).
A
Constituição não se destina, todavia, a substituir normas do direito ordinário (Cf. Ipsen, cit., p. 165). Vale registrar, a propósito, o magistério de Ipsen sobre o tema:
“As
regras
de
colisão
da
ordem
jurídica não representam juízos lógicos a priori,
mas
normas
outras
regras
aplicação,
que,
de
juntamente
interpretação
podem
ser
‘direito
designadas
de
com
e
de como
aplicação’
(Rechtsanwendungsrecht). Sua contingência histórica vezes.
já
O
ressaltada
postulado
fruto
do
constitucional, lex
foi
posterior
pensamento
da
lex
superior
moderno enquanto é
jurídico
inúmeras é
pensamento o
princípio
conseqüência racional.
(...).
da do A
lei posterior pode ser, simultaneamente, uma lei geral, o que permite indagar se a lei especial ou a lei posterior há de ter
396
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
a primazia. Esses problemas de aplicação do Direito não se deixam solver de forma abstrata;
(...).
Tem-se,
assim,
que
a
regra sobre a força derrogatória da lex posterior
refere-se
a
uma
constelação
totalmente diferente daquela pertinente à supremacia do postulado da lex superior. Questão relativa à aplicação da lex prior ou da lex posterior somente pode surgir
no
caso
de
normas
de
idêntica
densidade normativa. Se duas leis, para situações
idênticas,
conseqüências
determinarem
diversas,
estará
o
aplicador do Direito diante do problema sobre a aplicação da lei ‘A’ ou da lei ‘B’, se o conflito não puder ser solvido mediante
interpretação
(redução
teleológica ou extensão). A decisão não fica ao seu alvedrio, devendo, segundo o postulado
da
lex
aplicar
a
lei
questão
segundo
posterior,
anterior os
e
deixar decidir
parâmetros
da
de a lei
posterior. Outra é a situação quando se tem um conflito
entre
lei
e
Constituição.
A
Constituição estabelece, freqüentemente – seja
nos
direitos
fundamentais,
princípios
constitucionais
disposições
programáticas
assertivas
gerais
que
ou –,
nos nas
apenas reclamam
concretização para que possam desenvolver
397
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
eficácia normativa. Se o juiz ou outro aplicador chegar à conclusão de que a lei contraria a Constituição, não poderá ele aplicar,
indiscriminadamente,
Constituição que,
a
em
lugar
despeito
dificilmente
de
se
da
lei,
uma
qualquer
logra
a vez
esforço,
extrair
da
Constituição uma regulação positiva sobre situações específicas. (...). Enquanto a regra de colisão relativa à lex posterior pressupõe idêntica
duas
leis
densidade
contraditórias
normativa,
surge
de na
contradição entre a lei e a Constituição um déficit normativo: a lex superior não logra
colmatar
surgidas. passo:
(...).
Quando
normas
diretamente
de
se
Pode-se cuidar
diferente
as
lacunas
avançar
de
um
colisão
de
hierarquia,
o
princípio da lex superior afasta outras regras de colisão. A utilização de uma ou de outra regra de colisão poderia levar ao
absurdo
de
permitir
que
ordinária
–
enquanto
lei
posterior
–
afastasse
a
Constituição
enquanto
lei
a
lei
especial
ou
incidência
da
geral
ou
lex
sustentada
por
”
prior (Ipsen, cit., pp. 162-164).
Conclusão
bastante
semelhante
foi
Castro Nunes já nos idos de 1943:
“Não contesto que a incompatibilidade se
398
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
resolve
numa
revogação,
o
que
resulta
da
anterioridade da norma. Mas perde-se de vista o outro elemento, a diversidade hierárquica das normas. A
teoria
da
ab-rogação
das
leis
supõe
normas da mesma autoridade. Quando se diz que a
lei
posterior
revoga,
ainda
que
tacitamente, a anterior, supõem-se no cotejo leis do mesmo nível. Mas se a questão está em saber se uma norma pode continuar a viger em face
das
regras
Constituição,
a
ou
princípios
solução
de
negativa
uma
só
é
revogação
por efeito daquela anterioridade;
mas
uma
tem
designação
peculiar
a
esse
desnível das normas, chama-se declaração de inconstitucionalidade.” (Teoria e Prática do Poder Judiciário, pp. 602-603).
Assim, há de se partir do princípio de que, em caso de colisão de normas de diferente hierarquia, o postulado da lex
superior
cit.,
p.
afasta
164).
outras
Do
regras
contrário
de
colisão
chegar-se-ia
(Cf. ao
Ipsen,
absurdo,
destacado por Ipsen, de que a lei ordinária, enquanto lei especial
ou
lex
posterior,
pudesse
afastar
a
norma
constitucional enquanto lex generalis ou lex prior (Cf., a propósito, Ipsen, cit., p. 164). Um último argumento – não trazido à baila pelos defensores da tese que equipara, sob o prisma conceitual, a incompatibilidade originária ou superveniente da lei com a Constituição
–
extrai-se
das
regras
disciplinadoras
recurso extraordinário no Direito Brasileiro.
399
do
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Nos termos do art. 102, III, “a”, “b” e “c”, da Constituição, admitido
o
recurso
quando
dispositivo
a
extraordinário
decisão
desta
somente
recorrida:
Constituição;
poderá
a)
b)
ser
contrariar
declarar
a
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. Embora a doutrina e a jurisprudência não tenham dúvida em afirmar o cabimento de recurso extraordinário, se se
assevera
a
inconstitucionalidade
Constituições
anteriores,
parece
da
lei
em
inequívoco
face
de
que
o
constituinte concebeu esse instituto, fundamentalmente, para a defesa da Constituição atual. Tanto é que nos casos das alíneas
“a”
e
“c”
do
art.
102,
III,
estabelece-se,
expressamente, que o recurso será cabível quando a decisão contrariar a Constituição ou quando julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. É
fácil
contrariedade
a
ver esta
que
o
constituinte
Constituição,
em
não
concebeu
qualquer
de
a
suas
formas, inclusive no que concerne à aplicação de leis préconstitucionais,
como
simples
questão
de
direito
intertemporal, pois do contrário despiciendo seria o recurso extraordinário. Da mesma forma, afirmar a validade de lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição não parece traduzir juízo de mera compatibilidade entre o direito ordinário e a Constituição, tendo em vista também o postulado da lex posterior. Essa
conclusão
resulta
ainda
mais
evidente
da
cláusula contida no art. 102, III, “b”, que admite o recurso extraordinário
contra
decisão
que
declarar
a
inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal. Significa
400
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
dizer que qualquer juízo sobre a incompatibilidade entre a lei federal ou o tratado pré-constitucional e a Constituição atual levado a efeito pela instância a quo é valorado pela Constituição como declaração de inconstitucionalidade, dando ensejo, por isso, ao recurso extraordinário. Tais reflexões permitem afirmar que, para os fins de
controle
âmbito
do
de
constitucionalidade
recurso
extraordinário,
incidenter não
tantum
assume
no
qualquer
relevância o momento da edição da lei, configurando eventual contrariedade
à
Constituição
atual
questão
de
constitucionalidade, e não de mero conflito de normas a se resolver com aplicação do princípio da lex posterior. Diante de todos esses argumentos e considerando a razoabilidade e o significado para a segurança jurídica da tese que recomenda a extensão do controle abstrato de normas também
ao
direito
pré-constitucional,
não
se
afiguraria
despropositado cogitar da revisão da jurisprudência do STF sobre a matéria. A
questão o
ganhou,
porém,
novos
contornos
com
a
aprovação da Lei n
9.882, de 1999, que disciplina a argüição
de
de
descumprimento
preceito
fundamental
e
estabelece,
expressamente, a possibilidade de exame da compatibilidade do direito pré-constitucional com norma da Constituição Federal. Assim,
toda
vez
que
se
configurar
controvérsia
relevante sobre a legitimidade do direito federal, estadual ou municipal, anteriores à Constituição, em face de preceito fundamental da Constituição, poderá qualquer dos legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade propor argüição de descumprimento. Também
essa
solução
401
vem
colmatar
uma
lacuna
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que
controvérsias
relevantes
afetas
ao
direito
pré-
constitucional sejam solvidas pelo STF com eficácia geral e efeito vinculante. No
caso
presente,
cuida-se
de
norma
de
direito
federal editada em 1940, anterior, portanto, à Constituição de 1988, e que com esta se teria tornado incompatível em virtude
da
conforme
ofensa
apontado
aos pela
seguintes entidade
preceitos
requerente:
fundamentais, “princípio
da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV), um dos fundamentos da
República
brasileira;
a
cláusula
geral
da
liberdade,
extraída do princípio da legalidade (art. 5º, II), direito fundamental
previsto
no
Capítulo
dedicado
aos
direitos
individuais e coletivos; e o direito à saúde (arts. 6º e 196),
contemplado
no
Capítulo
dos
direitos
sociais
e
reiterado no Título reservado à ordem social.” Considerado constitucional,
fato
também
é
da
norma
impugnada
evidente,
nesse
ser ponto,
préa
admissibilidade da ação.
