volume 11, número 1 janeiro-junho de 2019 ISSN: 2175-4705 Comissão editorial Amanda Villa Pereira Ana Elisa Santiago Bruno Cardoso Felipe Vander Velden Jucimara Cavalcante Luisa Fanaro Luiz Henrique de Toledo Paula Araujo Sara Regina Munhoz Editora do Dossiê "Crianças e Infâncias Indígenas" Clarice Cohn, com a colaboração de Gabriela Braga Loreti Editores do Dossiê "Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade" Guilherme Rodrigues Passamani e José Miguel Nieto Olivar Conselho editorial Adam Reed (University of St. Andrews), Ana Claudia Marques (USP), Celso Castro (FGV), Christine de Alencar Chaves (UnB), Cynthia Andersen Sarti (Unifesp), David Graeber (LSE-UK), Débora Morato Pinto (UFSCar), Edward MacRae (UFBA), Fernando Rabossi (IFCS/UFRJ), Fraya Frehse (USP), Frederico Delgado Rosa (Universidade Nova de Lisboa), Gabriel de Santis Feltran (UFSCar), Guillaume Sibertin-Blanc (U. de Toulouse II), Guilherme José da Silva e Sá (UnB), João Biehl (Princeton University), João Valentin Wawzyniak (in memoriam UEL), John Collins (Queens College-NY), Magnus Course (University of Edinburgh), Marco Antonio T. Gonçalves (UFRJ), Maria Catarina C. Zanini (UFSM), Mariza Gomes e Souza Peirano (UnB), Olívia Cunha (Museu Nacional), Pedro Peixoto Ferreira (Unicamp), Rane Willerslev (Aarhus University), Rebecca Empson (University College London), Rose Satiko G. Hikiji (USP), Simoni Lahud Guedes (UFF), Stephen Hugh-Jones (Cambridge University), Wolfgang Kapfhammer (Institut für Ethnologie/Ludwig-Maximilians-Universität München). Universidade Federal de São Carlos Reitora: Profa. Dra. Wanda Aparecida Machado Hoffmann Vice-reitor: Prof. Dr. Walter Libardi Centro de Educação e Ciências Humanas Diretora: Profa. Dra. Maria de Jesus Dutra dos Reis Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Coordenador: Prof. Dr. Felipe Ferreira Vander Velden Vice-coordenador: Profª. Drª. Anna Catarina Morawska Vianna Projeto gráfico, editoração e capa Amanda Villa Pereira Imagem da capa Edgar Kanaykõ Xakriabá, 2016
Sumário Dossiê Crianças e Infâncias Indígenas 10
Crianças indígenas: introdução ao dossiê, estado da arte e agenda de pesquisas Clarice Cohn
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Vida, poder e conhecimento: cuidados contemporâneos em torno do nascimento entre grupos Tukano Orientais do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico Melissa Santana de Oliveira
65 Nas casas e nos quintais, com a comunidade: cuidado e educação das crianças pequenas Xakriabá Erica Dumont Pena, Rogério Correia da Silva
83 As crianças Kaingang: educação escolar e os processos próprios de aprendizagem Bruno Ferreira
101
O quê e o como aprender: as crianças Kalapalo e algumas problematizações em torno do conhecimento Veronica Monachini de Carvalho, Lucas da Costa Maciel
123
Os sonhos da criança Ava-guarani: circulação de saberes e autonomia da infância indígena através da participação na experiência onírica na aldeia Ocoy/Pr Denize Refatti
140 Situações de aprendizagem das crianças Baniwa na comunidade de Vista Alegre, noroeste amazônico Amanda Rodrigues Marqui
162 Crianças A'uwẽ Uptabi/Xavante: ser e estar no mundo - MT Severiá Maria Idioriê
183
A criança Bororo: entre a educação escolar e a educação indígena Juliana Guimarães Saneto, Jocimar Daolio
204
Infância Mbyá-Guarani e o processo educativo dos "pequenos indígenas" da Tekoá Pindó Mirim Luana Santos da Silva, Mártin César Tempass, Narjara Mendes Garcia
232
Jeitos de ser criança Sateré-Mawé: dos elementos da cultura aos determinismos sociais da escola urbana Roberto Sanches Mubarac Sobrinho
253
Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis: nova forma de resistência em área de retomada Sônia Rocha Lucas, Antonio Hilario Aguilera Urquiza
282
Os problemas nos direitos: os efeitos da extensão das políticas de direitos da criança e adolescente entre os Kaiowá e Guarani Diógenes Egidio Cariagal, Silvana Jesus do Nascimento, Levi Marques Pereira
308
O banho de rio, a barragem norte e as transformações nos processos de produção do corpo entre as crianças Laklãnõ Marcondes Namblá
330
O que a Antropologia da Criança pode fazer pela construção intercultural dos direitos das crianças no Brasil? Assis da Costa Oliveira
347
Além da doutrina da proteção territorial: rumo às perspectivas indígenas de infância Romário Edson da Silva Rebelo, Raimundo Wilson Gama Raiol
366
“Vocês napëpë estão sempre procurando seus filhos”: considerações sobre corpo e cotidiano entre crianças e mulheres yanomami e suas parceiras napëpë Ana Maria A. Machado, Ana Maria R. Gomes
387
(Con)textos das pesquisas com crianças/infâncias indígenas no Mato Grosso do Sul Adir Casaro Nascimento, Carlos Magno N. Vieira, Antonio Carlos Seizer da Silva
401 Infância indígena no Sul do Brasil: considerações a partir de uma disciplina de Licenciatura Indígena
Antonella Maria I. Tassinari, Suzana Cavalheiro de Jesus, Clarissa Rocha de Melo
Caderno de imagens 425
Entre brincadeiras e olhos atentos as crianças aprendem a "ler" o mundo em que vivem Edgar Corrêa Kanaykõ
436 Eu, criança(s): instantes de curiosidades mútuas Daniel Revillion Dinato
Brincar, experimentar e aprender: o “ser criança” entre os Palikur-Arukwayene 443 Elissandra Barros da Silva Mãe de Deus, olha aqui meus Kurumins 452 ÓTanielson Rodrigues etnógrafa, a retratista e as crianças Xikrin 458 AClarice Cohn
***
Dossiê Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade 474
Apresentação ao Dossiê Corpos, fronteira, gênero e sexualidade José Miguel Nieto Olivar, Guilherme Rodrigues Passamani
486
Identidades em processo: se fazer prostituta e indígena em um jogo Lívia Freire da Silva
504
"Tudo é rua": apropriações, espaços e corpos no mercado do sexo em São Carlos-SP André Rocha Rodrigues
524
Fugas e contrapontos na fronteira: reflexões etnográficas sobre transitividades corporais e de gênero no Alto Solimões-AM Silvana de Souza Nascimento
552
Gênero, cuidado e a reconfiguração da fronteira... fronteiras, fronteiras! José Miguel Nieto Olivar
576
Fora chollos: gênero, sexualidade, alteridade e diferenças na fronteira Brasil-Bolívia Álvaro Banducci Júnior, Guilherme R. Passamani, Tiago Duque
599
Mover-se nas fronteiras: percursos, políticas e saberes transfronteiriços Flávia Melo
*** Artigos 624
Atravessando as fronteiras de um mercado global: trabalho e diferença na selva alta peruana Ricardo Cruz
648
Associar e cortar redes politizadas: gênero, raça e sexualidade na infiltração das relações universitárias Romário Vieira Nelvo, Fabrício Campos Longo da Silva
674
Cadernos de imagens A Morada da Paz, uma entidade feminina e kilombola Luiza Dias Flores
683 Rabida bô: retratos da feminização das práticas comerciais em Mindelo, Cabo Verde Vinícius Venancio
Resenhas
697 BIONDI, Karina. 2018. Proibido Roubar na Quebrada: Território, Hierarquia e Lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome. Michel Cícero Magalhães de Melo
701 MARQUES, Adalton. 2018. Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo: IBCCRIM. Evandro Cruz Silva
707 SANTANA, J. V. J. de. (Org.). 2017. Relações etnicorraciais e educação
escolar indígena: relatos de pesquisa. Vitória da Conquista: Edições UESB. Raimundo Nonato F. do Nascimento
714
BEVILAQUA, C. B.; VANDER VELDEN, F. (Orgs). 2016. Parentes, vítimas e sujeitos: perspectivas antropológicas sobre relações entre humanos e animais. São Carlos: EDUFSCar. José Cândido Lopes Ferreira
721 BRITES, J.; MATTOS MOTTA, F. (Orgs.). 2017. Etnografia, o espírito da
Antropologia: tecendo linhagens. Homenagem a Cláudia Fonseca. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. Luísa Maria Silva Dantas
726 LUCIANI, José Antonio Kelly. 2016. Sobre a antimestiçagem. Florianópolis: Cultura e Barbárie. Larissa Moreira Portugal
R@u, maturidade aos dez anos! A R@u – Revista de Antropologia da UFSCar, a nossa R@u, a R@u com “r” – modos como carinhosamente nos diferenciamos da nossa prima rica, a HAU inglesa, a HAU com “h” – aniversaria. Completa, com este volume 11(1), seus primeiros dez anos. Ainda na infância, dirão alguns. Mas crescendo, é certo. Com todas as dificuldades, recentemente exacerbadas, em se manter com qualidade um periódico científico no Brasil. Todo mérito ao esforço, diríamos teimosia, dos estudantes de pós-graduação que criaram a revista em 2009, e de todas e todos que vêm tocando o trabalho por uma década, entre discentes e docentes. Aliança geracional que é, aliás, uma das nossas marcas: desde quando incorporada, formalmente, ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSCar, a comissão editorial tem sido mista. Alunos e professores partilham as decisões, as escolhas, as tarefas, os sucessos. Este volume é extenso. Passa das 700 páginas. Justapõe dois dossiês com temáticas muito distintas e, para alguns, talvez contraditórias. E muitas fotos. Mas é momento de celebrar: se o tamanho deste 11(1) teve que ver com uma necessária adequação do cronograma de dossiês em organização, ele também acaba por singularizar este número aniversariante. Comemora a liberdade da edição virtual, que independe dos custos limitantes da impressão. Celebra a criatividade da antropologia brasileira e a riqueza de sua produção. Assinala a capacidade de trabalho dos editores da revista, mesmo com tudo contra, uma revista madura aos dez anos! Aponta para mais dez anos de expansão. Chegaremos à maioridade com a mesma potência e a mesma paixão pela empresa editorial acadêmica e pela ciência social. Oxalá possamos festejar os vinte anos com este mesmo fôlego de criança! A Comissão Editorial
Dossiê Crianças e Infâncias Indígenas
R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 10-34.
Crianças indígenas: introdução ao dossiê, estado da arte e agenda de pesquisas Clarice Cohn Professora Adjunta pela Universidade Federal de São Carlos (DCSo/PPGAS) Bolsista Produtividade CNPq clacohn@gmail.com
A Lux Vidal, Bep-tok (More) e Irengri Xikrin,
que me introduziram nas relações com os Xikrin e suas crianças A Aracy Lopes da Silva (in memorium) A Marcondes Namblá (in memorium)
O que as crianças indígenas ensinam para a antropologia? Esta é, no meu entender, a questão de fundo que se deve debater sempre que a pesquisa antropológica debruça seu olhar sobre as crianças. O desenvolvimento da pesquisa nessa área no Brasil nas últimas décadas revela, em suas etnografias, os diversos modos de ser criança em diferentes contextos. Sendo as crianças, desde sempre, figurantes ou marginais na antropologia, esse é um campo que precisou ser aberto e desenvolvido com muito esforço. Hoje, porém, podemos afirmar que ele se encontra definitivamente consolidado, com um repertório bastante complexo de contribuições. Indicam elas que não só as crianças (ou as infâncias, ou os modos de ser criança) são diversas para cada contexto etnográfico, mas também que modelos analíticos e temas e questões as mais diversas têm que ser acionadas para dar conta dessas realidades. Demonstra-se assim que o olhar para a criança aciona uma série de modelos analíticos e contribui para os debates na etnologia. É exatamente por isso que cabe ressaltar que essas pesquisas contribuem para a antropologia e a etnologia, oferecendo-lhes um meio privilegiado de revelar a diversidade dos modos de vida no mundo, ao demonstrar como ela é, efetivamente, criada. Assim, mais do que simplesmente pesquisar crianças, está-se fazendo antropologia. E isso significa revelar algo sobre os
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Clarice Cohn
coletivos de que as crianças são parte – e ademais, como lembra o texto seminal de Toren (1999 [1993]), nos permite ver o que está frequentemente obliterado pelos adultos. Naquele texto, ao elaborar a partir de quatro inversões de formulação dos adultos e das crianças sobre temas e questões fundamentais para os povos estudados, a autora conclui que “não podemos entender plenamente a relação entre adultos se não investigamos o que as crianças sabem sobre essas relações e como elas o sabem” (idem: 115, tradução minha)1. No entanto, após cerca de quatro décadas de pesquisas com e sobre crianças, tanto no âmbito internacional da academia quanto no Brasil2, essa é uma afirmação que ainda
deve ser feita e defendida. A antropologia – e a etnologia indígena –, embora tenha chegado ao reconhecimento do valor etnográfico e analítico desses estudos, não os incorpora, ainda, em seus debates mais amplos. Esperamos que esforços como este, de reunião e coletânea de textos que tenham as crianças como foco, sejam mais do que meios para apresentar essas pesquisas, mas de mostrar o quão antropológicas elas são, no sentido pleno do termo, de modo a inseri-las nestes debates mais amplos. Assim, um dos propósitos desse dossiê
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Ao longo desse percurso de quase três décadas de reflexão neste campo, tenho muitos a agradecer. Em primeiro lugar, a Lux Vidal, minha orientadora no mestrado, que me levou aos Xikrin e colaborou para que eu elaborasse minhas primeiras reflexões sobre o tema, e a Aracy Lopes da Silva, que me convidou a fazer parte do MARI – Grupo de Educação Escolar Indígena da USP, que coordenava, e ao grupo de pesquisa que ambas coordenavam, e a me debruçar sobre este tema. Agradeço ainda a Manuela Carneiro da Cunha, que me acompanhou em minhas primeiras entradas nos estudos Jê quando me orientava em minha iniciação científica no Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII/USP). A Peter Gow, tenho um agradecimento especial, já que ele foi o primeiro a abraçar e a me incentivar na ideia de estudar com crianças indígenas, e me apresentou a Christina Toren, a quem muito agradeço também pelo diálogo desde o início dos anos 1990. Agradeço também de modo muito especial a Antonella Tassinari, minha parceira neste debate por todos estes anos, com quem tanto realizei, e a Andrea Szulc, Adir Nascimento e Ana Gomes, igualmente, e a todos e todas que tomaram parte dos muitos Grupos de Trabalho, Mesas Redondas e cursos que organizamos ao longo dos anos e que me convidaram a debater suas pesquisas em bancas de arguição. Mais recentemente, agradeço a Phillipe Erikson e a toda a equipe do LESC/Universidade de Nanterre, com quem pude debater em meu estágio de pós-doutorado este tema de nova forma, a Bonnie Chaumeil, Isabelle Daillant, Anath Ariel de Vidas pelo convite em debater este tema no Séminaire d’Anthropologie Américaniste, assim como a todos os participantes, e aos organizadores do II Encontro de Etnologia, História e Política, realizado na UFSCar, em especial a Aline Iubel, pelo convite de o abrir com este debate, assim como a todo o público que muito contribuiu para essas novas formulações do debate que aqui elaboro. Agradeço por fim, mas muito enfaticamente, a todas e todos os meus alunos que têm elaborado o tema comigo, em especial durante a vigência do nosso Observatório da Educação Escolar Indígena da UFSCar (OEEI/UFSCar) e no curso Antropologia da Criança. Gabriela Braga Loreti e Amanda Villa foram fundamentais em fazer acontecer esse dossiê. Sem os apoios financeiros de CAPES, CNPq e FAPESP ao longo destes anos as pesquisas que são o fundo dessas reflexões não teriam sido possíveis. Pesquisas em ciências sociais convidando a se dar foco às crianças têm seu início reconhecido, frequentemente, pelos textos de Corsaro (2005 [1997]), James e Prout 1990; James, Jenks e Prout (1997), Prout (2005) e James e Christensen (2010), a quem se deve acrescentar, muito evidentemente, Toren 1999. Cf., para uma visão a partir do Brasil, Nunes (1999, 2001), Lopes da Silva e Nunes 2001, Cohn (2000c, 2005, 2013), Pires (2007, 2010). Para uma análise comparativa entre as antropologias brasileira e argentina no tema da antropologia da criança, cf. Szulc e Cohn 2012.
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é uma ambição que pode parecer modesta mas que se revelou, nestas décadas, um grande desafio, e que às vezes pareceu mesmo intransponível – quem sabe, com esforços como esse, possamos pensar em um momento em que etnólogas e etnólogos que pesquisem os Kaiowá, Kalapalo, Xakriabá, Xavante, Kaingang, Laklãnõ, Bororo, Guarani-Mbyá, Baniwa, Potiguara, Maxakali, Pataxó, Avá-Guarani, só para dar alguns exemplos tirados desse conjunto, estejam convencida/os de que ler sobre suas crianças é imprescindível para um debate bibliográfico e etnográfico em suas pesquisas, independente do tema específico a que dê foco (seja ele dos mais clássicos ou dos mais valorizados pela antropologia, como política, xamanismo, parentesco...). Ou seja, que se perceba que as crianças têm muito a revelar sobre parentesco, sua construção, as possibilidades de fazer pessoas e coletivos vividas e acionadas atualmente pelos ameríndios, suas relações com o Estado e as políticas públicas, o xamanismo, a comensalidade, os impactos de grandes empreendimentos, conversões religiosas...
Esse dossiê é mais um marco na etnologia indígena feita com e sobre crianças. Ele nos oferece um novo e atualizado balanço do que tem sido feito, desde um início deste debate realizado na década de 1990 no Brasil e publicado na coletânea Crianças indígenas: ensaios antropológicos (Lopes da Silva, Macedo e Nunes, 2001). Se, até então, como apontam as autoras e os diversos ensaios reunidos naquela coletânea, pouco havia sido feito na antropologia brasileira nesse campo, desde então o debate floresceu, e outras coletâneas surgiram (Casaro, Aguilera Urquiza, Vieira 2001; Grando, Carvalho de Carvalho e Lebre Dias, 2012; Tassinari, Grando e Albuquerque, 2012). Essas coletâneas, que deveriam ser somadas a artigos e capítulos publicados de modo mais esparso, assim como Trabalhos de Conclusão de Cursos, Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado, comprovam essa expansão. Mas este dossiê tem três importantes diferenciais, que devem ser levados em conta. Fruto de uma chamada aberta da r@u, que obteve grande quantidade de respostas, as quais contaram com leituras cuidadosas de pareceristas que muito colaboraram com a qualidade final do conjunto3, ele revela o caráter interdisciplinar do campo. Efetivamente, 3
Aproveito para agradecer às e aos pareceristas, que não nomeio aqui porque diversos optaram pelo anonimato em seu parecer, mas que foram de fato uma contribuição fundamental. Aproveitando esse espaço de introdução de um dossiê que problematiza os desafios persistentes a esse campo de pesquisa, aponto uma das questões que merecem reflexão: ao buscar pareceristas para a leitura e a avaliação dos trabalhos, tivemos que acionar pesquisadores especializados nos povos ou nas temáticas abordadas, mas que com frequência não eram especializados no tema das infâncias e das crianças indígenas – a quem, por isso mesmo, redobramos os agradecimentos por se engajar no desafio proposto. Isso, por um lado, nos aproximou, a todos, de um debate antropológico stritu sensu no que diz respeito às análises, mas também provocou um deslocamento de olhar da/os pareceristas, que estavam mais acostumada/ os com o debate de outros temas. Evidentemente, só este esforço já é um passo para o que apontávamos no primeiro parágrafo dessa introdução, mas foi um passo que também revelou as dificuldades a que Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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em Cohn (2005), eu já apontava para o rendimento de um olhar antropológico sobre as crianças para uma diversidade de áreas que lidam com os temas da infância e das crianças, e este dossiê o revela, com contribuições que vêm não só da etnologia, mas também do direito, de análises de políticas públicas, da educação e da saúde. O segundo, e talvez mais importante diferencial, é a participação de pesquisadoras e pesquisadores indígenas que se debruçam sobre este tema, trazendo-nos uma visão, e uma antropologia, inovadoras. Para ainda reforçar este diferencial, contamos com reflexões sobre os efeitos que essas pesquisas têm produzido, desafiando indígenas a pensar sobre si mesmos e sobre o valor da antropologia para tal, e à antropologia a ela mesma. O terceiro vem dos Cadernos de Imagens, que desde a chamada pública foi um convite a contribuir com etnografias visuais e fotográficas, para além de um ensaio fotográfico – elas todas, assim, têm um argumento por trás da seleção de imagens. Dentre elas, contamos com reflexões de pesquisadores nãoindígenas sobre as fotografias tiradas de e com crianças, sobre as relações pesquisador/a com as crianças no campo, e produções fotográficas feitas por indígenas que revelam um olhar atento – neste sentido, propriamente indígena, na atenção dedicada às crianças – não só sobre as infâncias em seus povos, mas às infâncias indígenas.
Em seu caráter multidisciplinar, optamos por montar o dossiê percorrendo áreas de debate. Iniciamos, assim, com textos que demonstram, exatamente, que falar de infância e de crianças com e por indígenas demanda um outro recorte – se a infância é tratada normalmente como a vida após o nascimento, entre indígenas sua produção, e sua capacidade agentiva, começam muito antes, na gestação e no parto. Os textos de Melissa Oliveira, sobre um parto entre os Tukano do Alto Rio Negro, e de Erica Dumont Pena e Rogério Corrêa, sobre o parto, os cuidados na gestação e os cuidados perinatais dos Xakriabá de Minas Gerais, além das ações que formam a pessoa logo em seus primeiros momentos, nos abrem o debate. Logo seguimos com o debate sobre as aprendizagens infantis que tomam as crianças como atuantes nesse processo, em contraposição a outra imagem recorrente, a da criança-aprendiz que seria instruída e teria suas aprendizagens dirigidas4, com as contribuições de Bruno Ferreira sobre as crianças Kaingang do Rio Grande do Sul, que entre outras coisas nos faz refletir sobre as modificações de olhar
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me referi– entre uma espécie de condescendência com o que se pensava um ser tema que se iniciava e leituras que se afastavam do tema central e solicitavam desenvolvimentos que, exatamente, respondiam mais a outros temas da etnologia feita nos textos avaliados, fugindo da contribuição da atenção às crianças. Evidentemente, mais uma vez, esse apontamento é feito para ressaltar a necessidade de chegarmos a um momento em que as pesquisas feitas com crianças indígenas possam ocupar um papel não mais marginalizado nos debates, e não deve minorar o agradecimento que fazemos aos esforços contidos em todos os pareceres e a disponibilidade de quem os fez. Cf. Tassinari (2009) sobre as dificuldades metodológicas de se pesquisar as aprendizagens indígenas por pesquisadores não-indígenas, excessivamente escolarizados.
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devidas para se entender o que seria a imitação neste contexto, e de Veronica Monachini de Carvalho e Lucas da Costa Maciel, que trazem uma contribuição importante ao pensar as aprendizagens das crianças em relação ao regime de conhecimento Kalapalo da Terra Indígena do Xingu (TIX), além do debate de Denize Refatti sobre a participação e a aprendizagem das crianças Ava-Guarani do Paraná na arte de sonhar e interpretar sonhos e de Amanda Marqui sobre os diversos ambientes e as diversas relações de aprendizagem das crianças Baniwa do Rio Içana, no Alto Rio Negro. Severiá Idiorê nos traz uma reflexão ímpar, sobre as crianças Xavante do Mato Grosso vistas por uma mãe de uma filha Xavante que é ela mesmo filha de Karajá e professora da aldeia, nos fazendo ver essa infância e suas aprendizagens de uma diversidade de pontos de vistas, todos explicitados e debatidos no texto. Juliana Guimarães Saneto e Jocimar Daolio nos apresentam os movimentos de aproximações e distanciamentos e tensões entre a educação indígena, não-escolar, e a educação escolar, vistos a partir não só das participações de adultos na escola e de atividades escolarizadas na aldeia, mas também das atividades das crianças Bororo do Mato Grosso e de sua corporalidade. Luana Santos da Silva, Mártin César Tempass e Narjara Mendes Garcia nos levam a acompanhar as crianças Mbyá-Guarani no Rio Grande do Sul em processos de aprendizagem relativos a processos de educação ambiental, e Roberto Murabac nos desloca o olhar para as crianças indígenas que vivem em contexto urbano e se inserem em contextos escolares não-indígenas, debatendo assim como sua infância deve ser negociada em contextos institucionais pouco preparados, ou frequentemente avessos, a estas suas particularidades. Sônia Lucas e Antonio Hilario Aguilera Urquiza nos remetem ao contexto Kaiowá do Mato Grosso do Sul, nos apresentando, nesta situação nacionalmente reconhecida como de grande vulnerabilidade, as impressões das crianças sobre sua situação como parte de coletivos em uma experiência de “moradias móveis”, como as denominam, nos levando a ver as vantagens, as limitações e os desafios das áreas de retomada e da condição contemporânea de mobilidade deste povo em constante luta territorial pelo olhar das crianças. Diógenes Cariaga, Silvana Jesus do Nascimento e Levi Marques Pereira nos levam de volta ao contexto do Mato Grosso do Sul, dessa vez colocando em diálogo as condições contemporâneas e regionais de produção de pessoas e coletivos Guarani e Kaiowá, demonstrando que estas se dão, atualmente, tendo o nãoindígena como uma de suas partes constituintes, mas em contínua tensão, demonstrada aqui pela violação de direitos dessas crianças em nome dos direitos universais da criança, e no debate das políticas públicas de que são alvo. Marcondes Namblá, cujo texto aqui é publicado postumamente, por ter sido ele vítima de assassinato motivado por discriminação e violência contra indígenas, vindo por isso apresentado por uma homenagem a ele e uma denúncia dessa violência, em texto de autoria de Antonella Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Tassinari, Suzana Cavalheiro de Jesus e Jozineia Danisa Kaingang, todas participantes do processo formativo do pesquisador, nos traz outra questão: examina de modo inovador os impactos que os grandes empreendimentos têm sobre as crianças, demonstrando como a construção da Barragem Norte afetou os banhos de rio das crianças Lãklãno (Xokleng) de Santa Catarina, importante momento de aprendizagem, relacionalidade e formação do corpo, sendo esta, em meu conhecimento, a única análise já feita sobre o tema – dos impactos do desenvolvimentismo e das grandes obras sobre as crianças.
Passamos então para um novo bloco, em que os direitos das crianças indígenas, ou de indígenas que são crianças, são analisados, tendo por base as contribuições das etnografias sobre crianças indígenas para uma análise que se coloca no campo jurídico. Assis de Oliveira, que há tempos tem chamado a atenção para os desafios das articulações entre os direitos indígenas e os direitos das crianças, propondo que se atue juridicamente com referência a indígenas crianças, de modo a enfatizar os direitos indígenas em relação aos direitos universais das crianças propostos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Oliveira 2014), aqui nos remete à reflexão da contribuição da antropologia e das pesquisas antropológicas com e sobre crianças para o campo jurídico, ampliando-a para um debate sobre o papel que profissionais em antropologia têm, poderiam e deveriam ter nos procedimentos jurídicos que envolvem essas indígenas crianças. Romário Edson da Silva Rebelo e Raimundo Wilson Gama Raiol partem da avaliação documental e bibliográfica de três casos para debater a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente contemporânea, de modo a demonstrar que, até pela pouca participação indígena nestes processos, ela atende de modo muito deficitário às especificidades das infâncias indígenas, reproduzindo assim o que denominam uma “ordem jesuítica”.
Em um novo bloco de reflexões, passamos a textos que contribuem com uma reflexão sobre o modo como as produções em antropologia feita por indígenas inova este campo de pesquisa. Iniciamos com uma reflexão de duas pesquisadoras não-indígenas, Ana Maria Machado e Ana Maria Rabelo Gomes, sobre uma espécie de antropologia cruzada, em que os olhares diferenciados de pesquisadoras não-indígenas sobre as crianças indígenas e de pesquisadoras indígenas sobre crianças não-indígenas nos revela de modo agudo as diferenças tanto dessas infâncias quanto dos interesses e da atenção que cada lugar de pesquisa dá a elas, a partir de suas experiências de pesquisa com os Yanomami de Roraima. Seguimos com as reflexões de Adir Casaro Nascimento, Carlos Magno Naglis Vieira e Antonio Carlos Seizer da Silva, que nos apresentam um balanço das pesquisas feitas com e sobre crianças no Mato Grosso do Sul, que, enfatizamos, é um dos contextos acadêmicos com maior número de produção acadêmica sobre o tema – o que o conjunto dos textos Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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do dossiê já revelariam por si só –, mas que trazem ademais um debate sobre como o que denominam de epistemologias indígenas trazidas por diversos pesquisadores indígenas lá atuantes, os quais revelam um novo olhar, para as pesquisas, sobre as crianças. Fechamos então os artigos do dossiê com as reflexões de Antonella Maria Imperatriz Tassinari, Suzana Cavalheiro de Jesus e Clarissa Rocha de Melo, que partem da experiência da oferta de uma disciplina sobre Infância Indígena durante o Curso de Licenciatura Intercultural do Sul da Mata Atlântica/UFSC, tendo como alunos representantes dos povos Guarani, Kaingang e Xokleng (Laklãnõ), e suas produções de pesquisa. O texto nos permite refletir não só sobre as diferentes apropriações da reflexão e do instrumental da antropologia por cada povo para refletir sobre suas infâncias, de acordo com suas concepções de infância, mas também a problematizar uma certa “domesticação” dessa reflexão ao torná-la, mesmo que de modo diverso e com o intuito de respeitar e se manter atentas a essa diversidade, das vivências e reflexões por pesquisadores indígenas sobre sua concepção de infância, reflexões estas que são acadêmicas e antropológicas, e seus efeitos que advém do meio pelas quais são feitas, essas ferramentas que lhe são exteriores. Assim, em seu conjunto, nas reflexões cruzadas de indígenas e não-indígenas sobre as crianças de umas e de outras, da produção acadêmica por indígenas e da formação de pesquisadores indígenas, esse bloco nos permite refletir de modos diferenciados sobre a produção indígena em antropologia (e educação) sobre suas infâncias. Contribui assim para um debate que certamente terá maiores desenvolvimentos à medida em que cada vez mais indígenas se apropriam, na academia ou fora dela, das ferramentas de nossa disciplina para pensar a si e a seus outros. Mas os artigos em sua forma textual não compõem o todo do dossiê, como anunciamos acima. Há nele narrativas visuais, introduzidas por textos, mas que em seu conjunto se propõem à reflexão pela visualidade. Dois desses Cadernos de Imagens são produzidos por não-indígenas – o meu mesmo, em que reflito sobre os diversos registros fotográficos tomados durante a pesquisa de campo com os Xikrin do Bacajá, do Pará, sejam eles registros etnográficos para fins de pesquisa, encomendas de mães para registrarem momentos (cruciais) da vida de suas crianças (momentos estes marcados exatamente pela visualidade, pelas pinturas e pelos adornos), e por fim as intervenções das próprias crianças foco ou testemunhas dos registros nas fotografias. O Caderno proposto por Daniel Revillion Dinato explora o diálogo dele, pesquisador não-indígena, com as crianças Huni Kuin, do Acre, por meio da câmera de seu celular, superando assim uma barreira linguística, suprindo as curiosidades das crianças sobre ele e suas coisas, e, como anuncia em seu breve texto, tornando-o, e assim o registrando, criança. O caderno de fotos de Elissandra Barros da Silva nos traz um pouco da vida das crianças Palikur-Arukwaneye, em registros Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de pesquisa que são hoje também parte de acervo fotográfico sobre esse povo, e que nos revelam a importância das águas para os povos do Uaçá. Edgar Corrêa Kanaykõ |Xakriabá nos brinda com sua Etnofotografia apresentando registros de crianças Xakriabá, Guarani, Maxakali e Pataxó para nos mostrar como essas crianças aprendem sobre o mundo em que vivem, enquanto Tanielson Rodrigues (Poran Potiguara) volta seu olhar e sua câmera sobre a infância de seu povo, da Paraíba, apresentando uma diversidade de atividades e ambientes que fazem parte de suas vidas.
As pesquisas sobre crianças indígenas no Brasil: estado da arte
Como vimos, o dossiê se soma a outros conjuntos de textos, mas também a uma intensa produção em forma de artigos, capítulos de livros, livros, dissertações e teses que apresento brevemente (e certamente não de modo exaustivo) aqui, de modo a demonstrar a variedade de temas a que o olhar para as crianças permite abordar, além do próprio florescimento do campo de pesquisas em etnologia indígena sobre e com crianças. Tassinari (2007) já fez um apanhado dessas pesquisas, demonstrando o que elas nos revelam em uma especificidade das infâncias indígenas; aqui, fazemos o oposto, demonstrando a diversidade dos temas a que cada uma dessas concepções e vivências de infâncias nos remete em pesquisas em etnologia.
Não seria justo sugestionar o leitor a pensar que o olhar de etnólogos para as crianças só tem início a partir desse novo interesse da antropologia sobre elas. Pelo contrário, pesquisadores clássicos já haviam se dedicado a debater as infâncias, tal como Schaden (1945, 1976), que voltou seu olhar de modo sensível às crianças guarani, enfatizando a autonomia que lhe é reconhecida, os cuidados para seu desenvolvimento físico e a liberdade que se lhes permite para isso, e apontando que, ao contrário, não exisitiria para este povo a noção de uma “formação moral” da criança, dada que sua alma lhe traz um “caráter inato”5. Florestan Fernandes – que aliás também é reconhecido pela sua atenção às crianças no estudo sobre as Trocinhas do Bom Retiro – também dedica um texto às fases da infância entre os Tupinambá, em uma extensão de seus estudos feitos de reconstituição etnográfica a partir de textos históricos. Este autor aborda de modo bastante detalhado as passagens na vida durante a infância dos Tupi da Costa, em uma etnografia impressionante, mas volta-se também ao debate da educação, desta feita generalizando para todos os indígenas, e diferenciando o que seria uma educação tradicional daquela 5
Em suas palavras, que seria uma pena não retomar: “Ora, é bem possível que o bebê tenha a alma (ou melhor, as almas) de um ilustre e competente ñanderu falecido ou de algum velho que todos hajam conhecido como pessoa sábia, correta e respeitável. Singular a pretensão de quem quisesse dar-lhe educação moral (Shaden 1976:25).
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das “sociedades voltadas para a mudança”, sugerindo, assim, que, para os indígenas, a educação não se limitaria à aprendizagem de técnicas e saberes, mas deveria conformar o indivíduo ao que denomina de um “Nós coletivo” (Fernandes 1976: 71). Portanto, as abordagens da época estão marcadas pelo culturalismo e um certo funcionalismo que marcava a etnologia como um todo, e esses autores em particular (Cohn 2000c, 2001). Além disso, como demonstra Nunes (2001), praticamente todos os estudos em etnologia indígena passam, mesmo que não o reconhecendo explicitamente ou não o tomando do modo como sugerimos aqui, por um debate sobre as infâncias indígenas, desde a gestação a seus cuidados e à formação da pessoa.
Como passagem importante, há três autores que devemos reconhecer. Um estudo a se reconhecer como pioneiro é o de Joanna Overing, sobre a o conhecimento e o desenvolvimento infantil das crianças Piaroa, em que aponta, de um modo inovador, um debate sobre o que tenho chamado de concepção de infância (Cohn 2000c, 2013), ao demonstrar que desde cedo a pessoa Piaroa, para realizar a autonomia pessoal sobre a qual a autora elabora em diversos trabalhos (Overing 1991, 2002), deve ser capaz de controlar o que traduz por “vida dos sentidos” e “vida do pensamento” e realizar o equilíbrio entre elas (Overing 1988). Erikson (1987) faz um estudo de grande beleza sobre um ritual de passagem que se volta às crianças. E, por fim, mas provavelmente o mais importante destes, quando o campo da antropologia da criança e seu impacto na etnologia indígena ainda não se anunciava, os trabalhos de Peter Gow, entre os Piro – ou os povos do Baixo Urubamba como especificava em seus primeiros trabalhos – já o prenunciava. A importância para os Piro da escola e sua relação com o xamanismo já havia levado o autor a entrever o tema; mas foi sua abordagem inovadora aos estudos do parentesco, para estes povos em que, como demonstrou, parentesco é história, e história é memória do cuidado, que o fez particularmente sensível à questão, contribuindo com análises belíssimas para o tema (Gow 1989, 1991, 1997).
Mas a consolidação mesmo deste campo vem nas últimas décadas com diversas pesquisas feitas com e sobre crianças indígenas que – e este é nosso argumento principal – têm direcionado o olhar de pesquisadores para temas os mais diversos. O exemplo Maxakali sempre me parece o mais contundente neste sentido, já que com ele se vê o modo como xamanismo, ritual, os conhecimentos que são cantos e as alianças e os conflitos políticos podem e devem ser entendidos privilegiadamente por meio das crianças (elas são os espíritos que dançam e cantam, os cantos, seus conhecimentos, e quem canta nos rituais, as que refazem alianças políticas ou marcam o conflito por sua circulação entre famílias, ou com o Estado, dentre tantas outras coisas) (Alvarez, 2004, 2014, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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2018). Mas esse campo é tão diverso como o são todos os demais para os quais façamos o exercício de agrupar a partir de um tema – digamos, xamanismo, conversão, guerra, parentesco, ritual, ou qualquer outro –, exatamente por explorar situações etnográficas elas mesmas diversas. Das crianças adotadas e suas relações ambivalentes entre ser da família e guacho entre os Kaiowá (Pereira, 2001) às crianças que são privilegiadamente raptadas e seduzidas, em detrimento da gestação, entre os Kadiwéu (Lecznieski, 2005); das crianças que se tornam indígenas e alunos/as ao mesmo tempo, como as Guarani de Jacundá (Marqui, 2016), em um processo múltiplo de aprendizagem do que é ser indígena e do que é estar na escola, às crianças Xikrin que aprendem sobre a alteridade na escola (Beltrame, 2012); reformulações das noções de aprendizagem, tal como em meu próprio trabalho sobre as crianças Xikrin, em que a condição do aprendizado é o interesse próprio, e não um reflexo da distribuição e circulação dos conhecimentos e das prerrogativas cuja transmissão a bibliografia especializada vinha mostrando como tão regulamentada, criando corpus pessoais de conhecimentos valorizados como tais (Cohn, 2000a, 2000b), ou das aprendizagens entre pares (Codonho, 2007); a construção desde a infância de relações de parentesco e afinidade pelas próprias crianças, como no processamento da caça dos meninos por uma de suas irmãs que cria um vínculo por toda a vida para os Xikrin (Cohn, 2000b) ou a demonstração por Codonho (2007) de que os cônjuges potenciais são aqueles com que não se brinca na infância, assim como Miranda (2014) demonstra para os Asurini e suas relações estabelecidas em seus terreiros, entre terreiros e nos rios, em um jogo de parentesco e inimizade; a construção do corpo da criança em uma visão ampliada em relação ao que a bibliografia da etnologia havia mostrado – centrada que estava em descobrir se sêmen e sangue contribuem ou não na formação do corpo da criança –, demonstrando que elas são moldadas depois de gestadas e após o nascimento (Cohn, 2000a; Demarqui, 2018; Miranda 2014), que seus corpos são formados por mais do que “carne e osso” mas uma diversidade de outras coisas (Miller, 2015), que a fabricação de seus corpos são pensadas e produzidas como em conjunto, análogas ou em complementaridade com a fabricação de outras coisas (Walker, 2009; Miranda, 2014); que análises de conversão religiosas podem ser iluminadas quando se olha para as crianças, e para o debate sobre como elas devem ser educadas e cuidadas, assim como a sempre complexa e tensa relação entre o xamanismo, a feitiçaria e o cristianismo, como demonstram os Baniwa (Marqui, 2017); que o parentesco não se resume aos “humanos” mas se estende a outros seres, como os filhos-planta Jarawara (Maizza, 2014) ou tudo o que é criado (Garcia, 2014), incluindo, para os Karitiana, os cachorros, que são como filhos (Vander Velden, 2012); que sua mobilidade ou imobilidade dão acesso a possibilidades de trânsitos e de relações (Correia da Silva, 2011; Mantovanelli, 2010, 2011; Cohn, 2000a; Miranda, 2014); que Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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nascimento não seria uma “passagem” do mundo dos espíritos, sobrenatural para o humano, cultural/social, mas um esforço constante de fazer com que a criança que chega se sinta acolhida e feliz com suas novas relações – o que é, como demonstra Pissolato (2007), o trabalho mesmo do parentesco; que elas estabelecem relações especiais de alteridade, sendo com frequência preferencialmente as que se colocam e são colocadas à frente e na intermediação com Outros, como os Guarani-Mbyá (Oliveira 2004, 2005), em especial em sua atuação nos corais que se tornaram famosos, mas também na escola e nas rezas, ou os Maxakali, ponte entre famílias que romperam por conflitos e se mobilizam em um processo de reaparentamento, ponte com os espíritos, espíritos elas mesmas (Alvarez, 2004, 2014, 2018), ou como mote das relações com os não-indígenas e seu dinheiro e suas mercadorias, como os Kalapalo que dizem deles necessitar para atender aos desejos de suas crianças (Novo, 2017); que os direitos das crianças que são indígenas devem ser vistos a partir dessa condição dupla, de ser criança mas principalmente de ser indígena, e, portanto, de ter direitos específicos (Oliveira, 2014); e que os impactos de grandes empreendimentos podem ser vistos por meio das crianças, por exemplo na relação com as águas e o banho que se modificam quando da construção de barragens (Namblá, 2015).
Essa compilação de textos já nos mostra como essa produção bibliográfica, que tem, a não ser por poucas exceções (nominalmente os textos sobre os Jarawara, os Karitiana , os Kalapalo, os Guarani-Mbyá por Pissolato e os Awá-Guajá), as crianças, quando foco das atenções etnográficas, nos leva a discussões tanto clássicas na antropologia – parentesco, ritual, cosmologia, guerra –, quanto a outras nem tão antigas mas já plenamente reconhecidas como temas relevantes à etnologia – conversão religiosa, educação escolar indígena, políticas indigenistas -, assim como podem contribuir àquelas que se tem elaborado mais recentemente como relevantes, quais sejam, a produção das coisas em sua analogia à produção dos corpos (Santos-Granero, 2009), ao debate sobre a dicotomia natureza e cultura/sociedade, sobre perspectivismo e animismo (Descola, 1986, 1992, 1998, 2005; Lima, 1996, 1999; Viveiros de Castro, 1996, 2002, 2006), a uma antropologia transespecífica, a questões sobre políticas e direitos indígenas, às discussões sobre como indígenas têm lidado com as traduções e os usos da noção de cultura (Carneiro da Cunha, 2004; Sahlins, 1997; Wagner, 1981) e os regimes de conhecimento (Carneiro da Cunha, 2004), além de questões metodológicas e epistemológicas que têm sido elaboradas por autores tais como Ingold, em especial em sua proposta de deslocar a noção de produção (de pessoas, coletivos) ao “fazer crescer”, que já aparece em seu primeiro trabalho de proposição de uma nova abordagem antropológica (Ingold, 2000) e é desenvolvido posteriormente em sua obra, Eduardo Viveiros de Castro (2004) ou Strathern (2014). Muito antes disso, como vimos, Toren (1999 [1993]) já havia demonstrado, a partir da Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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análise comparativa de quatro etnografias, como o olhar para as crianças pode revelar o que teria de outro modo sido obliterado ao ou à antropólogo/a ao se atentar apenas aos adultos e ao que estes fazem e dizem. Se de um lado podemos ver, como demonstrou Tassinari (2007), algumas características em comum às infâncias indígenas, por outro a análise de Mantovanelli (2010, 2011) nos faz lembrar que há um risco sempre iminente de se estereotipar essas infâncias como “indígenas”. Tendo se deparado com um contexto etnográfico em que as crianças eram em tudo diferente do que a bibliografia lhe apresentava – as crianças Kaingang viviam em seus quintais e protegidas do contato com outros –, a autora nos propõe uma interessante reflexão de como os contextos etnográficos devem ser levados a sério e que, assim, as diversas concepções de infância (como elaboro em Cohn, 2013), de seus cuidados e de suas vidas devam ser levadas em conta.
