Aprendizagem de qualidade em grande escala

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Título Original: Quality learning at scale: a new goal for the Bernard van Leer Foundation

Aprendizagem de qualidade em grande escala: uma nova meta para a Fundação Bernard van Leer Editorial do livro ‘Aprendizagem na Primeira Infância: Lições da atuação em escala’, publicado pela Fundação Bernard van Leer

Leonardo Yánez, diretor de programas da Fundação Bernard van Leer para o Brasil e Peru, apresenta os artigos desta edição do Early Childhood Matters e explica as experiências do passado da Fundação, o pensamento atual e os planos futuros para a questão da ampliação da aprendizagem precoce sem perder a qualidade. Por que investir na prestação de cuidados de qualidade para a primeira infância em grande escala? Existem muitas respostas para esta questão, cada uma delas direcionada a um público diferente. Alguns veem o valor dos cuidados com a primeira infância como liberar as mães para trabalhar. Alguns veem o investimento em crianças como um meio de assegurar que a nova geração seja economicamente produtiva em um mundo competitivo. Outros estão convencidos pelo trabalho de economistas como James Heckman, de que investir em cuidados para crianças pequenas faz sentido porque ajuda a prevenir problemas mais tarde, na adolescência e idade adulta, que custam muito mais caro para a sociedade corrigir. Alguns veem a primeira infância como o momento mais eficaz para intervir e combater as desigualdades sociais que são passadas de geração para geração. Outros veem as crianças como o melhor ponto de partida para os esforços no sentido de buscar uma sociedade mais justa, pois geralmente é muito mais fácil mobilizar um amplo apoio político a favor de assistência social para os filhos dos pobres e marginalizados do que para os seus pais. Outros ainda veem o caso constituído como dever dos governos de assegurar os direitos humanos sob os termos da Convenção sobre os Direitos da Criança. Por último, mas não menos importante, a primeira infância vem atraindo uma crescente atenção por parte de cientistas, acadêmicos e políticos, na medida em que estudos da neurociência explicam cada vez mais os mecanismos pelos quais as características fundamentais da personalidade são moldadas através da qualidade dos primeiros estímulos e cuidados. Nós já sabíamos que as crianças que recebem uma educação precoce de qualidade tendem a ganhar mais, cometer menos crimes e construir relacionamentos melhores. Agora estamos descobrindo mais sobre os motivos.


Ao longo de seis décadas de existência, a Fundação Bernard van Leer tem sido pioneira em muitos modelos inovadores de cuidados e educação para a primeira infância. Temos apoiado programas que colocam as crianças no centro de sua própria aprendizagem, que atingem uma ampla diversidade cultural, geográfica e linguística para chegar aos mais desfavorecidos, e que reconhecem o papel vital da família como primeira educadora de uma criança. Barreiras para investir em serviços de qualidade Alcançamos agora um ponto em que há bastante conhecimento sobre o que é preciso para que cuidados e educação para a primeira infância sejam considerados de boa qualidade boa. Existem inúmeros modelos de prestação de serviços que merecem ser expandidos. A questão passa a ser: “O que está impedindo os governos de universalizar os serviços de qualidade para a primeira infância?”. Você pode achar que a resposta é simplesmente a falta de dinheiro. Mas um estudo encomendado pela Fundação e realizado pela Brookings Institution em sete países revelou que a falta de recursos não era vista como o principal impedimento. Outros problemas são mais importantes. Em alguns países, por exemplo, a divisão étnica, linguística ou religiosa é que faz com que grupos de crianças sejam privados de cuidados de qualidade. Em Israel, por exemplo, programas para filhos de pais árabes ou judeus ultra-ortodoxos tendem a ter financiamento limitado e a não atingir o mínimo de qualidade para garantir um impacto positivo no desenvolvimento – os professores são insuficientes e mal treinados, e a infraestrutura é ruim. Na Holanda, onde a Fundação Bernard van Leer está sediada, crianças membros de minorias, principalmente imigrantes de culturas não ocidentais (majoritariamente da Turquia, Marrocos, Suriname e Antilhas Holandesas) sofrem mais com a queda da qualidade da educação para a primeira infância, pois a crise econômica faz com que esses serviços fiquem para trás na agenda política. Em outros países, o principal problema é que municípios e estados têm a responsabilidade de implantar programas para a primeira infância, mas não conseguem atender os critérios mínimos de qualidade exigidos pelo governo nacional para a liberação de recursos. Este é um problema encontrado, por exemplo, em áreas remotas e isoladas da bacia amazônica do Brasil e Peru e nas comunidades tribais de Orissa, na Índia – lugares onde muitas vezes o idioma só é conhecido pelos próprios moradores e a infraestrutura é de difícil construção. Finalmente, há países em que não existe uma demanda social por cuidados universais de qualidade para a primeira infância porque o conceito é essencialmente desconhecido pelos possíveis beneficiários. Os poucos serviços para crianças que existem em Uganda, por exemplo, foram todos concebidos para o ambiente urbano. As crianças em áreas rurais (a maioria) poderiam se beneficiar de alguns serviços como