Claúsula da subsidiariedade
O desenvolvimento do instituto da inexistência de outro
meio
eficaz,
ou
o
princípio
da
subsidiariedade,
dependerá da interpretação que o STF venha a dar à lei. A esse respeito, destaque-se que a Lei no 9.882, de 1999, impõe que
a
argüição
de
descumprimento
de
preceito
fundamental
somente será admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4o, § 1o). À primeira vista poderia parecer que somente na
402
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
hipótese
de
absoluta
inexistência
de
qualquer
outro
meio
eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma
útil,
a
fundamental.
É
argüição fácil
de
ver
descumprimento
que
uma
de
leitura
preceito
excessivamente
literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio
da
subsidiariedade
vigente
no
direito
alemão
(recurso constitucional) e no direito espanhol (recurso de amparo),
acabaria
por
retirar
desse
instituto
qualquer
significado prático. De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém,
que
preceito enfoque
na
análise
fundamental objetivo
ou
sobre
nesse de
a
eficácia
proteção
de
deve
predominar
um
ordem
constitucional
processo
proteção
da
da
objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão –, contido no § 1o do art. 4o da Lei no 9.882, de 1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Nesse
sentido,
enfaticamente
objetivo
inclusive,
legitimação
lesão
da
parece
ser
se do
aquele
se
considera
instituto
ativa), apto
a
meio
(o
o que
eficaz de
solver
a
caráter resulta, sanar
a
controvérsia
constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. No direito alemão a Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional) está submetida ao dever de exaurimento das instâncias ordinárias. Todavia, a Corte Constitucional pode decidir de imediato um recurso constitucional se se mostrar que a questão é de interesse geral ou se demonstrado que o requerente poderia sofrer grave lesão caso recorresse à via
403
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
ordinária (Lei Orgânica do Tribunal, § 90, II). Como se vê, a ressalva constante da parte final do §
90,
II,
confere
da
ampla
Lei
Orgânica
da
Corte
discricionariedade
Constitucional
tanto
para
alemã
conhecer
das
questões fundadas no interesse geral (allgemeine Bedeutung), quanto daquelas controvérsias baseadas no perigo iminente de grave lesão (schwerer Nachteil). Assim, recurso
tem
o
Tribunal
constitucional,
na
Constitucional
forma
antecipada,
admitido em
o
matéria
tributária, tendo em vista o reflexo direto da decisão sobre inúmeras
situações
BVerfGE
62/338
homogêneas
(342);
v.
Bundesverfassungsgericht,
(Cf.
BVerfGE
também
a
ed.,
4
19/268
Klaus
1997,
(273);
Schlaich,
p.
162).
A
Das Corte
considerou igualmente relevante a apreciação de controvérsia sobre publicidade oficial, tendo em vista o seu significado para
todos
os
partícipes,
ativos e
passivos,
do
processo
eleitoral (Cf. BVerfGE 62/230 (232); BVerfGE 62/117 (144); Schlaich,
cit.,
p.
constitucionalidade revelado interesse
162). de
enfática: geral
a
No
que
normas,
a
“apresenta-se, verificação
concerne posição
ao da
controle Corte
regularmente,
sobre
se
uma
tem-se
como
norma
de
de
legal
relevante para uma decisão judicial é inconstitucional” (Cf. BVerfGE 91/93 (106)). No direito espanhol explicita-se que cabe o recurso de amparo contra ato judicial desde que “se hayan agotado todos los recursos utilizables dentro de la vía recursal” (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, art. 44, I). Não obstante, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que, para os fins da exaustão das instâncias ordinárias, “não é necessária a interposição de todos os recursos possíveis, senão de todos os recursos razoavelmente úteis” (Cf. José
404
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Almagro,
Justicia
Constitucional,
Comentarios
Orgánica del Tribunal Constitucional, 2
a
a
la
Ley
ed., Valência, 1989,
p. 324). Nessa
linha
de
entendimento
anotou
o
Tribunal
Constitucional Espanhol: “Al haberse manifestado en este caso la voluntad del órgano jurisdicional sobre el mismo fondo de la cuestión planteada, há de entenderse que la finalidad del requisito exigido en el art. 44, 1, ‘a’, de la LOTC se há cumplido,
pues
el recurso
hubiera
sido
en
cualquier
caso
ineficaz para reparar la supuesta vulneración del derecho constitucional Almagro,
conocido”
Justicia
(auto
de
11.2.81,
Constitucional,
n.
19)
Comentarios
a
la
(Cf. Ley
Orgánica del Tribunal Constitucional, p. 325). Anote-se que, na espécie, os recorrentes haviam interposto o recurso fora do prazo. Vê-se, assim, que também no direito espanhol tem-se atenuado
o
significado
literal
do
princípio
da
subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias ordinárias, até
porque,
em
muitos
casos,
o
prosseguimento
nas
vias
ordinárias não teria efeitos úteis para afastar a lesão a direitos fundamentais. Observe-se, ainda, que a legitimação outorgada ao Ministério
Público
e
ao
Defensor
do
Povo
para
manejar
o
recurso de amparo reforça, no sistema espanhol, o caráter objetivo desse processo. Tendo transcreve
em
observação
vista de
o
direito
antigo
alemão,
Ministro
da
Schlaich
Justiça
da
Prússia segundo a qual “o recurso de nulidade era proposto pelas partes, porém com objetivo de evitar o surgimento ou a aplicação
de
princípios
jurídicos
incorretos”
(Schlaich,
cit., p. 184). Em relação ao recurso constitucional moderno,
405
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
movido contra decisões judiciais, anota Schlaich: “essa deve ser também a tarefa principal da Corte Constitucional com referência numerosos contra
aos e
direitos
relevantes
decisões
tribunais
fundamentais, recursos
judiciais:
logrem
uma
tendo
em
constitucionais
contribuir
realização
para
ótima
vista
os
propostos
que
dos
outros direitos
fundamentais” (Idem, ibidem). Em verdade, o princípio da subsidiariedade, ou do exaurimento
das
instâncias,
atua
também
nos
sistemas
que
conferem ao indivíduo afetado o direito de impugnar a decisão judicial, como um pressuposto de admissibilidade de índole objetiva,
destinado,
fundamentalmente,
a
impedir
a
banalização da atividade de jurisdição constitucional (Cf., a propósito,
Zuck,
Rüdiger,
Das
Recht
der
Verfassungsbeschwerde, 2.ed. Munique,1988, pp. 13 e ss.). No caso brasileiro o pleito a ser formulado pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará – pelo menos de
forma
posições
direta
–
sobre
específicas
por
a
proteção
eles
judicial
defendidas.