Elaborações futuras, problemas que permanecem: uma agenda de pesquisa
Inicio este item argumentando pela urgência de se estabelecer uma melhor articulação entre o que se tem elaborado em geral na etnologia indígena e os estudos em antropologia com e sobre crianças indígenas, em especial as produções em etnologia indígena centradas nas crianças e aquelas centradas em estudos das relações com os animais, das plantas e seu cultivo, e dos objetos. Do lado da antropologia da criança, a consolidação de um campo de pesquisa, em sua urgência em demonstrar que as crianças são interlocutores legítimos de pesquisa – consolidação essa que foi alcançada, como busquei demonstrar acima – acabou por não andar a par com o reconhecimento pela etnologia indígena como um todo de que pesquisas com crianças possam permitir um novo olhar para os povos indígenas com que se estuda. De fato, embora desde há décadas antropólogos que estudam crianças tenham afirmado isso, como foi o caso do já mencionado texto seminal de Toren (1999 [1993]), ou seja, que os estudos com as crianças podem revelar aspectos importantes para as pesquisas antropológicas, podendo inclusive elucidar aspectos pouco acessíveis a partir dos estudos apenas com adultos, e embora a antropologia anuncie uma agenda de deixar de se limitar a homens adultos como interlocutores da pesquisa, diria que, enquanto a interlocução com as mulheres ganhou um maior espaço no debate antropológico, este continua grandemente “adultocêntrico”. Na academia brasileira, é visível a falta de debate de campos específicos com os estudos que tenham sido realizados com crianças. Assim, se antropólogos que se dedicam a estudos com e sobre as crianças concordam e vêm seus trabalhos reconhecidos como legítimos, e que as crianças têm a nos revelar sobre nossos campos de pesquisa, mesmo quando esta Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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legitimidade não seja explicitamente questionada por outros antropólogos, ela não chega a ser, de fato, reconhecida em pesquisas e em seus campos de interlocução nos trabalhos que não vêm a ter a criança como foco. Se a consolidação do campo de pesquisa foi um grande desafio, e é atualmente uma conquista, sugiro que estamos em um momento de revisão – necessária –, de modo a nos tornarmos cada vez mais capazes de pensar essas crianças em toda a complexidade dos mundos em que se criam, e, inversamente, compreender melhor essa complexidade e variedade de mundos também em diálogo com as crianças, que os compõem e criam. Se de um lado a antropologia da criança tem demonstrado que as crianças são “seres sociais plenos” e plenamente produtores de cultura, em uma resposta direta à ideia de que elas seriam e deveriam ser “socializadas” ou “enculturadas”, demonstração esta que tem sido feita em diversas etnografias e aprofundadas com debates conceituais como a revisão do conceito mesmo de socialização (Cohn 2000c, 2001, 2005), tais estudos têm, no entanto, restrito este debate a uma “sociedade humana”, muito embora a demonstração, há décadas, de que as socialidades ameríndias extrapolam o “humano”, englobando nãohumanos tais como animais, plantas, espíritos e objetos, ou, para formular de outro modo, estendendo a pessoalidade para além da humanidade. Esta, afinal, tem sido a demonstração do perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro 2002) e do animismo (Descola 2005), e o debate sobre pessoalização e humanização tem sido diversamente efetuado desde então (cf. por exemplo Villaça, 2005; Coelho de Souza, 2001). Igualmente, a revisão de “socialidade” para os ameríndios, e a crítica à utilização do termo “sociedade”, que muito deve às contribuições de Strathern (1988, 1989) e Toren (1989) vem a par destas demonstrações. Porém, o debate e a crítica à socialização das crianças indígenas sugere uma criança que é ator social pleno em meio a uma sociedade que é humana.
Há tempos, propus que os estudos sobre crianças indígenas abandonassem as ideias de socialização e enculturação para dar conta das realidades ameríndias e de suas práticas de criação e sua relacionalidade de um modo que não se restringisse aos pressupostos de que as crianças seriam seres sociais ou culturais em formação. Propus que pesquisas que partissem da noção de pessoa, da produção da pessoa, seriam mais fecundos para estudos antropológicos das crianças indígenas (Cohn, 2000b, 2001b), acompanhando desse modo as evidências que elenquei sobre a rentabilidade nas pesquisas dos estudos da noção de pessoa. Mais tarde, propus, para todos os estudos em antropologia da criança, as indígenas inclusive, que as concepções de infância presentes e em jogo em cada caso fossem sempre consideradas como um ponto de partida das análises, de modo a evitar que se partisse sempre de uma ideia que se pretende universalizável, mas não é (Cohn, 2013). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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No entanto, uma série de pesquisas sobre crianças indígenas têm efetivamente pautado sua criação em termos de sua circulação entre humanos, tematizando por exemplo os estudos de adoção, rapto e cativeiro. Nestes casos, elas são pensadas em termos de um cenário que trata da confirmação de coletivos e, às vezes, mais explicitamente, de formação de grupos políticos e da liderança. Esta foi, inclusive, uma leitura crítica que minha primeira análise sobre as pinturas corporais e a ornamentação das crianças Xikrin recebeu, argumentando-se que ela era desenvolvida a partir de um pressuposto de construção de identidades sociais (Demarchi, 2013).
Estes estudos sobre o lugar da criança nas sociedades ameríndias têm se pautado seja na ideia de predação, seja na de produção de comunidades. No entanto, o modo como esta participação fundamental das crianças tem sido analisado é por meio da “mediação” que realiza com os espíritos e com o sobrenatural; essa ênfase pode ser vista pela sintetização do campo feita na época por Tassinari (2007), em que retoma estas etnografias para apresentar um dos aspectos fundamentais que propõe para o entendimento das infâncias indígenas, o de “mediadores cosmológicos”. Ora, a ideia mesmo de uma sobrenatureza tem sido revista junto com a revisão do par Natureza/Cultura (Viveiros de Castro, 2002). Assim, a releitura que sugiro, e que penso, mais de década depois do texto referido, estarmos prontos a realizar, consiste em que possamos fazer destes casos e nas pesquisas sobre crianças indígenas uma leitura mais ampliada da criação das crianças que não restrinja suas relações ao “mundo humano” – a que a apresentação do campo que fiz acima já deve ter convencido o leitor. Esta não é uma questão de solução fácil, porém – veja-se, por exemplo, o debate por Coelho de Souza (2001) sobre os termos “pessoalização” e “humanização”. Neste sentido, sugere-se que análises do aspecto de “humanização”, que estão na criação das crianças e que nela estabelecem corpos humanos e afecções humanas (Viveiros de Castro, 2002), e que são fruto do parentesco (Gow, 1991), são importantes variáveis no estudo destes cuidados, mas que, paradoxalmente, não têm sido analisadas nas pesquisas da etnologia indígena voltadas para as crianças.
Do outro lado, as revisões das pesquisas tanto com e sobre crianças indígenas como sobre a relação com animais, plantas, espíritos e objetos pelos indígenas, mostraram que a dificuldade de diálogo vem de ambos os lados, já que, de modo muito revelador, estes estudos também deixam de examinar a criação das crianças como parte de seu campo de análise, mesmo que a chamem ao texto com frequência em exercícios de analogia ao que enfocam, mas de modo estereotipado e pouco atento à produção específica no campo. Nestes estudos, como ocorre, aliás, na maior parte da produção em etnologia
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indígena, pouco se refere às crianças. Embora estejam falando de cuidados, ou de produção de corpos, esta vertente dos estudos acaba por fazer, aparentemente, o inverso do que falávamos sobre a antropologia da criança – excluem do seu campo de análise a criança e os cuidados para com elas e a produção de seus corpos.
Talvez possamos contar como exceção Santos-Granero (2009), em introdução ao volume que reúne pesquisas sobre a produção de objetos pelos ameríndios. Neste texto, o autor remete a diversas etnografias discutidas no volume que introduz, e outras que, aliás, têm por referência o idioma da predação (Van Velthen, 2003) e da produção (McCallum, 1998, 2001). Por instigante que sejam suas observações, que nos demonstram as relações entre as diversas confecções artefatuais com as crianças, note-se, porém, que nos faltam duas coisas, ou nos falta uma enquanto sobra outra. Uma, a pressuposição da preeminência das confecções artefatuais sobre as demais, sendo, em suas palavras, “o modelo do corpo humano não o dos animais mas o corpo dos artefatos” (Santos-Granero, 2009: 7, minha tradução); a outra, uma elaboração mais detida sobre como esses corpos humanos, pertences dos humanos que os fazem, que dariam às crianças ameríndias sua “característica artefatual”, seriam efetivamente confeccionados, em sua articulação etnográfica com a criação dos corpos das crianças. Assim, quais são as matérias primas de que se faz o corpo humano e como ele é confeccionado como tal? Estas são questões que se pode elaborar exatamente a partir das etnografias que a etnologia indígena voltada às crianças nos trazem, mas que estão ausentes aqui, neste campo de debate. Mais especificamente, nos fica no ar o que o autor nos sugere a partir da dubiedade do processo de confecção que cria objetos simultaneamente subjetificados e objetificados. Como se dá, então, a subjetificação destes corpos das crianças? E em que medida, e como, eles são objetificados? Qual é, enfim, a diferença entre a confecção de corpos-objetos e corposcrianças?
Lembro que a etnologia há muito se debruça sobre a produção dos corpos humanos desde a gestação, ou, mais exatamente, especificamente na gestação. Discussões sobre o papel do sêmen e do sangue, redobrado no aleitamento materno, é um clássico das etnografias na região. No entanto, e não supreendentemente, o tema tem sido tratado a partir da discussão da colaboração de pais e mães na formação de um novo corpo, e não na análise sobre este corpo e como ele se constitui. Do mesmo modo, as discussões sobre o que anima este corpo, aquilo que com muita dificuldade e muitas justificativas se glosa por vezes como “alma” ou “força vital”, tem tratado das origens e dos destinos de tais almas, e não dos papeis por ela efetivados na constituição destes novos corpos, e destes novos seres. Ou seja, análises da criação e da confecção destes corpos como humanos não Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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têm sido feitas com o cuidado que merecem, assim como os processos de subjetificação – e subjetivação – e objetificação a que alude Santos-Granero. De fato, mesmo análises de pintura corporal, que têm demonstrado como esta é fundamental na humanização dos corpos, têm se detido pouco nestes aspectos – exceções feitas às análises das pinturas mebengokre (cf. Cohn, 2000 para uma abordagem das pinturas das crianças xikrin e sua releitura por Demarchi, 2013) e kaxinawá (Lagrou, 2013). Há muito esforço ainda a ser empreendido para articular estas pesquisas e estas temáticas.
Uma outra abordagem nos remete diretamente às crianças em um quadro comparativo mais amplo, aquela dedicada ao tema da maestria e da nutrição/alimentação/ cuidado, nurture. Em um texto em que endereçam a análise realizada por Strathern sobre comer e dar de comer (Strathern, 2012), Fausto e Costa (2013) propõem uma elaboração etnográfica, sul-americana, ameríndia, das questões por ela colocada. Como argumentam, estas só poderiam ser por eles elaboradas etnograficamente, em sua região de expertise. A referência principal para fazê-lo, como em muitos textos que têm elaborado em parceria, é a etnografia sobre os Kanamari realizada por Costa (2010, 2017). Em sua argumentação, que retoma também os Parakanã estudados por Fausto, os autores sugerem que o tema da alimentação, ou de nutrir, coloca em jogo a agentividade, de modo a estabelecer uma relação que será sempre assimétrica, mesmo que de modo ambivalente. Como sugerem, alimentar algo ou alguém deve ser diferenciado da comensalidade, exatamente porque “dar de comer para conter o outro em seu corpo não é o mesmo que comer junto para fazer parte do mesmo corpo” (Fausto e Costa, 2013: 160).
Ou seja, encontramos, neste esforço comparativo e analítico, uma tentativa, como a citada logo acima, de pensar os cuidados das crianças em relação a outros que estão, neste caso, vinculados à alimentação, ou ao dar de comer. Em primeiro lugar, observo que em uma nota no texto (Fausto e Costa, 2013; nota 2), os autores remetem às observações recebidas de Villaça em sua leitura do texto, que não reconhece a assimetria sugerida nestes casos a partir de suas pesquisas entre os Wari’, e lembram que o alcance analítico de sua proposta ainda está em questão em termos de uma comparação etnográfica. Mas, restringindo-nos não na amplitude da proposta analítica nos casos ameríndios, mas nos esforços empreendidos para abordar as diversas relações de cuidado e alimentação, gostaria de comentar a surpreendente articulação de análises de ciclo de vida – e, por que não, de ciclos do grupo doméstico (Fortes, 2011 [1958], cuja influência nos estudos em etnologia indígena sobre o crescimento das crianças e seu amadurecimento pude discutir em outro momento (Cohn 2000a) e com referência a uma bibliografia muito anterior (o que é, para mim, um reforço ao argumento para a revisão mútua dessas Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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discussões) – e da produção da parentalidade nesta análise. Mais uma vez, sugiro que estes empreendimentos comparativos não atentam como deveriam – mais ainda se compararmos a atenção dada a etnografias sobre pets, por exemplo – para as crianças e sua autonomia, o que já foi largamente demonstrado nas pesquisas sobre as crianças indígenas (Tassinari, 2007). Assim, a passagem do recém-nascido que deve ser alimentado em uma relação de dependência ao adulto que se insere como produtor autônomo em relações de mutualidade aparece mais como um pressuposto do que como uma análise etnográfica, exatamente por pouco atentar às relações que as crianças estabelecem antes de serem “produtoras plenas”.
Sendo assim, a relação com a fabricação dos corpos e a subjetivação e a objetivação das crianças poderão ser revistas, etnograficamente, perguntando-se em que realmente elas consistem; e as relações de maestria e assimetria, tomadas em cada caso etnográfico, poderão ser melhor analisadas pensando-se nas atuações das crianças nestes processos.
Articulações: uma proposta de diálogo contemporâneo para a etnologia com e sobre crianças
A articulação entre estes debates recentes da etnologia indígena, que envolvem as crianças, os objetos, os animais, os espíritos e as coisas, não é óbvia, como deve ter ficado claro no debate acima, mas, certamente, deve ser feita. Como apontei, estas pesquisas pouco têm dialogado, e será fundamental que o façam. Como fazê-lo é o desafio.
Como vimos, as abordagens do animismo e do perspectivismo ameríndio têm, de formas diversas, informado esses debates, desde certamente os temas dos animais e dos espíritos, e posteriormente, a cada novo texto, se sugere que estas abordagens não englobariam os demais temas – plantas (Oliveira, 2012; Mazzi, 2014) ou objetos (SantosGranero, 2009), e, como sugiro aqui, de alguma maneira, as crianças. Do mesmo modo, os debates vão sendo diversamente influenciados pelas diferentes abordagens da “produção”, ou a “economia moral da convivialidade”, ou da “predação”, ou a “economia simbólica da alteridade”, como as definiu Viveiros de Castro (1999).
Dentre a pluralidade de casos etnográficos e este jogo de abordagens, com múltiplas combinações possíveis, a necessária articulação se faz também plural, devendo estar aberta às perspectivas não só de preferência aos etnógrafos, mas, principalmente, que mais cabem a cada caso. Veja-se, por exemplo, no caso das crianças, as pesquisas que mostram o diagnóstico necessário para a verificação da “humanidade” do recém-nascido entre os Piro (Gow, 1991, 2000), em uma análise em que a tônica é a produção do parentesco, ou dos cuidados durante a gestação entre os Juruna, em uma abordagem em que se discute Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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o perspectivismo (Stolze de Lima, 1996). Este mosaico é ainda acrescido, como vimos, de propostas comparativas mais recentes, como a da maestria (Fausto, 2008; Fausto e Costa, 2013) ou a antropologia da vida (Pitrou, 2016) e dos sentidos (Surralès, 2009). A questão de fato é o que se está comparando, ou o que é comparável nestes casos. Compara-se crianças, animais, plantas e objetos, ou processos de produção, fabricação, subjetificação e objetificação? Meu argumento, que se reforça em vários dos autores citados, é de que são os processos que são comparáveis. Os ameríndios criam crianças, animais, plantas, espíritos, coisas. De fato, os argumentos de Ingold (2000) contra a utilização do termo “fazer” (ou “fabricar”, “produzir”) na antropologia me parece especialmente válido na etnologia indígena – assim, mais do que fazer, se criam, como argumenta o autor, as condições favoráveis para o crescimento – em meus termos, “cria-se”. É em torno da criação, e os modos pelos quais estão articulados etnograficamente e em uma perspectiva comparada, que deve ser elaborada a comparação.
Mas permanecem no ar as questões da humanidade, da subjetividade e da agência. Desde as primeiras formulações sobre o perspectivismo ameríndio, a questão do que seria o humano tem sido abordada – se humanos coincidem com animais e espíritos em ocupar o ponto de vista e a condição de sujeito, o que faz então a humanidade, ou seriam, no fim, todos igualmente humanos? Como sugere Viveiros de Castro (1996, 2000) desde suas primeiras formulações do perspectivismo, a humanidade não poderá mais ser tomada como uma essência, uma substância, um conteúdo, mas como condição. Por outro lado, quando reflete sobre as coisas-pessoas ameríndias, Santos-Granero (2009) sugere a subjetificação e objetificação dos corpos/objetos/pessoas como a questão a ser perseguida. E Holbraad (2011), em um texto provocativo, sugere a pergunta de se as coisas falam – e que, ao querer fazer falar as coisas, estaríamos engajados em um mesmo projeto “humanista” como aquele que adveio das críticas pós-coloniais de “dar a voz aos nativos”. As coisas poderiam, enfim, falar? E ele parece concluir: na realidade, podemos apenas etnografar as coisas a partir de seus usos pelas pessoas, já que elas talvez não possam, afinal, falar fora de sua associação com as pessoas. Fazer as coisas falarem seria de fato o objeto de uma outra ciência, a pragmatologia, esta “arte ao contrário”.
Neste ponto, volto às crianças – estas que há décadas temos demonstrado serem plenamente sociais e culturais. Assim, o que sugiro é que incorporar as crianças nestes debates que pautam essa socialidade ameríndia, que excede a “humanidade” (tal como concebem os não-indígenas e portanto por muito tempo a antropologia) e a estende para outros seres, é ampliar a discussão da criação das crianças para além dessa “sociedade humana”, e um passo crucial tendo em vista as muitas demonstrações de que as Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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socialidades ameríndias são elas mesmas amplas. No entanto, a agência das crianças, isto que demonstramos com tanto esforço, tem que ser uma parte importante destas análises. Talvez tenhamos que abraçar também essas múltiplas agencialidades, as de animais, plantas, objetos... e das crianças, que são, para os ameríndios, seres de alta competência social.
Sendo assim, o esforço terá que ser feito a partir de uma revisão dupla – enquanto os estudos sobre as crianças indígenas terão que cada vez mais tematizar esta socialidade ampliada em que ela está inserida, aqueles que buscam colocar no debate estas outras criações indígenas, de animais de estimação, plantas, espíritos, objetos, deverão poder realizar uma análise comparativa que tome a criança como ser social pleno, sim, mas agora desta socialidade ampliada. Sugerimos, assim, que os próximos passos neste campo venham a realizar essa articulação, em que se anuncia esta necessidade do ponto de vista da antropologia da criança, mas se enfatiza o caráter recíproco do esforço comparativo, em um empreendimento para realizar uma das articulações possíveis da etnologia indígena voltada à criança a outras pesquisas contemporâneas, voltadas a outras criações. Encerrando com um retorno ao início, ressalto que os textos e as etnografias fotográficas aqui reunidos já o demonstram de modos diversos e potentes. Cada infância abordada nos leva a outros temas, e extrapola a humanidade especificamente humana, colocando as crianças em sua devida relação com todos os seres de seus mundos. Estamos, talvez, em um momento efetivamente de passagem, um turno nas pesquisas. Quiçá próximos dossiês nos tragam elaborações neste sentido.
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Vida, poder e conhecimento: cuidados contemporâneos em torno do nascimento entre grupos Tukano Orientais1 do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico2 Melissa Santana de Oliveira Pós doutoranda em Antropologia Social (PPGAS-UFSCar) melzita.oliveira@gmail.com
Resumo Este artigo tem como objetivo argumentar que entre grupos Tukano Orientais contemporâneos o nascimento da criança é um momento considerado fundamental para a construção da pessoa e para a circulação de conhecimentos masculinos e femininos, e envolve uma articulação intergeracional e entre gêneros, para atualização de certas práticas de cuidados. As elaborações aqui apresentadas foram desenvolvidas a partir de 1
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A família Tukano Oriental é composta por 19 grupos linguísticos que na maior parte correspondem a grupos de descendência exogâmicos: Tukano, Tuyuka, Kubeo, Desana, Uanana, Pira-Tapuya, Bará, Barasana, Makuna, Tatuyo, Taiwano, Karapanã, Siriano, Yuruti, Miriti-Tapuya, Arapaso, Letuama, Pisá-mira, Tanimuka (CABALZAR, 2008). O grupo Tukano propriamente dito é composto por aproximadamente quarenta clãs exogâmicos e patrilineares [nomeados e hierarquizados] que habitam a região dos rios Uaupés, Papuri e Tiquié, estando distribuídos ao longo deste último desde o seu trecho baixo até o seu trecho alto (ANDRELLO, 2010). Tais clãs por sua vez se subdividem em segmentos de clãs, também nomeados e hierarquizados. Artigo desenvolvido a partir da atualização de parte da minha tese sobre os Tukano dos clãs Ñahuri e Hausirõ porã, moradores das comunidades Sopori Bua, Bote Purĩ Bua, Wahpu nuhku, Maha wai Tuhkurõ e Warĩ Tuhkurõ, do trecho médio do rio Tiquié, afluente do rio Uaupés, TI Alto Rio Negro, Noroeste Amazônico. Agradeço aos moradores destas comunidades, especialmente, Maria Aparecida Pinheiro, Daniel Azevedo, Celestino Azevedo, Vilmar Azevedo, Gilvan Azevedo, Cristiane Veiga, Palmira Azevedo, Luciano Azevedo, Balbina Azevedo, Rafael Azevedo, Oscarina Caldas, Jovino Pedrosa, Catarina Pedrosa e Nelson Pedrosa (morador de Oanu), pela paciência, confiança e interlocução sobre este tema. Sou grata ao professor Daniel Azevedo e aos antropólogos tukano Dagoberto Azevedo e Rivelino Barreto, pelo apoio em traduções do Tukano para o português e esclarecimentos conceituais. Agradeço a StephenHugh-Jones, Antonella Tassinari e Geraldo Andrello pelas sugestões ao capítulo que deu origem a este artigo e a Clarice Cohn, aos membros do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (PPGAS∕ UFAM) e pareceristas anônimos da Revista R@u, pelos comentários sobre as versões preliminares deste artigo. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM, RH Doutorado Edital 020∕2010), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, Processo PDSE 12260∕13-4) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processo 2016∕24017-8) financiaram parte da pesquisa bibliográfica e de campo que resultaram no artigo.
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Vida, poder e conhecimento
minha etnografia sobre homens, mulheres e crianças Tukano Orientais, moradores do trecho médio do rio Tiquié, afluente do rio Uaupés, TI Alto Rio Negro, Noroeste Amazônico. Palavras-chave: nascimento; parto; encantações xamânicas; Pessoa; Tukano Orientais. Abstract This article aims to argue that among contemporary Eastern Tukanoan groups, birth is a fundamental moment for the construction of personhood and the circulation of male and female knowledge, and it involves an articulation between genders and generations, for the updating of certain care practices. The elaborations presented here were developed from my ethnography on Tukanoan men, women and children, dwellers of the middle section of Tiquié river, a tributary of the Uaupés, Alto Rio Negro Indigenous Land, Northwest Amazon. Keywords: birth; childbirth; shamanic spells; Personhood; Eastern Tukanoan.
Para Aprígio Azevedo e Catarina Pedrosa (In memoriam) Em sua análise sobre noções sociais de infância e desenvolvimento infantil, Cohn (2000) aponta a importância de estudos que, mesmo sem ter a infância como foco, ao escrutinarem sobre a noção de Pessoa, apresentam dados e reflexões que contribuem para a compreensão do modo como é concebida a infância em certos grupos. Minha colaboração neste dossiê segue esse caminho e tem como foco processos relativos a construção do corpo e da pessoa, com ênfase nos cuidados efetivados entre grupos Tukano Orientais através de uma articulação entre gêneros e intergeracional. Cuidados em torno do nascimento Como é para a mulher da primeira vez do parto? Eles preparam com benzimento (bahsese) o local do parto. O momento de parto depende da pessoa. No meu caso, o parto foi às oito horas. Daí a parteira (iñanʉrogo) nos cuida até o momento de dar à luz. Logo ao nascer a criança, a parteira corta o cordão umbilical dela. Deste corte eles fazem benzimentos durante várias horas para a criança. Depois de receber benzimento, é posta na rede, daí eles fazem benzimentos durante várias horas protegendo a criança sobre sua formação, sua vida, para que tenha saúde. Depois parte para benzimento de coração (heriporã bahsese), nominando Diakuru, Umusi (nomes pessoais desana). Assim o faz ter vida com saúde e calma. Por isso, o recém-nascido não chora ao deitar na rede até amanhecer. Eles Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Melissa Santana de Oliveira deixam um dia de resguardo; e, num dia como o de ontem, nos levam para tomar banho. Levam-nos no porto, e a gente toma banho com papuakuhu (arbusto cuja casca serve para limpeza). Além disso, levam as brasas do breu e jogam no rio, lá. Daí banham, junto com a criança, seus pais. Depois traz de volta para casa, e benzedores benzem os alimentos, pimenta e outros. Alimenta-se somente de comida benzida. É assim (Catarina Pedrosa, Ñahuri porã, Wahpu Nuhku, 2013).
Assim contou a velha Catarina à sua filha Patrícia Massa e a mim quando perguntamos sobre como foram os cuidados relacionados à primeira vez em que ela teve um filho, há várias décadas atrás.
Grupos Tukano do médio Tiquié, afluente do Uaupés, TI Alto Rio Negro, não realizam mais rituais de iniciação masculina, porém continuam a realizar procedimentos em momentos importantes do ciclo de vida da pessoa, como os cuidados em torno do nascimento (bahuase, lit. aparecimento/surgimento): benzimentos (bahsese) 3, como
aquele em que se atribui o nome pessoal clânico, nome de benzimento (bahseke wame) ou nome de coração (heriporã wame)4 a cada criança que nasce, e o cumprimento de restrições (betise) por parte do pai e da mãe e da criança e, em menor grau, daqueles diretamente envolvidos no parto: o benzedor e a parteira. Decisões relativas a esses procedimentos são tomadas pelo benzedor e recomendadas a partir de aconselhamentos (werese) dados principalmente pelo mesmo e pela parteira.
Andrello (2004: 46) afirma que entre os Tukano e Tariano de Iauaretê a iniciação consistia em um reforço da nominação, que por sua vez “garante às pessoas a obtenção de certas capacidades vitais essenciais, sem as quais não crescem e não adquirem forças ao 3
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Os grupos Tukano Orientais possuem um vasto repertório de encantações xamânicas (bahsese), que designam em português benzimentos. São consideradas de grande importância aquelas realizadas por ocasião do nascimento da criança e repetidas em momentos de passagem de seu ciclo de vida. Aos homens que realizam as encantações no contexto familiar e da comunidade meus interlocutores designam benzedores (bahsegu). Aqueles que se destacam como grandes especialistas são chamados kumu. De acordo com Hugh-Jones, S. (1994: 42, traduções minhas) entre povos Tukano Orientais “A maior parte dos adultos compartilham alguns dos atributos do ~kumu [especialista xamânico] na medida em que eles conhecem algumas das encantações que eles usam, no contexto de sua família, para lidar com problemas que confrontam no cotidiano. O que distingue o ~kumu real é seu total domínio de uma gama bem mais vasta de tais encantações, seu conhecimento da mitologia associada, e sua habilidade em interpretar e controlar eventos para o benefício de uma comunidade mais ampla, da qual ele é o foco e frequentemente o líder”. O benzedor recita palavras em voz baixa sobre veículos (Buchillet, 1988 e Lolli, 2013) como o tabaco, o carajuru (pigmento vermelho utilizado na pintura facial e corporal, produzido a partir de processamento de folha homônima), o breu, alimentos, água e outros líquidos, plantas, que depois serão consumidos/ingeridos pela pessoa, aplicados no seu corpo, defumados sobre objetos e lugares. A tradução literal seria filhos da respiração (Andrello, 2004:236). Em Ramirez (1997: 55), ehêri po’rã, coração, ehêri põ’rã dare, insuflar a força vital.
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longo da vida” e que, com o fim dos rituais de iniciação masculina, a nominação tornou-se ainda mais importante no Uaupés. Os mais velhos relatam que no rio Tiquié houve uma perseguição por parte de padres salesianos que formavam catequistas locais para ajudá-los a convencer os demais a abandonar os cuidados relativos ao nascimento, especialmente os benzimentos. Finado Luciano Azevedo, do clã Ñahuri porã, morador da comunidade Mahawai Tuhkurõ, médio rio Tiquié, relata:
Os padres perguntavam porque eles costumavam benzer e formaram catequistas Tukano no baixo e no médio rio Tiquié que pediam que acabassem (literalmente, fechassem) com os benzimentos. Ouvindo essas conversas, os antepassados se reuniram em Barreira, (médio rio Tiquié) e começaram a dialogar, dizendo “nós somos outros, nos diferenciamos pelo benzimento, somos netos de pessoas que sempre benzeram”. Mas, com o convencimento dos padres, os catequistas seguiam dizendo “vamos abandonar isso, nós próprios temos costume de nos envenenar e morrer” (através de encantações xamânicas prejudiciais). Porém os filhos e noras desses que falavam assim ficaram muito doentes e começaram a morrer. No período de nascimento da criança, tomavam banho, comiam, sem serem benzidos. Seus filhos não tinham benzimentos de banho, nem de alimentação, pois os padres brancos enfiaram essas ideias nas cabeças deles: “nós tomamos banho e comemos sem fazer benzimento, por isso vocês devem abandonar isso”. Vendo isso, um homem morador do Castanha (afluente do rio Tiquié) se assustou e disse: “vamos ter de benzer novamente. Desde as considerações dos ancestrais, nós nunca deixamos os benzimentos”. No tempo em que o padre catequista chegou, minha filha Yuana era pequena e eu disse ao padre que teria de benzêla. O padre me disse que então eu não poderia comungar e perguntou: “você benzeu esta pequenina?”. “Benzi”, respondi. “Então eu quero vê-la crescer...”, disse duvidando. O pessoal da boca do Castanha falava sem medo que iria continuar benzendo. Eles diziam que esses benzimentos eram vistos (iñakahsa, literalmente, analisados pela vista) desde a canoa de transformação. (Mahawai Tuhkurõ, 2013).
O relato do finado Luciano demonstra que os Tukano consideram que esses tipos de benzimentos são uma espécie de conhecimento que vem desde a origem da humanidade e acompanha seus ancestrais ao longo da trajetória de seus clãs, definindo o próprio ser, a Pessoa Tukano: estes são “netos dos que benzem” e possuem filhos que são benzidos. A vida nas “andanças” nas décadas seguintes (experiências de estudo, trabalho e vida em outras comunidades e cidades e junto aos Brancos) conduziu ao abandono temporário dos procedimentos relativos ao parto. Nelson Pedrosa, Ñahuri porã, de Oanu, relata que, quando era mais novo, ele e a mulher, Mirity Tapuia, foram trabalhar na extração de piaçava Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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na Venezuela e que, nessa época, não se importavam com benzimentos; achavam que enquanto os velhos Tukano queriam benzer tudo, os brancos tinham filhos sem benzer e “passavam bem”. “Querendo ser como os brancos”, não fizeram benzimento de nominação em seus filhos. Perderam dois filhos pequenos. Souberam, pela experiência (yãase), que o benzimento tem de ser feito. A ideia de uma origem remota e da continuidade dos benzimentos são sintetizadas nas palavras do benzedor Jovino Pedrosa, Ñahuri porã, morador da comunidade Wahpu
Nuhku: “os benzimentos são milenares, não são como plantas ao redor de casa, não podem ser deixados de lado (koa, literalmente, jogadas), são da Gente do aparecimento (Bahuari mahsã), da Gente da transformação (Pamuri mahsã), não se esgotam...”.
Tanto o relato de Luciano como a afirmação de Jovino fazem referência à história de origem de humanidade Tukano. É importante apresentar um resumo desta história se consideramos as analogias possíveis entre os processos de formação da humanidade e da construção da pessoa tukano. De acordo com Hugh-Jones, S. (no prelo, traduções minhas) “a transformação de espíritos em seres humanos é modelada na passagem da concepção ao nascimento e na passagem da infância à vida adulta, de modo que os três processos – jornada, gestação e ciclo de vida – são alinhados e tratados como um só”.
Na versão de Miguel Azevedo, do clã Hausirõ porã, registrada em Ñahuri & Kumarõ (2003), foi o Avô do Universo que criou, através de reza, a partir dos objetos de
transformação (lança-chocalho, cabo de enxó, forquilha de cigarro, fumo, cuia de ipadu5, porta cuia, banco), que eram partes do seu corpo, o mundo e a primeira humanidade, Gente de Aparecimento de Terra (Yepa Bahuari Mahsã). Esses seres possuíam vários poderes e seriam os responsáveis por criar as condições de vida atual neste mundo. Na criação da primeira humanidade, o Avô do Universo realizou procedimentos idênticos àqueles realizados pelos kumua por ocasião do nascimento da criança: o benzimento relativo ao nascimento, a atribuição de nomes específicos por ordem de nascimento, a definição do lugar onde iriam habitar e das tarefas que desempenhariam (Ñahuri & Kumarõ, 2003: 34-35). Preocupado em criar uma segunda humanidade, capaz de procriar e gerar descendência, Avô do Universo pede ajuda à Avó do Universo. Porém, após várias tentativas, o casal não tem êxito em produzir pessoas. Na ausência da dupla, a corajosa caçula Duhigo lambe um pouco do ipadu da cuia de gerar humanidade do Avô e engravida. Durante o parto primordial as mulheres tentam benzê-la, mas não conseguem fazê-la dar à luz. O Avô do universo interfere, abrindo uma vagina na demiurga, possibilitando seu parto.
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Folhas de coca (Erythroxilum coca) torradas, socadas com folhas de embaúba e pulverizadas. Substância de uso ritual.
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Duhigo dá à luz um ser ambíguo conhecido como Bisiu, Dono das Frutas, que é canibal e cujos ossos dariam futuramente origem às flautas sagradas (idem: 36-52).
É apenas na tentativa seguinte que se inicia o processo de criação da humanidade tal como existe hoje, a Gente da transformação ou fermentação (Pamuri Mahsã). Entre os
demiurgos é o primogênito, Yepa Oakhu, que pede ajuda ao Avô do Universo para criar a humanidade e é por ele orientado sobre quais procedimentos deve realizar. Ouvindo e seguindo atentamente seus conselhos, Yepa Oakhu cria os primeiros homens e mulheres Tukano. Pega a forquilha de cigarro e faz uma oração, que atualmente é recitada pelo kumu no benzimento da criança recém-nascida, dando origem a três homens e três mulheres (idem: 178). Yepa Oakhu pede mais uma vez conselhos ao Avô do Universo, que lhe explica que
ele teria os poderes do próprio Avô do Universo para guiar a transformação dos seres humanos desde o Lago de Leite até o Buraco da Transformação, por onde a humanidade pisaria na terra. Na Maloca do Universo, a humanidade se transforma em aves e corre para baixo com o cipó, caindo no Lago de Leite, onde todos se transformam em peixes, e os corpos dos peixes se transformam num grande barco, que na verdade era uma cobra, à qual os velhos kumua chamam Pamuri Pirõ, Cobra da transformação (lit. cobra da fermentação) (idem: 180-182). Durante a trajetória no ventre da cobra canoa de transformação-fermentação, vão progressivamente se tornando pessoa (Hugh-Jones, C. 1979; Andrello, 2004, 2006; Hugh-
Jones, 2009, no prelo). É uma “viagem longa como criança dentro do útero alimentando-se pelo cordão umbilical. [...] o barco estava impregnado de leite e mel da frutinha karakó. Com esse leite e mel, os Pamuri mahsã estavam crescendo na viagem como a criança se
desenvolve na barriga da mãe” (idem: 184). Ao longo do percurso, foram feitas imersões em certos locais, as casas de transformação, que são “casas subaquáticas da gentepeixe, locais onde, ao obter novos instrumentos, fazem crescer seus respectivos grupos” (Andrello, 2012). Em uma determinada casa os grupos começam a falar línguas distintas e passam a se considerar cunhados, possibilitando assim a reprodução de pessoas e grupos distintos. Finalmente os membros de cada grupo, ao chegar no centro do mundo, emergem em um buraco de transformação, como pessoa em sua forma humana. Portanto, na versão acima apresentada, a origem da humanidade atual é um processo longo, que pode ser entendido como um modelo primordial de produção de pessoas e conhecimentos Tukano: envolve parcerias intergeracionais (através de conselhos e orientações), potências masculinas e femininas, e é permeado por experimentações e tentativas (yãase). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Hugh Jones, C. (1979) apontou a importância da complementaridade de gênero na construção da pessoa entre os Barasana, demonstrando que a criança recém-nascida é composta pela contribuição maternal (sangue feminino/líquido corporal) e pela contribuição masculina (sêmen/osso), e que o crescimento é promovido pela comida feminina e pelo xamanismo masculino, que influenciam corpo e alma respectivamente. No entanto, afirma que, entre os Barasana, “a natureza do nascimento e a total exclusão dos homens, até mesmo no ato essencialmente ritual de enterrar a placenta, somado à localização do evento na roça de mandioca, um domínio feminino, faz dessa uma ocasião feminina por excelência” (idem, 1979: 128).
A perseguição a práticas culturais por parte dos padres salesianos, que no Tiquié se iniciou mais diretamente com a implantação da missão na década de 1940, estava estruturada na destruição das malocas, na constituição de comunidades compostas por casas nucleares, na internação das crianças como estudantes e também na implementação de ideais de higienização e saúde ocidental que incluía a coibição da realização de benzimentos e aplicação de plantas em momentos como partos, menstruação e no tratamento de doenças. Isso levou à interiorização do parto – da roça à casa – que foi influenciada por tais ideias mas também dependeu da decisão e da autorização dos especialistas xamânicos. Conforme relata Isabel Azevedo, tuyuka, clã Dasiá, de aproximadamente 70 anos, casada com um kumu Ñahuri porã:
No tempo que meu sogro, Sabino, vivia, ele não autorizava que mulher ‘pegasse neném’ dentro de casa, pois, se tivesse dentro de casa, qualquer pessoa da família pegaria picada de jararaca. E ainda dizia que tem gente que grita quando sai a criança. O Sabino não autorizava o homem escutar essa voz, que é sinal de azar, nem mesmo o pai. Ele benzia lugar separado com cigarro para ter o filho. Eu tinha filho fora, nas plantas, e depois entrava com o neném, mas antes disso ele benzia. (Mahawai Tuhkurõ, 2013)
Com o passar das décadas, nas comunidades Tukano do médio rio Tiquié, conforme me contaram mulheres mais velhas, o parto passou a ser realizado primeiramente nas cozinhas, espaço feminino, e depois em um cômodo com portas e janelas bem fechadas, o que parece neutralizar a interiorização do parto. Conforme relatam velhos e velhas, a criação de compartimentos isolados costumava ocorrer durante a couvade (Sanches, 2019) e em certas situações da vida ritual Tukano, para o isolamento do kumu na execução ritual de encantações xamânicas e das mulheres na primeira menstruação e durante as festas com flautas jurupari (Hugh-Jones, S. 1979).
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Apesar de uma boa parte dos procedimentos de parto se passarem em domínios femininos, o processo completo de nascimento envolve atuação de duplas, same-sex e cross-sex. Entre casais que residem atualmente nas comunidades Sopori Bua, Wahpu Nuhku e Muhawai Tukurõ, no médio rio Tiquié, a grande maioria dos partos continua a ser realizada na comunidade e é conduzida por um benzedor e uma parteira. Nos partos dos primeiros filhos de um casal, estes papéis são preferencialmente desempenhados pelo avô e a avó paternos da criança. Na medida em que um homem vai tendo seus filhos, é comum que ele comece pouco a pouco a dividir responsabilidades com o seu pai ou tio paterno em relação aos benzimentos em torno do nascimento. Enquanto o avô paterno da criança benze o lugar do parto e nominação, o pai começa a benzer o banho; ou, enquanto o avô benze o banho, o pai benze o breu; e assim por diante. Compõese, provisoriamente, uma dupla de benzedores.
Nesta fase, o futuro pai começa a tentar benzer, experimentar (yaãse) seus conhecimentos de benzedor sob a orientação de seu pai e a ser testado (yãakeose). Sua aprovação e continuidade como benzedor depende do êxito do parto e da saúde do bebê e dos pais. Há uma gradação na complexidade do aprendizado e execução de tais benzimentos. Apenas quando os primeiros filhos de um homem começam a ter seus próprios filhos é que ele vai começar a benzer os nomes de seus netos, procedimento considerado mais complexo. Porém, há um limite de idade para se executar os benzimentos de nominação, pois se teme que aqueles muitos velhos esqueçam detalhes das encantações, o que pode ser danoso à saúde dos pais e do bebê. Parece haver um forte fator geracional na expectativa em torno da escala de competência dos benzedores: o mais velho se torna pai e avô primeiro, deve começar a exercer seus conhecimentos sobre benzimentos, especialmente se for filho de um benzedor competente. Porém, há casos em que o filho mais velho não se interessa, não mora na comunidade, assume outros trabalhos, não se mostra disponível para aprender ou competente ao executar benzimentos. Assim, outro filho mais interessado em aprender com o pai e outros parentes da linha agnática desponta como benzedor referencial em um grupo de irmãos. Quando nenhum destes irmãos se interessa ou se dedica a aprender e praticar benzimentos relativos ao ciclo de vida da pessoa, é comum que algum homem que componha o grupo de irmãos do pai assuma a tarefa de fazê-lo. Alguns homens relatam que costumam procurar outros homens de seu clã – irmãos ou primos irmãos de seus pais – para terem acesso a essas fórmulas. Isso se torna ainda mais necessário no caso de órfãos que perderam o pai antes da idade de aprender esses tipos de benzimentos ou no caso em que o próprio pai não conhece benzimentos, por ser Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ele mesmo órfão, ou por algum outro motivo. É comum que os homens se aproximem de seus sogros ou outros homens mais velhos com o intuito de comparar, complementar benzimentos ou ampliar seu repertório, na realização de visitas ou viagens a outras comunidades ou cidades. Buchillet (1988) afirma que, entre os Desana do rio Tiquié, “atualmente homens casados/pais de família tentam aprender, com o pai/tio ou ~kubu não aparentado, as encantações para encarar problemas comuns da vida cotidiana (parto, doenças comuns etc.)”. A transmissão de benzimentos fora da linha patrilinear, inclusive entre sogro e genro, segue certos protocolos e pode envolver tensões. Como me contou Jovino, se o genro não respeita seu sogro, este pode argumentar que não vai compartilhar com ele esses conhecimentos, pois ele tinha a obrigação de ter aprendido com seu pai.
O mais comum é que os benzimentos sejam realizados no âmbito de um grupo formado pelo pai, seu pai e seus filhos ou por um outro parente ágnato – irmão do pai ou do avô – considerado qualificado. As operações realizadas nos benzimentos do nascimento são complexas e não devem ser delegadas a qualquer um, pois dizem respeito à própria composição da pessoa recém-nascida, à sua vitalidade, saúde, bem- estar, temperamento e disposições. Erros muitas vezes são considerados propositais, entendidos como “estragos” (encantações xamânicas maléficas) que podem levar a problemas graves, doenças permanentes e à morte. Porém, quando o benzedor considerado mais indicado não estiver disponível, outros homens são acessados de acordo com uma lógica que privilegia a agnação, mas que está sujeita à ampliação de acordo com o quadro de benzedores disponíveis no local do parto – parentes da mãe da criança ou outros. Meus interlocutores justificam esses casos pelas condições atuais de vida, em que famílias (leia-se grupo de irmãos) vivem “espalhadas” e moradores e benzedores circulam.
De acordo com Jovino Pedrosa, uma vez que se possui esses conhecimentos, não se pode soviná-los, negar sua execução quando um casal o solicita. Quando, por uma série de circunstâncias, certos homens acumulam a responsabilidade de realizar benzimentos fora do escopo do seu grupo de irmãos, justamente por exercerem conhecimentos poderosos, pode ocorrer de serem vítimas de desconfianças, de inveja, ou serem maltratados, acusados de serem “estragadores”. Isso os deixa numa situação dúbia de querer ajudar mas se sentirem desestimulados.
Se considerarmos o esquema clássico apresentado por Hugh-Jones, S (1994:77) sobre o xamanismo dual entre os grupos Tukano e Arawak, as características do aprendizado e a execução dos benzimentos relativos ao nascimento se encaixariam no xamanismo do tipo vertical, associado ao kumu, que teria como características a transmissão Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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verbal de poderes, a ênfase no aprendizado de conhecimentos de um cânone esotérico, a transmissão patrilinear sem pagamento para o ensino, o sopro sobre comida∕bebida como veículos para encantações inaudíveis, o papel cerimonial principal nos ritos de passagem, a associação a relações verticais com membros do grupo, a caracterização como pacífico e moralmente não ambíguo. Porém, podemos observar que, nos arranjos realizados no cotidiano, que garantem a atualização da execução e da aprendizagem de benzimentos, muitas vezes são acionados métodos que convergem com algumas características de um xamanismo do tipo horizontal, como a ênfase na experiência, a transmissão não hereditária com pagamento pelo ensino, a associação às relações horizontais com outsiders, afins e inimigos e a ambiguidade moral (idem: 77). Nesse sentido, o próprio autor chama atenção para o caráter ideal do esquema, notando que todos os tipos de xamanismo combinam conhecimento e inspiração e o que difere é a ênfase dada a cada aspecto em cada um deles (idem: 32).