visitas domiciliares, mas os pais não os chamam porque nunca passaram por esta experiência antes. Na Tanzânia, os 37% das crianças que têm acesso a algum tipo de pré-escola frequentam classes com uma média de 74 crianças por professor. Em ambos os casos, as populações pobres nas áreas rurais necessitam especialmente da integração entre aprendizagem, saúde e nutrição para crianças de 0 a 8 anos de idade. Histórias de sucesso em termos nacionais Existem também histórias de sucesso na manutenção da qualidade ao se ampliar os serviços para a primeira infância. Nas páginas 6 a 11 resumimos um estudo de Cuba, encomendado pela Fundação e realizado pela Brookings Institution, que mostra como a coordenação entre agências neste país pobre e relativamente isolado tem levado a serviços integrados de saúde e educação, e serviços integrados para crianças desde antes do nascimento. A experiência cubana tem inspirado programas em outros países, como o programa Primeira Infância Melhor (PIM) no Brasil, em que famílias em situação de vulnerabilidade social (urbana, rural e indígena) recebem visitantes que carregam um kit de saúde, nutrição e materiais de estimulação da aprendizagem precoce. Nós, da Fundação Bernard van Leer, extraímos duas lições importantes a partir da observação desses dois programas irmãos:

A aprendizagem precoce não ocorre apenas nas escolas, mas na interação das crianças com os cuidadores e com seu ambiente físico e cultural. Foto: Devi Roebers/SPOREN

Certifique-se de que a aprendizagem durante os três primeiros anos não seja um domínio exclusivo da área de educação. Embora todos os setores devam trabalhar em conjunto, a principal responsabilidade deve ser da área de saúde, que está mais bem posicionada para alcançar e se adaptar às condições de vulnerabilidade da população-alvo. É preciso vontade política dos governos e líderes setoriais para definir esses programas como uma prioridade permanente que transcenda o partidarismo.


A experiência do programa Chile Crece Contigo, descrita nas páginas 12 a 16, ilustra especialmente a segunda lição, com o patrocínio do gabinete presidencial sendo vital para a mobilização de apoio à implantação deste abrangente projeto. Como o recém-eleito presidente do Peru também se propõe a estabelecer a Primeira Infância como prioridade, um artigo que analisa as experiências anteriores do Peru na prestação de serviços para a primeira infância em grande escala (página 17) identifica quatro lições que poderiam nortear o novo governo. Saindo da região latino-americana, um dos sucessos mais duradouros em serviços para a primeira infância em grande escala é o programa Head Start, nos EUA. Joan Lombardi, que conhece bem o programa, identifica cinco fatores importantes que podem orientar outros países a repetir a longevidade do programa (página 21). Além das duas lições já mencionadas, a autora acrescenta a importância da definição de padrões e do acompanhamento de como estão sendo cumpridos; capacitação de pessoal; e “dosagem” adequada (isto é, a quantidade de horas que as crianças passam no programa). Outras lições interessantes surgem do Reino Unido em nossa entrevista com Naomi Eisenstadt, inicialmente responsável pelo serviço Sure Start, do governo britânico. Entre os muitos insights úteis que surgiram, temos aquele em que a velocidade de ampliação do programa nos primeiros anos da década passada e a sua natureza universal, com a grande maioria das famílias vendo benefícios para seus filhos, assegurou sua sustentabilidade através de processos de mudanças na administração política, mesmo em tempos econômicos difíceis (página 28). Alguns países africanos estão no processo de ampliação de seus serviços para a primeira infância, ou realizando planos para fazê-lo. Dois estudos de caso de países da África sugerem indicadores úteis. Nas páginas 33 a 37, Lynette Okengo identifica quatro fatores que ajudaram o Quênia a fornecer serviços pré-escolares em grande escala, incluindo a capacitação descentralizada e o envolvimento da comunidade. Nas páginas 38 a 42, Linda Biersteker discute a ampliação de serviços para crianças de 0 a 4 anos na África do Sul, extraindo lições que incluem a importância da comunicação, de superar resistências e levar os programas para além de uma modalidade puramente baseada em centros de atendimento. Outras perspectivas sobre a ampliação de escala Enquanto os países tentam ampliar seus serviços para a primeira infância, há um papel vital para as organizações internacionais no sentido de fornecer apoio e conhecimento. O Banco Mundial está no processo de estabelecer um grande projeto para reunir evidências sobre o “que funciona” no desenvolvimento da primeira infância; esta iniciativa, SABER-ECD1, está descrita nas páginas 43 a 51. A OCDE também auxilia seus países-membros no aperfeiçoamento de políticas e programas 1

Nota do Tradutor: Early Childhood Development (ECD), ou Desenvolvimento da Primeira Infância (DPI).


para a primeira infância, conforme explica o ex-Secretário Geral Adjunto Aart de Geus, em uma entrevista na página 52.

Bons programas para a infância são baseados em forte demanda popular dos pais, cuidadores e provedores de serviços.