A
efetiva
exceção
de
mais
expressiva reside talvez na possibilidade de o ProcuradorGeral
da
República,
como
previsto
expressamente
no
texto
legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a argüição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista
a
proteção
ajuizamento muito
da
de
ação
situação e
provavelmente,
a
sua
ao
específica.
Ainda
admissão
estarão
significado
da
assim
o
vinculados, solução
da
controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo, e não à proteção judicial efetiva de uma situação singular. Assim, objetivo
da
tendo
argüição
em de
vista
o
caráter
descumprimento,
acentuadamente o
juízo
de
subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais
406
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
processos
objetivos
constitucional.
Nesse
inconstitucionalidade admissível
já
a
consolidados
caso, ou
de
argüição
de
cabível
a
no
sistema
ação
direta
constitucionalidade, descumprimento.
não
Em
de será
sentido
contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade – isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata
–,
há
de
se
entender
possível
a
utilização
da
argüição de descumprimento de preceito fundamental. É relativos
o ao
que
ocorre,
controle
de
fundamentalmente, legitimidade
do
nos
casos
direito
pré-
constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em
face
do
não-cabimento
da
ação
direta
de
inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento. Também descumprimento
é
possível
com
que
se
pretensão
apresente
de
ver
argüição declarada
de a
constitucionalidade de lei estadual ou municipal que tenha sua legitimidade questionada nas instâncias inferiores. Tendo em
vista
o
objeto
restrito
da
ação
declaratória
de
constitucionalidade, não se vislumbra aqui meio eficaz para solver,
de
forma
ampla,
geral
e
imediata,
eventual
controvérsia instaurada. A própria aplicação do princípio da subsidiariedade está a indicar que a argüição de descumprimento há de ser aceita
nos
Constituição decorrente
casos – de
que
envolvam
alegação
de
decisão
judicial
a
aplicação
contrariedade
407
ou
à
direta
da
Constituição
controvérsia
sobre
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
interpretação adotada pelo Judiciário - que não envolva a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional. Da mesma forma, controvérsias concretas fundadas na eventual inconstitucionalidade de lei ou ato normativo podem dar ensejo a uma pletora de demandas, insolúveis no âmbito dos processos objetivos. Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a
utilização
da
argüição
de
descumprimento
de
preceito
fundamental. Até porque o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva. Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia
constitucional,
aplicável
argüição
a
de
afigura-se descumprimento
integralmente de
preceito
fundamental. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver
a
controvérsia
constitucional
de
forma
geral,
definitiva e imediata. A necessidade de interposição de uma pletora
de
recursos
extraordinários
idênticos
poderá,
em
verdade, constituir-se em ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias. A propósito, assinalou Sepúlveda Pertence, na ADC n
o
1 (ADC 1/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 1.12.93, DJU
16.6.95),
que
a
convivência
entre
o
sistema
difuso
e
o
sistema concentrado “não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que
será
sobretudo
inevitável nos
o
processos
reforço de
do
massa;
sistema na
concentrado,
multiplicidade
de
processos a que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação,
sobretudo
da
legislação
408
tributária
e
matérias
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
próximas,
levará
se
não
se
criam
mecanismos
eficazes
de
decisão relativamente rápida e uniforme, ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação
e,
progressivamente,
ao
maior
descrédito
da
Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito”. A possibilidade de incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos
órgãos
pode
configurar
uma
ameaça
a
preceito
fundamental (pelo menos, ao da segurança jurídica), o que também
está
a
recomendar
uma
leitura
compreensiva
da
exigência aposta à lei da argüição, de modo a admitir a propositura
da
ação
especial
toda
vez
que
uma
definição
imediata da controvérsia mostrar-se necessária para afastar aplicações
erráticas,
tumultuárias
ou
incongruentes,
que
comprometam gravemente o princípio da segurança jurídica e a própria idéia de prestação judicial efetiva. Ademais, a ausência de definição da controvérsia – ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais – poderá ser a concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula, que tem a missão de guarda da Constituição, a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituir-se, por si só, em uma ameaça ao princípio
constitucional
da
segurança
jurídica
e,
por
conseguinte, em uma autêntica lesão a preceito fundamental. Assim, tendo em vista o perfil objetivo da argüição de
descumprimento,
poder-se-á
legitimação
vislumbrar
subsidiariedade ordinárias
com
ou
entre
uma o
novel
convencionais
409
diversa,
autêntica instituto de
dificilmente relação e
as
controle
de formas de
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
constitucionalidade
do
fundamentalmente,
uso
no
sistema do
difuso,
recurso
expressas,
extraordinário
e
de
outros meios. Como se vê, ainda que aparentemente pudesse ser o recurso
extraordinário
o
meio
eficaz
de
superar
eventual
lesão a preceito fundamental nessas situações, na prática, especialmente instituto
nos do
processos
de
massa,
sistema
difuso
a
utilização
de
desse
controle
de
constitucionalidade não se revela plenamente eficaz, em razão do limitado efeito do julgado nele proferido (decisão com efeito entre as partes). Assim
sendo,
é
possível
concluir
que
a
simples
existência de ações ou de outros recursos processuais – vias processuais
ordinárias
–
não
poderá
servir
de
óbice
à
formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicitado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, as mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia. Essa
leitura
compreensiva
da
cláusula
da
subsidiariedade contida no art. 4o, § 1o, da Lei no 9.882, de 1999, parece solver, com superioridade, a controvérsia em torno
da
aplicação
do
princípio
do
exaurimento
das
instâncias. É fácil ver também que a fórmula da relevância do interesse público para justificar a admissão da argüição de descumprimento (explícita no modelo alemão) está implícita no sistema criado pelo legislador brasileiro, tendo em vista especialmente o caráter marcadamente objetivo que se conferiu ao instituto.
410
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Assim, o Tribunal poderá conhecer da argüição de descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica restar
seriamente
ameaçado,
especialmente
em
razão
de
conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional. Com essas considerações, o julgamento do Plenário na ADPF 33 restou assim ementado:
“Argüição
de
Descumprimento
de
Preceito
Fundamental - ADPF. Medida Cautelar. 2. Ato regulamentar.
Autarquia
estadual.
Instituto
de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará IDESP. Remuneração de pessoal. Vinculação do quadro
de
salários
ao
salário
mínimo.
3.
Norma não recepcionada pela Constituição de 1988. Afronta ao princípio federativo e ao direito social fundamental ao salário mínimo digno
(arts.
7º,
inciso
IV,
1º
e
18
da
Constituição). 4. Medida liminar para impedir o
comprometimento
da
ordem
jurídica
e
das
finanças do Estado. 5. Preceito Fundamental: parâmetro de controle a indicar os preceitos fundamentais
passíveis
justifiquem argüição
o
de
processo
e
de
lesão
que
o
julgamento
da
Direitos
e
descumprimento.
garantias
individuais,
princípios
sensíveis:
cláusulas sua
pétreas,
interpretação,
vinculação com outros princípios e garantia de
eternidade.
significado
Densidade
específico
normativa dos
ou
princípios
fundamentais. 6. Direito pré-constitucional.