Apesar de conceder prestígio, poder e autoridade, a posição de benzedor confere ao homem grande responsabilidade. Seus conhecimentos estão sempre sendo observados e submetidos ao teste (yãse). Benzer os seus netos, os filhos de seus filhos homens, é uma responsabilidade pela qual os homens são amplamente cobrados, principalmente no caso de o homem ser o mais velho de um grupo de irmãos. Muitos homens, mesmo tendo aprendido com seus avôs e pais, evitam exercer esses conhecimentos, porque não querem submeter-se às restrições necessárias. O não cumprimento dessa função ou o cumprimento de maneira considerada inadequada é motivo de críticas intensas, principalmente por parte de seus próprios filhos, podendo desencadear conflitos. Saber benzer é um atributo considerado masculino, um cuidado que o homem dedica à família. A priori, todo homem deveria saber benzer as mulheres e crianças de sua casa. Como me explica Dagoberto Azevedo, antropólogo Tukano6 alguns homens deixam de
realizar os benzimentos de seus netos para testar os conhecimentos de seu filho, perguntando: “Umu niita weti ku?” (Ele já é homem mesmo?). Nas palavras de Jovino Pedrosa:
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Procurar benzedor é coisa de mulher. A mulher que procura o kumu e manda fazer o benzimento. O homem se diferencia da mulher por ter esses conhecimentos bons. Na nominação, o kumu escolhe o nome da criança com cuidado, para que ela tenha sabedoria e cresça sem doenças. O homem é benzido para ser conhecedor de bahsese, principalmente se ele for o primeiro filho – ele será o herdeiro, substituto do pai. Na medida em que vai amadurecendo, vai se entrosando com adultos, ouvindo
Vinculado ao PPGAS/UFAM.
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Melissa Santana de Oliveira benzimentos, medita, rumina, sem precisar ler. O avô e o pai o orientam sobre como guardar doenças nas suas casas. Ele terá a responsabilidade de tomar o lugar do avô. A mulher, por não escutar os benzimentos, o benzimento não entra nela. Ela segue orientações. Ela será pessoa sábia e assentada, educada pelo avô. Ao crescer vai ouvir a mãe. Quando se descuida, sofre com doenças, na gestação e no parto. Essas doenças são invisíveis, muitas vezes são sopros (dohake) encomendados pela mãe do pretendente a quem foi negada a filha. Essa mulher não vai conseguir ter o parto normal. Terá de ser salva com benzimento. As mulheres dão trabalho... (Wahpu Nuhku, 2013)
De modo similar, Silvio Sanches, antropólogo Bará, afirma que seu padrasto MiritiTapuya lhe contou: “Escutávamos basese dos nossos pais; um dia precisaríamos, quando for casar, quando for morar no meio dos outros, em outro grupo, em outra região ou em outro rio, para não passar vergonha sendo homem” (Sanches, 2019: 72). Essas afirmações apontam para a feminização, por parte dos homens, daqueles homens que não exercem tais conhecimentos.
Tal ponto remete à discussão de Belaunde (2006) sobre hematologia e gênero na Amazônia, em que a autora segue a sugestão de Overing, J. (1986 apud Belaunde, 2006: 208) de que “as relações de gênero, como quaisquer relações sociais, são articuladas em torno de uma ‘noção filosófica sobre o que significa ser diferente e ser igual’, um princípio pan-amazonense que define a mistura adequada de coisas diferentes e iguais para a criação da existência social”. Belaunde (idem: 209-210) ressalta: “dizem que as mulheres ‘parecem homens’ quando elas não apresentam sinais de sangue, ou seja, nem traços visíveis nem tampouco qualquer sinal do cheiro do sangue (... e que) os homens ‘parecem mulheres’ quando eles apresentam sinais ou cheiro do seu próprio sangue ou do sangue de outras pessoas”. Portanto, “o sangue é principal veículo para a igualdade de gêneros e para a diferença”. A autora sublinha que “etnografias de diversas regiões mostram que os povos amazonenses fazem paralelos explícitos entre o resguardo masculino do homicida e o resguardo feminino, menstrual e/ou pós-parto” e apresenta o exemplo de Viveiros de Castro (2003), que mostra “que os rituais de resguardo do homicida revelam a feminização dos homens homicidas, na medida em que o assassino que sofre a vingança do sangue de seu inimigo está de certa forma impregnado dele e, espiritualmente, preso ao cadáver da vítima e a seu destino pós-morte” (Belaunde, 2006: 227). No caso Tukano, numa sociedade que não é propriamente guerreira e é marcada pela ênfase na transmissão vertical e patrilinear de riquezas, o homem fica “parecendo mulher” durante a realização do rito de iniciação do jurupari, espécie de menstruação
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masculina (Hugh-Jones, C. 1979, Hugh-Jones, S. 1979, 2009). Do mesmo modo, quando não domina os benzimentos, conhecimentos masculinos que lhe garantem controlar o fluxo de sangue (durante menstruação, parto, doenças ou morte), fica igualmente numa condição análoga à da mulher, que precisa recorrer a outros para que façam isso por ela. O benzimento feminino está ausente na literatura sobre grupos Tukano Orientais e aparece muito raramente na conversa com meus interlocutores. Registrei o caso de uma mulher, narrado pela sua prima-irmã e cunhada, que realiza benzimentos de parto e que, portanto, deduz-se, fica “parecendo como homem”. Trata-se de uma mulher desana, clã Yugu wirã, casada com um homem Ñahuri porã, cujo sogro se negou a continuar a
benzer seus filhos porque ela só tinha filhas mulheres, algo que costuma gerar desgosto entre homens tukano. A cunhada conta que ela aprendeu a benzer com sua sogra, que benzia tudo; que, por sua vez, aprendera com o marido. A possibilidade de efetivação de benzimento por parte desta mulher foi relacionada por um benzedor à sua capacidade de aprendizado e memória, porque “mulher, quando entra conhecimento, entra mesmo...”. Alguns de meus interlocutores homens afirmam de forma vaga que antigamente as mulheres possuíam benzimentos, que no passado havia uma velha que sabia benzer, que atualmente as mulheres fazem certas encantações relacionadas às atividades femininas de roça ou cerâmica, mas não dominam encantações relativas ao parto, e que a elas está vetada a realização de encantações relacionadas ao jurupari. Em uma versão Barasana, na origem do mundo, Romi Kumu, a primeira xamã, foi a própria criadora do Universo (HughJones, S. 1979). Tais afirmações fazem eco à análise de Chernela (1997: 90) para os Wanano:
As mulheres dizem que a inteligência que elas uma vez possuíam foi perdida nos tempos ancestrais quando um homem disfarçado de mulher roubou os poderosos ornamentos de cabeça de sua mulher, alienando as mulheres de seu controle sobre certos tipos de conhecimentos e autoridade. A perda das pedras deve ser lida como a perda do direito de falar e ser ouvida. As mulheres dizem que hoje em dia que elas não “conhecem”, mas que uma vez elas conheceram.
Algumas mulheres contam que sabem realizar encantações para roça, cura de doenças leves ou para tornar suas filhas mais atraentes para possíveis parceiros, cujas fórmulas parecem ser acessíveis às mulheres. Além disso, dizem dominar fórmulas de benzimentos que são propriamente masculinas, pois à noite, já em suas redes, conseguem escutar as conversas dos homens, mesmos que estes estejam do lado de fora, em frente à Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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casa, já que as paredes das casas (de casca de árvore, barro ou madeira) deixam transpassar o som. Há uma ambiguidade nas narrativas de homens e mulheres sobre a legitimidade feminina no domínio e na efetivação de benzimentos que precisa ser melhor explorada, pois, muitas vezes, fica subentendido que, ao acessar ou realizar benzimentos relativos à pessoa, as mulheres estão entrando em uma esfera de competência outra, relegada aos homens ou, quiçá, às pessoas mais velhas, sejam homens ou mulheres em menopausa.
As mulheres ocupam um lugar fundamental no nascimento: além do fato óbvio de darem à luz, são as parteiras, termo que simplifica uma função que na língua Tukano é denominada iñanʉrogo (cuidadora, palavra composta pelos verbos olhar+guardar), ou nihĩ kotego (lit. aquela que espera ou vigia o feto). Nos partos dos primeiros filhos de um casal, as parteiras costumam ser as avós paternas. Na ausência da avó paterna, outras mulheres, preferencialmente a esposa do irmão maior do pai, são chamadas. Há casos em que as parteiras formam duplas, dividindo responsabilidades: por exemplo, a avó paterna é auxiliada pela esposa do irmão mais velho do pai ou pela esposa de um primoirmão do pai da criança. Quando o casal não segue a tendência à virilocalidade, e mora na comunidade do pai da mulher, a parteira geralmente é a própria avó materna da criança. A partir do segundo filho, há casos de partos realizados sem a presença de uma parteira, nos quais o marido ajuda a esposa a “segurar o neném”, algo inconcebível no caso do primeiro filho7. De modo análogo aos benzedores, as parteiras costumam ser mulheres que já tiveram
vários filhos, que já são avós ou que estão se tornando avós pela ocasião do nascimento do primeiro neto, mas que não devem ser muito velhas. Uma mulher aprende a conduzir um parto durante seu próprio parto, preferencialmente com a sua sogra, a avó paterna do bebê. Nos casos em que a mulher se casa com o primo cruzado, ou em que ao menos os casais se formam a partir da combinação de clãs ou grupos exogâmicos que historicamente vêm estabelecendo relações matrimoniais, e em que o casal vai morar na comunidade do marido, a mulher-mãe vai ser auxiliada em seu parto pela sogra que é do mesmo clã ou grupo exogâmico que ela e que lhe iniciará nesses conhecimentos. Ao menos nas gerações atuais, que passaram pela missão, ou se “aventuraram” em andanças, observamos a composição de arranjos matrimoniais diversos, em que um homem casa com uma mulher de um clã ou grupo exogâmico diverso daquele da sua mãe. Nesse caso, a mulher acessará conhecimentos sobre o parto com outras mulheres que não são de seu clã ou nem mesmo de seu grupo exogâmico8.
7 8
Goldman (1979) afirma que entre os Cubeo um homem é proibido de assistir ao parto de seu primeiro filho. Ver o exemplo de Tassinari (2014, traduções minhas) sobre “redes de aprendizado de parteiras (do rio Uaçá, região do Oiapoque) (que) mostra a importância de se incluírem elementos externos na análise dos processos de transmissão de conhecimentos” e “a importância de relações de afinidade para a
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Apesar da existência de pólos base de saúde ao longo do rio Tiquié, a participação dos profissionais do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) nos partos narrados por meus interlocutores se resume à realização de pré-natal e ao acompanhamento da saúde do bebê pós-parto, com exceção de casos em que consideram que há complicações. Os casais costumam afirmar que não querem que o “pessoal da saúde” acompanhe o parto, pois pode haver alguma enfermeira menstruada, ou pode ser que um enfermeiro homem queira participar do parto, quebrando as restrições. Apenas alguns partos foram realizados na cidade por diversos motivos: o casal morava ou estava de passagem pela cidade na época do parto; o benzedor estava ausente na comunidade e o casal se dirigiu a um benzedor na cidade; a mulher foi encaminhada ao hospital pelos profissionais do DSEI devido a complicações. Todos estes foram realizados no Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira e, portanto, conduzidos por cirurgiões, homens ou mulheres. Porém, todos tiveram o acompanhamento de um benzedor, antes e depois do parto. Em alguns casos, antes de a mulher ir para o hospital, o benzedor realizou o benzimento com cigarro para “cercar” o lugar do parto ou preparou o benzimento de banho. Em um único caso de parto realizado em uma casa na cidade sem a presença de um benzedor, no seu lugar as mulheres usaram um líquido feito a partir de um tubérculo que chamam kumu (especialista xamânico). Na cidade, o benzedor preferencial continua sendo o avô paterno; mas, no caso de impossibilidade, acionam-se outros parentes, preferencialmente agnáticos, vindo em seguida um homem da parentela da mãe da criança. Se, na presença de cirurgiões, a figura da parteira/avó paterna desaparece, em alguns casos as mulheres mencionaram que foram acompanhadas pelas suas mães, ou seja, pela avó materna da criança. Na avaliação do benzedor Nelson Pedrosa, “o benzimento do parto e nascimento não muda”. Para justificar sua convicção, cita um exemplo em que o procedimento foi executado em uma situação extrema: a parturiente, esposa do seu irmão, estava prestes a dar à luz em um barracão, casa de hospedagem coletiva gratuita no centro da cidade de São Gabriel da Cachoeira, onde estava passando uma temporada. Na ocasião do parto, eles montaram um compartimento isolado com uma lona e ele executou as encantações xamânicas. O benzimento do banho foi realizado três dias após o parto. O êxito do procedimento é apresentado a partir da comparação com a situação de uma mulher “branca” que acabara de passar pelo momento do parto:
transmissão de conhecimentos, de conhecimento de fora das redes de parentesco”, em um processo que “não produz linhagens de ensinadores, [mas em que] o mais importante é a rede de relações nas quais uma pessoa pode se comprometer a aprender”. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Melissa Santana de Oliveira Enquanto minha cunhada, três dias após o parto, já estava bem e indo no porto, na mesma época tinha uma mulher branca que teve filho e quinze dias depois, ainda estava com dor. Essa mulher me pediu para benzer. Benzi três vezes. Depois de uns dias ela desceu, trouxe um frango, disse que estava melhor. Eu não aceito dinheiro. Os velhos diziam que é para a família o nosso benzimento [não pode cobrar]. Dos outros aceito, se quiser dar alguma coisa, comida... (Wahpu Nuhku, 2013)
Sua explicação inverte a lógica da justificativa que os padres acionavam para incentivar os Tukano a abandonarem seus benzimentos. Enquanto os padres falavam que eles deviam ser como os brancos, “que não fazem benzimentos e vivem bem”, o benzedor demonstra que, sem fazer benzimentos, a “branca” estava mal e que, depois dos benzimentos ela ficou bem.
A importância da realização desses procedimentos, mesmo em casos em que se encontram em cidades, pode ser deduzida pelo modo como eles associam problemas no parto com a não realização de benzimentos e demais cuidados. É o caso de uma mulher Ñahuri porã que saiu da região ainda moça para trabalhar, casou-se e foi morar em Belém com um não- indígena. Ao me contar como foram seus partos, afirmou que seu pai nunca conheceu seus filhos e que ela não se preocupou com benzimento. Porém, no primeiro parto, ela não tinha força e sofreu por quatro dias com dores, indo e vindo do hospital antes de conseguir dar à luz. Como justificativa, apresentou a explicação que seu pai lhe deu anos depois, durante a primeira visita de volta à sua comunidade natal: “ele me disse que faltava benzer. No primeiro filho, tem que ajeitar barriga, é como se fosse um banco que o bebê fica sentado. Papai falou que barriga era do formato da cuia, e eles colocam o banco dentro. Para nós faltou isso...”. Essa afirmação pode ser compreendida se considerarmos que, de acordo com Azevedo (2004: 12), para as mulheres indígenas de Iauaretê, “a placenta ou nihîkumunó tem um valor simbólico muito importante, pois é o banco cerimonial do feto, que se desenvolve com ele”. A ideia de barrigas que são cuias e placentas que são bancos por sua vez remete ao argumento de Hugh-Jones, S. (2009) de que os objetos ocupam local central na mitologia de criação do mundo e da humanidade, na conformação do sistema patrilinear de parentesco e na própria formação da pessoa e da corporalidade tukano, ponto que pode ser inferido, por exemplo, a partir das imagens presentes na narrativa de origem da humanidade apresentada no início deste artigo. De acordo com o autor: No nascimento, nominação, puberdade e iniciação o kumu controla transformações e transições do corpo manipulando artefatos identificados
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Vida, poder e conhecimento com partes do corpo. Esta identidade é afirmada por benzimentos antes proferidos por divindades, mas aqui o processo segue a direção oposta – distanciando-se de corpos concretos e em direção a artefatos mais abstratos que servem como sinais para os componentes “espirituais” daqueles corpos (idem:47, traduções minhas).
Benzedores e parteiras ressaltam que no primeiro e no segundo parto de uma mulher o seu corpo ainda está sendo composto para a gestação, o que torna ainda mais importante o cumprimento de uma série de cuidados que deverão ser cumpridos antes, durante e depois de cada parto.
Os cuidados relativos ao período pós-parto abrangem o seguimento de uma série de prescrições e restrições (betise) por parte do pai, da mãe, do recém-nascido e, de modo mais sutil, do próprio benzedor e da parteira. Após o parto, os pais e o recém-nascido devem evitar sair de casa e ficam praticamente limitados ao recinto onde a mãe deu à luz, ou seja, no compartimento isolado para o parto, que é utilizado para a couvade. Os pais levam de alguns dias a uma semana para tomar o primeiro banho e para dar o primeiro banho no filho, momento que exige a realização de procedimentos xamânicos. Enfrentam uma dieta alimentar rigorosa, e ao voltar a inserir alimentos no cardápio, estes devem ser previamente benzidos seguindo uma ordem decrescente de periculosidade9.
A mesma ordem será seguida pela criança, assim que ela começar a ingerir alimentos. Os pais devem evitar a realização de trabalhos cotidianos – ir à roça, cozinhar, pescar, desenvolver atividades de professor, agente de saúde, entre outras – e a manipulação de objetos vinculados a tais trabalhos – terçado, machado, anzóis, armadilhas, livros, giz, injeções. Conforme explicam os benzedores, e demais homens e mulheres, essas evitações são realizadas com o intuito de impedir que surjam doenças desencadeadas por gentepeixe (wai mahsã)10 que se sentem especialmente atraídos e provocados nesses períodos,
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Entre os Barasana e Taiwano os perigos associados à ingestão de comidas ameaçam a pessoa durante o ciclo de vida e durante o ciclo anual da comunidade. As encantações de comida são os meios de comunicação com os espíritos e tornam as comidas seguras para serem consumidas. A ordem sequencial em que as classes de comida devem ser benzidas é a mesma em todos os contextos e corresponde a uma ordem de perigo crescente das comidas. Substâncias especiais, como tabaco, yagé e pintura facial, também são benzidas para conferir forças positivas, como a prevenção de perigos (Langdon, 1975: 130-131) 10 Wai mahsã (gente-peixe) é uma “categoria que engloba seres sobrenaturais, não só associados ao rio, aos peixes, mas também aos animais terrestres, insetos, ou sem uma associação animal direta” Essa adversidade primeira entre os que se transformaram e os que não se transformaram é renovada em práticas de predação em que a humanidade consome os peixes e animais de caça, e os Wai mahsã e animais atacam a humanidade. É da ação dos animais e dos espíritos dos animais que advém grande parte dos males e doenças que se abatem sobre os humanos. (Cabalzar, A. 2005). Em determinados períodos do seu ciclo de vida e épocas do ciclo anual, os humanos tornam-se mais suscetíveis aos ataques desses espíritos da natureza, e torna-se necessária a realização de ações profiláticas, especialmente as Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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por odores, gordura e cores, e atacam os seres humanos com suas armas invisíveis.
Nos relatos de mães e pais sobre os partos, há uma preocupação constante em demonstrar que alguns cuidados e restrições foram redimensionados de acordo com transformações no modo de vida. Dizem que, antigamente, costumava-se levar mais tempo para realizar o rito do primeiro banho do casal e do recém-nascido, que hoje em dia se costuma realizar um ou dois dias após o nascimento. Alguns argumentam que, para os antepassados, era mais fácil ficar mais tempo sem banhar, pois dormiam em redes de fios de tucum e não utilizavam roupas. Apesar dessa flexibilização, o rito do primeiro banho ainda é considerado essencial. Há o registro de um casal que ficou recentemente uma semana sem tomar banho pois estava sozinho em um sítio, onde não havia ninguém para benzer breu e sabão para o primeiro banho.
Os mais velhos contam que as mulheres ficavam dois dias em jejum total, depois o benzedor benzia mingau para elas comerem e, então, pimenta, beiju e peixe. A carne de caça demorava muito tempo para compor a dieta e comida assada era proibida. Alguns benzedores argumentam que atualmente as famílias “andam por aí”, e os pais “vão comendo aquilo que encontram”. Desse modo, eles têm de benzer tudo de uma vez, tudo junto, na medida em que eles encontram, inclusive alimentos dos brancos (pehkasã base), que consomem em maior quantidade quando viajam para a cidade. Tais alimentos devem ser os últimos a serem benzidos e consumidos, pois seu grau de periculosidade está relacionado à quantidade de gordura (use) que possuem, substância que afronta diretamente os gente-peixe.
Alguns benzedores afirmam manter a preocupação de benzer tudo separado – cada item, na medida em que vai sendo introduzido na dieta da criança, respeitado seu grau de periculosidade. Porém, há uma aceleração na introdução de itens do cardápio. Mulheres mais velhas dizem que antigamente as crianças só começavam a comer peixe com um ou dois anos, e carne de caça a partir dos três ou quatro anos, porque os benzedores eram muito rígidos. Hoje em dia, as crianças começam a comer carne de peixe aos seis meses, carne de caça com um ano; e, assim que vão para a cidade, comem galeto.
Pais e mães contam que, em um passado não muito recente, os pais ficavam até um mês sem realizar atividades de trabalho; hoje em dia, ficam por volta de duas semanas. Porém, a duração do resguardo vai depender da configuração da família. Nos casos em que há alguém que faça esse trabalho para o casal – filhos mais velhos, avó paterna da criança, tios paternos, tias maternas, ou ajudantes hupd’äh –, essa restrição pode prolongar-se por mais tempo. Caso contrário, o benzedor os autoriza a trabalhar mais cedo, benzendo“encantações” realizadas pelos kumua (Buchillet, 1988; Cabalzar, A. idem).
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os para tal fim. Este procedimento também foi relatado por mulheres mais velhas em relação ao nascimento de filhos que tiveram há décadas. Em suas primeiras idas à roça após o parto, a mulher deve utilizar pintura facial vermelha de carajuru ou de urucum benzido. Apesar de essa antecipação do fim do resguardo ser muitas vezes necessária, não é considerada adequada, sendo que há casos de mortes de bebês por doenças como gripe (heu) e coqueluche (wau) justificadas pelo fato de terem sido levados por suas mães muito cedo à roça, em virtude da falta de pessoas que ficassem com seus filhos. Os benzimentos relativos ao trabalho do pai dizem respeito aos seus instrumentos de trabalho e evitam que o pai fique doente ao tocá-los e a criança ao entrar em contato direto ou indireto com tais instrumentos. Benze-se os machados, o caniço, armadilhas. No caso em que o pai é professor, logo após o parto, ele deve ser substituído na escola por outra pessoa da comunidade. Antes de retornar à sala de aula, o benzedor executa uma encantação para que as cores e formas de letras e desenhos manipulados pelo pai- feitos no quadro e presentes nos livros didáticos- não assustem a criança.
Notas etnográficas de um parto contemporâneo
Durante meu trabalho de campo de doutorado, tive a oportunidade de acompanhar diversos cuidados que envolveram o nascimento de uma criança, em Mahawai Tuhkurõ, onde encontrei uma jovem mulher desana, da comunidade próxima de Maa Maharo, casada com um homem Ñahuri porã, no último mês de gravidez. Como é comum atualmente entre os Tukano, até o nascimento do primeiro filho o casal ainda morava com os pais do esposo. Nas semanas que antecederam o parto, o futuro pai preparava um terreno a fim de construir uma casa para morar com a esposa e o filho numa área considerada boa para moradia e que era de uso de seu finado avô paterno.
Na medida em que se aproximava a época prevista para o parto, a preocupação dos envolvidos era que a parturiente estava “sem benzimento, não havia benzedor”. Diziam isso porque o avô da criança que iria nascer, que era o principal benzedor do seu grupo de irmãos desde a morte de seu pai, um reconhecido kumu, de quem era o filho mais velho, e sua esposa tuyuka, clã Dasia, que era a sogra da parturiente, estavam na cidade de São Gabriel. Essa dupla ausência do benzedor e da parteira preferenciais contribuiu para o aumento da tensão que envolve o parto do primeiro filho de um casal. Assim que a jovem mulher começou a ter as dores de parto, quem iniciou os cuidados, assumindo a função de parteira, foi a esposa do irmão mais novo (e único irmão vivo) do avô paterno da criança, uma mulher tariana do Distrito de Iauaretê, médio Uaupés, que era agente de saúde da comunidade. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Foi entre a roça, a cozinha e o quintal – espaços femininos – que passamos a maior parte do período pré-parto. A parteira fazia referência aos conselhos dados pela avó paterna da criança, que era sua concunhada tuyuka, clã Dasia, e conversava com mulheres mais velhas, moradoras da comunidade – uma mulher tuyuka, clã Dasia, esposa do finado irmão menor de seu sogro, e uma mulher desana, clã Sipia Wirã , nora da referida mulher tuyuka, que lhe orientavam sobre como ela deveria agir. Estava preocupada: “será que vai dar certo? Não tem benzedor”. “Nem sonhei cocô, o avô da criança não vai chegar”11. Tecia comentários sobre outros partos: que foi a sogra da parturiente, sua cunhada, que lhe deu remédio, cuidou dela e lhe aconselhou, na ocasião do parto de seu último filho; que foi ela quem acompanhou o parto do último filho da mesma concunhada e que aquela tinha sido a primeira vez em que ela acompanhara um parto; e que, no seu último parto, foi seu marido quem benzeu, olhando num caderno registros feitos dos benzimentos de seu finado pai. Com folhas de tucum (Astrocaryum vulgare) coletadas em uma árvore no quintal da sua concunhada, sogra da parturiente, a parteira trançou duas cordinhas que seriam amarradas ao cordão umbilical e mandou o pai da criança cavar o orifício onde seria enterrada junto à placenta, procedimento que demarca o local de nascimento da pessoa.
A parteira foi responsável por preparar e ministrar remédios feitos a partir de plantas cultivadas na roça. A coleta de certos tipos de tubérculos na sua roça e na roça dessas mulheres foi uma atividade complexa, porque envolveu o discernimento entre tais plantas e plantas venenosas semelhantes próximas. Na cozinha, o preparo de remédios foi feito através de métodos de decocção e de infusão. O remédio feito à base de taa duhka – nome genérico atribuído a diversas plantas
– segundo uma velha tuyuka contou, deveria ser usado em casos de parto ou de primeira menstruação quando não há kumu, sendo jogado ao redor da casa e dentro do quarto em que a mulher daria à luz. “Assim eu fiz com minha filha em São Gabriel, e deu certo”, disse. O uso de tal planta, chamada de kumu pelos benzedores, “cerca” com paris (esteiras de talas amarradas com cipó) invisíveis e protege a parturiente, a criança e demais envolvidos no parto de ataques de seres sobrenaturais, ação análoga aquela realizada xamanicamente pelos benzedores nas encantações de proteção. Como iríamos acompanhar o parto, tivemos de aplicar o líquido nos braços, nas pernas, nos pés, nas mãos, onde não havia roupa cobrindo. A parteira também aplicou, antes de sair de casa, no seu filho pequeno, pelo fato de que ele costumava tomar banho no porto onde os pais e a criança tomariam o primeiro banho após o parto. A parteira preparou o espaço que havia sido isolado para a parturiente dar à luz
11 Para os Tukano, sonhar com fezes é sinal de que vai chegar alguém do grupo Tukano. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e onde esta se encontrava desde o início das dores de parto. Ao adentrarmos na casa da parturiente, jogou o líquido preparado com taa duhka em toda área externa que circundava o cômodo onde aconteceria o parto. Tirou os punhos de uma rede e a ajeitou, colocando-a dobrada no chão para que a parturiente desse à luz ali. Jogou o líquido de taa duhka em cada canto do cômodo e no local exato em que ocorreria o parto, em uma atitude análoga à do kumu, dizendo, porém, que estava benzendo “que nem padre”, em uma clara analogia ao batismo cristão efetivado na região pelos padres salesianos.
Explicando o que a sogra da parturiente lhe dissera – que “o remédio deve ser tomado quente” e que “o que vai dentro também tem que ir fora”, ofereceu o líquido preparado por decocção com a planta semero para que a parturiente, porque, quando toma, “não tem dor e o filho sai rápido”. Lascas do tubérculo foram aplicadas na barriga e nas pernas da grávida. Ao mesmo tempo, orientava a parturiente sobre como as posturas corporais assumidas por ela antes e durante o parto influenciavam no sucesso do parto. Disponibilizou um banco para a moça se sentar e explicou que ela não podia ficar deitada. Aconselhou a parturiente dizendo: “nasceu só uma mão” ou “nasceu só uma perna, virado, por isso a casada não deve deitar na rede com pernas no chão, nem com o braço para baixo. A nora de uma moradora da comunidade nasceu assim, só o braço. Ela suspendeu, nem sei como ela fez. Desde moça tem que se comportar assim. A mulher não pode ficar desobedecendo”. Atou uma rede e explicou à parturiente que quando dói tem que se ajoelhar perante a rede, dispondo a parte superior da barriga contra ela, num movimento em que utiliza a rede para empurrar o bebê de cima para baixo, forçando-o a sair.
Entre nós a regra era ficar em silêncio ou falar baixo. Enquanto isso, o pai da criança, um jovem adulto, fazia o benzimento Duhikaro, que deve ser feito quando o parto está demorando muito, olhando seus cadernos, provavelmente registros que ele fizera a partir da narração de seu pai ou que seu pai fizera a partir da narração do finado avô. A parteira explicou que, “quando o parto demora, é duhi do pai, no caso de o filho ser menino; ou duhi da mãe, no caso de ser filha menina” através do exemplo: “duhi é quando a pessoa é chamada para comer e demora muito. Geralmente os homens demoram muito para comer, tudo isso influencia na hora do parto”. Em Ramirez (1997, p. 50-51), Duhí é traduzido por malformação (do feto) devido à transgressão de uma regra cultural, o que me leva a inferir que duhi explicita ou revela o não seguimento dos conselhos dos mais velhos a partir do momento em que se tornam aptos a terem filhos, algo que desencadeia problemas durante o parto e nascimento de um filho. Poucas horas depois, o esposo da parteira e tio paterno (irmão mais novo do pai)
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do esposo da parturiente trouxe um cigarro que havia benzido Nihĩ utu ahpose, que é o benzimento do lugar onde o bebê vai nascer, olhando em um caderno registros que havia feito dos benzimentos contados pelo seu finado pai. Apesar do pedido da parteira, seu esposo não queria fazer os benzimentos que devem ser realizados logo após o nascimento da criança, porque teria que seguir muitas restrições. A parteira soprou a fumaça do cigarro benzido na moça, no local onde ela ia dar à luz, e depois no pai da criança. As dores de parto se intensificaram às cinco da manhã do dia seguinte e a parteira estava ainda mais tensa. A moça estava de joelhos, pressionando a parte superior da barriga contra a rede e fazendo um movimento de cima para baixo, como que impelindo o bebê a descer. A parteira ministrava remédio, o pai soprava o cigarro benzido. Após um tempo com dores, no meio da manhã a moça deu à luz.
Não assisti a hora exata do parto, pois não me senti à vontade para entrar no quarto. A parteira contou que cortara o cordão umbilical com uma tesoura e que a moça dera à luz na mesma postura em que estava antes. O marido não estava presente. A parteira saiu do quarto e, preocupada porque a placenta não havia sido expelida, foi solicitar o benzimento a um velho, que era um homem de um segmento do clã Ñahuri porã diferente daquele do pai da criança e que não era indicado para realizar todos os benzimentos de parto e nascimento por ser muito velho. Após a mãe ingerir o líquido benzido pelo velho e a realização de variadas massagens e movimentos no corpo da mulher pela parteira e por mais duas mulheres, uma grande parte da placenta saiu. Mas as mulheres acreditavam que ainda não havia saído tudo.
Agoniada, a parteira mandou chamar um benzedor do sítio ao lado, Wariã Tuhkurõ, filho do irmão menor do velho que havia feito o benzimento da placenta e que fora indicado pelo avô da criança para benzer caso ele não chegasse à comunidade a tempo de acompanhar o parto. Então, chegaram o benzedor e sua esposa desana, clã Yugu wirã,
experiente parteira. Os dois orientaram a mãe sobre a posição em que ela deveria ficar para sair a placenta. Pediram que ela deitasse e fizeram novas massagens. Nada mais saía. Então, o benzedor concluiu que a placenta – o kumurõ, banco do bebê – já havia saído por completo. O pai comentou: “então o benzimento do velho funcionou...”.
Depois disso, o benzedor iniciou o árduo procedimento de realizar benzimentos relativos ao nascimento ao longo de aproximadamente quatro horas. Os benzedores costumam dizer que, antigamente, os velhos levavam um dia realizando esses benzimentos, mas que hoje levam poucas horas, porque há uma simplificação das suas fórmulas, principalmente na nominação, que é o mais longo de todos. Antes, o benzedor citava todas as casas de transformação do clã que fazem parte da trajetória da anaconda Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ancestral até chegar ao local onde a criança nasceu, mas hoje citam somente as principais casas. O benzedor executou benzimento de proteção (Wetidarero), benzimento para o bebê poder deitar na rede (Pũkeo bahsero), benzimento de nominação (Heriporã bahsero), benzimento de leite materno (Ohpeko bahsero), benzimento do umbigo (Sumuga yoro bahsero), benzimento de mingau (Ñumuku basero), benzimento para se alimentar de beiju (Hauga basebaro), benzimento de banho (Uaro bahsero) e benzimento de pimenta (bia bahsero). Após uma pequena discussão entre os presentes sobre o nome que deveria ser atribuído à menina, o benzedor definiu que deveria ser Duhigo, pois o nome da primeira filha do primeiro filho do avô paterno do bebê deve ser Yepario, nome da primeira mulher Tukano. O segundo filho do primeiro filho do avô paterno ainda não tivera filhos. Como o terceiro filho teve filho antes dele, então sua primeira filha ficou com o nome da segunda mulher do universo, Duhigo. A lógica aqui parece ser de que o repertório de nomes clânicos masculinos e femininos segue uma ordem hierárquica relativa ao nascimento dos ancestrais e são distribuídos pelo avô paterno (ou um agnato da sua geração) de acordo com a ordem de nascimento de seus netos12.
Depois desses procedimentos, a parteira enterrou a placenta e o cordão umbilical, ao qual amarrou as duas cordinhas de tucum, no orifício feito pelo pai no terreno em frente à casa. O benzedor, sua esposa e a parteira aconselharam os pais num tom de voz
incisivo, sobre o comportamento que eles deveriam adotar pela ocasião do nascimento do primeiro filho. Mulheres mais velhas que vieram visitar a mãe e o recém-nascido davam conselhos no mesmo tom. Antes de tocar o bebê, todas passavam o líquido preparado com taã duhka. Perguntavam se o bebê havia chorado: “uhtiati?”, pois este é um sinal de humanidade, enquanto o silêncio revela que se trata de um bebê wai mahsu. Em nenhum momento vi o pai pegando o bebê.
No dia seguinte, no momento do primeiro banho, enquanto a parteira e a esposa
do benzedor guiavam o casal até o porto, defumando o rio com breu benzido, o benzedor
12 Conforme Hugh-Jones, C. (1979), um bebê deveria receber o nome de um parente patrilinear da segunda geração ascendente e do sexo apropriado, de modo que um garoto deveria ser chamado como seu avô paterno (FFB), e uma garota como a irmã do pai do pai. Esse é um ‘nome xamânico’ (baseri wame) porque é transferido xamanicamente, com pintura vermelha e leite agindo como veículo. O nome também ‘muda (troca) sobre a alma’ – usu- wasoa – do ancestral morto dentro da criança, de modo que essa alma está prevenida de ‘desaparecer’. O nome ancora a criança ao local do grupo de descendência, estabelecendo seu parentesco patrilinear com outros membros em referência aos membros mortos recentemente. Hugh-Jones, S. (2002: 60), afirma que “[...] os nomes pessoais tukano constituem parte de um conjunto de ideias que dizem respeito a diferentes aspectos ou componentes do corpo e da pessoa – sangue, ossos, carne e pele: pintura, ornamento e vestimenta; língua, encantamentos, cantos e música; sopro, espírito vital, alma e sombra. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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observava tudo de longe, vigilante, sem olhar diretamente. Com sua permissão, fiquei ao seu lado. Esse é um momento muito delicado, quando mãe e bebê estão sujeitos a ataques sobrenaturais dos gente-peixe, que querem roubar o espírito da criança, cooptando-o a viver no seu mundo, o que implica sua morte para o mundo dos humanos. Após o banho, voltamos todos ao quarto onde os pais mastigaram a pimenta benzida e, cuspindo de volta em suas mãos, esfregaram a pimenta misturada com saliva sobre todo o corpo para evitar doenças como a leishmaniose, como me explicou o benzedor. Na cozinha, o casal fez sua primeira refeição com beiju, pimenta benzida e pedaços de peixe moqueados que foram benzidos no ato, com comentários do benzedor, que reclamou que o ideal era que fossem peixes piabas, mas que ninguém fora pescar para o casal. A esposa do benzedor deu recomendações sobre como a mãe deveria sentar o bebê, recostando sua cabeça num pano e sentando-o de lado, para a criança ficar forte.
O benzedor explicou que eles deveriam ficar de resguardo até a próxima semana, que deveriam ter ajudantes para ir à roça, pescar, e levar-lhes comida. Caso não tivessem, ele realizaria benzimentos para que voltassem aos seus trabalhos. Conforme me explicou o benzedor Rafael Azevedo: Quando se realiza o benzimento de nascimento, é importante ver se acontece ahkoriko. Se chover após o banho ou no dia do banho, é o ahkoriko deles (dos pais, do filho).. Isso quer dizer que o benzedor não benzeu bem. Se não der ahkoriko, é que o benzedor deve ser considerado, com respeito (heopese), conhecedor (mahsigu). Dá ahkoriko quando o benzedor deixa um espaço, um intervalo... Como se fosse uma música... de uma estrofe para outra. A gente-paricá (wῖho mahsã) olha; se ele faz isso, mandam chuva e trovoada. Se alguém da comunidade pegar essa chuva do ahkoriko, pode ficar doente – de reumatismo (wahãpi, wahkari, paralisia (buase). Por isso as crianças não devem brincar nessa chuva. Antigamente os benzedores eram bons, não dava ahkoriko. O ahkoriko também acontece quando a família tem costume de comer muito caldo de peixe ou de caça. Logo após o primeiro banho do casal e da criança, ninguém deve tomar banho no lugar onde banharam, porque tem uma cobra esperando para engolir. Depois de uma ou duas horas, a cobra cansa de esperar. Parece brincadeira, né? (Rafael Azevedo, Mahawai Tuhkurõ, 2012)
Naquela tarde, no dia previsto pelos profissionais do DSEI para acontecer o parto, chegaram o avô paterno da criança e sua esposa, que ficaram na assistência, controle e vigilância do jovem casal no resguardo. Sobre os cuidados relativos ao pós- parto, meus interlocutores afirmaram:
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Vida, poder e conhecimento Nesse período, eles (o casal) comem peixe, mingau e beiju. Ela (a mãe) não pode preparar comida, quem prepara sou eu (a sogra). Ele (o pai) não está pescando, ela ainda não está indo para a roça. Não podem comer frutas de roça, do mato, porque ainda não foi benzido; nem cará, nem caxiri. Estão comendo todos os peixes cozidos – moqueados ainda não. Quando come moqueado, fica com a cara preta. Em dois, três meses, pode. Não consome nenhuma carne, nem rã. Quando ela não tiver ninguém para ajudar, aí benze para fazer fogo e usar forno. Se benzer, pode. Se não benzer e pegar coisa quente, corta o leite do peito. Não podem fazer serviço pesado. Quinhampira comunitária eles podem ir. Caxiri tem que ser benzido. Não pode fazer viagem longa, porque nos pontos que têm nome (lugares sagrados, que fazem parte da trajetória da canoa de transformação), se o kumu não souber benzer, é capaz de perder a vida dele nessas casas. O principal são lajes grandes, como em Fátima, Yaiwii. Pra quem consome kahpi13, as folhas, pés, tocos falam. Peixe, qualquer ser, animal fala. Kahpi e paricá colocam muito as pessoas a conhecer lugares. O pajé vê quais são os pontos principais. Yaiwii é visto pelos pajés como cidade muito boa. Passar pelas serras é o mesmo que entrar na cidade – pegar carro e ir embora. Se o recém-nascido não é bem protegido, é capaz de se perder por aí, por isso não é permitido. Sol, zoada de motor, zoada de temporal... contra tudo isso o kumu protege, para a criança não ser prejudicada. Senão vem gripe forte, reumatismo. Para evitar isso, faz esse tipo de benzimento. Esse tempo é de muitas frutas, como japurá (Erisma japura), uacu (Monopiterix uacu), começa buriti (Mauritia flexuosa), açaí (Euterpe precatoria). Tempo um pouco doloroso. A doença que ataca mais é dohkesekease (doenças que aparecem em certas épocas do ciclo anual, devido à passagem de certos seres sobrenaturais), que vem das frutas, e vem para qualquer um. Quando vem gripe forte, uma parte que ataca é a gripe, a outra é dohkesekease. Se o cara não souber benzer, a criança morre... (Celestino e Palmira Azevedo, Mahawai Tuhkuro, 2013)
Nas semanas que se seguiram ao parto, o casal tomou certos cuidados. Nos primeiros dias, ficaram restritos ao quarto, saindo apenas para tomar banho, dar banho no bebê no porto, e comer algo na cozinha. Mesmo havendo peixe moqueado em casa, ambos só se alimentavam de peixe cozido ou mujeca (espécie de pirão feito com farinha, goma de mandioca e peixe). Ficaram uma semana sem frequentar a refeição comunitária; e, quando foram, levaram comida obtida e preparada pelo ajudante hupd’äh e pela avó paterna. Uma semana depois, começaram a efetuar trabalhos leves e próximos à casa, como ajudar a capinar os arredores. O pai do bebê ajudou seu pai na construção de uma canoa. Duas semanas depois, acompanhou sua mãe na roça, ajudando a arrancar e descascar mandioca. Alguns dias depois o casal e a filha recém-nascida acompanharam a avó materna da criança na roça. Todos exibiam no rosto pinturas feitas com carajuru
13 Bebida alucinógena feita a base de banisteripsis caapi.
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benzido.
Durante as semanas pós-parto, a parteira realizou visitas constantes ao casal e ao bebê. Como agente de saúde, verificou medidas e o peso da menina, que foi considerada gorda, ou seja, saudável, por outras mulheres da comunidade, que acompanharam a visita com empolgação. A parteira negou meu pedido para fotografar o bebê, pois o benzedor havia informado que era perigoso expor o recém-nascido à luz e ao barulho que emanam do flash, que seriam danosos à saúde da criança como as cores encontradas em objetos que, sendo análogas a cores presentes na miração do kahpi, podem ocasionar doenças, sem a realização de benzimentos.
Todos aqueles que estiveram diretamente envolvidos no parto, como os benzedores, a parteira e até mesmo eu, tiveram que cumprir algumas restrições. A parteira afirmou que ela deveria evitar manter relações sexuais e cortar frutas como banana, que dão em cacho e caem rápido, porque isso interfere na queda do cordão umbilical do bebê. Nos dias que se seguiram ao parto, ela foi à roça e pediu ao seu filho que arrancasse a banana do cacho. Apesar de afirmar que restrições alimentares eram impostas só aos pais da criança, a parteira evitou ingerir peixe moqueado e recusou a oferta de um jabuti (wirapoka) por parte de um homem da comunidade, alegando que não sabia tratar e que não podia sentir aquele cheiro que sai dele (moasʉtiro), pois lhe causava “zunido no ouvido” – algo que remete a comportamento de pessoa em restrição.
Hospedada na casa do casal composto pela parteira e pelo tio-avô paterno do recémnascido, que realizou o benzimento de lugar do parto; durante uma refeição matinal, eu, a irmã mais velha do dono da casa, e a sua mãe, fomos repreendidas pelo dono da casa, por termos preparado e comido peixe assado, à moda de Belém, local de onde as duas haviam chegado recentemente. Segundo os conselhos de seu irmão mais velho, avô do bebê, deveríamos evitar comer peixe assado naquele período, já que o cheiro de assado atrai gente-peixe.
Considerações finais
Com todas as transformações sociais vivenciadas pelos grupos Tukano Orientais do médio Tiquié, os cuidados relativos ao nascimento continuam sendo considerados fundamentais para a construção da pessoa. Diferente de relatos sobre parto de outros povos amazônicos, como os Piro, que revelam a importância da autonomia feminina, sintetizada no uso da expressão “yo solita haciendo fuerza” (Belaunde, 2000), entre meus interlocutores e outros grupos Tukano (ver Sanches, 2019) tais histórias falam fundamentalmente sobre a criação de uma rede de cuidados intergeracional e entre Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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gêneros para garantia de um parto exitoso.
Entre os Tukano, a couvade não se trata, como proposto por Riviere (1974), de um rito de paternidade que expressa uma conexão espiritual entre pai e criança, aproximandose mais da perspectiva de Rival (1998), que, a partir do exemplo Huaorani, a define como um rito do casal, de coparenthood, que envolve a participação complementar de dois sexos, que constitui um tipo de agência andrógena, e que a partir do qual o homem e a mulher tornam-se pais e a criança passa a fazer parte de uma rede de relações compartilhadas. Entre os Tukano, trata-se de um rito ainda mais extensivo, pois inclui a ação fundamental de participantes de uma geração acima: a parteira e o kumu. Enquanto em sociedades uxorilocais, modelo que a autora toma como predominante para a Amazônia, a couvade marca a inserção do pai no grupo local, no caso Tukano, que é preferencialmente virilocal, costuma marcar a inserção da mãe na comunidade. Se, por um lado, temos uma atuação articulada entre duplas cross-sex – benzedor e parteira, pai e mãe –, ocorre neste momento um processo de transmissão de conhecimentos entre duplas same –sex – benzedor e pai (pai e filho), parteira e mãe (sogra e nora), que atualiza a diferenciação de saberes/especialidades por gênero característica dos Tukano Orientais (Mahecha, 2004; Cabalzar, F. 2010; Rezende, 2007).