Além de uma perspectiva em termos nacionais, nós podemos abordar os desafios para a ampliação dos serviços a partir do ponto de vista das organizações que estão liderando o processo. Entre elas destaca-se a International Step by Step Association, que atua em 28 países e tem tido um sucesso considerável na ampliação da escala de serviços pré-escolares de qualidade, especialmente nos antigos Estados soviéticos desde o início da década de 1990. Nas páginas 56 a 61, Sarah Klaus descreve como o programa cresceu diante de sucessivos desafios. Nós nos aprofundamos mais nas experiências do Step by Step em um país, a Macedônia, na página 62. O parceiro de longa data da Fundação Bernard van Leer no Caribe, o Caribbean Child Support Initiative, recentemente tornou-se ele próprio uma Fundação em função de nossa saída da região. Nas páginas 72 a 77, Susan Branker e seus colegas descrevem o debate dentro da organização sobre a ampliação de escala, se deveriam buscá-la por meio de uma estratégia de institucionalização ou se pelo crescimento orgânico. Outro parceiro, a Association Self Employed Women, na Índia, trouxe com sucesso serviços de aprendizagem precoce em grande escala para seus membros; sua história é contada nas páginas 67 a 71. Alguns modelos de educação de qualidade para a primeira infância podem ser inerentemente mais difíceis de serem ampliados. Um dos modelos mais populares e conhecidos nos círculos de educação infantil, por exemplo, é aquele que começou na cidade italiana de Reggio Emilia; dada a sua fama, é interessante que mais escolas não tenham adotado a sua abordagem. Nas páginas 78 a 82, Lella Gandini analisa os motivos pelos quais este pode ter sido o caso nos EUA. Implícita em todos os esforços acima descritos, para manter a qualidade enquanto se amplia a prestação de cuidados para a primeira infância, está uma questão fundamental: “O que queremos dizer com qualidade?”. Nas páginas 83 a 89 resumimos um estudo realizado por Pia Britto e outros, originalmente publicado pela Society for Research into Child Development, que aborda exatamente esta questão. Finalmente, nesta edição, tratamos da questão de ampliação da escala de aprendizagem precoce partindo de um ângulo bem diferente: na medida em que smartphones, tablets e outros dispositivos semelhantes penetram cada vez mais até mesmo nas comunidades mais pobres, qual é o seu potencial como apoio à aprendizagem das crianças? Cynthia Chiong, da Sirius Thinking, analisa as primeiras


pesquisas que têm sido feitas sobre este assunto, em um artigo fascinante na página 90. Conclusão dos principais pontos A partir dos artigos desta edição, de pesquisas mais amplas e das experiências de doações desta Fundação ao longo dos anos, podemos identificar alguns pontos principais:  A aprendizagem na primeira infância não ocorre somente nas escolas, mas na interação das crianças com seus primeiros cuidadores e seu ambiente físico e cultural. Portanto, ela não é integralmente de responsabilidade do setor de educação.  A aprendizagem precoce das crianças depende fortemente de ambientes saudáveis, seguros e amorosos, e de uma boa nutrição. Um programa para este grupo etário deve ser holístico, integrando os vários aspectos do desenvolvimento infantil.  Os pais e cuidadores de crianças são seus primeiros professores naturais, pois demonstram afeição, expõem as crianças à linguagem e tornam seu mundo seguro e interessante para explorar.  Bons programas para a infância são baseados em forte demanda popular. Pais, cuidadores e provedores de serviços devem estar conscientes e ativos na defesa dos direitos de suas crianças.  Também é necessário sensibilizar órgãos políticos nacionais e supranacionais (agências e organizações regionais, parlamentares, empresários e celebridades) para fazer lobby por mais investimentos públicos e privados na primeira infância.  Finalmente, é especialmente necessário promover aprendizagem de qualidade para a primeira infância em comunidades com crianças em situações sociais e econômicas mais desfavorecidas. Estas são as crianças que mais podem se beneficiar. Temos até agora considerado as questões de por que investir na aprendizagem da primeira infância, e o que tem impedido governos de investir pesadamente nesses programas. Mas na realidade, a questão mais importante é a seguinte: “Por que a comunidade envolvida com a primeira infância não conseguiu convencer os governos desta causa urgente para investimentos públicos?”. Tem nos faltado uma liderança clara para defender vigorosamente a consolidação das políticas para a primeira infância, visando superar a atual fragmentação dos orçamentos públicos e privados entre inúmeras instituições, nenhuma das quais assumindo uma visão suficientemente holística das crianças. Devemos passar do mero ativismo para a mobilização


estratégica. Devemos identificar e auxiliar os stakeholders 2 de diferentes setores que tenham disposição e capacidade de representar os interesses das crianças, especialmente as mais pobres e excluídas. Devemos também unir forças com aliados que surgem naturalmente entre doadores, agências internacionais e redes da sociedade civil, não apenas no campo da educação e cuidados infantis, mas em qualquer outro setor cujas ações tenham um impacto direto na primeira infância (por exemplo, proteção social, infraestrutura e comércio). Essas parcerias devem procurar mecanismos para coordenar recursos e garantir que eles sejam utilizados para seus fins específicos. Este é o direcionamento que a Fundação Bernard van Leer vai assumir globalmente e em cada um dos países onde atuamos.

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Nota do Tradutor: Parceiros ou partes interessadas envolvidas na questão de primeira infância.


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