411
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Cláusulas
de
recepção
da
Constituição.
Derrogação do direito pré-constitucional em virtude
de
colisão
Constituição comparado:
entre
este
superveniente. desenvolvimento
e
a
Direito
da
jurisdição
constitucional e tratamento diferenciado em cada sistema jurídico. A Lei nº 9.882, de 1999,
e
normas
a ao
extensão
do
controle
direto
direito
pré-constitucional.
de 7.
Cláusula da subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias. Inexistência de outro meio eficaz
para
sanar
lesão
a
preceito
fundamental de forma ampla, geral e imediata. Caráter objetivo do instituto a revelar como meio
eficaz
aquele
controvérsia
apto
a
constitucional
solver
a
relevante.
Compreensão do princípio no contexto da ordem constitucional significado
global. literal
subsidiariedade
Atenuação
do
quando
o
do
princípio
da
prosseguimento
de
ações nas vias ordinárias não se mostra apto para afastar a lesão a preceito fundamental. 8.
Plausibilidade
da
medida
cautelar
solicitada. 9. Cautelar confirmada.”
No
caso
específico,
é
patente
a
relevância
e
a
transcendência da discussão constitucional, que não pode ser transferida às vias processuais ordinárias. Também não se vislumbra, no caso, outro mecanismo de controle concentrado apto a trazer a discussão a esta Corte.
412
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Penso, portanto, que se faz presente o requisito da subsidiariedade. Nesses
termos,
entendo
estarem
presentes
os
pressupostos de admissibilidade para que o Supremo Tribunal Federal conheça a presente ADPF.
Ainda algumas considerações
Para os que ainda não se convenceram do cabimento da ADPF na espécie, há de se indagar: como agiria o Supremo Tribunal Federal se se deparasse com um habeas corpus em um caso como o presente? Essa situação já foi colocada perante esta Corte no HC
84.025,
da
relatoria
do
Min.
Joaquim
Barbosa,
que,
todavia, restou prejudicado, em razão do nascimento seguido de morte do bebê anencéfalo. Isso só reforça que, ainda que cabível o habeas corpus proposto perante o Supremo Tribunal Federal, este não será a via mais adequada, pois até chegar a esta instância, em geral, a gravidez já estará num estágio tão avançado que não será recomendável a sua interrupção. Mas continuemos a desenvolver o raciocínio! Caso
a
criança
não
tivesse
nascido,
o
Tribunal
poderia escusar-se de julgar o writ? Parece-me admissível,
no
que
caso,
não, como
por
ser
instrumento
liberdade individual.
413
o
habeas de
corpus
proteção
da
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
Cabível o habeas corpus, teríamos duas situações possíveis: a autorização ou não da interrupção da gravidez. Se o Tribunal autoriza, que norma permissiva ele estará a invocar para admitir a interrupção da gravidez? Com certeza, estará reconhecendo, em sede de habeas corpus, ainda que não o faça expressamente, uma nova causa excludente
da
ilicitude
inaplicabilidade
à
implícita
espécie
do
art.
ao
art.
124,
128,
ambos
do
ou
a
Código
Penal. Se o Tribunal proíbe a interrupção da gravidez na espécie,
há
de
admitir
a
constitucionalidade
da
fórmula
legislativa pela não inclusão do aborto de feto anencefálico. Não teria essa decisão o efeito de generalização do entendimento perante o Poder Judiciário e, eventualmente, a Administração? A resposta há que ser afirmativa. Atualmente o Plenário está julgando o HC 82.959, sobre a vedação à progressão de regime nos crimes hediondos, cuja
decisão,
certamente,
ultrapassará
os
limites
daquele
caso concreto. Tal
como
afirmado
no
voto
do
Ministro
Carlos
Velloso, no HC 76.946, é perfeitamente admissível a argüição de inconstitucionalidade em habeas corpus. Naquela assentada apontou o Ministro vários habeas corpus em que se discutiu a constitucionalidade
de
norma
legal:
HC
71.713,
Rel.
Min.
Sepúlveda Pertence, DJ 04.11.94, HC 72.930, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 15.03.96; HC 69.921, Rel. Min. Celso de Mello, RTJ 147/235; HC 74.761, Rel. Min. Maurício Corrêa, RTJ 162/688; HC 72.582, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 20.10.95 e HC 74.983, Rel. Min. Carlos Velloso, RTJ 163/1083.
414
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
O exigência
Plenário legal
do
está
julgando
recolhimento
a
à
RCL
2.391,
prisão,
sobre
cuja
a
decisão
igualmente terá efeitos além da situação específica. Se tal é possível em habeas corpus, em reclamação ou em outras ações individuais, por que não o será em ADPF? Não há, portanto, como negar a possibilidade de, via ADPF, aferir-se a legitimidade ou não da interrupção da gravidez em semelhantes casos. Aqui
pode-se
afirmar,
com
segurança,
que
a
admissibilidade de ações individuais, como o habeas corpus, na espécie, torna inquestionável o cabimento da ADPF no caso em apreço. Com
efeito,
a
própria
Lei
nº
9.882,
a
ação,
de
1999,
dispõe, no caput do art. 10:
“Art.
10.
Julgada
comunicação
às
responsáveis
autoridades
pela
questionados,
prática
fixando-se
as
far-se-á
ou
órgãos
dos
condições
atos e
o
modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.”
Nesses
termos,
o
meu
voto
é
pelo
cabimento
da
presente argüição de descumprimento de preceito fundamental.