A parteira acessa conhecimentos de uma rede de mulheres, que inclui a sua própria parteira, provavelmente sua sogra, que a depender dos arranjos matrimoniais realizados, pode ser ou não do seu próprio clã ou grupo exogâmico, e de outras mulheres mais experientes da rede de parentesco de seu esposo, de seu grupo e de outros grupos exogâmicos. A transmissão de conhecimentos relativos aos benzimentos do nascimento entre homens a princípio se dá de modo mais restrito, entre avô, pai, filho, nos casos em que um avô benze o nascimento de seu neto e orienta seu filho (pai da criança) a realizar parte dos benzimentos, dividindo responsabilidades. Mas é comum que um homem procure outros homens de seu clã ou até mesmo seu sogro para ter acesso a esses conhecimentos, e que durante o parto seja acionada uma rede de benzedores que ultrapassa as relações entre pai e primogênito, o que demonstra que o sistema xamânico é atravessado por uma série de relações que não se restringem a uma linha paterna marcada por um princípio de senioridade. A parteira é a responsável pela organização do espaço físico onde ocorrerá o parto, pelo preparo e aplicação de remédios à base de plantas da roça, pela realização de massagens, pela orientação quanto às posturas corporais da parturiente, pela solicitação de benzimentos pré-parto, pelo preparo dos elementos que o benzedor irá benzer e pelo próprio parto em si. Cabe a ela aconselhar e vigiar o pai e a mãe a fim de que eles cumpram Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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à risca as recomendações relativas ao pós-parto. As atividades do benzedor consistem na realização dos benzimentos pré, durante e pós-parto, que irão constituir o bebê como pessoa humana, protegendo-o, atribuindo-lhe um nome, e compondo seu corpo-alma com atributos e capacidades próprios para viver bem. Ele tem a autoridade de decidir questões importantes sobre o parto e o pós-parto: onde o parto deverá ser realizado, quais benzimentos devem ser feitos, quais regras devem ser cumpridas e quais podem ser abrandadas ou quebradas e em quais circunstâncias. Em um sentido mais sutil, a parteira é a iñanurogo/nihĩ kotego (aquela que cuida/
vigia o feto), a que auxilia na passagem do bebê do útero para o mundo através da vagina concebida como a porta do feto (nihi sohpe) (Azevedo, 2004:10; Sanches, 2019:76). A função de vigia não deve ser menosprezada, pois é relevante em várias situações da vida social tukano: é o termo utilizado em referência ao homem que cuidava das fronteiras do território de cada grupo (Ñahuri & Kumarõ, 2003: 229), da porta da maloca durante festas para avisar sobre a aproximação de inimigos (idem, 236), e durante a iniciação masculina, para evitar a entrada de mulheres (Vicente Azevedo, comunicação pessoal; Diakuru & Kisibi, 2006: 92).
A relação articulada entre a parteira e o benzedor toma um significado mais profundo se estabelecermos uma analogia entre as funções desta e do kumu que maneja ou cuida (iñanuro) das transformações cíclicas de pessoas e do universo (Hugh-Jones,
S. 1994; Cabalzar, A. (org), 2010) ou que, como registrou Lolli (2013:386-388) entre os Yuhupdeh, cuida (ou por que não dizer vigia) das diferentes portas que dão acesso às diferentes camadas ou planos-casa do cosmos, controlando o fluxo da circulação de pessoas ou componentes de pessoas de cada plano por entre os planos. De acordo com o autor, no benzimento do parto o kumu abre a porta do corpo da grávida e a porta da casa dos peixes, algo que faz todo sentido na lógica xamânica tukano. Por um lado, o modo como meus interlocutores concebem as diversas transformações em relação aos cuidados relacionados ao nascimento pode ser compreendido se lançarmos mão do conceito de abrandamento, desenvolvido por Cabalzar, F. (2010). Tal conceito diz respeito a procedimentos realizados pelos kumua Tuyuka de abrandamento da nominação e das restrições de alimentação e sexuais em momentos importantes do ciclo de vida. Entre os Tuyuka, o benzedor evita fazer uma versão de benzimento de alma-nome em que atribui à criança a intenção-pensamento de ser um grande conhecedor e amplia o espectro dos alimentos benzidos e acelera a introdução dos alimentos após nominação, iniciação, parto, menstruações, estratégias que constituiriam um modo de prosseguir com todos os benzimentos sem os riscos mais potentes e fulminantes que estariam implicados
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no porte de saberes maiores (idem: 185-186). A noção de abrandamento, sugiro, remete à expressão xamânica pehkaporã ta (lit. interromper∕apagar a brasa, o calor do fogo14), acionada com o intuito de abrandar o calor de seres, artefatos ou substâncias quentes, que causam efeitos danosos à pessoa. Por outro lado, a recorrência em se referir ao passado como uma época em que as restrições seriam rigidamente estabelecidas e cumpridas em contraponto a um presente em que elas seriam mais leves pode estar relacionada a um certo estilo narrativo Tukano fatalista sobre as transformações sociais ao longo do tempo, em que conhecedores e conhecimentos são concebidos progressivamente como menos potentes (Hugh-Jones, S. 1994, Goldman, 2004, Cabalzar, F. 2010).
De acordo com a narrativa Tukano sobre a origem da humanidade mencionada no início do artigo, esta em seu estado atual só é atingida após uma série de experimentações, tentativas, erros e acertos, efetuados através de parcerias same-sex, cross-sex e intergeracionais, pelo casal primordial de avós do universo e por seus descendentes. Há, portanto, reverberações entre o processo narrado na história de constituição da humanidade e o processo narrado aqui, durante o qual duplas, avô e avó paternos, pai e mãe, e uma rede de homens e mulheres, lançam mão de tentativas e experimentações (yãase), testes (yãakeose) relativos aos benzimentos (bahsese), aconselhamentos (werese) e restrições (betise), para garantir o nascimento exitoso da criança.
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Tukano Dagoberto Azevedo pelos esclarecimentos sobre esta noção.
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Aceito em 07 de dezembro de 2018.
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Nas casas, nos quintais, com a comunidade: cuidado e educação das crianças pequenas Xakriabá Erica Dumont Pena Professora Adjunta da Escola de Enfermagem, Nutrição e Gestão em Serviços de Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais ericadumont@gmail.com
Rogério Correia da Silva Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais rogex.correia@gmail.com
Resumo O presente texto propõe-se a caracterizar os cuidados e a educação na constituição das corporalidades das crianças pequenas do povo indígena Xakriabá, Minas Gerais, Brasil. Do nascimento até quando estão maiores, por volta dos seis anos de idade, o cuidado e a educação das crianças Xakriabá ocorrem em seu grupo doméstico, entre as casas e os quintais. Analisamos as práticas de educação e cuidados embasados pela discussão sobre a noção de pessoa e fabricação do corpo, temas recorrentes nos estudos sobre crianças indígenas. As orientações quanto a práticas de alimentação, as massagens, os benzimentos e as simpatias revelam as noções do grupo sobre o desenvolvimento da criança frente ao ideal de corpo belo e saudável, o que envolve a participação da comunidade: mulheres, homens, outras crianças, parteiras, rezadores, benzedeiras, animais e coisas. Palavras-Chave: Criança Indígena; Criança Pequena; Educação; Cuidados. Abstract
This text proposes to analyse the caring and education that constitutes corporalities of the small children among the Indigenous people Xakriabá, in Minas Gerais, Brazil. From birth until they are around six years of age, the caring and education of Xakriabá children occurs in the home environment, between homes and backyards. We analyze the practices of education and care based on the discussion about the notion of the person and the fabrication of the body, a recurrent theme in the studies on indigenous children. The
Nas casas, nos quintais, com a comunidade
guidelines on feeding practices, massages, blessings, and sympathies reveal the group’s notions of child development linked to the ideal of a beautiful and healthy body, involving the participation of a broader community: women, men, other children, midwives, prayers, healers, animals and things. Keywords: Indigenous Child; Young Child; Education; Care
Introdução No presente texto descreveremos alguns aspectos que configuram a infância das crianças Xakriabá. Em trabalhos anteriores (Silva, 2013, 2014), nos detivemos na descrição e análise da infância das crianças Xakriabá, a partir dos oito anos de idade, sobretudo a partir de sua circulação pelo território e da participação nas diversas atividades desenvolvidas pelo grupo tais como: as domésticas, as caçadas, as que envolviam o cuidado com os animais e o trabalho na roça.
Neste trabalho, daremos ênfase a aspectos da infância da criança pequena, do nascimento até aproximadamente os seis anos de idade, fase delimitada em razão do menino e da menina ainda não circularem sozinhos pelo território. Neste período, a vida é bastante marcada pelas práticas domésticas da casa e do quintal, junto às mulheres e outras crianças de seu grupo familiar, quando iniciam seus primeiros passos em direção ao espaço mais amplo da aldeia, da mata e das roças. Inicialmente, discutiremos temas como: gestação e nascimento, as noções nativas de desenvolvimento da criança e as práticas de fabricação do corpo, a alimentação, os cuidados dispensados a ela, principalmente por outras crianças, e o tratamento das doenças da infância. Daremos destaque em nosso texto à discussão sobre a fabricação do corpo da criança Xakriabá, em pelo menos dois aspectos importantes:
- As ações que ocorrem por meio dos benzimentos e de fórmulas simpáticas que visam tanto a proteção e a cura quanto a composição do corpo da criança, nas ações de compor, recompor ou corrigir o caminho seguido durante seu crescimento; - As ações voltadas para o cuidado e a alimentação das crianças.
As análises desses dois pontos estarão por sua vez embasadas nas noções de saúde e doença do grupo e em suas formas de classificação dos alimentos. Desta forma, ao abordarmos o tema dos benzimentos, trataremos também dos tipos de doenças que mais acometem as crianças e demandam tais tratamentos. Fazemos referência à dieta alimentar voltada para a criança, na qual evita-se alimentos que contenham “reima” e aqueles que apresentam a cor amarelada. Os Xakriabá utilizam alimentos fortes ou fracos, quentes ou Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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frios, de acordo com o estado de saúde do indivíduo. Chamamos a atenção para a forte relação que existe entre estes dois assuntos, pois os Xakriabá consideram a alimentação um importante fator tanto na manutenção da saúde quanto no tratamento de doenças.
Gestação, nascimento da criança Xakriabá e as restrições e tabus alimentares
A literatura relacionada às crianças indígenas é composta por diversos estudos sobre práticas de cuidado voltados para a gestação, nascimento e primeiros anos de vida (Melatti & Melatti, 1979; Alvarez, 1992; Cohn, 2000; Limulja, 2007, Pereira, 2014). Tais estudos reforçam a importância que as populações indígenas dão a uma noção de corpo da criança como algo que deva ser fabricado socialmente (pois é algo de responsabilidade de todos os envolvidos – pai, mãe e demais parentes – e implica uma série de prescrições alimentares como: resguardos, jejuns e isolamento). Esta noção é, pois, fruto de um processo que se inicia muito antes do nascimento da criança, mas que é contínuo e intencional, estando sujeito às regras que compõem a concepção de pessoa própria a cada cultura. Visam, por meio destas técnicas, tornarem suas crianças seres humanos plenos, possuidores de corpos (e espíritos) belos, fortes e saudáveis. Nesta definição, o corpo seria considerado uma matriz de símbolos e um objeto do pensamento estreitamente imbricado à noção de pessoa; esta ideia define as formas simbólicas por meio das quais os seres humanos se representam para si mesmos e para os outros. Em nosso trabalho, retomamos a proposta feita por Aracy Lopes da Silva quando afirma que a discussão da corporalidade deve ser entendida como um dos mecanismos centrais dos processos de aprendizagem e transmissão dos conhecimentos, habilidades, técnicas e concepções próprias que envolvem as crianças indígenas. O corpo da criança tornar-se-ia o local em que incidem os processos vividos no grupo a que pertence, síntese das significações sociais, cosmológicas, psicológicas e cognitivas (Lopes da Silva: 2008, 40-41). Entre os Xakriabá, no que se refere ao período de gestação da criança, vamos encontrar uma série de restrições feitas à gestante1. O que está presente nestas restrições é a ideia de que as experiências vividas pela mãe durante a gravidez, seja na alimentação ou em seu comportamento, podem afetar o feto, não somente na constituição física do bebê ou em dificuldades no momento do parto, como também no desenvolvimento futuro da criança após o nascimento. Neste sentido, podemos afirmar que tais regras envolvem uma concepção de corpos e objetos que produzem afecções sobre o corpo da criança. Envolvem também a ideia de que o corpo da criança é uma mistura e uma metamorfose
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As parteiras têm um papel fundamental na orientação e acompanhamento das mulheres gestantes. Se a criança nasce com problema, doente ou com algum defeito físico, atribui-se a responsabilidade à mãe pelo descumprimento de alguma das regras.
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Nas casas, nos quintais, com a comunidade
desses encontros, relacionada à compreensão de associação de corpos, ou de partes deles. Tais regras carregam a noção presente no pensamento ameríndio de um corpo instável, “...corpos em reverberação continua que alternam seus estados de composição; o corpo aqui visto como feixes de afecções e capacidades e conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus” (Lolli, 2008: 292). Retomaremos este assunto mais adiante, quando buscaremos sintetizar as discussões relacionadas às dimensões da cura e proteção na ideia da constituição da pessoa. A partir deste primeiro referencial, daremos seqüência à descrição e análise das práticas voltadas para o cuidado e a educação das crianças pequenas Xakriabá. Compreende-se que cuidado e educação estão imbricados, uma vez que o corpo que se constitui pelo e no cuidado (sobretudo para crianças pequenas) necessita participar de processos de aprendizagem e transmissão dos conhecimentos. Trataremos inicialmente da descrição da constituição da criança, desde sua gestação até seu nascimento e primeiros anos de vida.
A prática de “ganhar menino” em casa, ou seja, realizar o parto dos filhos dentro da própria casa, tem sido uma prática retomada pelas jovens mulheres Xakriabá2 e nos revela
muito sobre a forma como o grupo pensa e pratica os conhecimentos sobre a concepção da criança. Encontramos muitas mulheres parteiras na reserva indígena. Foram elas, junto com as benzedeiras e os curadores, os responsáveis pela maioria das informações que aqui apresentamos. A maioria das informações coletadas tratam de cuidados e evitações que as mulheres grávidas devem seguir durante a gestação. No quadro abaixo, apresentamos esta série de restrições.
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Acreditamos que tal ação tem sido uma resposta à forma como o governo tem tratado a questão. Desde o início dos anos 2000, muitas mulheres têm realizado seus partos nos hospitais da região, principalmente depois da intensificação do acompanhamento pré-natal pelo Ministério da Saúde. As indígenas Xakriabá, contudo, tem denunciado a violência obstétrica que sofrem quando encaminhadas para os hospitais da região. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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QUADRO I - Restrições seguidas pela mulher durante a gravidez
Experiências que agem sobre a constituição física da criança
Restrições que, uma vez quebradas pela mãe, podem dificultar o nascimento da criança no momento do parto
Experiências que agem sobre o desenvolvimento da criança após o nascimento
-Não se pode insultar uma pessoa deficiente, pois o filho poderá nascer deficiente também;
- Não se pode sentar nas passagens das portas, senão a criança demorará a nascer ou nascerá virada (as pernas saem primeiro);
- Não se pode pular rastro de cobra. É preciso limpar o caminho antes de passar, caso contrário, quando começar a engatinhar, a criança ficará arrastando a barriga no chão;
-Não se pode ficar olhando para o pato do mato; a criança poderá nascer com o ânus ou as pernas abertas como esse pato;
-Não pode ficar olhando ou brincando com o soim; a criança poderá nascer com a cara do mesmo animal. (Trata-se de um mico que os Xakriabá dizem ter cara de gato). Em alguns exemplos cotidianos, as pessoas atribuíam essas características às crianças com síndrome de down.
- Ninguém pode passar atrás de uma mulher grávida, pois se for alguém que demorou a nascer, o filho da gestante terá também a mesma dificuldade. Sugere-se que ela, uma vez dentro dos ambientes, permaneça sempre de costas para a parede, evitando que isto aconteça;
- Não se pode sentar em cima de vassouras, senão a criança pode não virar no ventre; - Não se pode saltar a corda de amarrar cavalo, senão a criança “passará da hora de nascer”.
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- Não se pode olhar para a abiba branca (réptil que lembra um camaleão), pois a criança pode nascer doente ou preguiçosa; - Não se pode dar banho frio na criança quando ela nasce.
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Interessante observar que algumas destas experiências agem numa relação de empatia entre o animal visto pela gestante e a transmissão/incorporação de suas características para/pela criança, seja na sua constituição e desenvolvimento físico ou comportamental. É possível perceber uma relação entre o significado simbólico dos objetos/ações descritos como restrições e a ação do trabalho de parto. Estabelece-se assim uma associação entre a porta como “passagem/fluxo” e o corpo da gestante e a própria gravidez como “porta/passagem”. O sentido contrário à ideia de passagem/fluxo também está presente, ou seja, a ideia de “bloqueio/interrupção do fluxo”, atribuído ao gesto da gestante se sentar numa passagem de porta. Da mesma forma, podemos interpretar o significado ou a associação entre a corda que serve para “amarrar/prender” o animal e o tempo prolongado que pode envolver o trabalho de parto. Existe também uma orientação moral na restrição que envolve o insulto a pessoas com deficiência.
Inicialmente, poderíamos afirmar que a série de restrições impostas à mãe durante a gestação busca ter efeito na construção do corpo da criança. Elas procuram garantir que a criança nasça sem defeitos físicos e saudável e que a mãe possa desenvolver uma gestação saudável. A preocupação com a mudança de posição da criança, e com o tempo que durará a gravidez ,são assuntos recorrentes, sobretudo no trabalho de parto. Podemos, contudo, ir além e identificar uma forte ideia de que durante a gestação o corpo da criança é fabricado e está aberto às interferências (podemos dizer afecções) de outros seres, sejam eles animais, objetos ou outros humanos. O processo de gestação da criança, os cuidados e aprendizagens que envolvem a fabricação do corpo integram um processo mais amplo, que no modo de vida tradicional Xakriabá é acompanhado pelas parteiras. A fabricação do corpo passa também pela realização do parto, pela cicatrização do umbigo da criança e ainda pelo resguardo e pelas orientações de cuidado com a criança após o nascimento (quadro I). No seu trabalho de conclusão de curso, Miranda Oliveira, uma professora Xakriabá, menciona a importância do trabalho das parteiras:
“Tanto é que as mães ensinam as crianças desde pequenas chamar a outra mulher que ajudou na hora do parto de “mãe velha” ou então “iaiá”. Às vezes dá a criança para a outra mulher batizar, tudo isso em forma de consideração à parteira’’ (Oliveira, 2015: 36).
Durante o parto, a mulher e a criança são envolvidas em um processo de ingestão de beberagens, banhos e massagens. Inicialmente, a mulher ingeria uma bebida à base de “manjerão” (manjerona) e cominho. Ao contrário do que possa parecer, a função desta Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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bebida não está somente relacionada ao cuidado com a parturiente, mas sobretudo à criança, com o objetivo de fortalecê-la para que possa nascer. À criança atribui-se assim, o papel de co-responsável pelo seu próprio nascimento. Como veremos adiante, os alimentos recebem uma classificação de acordo com a forma diferente de afetar os corpos das pessoas. O cominho, citado acima, possui a qualidade de ser um alimento “forte e quente”, o que justifica sua ingestão pela mãe/criança.
Assim que a criança nasce, ela é lavada, vestida e enrolada. Um preparado de folhas e ervas (mastruz, folha de cabaça, hortelão, poejo, folha do algodão) é reunido e aquecido junto com o azeite de mamona e aplicado ao corpo da mulher na forma de uma massagem. A massagem é feita repetidas vezes sobre todo o corpo da mulher, principalmente na barriga no sentido de proteger a “mãe do corpo” da mulher. A “mãe do corpo” mora na parte inferior do abdômen das mulheres Xakiabá e, semelhante ao que Dias-Scopel (2015) encontrou entre as Muduruku, cuidar da “mãe do corpo” é uma prática central na gestação, parto e pós-parto. A localização da “mãe do corpo” é importante, pois os cuidados são para que ela não se desloque e aloje na parte superior do abdômen ou na cabeça, pois ,se isto ocorrer, a mulher Xakriabá passa mal com cólica, dor de cabeça ou outras enfermidades mais graves. O parto faz com que a “mãe do corpo” se desloque e fique solta. Por isso, após a massagem, o preparado é depositado sobre a barriga da mulher e, em seguida, ela é enfaixada, devendo permanecer quinze dias até que “a mãe do corpo” volte e se estabilize no lugar. O resguardo inicia-se com esta prática e segue com outras restrições e cuidados que se destinam à “mãe do corpo”/mulher e à criança. O período do resguardo, que durava em média três meses, nos dias de hoje reduziu-se a aproximadamente 30 dias. Durante o resguardo, a mulher não deve fazer serviços pesados da casa (lavar roupa, varrer a casa, fazer caminhadas) e deve evitar lavar a cabeça. Sobre este último ponto, caso a mulher não siga tal recomendação, corre o risco de sua “mãe do corpo” subir para a cabeça, fazendo assim com que ela enlouqueça. Alguns alimentos são indicados para a recuperação da mulher e outros, ao contrário, devem ser evitados. O pirão de farinha à base de galinha é o alimento dos primeiros dias, que vai alimentar a mulher até o oitavo dia, quando ela volta a comer a comida cotidiana. Alguns alimentos devem ser evitados pela mulher num período que varia de três meses a um ano, como: feijoa (tipo de feijão da região), manga, mamão, abóbora e carne de caça (tatu, galinha, veado). Entre os Xakriabá, estes alimentos são considerados fortes/quentes e alguns deles com “reima”, contraindicados para pessoas em recuperação e também com doenças do sangue. Existem ainda, aqueles alimentos que devem ser evitados pela mãe sob o risco de produzirem cólicas na criança como, por Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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exemplo, a pimenta e o café. No caso do café, ele era apenas evitado no momento em que se amamentava o bebê. Segundo explicam as mulheres do lugar, o calor do café poderia passar diretamente para o leite do peito da mãe e a criança poderia sentir cólica por causa disso. As cólicas são consideradas como as doenças do umbigo.
Com relação à criança recém-nascida, além do banho, existem outros cuidados, especialmente em relação ao tratamento do umbigo. O prazo mínimo para o umbigo cair é em torno de três dias. Antes, ele era “curado” à base do azeite de mamona ou noz moscada, prática que tem sido substituída pela cura com álcool 70%, incentivada pelos serviços de saúde estatais. Caso a cicatrização demore, as mulheres também utilizam outros produtos como cinzas de penas de galinha, caroço queimado de umbu ou sola queimada de sapato. Assim que o umbigo cai, aplica-se no local uma pasta à base de hortelã para cicatrizar. Somente a partir de então é que o banho de corpo inteiro na criança pode ocorrer. O destino que receberá o umbigo da criança também é uma preocupação do grupo:
“(...) o umbigo da criança deve ser enterrado no lugar de origem, pois a pessoa pode estar, assim que a mãe terra sentir saudade da gente, o umbigo que foi enterrado é tão sagrado que puxa a pessoa para seu lugar de origem. Isso para nós Xakriabá é um costume quando a criança nasce, em casa ou no hospital, a mãe ou a avó já fica atenta e quando o umbigo cair precisa ser enterrado sendo com recomendações da parteira que ajudou no nascimento da criança” (Oliveira, 2015: 37).
No que diz respeito à amamentação, muitas vezes, logo que a criança nasce, uma outra mulher que já amamenta é a responsável por dar o primeiro leite à criança e se torna a “mãe de leite”. As mulheres não consideravam o primeiro leite da mãe um leite que sustentasse sozinho a criança e também percebem que a criança aprende a sugar melhor em um peito que já está liberando mais leite, assim a “mãe de leite” fortalece a mãe e a criança. Durante o primeiro ano, o alimento principal da criança é o leite, associado aos chás, mas desde os três meses são introduzidos na sua alimentação outras comidas como caldos, como o de feijão. O tempo de amamentação da criança varia muito hoje em dia, podendo ser de seis meses até os dois anos de idade.
Os benzimentos e as simpatias: proteger, curar e ações de compor, recompor e corrigir o caminho seguido pelo corpo da criança
Trataremos aqui dos benzimentos e das fórmulas que visam tanto a proteção e a cura quanto a fabricação do corpo da criança, nas ações de compor, recompor ou corrigir Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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o caminho seguido durante seu crescimento. Para isso, necessitaremos inicialmente adentrar nas formas de classificação das doenças entre os Xakriabá, dando destaque para aquelas que acometem as suas crianças. São estas formas de classificação que dão sentido às práticas de benzimento.
Algumas das doenças que afetam as crianças Xakriabá também se encontram profundamente arraigadas em nosso imaginário, presentes nas representações de populações urbanas e rurais, como o mal dos sete dias3, o mau-olhado e o quebranto. Trataremos especificamente neste artigo das duas últimas, cuja ação de cura e proteção dá-se através dos benzimentos:
Os rezadores tratam de doenças específicas, como o “vento caído” (“(...) tem uma criança pequena que de repente cai, se assusta, fica triste, ruim (...) dá logo diarréia, vômito (...) aí a pessoa reza e a criança fica boa”), o “mal olhado” (“quando uma pessoa que está com fome e chega, e tem uma criança e começa a agradar, a criança passa mal, aí precisa chamar o rezador”), o “quebranto” (estado mórbido que resulta do “mal olhado” de certas pessoas sobre outras, ocasionando estados de prostração, abatimento e fraqueza) e o “espanto” (susto) (...). As defumações com animais medicinais, como as penas do jacamim (Ciconidae) e o couro do ‘tamaquaré’ (espécie de lagarto do igapó, não identificado), são importantes coadjuvantes no tratamento das doenças espirituais (Silva, 2008: 253).
Os benzimentos são práticas de cura e proteção bastante disseminadas em todo o território brasileiro, tanto no campo quanto na cidade, tanto entre as populações indígenas como entre as não-indígenas. Eles não somente estão presentes e muito disseminados entre os Xakriabá, como sua importante intervenção sobre as doenças pode decidir a vida ou a morte de suas crianças, sendo os rezadores ou benzedores figuras essenciais entre os Xakriabá. Os/as rezadores/as ou benzedeires/as são homens ou mulheres que acionam conhecimentos do catolicismo popular, fazendo uso de súplicas e rezas para restabelecer o equilíbrio ─ seja ele material, físico ou espiritual ─ de quem busca sua ajuda. Dentre seus objetos e gestos, encontramos ramos verdes, gestos em cruz com a mão direita, cachimbos,
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O mal dos sete dias é uma doença ou mal que acomete o bebê no sétimo dia de vida. Segundo as mulheres entrevistadas, a criança sofre tal mal em função da visita de uma bruxa. Encontramos referências históricas sobre o mal dos sete dias, sobre o quebranto e mal olhado e sobre o assédio das bruxas às crianças pequenas em documentos médicos feitos no Brasil no período colonial. (Del Priore, 2009). A partir destes documentos, a autora descreve as práticas de proteção da criança contra essas doenças e ataques fazendo uso de defumadores, arruda, relíquias e orações. Entre os Xakriabá, uma forma de evitar tal mal era, além da vigília na noite do sétimo dia, vestir a criança com a mesma roupa pelo avesso durante os sete primeiros dias de nascido.
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fumos, alimentos, bebidas, cascas de árvores ou outro objeto que sirva de veículo no tratamento do doente. Quase em todas as famílias Xakriabá encontramos benzedores. Todavia, existem determinadas pessoas que com o passar dos anos especializaram-se no tratamento das doenças e tornaram-se referência do grupo: são os curadores. Os benzimentos são realizados para tratamento das doenças que entre os Xakriabá são classificadas como “doenças que se pegam pelo vento”, pois, o vento pode carregar as palavras, as intenções4. É tão forte esta noção entre os Xakriabá que resulta na ausência
de diálogo com a biomedicina e com as noções de saúde e higienização ocidental, muitas vezes rebatidas ou ignoradas pela população. Segundo os Xakriabá, estas são doenças de difícil diagnóstico pela “medicina de fora”, “da cidade”, “dos médicos”. Elas possuem sinais próprios que, a princípio, qualquer adulto Xakriabá pode identificar, mas vão ganhando as sutilezas e complexidades que somente as pessoas mais experientes, já iniciadas no estudo das doenças do espírito ou da alma, têm condições de diagnosticar e realizar o tratamento de cura. São doenças que podem levar as crianças ao óbito se não forem devidamente diagnosticadas e tratadas. O tratamento de cura é feito através de reza e do benzimento. A primeira dessas doenças que abordaremos aqui é o quebrante (ou quebranto), também chamada pelos Xakriabá de “doença encantada” (Pena, 2004). Essa doença é transmitida pelo olhar e pela palavra do adulto para a criança pequena. Está relacionada ao que se diz sobre e para a criança. Não é uma doença que se transmite apenas por palavras que desejem mal a outrem, mas justamente o contrário, pelo olhar e pelos elogios, pelas palavras de admiração direcionadas à criança, seja pela sua beleza, ou por aparentar-se gorda e saudável. Neste sentido, os risos e as brincadeiras realizadas com crianças pequenas, gestos tão comuns e freqüentes na sociedade não-indígena conhecidos por “paparicação”, são fonte de preocupação para as mães das crianças indígenas. Na presença de pessoas de fora que possuam este comportamento, as mães podem retirar seus filhos do local a fim de protegê-los. Os sintomas do quebrante são aparentes e recaem sobre a mudança de comportamento da criança: imediatamente ela perde o apetite, chora ininterruptamente, 4
As doenças dos Xakriabá são classificadas segundo a forma de contágio ou parte do corpo a que elas podem ter acesso. Dentre as outras classificações das doenças entre os Xakriabá, três outros tipos de doenças foram registrados por Fernandes (2008): as “doenças que se pega pelo pé” e as “doenças que se pega pela mão”, e os vermes, embora não sejam “algo que se pegue”, pois, as crianças os carregam consigo desde o nascimento. O estoporo (quando a pessoa mistura quente com o frio e as doenças respiratórias) e o reumatismo são doenças que se pegam pelo pé e as doenças relacionadas à quebra de algum tabu são exemplos daquelas que se pegam pela mão. As verminoses, juntamente com a diarreia, uma das maiores causas de mortalidade entre as crianças Xakriabá, não são consideradas como um ser estranho ao corpo humano, uma idéia recorrente entre as populações indígenas. “As pessoas crêem que é normal para os vermes viverem nas entranhas. Só quando perturbados é que eles saem de seu abrigo e começam a causar doenças no corpo da criança. ” (Weiss, 1988: 8, apud Pena, 2004: 83). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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perde peso, tem vômitos. Existem dois tipos de quebrante, sendo um deles mais comum e o outro muito grave. O quebrante mais comum recebe também o nome de “quebrante das carnes”. Ele resulta em um estado em que a criança somente chora e vomita, levando-a literalmente a “perda de suas carnes”, já que perde apetite, não se alimenta, perde peso. Caso não seja tratado, pode levar ao segundo tipo e passa a exigir cuidados especiais, precisando de tratamento imediato, sob o risco de a criança morrer. O segundo tipo de quebrante mais grave é também chamado “quebrante nas tripas”, pois ocorre quando a doença chega aos intestinos, resultando em cólicas que podem revirar suas tripas a ponto de dar-lhes nós, o que seria fatal.
O crescimento da criança e as simpatias voltadas para aprender a andar e a falar
Existem determinadas práticas adotadas pelo grupo denominadas de experiências ou simpatias que agem sobre o corpo da criança diante de seu crescimento inadequado, a fim de conduzi-la no caminho de um corpo ideal. Apresentamos aqui as simpatias que auxiliam a criança a aprender a andar e a falar. Caso tenha chegado a idade e a criança, por algum motivo, ainda não tenha aprendido a andar ou a falar, ela é submetida a uma destas simpatias.
Passado o primeiro ano de vida, se a criança ainda não aprendeu a andar, os adultos submetem-na ao consumo e a aplicação em seu corpo de determinados produtos provenientes de animais considerados habilidosos no caminhar. Substâncias retiradas das pernas de determinados animais são aplicadas no corpo da criança. Dois produtos são indicados: o tutano retirado do osso da canela do veado e a banha das pernas da galinha. No primeiro caso, a aplicação do tutano é feita diretamente sobre a perna da criança. No segundo caso, a criança tem suas pernas banhadas na mesma água que foi usada para depenar uma galinha. A outra forma de levar a criança a aprender a habilidade de andar é fazer com que ela coma a carne do animal que possua as mesmas habilidades desejadas para a criança. Nesse caso, o animal indicado é o soim, um macaquinho ágil e habilidoso muito presente na região. Acredita-se que as habilidades para caminhar destes animais permanecem acumuladas em determinadas partes de seus corpos, mesmo depois de mortos. Estas habilidades estariam disponíveis para quem ainda não as possui e, de alguma forma, com elas estabelecem algum tipo de contato ou consumo. No primeiro caso, a própria canela do veado concentraria suas habilidades de correr, pular. Da mesma forma, ao depenar-se a galinha na água quente, a habilidade de caminhar deste animal seria transferida para o líquido através de sua gordura. O ato de aplicar ou banhar a criança nestes produtos Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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traz em si a idéia de moldar o corpo da criança, de forma que ela ande de forma ágil, com rapidez e destreza. O estudo desenvolvido por Pedro Lolli (2014) nos auxilia a compreender a prática do benzimento (e das simpatias, no nosso caso) e seu importante papel na composição e constituição da pessoa. O autor analisou a relação entre as ações xamânicas e o mito, desenvolvendo estudos etnográficos sobre o grupo Yuhupdeh, localizado na região do alto Rio Negro. Ele analisou o papel de certas ações rituais de cura xamânica na composição e constituição da pessoa. Em seu estudo, os benzimentos são tratados como fórmulas verbais de cura e proteção, realizadas pelos xamãs, tanto nas grandes festas quanto no dia-a-dia. Destacamos aqui algumas das ideias apresentadas pelo autor: - Os benzimentos são vistos como potência e técnica, que articulam humanos, objetos e não-humanos;
- A composição da pessoa se realiza a partir de uma ideia de corpos que se afetam mutuamente, se metamorfoseiam e se misturam uns nos outros, através da associação de corpos e de partes de outros corpos;
- A noção de corpo ameríndio é instável: corpos em reverberação continua que alternam seus estados de composição. O corpo é definido enquanto feixes de afecções e capacidades, e conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus;
- O momento da execução dos benzimentos explicita um processo de composição, em ações de recompor, decompor e compor a pessoa. Neste sentido, a ação dos benzimentos interfere nos efeitos destas afecções resultantes destas misturas, no sentido de agir sobre aquelas que diminuem a potência de agir e favorecer as afecções que a aumentam. Assim como analisamos no período da gestação, encontramos o corpo da criança em permanente construção da qual participam outros seres, aberto às suas afecções, sejam eles animais, objetos ou outros humanos. Nos casos registrados acima, substâncias retiradas de partes de animais que carregam suas potências são acionadas pela simpatia de forma a se misturarem ao corpo da criança, transformando-o, compondo-o, na ideia de um corpo aberto, não fechado às determinações biológicas ou do ambiente. Neste caso, o tutano da canela do veado e a água onde foi depenada a galinha funcionam como objetos indiciais (na definição de Peirce [2010], que atribui aos signos indiciais a característica de Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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operar por contiguidade com o objeto que representa). Também podemos dizer que tais substâncias possuem agência sobre os processos de transformação do corpo da criança.
Ainda relacionado à descrição e análise de simpatias voltadas para fazer a criança andar, apresentamos aqui um novo conjunto cuja ideia comum é a ação de se caminhar com a criança. Estas simpatias refletem a hipótese de que se a criança não aprendeu a andar, é porque está impedida pelo medo. Quatro foram as simpatias registradas:
- Rodar a casa três vezes, durante três sextas-feiras caminhando com a criança (colocando a criança no chão e segurando-a pelos braços, auxiliando-a para que possa caminhar com os próprios pés) e varrer o rastro deixado por ela; - Fazer o mesmo procedimento anterior, mas ao invés da vassoura, utilizar o machado para cortar o rastro, eliminando assim o medo da criança caminhar;
- Colocar os pés das crianças no pé do pilão. Socar os pés da criança três vezes dentro do pilão segurando-a pela mão e depois rodear a com a criança a casa três vezes;
- Andar três vezes com a criança no caminho deixado pelas formigas da mandioca.
A vassoura e o machado são objetos que representam os sentidos de “varrer”, “cortar”, “apagar” um caminho, rastro, ou trilha feita pela criança que não a levava a caminhar. Semelhante ao ato de benzer, também se corta o vento que carrega o medo. Ao mesmo tempo, o adulto leva a criança, projetando assim o caminhar. Assim como os animais, deixamos nossos rastros. Para retirar o medo que acompanha a criança, apagar seus rastros seria o mesmo que a caça (criança) despistar seu caçador (medo) escondendo seu rastro. Entre os Xakriabá, é muito forte esta imagem da trilha como o resultado das caminhadas dos humanos. Toda a aldeia é marcada por trilhas nas quais crianças e adultos circulam diariamente. A ideia de tirar o medo a partir destas ações performáticas traz também a ideia de decompor, de retirar um aprendizado marcado pelo medo (fazer uma outra trilha, já que esta não levava ao lugar que se queria chegar) para no lugar apresentar outro, o caminhar como o humano caminha (auxiliado pelo adulto). Esta ideia de apresentar na simpatia a forma como se deve caminhar é forte também na simpatia feita com o caminhar na trilha deixada pelas formigas da mandioca. Por fim, existe também a produção de artefatos que ajudam a criança a caminhar, como a produção de carrinhos para crianças pequenas, como mostra a foto abaixo: Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Figura 1: menino Xakriabá com um tipo de andador (SILVA, 2011)
Outras simpatias são voltadas para a criança aprender a falar, como: - Destrancar a boca da criança três vezes com uma chave;
- Pedir à criança para provar a comida e perguntar-lhe se ficou bom (uma simples resposta da criança já é o suficiente); - Dar água que lava colheres para a criança beber;
- Dar água para a criança beber dentro do “buzo”, um caramujo muito presente nas partes altas da região. Mesmo que não sejam consideradas simpatias, existem outras práticas realizadas pelas crianças que produzem efeitos sobre sua personalidade, sendo uma delas: se a criança rodar a tramela da porta três vezes pode se tornar “fuxiquenta”, uma criança curiosa que mexe em tudo, algo considerado inadequado para os padrões Xakriabá.
O “dar de comer” às crianças e os tabus alimentares
Existem tabus alimentares para as crianças pequenas. Certos alimentos são proibidos por serem considerados fortes, quentes e/ou incompatíveis uns com outros. Eles não correspondem ao desenvolvimento das crianças nesta idade, podendo por isto adoecê-las.
Os alimentos são classificados segundo três formas, que possuem cada uma o seu oposto. Temos assim o alimento forte/fraco, quente/frio, reimoso/sem “reima” ou manso. Segundo Woortmann (2008), estas formas de classificação dos alimentos por pares de Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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oposição estão presentes em várias regiões brasileiras, como na Amazônia, no Nordeste e no Brasil Central, também carregadas de prescrições e proibições alimentares. As comidas quentes são ofensivas ao aparelho digestivo humano e as frias ao aparelho circulatório. As concepções populares sobre a comida seguem um modelo cosmológico de harmonia universal que orienta a vida das pessoas, segundo um princípio de equilíbrio, baseado em sentido de oposições. Ou seja, a idéia de que “tudo neste mundo ou é quente ou frio”.
Esta maneira de pensar a relação entre os alimentos e o corpo, saúde e doença, corresponde à forma como os Xakriabá pensam, classificam a comida e dela se alimentam. Segundo Brandão (1981), em outro contexto, o alimento forte é sinônimo de comida sadia e teria relação com a duração da energia e, portanto, com a capacidade de manter os trabalhadores alimentados por mais tempo, produzindo ou conservando energia para o trabalho braçal. A “reima” é considerada uma substância ou qualidade presente nos corpos das pessoas e alimentos e que faz mal para o sangue, provocando problemas e doenças de pele. Ela tem a qualidade de agitar o corpo da pessoa, engrossar seu sangue ou pôr a “reima” para fora ao ser consumida. O porco, a carne do tatu, a galinha e o peixe são consideradas comidas com “reima”.
Se para os adultos o consumo desses alimentos deve ser feito ainda sob certas reservas e condições, para as crianças, a maioria deles, tais como ovo e carne de porco, são proibidos. Eles são evitados sob o risco de as crianças adoecerem, uma vez que, segundo os Xakriabá, é da natureza de suas crianças a agitação, o movimento e a dificuldade de se respeitar o repouso, algo considerado necessário, após se consumir tais alimentos. Sendo assim, para as crianças é preparada uma comida sem estes alimentos. Quando isto não é possível, muitas recomendações são feitas às crianças pelos adultos.
Considerações finais
Procuramos descrever neste texto aspectos relativos à infância vivida pela criança pequena Xakriabá, com destaque para os cuidados com a fabricação do corpo, os quais envolvem as crianças, mães, parteiras, benzedeiras, animais e coisas.
As descrições desses processos de vida dos Xakriabá, em cuidados, doenças, seus diagnósticos e tratamentos, e as aprendizagens delas decorrentes nos causam movimentos ambíguos de proximidade e estranhamento. Muitas dessas imagens não são exclusividade do povo indígena em questão; encontram-se disseminadas em nossa cultura. Algumas entram em conflito com a medicina ocidental e com as políticas de saúde pública, como é o exemplo do mal de sete dias ou o tétano neonatal para a medicina (Vieira; Oliveira; Lefrève, 2006), o qual é considerado um problema de saúde pública, cuja gravidade encontra-se na
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sua letalidade (mortalidade de 80% para as crianças infectadas). Com relação ao tétano, as principais medidas são a vacinação das mulheres em idade fértil, a realização do prénatal, a assepsia durante o parto e os cuidados com o cordão umbilical e o coto (umbigo), os quais podem entrar em confronto direto com as práticas tradicionais das populações indígenas. Sabemos, por exemplo, que o pré-natal tem resultado na realização do parto das mulheres Xakriabá em hospitais, o que tem gerado violência obstétrica, para além da quase extinção de uma prática tradicional.
Cabe aqui um exemplo do trabalho de Limulja (2007), que sistematiza os problemas decorrentes dessas medidas, entre os indígenas Guarani e Kaingang, constatando que as mudanças culturais relacionadas à realização do parto das crianças impedem a formalização do processo de fabricação dos corpos das crianças. Quando as mães passam
a ganhar seus filhos nos hospitais e nas cidades, os cuidados destinados à placenta e ao cordão umbilical da criança (entre os Kaingang enterra-se a placenta para evitar que seja comida por animais e o umbigo é enterrado junto a “uma árvore forte” para que a criança cresça também forte) deixam de ser realizados. No caso dos Guarani, a prática de fazer um colar com o cordão umbilical para a criança, para que ela não fique perdida, e a prática do resguardo da mulher e criança (isolamento de ambos em lugar escuro e fechado por um período de tempo), por exemplo, não podem ser realizados. Segundo relatam os mais velhos, isto seria o motivo do crescimento de crianças fracas e doentes em seus grupos. Talvez o choque que sentimos na leitura de tais profilaxias só meça o quanto o discurso médico e de cuidados ocidentalizados encontram-se enraizados e naturalizados em nosso imaginário e o quanto estamos distantes de uma escuta maior das concepções nativas de infância, sobretudo dos povos indígenas, para pensarmos em ações que possam contribuir para solucionar problemas vividos por elas e também para o reconhecimento de modos de vida tão complexos e valorosos.
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Nas casas, nos quintais, com a comunidade
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Aceito em 05 de dezembro de 2018.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 83-100.
As crianças Kaingang: educação escolar e os processos próprios de aprendizagem Bruno Ferreira1 Professor no Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel brunokaingang@yahoo.com.br
Resumo O presente texto é uma reflexão a respeito dos processos de construção de conhecimento das crianças nas formas coletivas do saber compartilhado do povo Kaingang. O estudo foi realizado especialmente em comunidades onde as pessoas são falantes da língua materna kaingang. Para sua realização, foi fundamental o diálogo com os Kofá (velhos/ as) a respeito das formas de construir conhecimentos e sua transmissão para as crianças, o que é de grande importância. Nessas comunidades, as crianças e os adultos ocupam os mesmos espaços para aprender, o que resulta em crianças mais autônomas, pois o seu aprender está baseado no ouvir, observar e experimentar. Além dos espaços tradicionais e formas próprias do dia-a-dia na comunidade, a escola aparece como mais um lugar que, gradativamente, está sendo ressignificado pelas crianças, professores indígenas e de forma mais geral pelos Kaingang, como espaço de diálogo entre os conhecimentos indígenas e não indígenas. As reflexões que trago nesse trabalho fazem parte da dissertação de mestrado apresentado na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o titulo “Educação Kaingang: Processos Próprios de Aprendizagem e Educação Escolar”. Palavras chave: crianças kaingang; educação escolar indígena; educação indígena; crianças indígenas 1
Bruno Ferreira, Kaingang, professor de História, História da Educação e Direito indígena no Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel-Terra Indígena Inhacorá, São Valério do Sul. Mestre e doutorando em Educação na Faculdade de Educação- Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS.
As crianças Kaingang: educação escolar e os processos próprios de aprendizagem
Abstract This paper aims to reflect upon the processes of knowledge building of indigenous children in the collective forms of the Kaingang shared knowledge. The study was carried out especially in communities where the Kaingang people speak their indigenous language. In order to conduct the research, it was vital to dialogue with the Kofá (the elders), about the ways of building and transmitting knowledge to the children, which is very important. In these communities, children and adults occupy the same learning spaces, which results in more autonomous children, because their way of learning is based on listening, observing and experimenting. Besides the community’s traditional spaces and the indigenous ways of everyday life, the school appears as another place that is gradually being ressignified by the children, the indigenous teachers and by the Kaingang people in general as a space of dialogue between the indigenous and non-indigenous knowledges. The considerations discussed in this paper are part of a Master’s thesis conducted at Faculdade de Educação (College of Education) at the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brazil), entitled “Kaingang Education: indigenous learning processes and school”. Keywords: kaingang children; indigenous school; indigenous education; Indigenous children
O povo Kaingang O lugar de onde falo é a Terra Indígena Guarita, do povo kaingang, localizada no noroeste do estado do Rio Grande do Sul, entre os municípios de Redentora, Tenente Portela e Erval Seco. Guarita possui uma população em torno de 10 mil pessoas e nela existem atualmente 12 escolas indígenas, dessas, uma é de ensino médio e as demais com alunos do 1º ao 9º ano. Nessas escolas trabalham professores indígenas e não-indígenas, a maioria dos professores indígenas atuam nos anos iniciais. No inicio dos anos 1970 iniciei minha caminhada de estudante em uma escola desta terra, uma época em que tive que aprender a falar o português, pois era proibido de falar na língua kaingang. Após ser alfabetizado em português, segui meus estudos nas escolas não-indígenas até chegar hoje na pós-graduação. É importante dizer marcam meus estudos essa escola integracionista, suas proibições de falar nossa língua materna, os castigos, a negação de nossa cultura e, as imposições de valores não-indígenas. É com esse sentimento que venho lutando para fortalecer a existência do povo kaingang com sua língua, crenças, costume, tradição, sua cultura, seus processos próprios de (re)passar seus conhecimentos às crianças, com suas metodologias. Os Kaingang estão entre os povos indígenas mais numerosos do Brasil. Falam a
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língua pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, que é reconhecida somente no território brasileiro e que tem falantes desde o sul do Pará e Maranhão até o Rio Grande do Sul. De acordo com critérios geográficos, socioculturais e linguísticos, os Xokleng e os Kaingang pertencem ao grupo Jê Meridional. Em termos demográficos, os Kaingang se constituem na primeira etnia do tronco Macro-Jê e a segunda etnia do território brasileiro (Rosa, 2005: 29). A organização sociocultural kaingang é conhecida pelos princípios cosmológicos dualistas, de acordo com o mito de origem, representado pelos antepassados Kamẽ e Kajru, mas que não impõem uma separação espacial entre as diferentes dualidades. Cada metade clânica possui uma marca/sinal, que usa em seus rituais: a dos Kamẽ é téj (comprido), a dos Kajru é ror (curto). As pessoas da mesma marca são consideradas irmãs e irmãos.
Há uma relação de reciprocidade entre as duas metades, prática muito marcante ainda nos dias atuais. Além de outras práticas tradicionais, como os casamentos que acontecem entre as metades opostas, os enterros dos mortos da outra metade (oposta), e nos casos de viuvez em que há ajuda mútua. As crianças herdam do pai a metade. Todos os filhos e filhas de um Kamẽ serão também Kamẽ. É pertinente e importante essa reafirmação de separação entre as metades Kaingang. Dizem os kofá que os Kamẽ são considerados possuidores de espírito mais forte e, assim, sempre tomam a frente nas cerimônias relacionadas aos mortos, pois tem facilidade para intervir junto aos espíritos, caso esses queiram levar pessoas daqui da terra para a morada dos antepassados Kaingang, isso muito em especial no ritual do Kiki2.
Por outro lado, os Kairu lideram nas questões políticas e nas guerras. As distinções da marca téj e ror são importantes em muitos aspectos da vida e da concepção de mundo. Os Kaingang pintam-se principalmente para o ritual do Kiki e cada metade tem sua pintura exclusiva. Os Kamẽ têm listras e os Kairu, bolinhas.
Segundo os Kofá (velhos) Kaingang, tradicionalmente, a pintura é feita com carvões, sendo que a dos Kamẽ é feita com lascas de pinheiro queimadas e depois moídas e umedecidas. Já as pinturas do grupo Kairu são feitas com uma madeira conhecida como Sete Sangria. A coloração fica, portanto, assim definida: Kamẽ, preto e Kairu, vermelho. Saber as diferentes partes complementares é essencial para se compreender o ritual do
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Kiki é uma bebida típica kaingang, produzida com mel nativo. O ritual do kiki é uma festa oferecida aos mortos recentes. É um momento muito importante, pois é nesse ritual que acontece o encontro das pessoas que não existem mais entre os vivos; elas voltam para rever seus parentes que permanecem aqui na terra. Dizem os Kaingang que, após a festa, os mortos retornam para suas moradas de baixo da terra, onde ficaram aguando a vinda dos seus parentes. Acredita-se que a festa do Kiki seja o ritual mais importante do povo Kaingang.
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Kiki, onde cada metade fica separada. Então, é importante que cada kaingang tenha um nome de acordo com sua marca, pois é isso que vai indicar a qual metade cada um pertence. Outro momento de muita profundidade na cultura kaingang é quando alguém fica viúvo ou viúva, pois se acredita que quando o companheiro ou a companheira morre, uma parte daquele que morreu fica com pessoa que permanece viva. Então, essa pessoa precisa passar por uma purificação, pois antes deste ritual de purificação o viúvo ou a viúva constituem uma ameaça para a comunidade, causando um mal estar nas pessoas, podendo levar até à morte.
Os Kaingang são identificados economicamente como um povo coletor, caçador e cultivador, possuem uma economia de reciprocidade, compreendida nos moldes tradicionais. Para vivenciá-la é necessária uma área de terra abrangente, que ofereça as devidas condições para a manutenção da identidade étnica tradicional. A cultura Kaingang desenvolveu-se nas sombras dos pinheirais, que ocupavam a região sudeste e sul do atual território brasileiro. Há pelo menos dois séculos, sua extensão territorial compreendia a zona entre o Rio Tietê (SP) e o Rio Ijuí, no norte do Rio Grande do Sul. Porém, no século XIX seus domínios se estendiam, para oeste, até San Pedro, na província de Missiones, Argentina.
Com passar dos tempos os Kaingang foram sofrendo mudanças no seu modo de viver, assim como outros seres humanos que vão perdendo a consciência daquilo que os definem e os mantém unidos. Diante disso, buscam no passado a reconstrução de valores que vão dar sentido novamente à sua existência. Assim, recorrem a suas memorias ancestrais para significar seus processos de construção de conhecimento diante das mudanças ocorridas.
O aprender das crianças Os Kaingang, ao longo dos tempos, assim como outros povos indígenas, foram criando formas de educação baseadas na sua tradição, articulando e dando significado às suas percepções culturais junto às crianças de suas comunidades. Com base nisso, os ensinamentos dos Kaingang para as crianças foram sempre para garantir sua autonomia, ser sujeitos de suas ações, tomar decisões, mesmo sendo relativo às suas idades ou etapas de suas vidas. Para isso, a liberdade de ação da criança é muito importante, onde a palavra “não” está excluída de seus ensinamentos. Isso também é trazido na fala de Nunes: Nas sociedades indígenas brasileiras […] a fase que corresponde à
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Bruno Ferreira infância é marcada pelo que consideramos ser uma enorme liberdade na vivência do tempo e do espaço, e das relações societárias que por meio destes se estabelecem, antecedendo ao período de transição para a idade adulta que, então, inaugura limites e constrangimentos muito perigosos (Nunes, 2002: 65).
As crianças sempre estão envolvidas nas atividades do cotidiano, percebe-se que não existe claramente uma separação de serviços entre adultos e crianças: todos são capazes de realizar o mesmo trabalho3. Assim como os adultos, as crianças também vão criando, através da brincadeira, seus pontos de referências que são muito importantes na cultura, como as formas de conceber e vivenciar o espaço e o tempo. Dessa forma, as crianças, ao incorporarem seu cotidiano, construindo e transmitindo saberes, vão tomando consciência de sua importância e não são apenas crianças, mas sim parte efetiva de uma construção dentro de sua cultura. Acompanhando a vida na comunidade, pode-se constatar que as crianças Kaingang têm liberdade4, inseridas nos processos educacionais das famílias. Isso ocorre em tarefas
rotineiras, como a busca de materiais na mata para a produção de seus utensílios e artesanatos. Durante o caminho as crianças brincam, conversam entre si e com as pessoas mais velhas que as acompanham. Nessas conversas, aprendem sobre as plantas e suas funções dentro da tradição Kaingang. A prática das mães é ensinar as crianças sobre as plantas, além de outros acontecimentos, durante a caminhada no mato. As atividades que acontecem após as colheitas do material, como a confecção dos artesanatos ou dos seus utensílios, fazem parte do que chamo de Pedagogia Kaingang. Na Pedagogia Kaingang, uma atividade, ou mesmo as brincadeiras das crianças, não são somente brincadeiras, e sim uma verdade, pois as crianças utilizaram instrumentos de verdade. Assim, produzem de verdade, tem um significado real. Isso nos faz refletir que os Kaingang consideram a criança com capacidade de fazer e a respeitam como ela é, e aceitam como partícipe efetiva em todos os processos de construção de conhecimentos em seu cotidiano. A um olhar mais simples podemos dizer que é uma imitação. A imitação tem fundamentos importantes na construção do conhecimento, no aprendizado das crianças indígenas, pois as crianças observam e fazem. A palavra 3 4
O trabalho, na concepção indígena, é um conjunto de atividades que todos podem realizar. Não existe a separação entre trabalho e lazer, ou melhor, todo trabalho é uma forma de brincadeira, diferente da sociedade ocidental, onde o trabalho é uma forma de acúmulo ou ainda o trabalho é uma tortura e não uma forma de prazer.
Não confundir liberdade com autonomia para não pensar que as crianças fazem o que bem entendem, nos momentos em que querem. Sendo assim, as crianças desenvolvem capacidade de tomar as decisões que consideram melhor a seu respeito e ao outro.
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imitação parece simples e talvez, num grupo não indígena, não seja compreendida na sua profundidade. A imitação é uma das formas de aprendizagem que leva o desenvolvimento de tradições, costumes, enfim, da cultura como um todo, transferindo informações entre pessoas através das gerações. O imitar envolve ouvir, observar, fazer junto e de seu modo, criar um jeito próprio de fazer. Assim, a construção do conhecimento da criança indígena kaingang faz parte de sua cosmologia, do seu jeito de estar nesse mundo, a criança é parte legitima do cotidiano de sua comunidade onde vive junto com as demais pessoas desse ambiente e contexto. O aprendizado é o resultado da elaboração conjunta de vivencias e práticas entre pessoas de várias idades e o ambiente onde está inserida. Procurarei exemplificar melhor descrevendo uma atividade de uma mãe Kaingang, na colheita de material para seu artesanato, que, ao chegar ao lugar onde tem taquaras pode ser taquara mansa ou taquaruçu5 - e cipós, começa a colher as taquaras. Cada um dos
filhos e filhas (crianças) tem uma função a desempenhar: os mais velhos, ou ainda posso dizer os maiores, tomam a iniciativa de ajudá-la a colher o material. Os filhos mais novos ou menores fazem outra parte do serviço: organizar os montes de taquara e cipó que serão carregados pelos maiores ou mais velhos. Essa tarefa está distribuída em diversos locais, pois o material não está exposto num único lugar no mato. Por isso a necessidade de fazer certa divisão entre as crianças para realizarem os trabalhos na coleta dos materiais. Divisão essa acontece de forma espontânea pelas crianças.
Esse ritual está de acordo com o saber tradicional, onde as crianças já tem acumulado conhecimentos através de suas vivências com os adultos, o que permite a separação de tarefas de forma espontânea. Na atividade desenvolvida pela mãe Kaingang, não foi necessário mandar (dar ordem) aos seus filhos e filhas a respeito das tarefas, pois a atitude das crianças já é conhecida pela vivência de seu cotidiano, dessa forma são atitudes internalizadas pelos filhos e filhas através da observação e práticas em suas rotinas junto a sua comunidade. Ao retornarem para casa, todos ajudam a mãe a levar as taquaras, cipós e outros materiais coletados, além de ajudarem a carregar os irmãos pequenos, que também ajudaram na atividade da colheita do material. É importante dizer que nesta atividade as crianças também usaram ferramentas como facões, foices, e também ajudaram na preparação da sua refeição no mato. Então, a mãe, deixou as crianças experimentarem e terem a possibilidade da execução de 5
Para os Kaingang a taquara é especial, pois é uma planta que possui as duas metades clânicas, tej e ror, mas também é um importante marcador de tempo. Pois, a que é chamada taquara mansa tem um ciclo de vida de 20 a 25 anos e o taquaruçu de 30 a 35 anos contando de seu florescimento até a seca dessas plantas. Baseado nisso, os Kaingang marcam seus tempos, como a idade das pessoas. Mas também a taquara faz parte de muitas atividades na vida dos Kaingang, entre elas fazem o paris, uma forma de armadilha para pegar peixes, o artesanato da cestaria e instrumentos musicais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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tarefas que pareciam ser de adulto e desse modo exercerem suas habilidades a partir da observação dos comportamentos das pessoas mais velhas. Portanto, desde cedo as crianças já participam da vida familiar e de toda a comunidade possibilitando que as crianças possam conceber uma disposição de tempo para o acompanhamento da vida dos adultos. Assim as crianças desempenham tarefas do seu cotidiano. Outro momento importante é quando os homens vão para a mata junto de seus
filhos para fazer uma pescaria com cipó, como nos relata um pai Kaingang: 6
Quando vamos pescar, bater cipó, convidamos as crianças, além dos velhos que conhecem como fazer esse tipo de pescaria. A gente caminha longe pelo mato uns cinco quilômetros até chegar no lugar onde vamos fazer nosso acampamento. Depois vamos cortar o cipó, carregamos até a beira do rio, aí, começamos a bater o cipó e jogar na água, logo os peixes começam a morrer. Mas ensinamos as crianças que devemos juntar os peixes só no dia seguinte. Então, ficamos contando história para eles e ensinando viver conforme nossas tradições, ensinamos como ouvir e entender o silêncio da noite.
Esse é momento muito importante para todos, pois se aprende como conviver com a mata, seus ensinamentos, mas, além disso, aprende-se que, para fazer esse tipo de pescaria, precisam ter muito conhecimento das tradições Kaingang, pois se não fizer de forma correta a pescaria, dentro desses preceitos pode dar tudo errado e os peixes não morrem. Isso se explica quando a pessoa responsável pelo ritual pede para que se faça a coleta dos peixes somente no dia seguinte.
Como diz Kofá (velho Kaingang), pode dar tudo errado a pescaria de cipó se, entre as pessoas que fazem parte do grupo, algum homem tiver a mulher grávida. E então, se esse homem entrar na água, o cipó não faz efeito e os peixes não morreriam. E ainda o Kofá falou em tom de brincadeira - “muitos homens descobrem que sua mulher está gravida nesse ritual de pesca”.
Diante disso, podemos entender que os Kaingang têm muitos rituais que aparentemente estão no esquecimento, mas quando conversamos com pessoas mais velhas, fica evidente que tais conhecimentos ainda estão sendo passados às crianças ou aos jovens nos espaços e tempos dos Kaingang. Quando perguntei ao Kofá se esse tipo de ensinamento podia ser transmitido na escola, a resposta foi que os ensinamentos
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Aqui, quando se refere a filhos, temos que entender que numa comunidade indígena ou para os Kaingang, filhos não são somente os de sangue, pois todos são parentes devido as marcas (tej e ror). Sendo assim, não existe crianças abandonadas ou sem família.
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Kaingang são repassados em momentos oportunos, e que a noite é especial. As noites são os momentos de se fazer as narrativas para as crianças, preferencialmente em volta de um fogo. Dizem os velhos que é no silêncio da noite que as crianças aprendem tudo o que é contado e fica guardado na memória e a noite é o tempo certo para aprender.
Diante disso, podemos pensar ou sentir o quanto é importante o convívio das crianças na sociedade Kaingang, convívio esse que se dá em diversos espaços que estão disponíveis por toda a comunidade ou em seu território. E um dos primeiros lugares de aprender é na casa, junto com a mãe e os avós. É onde se aprende a falar a língua kaingang e, a partir daí, em sequência, as histórias/narrativas e os demais ensinamentos, como relata uma kofá:
Eu aprendi com minha mãe e meu avô, durante a noite antes de dormir contava história de animais do mato, histórias dos índios. Nós deitávamos em volta do fogo para ouvir. Hoje são poucos os que fazem isso, não temos mais fogo no chão, nossas casas são feitas de tijolo e assoalho, temos fogão a gás, dormimos em cima de uma cama. De noite ficamos assistindo televisão. Então tá tudo diferente, quando as crianças acordam vão para a escola.
Esse relato traz muito das dificuldades de ensinar as crianças conforme a tradição Kaingang ou no mínimo as mudanças ocorridas nas comunidades propiciaram muitas perdas; isso revela que muitas vezes os programas impostos aos indígenas têm consequências que parecem irreversíveis. Entre as reclamações relatadas pela kofá acima, evidencio o programa “Minha Casa Minha Vida”7 do governo federal, que tem mudado as formas de relacionamento entre as pessoas das famílias, pois foi oferecido um jeito nãoindígena de morar.
Mesmo assim, percebe-se que, por mais que tal programa traga consequências para as tradições Kaingang, os ensinamentos têm acontecido, não da mesma forma como no passado, mas com esses espaços ressignificados. Podemos, como exemplo, citar a manutenção de muitas casas com o fogo de chão ao lado da casa de alvenaria. Outras moradias mantêm o fogo na parte de fora da casa, debaixo de árvores. Aí são os locais preferenciais muitas vezes de receberem as visitas para tomar o chimarrão e fazer comidas típicas da culinária Kaingang como bolo assado na cinza, mostrado nas imagens que seguem. 7
O Minha Casa Minha Vida é um programa de Governo Federal, que tem por um de seus objetivo construir casa própria para as famílias brasileiras. No entanto, esse programa tem atingido as comunidades indígenas sem sua devida discussão.
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Fazendo o bolo assado na cinza - Foto: Tamara Signori
Essas atividades, apesar das mudanças ocorridas, estão muito presentes no dia a dia dos Kaingang. Então, a ressignificação dos espaços também mostra que existe um fortalecimento no modo de ser Kaingang e que de uma forma ou outra, está sendo repassado às novas gerações. Isso também fica evidente nas atitudes das famílias Kaingang mais tradicionais ou mais velhas, onde as pessoas são recebidas desta forma, com muita fartura de comidas.
Como já apontei anteriormente, as crianças aprendem no cotidiano da comunidade. Entre as crianças Kaingang sempre foi e ainda é muito normal acordarem cedo, logo de manhã, para acompanhar as atividades dos mais velhos. Observando atentamente uma família que tinha por atividade o roçado ou a agricultura, via todas as manhãs, quando o homem (avô) saía para ir para seu trabalho, seu neto saindo junto. Uma criança, que devia ter em torno de quatro anos de idade, e que somente retornava perto do meio dia, junto com o avô. No início do ano letivo de 2014 o pai da criança resolveu colocá-la na escola e o que sucedeu foi muito interessante: a criança frequentou a escola por uma semana e desistiu. Seus pais insistiram, acreditando que seu filho deveria ir à escola. Porém, seus avós falaram: “deixa ele, ele precisa aprender a viver, ele não sabe o que vai fazer na escola, e aqui ele sabe muito bem o que está aprendendo”. Diante dessa situação, conversando com a criança, perguntei: o que você aprende com seu avô? A resposta foi muito simples, “estou aprendendo a ser um homem, aí o vô me passa bastante remédio, quando estamos sozinhos”. Diante disso, compreendemos que o kofá está preparando essa criança dentro de suas tradições e que para ele a escola não será capaz de realizar este trabalho de ensinamentos conforme seus conhecimentos.
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Além disso, antes de ir à escola, essa criança deveria saber muitas coisas que não vão ser repassadas durante sua vida escolar. Com isso percebemos também o medo que os velhos têm de perder o espaço de seus ensinamentos dentro da cultura Kaingang para escola.
Outra constatação é que as crianças estão presentes em todas as atividades da comunidade, mesmo parecendo que existe certa divisão entre crianças e adultos; todos são capazes de realizar as tarefas a elas apresentadas. As crianças são as que servem os mais velhos, ou são os ajudantes imediatos, não há muitas restrições. Outra coisa importante a destacar é que dificilmente se vê os pais gritarem com uma criança, uma vez que o diálogo está sempre presente e, se a criança não estiver disposta a realizar uma atividade, ela não é obrigada, pois a mãe ou o pai cumprem a tarefa. Os Kaingang fazem aquilo que é de sua vontade, poucas vezes fazem o que não é de seu interesse. Isso faz parte do seu modo de estar, principalmente as crianças. Essa atitude Kaingang serve para tudo, inclusive quando morre alguém, os parentes do morto ordenam: vá embora, vá em paz, pois não quer mais fazer parte desse mundo e então vá embora e não perturbe mais os que estão vivos8. Isso presenciei em 2001,
quando num velório as crianças (filhas e filhos) falavam para sua mãe que tinha falecido, “não nos incomode, você escolheu morrer”. Talvez pareça estranho, mas são atitudes que as crianças aprenderam durante outros momentos de seus aprendizados com fatos já acontecidos. Então, quando vivenciam a perda de alguém de sua família, reproduzem a atitude dos mais velhos que observaram em outros momentos.
Logo após esse ritual de morte (velório), normalmente as crianças passam por um banho de remédios para a purificação, para que não sofram ameaças dos espíritos. Muitas vezes as próprias crianças, ao irem para o rio se banhar, já colhem os remédios - plantas. Mas para isso, elas precisam acordar muito cedo9. Os velhos lhes ensinam que
devem acordar antes dos passarinhos para se banhar, isso significa que às quatro horas da manhã devem estar no rio.
Retornando à fala da criança que estava aprendendo a ser homem, é importante dizer que para isso é preciso fazer uma série de dietas alimentares, em que lhes é proibido 8
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A morte para os kaingang é um ato voluntário, depende de sua vontade de morrer ou não, durante um velório é normal o falecido (a) receber palavras de ordem do tipo: “vai embora, você fez a escolha de nos abandonar então, nos deixe viver em paz”. O morto é chorado pelos seus, que o acusam de tê-los abandonado e ido para a aldeia dos mortos. Reclamam que se. de fato, ele amasse seus filhos, pais, e amigos jamais iria embora. Apontam sua ingratidão lembrando os agrados que lhes fizeram, mas mesmo assim, ele os quis deixar. Segundo a cultura kaingang, confirmada pelos kofá, as pessoas devem acordar antes do(a) viúvo(a), pois se não fizer isso, pode ficar doente, sentir canseira, ficar com o corpo doído, ficar com sensação de preguiça e que tudo isso pode levar a morte. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de comer, como por exemplo, partes da galinha, porcos, boi e em especial as carnes de caça. Talvez possa parecer uma besteira/bobagem, mas os Kaingang acreditam muito nisso. Dizem os kofá que, se a gente respeitar as proibições ou os tabus alimentares, podemos ficar muito velhos como eles, não branquear os cabelos, ficar sempre jovens. Se as meninas cumprirem essas proibições, não vão criar rugas no rosto, ficam sempre lindas. Como dizia minha bisavó, não vai sentir canseira e vai estar sempre disposta e bonita.
Ainda vale lembrar que, para os Kaingang, as regras para a alimentação são importantes para fazer uso de sua medicina tradicional, para que se cumpra uma dieta rigorosa: não basta passar o remédio no cabelo para não branquear se não tomar banho no rio antes do amanhecer. Então, muitas vezes, o não indígena quer fazer uso desses remédios, mas não terão êxito, pois vão tomar seu banho em chuveiro de água quente e vão comer qualquer coisa, ou melhor, os alimentos proibidos. Como sabemos todo remédio tem contraindicação.
Além do que foi dito anteriormente, os Kaingang também têm uma série de brincadeiras. Entre elas estão as flautas, arco e flechas, assim como a colheita do material para artesanato e seus utensílios, têm uma relação muito intima com a natureza, pois o cuidado no corte do material para sua confecção está de acordo com o respeito aos ciclos da planta. Do mesmo modo que a coleta de materiais para a confecção de artesanato, a coleta de materiais para a confecção de determinados brinquedos também precisa respeitar o tempo das plantas. Assim, pode-se imaginar que os arranjos acabam por estabelecer uma repetição cíclica das brincadeiras, pois flautas, arco e flechas só poderão ser confeccionadas num período do ano ou numa determinada época de vida dessa planta, que tem um valor importante para os Kaingang. Então, as crianças repetem isso, o que para o olhar do outro parece ser sempre igual, a mesma coisa. Trago aqui uma brincadeira ou um brinquedo, que é a peteca: parece ser uma coisa muito simples, mas para os Kaingang representa uma atividade corporal de fortalecimento físico e de treinar suas habilidades, destrezas. É uma brincadeira que sempre foi muito praticada entre os adultos e as crianças e é um exemplo de que as atividades não são separadas entre as crianças e os adultos, pois estes também fazem a brincadeira. Dizem os mais velhos que a peteca pesava aproximadamente meio quilo e durante o fim de semana se reuniam para jogar a peteca e passavam horas batendo, tanto que as mãos chegavam a ficar inchadas.
Como podemos perceber, as brincadeiras têm todo um ritual para serem transmitidas e isso constitui parte importante no aprendizado das crianças. Quanto a essa relação íntima com a natureza, as crianças desde seu nascimento vivenciam rituais Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
As crianças Kaingang: educação escolar e os processos próprios de aprendizagem
que são passados por seus avós e os mais velhos da comunidade. Elas são preparadas para viver sua vida de forma autônoma, isso faz com que elas tenham muita liberdade de criação de seus brinquedos e de suas brincadeiras, e isso não acontece de forma aleatória, mas de forma planejada e às crianças basta experimentar e viver.
Gĩr – Fotos: Noeli Falcade
Podemos ainda perceber que a liberdade das crianças decorre das atividades que aconteceram com as pessoas mais velhas de sua família ou ainda das pessoas da comunidade onde vivem. Observando as fotos acima podemos imaginar que essas crianças já passaram por um período de uso de remédios e, portanto, esse momento é uma fase de experimentação. Essa experimentação é feita de maneira independente e autônoma, sem o auxílio dos kofá ou de pessoas mais velhas. Entre essas crianças o medo não existe e sim a confiança nos ensinamentos recebidos.
É importante ressaltar que as crianças realizam tais brincadeiras não como uma atividade infantil, mas sim como uma atividade que representa o dia a dia dos adultos e que são vivenciadas por todos. Diante disso, podemos dizer que as crianças Kaingang estão dispostas a realizar atividades prestativas na manutenção dos costumes que são repassados de geração a geração.
Como podemos ver, as crianças aprendem nos mais diversos espaços e tempos, além do espaço e tempo escolar. Como bem sabemos, a escola é muito recente entre os Kaingang. Talvez isso me permita contar sobre uma experiência que fiz em aula no Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, na Terra Indígena Inhacorá. Fiz uma aula expositiva sobre as tradições Kaingang, uma exposição de pelo menos três horas, que os alunos acompanharam atentamente. Logo após dei como atividade para um grupo que Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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escrevessem uma meia página em seus cadernos e outro grupo para fazer uma exposição oral sobre o assunto tratado. O grupo que tinha como tarefa escrever não conseguiu cumprir a atividade de escrita, enquanto que o outro grupo fez a exposição oral, que gravei e depois transcrevi. A transcrição superou quatro páginas. O objetivo era observar se as crianças aprendem mais ouvindo ou copiando do quadro negro, uma prática muito comum entre os professores nas escolas. Mas, além disso, e mais importante, pretendia entender a eficácia dos ensinamentos dos velhos. Como já mencionei anteriormente, os velhos passam seus ensinamentos através da oralidade e de preferência no silêncio da noite e na magia das matas.
Assim, posso dizer que a educação kaingang, a Pedagogia possui entre seus principais aspectos e muito importante, a socialização, ato de aprender com os outros em qualquer tempo e espaço, motivado pela reciprocidade, caraterística importante no convívio Kaingang. A pessoa está na relação com a outra, face a face, assim, as crianças não vivem somente no meio dos adultos, aprendem umas com as outras, com os grupos de sua idade e de outras, com os quais compartilham conhecimentos dentro e fora da comunidade onde vivem. E mais do que isso, sabem em detalhes os acontecimentos da comunidade, são muito discretas, mas possuem olhos atentos que acompanham tudo o que acontece e tudo sabem. As crianças aprendem vendo, ouvindo, experimentando e executando as tarefas. Quero destacar também que as crianças têm espontaneidade e mostram prazer de executar as atividades, fazendo isso em forma de brincadeira. Portanto, entre os Kaingang e tanto outros povos indígenas, o trabalho e lazer não se separam, andam juntos.
Discorrendo sobre o processo de socialização, cabe lembrar que a criança indígena aprende seguindo modelos que estão postos em seu meio ou ainda os considerados exemplares. Assim, a educação indígena está pautada na socialização, onde todo momento é tempo de aprender, respaldado nas atividades desenvolvidas pelas pessoas em seus diversos espaços de convivências. Mas ainda é importante dizer que em nenhum dos momentos ou movimentos os velhos estão excluídos. Talvez hoje os velhos tenham perdido parte de seus tempos de ensinamento para o tempo e espaço da escola.
As crianças e a escola Como sabemos, os povos indígenas possuem seus modos próprios de construção de conhecimentos e que vem se sustentando graças as estratégias ou a ações pedagógicas próprias de cada povo. Nos últimos anos, os Kaingang têm se organizado na busca por uma escola voltada
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para sua especificidade e uma escola diferenciada, como está previsto na legislação, numa tentativa de rever o processo de ocidentalização e as mudanças que a cultura tem sofrido. O que o povo Kaingang almeja é que a escola possa instrumentalizar as lutas do povo indígena, mais especificamente a suas lutas. Dessa forma, há uma mobilização em busca de políticas públicas para uma educação escolar que permita a transmissão dos conhecimentos tradicionais e sua sobrevivência como conhecimento de povo etnicamente, cultural e linguisticamente diferente, pois, o contato com as sociedades não-indígenas representou para os Kaingang a diminuição do uso de sua língua e de suas práticas tradicionais.
Apesar das mudanças que a escola pode demandar entre os Kaingang, hoje ela faz parte da configuração de todas as comunidades. Isso pode ter alterado o espaço e o tempo das crianças, pois como mencionei anteriormente, elas, além de fazerem parte dos demais espaços já descritos, também necessitam ir à escola, onde muitas vezes os seus conhecimentos são desconsiderados em troca de construções baseadas na escrita, ou seja, escrita versus oralidade. Isso é uma mudança muito significativa na vida das crianças. Essas crianças/alunos se dirigem todos os dias à escola, um prédio, um espaço do Estado entre os espaços kaingang. É um prédio de alvenaria, muito diferente dos demais espaços que estão acostumados a vivenciar. Lugar esse que possui uma cerca: o que isso significa? Ainda não sei.
Nelas professores indígenas trabalham com os anos iniciais e as disciplinas de Artesanato, Valores Culturais e Kaingang. Estes componentes curriculares são ministrados por professores Kaingang e ainda fazem a alfabetização na língua materna, até o terceiro ano. A partir daí inicia-se o ensino em português, antes oral e depois escrito. Existem ainda professores não-indígenas que trabalham com os anos finais, quando é usada de maneira mais intensa a língua portuguesa. As crianças, aparentemente, sentem-se muito à vontade na escola, especialmente no turno onde a maioria são professores indígenas. Com menor intensidade nos demais turnos, e acredito que isso ocorra devido a maioria dos professores serem não-indígenas, o que permite uma familiaridade e uma aproximação menor.
Mas, além disso, os professores não-indígenas vêm cada vez mais se dedicando a conhecer melhor as crianças, procurando compreender os modos de construção de conhecimentos das crianças Kaingang. Assim, procuram desenvolver atividades diferentes. Uma atividade importante que presenciei na escola foi a realização de trabalhos com projetos, onde os professores se organizaram em grupos de pesquisa por áreas de conhecimento, desenvolvendo várias atividades de pesquisa na comunidade indígena. Um Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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dos objetivos desse trabalho era conhecer melhor o lugar onde estão trabalhando. Esses grupos pesquisaram a história, a medicina/plantas, o meio ambiente e assim por diante. Isso aproximou muito a escola e a comunidade. Tais atividades também são resultados de conversas com os pais e as mães em reuniões. Essas reuniões são chamadas de “reunião de planejamento”, onde todos os professores, os pais e as mães se posicionam em relação ao conteúdo que vai ser trabalhado durante o ano letivo10. Após ter ouvido a comunidade, os professores e a
direção se reúnem para definir a melhor forma de atender a demanda proposta à escola. Feito isso, os professores e alunos visitam os moradores para ouvir suas histórias, seus cantos, suas explicações a respeito dos costumes Kaingang, suas crenças, enfim, é a busca de compreensão da cultura Kaingang.
Assim, tenho percebido que as crianças têm ficado muito à vontade na escola. Nas aulas é muito comum ouvir a voz do professor, pois as crianças ficam muito atentas e o silêncio só é quebrado quando é hora da merenda e consequentemente o intervalo: uns vão jogar bola, outros vão balançar e ainda outros sobem em árvores.
Para quem vê de fora, as brincadeiras parecem ser muito desorganizadas, mas as crianças criam suas próprias regras que já aprenderam durante sua convivência na comunidade. Isso é muito importante, pois como os professores indígenas moram na própria comunidade, me parece que existe na escola uma sequência dos conhecimentos produzidos nos espaços de convivências que estão disponíveis na comunidade, como por exemplo, nas suas próprias casas, na convivência com pessoas mais velhas e nas atividades de ir ao mato para buscar material para a confecção dos seus artesanatos e utensílios.
Acredito que, embora a escola funcione de acordo com os horários que estamos acostumados a ver em outras escolas, existe uma relação entre os espaços kaingang e a escola. Isso apesar da escola, em termos de funcionamento, se assemelhar muito a uma escola não-indígena.
Mesmo havendo essa organização semelhante à escola não indígena, podemos ver que não é empecilho para que os professores e os alunos desenvolvam seus conhecimentos construídos ao longo de suas vidas. Percebe-se que existe um esforço entre os professores a fim de produzir conhecimentos a partir da diversidade Kaingang, pois quando ouvem a comunidade existe uma tentativa de trazer suas preocupações para ser discutidas no espaço escolar. 10 Observação que realizei em uma escola na Terra Indígena de Guarita, município de Redentora - RS, no ano de 2012. Onde estavam reunidos professores, pais e mães para debater assuntos referente ao andamento da escola. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A escola está organizada a partir de um currículo comum às demais escolas nãoindígenas, com o acréscimo das disciplinas já mencionadas que são de responsabilidade de professores kaingang. Na escola temos as disciplinas de história, português, ciências, geografia, matemáticas, assim como qualquer outra escola. Penso que os professores têm buscado a melhor maneira de trabalhar com essas disciplinas, baseando-se muito na vivência da comunidade, assim, procurando criar um diálogo entre os conhecimentos tradicionais e os chamados científicos. Isso não é uma tarefa muito fácil, mas é possível. A escola muitas vezes tem trabalhado com projetos e isso facilita uma maior aproximação dos professores dos conhecimentos Kaingang.
Para, além disso, penso que a interdisciplinaridade e contextualização na articulação entre os diferentes campos do conhecimento, por meio do diálogo transversal entre as disciplinas, do estudo e pesquisa de temas da realidade das crianças e de sua comunidade, têm ou pode proporcionar adequações metodológicas, didáticas e pedagógicas às características dos diferentes sujeitos das aprendizagens, em especial, aos modos próprios de transmissão dos saberes tradicionais numa relação horizontal com os conhecimentos ocidentais. Diante de tudo isso, é preciso ter cuidado, pois a escola é um espaço de apropriação de transmissão de valores e símbolos que poderão fazer parte da vida das comunidades indígenas nos dias presentes. Então, a escola é um lugar de encontro entre diferentes, é espaço de relações entre os diferentes grupos sociais, que gera uma grande tensão no momento que são reconhecidas as diferenças. Temos que considerar que a escola é o lugar onde as diferenças emergem, mas igualmente onde a especificidade desaparece. É o momento em que se precisa ter o cuidado para que a escola não se torne apenas um instrumento de inclusão para a homogeneização.
Considerações finais Diante disso, evidenciar a educação/aprendizagens indígena é muito importante, trazendo as suas formas de ensinar as crianças e seus processos próprios de construção de conhecimentos. Porém, é importante saber que desde o início da colonização, a educação indígena passou por muitas transformações, fazendo frente à alfabetização, educação escolar, que também desempenhou um papel importante nas relações entre indígenas e colonizadores. Segundo, Mariana K.L. Ferreira (2001), o primeiro e mais longo momento da história da educação escolar para índios no Brasil é o período colonial, em que o objetivo das práticas educativas era negar a diversidade dos índios, ou aniquilar culturas Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e incorporar mão-de-obra indígena à sociedade nacional.
Isso são processos que perduram por muito tempo e que aos poucos vão se transformando. Mas não podemos esquecer que vivemos em um cenário marcado com suas contradições que é uma realidade entre nós. Assim sendo, estas realidades comprometem e dificultam os projetos desejados de autonomia dos povos indígenas. Porém, podemos perceber que, aos poucos, políticas públicas em relação aos indígenas, em especial na área da educação, vêm sendo gradativamente implementadas. Isso vem se dando graças ao crescente movimento indígena, atuando no sentido de garantir a educação escolar como um avanço em favor das lutas próprias, rumo à afirmação da identidade étnico-cultural de cada povo, na construção de seus projetos.
Falar dos processos próprios de construção de conhecimento dos Kaingang, em especial o comportamento das crianças no dia-a-dia, e falar de uma pedagogia própria dos Kaingang tem garantido a transmissão de suas sabedorias através de gerações, um caminho de formação baseado na visão de conjunto da cultura indígena, que garantiu e garante até hoje a permanência como indígena, mesmo considerando os inúmeros problemas, enfrentado como povo diferenciado.
E os locais de transmissão dos conhecimentos Kaingang estão aos poucos sendo reconhecidos pela escola e pelos professores, pois há um reconhecimento que a escola não é o único espaço de construção/transmissão de conhecimento e sim, mais um entre os Kaingang. Se há tempos atrás isso era atribuído somente à escola, com o passar do tempo os Kaingang vão se dando conta que são portadores de muitas sabedorias que estão em locais como a mata, o rio, a casa, o fogo, nos rituais de morte e tantos outros presentes nas tarefas diárias. Assim, aos poucos, vão definindo melhor a função da escola na Terra Indígena, entre elas a de reforçar suas identidades mantendo o uso da língua indígena.
Referências FERREIRA, Bruno. 2012. Políticas públicas para uma educação escolar indígena diferenciada. São Leopoldo: Oikos (Cadernos do COMIN, Nº 10). FERREIRA, Mariana Kawall Leal. 2001. "A educação escolar indígena: um diagnostico critico da situação no Brasil". In: SILVA. Aracy Lopes da; FERREIRA. Mariana Kawall Leal. Antropologia, história e educação: A questão indígena e a escola. São Paulo: Global. NUNES, Ângela. 2002. "No tempo e no espaço: brincadeiras das crianças A’uwẽ-Xavante". In: SILVA, Aracy L.; MACEDO, Ana Vera L. da S.; NUNES, Ângela (orgs). Crianças indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: FAPESP; Global; MARI, 2002. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ROSA, Rogério R. G. da. 2005. Os Kujà são diferentes: um estudo etnológico do complexo xamânico dos Kaingang da Terra Indígena Votouro. Tese de doutorado. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, 2005. SANTOS, Silvio C. 1975. Educação e Sociedades Tribais. Porto Alegre: Movimento.
Recebido em 01 de junho de 2017. Aceito em 02 de outubro de 2018.
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O quê e o como aprender: as crianças kalapalo e algumas problematizações em torno do conhecimento1 Veronica Monachini de Carvalho Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas veronicamonachini@gmail.com Lucas da Costa Maciel Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo lucas.da.costa.maciel@gmail.com
Resumo Este artigo visa reunir aspectos teórico-etnográficos que contribuam para as discussões acerca dos processos tradicionais indígenas de aprendizado, lançando o olhar sobre o protagonismo das crianças. Para discutir a formação da criança kalapalo do Território Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso, tratamos das relações entre as diferentes categorias de conhecimento, “tradicionais” e kagaiha (“de branco”), mobilizadas na aldeia e em seus entornos, e o processo mais amplo de fabricação do corpo e da Pessoa. Para isso, nos inserimos e privilegiamos as discussões e usos de diferentes categorias de conhecimento que são acionadas pelos professores da Escola Estadual Indígena Central Aiha, pais e crianças da aldeia kalapalo Aiha. Palavras-chave: transformação; criança; aprendizado; Alto Xingu
Abstract This article intends to gather theoretical and ethnographic aspects that shall contribute to discussions about traditional Indigenous learning processes, paying special attention on children’s protagonism. In order to discuss the formation of the Kalapalo children of the Xingu Indigenous Territory, in the state of Mato Grosso, we deal with the relation between 1
Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP pelo financiamento às pesquisas que atualmente desenvolvemos, sem o qual os trabalhos de campo e produção deste artigo se veriam impossibilitados. Agradecemos também às pareceristas deste artigo, Clarice Cohn e Marina Cardoso, pela generosidade dos seus comentários e recomendações.
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the different categories of knowledge, “traditional” and kagaiha (“not indian”), mobilized in the village and its surroundings, and the process of craftsmanship of the body and the Person. For that, we insert and privilege the discussions and uses of different categories of knowledge that are triggered by the teachers of the Aiha Central State School, parents and children of the kalapalo village Aiha. Keywords: transformation; children; learning; Upper Xingu
Introdução
Com o intuito de explorar o papel dos processos e conteúdos epistemológicos na formação da criança entre os Kalapalo2 do Território Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso, trataremos, neste artigo, das relações entre as diferentes categorias de conhecimento, “tradicionais” e kagaiha3 (“de branco”), mobilizadas na aldeia, e o processo mais amplo de fabricação do corpo e da pessoa. Isso porque o nascer não implica que a criança kalapalo esteja completamente formada; é preciso fabricá-la continuamente, inclusive na vida adulta, e o conhecimento assume um papel central nesse processo4. Neste contexto, os vínculos entre as esferas do conhecimento e do corpo aparecem como de ordem dialética: os tipos de conhecimentos acessados pelas crianças perpassam a necessidade de atender a diferentes cuidados corporais, ao mesmo tempo em que o próprio corpo deve ser tratado a fim de que o conhecimento possa ser apropriado. No limite, podemos dizer que corpo e conhecimento são elementos de uma mesma ordem que é desdobrada; o conhecimento faz o corpo e o primeiro não independe dele. Neste sentido, seguiremos uma importante discussão que remonta aos fundamentais trabalhos de Seeger (2015), Viveiros de Castro (1977), Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1979), Fausto (2001), Cesarino (2011), Cohn (2002) e Guerreiro (2016), entre outros. 2
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Os Kalapalo são um povo de língua karib que vive na região do Alto Xingu (Mato Grosso/Brasil), na margem direita do rio Culuene. O Alto Xingu é um complexo sociocultural multiétnico e multilíngue localizado na porção sul do Parque Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso. Fazem parte dele dez povos: os Mehinaku, Wauja e Yawalapíti (falantes de línguas arawak); os Kalapalo, Nahukwa, Kuikuro e Matipu (falantes de karib); Kamayurá e Aweti (tupi); e os Trumai (língua isolada). Apesar de falarem línguas distintas, os diferentes grupos que habitam o Alto Xingu passaram a apresentar uma notável similaridade cultural ao longo do tempo, conforme registrado desde meados do século XIX (Steinen 1940). Entre si, estes povos se reconhecem como kuge (em karib Kalapalo, “gente xinguana”), em oposição aos nkigogo (“índios bravos”) e aos kagaiha (os “brancos”). Neste texto, nos valeremos do uso de aspas para indicar, nos casos correspondentes, os termos e categorias usados pelos próprios Kalapalo naquilo que é referido como português de índio ou para indicar traduções aproximadas ou metafóricas de termos em língua karib. Esta discussão se associa à centralidade da produção corporal nos regimes ameríndios (Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro 1987) e ao fato de que humanidade não é tida, nestes contextos, como uma característica inata ao corpo, resultando mais bem de uma contínua produção num sistema de corpos relacionados (Taylor & Viveiros de Castro 2006; Vilaça, 2005). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Para dar conta deste objetivo, discutiremos uma série de dados etnográficos reunidos a partir de um conjunto de reuniões com professores, mestres e pais da comunidade escolar da aldeia kalapalo Aiha, bem como a partir da convivência com as crianças que habitam a localidade. Assim, assumimos como princípio a necessidade de dissertar sobre a relação entre os elementos designados pelas categorias “conhecimento tradicional” e “conhecimento de branco”, por um lado, e a maneira com que as crianças da aldeia interagem com eles e lhes acessam5.