415
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes
ACÓRDÃOS PENDENTES DE PUBLICAÇÃO ADPF 76/TO, Gilmar Mendes, pendente de publicação
ADPF 76/TO Arquivada ADPF contra nomeações no TJ/TO
O ministro Gilmar Mendes determinou o arquivamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 76, ajuizada pelo Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A OAB queria que o Supremo determinasse o cumprimento do artigo 94 da Constituição Federal. Esse artigo dispõe sobre a reserva de um quinto das vagas nos tribunais estaduais para representantes dos advogados ou membros do Ministério Público. Segundo a OAB, o Tribunal de Justiça de Tocantins teria violado a previsão do “quinto constitucional” na nomeação de dois desembargadores. Na ação, pedia a suspensão dos atos de nomeação e que o Supremo permitisse que a instituição elaborasse uma lista sêxtupla. Ao determinar o arquivamento, o ministro Gilmar Mendes, relator da ADPF, sustentou que, de acordo com a jurisprudência do Supremo, a OAB poderia impetrar um mandado de segurança ou outro meio judicial cabível. Segundo o ministro, a ADPF “não pode ser utilizada para suprir inércia ou omissão de eventual interessado”. Afirma ainda Gilmar Mendes que seria possível admitir, em tese, que a ADPF fosse proposta contra ato do poder Público, “nas hipóteses em que, em razão da relevância da matéria, a adoção da via ordinária acarrete danos de difícil reparação à ordem jurídica”. No caso, diz o relator, é evidente a falta de relevância jurídica para a instauração da ADPF Despacho DECISÃO: Trata-se do pedido de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 76-TO, ajuizado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. A ADPF funda-se em suposta violação, pelo Tribunal de Justiça do Estado de Tocantins (TJTO), da previsão do "quinto constitucional" constante do art. 94 e parágrafo único, da Constituição Federal, e do art. 47, inciso II, da Constituição tocantinense. A inicial (fls. 2-21) narra que: "2.1.1 Quando o Tribunal de Justiça do Tocantins se instalou, contava com (07) Desembargadores, dentre os quais, segundo os critérios de provimento então adotados, abrigava dois integrantes do quinto Constitucional, no caso, os Desembargadores Antonio Felix Gonçalves e Amado Cilton Rosa, representantes dos Advogados e do Ministério Público, respectivamente. 2.1.2 Outrossim com o advento da Lei Complementar n. 16, de 13 de novembro de 1998, foram criadas quatro (04) vagas, as quais foram destinadas somente a integrantes da magistratura, passando, contudo, de sete (07) Desembargadores para onze (11) a composição do Tribunal de Justiça do Tocantins, sendo o Desembargador Luiz Aparecido Gadotti, o décimo primeiro nomeado, o qual exercia a função de Juiz de
416
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes Direito na comarca de Colinas do Tocantins. 2.1.3. A nomeação do Desembargado Luiz Aparecido Gadotti foi respaldada no parágrafo único do artigo 75, da Lei Orgânica da Magistratura Tocantinense (Lei Complementar n. 10/1.996), a qual permitia que o Juiz de Direito que figurasse dentro do quinto das vagas existentes na 3ª. Entrância pudesse concorrer ao Tribunal. Antes, poderiam figurar na lista apenas os que estivessem no quinto das vagas ocupadas, e não das existentes. 2.1.4 Embora o Magistrado Luiz Aparecido Gadotti estivesse fora do quinto convencional (ou seja, entre os 20% dos juízes de 3ª Entrância em atividade) foi contemplado nesse chamado 'quinto fictício'. Essa situação, levou a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) a ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.970/99, questionando a constitucionalidade do parágrafo único do art. 75, da Lei Orgânica da Magistratura Tocantinense (Lei Complementar n. 10, de 11 de janeiro de 1996). 2.1.5. O Relator da multicidada Ação Direta de Inconstitucionalidade - Ministro Nelson Jobim -, após ouvir a Assembléia Legislativa e o Governador do Estado do Tocantins, levou o assunto ao Plenário, e o Supremo Tribunal Federal, em 1º de julho de 1999, por unanimidade, deferiu o pedido de liminar, para suspender, até decisão final da ação direta, a eficácia do parágrafo único do art. 75, da Lei Complementar n. 10, de 11/1/1996, com a redação dada pelo art. 1º, da Lei Complementar n. 16, de 13/11/1998. (...) 2.1.7 ... . Neste meio tempo, foi revogada a Lei que acrescentara o parágrafo único ao art. 75 da Lei Complementar n. 10, e o Presidente da Assembléia Legislativa comunicou o fato ao Supremo Tribunal Federal, requerendo que não fosse julgado o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade, requerimento esse acatado pelo Ministro Relator, pois o pedido estava prejudicado por perda de objeto (a Lei questionada não existia mais)." (fls. 6/9) (...) [E continua, a argüente:] 2.3.1 Até a vigência da Lei Complementar Estadual nº 34/2002, o quadro do egrégio Tribunal de Justiça do Tocantins manteve-se com onze (11) Desembargadores. Com o advento da referida Lei Complementar foi criada nova vaga, desaguando no provimento da 3ª vaga pelo quinto constitucional. (...) 2.3.3 O Tribunal de Justiça do Tocantins, por ato arbitrário e informal da sua Presidência (anexo IV) em 11/11/02, 'deu' ao MPE a 12ª vaga da Lei Complementar nº 34, com a qual alcançou doze (12) integrantes. Também informalmente, isto é, sem convocação e sem candidaturas, conforme registro da ata própria, em 12.11.02, portanto em um dia, o MP fez a lista sêxtupla que resultou na nomeação da Procuradora Geral da Justiça, Jacqueline Adorno de La Cruz Barbosa, em 14/11/02, por ato do Governador do Estado do Tocantins, este aqui também questionado." (fls. 10-11). Em primeiro lugar, cabe esclarecer que a nomeação do Desembargador LUIZ APARECIDO GADOTTI foi realizada com base no parágrafo único, do art. 75, da Lei Orgânica da Magistratura Tocantinense (Lei Complementar Estadual no 10-TO, de 11 de janeiro de 1996, com a redação dada pelo art. 1o, da Lei Complementar Estadual no 16-TO, de 13 de novembro de 1998). Relativamente à referida Lei Orgânica, em 18 de março 1999, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.970-TO, Rel. Min. Nelson Jobim. Na espécie questionava-se a constitucionalidade do parágrafo único, do art. 75, na redação conferida pela Lei Complementar no 16/1998TO, sob o fundamento de que o dispositivo violaria o art. 93, II, b, da CF ("a promoção por merecimento pressupõe dois anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte da lista de antigüidade desta, salvo se não houver com tais requisitos quem aceite o lugar vago;") O Plenário deste Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, em sessão de 1o de julho 1999, deferiu o pedido de liminar para suspender, até decisão final da ação direta, a vigência do parágrafo único, do art. 75, da Lei Complementar no 10/1996-TO, com a redação dada pelo art. 1o, da Lei Complementar no 16/1998-TO. Eis o teor da ementa: "EMENTA: AÇÃO DIRETA DE
417
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes INCONSTITUCIONALIDADE. MAGISTRATURA. PROMOÇÃO POR MERECIMENTO. CARACTERIZADA A PERTINÊNCIA TEMÁTICA DA REQUERENTE. CRITÉRIO ESTABELECIDO NA LEI QUE VIOLA O ART. 93 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RISCO NA DEMORA. LIMINAR DEFERIDA." (ADI nO 1.970-TO, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 18.02.2000) Na ocasião do deferimento da liminar, manifestou-se o Eminente Min. Relator, Min. Nelson Jobim, no seguinte sentido: "Leio, na inicial a determinação de considerar-se o número total dos cargos para cálculo de primeira quinta parte da lista de antigüidade, vai de encontro ao que dispõe o artigo 93, II, b, da Constituição da República (aplicável aos casos de acesso aos tribunais de segundo grau, por força do inciso III do mesmo artigo), que apenas se refere a lista de antigüidade dos juizes que integram a entrância: ... a Constituição ... não se refere ao total de cargos na entrância, mas apenas a lista de antigüidade, que ... é composta ... pelos Magistrados com exercício na entrância e não pelos cargos, ocupados ou vagos, que ela possa comportar. 