Do ponto de vista dos adultos
Numa visita à aldeia, realizada em fevereiro de 2015, pudemos participar de uma reunião de professores organizada para discutir os projetos escolares para a aldeia de Aiha6. Ainda que a escola se encontre localizada na circunscrição espacial da aldeia kalapalo, na época em que a reunião foi levada a cabo, ela ainda era institucionalmente anexa à Escola Estadual Indígena Central Karib, sediada em uma aldeia kuikuro7, que se encontra na outra margem do rio Culuene, e, neste sentido, dependia administrativamente dela. Tal situação resultava numa infinidade de problemas logísticos e burocráticos para a escola de Aiha e para os seus professores, uma vez que eles tinham que se deslocar até a aldeia Kuikuro para “negociar” os recursos e as propostas para a escola. Neste contexto, a reunião que se menciona tinha como objetivo servir como fórum para que os professores pudessem contar suas expectativas e demandas acerca de uma possível escola central em Aiha; demanda que se efetivou em agosto de 2015, quando Aiha passou a gerir a sua própria instituição, chamada de Escola Estadual Indígena Central Aiha, e outras duas escolas anexas a ela (Matipu e Nahukua). Na reunião, além das reivindicações práticas e burocráticas, surgiram questões com relação às diferentes formas kalapalo de aprender e sobre aquilo que se esperava da escola da aldeia em relação às expectativas dos pais, dos professores, e das próprias crianças. Naquele contexto, os professores marcavam as diferenças entre os Kuikuro e
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Isso não significa que ignoremos o fato de que o aprendizado e os cuidados corporais que nos permitem falar de fabricação da Pessoa dependam de uma socialidade mais ampla, que inclui os adultos, também eles numa constante fabricação do devir Kalapalo. Corresponde ao trabalho de campo realizado por Veronica Monachini e que remete à monografia apresentada para a conclusāo do curso em Ciências Sociais (Monachini 2015). A escola aparece neste artigo como um disparador para as questões que serão levantadas a seguir e que nos levam para outro ponto de análise, não configurando, portanto, o alvo central da reflexão. Os Kalapalo e Kuikuro, apesar de serem diferentes etnias, compartilham diversos traços culturais, inclusive linguísticos. No entanto, apesar de podermos aproximar esses diferentes grupos, há certas especificidades que são próprias a cada um deles; e como pôde ser etnograficamente notado na reunião de professores em questão, há momentos em que eles marcam enfaticamente essas diferenças, enquanto que, em outros, constroem aproximações.
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os Kalapalo, indicando que os primeiros estariam se tornando “mais brancos” do que eles. Isto ficou evidente na medida em que as suas expectativas se revelavam como uma negação daquilo que entendiam ser e fazer a escola Kuikuro. Ao mesmo tempo, o tom geral das falas dos professores era de um certo pessimismo, que evocava a ideia de que estariam ocorrendo transformações na forma de aprender e que, neste contexto, a escola estava servindo como um espaço de disseminação dos conhecimentos tidos como do “mundo dos brancos” em detrimento dos “conhecimentos tradicionais” alto-xinguanos.
Num segundo momento, os professores passaram a tratar daquilo que eles identificaram como um recente desinteresse em aprender as “especialidades” xinguanas, que exigem maestria e uma forma específica de aprendizagem – enquanto processo. “As crianças não tem mais vontade de aprender os conhecimentos tradicionais”, diziam. Tratando daquilo que consideravam importante de ser ensinado para as crianças kalapalo, os professores deram centralidade à categoria de “conhecimentos tradicionais”, reafirmando a importância de incluir os cantos, as confecções de objetos locais e o ensino da luta ikindene, entre outras coisas, nos ensinamentos escolares. Em resumo, a discussão sobre a escola de Aiha girava em torno de duas questões fundamentais: ao mesmo tempo em que se afirmava a importância de se respeitar os processos de aprendizagem identificados como tradicionais ao devir kalapalo, também era questionado o fato de que nem tudo pode ser ensinado na escola, uma vez que o aprendizado deve também respeitar as relações de maestria e as relações com os respectivos “donos” (oto) de conhecimento. Adicionalmente, argumentava-se que não caberia exclusivamente à escola escolher aquilo que a criança deve ou não aprender, uma vez que ela goza, no interior do seu grupo, de uma autonomia que lhe dá agência sobre a capacidade de determinar o que quer aprender e em que quer se especializar (ou “se tornar dona”)8, dominando e fazendo uso de alguma
forma de conhecimento tradicional.
No entanto, e apesar do reconhecimento da autonomia da criança, na mesma
reunião os professores manifestavam a preocupação de que “hoje as crianças não têm interesse em aprender”, ou que “elas não vão atrás dos mestres”. Esse ponto, ao nosso ver, torna evidente dois elementos constitutivos da forma de conhecer dos Kalapalo: o quê e o como se conhece, que estão estreitamente vinculados. Assim, o pessimismo do professorado decorre de uma apreciação de que estaria em risco a continuidade do aprendizado dos conhecimentos tradicionais através dos meios tradicionais. 8
Não há uma palavra em kalapalo correspondente a “especialização”, mas há palavras específicas para cada especialidade (seja ela a aprendizagem de cantos, rezas, confecção de objetos, narrativas ou tornar-se um bom lutador). Estas palavras sempre possuem o sufixo -oto, que pode ser entendido como “dono” ou ”dona”, indicando que quando alguém se especializa em algo está se tornando “dona” desta coisa. E ser “dono”, como veremos, envolve um constante cuidar de seu dom. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Maestria e os conhecimentos tradicionais No Alto Xingu, porque os conhecimentos são caros, eles são possuídos por “donos” que os cuidam (ou vice-versa). Em princípio, não só os conhecimentos, mas tudo o que existe, tem ou poderia ter um “dono”. Ser “dono” de algo transcende, no entanto, uma noção mais imediata de propriedade. Nos termos de Fausto (2008), o “dono” é uma das contrapartes da socialidade ameríndia entre diferentes entidades que compõem o mundo. Isso implica uma “ [...] posição que envolve controle e/ou proteção, engendramento e/ou posse, e que se aplica a relações entre pessoas (humanas ou não-humanas) e entre pessoas e coisas (tangíveis ou intangíveis)” (Fausto 2008: 330). É neste sentido que o autor fala do contexto amazônico como um mundo de “donos”: lugares em que a pessoa deve ser magnificada, no sentido de continuamente construída e alterada, para atuar eficazmente sobre o mundo.
No entanto, a posse de um “dono” não é apenas mobilizada para indicar que ele detém determinados bens, mas também para dar conta de um contexto de prerrogativas que inclui a habilidade de produzir bens tangíveis e intangíveis, de acumular prestígio e de exercer certa classe de poder político9. Assim, “o dono está na origem daquilo que possui,
pois o fabricou, seja este artefato pessoa ou coisa [ou conhecimento]: na Amazônia, a noção de fabricação não se aplica apenas aos objetos, mas também aos corpos de parentes e de animais familiares” (Fausto 2008: 332). Guerreiro (2016) demonstra que, entre os Kalapalo, dono (oto) pode se tratar tanto de relações entre pessoas e objetos tangíveis, quanto entre aquelas e elementos intangíveis. Um de seus sentidos pode ser o de posse por aquisição ou fabricação10. Também pode ter o sentido de “cuidador” ou “responsável”, muitas vezes usado para coisas de propriedade coletiva (“da comunidade”), que sempre devem ter um cuidador/responsável individual. Oto também pode ter o sentido de “conhecedor”, de quem é dono/ quem detém determinado conhecimento; ou de “causador”, muitas vezes também traduzido como “patrocinador”, no caso de pessoas que organizam uma festa, por exemplo. A tradução de oto muitas vezes está associada a dono-mestre de algo. Entre os Marubo, como argumenta Cesarino (2010), o “dono” aparece como um “fazedor”; aquele que dá origem ou forma a um suporte corporal/visível para a operação social. O “fazedor” permite, nesse sentido, que a coisa feita ou modulada se encontre em
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Referimo-nos, aqui, a uma noção estendida de política, com características próprias segundo as socialidades ameríndias. Apresentamos como referências imediatas o trabalho de Clastres (2013), o de Sztutman (2012) e, para o caso Kalapalo, o de Guerreiro (2016). 10 Como os pais, que são donos de seus filhos por os fazerem “umukugu tüipügü uheke” (“eu fiz meu filho”), na fala de uma mãe. Uma das traduções de oto, portanto é “pai/mãe”, pois “um dono é como um pai, assim como um pai é um tipo de dono” (Guerreiro 2016:232). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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posição de se relacionar socialmente. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma relação de um sujeito com um recurso, e deles com um coletivo ao qual o sujeito pertence; “dono” é um mediador, de tal forma que constitui necessariamente uma categoria relacional (Fausto 2008). Como tal, emerge de uma compreensão da posse que é posta na esfera da relação de domínio entre sujeitos.
Assim, nos somamos a Cesarino (2010) e a Fausto (2008) quando dizemos que falar de “donos” é mobilizar uma teoria da propriedade que se desdobra de uma teoria da pessoa. Neste sentido, a relação fundante nas teorias amazônicas da propriedade não se coloca sobre uma identidade que se encerra em si mesma, mas antes como uma relação entre propriedade e proprietário que estão em vínculo de afetação. Segue-se, então, que é intrínseco ao “dono” ameríndio o alterar-se frente ao bem tangível ou intangível sobre o qual detém prerrogativas. A discussão dos “donos” é, neste sentido, interna à noção de “pessoa partível e compósita”11, na medida em que recusa, entre outras coisas, a compreensão de um sujeito autocontido para substituí-lo pela imagem de um sujeito com centro vazio, que se forma de modo centrífugo e que se altera em relação àquilo que tenderíamos a entender como sua propriedade (objetos e conhecimentos, entre outras coisas).
No limite, o quê e o como conhecer se indistinguem do corpo de quem se é ou de quem se torna. Corpo e conhecimento se co-conformam. Assim, e alinhados com Cesarino (2010), pensamos que a pessoa é um ponto de confluências para as alteridades antes apenas existentes como virtualmente suspensas. O conhecimento refere-se, assim, aos deslocamentos que conformam as pessoas através das relações sociais, afetando e transformando corpos. É a partir deste ponto que o conhecimento considerado como “tradicional” só poderia ser acessado quando se “vai atrás” de um mestre, tornando-se seu aprendiz, pagando-o e dedicando-se a aprender. A gramática do aprendizado é, pois, a do dom e do contra-dom, bem como a da socialidade.
O conhecimento kalapalo: como, quando e o quê aprender
Se entre os Kalapalo o conhecimento é algo caro, algo que deve ser pago em forma de contra-dom, as especialidades fundamentam-se em maestrias: mestres da versão de um conhecimento que são seus “donos”. Além de pagar (para também se tornar “dono”),
11 Esse conceito é transversal à discussão entre a etnologia melanésia e amazônica. Ela remonta a Strathern (2006) e à ideia de divíduo, a Wagner (1991) e à noção de pessoa fractal, assim como a Viveiros de Castro (1986). Mais recentemente, ela se torna central para a produção etnográfica no campo da etnologia ameríndia sobre as teorias nativas da pessoa, do conhecimento e da propriedade, entre outras: Fausto (2011), Cesarino (2011), Pitarch (1996) e Lea (2012) são algumas.
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deve-se ouvir atentamente aos ensinamentos do mestre para aprender e, depois, deve-se cuidar de sua especialidade. Com este panorama, uma série de questões emergem: como as crianças aprendem esses conhecimentos determinados? Todos os conhecimentos são caros - e devem ser pagos - ou há coisas que todos devem/ podem aprender na escola (como tentam reivindicar os professores)? Como se dão os processos tradicionais de aprendizagem do povo Kalapalo? Em que momento “pode-se” aprender determinadas coisas?
Há coisas que as crianças começam a aprender antes de serem “oficialmente” ensinadas. Estamos nos referindo àquilo que elas aprendem brincando, experimentando e imitando. Estes aprendizados costumam ser de conhecimentos práticos da vida cotidiana, como fazer o beiju ou aprender a pescar12, ou mesmo alguns conhecimentos especializados
que exigem treino. Já os conhecimentos que dizem respeito ao ethos13 e às regras sociais são aprendidos por meio da observação, audição e interação com os adultos.
Cohn (2002) demonstra que, para os Xikrin, existem dois diferentes sentidos para o aprendizado: o de ver e mostrar; e o de ouvir e contar. A autora explica que a primeira forma diz respeito à cultura material e ao aprendizado pessoal prático (que leva em conta a experiência de cada um), enquanto que a segunda refere-se a ouvir as versões dos outros, em que se apreende uma “noção universalizada do conhecimento”. Esta última coincide, em parte, com a aprendizagem e experiência do ethos social Xikrin. As capacidades de ouvir e de ver estão intrinsecamente vinculadas a de aprender.
Cohn explica que, para os Xikrin, a criança, para desenvolver a capacidade de aprender, precisa desenvolver os órgãos dos olhos e dos ouvidos, que ainda são fracos/ moles. Isto não significa que as crianças não sejam capazes de aprender, mas que não se esperava que memorizem ou que compreendam completamente o sentido de alguns ensinamentos. O mesmo termo utilizado para ouvir é o termo que os Xikrin usam para
12 Sendo a primeira, atividade das mulheres, e a segunda, atividade dos homens. Entre os Kalapalo, ser mulher é fazer e saber coisas de mulher, ou vice-versa. No americanismo, uma série de etnografias mostram que, nos regimes ameríndios as noções de gênero não decorrem de um sexo anatômico (como numa versão ocidental biologizante) ou da construção social ou cultural (como na versão construtivista que anima parte da crítica feminista), mas se desdobram do domínio que determinada pessoa tem sobre certos conhecimentos, as relações de afeto e de desejo, bem como os processos mais amplos de fabricação corporal, configurando uma modulação de agência (Lea 2012; Maciel 2018; Madi Dias 2015; McCallum 2001). 13 Entre os Kalapalo é central a noção de que a pessoa tenha um ethos pacifista que é expresso através da noção de ihütisu, que pode ser explicada pela ausência de agressividade e pela prática da generosidade e reciprocidade. Ihütisu também pode ser traduzido como “vergonha”/“respeito” em relação à determinados comportamentos esperados nas relações sociais e de parentesco, como a evitação de contato visual com os afins e a constante demonstração de generosidade envolvida nessa relação, que envolve dar-lhes presentes e alimentá-los constantemente (pescando, no caso dos homens, ou produzindo a comida, no caso das mulheres). (Basso 1989). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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entender (mari), o que enfatiza a importância dos ouvidos para diversos aprendizados, mesmo que não sejam aprendidos através da audição de fato. A autora apresenta a complexidade conceitual em torno dos processos de aprendizagem Xikrin, argumentando, por fim, que não existe uma distinção entre o que se pode aprender vendo ou ouvindo, uma vez que aquilo se aprende, tanto ao ver, quanto ao ouvir, envolve uma experiência holística do corpo e dos seus sentidos. A transmissão e o aprendizado de conhecimentos entre os Kalapalo também envolvem ênfases distintas na audição e na visão, assim como entre os Xikrin (Cohn 2000; 2002). De fato, há entre os Kalapalo diferentes palavras para expressar as várias formas de aprendizagem e suas vinculações com as potencialidades corporais14.
Hangaküjü pode ser traduzido como educar. Hanga- significa “orelha” e -jü é um sufixo de aspecto pontual. Este educar diz respeito à educação moral da pessoa Kalapalo. Em uma conversa com os professores, hangaküjü aparecia diversas vezes atrelado ao ensino do respeito, da “vergonha” e dos valores. É uma forma de ensinar que recorrentemente se associa à escola, pois, como eles explicam, a escola é o lugar em que se deveriam reafirmar diversos valores morais já “falados” em casa. Esta é uma forma de ensinar na qual quem fala, ensina, enquanto quem escuta, aprende; por isso tanto o termo “palavra” quanto o termo “orelha” são mobilizados na constituição deste vocábulo. Uma pessoa com bom ouvido é uma pessoa integrada socialmente (Seeger 1980), uma vez que é com o ouvido que se aprende a fazer (Cohn 2002). Este modo de educar forma um par estrutural com inguhelü, que veremos a seguir.
De acordo com o dicionário Kuikuro elaborado por Franchetto & Santos (no prelo), inguhelü corresponderia a “ensinar-se”, “lembrar-se”. Na morfologia da palavra, ingucorresponde a “olho”; -he-, “abrir”; -lü é um sufixo de aspecto pontual. Esta palavra foi exemplificada pelos professores como “quando você abre o olho e vê”. He- é um abrir que significa “acordar”, “tornar claro”, “clarear”, como quando as nuvens saem do céu, e ele se abre (he). Esta forma de aprender é muito usada para os processos tradicionais de aprendizagem, nos quais o aprendiz tem que “ir atrás” do mestre e insistir para que este o ensine, até que em determinado momento ele entende o que estava sendo ensinado: “se dá conta”, “aprende”.
Ao ensinar, o mestre se vale do hangaküjü ou do akihalü (“contar”), que diz respeito ao ensino de músicas, rezas e histórias, entre outras coisas. Trata-se da transmissão de conhecimentos formalizados que compõem a tradição oral. Aki significa palavra, de tal
14 As interpretações e o olhar atento às glosas em karib kalapalo não seriam possíveis sem a orientação do Prof. Dr. Antonio Guerreiro (PPGAS/UNICAMP), que também apresenta as diferentes formas de aprendizagem kalapalo e sua relação com a corporeidade em sua obra (Guerreiro 2105: 166). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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forma que akihalü se refere ao “mostrar com palavras”. Essas duas últimas formas de ensinar são diferentes de egitsanenügü, que se refere à aprendizagem prática pessoal; é dizer: quando a pessoa aprende sozinha a partir da observação e repetição, para tentar fazer o que observou. Quando consegue fazer, prossegue aprimorando-se, pois quando se tem um conhecimento é preciso cuidar dele/aprimorá-lo. Segundo o dicionário Kuikuro, egitsanenügü corresponde a “aprender” e “treinar” (Franchetto & Santos, no prelo).
Através desse vocabulário, percebe-se que a educação moral, por meio da fala repetida e sistemática, é fundamental para a formação de uma pessoa com ihütisu (“vergonha”/“respeito”). Na escola, esse conhecimento moral se faz presente por meio da fala dos professores, que, como eles dizem, conversam e “orientam” as crianças. Das diferentes variações dos conhecimentos tradicionais, este é aquele que, por excelência, se presentifica e perpassa o espaço escolar, porque, ademais de ensinar à pessoa valores e práticas da vida coletiva, também se é mobilizado para ensinar os conhecimentos provenientes do “mundo dos kagaiha” (“brancos”), como o português e a matemática.
Com a recente centralização da escola Kalapalo, foram contratados “professores especialistas” para dar aulas de educação física (para os meninos, por uma escolha da própria “comunidade Kalapalo”, apesar de as meninas também lutarem em rituais específicos) e de artesanato (para as meninas, também por escolha da comunidade, que enfocou em produções com o fio de buriti e a miçanga tcheca15, especialidade feminina,
como a produção de esteiras e cestos, apesar de os meninos fazerem artesanatos, como os colares de caramujo). Nas aulas de educação física são dados treinos da luta ikindene, e o professor, um lutador importante, dá instruções de diferentes técnicas. Já nas aulas de artesanato, uma professora ensina as meninas a confeccionarem esteiras e cestos de buriti e colares e pulseiras de miçangas. Acreditamos que o ensino e o aprendizado destes conhecimentos se fizeram presentes na escola justamente por serem especialidades mais coletivas, que não precisam ser pagas. Como tais, elas são aprendidas sempre em espaços de socialidade da aldeia, como nos treinos de luta em seu centro, e nas atividades da casa com as mulheres co-residentes que trabalham as miçangas. O caso dos cantos e das rezas, que precisam ser akihalü, “contados”, e envolve uma forma de ensino e de aprendizagem kalapalo mais específica, tem outros contornos. Recentemente, em reuniões com a comunidade escolar, fora evidenciado a necessidade de incentivar o interesse nos cantos também dentro da escola, pois alguns cantores afirmaram
15 As miçangas utilizadas pelos alto xinguanos para a confecção de colares, pulseiras e até cintos são provenientes da República Tcheca, que, por ser especialista na produção de objetos de vidro, produz contas de vidro “perfeitas e brilhantes”, diferentemente das concorrentes miçangas chinesas, como discute Aguillar Leite (2018) entre o povo Matipu (também falantes de karib xinguano). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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que “os cantos estão se perdendo”, e que “os jovens não tem mais interesse em aprender os cantos”. Desta forma, fora decidido que a escola contrataria mestres cantores – que podem ensinar “um pouco” dos cantos em sala de aula, pois, ademais de serem pagos para tanto, instigariam o interesse dos alunos em ir atrás dos mestres para aprender, enfim, com maestria. Segundo os cantores, não seria um problema ter este tipo de ensino, normalmente realizado de forma particular e atenta por um mestre e um aprendiz, que deve “ir atrás do mestre” e pagá-lo a fim de “valorizar o conhecimento e se tornar dono de fato”, na escola. De toda forma este processo ainda não se iniciou, e será interessante acompanhar este tipo de flexibilização dos mestres no ensino de seus conhecimentos, com o intuito de valorizá-los também em sala de aula.
As indagações deste artigo tiveram como ponto de partida os discursos de adultos acerca de suas percepções em relação à aprendizagem das crianças. Como a conversa se iniciou numa reunião escolar, os professores discutiam a educação existente em sala de aula, e a educação kalapalo em seu sentido mais formal: com a aprendizagem sistemática de algum conhecimento kalapalo. Acontece que a educação kalapalo se dá em diversos aspectos da vida social, grande parte deles ultrapassando a educação formal, como já discutido por Tassinari (2009) quando aponta para os casos ameríndios como sociedades em que a escola não é central para a aquisição do conhecimento, constatação que se estende para o caso kalapalo. Fora dos espaços da sala de aula, portanto, os meninos constantemente lutam no centro da aldeia e, algumas vezes, as meninas também. Quando fazem isto estão egitsanenügü (“treinando/aprendendo”), na forma de uma brincadeira – que é uma maneira de se relacionar e aprender não menos importante do que outras. A luta ikindene16
(ou huka huka, como é conhecida pelos não-indígenas), está presente em quase todas as festas interaldeias, consolidando relações interpessoais. Nessas festas, os adultos lutam antes dos meninos, que, posteriormente, se juntam no centro da aldeia para lutar com as crianças dos outros povos. A luta dos adultos é a “que vale”, mas a luta das crianças é igualmente importante, uma vez que através dela conhecem seus afins potenciais (também porque os casamentos podem ser exogâmicos e interétnicos).
Antes das festas, os meninos passam dias treinando no centro da aldeia e pintando o corpo a fim de prepará-lo para lutar. Alguns meninos relataram que sonham bastante com a luta antes da festa, e que, com isso, aprendem novos golpes e se concentram melhor. A preparação corporal também envolve a escarificação e a aplicação de remédios específicos, mas ela se dá mais intensamente na reclusão pubertária, e entre rapazes que escolherem
16 Sobre estudo detalhado desta luta ver Costa (2013).
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se tornar de fato bons lutadores, e não necessariamente entre os künga küsegü – “rapaz pequeno” – que ainda não entraram na reclusão. Estes, ao que parece, lutam mais para brincar e para estabelecer relações com seus primos cruzados, normalmente em rituais interaldeias, que possuem um momento de luta coletiva que sucede a luta dos campeões. É muito comum ver os pais chamando os primos cruzados dos meninos para se conhecerem desde pequenos neste espaço ritualístico da luta. De forma geral, a aprendizagem entre os Kalapalo se dá de diferentes formas e intensidades ao longo da vida. Quando pequenos, aprendem principalmente pela forma hangaküjü, ouvindo e observando, e pela forma egitsanenügü, que envolve experimentar, testar os limites, treinar e aprender brincando. É frequentemente relatado que, quando pequenos, os meninos começam a brincar de flecha, e “para aprender alguma coisa”, aprendem a caçar pássaro e lagarto brincando com os amigos. Isto seria um treino baseado na observação do cotidiano dos adultos da aldeia.
Quando crescem um pouco, fenômeno que normalmente é marcado pelo nascimento de irmãos mais novos, as crianças adquirem algumas novas responsabilidades. As meninas passam a ajudar a mãe com o trabalho doméstico, aprendendo a fazer beiju, mingau e a cuidar de seus irmãos pequenos, enquanto os meninos acompanham o pai na pescaria e na caça. No entanto, é central o fato de que mesmo antes de assumir essas responsabilidades as crianças já vinham observando os pais e seus familiares, e muitas vezes já brincavam, experimentando fazer essas coisas; a mudança se dá, no entanto, na medida em que elas assumem diferentes papéis entre seus pares, como quando uma irmã mais velha, muitas vezes com cerca de cinco ou seis anos de idade, se torna a responsável por cuidar de ser irmão mais novo. Assim, como argumenta Gow (1997), é estando entre os outros que as características que produzem as semelhanças e as diferenças se fazem possíveis, fazendo emergir a consciência do “eu”, seja qual for o desenho que ela ganhe, de tal modo que os papéis assumidos e suas respectivas atribuições são da ordem do afeto, e a pessoa se faz ao mesmo tempo em que faz os outros, seus parentes.
Posteriormente, a reclusão pubertária marca certa cisão entre a vida da criança e a vida do adulto. Ela inicia com a menarca da menina e com os primeiros indícios da puberdade do menino. Durante esse período, fica-se “preso” num canto da casa coberto por uma lona, um grande tecido ou um tapume, que separa o espaço do recluso. Os cuidados com o recluso são de responsabilidade de seus pais. Enquanto a mãe cuida da alimentação, o pai cuida da fabricação corporal, envolvendo a escarificação e a aplicação de remédios. Ao passo que os cuidados corporais se intensificam, deve-se seguir restrições Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de dieta e sexuais17. Neste momento, a pessoa pode escolher se quer se especializar em algum conhecimento que exige maestria e, para isso, contratar o mestre que irá ensiná-la. Como dizem os Kalapalo, é preciso que a pessoa demonstre o interesse inicial em procurar o mestre, que o pague, e que tenha persistência para aprender da forma que o mestre irá ensinar. Estes tipos de aprendizados não são fáceis; o mestre deve contar à pessoa (akihalü) e a pessoa deve ouvir, observar e seguir o mestre atentamente (hangaküjü).
Apesar do recluso poder decidir se vai se especializar em algum conhecimento específico, os Kalapalo dizem que durante a reclusão pubertária há certas coisas que todos devem aprender de forma mandatória, “devem ser orientados por seus pais” (hangaküjü), incorporando o ethos e aprendendo “a ser Kalapalo” (ou aquilo que se espera de um/uma). A reclusão é o momento em que o corpo fica suscetível à metamorfose e aos perigos dos itseke18 (“espírito”), por ser o momento em que se troca e se fabrica intensamente o corpo
(Viveiros de Castro 1977). Essa fabricação envolve uma série de intervenções corporais e um conjunto de cuidados em torno das substâncias que relacionam o corpo recluso com os corpos dos seus parentes, por meio da consubstancialidade, e com o mundo. É neste sentido que a intensificação do cuidado com o corpo do recluso implica numa mesma intensificação dos cuidados sobre as práticas corporais da sua parentela. O corpo deve ser escarificado e receber a aplicação dos remédios (raízes ou ervas) específicos para cada intenção; há uma raiz utilizada para evitar a metamorfose, outra para o corpo não inflamar, outra para intensificar a aprendizagem da luta, da reza, dos cantos, e assim por diante.
Durante o caso específico da reclusão feminina, as meninas tendem a se dedicar ao aprendizado das técnicas de fabricação de esteiras, cestos, redes e pulseiras. O final da reclusão da masope (“menina na reclusão pubertária”) é marcado pelo crescimento da franja até a altura do queixo e mudanças corpóreas significativas ,pois tiveram os seus corpos literalmente “moldados”, e sua reclusão costuma ser menos duradoura que a dos meninos, que apesar de ficarem mais tempo reclusos, ficam menos “presos” que as meninas, podendo participar de lutas e sair para ir à escola (Lima 2013). No sentido antes argumentado, podemos dizer que a aprendizagem kalapalo passa pelo corpo. Isso é evidente atentando para a relação de cuidados com o olho e com os ouvidos das crianças, passando pelas prescrições e restrições alimentares e sexuais
17 Levar os intercursos sexuais a cabo prejudica o crescimento da criança, pois a perda de fluídos sexuais (sêmen e sangue) influem na diminuição da substância corporal dos filhos (Gregor 1985; Viveiros de Castro 1977). 18 Categoria comumente traduzida por “espíritos”, se refere aos seres míticos, ou seres ancestrais (cf. Guerreiro 2016). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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(exercidas tanto pelas crianças como por seus parentes próximos, respeitando a lógica da comensalidade), até os cuidados diretos e específicos de escarificação, da “moldagem corporal” e da aprendizagem dos conhecimentos especializados. Os cuidados corporais são essenciais para que as crianças sejam capazes de aprender, compreender e apreender de fato através da experiência (Cohn 2002).
Assim, o corpo aparece como lugar de transformação, uma vez que a aprendizagem dos diferentes tipos de conhecimento passa por ele. A problematizaçāo em torno do conhecimento está em que o corpo transformado pelos “conhecimentos do mundo dos brancos” possa paulatinamente distanciar a pessoa do devir Kalapalo. Um exemplo usado frequentemente durante a citada reunião dos professores foi que “os jovens cortam o cabelo igual ao do Neymar, mas eles têm que ter o cabelo bem cortado, redondo como um casco de tatu”. Outro exemplo é o das pinturas que envolvem grafismos corporais nãoindígenas19 e a utilização de camisas e tênis da Nike para ir à escola, “como se estivessem
indo para um evento na cidade”20. Também foi relatado que como as crianças não tem “ido atrás de conhecimentos”, não estão ficando tanto tempo na reclusão pubertária e agora “têm medo de arranhar”21. Sob a perspectiva dos professores, esses fenômenos seriam algo prejudiciais ao processo tradicional de aprendizagem e, como consequência, ao devir kalapalo.
Possíveis flexibilizações dos conhecimentos tradicionais
Os Kalapalo falam, adicionalmente, de como algumas restrições e prescrições
19 Diz-se que, para os rituais, os mais jovens querem inovar: sob a influência do “mundo dos brancos”, preferem pintar o pica-pau ou o símbolo do yin yang. 20 Em sua etnografia sobre a escola Xikrin, Beltrame (2013) mostra o quanto as crianças associam a ida à escola com a necessidade de se apresentar como “brancos”, o que inclui atender às aulas com peças de indumentária do mundo dos brancos, criando algum nível de assemelhação com estes. No contexto Xikrin, a escola é tida por excelência como um espaço de conhecimentos do outro, do branco, de tal modo que acudir à escola da forma como se portam e se vestem cotidianamente os Xikrin é alvo de chacota das próprias crianças. Uma “indigenização” da escola, como parece ser o processo que vem assumindo os Kalapalo, é impensável entre os Xikrin. Aulas de “cultura Xikrin”, que os professores pretendem ministrar aos alunos, acabam tendo efeitos outros que aqueles esperados pelos docentes, isto porque, como argumenta Beltrame, para os Xikrin a função da escola é ser “de branco”, nunca para tornar-se Xikrin. Situação distinta à Maxakali, em que se pretende que a escola forme as crianças dentro dos valores e conhecimentos próprios Maxakali (Alvares, 2004). A isso Alvares (1999) chama de “domesticação da escola”. 21 “Arranhar”, como dizem os kalapalo, se refere à escarificação da pele com dentes de peixe cachorra. A escarificação faz parte dos cuidados e da fabricação corporal que permitem que a pessoa se faça constantemente humana, uma vez que todos os humanos são passíveis de se tornarem itseke, ou animal, e se distanciar da forma humana. A escarificação também é utilizada para intensificar a aprendizagem pelo corpo, uma vez que cada aprendizado possui um dono-espírito, que detém e cuida de alguma raíz específica; para se tornar dono deste conhecimento, portanto, faz-se necessário escarificar o corpo e aplicar o determinado remédio. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de ordem alimentar, sexual e de reclusão têm sido flexibilizadas recentemente. Um interlocutor, em especial, descrevia detalhadamente os conteúdos e procedimentos desses cuidados, mas acrescentava, ao final, que “hoje em dia não é mais assim”, ou que “a gente não aguenta fazer assim, como os antigos faziam”. Neste mesmo sentido, se diz que “antes”, logo após o nascimento, o pai “entrava em reclusão por um ano e a mãe ficava sem comer peixe por cinco meses”, mas que hoje “ninguém mais quer fazer isso”. Em matéria sexual, uma restrição importante era evitar o intercurso sexual entre os genitores por um período de um ano após o nascimento do filho ou filha. Agora, como acrescenta o interlocutor, que é um homem adulto, a restrição dura um ano “ou até quando o homem aguentar”. No entanto, reconhece-se que quanto mais tempo a restrição for mantida, melhor, uma vez que o contato sexual entre os genitores pode causar diarréia, choro, emagrecimento e fome ao bebê.
A prática de infanticídio é também hoje mais flexível. Diz-se que quando uma criança “nasce com defeito”, “tem que enterrar”, mas hoje em dia acreditam “que ninguém mais teria coragem de fazer isso”. Sobre esta prática, Guerreiro (2016:163) argumenta que “um corpo deformado de um recém-nascido não é um corpo humano, e se diz de um bebê com defeitos físicos que ele ‘se parece’ com itseke [espírito]”. Desta forma, um bebê que nasce com “defeito” é um itseke e não um humano; enterrá-lo não envolveria, portanto, as questões de ordem moral que nós poderíamos imaginar. Segundo Guerreiro (2016), as deformações no corpo da criança também podem decorrer da ação da própria placenta (Indzu, ou avó, que é um ente não-humano), que não quer que o bebê deixe de estar próximo a ela, ou por influência de algum espírito (concepção comum no Alto Xingu, que justifica as mortes e doenças)22.
Há, ademais, uma série de restrições direcionadas para as crianças e que dizem respeito ao uso do jenipapo: como foi relatado, nas festas “as crianças sempre querem se pintar, mas antes não podiam pintar com jenipapo, porque o “dono” da planta23 faz mal para a criança”; entre outras coisas, ele causaria tersol e emagrecimento. Os pais de crianças muito pequenas também não poderiam se pintar, uma vez que este procedimento faz parte do leque de restrições de “cheiros fortes”24, mas é possível ver nas festas que
22 Não nos estenderemos aqui sobre a noção contextual de doença no Alto Xingu e as relações com os espíritos das quais tal noção é um desdobramento tendo em vista que tal tema está melhor desenvolvido em outras produções, tanto entre os Kalapalo, quanto entre os Mehinaku e os Wuaja, ambos pertencentes ao complexo cultural interétnico alto-xinguano. Sobre a relação entre as doenças e o análogo Wuaja da itseke, ver Barcelos Neto (2005; 2006). Sobre o zelo da intzu com o bebê, ver Guerreiro (2012). Ainda sobre isso, ver Gregor (1985) para o caso análogo entre os Mehinaku. 23 Um itseke. 24 O corpo da criança pequena é tido como “fraco” e suscetível aos perigos da itseke (“espírito”) da placenta, que é tida como “avó” ou “dona” da criança, por estabelecer uma relação de afeto com o bebê Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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tanto as crianças quanto os seus pais que, pela lógica de consubstancialidade são uma extensão do corpo dos filhos, se pintavam.
Outras transformações parecem incidir nos processos de aprendizagem kalapalo. Como discutido anteriormente, no processo de apropriação dos conhecimentos, a disponibilidade e perseverança são, para os Kalapalo, elementos fundamentais. Isso quer dizer que cabe à pessoa “ir atrás” dos recursos para aprender. É ela quem deve conversar com os pais e com o mestre que é “dono” de determinado conhecimento, pagá-lo, e demonstrar um constante interesse. Mas, como relataram diversos pais e professores, “as crianças de hoje em dia não vão mais atrás dos mestres”, isso porque “ninguém mais quer aprender algo difícil”. Em contrapartida, dizem, “nossos detentores de cantos estão acabando”. Etnograficamente, pudemos constatar que efetivamente são poucos os jovens que procuram os mestres com a intenção de serem acompanhados e acederem aos conhecimentos dos quais os mestres são “donos”. São muitos os fatores que poderiam estar na raiz desse fenômeno e buscaremos levantar alguns brevemente.
Uma vez que a relação estabelecida entre aprendiz e mestre/”dono” é assimétrica, muitos futuros aprendizes manifestam que possuem ihütisu (“vergonha”) de procurar o mestre, além de não possuírem um bom pagamento para ele. Outro fator que tem se mostrado presente é o interesse dos jovens por outros tipos de conhecimentos, como os conhecimentos provenientes do mundo dos brancos. Ao contrário de uma falsa apatia ou desinteresse dos jovens, como alguns velhos costumam atribuir, os interesses dos jovens tem se transformado constantemente, mas não deixam de buscar diferentes formas de aprendizado. Outro fator que pode estar associado a esta menor procura pelos mestres pode ser a natureza cara do conhecimento, pelo qual os aprendizes devem pagar. Provavelmente, com o maior acesso aos recursos tecnológicos, que facilitam algumas aprendizagens, a procura pelo mestre como mediador tenha sido relativizada, já que é possível acessar cantos e narrativas, por exemplo, por meio de gravações e escrita. Um exemplo são alguns cantos que Ellen Basso registrou e gravou em material de áudio durante os anos 60 e que continuam circulando entre os Kalapalo; os jovens em reclusão pubertária ouvem estes cantos repetidamente, aprendendo-os através da gravação, e não através de um mestre, como talvez pudesse ser esperado. O fato de estarem gravadas não significa, no entanto, que essas canções sejam reproduzidas de forma estática ou se apresentem como estética ou poeticamente fixas. Ao contrário, a interpretação de um canto é sempre a sua durante toda a gestação (Guerreiro 2012). Como seu corpo é fraco, deve-se evitar o uso de substâncias consideradas “fortes”, como os cheiros e os fluidos da relação sexual entre os pais, o consumo de peixes de “gosto forte” e o uso de matérias com “cheiro forte”, como o jenipapo.
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transformação, de forma que cada pessoa aprende a partir de sua própria experiência e reproduz, através da performance dos cantos, suas especificidades. A questão que aqui se levanta, e que se vincula ao diagnóstico dos professores, é que a aprendizagem não mediada pode diferir da forma tradicional Kalapalo de aprender.
Transformações? ou: da perspectiva das crianças
No esforço de matizar o diagnóstico anteriormente apresentado, é necessário, em primeiro lugar, considerar que muitos Kalapalo têm outros projetos pessoais que nāo necessariamente se especializar em algum “conhecimento tradicional”. Fala-se em completar o ensino médio, e talvez o técnico e o superior, para conseguir algum emprego e, assim, poder “dar alguma coisa para sua família”. Para completar seus estudos é preciso mudar-se para a cidade, uma vez que não há ensino médio na aldeia – o que é um motivo de grande preocupação entre alguns Kalapalo. Esta mudança para a cidade pode acarretar diversas implicações no estilo de vida, e algumas pessoas decidem não voltar para a aldeia depois disso. Outros, ao contrário, querem se formar como professores ou enfermeiros para conseguirem empregos na aldeia, mas como eles são limitados, poucos conseguem de fato uma vaga. Em segundo lugar, entendemos ser fundamental compreender e dialogar com a perspectiva das crianças Kalapalo sobre aqueles elementos apontados como fontes de preocupações para os adultos, em especial os professores. Etnograficamente podese observar que as crianças compreendem as diferentes relações estabelecidas entre “conhecimentos tradicionais” e “conhecimentos de branco”, mas parecem não se aterem tanto a elas, uma vez que ser kalapalo é também fazer parte de uma longa história de relações sociais (Toren 2012), e que no caso kalapalo, desde o contato, se entrecruza com a história dos brancos constantemente, sendo que muitos de seus repertórios dialogam ou são provenientes do “mundo não-indígena”.
Durante outra incursão em campo, oficinas de desenho com as crianças foram realizadas com o objetivo de compreender os interesses das crianças, e como cada criança representa – ou quer representar – diversos elementos a partir de seu contexto individual e sociocultural por meio de recursos gráficos – que poderiam ser figurativos ou não. Em algumas delas, as crianças desenharam livremente e, em outras, tratavam em seus desenhos de palavras que dizíamos em karib. Em seguida apresentaremos uma imagem que contém dois desenhos distintos, realizados por dois meninos diferentes, em que tratavam do termo “künga küsegü” (“rapaz pequeno”). Vejamos. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Figura 1: Diferentes representações de künga küsegü (“rapaz pequeno”). Fonte: desenhos de Iseun e Diego Kalapalo.
No lado esquerdo da imagem, Iseun desenhou a si mesmo, vestido com roupas de kagaiha (“branco”), com camiseta, shorts e boné. Já no segundo desenho, à direita, Diego desenhou um rapaz Kalapalo “vestido com a pintura tradicional”25 para rituais, com o corpo pintado de carvão e urucum, o cabelo também pintado de urucum, e os braços e os tornozelos amarrados com fios de algodão, como se estivesse pronto para uma festa. Estas diferenças presentes nas imagens trazem elementos para pensarmos a influência e a relação com o “mundo dos brancos”; no primeiro desenho, Iseun apresenta um menino Kalapalo vestido de kagaiha (“branco”), talvez porque para a criança já é normal vestirse assim, ou talvez porque haja alguma expectativa de apresentar um outro26. O segundo desenho, feito por um menino um pouco mais velho, poderia indicar uma necessidade parecida com a articulada pelos professores no início deste artigo - de se mostrar como um Kalapalo tradicional de fato, o que costuma ser recorrente entre os adultos, e também configura uma imagem na relação com o “mundo dos brancos”.
Outro caso interessante para refletir sobre esta questão é o de Creusa, uma menina, filha de um eginhoto (“dono de canto”), que sempre se interessava por ouvir as músicas (“de branco”) que cantávamos na aldeia. O objetivo em cantar algumas músicas de nosso repertório “de branco” (em geral cantigas populares e músicas de roda) para as crianças era ouvir o repertório delas próprias. O combinado era: cantava-se uma música 25 Quando se referem à forma de se vestir tradicional em oposição ao vestuário de branco, os Kalapalo falam em termos de roupa. Em karib, o termo correto seria angatagü, que corresponde a “pintado”. Como a pintura também pode ser entendida como uma roupa que se “veste”, como uma outra pele para se fabricar como indígena, optamos por manter o termo “vestido como indígena”, que é como comumente traduzem para o português. 26 Talvez um “eu” que se apresenta de outra forma, se for possível entender o desenho em termos de demanda, aspiração ou desejo, como problematizado em Maciel & Medina (2016). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e esperava que elas cantassem outra, e, assim, seguíamos trocando. Mas, na maioria das vezes, cantávamos, esperávamos, e elas, tímidas, falavam nhalü (“não”). Algumas vezes cantavam músicas que nós já havíamos cantado, ou outras do repertório kagaiha da aldeia (normalmente sertanejo universitário, e músicas populares da cidade de Canarana - MT), mas raramente entoavam cantos “tradicionais”. Um dia, quando estávamos com a câmera em mãos, com o claro interesse em registrar as crianças, Creusa juntou um grupo de amigas e começou a cantar diversas músicas “tradicionais”; muitas cantadas para as crianças da aldeia (o que chamaríamos de “músicas infantis”) e outras do repertório de cantos do seu pai. Posteriormente, quando confrontado com a gravação, o pai se mostrou surpreso ao descobrir que a filha possuía um repertório de cantos tão vasto, pois nunca a ouvira cantar antes, e nos disse não saber que a menina tinha tanto interesse nos cantos.
Esse caso é interessante porque, ao mesmo tempo em que denota o interesse de Creusa pelas músicas “de branco” que circulavam na aldeia, também mostra o repertório dessa mesma menina em termos de canções tradicionais, surpreendendo inclusive seu pai, um mestre/”dono”. Creusa tinha, portanto, um “bom ouvido” e dedicava-se a aprender. Posteriormente, ela relatou que observava e ouvia muito antes de cantar, e que, quando cantava, acabava demonstrando que estava aprendendo, que estava egitsanenügü (“aprendendo na prática”). As crianças kalapalo se mostram plenamente capazes de se relacionar com os conhecimentos do mundo não-indígena. É interessante notar que ao se relacionarem com os dois tipos identificados de conhecimentos ao longo do processo de aprendizagem, as crianças Kalapalo os estão significando a todo momento, como é próprio do fluxo de todos os conhecimentos – eles não são estáticos.
A infância é tida como um estágio de experimentação, no qual as crianças fazem e reproduzem tudo o que querem, sejam coisas que os adultos fazem, coisas que os kagaiha fazem, coisas que querem explorar/descobrir e testar os limites. Elas aprendem muito entre si, mostrando o que já conhecem e sabem para seus pares. Algo interessante nesta análise é pensar na autonomia que as crianças possuem, o que inclui esta capacidade de mover-se livremente por diferentes contextos e espaços e a autonomia para escolher o que querem experimentar e fazer, ainda que os adultos frequentemente as orientem sobre determinadas coisas, como não ir para longe sozinhas ou sobre a forma correta de descascar a mandioca. Essa orientação, fundada em princípios sociocosmológicos importantes, reforça os cuidados que as crianças devem ter, o que pode se dar, inclusive, por meio de cantos e na própria escola. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Considerações finais Os adultos falam em transformações nas formas de ensinar o conhecimento tradicional e na falta de interesse dos mais jovens, entre outras coisas, mas as crianças parecem, por sua vez, pouco preocupadas com isso. Elas aprendem e se valem dos conhecimentos do mundo dos brancos e dos conhecimentos tradicionais, sem anular um ou outro, ou contrapô-los. Ao contrário, apesar de conhecerem as distinções entre estes conhecimentos e suas formas de aprendizagem, estas diferenças aparecem entre as crianças de formas menos taxativas e categóricas. É dizer, passando tanto pela experiência corporal como pela ordem da experimentação, as crianças não cessam de aprender, tanto os chamados conhecimentos tradicionais dos Kalapalo, quanto, ao mesmo tempo, os conhecimentos (e coisas) do mundo dos brancos. Um tipo de conhecimento ou uma forma de aprendizagem não anula o outro.
Ainda que reconheçam e se situem no seio das transformações, as crianças demonstram estar completamente apropriadas do mundo alto-xinguano. Isto pode ser exemplificado por elas conhecerem os mitos, e os relacionarem com seu cotidiano. Conhecem os perigos aos quais são, como crianças, mais suscetíveis, ao mesmo tempo em que exploram o campo dos sonhos como um lugar epistêmico legítimo. Assim, e sob a perspectiva das crianças, a vida Kalapalo é dotada de uma enorme fluidez, não só na medida em que circulam entre diferentes espaços, participando de socialidades diversas com certo nível de autonomia, mas também na exploração de elementos constitutivos daquilo que aparece como “tradicional” e “de branco”. As crianças possuem, neste sentido, a capacidade de apreender repertórios distintos de conhecimentos, e de valer-se da sua agência social, incidindo sobre as relações de aprendizagem nas quais estão envolvidas e tensionando percepções que podem parecer mais estritas, principalmente ao experimentar e criar em seus próprios lugares sociais, entre eles, as brincadeiras.
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Os sonhos da criança Ava-guarani: circulação de saberes e autonomia da infância indígena através da participação na experiência onírica na aldeia Ocoy/Pr Denize Refatti Mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina denizere@hotmail.com
Resumo Este artigo discute os modos como os Ava-guarani vivenciam a experiência do sonhar e os seus desdobramentos no cotidiano da aldeia Ocoy, localizada no oeste paranaense. Partindo do princípio de que as maneiras de experienciar os sonhos e suas interpretações não são universais, busca-se discutir principalmente sobre o modo como as crianças Ava-guarani vivenciam o onírico, enfatizando sua autonomia e participação neste universo, como aprendem a sonhar e o que aprendem com seus sonhos. Apresento uma breve discussão sobre a infância indígena e sobre o modo como as crianças são iniciadas na experiência do sonhar, a partir da análise de dois desenhos e de narrativas oníricas feitas por algumas crianças do Ocoy, durante minha pesquisa de mestrado. Destaca-se ainda que experiência onírica pode ser entendida enquanto fonte de conhecimento, uma vez que a atividade de sonhar para os Guarani é algo que se aprende e se ensina, ou seja, a experiência onírica é também um processo importante de transmissão de saberes, iniciado ainda na infância. Palavras-chave: infância; sonhos; conhecimento; Ava-guarani; criança indígena
Abstract
This article discusses the ways in which the Ava-Guarani experience dreaming and its unfolding in the daily life of the indigenous village Ocoy, located in the west of Paraná. Assuming that the ways of experiencing dreams and their interpretations are not universal, we aim to discuss primarily how Ava-Guarani children experience the dream, emphasizing their autonomy and participation in this universe, how they learn to dream and who they learn from. I present a brief discussion of Indigenous childhood and how children are initiated into the dreaming experience
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Os sonhos da criança Ava-guarani
from the analysis of two drawings and stories of dreams made by Ocoy children during my master’s research. It should also be noted that dreaming experience can be understood as a source of knowledge, since the activity of dreaming for the Guarani people is something that is learned and taught, which means that dream experience is also an important process of transmitting knowledge, begun already in childhood. Keywords: childhood; Indigenous children; dreams; knowledge; Ava-guarani.
O aprendizado dos sonhos com os Ava-guarani: desdobramentos da pesquisa de campo e algumas reflexões iniciais A reflexão aqui exposta foi construída a partir de desenhos e narrativas feitos por crianças Ava-Guarani durante minha pesquisa de mestrado, que teve como objetivo principal compreender as relações existentes entre os sonhos e algumas formas de conhecimento, que se refletem em ações e decisões do cotidiano entre os Guarani do Tekoa Ocoy em São Miguel do Iguaçu, município do oeste paranaense, localizado próximo à tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.
Durante os quase quatro meses em que convivi com os Ava-guarani no Ocoy, escutei narrativas de sonhos de muitas pessoas, homens, mulheres, jovens, idosos, xamãs, ouvi sobre sonhos que pressagiam mensagens, e sobre sonhos considerados sem importância. Meu intuito era o de compreender a experiência do sonhar entre os Ava-Guarani, e para tanto, eu não poderia ignorar o fato de que as crianças também vivenciam essa mesma experiência que os adultos, e também tinham muito a contar sobre suas viagens oníricas e sobre as interpretações criadas para cada uma delas. Portanto, ao levar a sério o que as crianças tinham a me falar sobre seus sonhos, reuni um compilado de informações para construir este artigo, cuja proposta é apresentar algumas considerações sobre o modo como as crianças Ava-guarani vivenciam a experiência onírica, destacando suas interpretações e as maneiras como os sonhos são utilizados nos processos de produção e circulação de saberes, ou seja, como e em que momento as crianças aprendem a sonhar, e o que são capazes de aprender durante o tempo em que estão sonhando e quando discutem os sonhos.
Considerando que os sonhos são experiências coletivas que envolvem um conjunto de atividades, e possibilitam o acesso a um plano cosmológico que orienta a vida cotidiana, lanço mão da expressão “universo onírico”, no intuito de contemplar todos os elementos que se relacionam aos sonhos, ou seja: predisposições, técnicas corporais, significações, interpretações, reconhecimentos, religiosidade, os modos de ser e sua importância na produção da pessoa Ava-guarani. Destaca-se o contexto em que o sonho é produzido, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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onde é compartilhado e interpretado, e principalmente como a experiência onírica pode ser entendida enquanto fonte de conhecimento, uma vez que a atividade de sonhar para os Guarani é algo que se aprende e se ensina, ou seja, a experiência onírica é, também, um processo importante de transmissão de saberes, que ocupa um lugar essencial nas dinâmicas cotidianas ainda na infância. Este trabalho reforça, ainda, a importância dos sonhos como eixo analítico para a antropologia, como aponta Laura Graham (2018) em sua pesquisa com os Xavante, que compartilham seus sonhos, transformando uma experiencia subjetiva e exclusivamente pessoal em uma experiencia coletiva, socialmente compartilhada através da performance de repetições de canções-sonhos. Neste sentido, estudos sobre educação indígena que apontam para a relevância dos processos nativos de transmissão de saberes, também reforçam a importância dos sonhos como um campo pouco explorado, embora fundamental para compreender processos indígenas de ensinar e aprender. De acordo com Antonella Tassinari (2008, p. 238), a aprendizagem por meio dos sonhos merece destaque porque há vários exemplos etnográficos referentes a situações em que os neófitos são treinados para sonhar, revelando o “sonho como uma fonte legítima e importante de saber”.
A respeito do universo e da cosmologia xamânica, Langdon explica que o invisível produz impactos sobre a vida diária, e assim os sonhos podem contribuir para a compreensão de forças ocultas e influenciar acontecimentos, “são mediadores entre o conhecido e o desconhecido” (1999: 39), e por essa característica funcionam como uma ferramenta importante na compreensão de acontecimentos comuns do cotidiano, bem como no que se refere à esfera do sagrado. Os sonhos constituem o acesso a outra dimensão da realidade, um complemento da percepção humana que sua cultura define como existente (Bartolomé & Barabas, 2013). Longe de ser considerado apenas uma necessidade fisiológica do nosso corpo, o sonho é uma viagem da alma, ou seja, no caso guarani, uma viagem do nhe’e (alma) que, aproveitando-se do descanso de nosso corpo, percorre os caminhos do sagrado, onde pode encontrar com o nhe’e de outras pessoas, de parentes que moram longe, de parentes que já habitam o mundo dos mortos e, em alguns casos, inclusive com Nhanderu1. A experiência onírica perpassa diferentes instâncias da vida no Ocoy, sendo um instrumento importante da religiosidade guarani e de grande domínio de especialistas como o chamo’i2 ou a chara’i, exímios conhecedores do universo dos sonhos e que,
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O nosso pai - Deus máximo na religiosidade guarani. Os Chamo’is (masculino) e chara’is (feminino) são os especialistas do xamanismo guarani. No Ocoy, usa-se pouco a palavra pajé, porque os Guarani a relacionam com atividades de bruxaria, “feitiços de maldade” e outras atividades que não condizem com a verdadeira missão xamânica, de proferir belas
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portanto, são frequentemente procurados para ajudar na interpretação destes, o que não exclui a possibilidade de pessoas consideradas comuns também se debruçarem sobre a experiência onírica de modo a teorizar os sonhos avisos, conhecer remédios, cantos e rezas, bem como se comunicar com Nhanderu e com os mortos através do sonho, podendo ainda ser capazes de interpretar a maioria deles.
Dois papéis diferentes se destacam na dinâmica de compartilhamento dos sonhos, o sonhador que narra seus sonhos e os ouvintes, ou seja, as pessoas que se disponibilizam a escutar atentamente as narrativas oníricas, para posteriormente contribuir com interpretação das mesmas através de palpites, se assim julgarem conveniente. Porém, não há uma necessidade efetiva de que as pessoas que estão ouvindo os sonhos façam comentários sobre ele, muitas vezes há apenas longos minutos de silêncio e reflexão que intercalam as narrativas de um e outro sonhador.
Para que os sonhos possam efetivamente transmitir mensagens é necessário o conhecimento de uma série de técnicas relacionadas à capacidade de sonhar. Primeiramente os Guarani entendem que o corpo e a alma devem estar preparados para o sono, que precisa ser confortável e tranquilo, de preferência sem barulhos e interrupções. Posteriormente, ao acordar devem refletir sobre o sonho que tiveram, relembrar em detalhes cada imagem ou diálogo vivenciado enquanto dormiam; também é de fundamental importância que prestem atenção em todos os atos a que dão seqüência ao acordar, por que um pequeno detalhe pode mandar todas as imagens dos sonhos embora, fazendo-lhes esquecer do que sonharam.
Nesse sentido, preparar o corpo para o despertar é tão importante quanto preparar o corpo para a chegada dos sonhos, para tanto, executam uma série de técnicas especificas que devem ser desempenhadas com a missão de não esquecerem dos sonhos ao acordar e para que estes fiquem gravados na memória por mais tempo. Geralmente, estas técnicas são bastante comuns, mas observa-se que algumas pessoas não compartilham das mesmas técnicas que a maioria, e as desenvolvem de maneira própria, de modo que façam sentido individualmente ou para sua família. Graziela, uma jovem Guarani, me explicou que seu sonho vai embora se ela acordar e escovar os dentes antes de lembrar-se do sonho que teve, enquanto que para seu pai, Luciano, a única coisa que o impede de lembrar dos seus sonhos é escutar o rádio assim que acorda, porque tudo se confunde e ele não consegue mais lembrar do que sonhou durante aquela noite. Algumas pessoas destacaram que, ao acordar, é preciso rememorar o sonho antes de passar a mão no cabelo, de pisar no chão, de comer ou beber qualquer coisa e antes de palavras e curar doenças.
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lavar o rosto. Quando vão dormir, também precisam seguir algumas regras para ter bons sonhos: devem tomar cuidado para não dormir com o braço embaixo da cabeça, estar com a cabeça e o pescoço livres, ou seja, sem nenhum tipo de adereço como colares, bonés ou chapéus, e devem preferencialmente adormecer com a barriga voltada para cima, de modo a facilitar a saída do nhe’e. A partir desses exemplos, é possível entender o corpo como um dispositivo, no que se refere a toda a experiência onírica, de forma que a sua manipulação possa influenciar no conteúdo dos sonhos e na sua lembrança. A aplicação e a eficácia deste conjunto de técnicas são reconhecidas por todo o grupo, da mesma forma que reconhecem a multiplicidade de formas, causas e efeitos de cada uma. No entanto, os Ava-guarani sabem que em alguns momentos, mesmo seguindo este roteiro corporal, antes e depois do sono, o resultado que esperam de seus sonhos pode não ocorrer e o principal motivo para que isto aconteça é que naquela noite eles provavelmente tiveram apenas sonhos à toa, ou seja, sonhos considerados sem nenhuma importância e que por isso não necessitam ser lembrados.
Em conversa sobre estas técnicas e o desejo dos Ava-guarani de terem sonhos provados, Senhor Luciano me explicou que ele mesmo não gosta de sonhar “certo”, porque esses sonhos trazem preocupação, precisam ser rememorados e demandam até uma semana de cuidados nos casos em que preveêm algo que poderá ser evitado. Se eu sonho muito, fico toda a hora preocupado, angustiado, isso também não é bom não. Por isso que tem vezes que eu prefiro nem sonhar, aí eu não me importo e não fico cuidando pra fazer as coisas certas do sonho (Luciano, 21/05/2013).
Da mesma maneira que estas técnicas são utilizadas para atrair bons sonhos, ao deixarem de ser executadas, surtem efeito contrário, afastando os sonhos ou atraindo apenas os sonhos que eles consideram “à toa”, por se tratarem de sonhos que não possuem nenhum conteúdo entendido como importante. A fala de Luciano exemplifica a importância do domínio destas técnicas, porque cada gesto tem um significado e possibilitam aos Guarani controlar quase tudo o que envolve a experiência onírica, de modo que o aprendizado do controle dos corpos se reflete no controle dos próprios sonhos.
As crianças ouvem e aprendem sobre estas técnicas desde cedo e igualmente são estimuladas a contar seus sonhos e a escutar com atenção quando alguém está fazendo a narrativa de um sonho. Convém ressaltar que esta construção corporal não é fruto apenas de um esforço individual e consciente, mas o produto de uma prática que é ao mesmo tempo individual e coletiva, consciente e inconsciente (Mauss, 1935).
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Nos momentos em que estão reunidos para compartilhar seus sonhos, os Guarani prestam muita atenção no que é falado, cada detalhe é importante de ser contado e ouvido, por isso é possível afirmarmos que há um ritmo corporal específico das pessoas envolvidas nesta dinâmica. Despertam cedo e de forma muito silenciosa começam suas atividades: buscam lenha para o fogo e preparam o chimarrão, as crianças se acomodam próximas ao fogo enquanto o reviro3 é preparado, geralmente pela mulher mais idosa da casa. Fazem tudo sem pressa alguma e quando acomodados e aquecidos pelo calor do fogo, permanecem em silêncio por muitos minutos, quietos, olham para baixo, para o fogo, ou para o horizonte. São “corpos que falam em silêncio”, como destaca Clarissa Melo em sua pesquisa sobre escola, corpo e tempo entre os Guarani (Melo, 2008). O ato de ouvir está envolto de grandes cuidados, em todos os momentos da vida guarani: “mesmo quando ninguém está falando nada, nós estamos ouvindo”. Esta fala de Casimiro explica muito bem, a leitura que os Guarani fazem do silêncio e a atenção que disponibilizam quando alguém está contando um sonho. É a importância do ouvir, que, de acordo com Melo, está intimamente ligada à etimologia da própria língua guarani:
Retomando a palavra guarani que significa ouvir -endu - percebemos na prática seu significado que também pode ser traduzida como de sentir. Eles prestam muita atenção às palavras que pronunciamos, de modo a sentir o que será necessário fazer, quais as atitudes a tomar (Melo, 2008: 114).
É preciso ouvir mais que o conteúdo dos sonhos que são contados, assim, os Guarani ouvem a pessoa que está contando um sonho, no sentido de que todos os elementos presentes nessa experiência, inclusive os gestos corporais, são importantes para uma boa interpretação de um sonho. Torno a ressaltar que, esta não é apenas uma habilidade individual, mas algo que se desenvolve e se pratica coletivamente, porque a técnica é fruto de um processo social e não pode ser compreendida fora desse processo (Grando, 2004). Segundo Grando, nas sociedades indígenas a educação do corpo faz parte da educação da pessoa, trata-se de educar o corpo para ouvir e falar, um conhecimento que marca mais profundamente a criança do que outras formas de educação e que, nas sociedades ameríndias, ocorre no cotidiano das relações sociais ao longo de toda a vida, variando de sociedade para sociedade. A autora destaca assim que, a ação educativa
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O reviro é uma das principais comidas consumidas no Ocoy, geralmente feita pela mulher mais velha da casa. No entanto, durante meu campo observei muitos homens e crianças preparando este prato, que é servido pela manhã e no final do dia, sempre acompanhado de café ou de chimarrão. Seu preparo necessita apenas de: farinha, água, sal e um pouco de óleo ou banha de porco. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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possibilita um aprendizado que se dá pela autoridade e pela identificação estabelecida entre quem ensina e quem aprende e compreende os fenômenos de autoridade e tradição (2004: 60).
As crianças parecem não se importar com as conversas dos adultos, enquanto brincam descompromissadamente pelos arredores da casa, mas é dessa forma, escutando uma ou outra conversa, que começam a entender o quanto é importante escutar essas narrativas e aos poucos se arriscam contando os seus próprios sonhos, com a ressalva de que somente muito mais tarde é que começam a dar palpites na interpretação dos sonhos das pessoas mais velhas. Os Ava-guarani entendem que o sonho de uma criança é muito valioso, por isso, devem aprender desde cedo a entender o que significa sonhar, elas acordam e dizem que aprenderam, que brincaram, que viram coisas ou se encontraram com pessoas nos sonhos, e sabem diferenciar perfeitamente o que vivenciam na vigília e no sono.
Os sonhos estão no corpo, eles são mensagens transmitidas pelo nhe’e que ficam armazenadas no corpo de cada pessoa, por esse motivo os primeiros movimentos feitos ao acordar detêm tanto poder sobre eles; Eu gosto de contar o sonho porque se eu não contar parece que tem uma coisa que fica me incomodando, quando a gente conta ele, ele sai da gente, sai do corpo da gente mesmo. Se eu não conto fico até com dor de cabeça, porque eu acho que é bem na cabeça mesmo que ele fica (Leandra, 02/04/2013).
No momento em que um sonho é compartilhado alivia-se o peso de carregá-lo sozinho, de modo que, ao incluir outras pessoas nessa experiência, os Ava-Guarani estão compartilhando também a responsabilidade de fiscalizar e de se preocupar com os cuidados necessários para que as coisas ruins vistas nos sonhos não sejam colocadas em prática.
A transmissão de conhecimentos e de técnicas corporais “se dá a partir da própria atuação das crianças, dos movimentos, das sensações e emoções que constroem esse momento” (Alvares 2013: 83). As crianças Ava-guarani aprendem a se relacionar com seus sonhos desde cedo no seu ambiente familiar, perguntam o significado de seus sonhos e assim vão construindo um conjunto de significações que fazem sentido para seus próprios quadros oníricos, do mesmo modo que aprendem sobre as técnicas corporais que se relacionam aos seus sonhos. Assim, vão percebendo se conseguem lembrar de seus sonhos, mesmo quando mexem no cabelo, ou se os esquecem quando dormem com a
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cabeça apoiada em um de seus braços.
“Criança sonha mais forte ainda”: a criança Ava-guarani e seus modos próprios de ensinar, aprender e vivenciar os sonhos Antes de abordar mais especificamente sobre a atuação das crianças Ava-guarani no que se refere à experiência onírica, é necessário falar sobre o modo como as crianças são percebidas pelos adultos nas sociedades indígenas, ou seja, como se constrói a concepção de infância indígena.
Uma grande parte dos estudos antropológicos clássicos não reconheciam a criança como um ser pleno, percebendo-as como meras reprodutoras do mundo adulto, ou, quando são citadas aparecem de forma genérica, como coadjuvantes da vida adulta, o que revela um caráter adultocêntrico dessas obras, como apontam os estudos de Nunes (2002), Tassinari (2008), Cohn (2000) e outros pesquisadores. Entretanto, algumas produções recentes na antropologia se voltam ao aprendizado e à infância, ao passo que ressaltam a importância de se atentar para a participação ativa das crianças na vida social e na construção de sentidos a partir da sua vivência e interação. São estudos que possibilitam entender a infância como “um mundo relativamente autônomo que tem validade por si, nas experiências e vivências das crianças, e na forma como percebem o mundo em que vivem” (Cohn, 2000: 196). Estes estudos compreendem que o ambiente infantil é capaz de repercutir nas relações do cotidiano da vida adulta, além de se organizar por dinâmicas e regras próprias que definem o universo infantil como exclusivo e autorregulado, em lugar de um reflexo do mundo adulto. Nesse sentido, o universo infantil também repercute na vida adulta assim como nas relações do cotidiano, mas não é raro percebermos pessoas, livros, ou mesmo programas de televisão, proferindo dicas sobre a melhor maneira de se educar uma criança. Manuais que ensinam os pais a criar seus filhos, como devem ser as repreensões, as manifestações de carinho, qual o melhor momento de matriculá-los na escola, de aprenderem uma nova língua ou de praticaram algum esporte, de modo que, nestes contextos, a criança é vista como um ser vulnerável, que precisa de cuidado, tutela e proteção. Do mesmo modo, entre as populações ameríndias há uma série de orientações sobre a melhor maneira de se educar as crianças, porém podem apresentar algumas diferenças se comparadas com as que acabo de listar. Como exemplo, destaco a preocupação dos pais com a iniciação das crianças com experiência onírica, e o esforço para que desenvolvam adequadamente a atividade de sonhar, e possam se comunicar com Nhanderu enquanto dormem. Portanto, pesquisas voltadas para a infância indígena se fazem importantes, uma Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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vez que buscam desnaturalizar a crença numa infância frágil, descomprometida e vigiada, em detrimento de uma infância que pode ser autônoma, carregada de responsabilidades que influenciam nas relações sociais dos grupos que pertencem.
Nesse contexto, a criança é entendida como agente plena de competências e habilidades, capaz de construir suas relações e dar sentidos a elas. De acordo com Seára & Jesus (2016), as crianças possuem liberdade de percorrer diferentes espaços porque necessitam aprender sobre o mundo à sua volta, e sempre que demonstram interesse em determinada atividade, são incentivadas ao mesmo tempo que advertidas pelos mais velhos sobre os cuidados a serem tomados e, como já destaquei, adentrar no mundo da experiência onírica e dos seus significados é uma das diversas atividades com as quais os Ava-guarani entram em contato ainda na infância. Ao falar sobre a importância dos sonhos para os Guarani, muitos pais falavam com orgulho dos sonhos de seus filhos pequenos: “Aquele ali já conta o sonho também”, “tem o meu pequeno que sonha certo, se alguma vez ele contar o sonho pode esperar que vai acontecer”. Essas falas demonstram que os sonhos das crianças não são menos valorizados que os sonhos dos adultos, e mais do que isso, as crianças são incentivadas a prestar atenção nas mensagens recebidas durante o sonho e a compartilhá-las, aprendendo também sobre as técnicas empregadas na experiência onírica.
A noção de que as crianças “sonham mais forte ainda” está relacionada à forma como os Ava-Guarani compreendem essa fase da vida e os cuidados necessários para a produção adequada de pessoas e também ao modo como percebem as falas das crianças quando estão contando um sonho, sem deslegitimar as imagens oníricas que apresentam ou considerá-los menores e com inferior importância.
Assim como os adultos, as crianças também acordam cedo e participam da dinâmica de compartilhamento dos sonhos, ouvindo os pais, avós e outros membros da família extensa guarani que narram pacientemente todas as aventuras vivenciadas durante o sono, esperando obter sugestões de interpretação para cada quadro onírico. Mesmo quando estão brincando próximas ao fogo ou comendo reviro elas se mantêm atentas e, vez ou outra, também se ariscam a contar o que viram enquanto dormiam, ou quando já estão um pouco maiores, a interpretar um sonho. Quando uma criança narra um de seus sonhos, todos prestam atenção sem fazer distinção entre estes e os sonhos contados pelos adultos, porque entendem que “criança também sonha certo”, afinal as crianças ainda não estão contaminadas pelas “sujeiras do mundo” e “seus corpos ainda estão limpos”, de modo que, ao sonhar conseguem estabelecer uma conexão ainda mais intensa com o sagrado, especialmente porque têm a alma limpa,
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livre de palavras e pensamentos que poderiam interferir na atividade de sonhar.
Buscando compreender um pouco mais sobre a relação que as próprias crianças estabelecem com seus sonhos, realizei a seguinte dinâmica com algumas crianças avaguarani: num primeiro momento, pedi para que fizessem um desenho representando qualquer elemento que estivesse relacionado aos seus sonhos, imagens que viam enquanto dormiam ou mesmo sobre o modo como os sonhos eram entendidos no seu contexto familiar. Num segundo momento, sentados no chão, à sombra de algumas árvores, iniciamos uma roda de contação de histórias, onde as crianças puderam falar sobre os desenhos que fizeram e falar mais livremente sobre suas experiências com o universo onírico, que vivenciaram ou que escutaram de seus familiares. Portanto, elegi dois desenhos confeccionados pelas crianças e suas respectivas explicações, apresentadas durante a contação de histórias, não para interpretar os seus sonhos/desenhos, mas para tentar compreender o modo como percebem seus sonhos e o papel que ocupam nas dinâmicas que envolvem a experiência onírica no Ocoy.
Figura 1: Sonho com cobras Fonte: Denize Refatti (2013)
Este primeiro desenho demonstra um sonho muito comum no Ocoy, que são os sonhos com mbói (cobra), temidos por tratar-se de maus agouros, que pressagiam fofocas, intrigas e confusões. Uma grande cobra saindo de dentro da casa significa que alguém pode estar criando intrigas para algum membro da família. A criança autora do desenho me explicou que seu pai tem muitos sonhos com mbói e que sempre que conta um desses Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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sonhos, fica preocupado com situações ruins que podem vir a acontecer nos próximos dias. Contou-me que quando estes sonhos parecem muito reais, pressagiando que algo ruim realmente vai acontecer, ela e seus irmãos recebem conselhos dos pais e avós para não saírem de casa, brincar somente próximos a casa e algumas vezes nem vão para a escola.
Perguntei se ela mesma ainda não contava sobre os seus próprios sonhos, e sua resposta foi a seguinte: “Eu ainda não sonho nada”, explicando-me que quando seus sonhos começarem a aparecer, cabe a ela prestar atenção nos sinais enviados por Nhanderu e quando começarem a ser provados é o momento de comunicá-los e compartilhá-los com sua família também. Ao falar que “não sonha nada”, esta criança está se referindo ao modo como os Guarani separam seus sonhos, entre “sonhos provados” e “sonhos à toa”, como explicado anteriormente, ou seja, quem tem apenas “sonhos à toa” não sonha nada. Essa explicação demonstra que as crianças têm autonomia para decidir o melhor momento de adentrar no universo onírico, ou de não se interessarem por eles, se assim desejarem. Do mesmo modo, são autônomas nas interpretações e até mesmo nos cuidados a serem tomados em decorrência de um sonho.
Figura 2: Sonho com Canoa Fonte: Denize Refatti (2013)
Este segundo desenho, ilustra a interpretação dos sonhos com canoa que, de acordo com a maioria das interpretações oníricas ava-guarani, podem significar presságios de que alguém próximo, ou mesmo o sonhador irá falecer. A autora deste desenho, uma menina de 12 anos, me contou que freqüentemente tem sonhos com canoas e que por
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isso escolheu desenhar ela mesma num caixão, porque ao despertar de um sonho como este, sente muito medo de que algo ruim possa acontecer com ela. No desenho, a criança representou também seu nhe’e deixando seu corpo agora sem vida para ascender ao céu. Representado a seu lado esquerdo, está a figura de Jesus Cristo, que ela me explicou ser “o mesmo Nhanderu, ele está sempre perto das pessoas que são boas e aqui (apontando para o desenho) está ajudando a minha alma a achar o seu caminho de volta para o céu”.
Tomando este desenho como exemplo, podemos refletir um pouco mais sobre o modo como as crianças estão inseridas na cultura Ava-guarani. No Ocoy as crianças não são “poupadas” de assuntos mais sérios, que em outras sociedades poderiam ser consideradas “assuntos de adulto”, tanto que podem participar das dinâmicas que envolvem o universo onírico, inclusive no que se refere aos sonhos considerados mais importantes e sagrados, como os sonhos de canoa, por exemplo. A participação social das crianças pode ser percebida nessa relação com seus sonhos, porque se trata de um contexto, o ameríndio, em que as “infâncias podem ser vivenciadas com maior liberdade e autonomia nos quais as crianças participam ativamente como atores plenos” (Tassinari, 2009: 01). Ao entrarem em contato com o universo onírico as crianças também são inseridas nos processos de conhecimento guarani, já que sonho também é utilizado como instrumento no qual é possível tomar conhecimento do sagrado, aprender sobre músicas, cura de doenças, sobre os perigos aos quais estão expostos, sejam estes do mundo físico ou espirituais. Trata-se de um modo de conhecer que ocorre no tempo de cada criança, e do mesmo modo que elas não são excluídas do universo dos sonhos, elas também não são pressionadas a falar sobre eles; é algo que ocorre espontaneamente e, à medida que a criança começa a demonstrar interesse pelos seus sonhos, recebe grande incentivo de seus familiares. Assim que passei a residir na aldeia com a família de Leandra, uma jovem mãe guarani, percebi que seus quatro filhos, todos pequenos, demonstravam muito interesse em saber o que eu estava fazendo ali, e porque estava a todo o momento perguntando para as pessoas sobre seus sonhos. Kambi, o mais jovenzinho, gostava de se reunir com outras crianças para me imitar: com caderno, caneta, e um pequeno pedaço de madeira, que utilizava como gravador, perguntava aos coleguinhas sobre seus sonhos. Em algumas manhãs, enquanto tomávamos chimarrão em volta do fogo, ele me perguntava: “E a mim, você não vai perguntar o que eu sonhei hoje?”, em seguida iniciava suas narrativas, geralmente permeadas por grandes aventuras com aviões, cobras, ônibus, pássaros, onças e outros elementos, sobre os quais ele consultava a mãe para saber o que significavam ou, dava-me ele mesmo suas próprias interpretações. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Em nenhum desses momentos ele foi silenciado pela mãe, ou por outro familiar mais velho. Todos achavam engraçado o modo como ele estava se relacionando com seus sonhos devido a minha presença e minhas interpelações, mas era sempre escutado e suas narrativas interpretadas com a mesma preocupação e dedicação que interpretavam os sonhos dos adultos.
A partir do exposto, destaco que os desenhos apresentados, bem como as explicações dadas pelas crianças sobre seus sonhos, demonstram que elas não apenas dominam o repertório das interpretações dos quadros oníricos, mas também os compreendem como fundamentais para o “jeito de ser guarani”, respeitando-os quando advertidos sobre algo que poderá acontecer ou esperando por “coisas boas”, caso o sonho indique a visita de algum parente, passeios, dinheiro, entre outras. Deste modo, quando uma criança está aprendendo a se relacionar com seus sonhos, ela está aprendendo a viver o Nhandereko, ou seja, conhecendo e aprendendo a viver a cultura Ava-guarani. Uma forma de vivenciar o Nhandereko e se relacionar com o Sagrado é a participação dos corais, nos quais as crianças participam ativamente, ocupando lugar de protagonistas e contumaz aprendizes, porque como afirma Oliveira, as crianças que participam do coral são portadoras de saber, musical e cosmológico, pois “tomam a posição de protetores, guardiões e guerreiros do grupo, categorias que possuem conotação sagrada para os Guarani” (2004: 63). As crianças menores aprendem com as crianças maiores e com os mestres a executar os instrumentos, confeccionar os pequenos petynguas4 que utilizam na opy, os
passos, os cantos e, principalmente, tomam lições diárias de como viver o nhandereko. Na opy (casa de reza), onde se encontram diariamente para os ensaios dos corais também acontecem como que pequenas palestras, chamadas de conselhos, nas quais os mestres falam para as crianças quão importante é frequentar a opy, ouvir e seguir os conselhos, ter disciplina para aprender com os mais velhos e se concentrar, respeitando o que estão cantando e dançando.
Parte dos conhecimentos relacionados aos corais também pode ser adquirido nos sonhos, como a revelação de letras ou melodias dos cantos. Algumas narrativas, principalmente dos chamo’is, destacam que é possível aprender a tocar instrumentos musicais nos sonhos, de modo que, enquanto dormem, recebem a visita de outras pessoas que mostram como determinado instrumento deve ser executado e, ao acordar, repetem os movimentos experienciados nos quadros oníricos para treinar o instrumento. Esses 4
Cachimbo esculpido em madeira, geralmente em formas de animais, utilizado pelos chamo’is em todas as rezas, e também pelo demais moradores, inclusive pelas crianças que esculpem seus próprios cachimbos num tamanho bastante menor que os cachimbos dos adultos.
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sonhos podem se repetir por muitas vezes, até que o sonhador realmente aprenda a tocar o instrumento. Podemos observar como essas dinâmicas se desenvolvem no sonho que destaco a seguir, no qual uma menina ava-guarani de 11 anos explica como aprendeu um dos cantos executados no coral em que ela participa. “Um dia eu tive um sonho que eu nunca tinha sonhado, era um chamo’i cantando para mim e falou assim: Não deixe os seus colegas porque um dia eles vão ser importantes como se fosse a sua família de verdade. Quando eu acordei, falei pro meu tio, e até hoje nós cantamos ele (o canto) no coral”.
Nesses termos, torna-se possível a compreensão de que os sonhos são reconhecidos pelos Ava-guarani como fontes legítimas de transmissão de conhecimento, recebendo o mesmo valor que qualquer outra forma de saber, podendo ser acessados por qualquer pessoa que assim o desejar, incluindo as crianças, que se relacionam com a experiência onírica de forma própria e autônoma.
Assim, apresento alguns sonhos e suas significações que foram citados pelas crianças durante uma oficina lá conduzida, com o intuito de demonstrar que as chaves de interpretação dos sonhos não são de domínio apenas dos adultos, e que além disto, as crianças me apontaram vários sentidos para seus quadros oníricos, que não me foram apontadas durante as conversas com os adultos. São exemplos destas interpretações: sonhos com arma de fogo, que significam que algum amigo irá se mudar; sonho com tigres que significam que alguma criança poderá ficar doente; “sonho com alguma menina que não gosta de mim”, que significa que “a menina gosta muito de mim”; sonhos com “eclipse” que significam “sangue”; sonhar em “ser flagrado fazendo as necessidades”, que significa que a pessoa poderá passar uma vergonha em público; sonhar com ônibus pode significar doença; sonhos com avião significam que alguém irá falar coisas boas; sonhos com casca de banana, que significam doença e morte; e sonhos com jacaré, que são interpretados como problemas com a polícia.
Nesse sentido, Clarice Cohn (2009, p34) destaca que as diferenças entre o conhecimento dos adultos e das crianças não é quantitativa, mas qualitativa, de modo que a “criança não sabe menos que os adultos, mas sabe outra coisa”. Portanto, minha intenção ao apresentar estas chaves de interpretações não é reificar o significado de cada quadro onírico, mas destacar que, apesar das crianças compartilharem da compreensão dada pelos adultos aos seus sonhos, elas também criam as suas próprias compreensões e interpretações, de modo que possa existir também um universo onírico das crianças AvaRevista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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guarani.
Considerações finais As considerações apresentadas sobre a maneira como os Ava-guarani falam dos seus sonhos e sobre a maneira como as crianças aprendem a seu relacionar com essa experiência, vão ao encontro do que propõe Cohn (2009) ao afirmar que a diferença entre o conhecimento dos adultos e das crianças não é quantitativa, mais qualitativa, de modo que a “criança não sabe menos que os adultos, mas sabe outra coisa”. Portanto, levando a sério o que as crianças têm a falar sobre os seus sonhos, ressalta-se a importância de se atentar para a participação ativa das crianças na vida social e na construção de sentidos a partir da sua vivência e interação, contribuindo com os estudos da chamada antropologia da infância, que possibilitam entender a infância como um mundo relativamente autônomo que tem validade por si, nas experiências e vivências das crianças, e na forma como percebem o mundo em que vivem. (COHN, 2000: 196). Estes estudos valorizam o importante papel de agência às crianças, sendo o ambiente infantil capaz de repercutir nas relações do cotidiano da vida adulta, além de se organizar por dinâmicas e regras próprias que definem o universo infantil como exclusivo e autorregulado, em lugar de um reflexo do mundo adulto, como era compreendido.
A partir da compreensão dos sonhos, observa-se que as crianças possuem maneiras especificas de enxergar sua sociedade, que é expressa pelas suas atitudes diante dos adultos e de outras crianças e que revelam importantes facetas da cultura em que estão inseridas. Nesse contexto, as crianças não são percebidas como meras reprodutoras da vida adulta, mas como relevantes agentes sociais, ou seja, seres sociais plenos (CODONHO, 2009). Os sonhos para os Ava-guarani são experiências coletivas e compartilhadas, assim, busca-se demonstrar que a transmissão de saberes relativos aos sonhos ocorre já na infância, ao passo que são compartilhados no fogo familiar, com outras pessoas da aldeia, e durante as dinâmicas religiosas, ou seja, a experiência onírica é uma modalidade de conhecimento que, de acordo com Barth (2000), é gerenciado na interação social, portanto, produz formas culturais e reproduz a vida social. Diferente do que ocorre com algumas formas de conhecimento disponíveis apenas aos envolvidos, como nos processos xamânicos, Santos-Granero (2006) explica que os sonhos podem ser acessados por qualquer pessoa, seja ela homem ou mulher, velha ou jovem, o que se dá em decorrência do seu caráter de compartilhamento que contribui também para que o conjunto das técnicas e saberes oníricos estejam constantemente em construção, uma vez que trata-se de um conhecimento dinâmico capaz de reestruturar-
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se, como ocorre com algumas interpretações oníricas, que podem mudar de significados à medida que são provados. Busquei destacar, principalmente, que as dinâmicas de compartilhamento dos sonhos são essenciais na construção das relações e manutenção da coletividade Ava-guarani, na tomada de decisões, na construção de papéis sociais e na vivência infantil. Finalmente, e me utilizando das palavras de Vargas (2007: 313) “os indivíduos recriam, atualizam e transformam ordenadamente a sua cultura enquanto dormem”, é o que acontece entre os Ava-guarani do Ocoy, para os quais os sonhos possibilitam uma conexão entre as viagens da alma e o mundo da vigília, de modo que também é capaz de conectar as vivências de mudo e os saberes de adultos e crianças, numa vasta gama de técnicas, interpretações e conhecimentos adquiridos durante os sonhos.
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Aceito em 04 de dezembro de 2018.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 140-161.
Situações de aprendizagem das crianças Baniwa na comunidade de Vista Alegre, noroeste amazônico1 Amanda Rodrigues Marqui Doutora em Antropologia Socia pela Universidade Federal de São Carlos armarqui@gmail.com
Resumo Este artigo descreve as experiências de aprendizado das crianças Baniwa da comunidade de Vista Alegre no rio Cuiari, na TI Alto Rio Negro e procura refletir sobre os modos de transmissão e produção de conhecimentos infantis. A partir da etnografia do cotidiano e das situações de aprendizados das crianças em sua comunidade, pretende-se discutir o saber-fazer (paanhekaro padzeekataka) e os aconselhamentos entre os Baniwa. Tendo em vista que a noção de infância deve considerar o seu contexto sociocultural (Cohn 2005, 2013), o artigo pretende observar os espaços e as atividades das crianças na comunidade de Vista Alegre para esboçar questões sobre os processos de transmissão e produção de conhecimento entre os Baniwa. Palavras-chave: Baniwa; crianças indígenas; ensino e aprendizagem; educação indígena Abstract This text describes the learning experiences of the children from the Vista Alegre community on the Cuiari River in the Indigenous Territory of the upper Negro River, reflecting on the modes of transmission and production of children’s knowledge. Based on an ethnography of everyday life and on learning situations of the children in their community, it analyses the know-how (paanhekaro padzeekataka) and counselling among the Baniwa. Bearing in mind that the notion of childhood should consider its sociocultural context (Cohn 2005,
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Este artigo é uma das reflexões da minha pesquisa de doutorado que contou com o financiamento da CAPES por meio do projeto “Observatório da Educação Escolar Indígena” da UFSCar e foi orientado pela Profa. Clarice Cohn.
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2013), the paper raises questions about the processes of transmission and production of baniwa knowledge from the observation of the spaces and activities of the children from the Vista Alegre community. Keywords: Baniwa; Indigenous children; teaching and learning; Indigenous education
Introdução A partir da etnografia das relações entre infância, escola e religião na comunidade de Vista Alegre no rio Cuiari, TI Alto Rio Negro, (Marqui 2017), serão descritas experiências de aprendizado das crianças Baniwa para esboçar algumas considerações sobre os modos de transmissão e produção de conhecimentos infantis. Este artigo descreve situações cotidianas das crianças baniwa como as brincadeiras nas águas, idas para as roças e a circulação nos pátios domésticos para demonstrar as práticas do saberfazer e dos aconselhamentos na comunidade de Vista Alegre no rio Cuiari. Tais questões buscam elucidar as relações entre a infância e os processos de transmissão e produção de conhecimentos da pessoa Baniwa. No período de campo em Vista Alegre foram observadas algumas situações cotidianas de aconselhamentos entre mães e filhas nas roças e nas casas de farinha. As descrições dos aconselhamentos desse artigo buscam dialogar com a apresentação de Custodio Baniwa2, realizada no Seminário de Infâncias/Crianças Indígenas3. É válido
salientar que diversas etnografias do Alto Rio Negro demonstram o rendimento de se investigar as transformações na produção de pessoas, coisas e de conhecimentos (C. Hugh-Jones 1979; S. Hugh-Jones 1979; F. Cabalzar 2010; T. Oliveira 2015; M. Oliveira 2016). Além dessas considerações, tomo como referência a discussão do corpo entre os ameríndios para a construção da pessoa (Viveiros de Castro, Damatta e Seeger 1979) e a noção de saber-fazer nas etnografias de crianças/infâncias indígenas (Cohn 2000; Tassinari 2007; R. Silva 2013). Em baniwa há possíveis traduções para a noção de saber-fazer. De acordo com os principais interlocutores ao longo da pesquisa de campo na comunidade de Vista Alegre, paanhekaro padzeekataka4, designa saber fazer algo/alguma coisa, o que demonstra que esta noção também relaciona-se com a comprovação dos conhecimentos apreendidos. Segundo Diniz (2011:96), que realizou sua pesquisa de mestrado na escola
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Pedagogo formado pela UFSCar e participante do Observatório da Educação Escolar Indígena/UFSCar. Seminário realizado nos dias 18 a 23 de agosto de 2014 pelo Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI) na UFSCar. No dicionário de Ramirez (2001) pa é equivalente a voz impessoal no português, aanhe- verbo-ka: saber, karo é o sufixo verbal de finalidade e dzeekáta: fazer, fabricar, construir.
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Situações de aprendizagem das crianças Baniwa na comunidade Vista Alegre
Pamáali5 , a expressão para o saber-fazer é paanhe-dzeekataka – ela assume o hífen pois entende que o sentido da expressão é de que o aprendizado somente é comprovado se a pessoa executa o que aprendeu, se utiliza para seu benefício e/ou dos seus parentes.
O artigo está dividido em duas partes. A primeira é a descrição etnográfica dos espaços e das atividades das crianças baniwa na comunidade de Vista Alegre e, em seguida, serão apontadas algumas cenas sobre os aconselhamentos.
1. Onde estão as crianças e o que elas fazem?6 1.1.Nas águas
São nas águas que as crianças baniwa descobrem e aprendem várias habilidades importantes em seu cotidiano7. Os banhos nos rios são frequentes e motivo de alegria e prazer entre as crianças da comunidade de Vista Alegre. Enquanto estive com elas, via-as banhando em grupos de primos ou irmãos ao longo do dia em certos lugares na comunidade, assim como próximo ao porto familiar. O primeiro banho do dia geralmente era tomado com o pai, por volta das seis da manhã, porque a mãe já estava acordada preparando o mingau. O último banho do dia era no final da tarde por volta das dezoito horas, antes da refeição coletiva no centro comunitário, e acontecia frequentemente com a mãe. Para as crianças os banhos são momentos oportunos para as brincadeiras e também uma forma de aprendizado da disciplina de cuidado e limpeza do corpo baniwa. De acordo com Garnelo (2003:78), as principais regras de higiene entre os Baniwa são os banhos, “que devem ser tomados ao acordar, após a relação sexual, antes do preparo das refeições (mulheres), quando a pessoa estiver suada e fundamentalmente antes se alimentar”. As regras de higiene corporal explicitam as tensões entre humanos e animais-espíritos como os yoopinai 8 (idem). 5
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Projeto piloto de educação escolar diferenciada, intercultural e específica no Alto Rio Negro. (https:// pamaali.wordpress.com/ acesso: 31/05/2017) Neste artigo não descrevo a escola Moliweni frequentada pelas crianças baniwa da comunidade de Vista Alegre pois pretendo discutir as experiências de aprendizado no contexto não-escolar. Para um debate sobre a escola Moliweni cf. o quarto capítulo de minha tese (Marqui 2017). O trabalho de Mead (1930) sobre a infância manus em Samoa foi pioneiro na observação e análise dos processos educativos das crianças durante os momentos em que estavam nas águas. Seu objetivo era compreender como as crianças aprendem as habilidades físicas para sobrevivência em um vilarejo cercado pelo mar. Há etnografias sobre infâncias indígenas que descrevem as brincadeiras e atividades das crianças nas águas (cf. Cohn 2000, Miranda 2014, Pereira 2013). “Os yoopinai são espíritos da mata, da água e do ar; são considerados ‘donos’ dos rios, dos animais e das florestas, sendo, por isso, agressores potenciais dos humanos que, para sobreviver, precisam predar esses recursos. Seus ataques podem causar várias doenças” (Garnelo 2003:67). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Há inúmeras plantas para limpeza e purificação corporal - molipi, padzoma ou wiito9 -, que começam a ser utilizadas quando ainda se é jovem, walhipali, que é exatamente o período em que as pessoas demonstram maior preocupação em cuidar de si, do seu corpo e de sua aparência (Diniz 2011:103). As duas moças que moravam na casa onde me hospedei possuíam diversos produtos de beleza, como cremes, óleos, esmaltes e batons; após retornarem do banho no rio, permaneciam um bom tempo se arrumando no quarto e, quando saíam, estavam muito bem arrumadas e perfumadas. Aos sábados era comum encontrar as moças da comunidade se cuidando, sentadas juntas e pintando unhas, tirando sobrancelhas, costurando e arrumando alguma roupa. No culto aos domingos10, notava-se um cuidado ainda maior na apresentação pessoal e nos trajes usados. As mulheres usavam vestidos ou saias, presilhas ou adereços nos cabelos e alguns brincos e os homens vestiam calças e camisas ou camisetas mais formais e usavam sapatos e tênis. As crianças também chegavam à igreja arrumadas mas podiam se sujar e não eram advertidas. Nesse sentido, as moças arrumadas, com cabelos lavados, adornadas com bijuterias e usando suas melhores roupas e sandálias demonstravam preocupação com a aparência e os cuidados com a higiene do corpo perante a comunidade.