'Lista de antigüidade, por significar relação de pessoas (Aurélio, Novo Dicionário), não pode relacionar-se ao número de cargos, mas sim ao número de Magistrados na entrância. Em verdade, o vocábulo lista, no caso, 'é empregado na terminologia jurídica para exprimir toda relação, rol ou catálogo de coisas ou de pessoas, que aí se anotam ou se inscrevem para a satisfação de uma regra ou exigência legal' (Vocabulário Jurídico, De Plácido e Silva, p. 99). Tem-se, portanto, que em hipótese nenhuma lista de antigüidade pode confundir-se com número de cargos" (fls. 3/4) O precedente referido nas informações (Adin 189) não tratou da questão. Reconheceu-se, por maioria, a inconstitucionalidade de regra de Resolução do Tribunal Carioca relativa à 'utilização do critério de ordem temporal (antigüidade na entrância) como fator de desempate nas promoções por merecimento'. Concede-se liminar havendo robusta plausibilidade do direito alegado. É o caso. O risco pela mora é evidente. Poderá haver promoções com base na regra atacada. Concedo a liminar. Suspendo a eficácia do parágrafo único do artigo 75 da Lei Complementar n° 10, de 11/01/96, com a redação da LC n° 16, de 13/11/98, do Estado do Tocantins." Posteriormente, a Lei Complementar no 16/1998-TO foi revogada pela Lei Complementar Estadual no 26/2000-TO, de 20 de dezembro de 2000. Diante dessa revogação, o Ministro Relator, Min. Nelson Jobim, declarou o prejuízo do pedido da ADI no 1.970-TO por perda superveniente de objeto, em decisão monocrática de 04.03.2001 (DJ de 27.04.2001). Eis o teor do referido ato decisório: "1. Os Fatos. A Associação dos Magistrados Brasileiros propôs a presente ação para que fosse declarada a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 75 da LC 10/96, com a redação dada pelo art. 1º da LC 16/98, ambas do Estado do Tocantins. Transcrevo: 'Art. 75. .............................. Parágrafo único. Na promoção pelo critério de merecimento, para a fixação da primeira quinta parte da lista de antigüidade, considerar-se-á o número total de cargos da entrância.' Em sessão plenária de 01 de julho de 1999, este Tribunal: '... por unanimidade, deferiu o pedido de medida liminar, para suspender, até a decisão final da ação direta, a eficácia do parágrafo único do art. 75 da Lei Complementar nº 10, de 11/01/1996, com a redação dada pelo art. 1º da LC nº 16, de 13/11/1998, ambas do Estado de Tocantins...' (fls. 187). O acórdão foi publicado em 18 de fevereiro de 2000. A Requerida, Assembléia Legislativa do Estado do Tocantins, traz aos autos Diário Oficial daquele Estado, de 20 de dezembro de 2000. Nele foi publicada a Lei Complementar nº 26/2000. 'Art. 3º. Revoga-se o parágrafo único do artigo 75 da Lei Complementar 10, de 11 de janeiro de 1996' (fls. 208). Em face disso, requer que seja julgada prejudicada a presente ação. 2. Decido. A revogação ao texto questionado na presente ADIN foi expressa. Este Tribunal já se manifestou em casos semelhantes: '... ocorrendo a revogação superveniente da norma atacada em ação direta, esta perde o seu
418
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes objeto, independentemente de a referida norma ter, ou não, produzido efeitos concretos.' (ADI 2097, MOREIRA ALVES). 'REVOGAÇÃO DA LEI ARGÜIDA DE INCONSTITUCIONAL. Prejudicialidade da ação por perda do objeto. A revogação ulterior da lei questionada realiza, em si, a função jurídica constitucional reservada à ação direta de expungir do sistema jurídico a norma inquinada de inconstitucionalidade. EFEITOS concretos da lei revogada, durante sua vigência. Matéria que, por não constituir objeto da ação direta, deve ser remetida às vias ordinárias. A declaração em tese de lei que não mais existe, transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concretas. Ação direta que, tendo por objeto a Lei 9.048/89 do Estado do Paraná, revogada no curso da ação, se julga prejudicada.' (ADIMC 709, PAULO BROSSARD - GRIFO NOSSO). Ainda: ADI's 648 e 818, NERI DA SILVEIRA. Em face do exposto, julgo prejudicada a ação, por perda do objeto (RISTF, art. 21, §1º). Arquive-se. Uma vez esclarecida a situação legislativa relativa ao ato concreto de nomeação do Desembargador LUIZ APARECIDO GADOTTI, é necessário tecer outras considerações quanto à nomeação da Desembargadora JAQUELINE ADORNO DE LA CRUZ BARBOSA. Com a edição da Lei Complementar Estadual no 34-TO, de 5 de novembro de 2002, foi criada nova vaga no TJTO. Em princípio, a 3ª vaga deveria ser preenchida pelo quinto constitucional. Assim, tendo em vista a possibilidade da nomeação tanto de um representante da advocacia, como de representante do Ministério Público, o TJTO, por ato de sua Presidência, indicou para o Governador do Estado que a nomeação deveria ser realizada em favor do Parquet. Como resultado, o Governador nomeou a então Procuradora-Geral de Justiça e atual Desembargadora JAQUELINE ADORNO DE LA CRUZ BARBOSA. Com relação à impugnação judicial desse ato, a partir das informações e dados constantes da inicial, observo que não houve o ajuizamento de qualquer ação apta a discutir a legalidade desse segundo ato concreto de nomeação por parte da Ordem dos Advogados do Brasil ou de qualquer outra entidade legitimada para tanto. Configurada a situação concreta sob análise, passo à análise da admissibilidade do presente pedido. De acordo com os arts. 2o, I, da Lei no 9.882/1999, e 2o, VII, da Lei no 9.868/1999, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil é legitimado para propor a presente argüição de descumprimento de preceito fundamental. A presente ação impugna a regularidade da nomeação de dois desembargadores que, atualmente, compõem o TJTO: i) a do Desembargador LUIZ APARECIDO GADOTTI; e ii) a da Desembargadora JACQUELINE ADORNO DE LA CRUZ BARBOSA, pelo Governador do Estado de Tocantins. Considerada essa premissa, urge tecer algumas considerações sobre o cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Tal como a Lei no 9.868/1999, a Lei no 9.882/1999 estabelece que a petição inicial deve conter: a) a indicação do preceito fundamental que se considera violado; b) a indicação do ato questionado; c) a prova da violação do preceito fundamental; d) o pedido com suas especificações e, se for o caso; e) a demonstração da controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental questionado. O alegado preceito fundamental supostamente violado (item "a") é o disposto no art. 94 e parágrafo único, da Constituição Federal. O ato questionado, em síntese (item "b"), é a nomeação de dois desembargadores que, atualmente, compõem o Tribunal de Justiça de Tocantins: Desembargador Luiz Aparecido Gadotti e Desembargadora Jacqueline Adorno de La Cruz Barbosa. Conforme já afirmado, o preceito fundamental alegadamente violado (item "c") é o art. 94 e parágrafo único, da Constituição Federal. Trata-se de alegado desrespeito ao princípio do "quinto constitucional" na nomeação dos dois citados desembargadores para o TJTO. Todavia, para a comprovação de tal violação, não será suficiente a simples indicação de uma possível afronta à Constituição,
419
Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes devendo caracterizar-se, fundamentadamente, a violação de um princípio ou elemento básico. Cabe aqui questionar se o dispositivo contido no art. 94 e parágrafo único da Constituição Federal, o "quinto constitucional", trata-se de elemento ou princípio básico da Constituição. Um juízo mais ou menos seguro sobre a lesão de preceito fundamental consistente no "quinto constitucional" exige, preliminarmente, a identificação da conformação dessa categoria na ordem constitucional e, especialmente, das suas relações de interdependência. Também se faz indispensável fundamentar o pedido em relação a cada uma das impugnações (item "d"), quais sejam (fls. 19/20): "a) que seja LIMINARMENTE suspensa a eficácia dos atos questionados, representados estes pelo ato de nomeação do Des. Luiz Aparecido Gadotti e da Des. Jacqueline Adorno de La Cruz Barbosa, bem como do ofício do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins à Procuradoria Geral de Justiça, pela lista tríplice e pelo Ato n. 899 - NM, do Governador do mesmo estado, determinando a imediata disponibilidade do desembargador LUIZ APARECIDO GADOTTI, o qual na qualidade de Magistrado fora nomeado na décima-primeira (11ª) vaga destinada ao quinto constitucional pertencente a membro da Advocacia, e por conseguinte,seja colocada em disponibilidade, também, a Desembargadora Jacqueline Adorno de La Cruz Barbosa, a qual fora nomeada na décima-segunda (12ª) vaga pertencente a integrante da Magistratura, sendo, portanto, suas nomeações eivadas de inconstitucionalidade; b) Requer, ainda, seja julgada procedente a presente ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com a concessão de medida liminar, no sentido de determinar que a OAB/Tocantins elabore a lista sêxtupla; c) Finalmente, no mérito, requer seja julgada procedente a ação de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, no sentido de anular o ATO DE NOMEAÇÃO do Dês. LUIZ APARECIDO GADOTTI, ou seja, tornar sem efeito o Decreto Judiciário n. 261/98, publicado no Diário de Justiça n. 652, em 18/11/1998, bem ainda o Ato n. 899 - NM do Governador do Estado do Tocantins, publicado no Diário Oficial do Estado do Tocantins n. 1.316, em 14/11/2002 que nomeou a Procuradora de Justiça do Tocantins, Jacqueline Adorno de La Cruz Barbosa para o cargo de Desembargador criado pela lei Complementar n. 34/002." (fls. 19/20) Com relação ao aspecto da demonstração da controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental questionado (item "e"), a argüente suscita, tão-somente, a inexistência de outro meio eficaz. Nesse particular, o desenvolvimento do princípio da subsidiariedade, ou da idéia da inexistência de outro meio eficaz, dependerá da interpretação que o STF venha a dar à lei. A esse respeito, destaque-se que a Lei no 9.882/1999 impõe que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente será admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4o, § 1o). À primeira vista, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poderse-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão (recurso constitucional) e no direito espanhol (recurso de amparo), acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático. De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade - inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão -, contido no § 1o do art. 4o da Lei no 9.882/1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Nesse sentido, caso se
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes considere o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. No direito alemão, a Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional) está submetida ao dever de exaurimento das instâncias ordinárias. Todavia, a Corte Constitucional pode decidir de imediato um recurso constitucional, caso se demonstre que a questão é de interesse geral ou se demonstrado que o requerente poderia sofrer grave lesão caso recorresse à via ordinária (Lei Orgânica do Tribunal, § 90, II). Como se vê, a ressalva constante da parte final do § 90, II, da Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã confere ampla discricionariedade tanto para conhecer das questões fundadas no interesse geral (allgemeine Bedeutung), quanto daquelas controvérsias baseadas no perigo iminente de grave lesão (schwerer Nachteil). Assim, tem o Tribunal Constitucional admitido o recurso constitucional, na forma antecipada, em matéria tributária, tendo em vista o reflexo direto da decisão sobre inúmeras situações homogêneas (BVerfGE 19/268 (273); BVerfGE 62/338 (342); v. também Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, 4a ed., 1997, p. 162). A Corte considerou igualmente relevante a apreciação de controvérsia sobre publicidade oficial, tendo em vista o seu significado para todos os partícipes, ativos e passivos, do processo eleitoral (BVerfGE 62/230 (232); BVerfGE 62/117 (144); Schlaich, cit., p. 162). No que concerne ao controle de constitucionalidade de normas, a posição da Corte tem-se revelado enfática: "apresenta-se, regularmente, como de interesse geral a verificação sobre se uma norma legal relevante para uma decisão judicial é inconstitucional" (BVerfGE 91/93 (106)). No direito espanhol, explicita-se que cabe o recurso de amparo contra ato judicial desde que "se hayan agotado todos los recursos utilizables dentro de la vía recursal" (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, art. 44, I). Não obstante, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que, para os fins da exaustão das instâncias ordinárias, "não é necessária a interposição de todos os recursos possíveis, senão de todos os recursos razoavelmente úteis" (Almagro, José. Justicia Constitucional, Comentarios a la Ley Orgánica del Tribunal Constitucional, 2a ed., Valência, 1989, p. 324.). Nessa linha de entendimento, anotou o Tribunal Constitucional Espanhol: "Al haberse manifestado en este caso la voluntad del órgano jurisdicional sobre el mismo fondo de la cuestión planteada, há de entenderse que la finalidad del requisito exigido en el art. 44, 1, 'a', de la LOTC se há cumplido, pues el recurso hubiera sido en cualquier caso ineficaz para reparar la supuesta vulneración del derecho constitucional conocido" (auto de 11.2.1981, n. 19 Almagro, José. Justicia Constitucional, Comentarios a la Ley Orgánica del Tribunal Constitucional, 2a ed., Valência, 1989, p.325 ). Vê-se, assim, que também no direito espanhol tem-se atenuado o significado literal do princípio da subsidiariedade ou do exaurimento das instâncias ordinárias, até porque, em muitos casos, o prosseguimento nas vias ordinárias não teria efeitos úteis para afastar a lesão a direitos fundamentais. Observe-se, ainda, que a legitimação outorgada ao Ministério Público e ao Defensor do Povo para manejar o recurso de amparo reforça, no sistema espanhol, o caráter objetivo desse processo. Tendo em vista o direito alemão, Schlaich transcreve observação de antigo Ministro da Justiça da Prússia segundo a qual "o recurso de nulidade era proposto pelas partes, porém com objetivo de evitar o surgimento ou a aplicação de princípios jurídicos incorretos" (Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, 4a ed., 1997, p. 184). Em relação ao recurso constitucional moderno, movido contra decisões judiciais, anota Schlaich: "essa deve ser também a tarefa principal da Corte Constitucional com referência aos direitos fundamentais, tendo em vista os numerosos e relevantes recursos constitucionais propostos contra decisões judiciais: contribuir para que outros tribunais logrem uma realização ótima dos direitos
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes fundamentais" (Schlaich, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, 4a ed., 1997, p. 184). Em verdade, o princípio da subsidiariedade, ou do exaurimento das instâncias, atua também nos sistemas que conferem ao indivíduo afetado o direito de impugnar a decisão judicial, como um pressuposto de admissibilidade de índole objetiva, destinado, fundamentalmente, a impedir a banalização da atividade de jurisdição constitucional (Rüdiger, Zuck. Das Recht der Verfassungsbeschwerde, 2.ed. Munique,1988, pp. 13 e ss). Conforme tenho sustentado no âmbito dogmático, no caso brasileiro o pleito a ser formulado pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará - pelo menos de forma direta - sobre a proteção judicial efetiva de posições específicas por eles defendidas. A exceção mais expressiva reside talvez na possibilidade de o Procurador-Geral da República, como previsto expressamente no texto legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a argüição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista a proteção de situação específica. Ainda assim, o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados, muito provavelmente, ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo, e não à proteção judicial efetiva de situações singulares. Nesse cenário, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Destarte, assumida a plausibilidade da alegada violação ao preceito constitucional, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, em princípio, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade - isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata -, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. É o que ocorre, fundamentalmente, nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do não-cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer, em princípio, a admissibilidade da argüição de descumprimento. Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Até porque o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva. Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva, apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigurar-se-ia integralmente aplicável a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver a controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de um sem número de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias. A propósito, assinalou Sepúlveda Pertence, na ADC no 1 (ADC 1/DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 1.12.93, DJU 16.6.95), que a convivência entre o sistema difuso e o sistema concentrado "não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos a que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme; ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito". A possibilidade de incongruências hermenêuticas e confusões jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos órgãos pode configurar uma ameaça a preceito fundamental (pelo menos, ao da segurança jurídica), o que também está a recomendar uma leitura compreensiva da exigência aposta à lei da argüição, de modo a admitir a propositura da ação especial toda vez que uma definição imediata da controvérsia mostrar-se necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias ou incongruentes, que comprometam gravemente o princípio da segurança jurídica e a própria idéia de prestação judicial efetiva. Ademais, a ausência de definição da controvérsia ou a própria decisão prolatada pelas instâncias judiciais poderá ser a concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema dotado de órgão de cúpula, que tem a missão de guarda da Constituição, a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode constituirse, por si só, em uma ameaça ao princípio constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em uma autêntica lesão a preceito fundamental. Assim, tendo em vista o perfil objetivo da argüição de descumprimento, com legitimação diversa, dificilmente poder-se-á vislumbrar uma autêntica relação de subsidiariedade entre o novel instituto e as formas ordinárias ou convencionais de controle de constitucionalidade do sistema difuso, expressas, fundamentalmente, no uso do recurso extraordinário. Como se vê, ainda que aparentemente pudesse ser o recurso extraordinário o meio eficaz de superar eventual lesão a preceito fundamental nessas situações, na prática, especialmente nos processos de massa, a utilização desse instituto do sistema difuso de controle de constitucionalidade não se revela plenamente eficaz, em razão do limitado efeito do julgado nele proferido (decisão com efeito entre as partes). Desse modo, é possível concluir que a simples existência de ações ou de outros recursos processuais - vias processuais ordinárias - não poderá servir de óbice à formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicitado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, as mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia. É outro, porém, o caso dos autos! Conforme pode se observar na espécie, a argüente não utilizou qualquer instrumento processual ou ação de impugnação autônoma do ato imputado como manifestamente inconstitucional. Poder-se-ia cogitar, portanto, até mesmo da tempestiva impetração de mandado de segurança (CF, art. 5o, LXIX) contra os atos de nomeação realizados pelo Governador do Estado de Tocantins. Na verdade, almeja-se reparar lesão a direito supostamente reconhecido com relação a situações singulares, a saber: a nomeação de dois desembargadores estaduais em suposta violação à disposição constitucional do "quinto constitucional" (CF, art. 94 e parágrafo único). No caso concreto, porém, conforme alertara o próprio relator, Min. Nelson Jobim, quando do arquivamento dos autos da ADI no 1.970-TO, a situação singular poderia ser sido ampla e eficazmente discutida na via ordinária. Reitero que, na ocasião da declaração do prejuízo do pedido da ADI no 1.970-TO, em decisão monocrática de 04.03.2001 (DJ de 27.04.2001), o relator asseverou que: "Este Tribunal já se manifestou em casos semelhantes: '... ocorrendo a revogação superveniente da norma atacada em ação direta, esta perde o seu objeto, independentemente de a referida norma ter, ou não, produzido efeitos concretos.' (ADI 2097, MOREIRA ALVES). 'REVOGAÇÃO DA LEI ARGÜIDA DE INCONSTITUCIONAL. Prejudicialidade da ação por perda do objeto. A revogação ulterior da lei questionada realiza, em si, a função jurídica constitucional reservada à ação direta de expungir do sistema jurídico a norma inquinada de inconstitucionalidade. EFEITOS concretos da lei revogada, durante sua vigência. Matéria que, por não constituir objeto da ação direta, deve ser remetida às
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes vias ordinárias. A declaração em tese de lei que não mais existe, transformaria a ação direta em instrumento processual de proteção de situações jurídicas pessoais e concretas. Ação direta que, tendo por objeto a Lei 9.048/89 do Estado do Paraná, revogada no curso da ação, se julga prejudicada.' (ADIMC 709, PAULO BROSSARD). Ainda: ADI's 648 e 818, NERI DA SILVEIRA. Em face do exposto, julgo prejudicada a ação, por perda do objeto (RISTF, art. 21, §1º). Arquive-se." (ADI no 1.970-TO, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 27.04.2001) Frise-se, ademais, que, da decretação de prejudicada da ADIn, passaram-se quase 5 (cinco) anos. Tal hipótese pode ser constatada no presente caso. Na espécie, impugnam-se não as Leis Complementares Estaduais no 16/1998 e no 34/2002, mas os atos concretos do Governador do Estado do Tocantins delas resultantes, quais sejam: as nomeações dos Desembargadores LUIZ APARECIDO GADOTTI E JACQUELINE ADORNO DE LA CRUZ BARBOSA. De acordo com jurisprudência firmada por este Tribunal, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil seria legitimado, inclusive, para impetrar eventual mandado de segurança ou para ajuizar outro meio judicial cabível. Isso não significa, porém, que se possa perder a dimensão de que a ADPF é destinada, basicamente, a resguardar a integridade da ordem jurídico-constitucional. Destarte, não tendo havido qualquer impugnação dos atos singulares ordinários, que, reitere-se, in casu, seria apta para solver a controvérsia de forma plena, não há como justificar, na espécie, a utilização da ADPF em face do disposto no art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99. Parece evidente que referido instituto, cuja nobreza é dispensável destacar, não pode ser utilizado para suprir inércia ou omissão de eventual interessado. Como o instituto da ADPF assume feição eminentemente objetiva, o juízo de relevância deve ser interpretado como requisito implícito de admissibilidade do pedido. Seria possível admitir, em tese, a propositura de ADPF diretamente contra ato do Poder Público, nas hipóteses em que, em razão da relevância da matéria, a adoção da via ordinária acarrete danos de difícil reparação à ordem jurídica. O caso em apreço, contudo, revela que as medidas ordinárias à disposição da ora requerente - e, não utilizadas - poderiam ter plena eficácia. Ressalte-se que a fórmula da relevância do interesse público, para justificar a admissão da argüição de descumprimento (explícita no modelo alemão), está implícita no sistema criado pelo legislador brasileiro. No presente caso, afigura-se de solar evidência a falta de relevância jurídica para a instauração da ADPF. Assim, tendo em vista a existência, pelo menos em tese, de outras medidas processuais cabíveis e efetivas para questionar os atos em apreço, entendo que o conhecimento do presente pedido de ADPF não é compatível com uma interpretação adequada do princípio da subsidiariedade. Nestes termos, indefiro, liminarmente, a petição inicial (Lei no 9.868/1999, art. 4o). Conseqüentemente, nego seguimento ao presente pedido de argüição de descumprimento de preceito fundamental por entender que a postulação é manifestamente incabível, nos termos e do art. 21, § 1o do RISTF. Por conseguinte, declaro o prejuízo do pedido de medida liminar postulado. Publique-se. Arquive-se. Brasília, 13 de fevereiro de 2006. Ministro GILMAR MENDES Relator
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BIBLIOGRAFIA REFERENCIAL
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Caderno de Direito Constitucional - 2006 Gilmar Ferreira Mendes o ADPF 76/TO, Gilmar Mendes, pendente de publicação. (Subsidiariedade ADPF) o Rp 1.016/SP, Moreira Alves, DJ, 21-10-1979 (Processo objetivo) Bibliografia Básica BARROSO, Luís Roberto . O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo, Saraiva, 2004. CLÉVE, Clémerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995. MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade; Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. In: Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança. 26a. edição em 2003. Sexta Parte, p.297-393; Sétima Parte, p.395-454 e Oitava Parte, p.455499. ---------. Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n.o 9.868, de 1999 (ADIn e ADC). Em colaboração com Ives Gandra da S. Martins. São Paulo: Saraiva, 2001. ---------. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. São Paulo: C. Bastos: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1998. 478 p.; 2ª edição em 1999, 518 p. ---------. Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5. ed. , São Paulo, Saraiva, 2005, 446 p. ---------. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. 2.ed.,São Paulo: Saraiva, 2004, 950p. VELOSO, Zeno, Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
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