Há dois aspectos pertinentes no que diz respeito aos banhos das crianças que podem ser comparados com os jovens e adultos: elas não seguem as delimitações de gênero11 e as crianças pequenas tomam banho sem roupas, o que ocorre somente com os mais velhos, que fazem isso em locais reservados ou quando estão sozinhos. As mulheres mais velhas podem banhar-se sem blusa. O banho matutino feminino acontece antes do alvorecer, por volta das cinco horas da manhã, e no retorno as mulheres trazem consigo a água para o preparo do mingau. Depois de voltarem da roça, era comum também banharem-se e, no final do dia havia o último banho antes do caribé12. As mulheres solteiras tomavam banhos 9
Diniz (2011) descreve a forma de uso das plantas molipi, padzoma e wiito para a retirada dos pelos faciais e também para lavagem estomacal. De acordo com a pesquisadora, “esses cuidados são entendidos como procedimentos de limpeza externa e interna no corpo, servindo alegadamente para retardar a velhice. Via de regra são partes integrantes de um grande programa de disciplina de impulsos sexuais que são característicos do processo de ensinamento da juventude” (Diniz 2011: 105-106). A pesquisadora faz a descrição sobre os cuidados e a purificação corporal entre os Baniwa (idem: 10811). 10 No final da década de 1940 a missionária Sophia Muller, da Missão Novas Tribos, chegou às comunidades baniwa da região do Médio rio Içana e iniciou o processo (auto)conversão indígena (Xavier 2013). Atualmente os Baniwa se dividem entre católicos – que estão nas comunidades próximas à foz do rio e em algumas comunidades do médio rio Içana e rio Ayari – e evangélicos – nas comunidades do médio e alto rio Içana e do rio Ayari. 11 Muller notou a separação de gênero durante os banhos, segundo ela “Os homens e meninos se banhavam atrás das rochas, separados das mulheres – isto era algo importante em seu código de ética” (2003:33). Demais etnografias também apontaram as restrições entre os gêneros durante o banho (cf. Garnelo 2003; Diniz 2011). 12 Refeição coletiva realizada no centro comunitário. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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com suas mães, irmãs e primas que residiam na mesma comunidade13 e as casadas tomam banho com seus filhos. Os homens tomavam banhos individuais no cotidiano, exceto pela manhã, quando levavam as crianças para o rio, e aos domingos após os jogos de futebol em que os times iam juntos para a beira do rio.
Quando havia merenda escolar no centro comunitário, as crianças mal terminavam de serem servidas e já saíam rapidamente para porto principal da comunidade, carregando seus pratos e comendo durante o caminho. Neste banho após a escola era comum que houvesse crianças de toda a comunidade14, era um momento de diversão e brincadeira.
As crianças ficavam em pé e seguravam os pratos com as mãos15, quando terminavam de se alimentar lavavam os pratos que depois levariam para suas casas. As crianças permaneciam por muito tempo nadando e brincando, poderiam também brincar com as canoas próximas do porto. As principais brincadeiras eram disputas a nado e com canoa, pega-pega, pulos acrobáticos e músculo16. As crianças demonstravam grande habilidade em nadar, remar contra a correnteza e permanecer por muito tempo debaixo d’água sem respirar. Em uma das viagens durante o a pesquisa de campo, pude observar uma experiência
de aprendizado entre pai e filho e transcrevo as anotações do caderno de campo a seguir:
Estávamos (eu, Juá, Ani, Kelly e Graci) voltando da comemoração do dia das crianças na comunidade São José no bote de motor 15hp de João Claudio quando começa a chover. João leva o bote para a beira onde duas pedras grandes formavam uma pequena entrada que nos abrigou da chuva. Esperamos a chuva passar e voltamos à viagem. João chama Juá para sentar ao seu lado (próximo ao motor) e mostra para ele como segurar a barra manual da direção (pegando sua mão e colocando na barra - João segue segurando também). Juá segura a barra e imita a postura corporal do seu pai enquanto está dirigindo o motor (diferente daquele quando Juá estava sentado ao nosso lado). Seu pai vê o menino e sorri. Deixa Juá pilotar o bote no trecho tranquilo do rio enquanto as meninas (Ani e Kelly), Graci e eu vamos olhando o pequeno motorista. (Caderno de campo 14/10/12).
13 Após o casamento as mulheres mudam-se para as comunidades dos maridos. Esta é a regra ideal de casamento entre a maioria dos povos alto-rionegrinos. Cf. C. Hugh-Jones (1979), Garnelo (2003); Lasmar (2005), M. Oliveira (2016). 14 Isto sugere uma particularidade da escola no uso dos espaços comunitários. 15 As crianças apenas se alimentavam no rio nesta situação da merenda distribuída no centro comunitário. 16 Havia um menino que sempre que me encontrava na beira do rio, dispunha seus braços de forma a aparentar sua força e me dizia: “MÚS-CU-LO”, em seguida dava um pulo acrobático na água. Essa prática virou uma brincadeira entre os demais meninos que o viam. No final do trabalho de campo era frequente os meninos ficarem em fila e repetir a palavra célebre para pular na água. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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João chama seu filho e indica que irá ensiná-lo a ser motorista, pega sua mão e coloca na barra de direção do motor. O menino observa atentamente e reproduz os movimentos do pai. João aprecia a iniciativa de seu filho, deixando-o conduzir o bote durante um trecho do rio.
Em relação à aprendizagem do manuseio do motor de popa é importante ressaltar que esses motores foram adquiridos recentemente nas comunidades baniwa do rio Içana e devido ao alto custo dos motores de popa e do bote de alumínio, e a maioria das famílias possui rabetas, motores de baixa potência e econômicos, de simples manuseio e manutenção, que são acoplados nas canoas. Os motores de popa são usados, exclusivamente, pelos homens adultos (nunca observei uma mulher pilotando), e as rabetas são utilizadas por todos, mulheres, jovens e crianças maiores. Quando os homens vão para os arredores da comunidade podem usar rabetas ou remos. Entretanto, em viagens longas como, por exemplo, para uma outra comunidade e/ou para São Gabriel da Cachoeira realizadas com rabetas são somente os homens que pilotam.
1.2. Na comunidade
As crianças baniwa da comunidade de Vista Alegre circulavam com seus irmãos ou em grupos de primos agnáticos que residiam próximos17 para irem à escola, igreja, centro comunitário, rio e igarapé ou para jogar bola, brincar, pescar, etc. Quando as crianças não estavam andando ou jogando bola, permaneciam em seus pátios domésticos (pantti pokodee ou pantti nomakoa) com seus primos ou irmãos brincando (patopikataka) ou fazendo alguma atividade. Era incomum as crianças ficarem sozinhas em qualquer espaço da comunidade.
Em nenhum momento durante o campo foi notado que crianças de diferentes pátios domésticos brincassem junto ou, tampouco, que esses espaços fossem usados pelos jovens e adultos para encontros ou conversas casuais. Dentro das casas as crianças permaneciam na “sala” (cômodo à frente) onde havia uma mesa que poderia ser usada para realizar as tarefas escolares e receber visitas (geralmente seus primos), na cozinha, onde faziam as refeições separadas dos adultos (elas comiam antes dos adultos) e nos quartos, que podiam ser divididos entre os irmãos maiores ou, no caso das crianças menores, ser compartilhado com os pais. 17 No momento em que um filho casa é escolhido o local onde será construída a sua nova moradia, geralmente ao lado ou bem próximo à casa dos pais. Quando uma família muda para outra comunidade a casa será construída nos espaços novos da comunidade, próxima às famílias com quem detenham algum tipo de relação. E, nos poucos casos em que as mulheres permanecem junto com seus familiares, sua casa também será construída próxima da casa dos pais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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As brincadeiras nos pátios domésticos eram principalmente o futebol e carrinho (que podia ser feito com uma latinha e barbante ou comprados da cidade) entre os meninos e bonecas ou bichos de pelúcia entre as meninas. Nesses espaços as crianças brincavam e exibiam seus animais de criação18, geralmente filhotes de tatu, anta, arara, paca e cotia encontrados por suas mães e pais nas roças ou durante as caçarias. As crianças davam comida, apertavam e puxavam os animais, que no seu ponto de vista era um modo de cuidar, embora os filhotes logo viessem a falecer. Era comum também ver breves expedições de meninos com pequenas zarabatanas e pequenas flechas sem veneno para pegar passarinhos no topo das árvores da comunidade. Suas tentativas geralmente assustavam os pássaros que voavam rapidamente, então os meninos corriam para outras árvores e tentavam novamente. As primeiras tentativas de caçaria pelos meninos são feitas em pares, que podem ser irmãos ou primos dentro da comunidade. É importante salientar que durante a infância as mães estão mais presentes na convivência diária, visto que os pais permanecem a maior parte do dia fora da comunidade nas pescarias e caçarias. As crianças gostavam muito de jogar futebol. Os jogos são frequentes no final do dia durante a semana e aos domingos à tarde19. Aos domingos as partidas são programas para
toda a comunidade, tanto para quem joga quanto para quem assiste e distribui merenda, prática comum nas comunidades no decorrer dos jogos dominicais, torneios esportivos e eventos escolares. Para esses jogos são colocadas redes nas traves do gol e há uma equipe de arbitragem e narração que utiliza caixas de som e microfone para transmitir aos espectadores os detalhes da partida20. Há dois campos de futebol na comunidade de Vista Alegre, um campo maior com gramado para o futebol de campo, denominado estádio de futebol, e um pequeno campo, quadra, de areia para o futsal e vôlei21. Essa organização do campo de futebol foi notada nas comunidades baniwa do médio Içana onde estive, e algumas delas possuem arquibancadas coberta com palhas de caraná feitas pela própria comunidade.
As crianças utilizam os dois campos e, dependendo da quantidade de pessoas,
18 Os cachorros da aldeia não tinham muita estima entre as crianças, somente quando havia uma ninhada os filhotes eram motivos de brincadeira e curiosidade. Os gatos são bem menos frequentes nas comunidades baniwa do Médio Içana. Sobre os animais de criação entre povos indígenas cf. Vander Velden (2010). 19 O futebol durante o domingo à tarde é frequente nas comunidades baniwa por onde estive. Os jogos acontecem entre crianças, jovens e adultos, mulheres e homens. 20 Xavier (2013:410-411) observou o mesmo entre os koripako durante as partidas de futebol aos domingos. As narrações dos jogos são geralmente feitas em português e com entonação semelhante às transmissões televisivas. A narração em si é um espetáculo à parte das partidas de futebol. 21 Os jogos de vôlei são menos frequentes na comunidade de Vista Alegre. Em outras comunidades, como em Tunuí, diariamente os jovens jogam vôlei. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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joga-se na quadra ou no estádio. Os times costumam ser mistos, meninos e meninas, e de idades variadas, crianças pequenas, crianças maiores e jovens e um árbitro22. Nos jogos que ocorrem domingo à tarde, as crianças chegam mais cedo caso queiram utilizar o campo de futebol, pois logo haverá o jogo dos adultos. Quando os homens chegam ao campo, as crianças continuam seu jogo na quadra de futsal, e como o espaço é menor os times são reorganizados para que todos possam jogar. As crianças também brincam de futebol em seus espaços domésticos, porém este é jogado de modo mais descontraído, apenas uma pessoa fica no gol que é demarcado pelas sandálias e as demais formam dois times, geralmente meninos e meninas. A duração dos jogos é intermitente, as crianças podem jogar até se cansarem ou escolherem fazer outra atividade. Algumas etnografias sobre a infância indígena indicam a pertinência na observação da circulação das crianças nos espaços da aldeia (Cohn 2000; Codonho 2007; Mantovanelli 2011; Miranda 2014). As análises de Codonho e Miranda serão referência à reflexão sobre a circulação das crianças baniwa pelos espaços da comunidade de Vista Alegre. Sugiro que as crianças são donas, iminali, de seus pátios domésticos (pantti pokodee ou pantti nomakoa) e que estes locais propiciem experiências de aprendizado sobre o domínio do uso dos diversos espaços da comunidade. Levando em consideração as categorias de hierarquia, ancestralidade e reciprocidade existentes na ocupação tradicional do território baniwa e as prerrogativas de ocupação e uso dos espaços na comunidade como, por exemplo, a construção de novas casas, a abertura de novas roças, os caminhos23 e o porto familiar,
considero que os pátios domésticos sejam um modo das crianças aprenderem essas noções. De acordo com relatos de algumas mães, os pais costumam orientar seus filhos para que brinquem somente em seus pátios domésticos e que as crianças são donas de suas brincadeiras, além disso as mães podem observar os comportamentos de seus filhos. Portanto, uma criança de um pátio não ia ao outro para brincar, somente se fosse chamada (o que, de fato, não acontecia) e que aquele espaço era restrito as crianças residentes das casas próximas que são primos agnáticos. Na etnografia sobre as crianças Galibi-Marworno, Codonho (2007) descreve os grupos de convivência, denominados hãs, em que as crianças compartilham brincadeiras e situações de aprendizagem. As vivências das crianças entre seus pares são experiências contínuas de ensino e aprendizagem, assim, a ideia de transmissão horizontal de conhecimento é utilizada como ponto de partida para compreensão dessas situações de
22 Nos jogos infantis não há narradores. 23 Caminhos, inipo, designam os traçados/ que existem na comunidade e as rotas dos rios. Nas comunidades baniwa há diversos caminhos com finalidades específicas, como para ir à roça, à escola, para as necessidades fisiológicas, nos rios os caminhos orientam a navegação. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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produção de conhecimento por meio dos grupos de convivência, hãs (Codonho 2007:7274). A pesquisa com as crianças Galibi-Marworno demonstra outros processos de produção de conhecimento para além daqueles em que adultos ou velhos ensinam as crianças, e, assim se desfazer da ideia de que as crianças são tábulas rasas (Durkheim 1978), seres passivos ao processo educacional. Na etnografia de Miranda (2014) sobre as crianças Assurini, há um capítulo que analisa os terreiros das crianças, kunumi rukara24. Esses terreiros localizam-se próximos às casas das famílias e estão ligados por relações de parentesco. Os kunumi rukara são espaços genuinamente infantis onde as crianças permanecem mais tempo e circulam livremente sob os olhares de seus pais e outros parentes. Miranda (2014:150) apreende a circulação das crianças em seus terreiros a partir de desenhos espaciais de cada grupo infantil, fundamentando-os na observação onde as crianças andavam ou evitavam andar, comiam, brincavam e/ou brigavam, e assim fornece um mapa dos terreiros das crianças Assurini. Para a pesquisadora: “O terreiro de criança pressupõe uma relação de pertencimento e serve como uma referência espacial que delimita a mobilidade e a socialidade da criança. O terreiro é da criança e vice-versa, a criança é do terreiro”. (Miranda 2014: 147)
Outro ponto interessante das etnografias de Codonho (2007) e Miranda (2014) é a descrição da rivalidade entre as crianças de diferentes grupos ou terreiros, que não foi notado entre as crianças baniwa de Vista Alegre. As crianças de outros pátios domésticos ficam juntas somente nos momentos quando jogam bola no estádio de futebol e nos banhos após a merenda distribuída no centro comunitário e nessas situações não observei nenhum tipo de desentendimento ou brigas entre elas.
1.3. Nas roças e nas casas de farinha
Em uma manhã, Alzenira me convidou para conhecer a sua roça. Descemos para a beira do igarapé e sua filha Andreia nos acompanhou, subimos na canoa e fomos para a roça. Quando chegamos desembarcamos e ambas, mãe e filha, pegaram seus aturás vazios e seguimos pelo caminho. Alzenira fala para tomar cuidado pois o caminho não estava muito bom
24 De acordo com Miranda (2014: 147) “Kunumi rukara é uma expressão que pode ser dividida em kunumi = criança e ukara = terreiro + o r de relativo, traduzido como “de”, portanto, terreiro de criança ou terreiros de crianças. (...). Mas o “r” nos dá a relação de cada criança com seu terreiro de origem e de um ponto de vista específico; o da criança”. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Amanda Rodrigues Marqui devido à abertura de novas roças feita pelos homens há uns dias atrás25. Ao chegarem, mãe e filha se dirigem à roça de mandioca. Alzenira indica à Andreia quais mandiocas ela poderia arrancar, ambas deixam o aturá próximo e vão colocando as mandiocas nele. Após coletarem as mandiocas, Alzenira caminha pela roça para verificar se alguma anta ou cotia tinham passado por ali, enquanto isso colhe jerimum e cubio. Quando se aproxima das canas-de-açúcar, sua filha pede para ela tirar uma para comer, sua mãe atende o pedido e mostra para ela como que se planta, pega um pedaço do gomo corta-o com seu facão e joga na terra, a menina então imita o ato de sua mãe e sorri. Prosseguimos a caminhada na roça e ela me diz, “vou te mostrar o alho indígena”, vamos para outro espaço onde há diversas ervas e ela me indica qual é o alho indígena, retira um pouco nas mãos e diz “cheire”, fiquei surpresa pois o cheiro é bem parecido com o alho. Ao se aproximar da roça de cará ela me explica a diversidade deles, branco e roxo, e comenta que em Vista Alegre apenas ela e sua mãe tem o cará roxo que foi trazido por suas tias que moram em comunidades na Colômbia. Em seguida ela indica onde estão suas pimentas e nos aproximamos. Alzenira inicia uma longa fala sobre suas pimentas, primeiro apresenta o tempo certo, na lua nova para plantação, comenta sobre o tratamento que deve ser dado para elas crescerem fortes e bonitas, indica as variedades de tamanhos, formas, ardência - relacionadas aos ciclos sazonais e à sua respectiva colheita. Enquanto fala sobre a colheita tira umas pimentas e reserva algumas delas, com uma faca abre e separa as sementes colocando dentro de um embrulho feito com folha de jerimum e diz: “Essas são para ti”. Guarda as demais pimentas em outro embrulho de jerimum e partimos. (Caderno de campo 21/11/12) 26
As meninas acompanhavam suas mães à roça desde pequenas, elas eram levadas em tipóias caso fossem de colo e aquelas que já andavam seguiam suas mães no caminho, inipo, carregando os pequenos aturás. As mulheres tinham ao menos três roças, kiniki, nos arredores da comunidade e levavam as crianças pequenas nas mais próximas. Elas iam diariamente às suas roças após o mingau da manhã. As mulheres baniwa tinham um apreço por sua roça de mandioca e por seu quadrado de pimenta27, que demandavam uma série de cuidados, mas também proporcionavam reconhecimentos e prestígios na comunidade. A rotina de atividades era capinar, limpar o terreno, perceber se algum animal estava comendo as plantas, observar os frutos que poderiam ser colhidos e preparar a
25 Notei que sua filha caminhava facilmente entre os grandes troncos derrubados sobre os quais eu tinha sido advertida. 26 Nesse relato, as considerações da mãe à filha eram feitas em baniwa e depois traduzidos para mim. Quando Alzenira se dirigia diretamente a mim falava em português. 27 Espaço destinado na roça à plantação das pimentas, geralmente ele era cercado com madeira. As mulheres também têm um quintal de pimenta próximo às suas casas, que podia ser feito com canoas antigas - que não eram mais usadas - ou plantadas diretamente no chão. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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terra segundo os ciclos sazonais, como a abertura de uma nova roça ou novos plantios com a coivara28. As meninas ajudavam suas mães verificando se havia alguma cotia, tiravam mandiocas e outros frutos colocando em seus aturás, recolhiam as pimentas e enrolavam em folhas.
No retorno, mãe e filha(s) tinham em seus aturás banana, abacaxi, cana, cubio, cará, batata, feijão e mandioca. Já no porto, as mandiocas eram raspadas e colocadas em submersão para que a massa virasse puba. Depois dessa tarefa, mães e filhas banhavamse no rio e retornavam para casa, deixando os frutos que iriam amadurecer na casa de farinha e aqueles que logo seriam consumidos na cozinha.
As meninas também permaneciam com suas mães na cozinha e na casa de farinha, auxiliando-as nas tarefas culinárias e no processamento da mandioca. Por volta dos seis anos as meninas começavam a ajudar na produção da farinha e de beiju. Elas tiravam a puba dos sacos na beira do rio para levar à casa de farinha, onde seria ralada. A massa ralada era colocada no tipiti para retirada da manicuera e as meninas sentavam ou pressionavam o pau (hipoakottina) para esticar o tipiti e assim retirar o líquido29. Essa ação era feita diversas vezes até que a massa estivesse bem seca e não saísse mais nada do tipiti. Em seguida a massa era colocada em uma bacia para ser peneirada pelas meninas e, enquanto isso, a mãe acendia o fogo do forno de farinha. A massa grossa retida na peneira era usada primeiramente no forno quente para fazer uma espécie de forro para os beijus ou farinha que seriam torrados na sequência, essa massa grossa era colocada em um canto do forno com uma vassourinha e depois retirada. Quando o forno estava quente o suficiente a farinha era colocada e mexida rapidamente com uma pequena pá (kolimapa) para que cozinhasse por igual, no momento em que se aproximava o ponto de torra da farinha a mãe chamava sua filha para auxiliá-la a mexer para garantir que o cozimento ficasse uniforme. A produção do beiju requer muita prática e técnica das mulheres baniwa. A massa já peneirada era colocada no forno e distribuída igualmente em todo o seu diâmetro, feito com o kolimapa. A mulher observava a fumaça que saía da massa e as beiradas que começavam a desgrudar do forno e, com o auxílio de dois abanos (kadoitsipa) virava o beiju sem quebrá-lo, por isso a massa não podia ser grossa. Depois de cozido o beiju era retorado com o abano e as meninas o levavam para secar nos jiraus da comunidade30. Se
28 Conjunto de galhos e ramagens remanescentes de queimada na roça, e que se queima para limpar o terreno ao mesmo tempo que o aduba com as cinzas (Dicionário Aulete Caldas online). 29 Quando as meninas ou mulheres sentam ou pressionam o pau/barra do tipiti, não devem comer nada pois quando ficar velha e tomar caxiri vai defecar sem querer (Garnelo 2008: 97). O tipiti representa a feminilidade e o pau a masculinidade; ele é o marido do tipiti (idem). 30 Esses jiraus também serviam para estender as roupas lavadas quando não estavam sendo utilizados.
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havia muito sol, o beiju secava em apenas um dia, mas se o tempo não estivesse firme, ao primeiro sinal de chuva as meninas corriam para os jiraus. Depois de seco ele era guardado em grandes baldes ou latas na cozinha e no quarto da dispensa.
Caso alguma mãe não estivesse na comunidade, suas filhas maiores executavam todo o processamento da mandioca, desde a coleta na roça, a raspagem e a submersão no rio para tornar-se a puba e depois prosseguir na casa de farinha, onde era ralada, colocada no tipiti, peneirada e torrada. Como as moças estavam aprendendo, seus beijus eram geralmente mais grossos que o das mulheres adultas e geralmente quebravam durante a virada no forno. Esses beijus eram separados e usados para fazer o caribé, bebida à base de beiju e água. Também foi observado em campo que a produção de tapioca, tanto a farinha quanto o beiju, era solicitada pelas crianças que poderiam inclusive realizar sozinhas com a observação e comentários de suas mães. As meninas que queriam fazer tapioca deixavam o líquido extraído do tipiti decantar, separando a manicuera da goma que ficaria abaixo na bacia. Depois o líquido era transferido para outra vasilha e acrescentava-se água para que decantasse novamente. Quando viam que a goma estava ao fundo, retiravam a água e colocavam a bacia no sol para secar e depois peneiravam (ou separavam com as mãos), o que se tornava a farinha de tapioca, consumida em mingaus e em vinhos31, principalmente de açaí.
Esse artigo enfatiza as experiências de aprendizados das meninas devido aos convites e à minha circulação nas roças e nas casas de farinha32. As meninas permaneciam
bastante tempo com suas mães, ajudando nas atividades cotidianas como nas roças, no processamento da mandioca, na produção de farinha, beiju e tapioca, no preparo dos alimentos e das bebidas na cozinha, cuidando do fogo e buscando água no rio para o uso doméstico. As mães observavam e orientavam suas filhas, dando sugestões e indicando como as tarefas deveriam ser feitas. Durante o preparo dos alimentos, a mãe orientava a filha sobre todos os cuidados necessários, principalmente com os peixes e animais de caça a fim de que o consumo fosse apropriado. Essas regras e condutas referentes à limpeza e ao cozimento dos peixes e caça condizem a uma série de cuidados que os Baniwa detêm nas relações com os não-humanos. É imprescindível a limpeza do corpo e das vasilhas
31 Os vinhos são bebidas não-alcóolicas, com base de água, farinha e frutas. 32 Silva (2011) investigou as formas de circulação e a transmissão de conhecimento entre as crianças Xacriabá. O recorte etnográfico, os espaços de circulação dos meninos acima dos oito anos da pesquisa relacionam-se ao fato dele ser homem e das condições de campo, no qual as crianças pequenas permanecem em suas casas sob responsabilidade do grupo de mulheres. Este impasse inicial permitiu que o pesquisador percorresse os espaços da comunidade com os meninos maiores, que já não estavam submetidos ao convívio feminino. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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após o uso para que não haja nenhum tipo de cheiro (pitiú) que possa atrair os yoopinai e causar doenças. Além dos cuidados com a limpeza, as mães também aconselhavam sua(s) filha(s) sobre a distribuição da comida familiar no centro comunitário, pois esse é um modo de compartilhar os alimentos cultivados na roça, demonstrando o seu trabalho (-deenhi) e evitar as fofocas sobre a preguiça (iinódali) e a sovinice (máponi).
As meninas, ao circularem pela roça, na casa de farinha e na cozinha, estavam em contínuo aprendizado das habilidades, técnicas e conhecimentos necessários e valorizados no universo feminino baniwa. Os relatos das atividades na roça e na casa de farinha neste artigo buscam demonstrar algumas das atribuições femininas no que diz respeito à comensalidade33 entre os Baniwa.
1.4. Na igreja: a escola dominical
Durante os cultos aos domingos, as crianças (exceto as de colo) frequentavam a escola dominical34. A partir de uma breve descrição da escola dominical em Vista Alegre, pretendo analisar algumas experiências de aprendizado como a repetição de versículos, o fechar os olhos para a oração, os momentos de silêncio, a distribuição de meninos e meninas nos bancos e a preparação para as apresentações aos adultos. Tais atividades indicam possibilidades para compreensão de aspectos da religiosidade evangélica entre as crianças baniwa. No início do culto era realizado um canto de abertura do Hinário. O pastor fazia a oração inicial, em seguida convidava as responsáveis pela escola dominical à frente da igreja e realizava uma segunda oração abençoando o trabalho delas com as crianças. Na comunidade de Vista Alegre duas moças eram designadas para esta função, elas eram escolhidas por serem um bom exemplo às crianças. A ideia de bom exemplo era recorrente nas falas do pastor durante os cultos e relaciona-se com a prerrogativas de que as atitudes e comportamentos das lideranças devem servir como referência aos demais da comunidade,
33 M. Oliveira (2016:241-242) descreve os conhecimentos e atributos das mulheres Tukano em sua etnografia. Segundo a pesquisadora; “A mulher é responsável pelo cultivo e processamento da mandioca, preparo de alimentos derivados da mandioca e dos demais produtos da roça e frutos da floresta, preparo de peixes e de carnes de caça conseguidos pelos seus maridos e filhos, entre outras tarefas, como carregar lenha e água” (idem: 239). 34 A Escola Dominical surgiu na Inglaterra em 1780 com o objetivo de educar e tirar as crianças que ficavam na rua sem atividades - na época as crianças trabalhavam- aos domingos. Esta proposta foi elaborada pelo jornalista Robert Raikes, da Igreja Presbiteriana e adotada por demais igrejas evangélicas. A ideia de organizar uma escola que funcionaria aos domingos tinha o intuito de oferecer educação secular e também educação religiosa às crianças e teria a Bíblia como referência. (http://www.iprb.org.br/ acessado em: 20/01/2017). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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mais do que falar sobre suas qualidades, estes devem demonstrar serem pessoas boas, newikika hanhete (Garnelo 2003). Depois da oração as jovens chamavam as crianças para irem ao centro comunitário onde era realizada a escola dominical.
As jovens escolhiam pequenos versículos bíblicos em baniwa e em português para que fossem lidos e repetidos pelas crianças e ocasionalmente era feita uma separação por gênero de modo que os meninos decoravam o versículo em baniwa e as meninas em português, ou vice-versa. É importante destacar que o primeiro contato das crianças com o português era realizado na escola dominical por meio de músicas e versículos bíblicos. Essa repetição dos versículos seguia até que as crianças tivessem decorado e conseguindo proferir sozinhas com a entonação adequada35. Em seguida as jovens indicavam alguns
hinos em português e baniwa às crianças e também perguntavam se elas tinham alguma sugestão. Os hinos escolhidos geralmente eram em português e as crianças preparavam o canto que seria apresentado na igreja.
Durante a realização da escola dominical, na igreja era seguida a “ordem do culto” com a leitura da palavra de Deus, o versículo decorado, oração e encerramento (Muller 2003:61)36. Depois da memorização e recitação dos versículos, as crianças retornavam
à igreja para mostrar o que lhes fora ensinado na escola dominical. Elas entravam em silêncio e ficavam na frente do público, as menores na frente, as meninas à direita e os meninos à esquerda. Nesse momento os adultos sentados observavam, inclusive o pastor. As jovens indicavam qual trecho foi memorizado e as crianças recitavam o versículo em baniwa e/ou português e depois apresentavam os cantos. Havia sorrisos tímidos dos adultos e das crianças durante sua apresentação. Os pais, mães, irmãos, pastores e anciãos observavam atentos as crianças e comentavam a performance de sua apresentação. Esses comentários indicavam o aprendizado das crianças sobre as práticas religiosas. Era de suma importância que as crianças reproduzissem as práticas aprendidas com Sofia e que os adultos vissem. Caso fosse notado pela comunidade que as crianças não estavam aprendendo corretamente, as responsáveis pela escola dominical poderiam ser substituídas. Após o término da apresentação das crianças no culto, elas retornavam aos bancos com suas famílias, quando, então, o pastor retomava a palavra e proferia a oração de encerramento. Em seguida era cantado o hino final e todos os presentes saíam da igreja. As jovens designadas como responsáveis pelo ensino religioso das crianças eram
35 A enunciação dos versículos pelos Baniwa é feita de um modo característico - notada em campo e por Xavier (2013) entre os Koripako. É recitado pausadamente e em um tom de voz mais baixo. Algumas Bíblias têm marcações feitas com caneta nos versículos dividindo as partes da sequência. 36 Para uma descrição detalhada da “ordem do culto” cf. Xavier (2013:312). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de certa forma associadas com a figura do professor37. A metodologia da escola dominical tal como descrita por Muller (1960:36, minha tradução) é a seguinte38: 1) As crianças saem da igreja com professor cantando “Jesus ama as pequenas crianças” e vão para outro prédio; 2) (A) Professora ora por elas; 3) (A) Professora lê uma história da Bíblia do Livreto de Iniciantes. Ela faz perguntas após cada parágrafo e lhes ensina a ler sentença por sentença; 4) Ela ensina a memorização de cada verso depois da história bíblica; 5) Ela ensina a música após a lição; 6) As crianças retornam para a igreja e os adultos ouvem suas músicas; 7) Elas permanecem em pé na frente da plateia e dizem o verso memorizado e cantam as músicas da escola dominical. Na escola dominical em Vista Alegre observei várias atividades descritas acima, exceto a lição bíblica do Livreto de Iniciantes e a técnica de pergunta-e-resposta dos versículos bíblicos. Pode-se afirmar que a intenção de Muller era que a escola dominical também pudesse viabilizar a leitura da Bíblia pelas crianças. Podemos considerar que durante a escola dominical e a apresentação no culto as crianças Baniwa estavam vivenciando as práticas religiosas evangélicas. De acordo com Xavier (2013: 386-387), nos cultos entre os Koripako, a prática mais significativa é a leitura pública e coletiva da Bíblia, aliada com a técnica de pergunta-eresposta. Assim a leitura funciona como poderoso suporte à memória - não só individual, mas coletiva e social - e também como forma de assimilação e compreensão da mensagem. A leitura em voz alta, pública e coletiva, realizada em todos os cultos, assegura a eficácia de sua prática. Nesse sentido a repetição e a memorização dos versículos entre as crianças na escola dominical seguida da apresentação aos adultos demonstraram algumas das práticas da leitura da Bíblia realizada pelos Baniwa da comunidade de Vista Alegre.
2. Os aconselhamentos
“No conteúdo de conselho educacional, fomos orientados para sermos solidários, iponitti, (...) ser solidário com as outras pessoas é receber todas as pessoas em sua casa, ikoadatakhetti, acolhimento e/ou receptividade, ou seja, não escolher atender pessoas que passam ou chegam em sua comunidade ou casa. (...) No sentido de formação para a vida, o conselho tem função essencial na aquisição de conhecimento tradicionais de sobrevivência nas comunidades indígenas. Os nossos pais e mães, ao
37 Na descrição a missionária deixa subentendido que as mulheres são responsáveis pela escola dominical. Considero que isto expresse as relações de gênero nas atividades da igreja, os homens são os pastores, diácono e anciãos e as mulheres professoras da escola dominical. Atualmente há homens encarregados das escolas dominicais como, por exemplo, em Jerusalém (Xavier, com. pessoal); não observei em nenhuma comunidade baniwa do médio Içana homens responsáveis pela escola dominical. 38 Uso o artigo a em parênteses para melhorar a fluidez do texto. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Amanda Rodrigues Marqui orientarem a gente, dizem que temos que aprender a pescar, caçar, e aprender fazer canoa e casa, etc. Estes conhecimentos tradicionais que garantem sucessos e autonomia, liberdade política, econômica e cultural indígena. Nos momentos de conselhos somos incentivados para aprender a fazer um pouquinho de todos os conhecimentos tradicionais, acima citados, senão seremos dependentes de quem sabe ou domine estes conhecimentos. O que se vê, além de aprender se comportar bem no meio dos outros, mas é preciso saber ouvir e respeitar outros, no mínimo é necessário ter domínio de conhecimentos de trabalhos para garantir sustentabilidade futuro na comunidade. Dizem que se não aprender a construir casa e construir canoa, a gente passará a depender das pessoas que fazem canoa. E consequentemente terá dificuldade de locomoção aos trabalhos, na pesca, na caçaria ou para realizar uma viajar em outros lugares. Aprender todos estes conhecimentos tradicionais indígenas para a vida é garantir propriedade, tranquilidade, sustentabilidade na comunidade indígena”. (Custódio Baniwa, Seminário Infâncias/Crianças Indígenas)
Essa fala de Custódio Baniwa foi apresentada na mesa redonda, “Conselhos e Benzimentos: criando crianças no Alto Rio Negro”. Para Custódio os conteúdos dos conselhos educacionais são um modo de transmissão dos conhecimentos tradicionais para a vida na comunidade baniwa que garantem sucessos e autonomia, liberdade política, econômica e cultural indígena. Além desses conhecimentos é necessário respeitar e ouvir os mais velhos e acolher as pessoas na sua casa. Em outro momento de sua apresentação ele apontou que os conselhos pretendem orientar a pessoa para que seja nawikhiete (homem) e nawikhiadora (mulher), que sabem respeitar os outros, sabem dialogar, ouvir e socializar com as demais. De acordo com Diniz (2011:123), para se tornar uma pessoa boa entre os Baniwa e Coripaco, hamiñheete newikika, é necessário o investimento de todo o conjunto social, isto é, do grupo de pessoa no qual se está inserida, num processo contínuo que ocorre no dia-a-dia. Em uma noite na comunidade de Juivitera, no médio Içana, houve garapa, bebida de baixa fermentação, e entre as conversas que eram possíveis diante da música alta, o capitão39, seu Roberto comentou sobre os antigos rituais destinados aos jovens e os aconselhamentos.
Antigamente tinha o tempo de preparação dos jovens para aprender o que é importante para casar e ter uma família. Depois de ter se formado que o jovem poderia se casar. O aconselhamento orienta a ser um homem e uma mulher baniwa e como receber as pessoas quando chegam na sua comunidade. Depois de ter passado por isso os jovens não irão mais ouvir
39 Termo designado para a liderança/cacique da comunidade. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Situações de aprendizagem das crianças Baniwa na comunidade Vista Alegre os conselhos dos pais porque a partir de diante eles irão construir sua própria família. (Caderno de campo 28/10/13)
Intrigada sobre o que seria essa orientação dos jovens, no outro dia perguntei a uma das filhas de seu Roberto como era feita essa preparação para o casamento. Ela comenta que depois que a menina menstrua, a mãe passa a falar com ela sobre as atividades que as mulheres fazem para seu marido e sua família como fazer uma roça, torrar farinha e fazer beiju, ter sua própria pimenta. A mulher deve saber um pouquinho de cada coisa, pois quando casar mudará de sua comunidade de origem, ela irá sobreviver por meio de seu trabalho na roça e na casa de farinha, em conjunto com seu marido40. Ela tem que ter seu próprio forno e seu marido deve fazer os utensílios (aturá, balaio, abano), porque senão as mulheres de que você usa os utensílios ficarão com ciúmes41. A fala de seu Roberto e as considerações de sua filha elucidaram alguns pontos pertinentes aos conselhos, especialmente como ser homem e mulher baniwa e receber as pessoas em sua comunidade. Neste sentido, Diniz (2011) aponta os princípios e valores nos processos de formação da pessoa boa Baniwa: A definição de Hamiñheete Newikika engloba domínios de técnicas (competências e habilidades) para sobrevivência e se associa ao aprendizado do comportamento considerado moralmente aceitável. O princípio educativo embutido nesse processo é possibilitar que a pessoa aprenda a produzir os utensílios de uso cotidiano, que saiba caçar, pescar, produzir alimentos, fazer uso da etiqueta de tratamento com os parentes segundo as regras tradicionais, conhecer a produção mítica do grupo, bem como plantas e outros recursos disponíveis no ambiente. Precisa ainda praticar a generosidade e as normas que regem a cortesia devida aos consanguíneos e afins, de acordo com a posição hierárquica de seus sibs de origem. (Diniz 2011:123)
Passo então à breve descrição de duas cenas de aconselhamentos em situações cotidianas na comunidade de Vista Alegre: o relato de pequenas brigas entre irmãos e as orientações de viagens para outras comunidades e/ou para a cidade. Em uma tarde notei que um grupo de irmãos e irmãs estava discutindo próximo de sua casa e logo começaram a brigar, o irmão menor chorava e sua mãe saiu da cozinha para avaliar a situação. Ela pediu que os filhos fossem até ela e que as crianças menores
40 Como apontam diversas etnografias sobre o Alto Rio Negro, no casamento a dupla de gênero se complementa na distribuição do trabalho e da autonomia familiar (C. Hugh-Jones, 1979; Garnelo 2003). 41 M. Oliveira (2016) relata uma tentativa de comprar certos utensílios de suas interlocutoras e a recusa destas, reiterando que os objetos são delas. Os objetos pertencem de fato à pessoa e possuem agência (cf. T. Oliveira 2015). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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entrassem na casa. Em seguida chamou a filha mais velha e iniciou uma longa fala em um tom mais severo (foi possível ouvir apenas algumas partes) indicando que o irmão maior deve cuidar dos menores e que atitude da menina era ruim, pois estava discutindo e brigando com seus irmãos menores. Ela afirmou que já tinha percebido essas brigas entre eles e que esperava que a filha maior tivesse um comportamento diferente. Ela reiterou que o filho mais velho sempre deve cuidar e estar atento aos demais irmãos e que não queria ver aquela situação novamente.
As viagens eram bastante corriqueiras no dia a dia das comunidades baniwa. Elas eram realizadas por causa de eventos religiosos e escolares, reuniões, visitas a parentes, para a cidade para o recebimento do Bolsa Família ou para resolver algum problema pessoal. Geralmente os pais conversavam antes da partida ou ao longo da viagem para orientar as crianças e jovens, indicando como eles deveriam se comportar, o respeito com os mais velhos e os parentes, saber falar e se relacionar com as outras pessoas. Em sua trajetória, Custódio Baniwa, descreve que quando saiu de sua comunidade para estudar em São Gabriel da Cachoeira e na UFSCar, a preocupação de sua família era como ele iria se comportar, por onde andaria, que deveria saber respeitar outros e saber se relacionar com outros parentes indígenas. Mesmo fora de sua comunidade é necessário receber e acolher as pessoas em sua casa.
Essas duas cenas de aconselhamentos mostram como os pais transmitem alguns dos princípios e valores da socialidade baniwa como a boa convivência entre irmãos, o bom comportamento e o respeito pelos mais velhos, e o bom comportamento inclusive quando longe de casa. É importante assinalar que essas cenas foram observadas no âmbito doméstico, assim, apreende-se que o intuito desses conselhos sejam transmitir às crianças e jovens quais os comportamentos, atitudes e valores desejados na convivência familiar e comunitária42.
À guisa de conclusão
Neste artigo foram descritas situações do cotidiano das crianças baniwa na comunidade de Vista Alegre no rio Cuiari e elaboradas algumas questões tendo em vista suas experiências de aprendizagem e produção de conhecimentos. De acordo com Cohn (2005, 2013), a partir da observação do cotidiano das crianças podemos compreender as produções de significados sobre seu mundo. Como aponta Tassinari (2015:166), a análise dos processos de ensino e aprendizagem das crianças indígenas em contextos não-
42 Pretendo em pesquisas futuras desenvolver uma análise mais aprofundada sobre os conselhos e os aconselhamentos entre os Baniwa. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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escolares demonstram aspectos importantes à infância indígena como a centralidade da experiência e da corporalidade, a atenção aos esforços de imitação, a ênfase na iniciativa dos aprendizes e a atribuição progressiva de responsabilidades.
Em suas anotações de campo, feitas na aldeia Xavante ‘Ritu Wawé’ (Terra Indígena Parabubure, 1977) por Aracy Lopes da Silva (in memoriam) ilustram algumas das observações que procurei desenvolver a partir da experiência etnográfica com as crianças baniwa na comunidade de Vista Alegre.
A menininha e seu trançado, à sombra, na roça. Sua minúscula cesta. Encarapirata no alto da árvore, trabalha. À sua volta, a mata ciliar que ladeia o rio e a roça de milho, arroz, banana, melancia, mandioca…, onde há pouco trabalhavam seus pais. Agora, que eles descansam, depois de uma breve refeição, ela também o faz. Cantando e conversando com os que estão na esteira sob as árvores, ela tece pequenos fios de fina fibra vegetal, que aos poucos toma forma. Tudo isso, numa cápsula de tempo e ação, por deliberação e ritmos próprios: brincar-experimentar-trabalhardescobrir-aprender, numa só experiência, um só momento. (Lopes da Silva 2002:46, grifos meus).
Nesse sentido, considero que a descrição do “brincar-experimentar-trabalhardescobrir-aprender” (idem) das crianças indígenas possibilitam a reflexão sobre os modos de transmissão e produção de conhecimentos que as recentes análises de infâncias indígenas têm designado pela noção do saber-fazer. Sendo assim, o intuito deste artigo foi apreender por meio da etnografia as situações de aprendizado das crianças baniwa de Vista Alegre e dos aconselhamentos familiares para refletir sobre alguns aspectos dos processos de transmissão de conhecimento e de formação da pessoa Baniwa.
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evangélico. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ.
Recebido em 31 de maio de 2017.
Aceito em 15 de dezembro de 2018.
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Crianças A’uwẽ Uptabi/Xavante-MT: Ser e Estar no mundo Severiá Maria Idioriê1 Mestra em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso idiorie@gmail.com
Resumo O presente texto revela alguns aspectos do jeito de ser e estar no mundo das crianças A’uwẽ Uptabi/Xavante que vivem na aldeia Wede’rã na Terra Indígena Pimentel Barbosa, nos municípios de Canarana e Ribeirão Cascalheira, Mato Grosso. O povo Xavante se autodenomina A’uwê Uptabi, povo verdadeiro. A maior parte dessas crianças são descendentes de Apowẽ, líder Xavante, que estabeleceu em 1946 o contato oficial com o Sertanista Francisco Meireles. Além da literatura, o texto considera as minhas memórias, as vivências com as crianças, entre elas minha filha e minhas sobrinhas (os), a escuta e observação do quotidiano da comunidade onde vivo. Como resultado, esperamos fortalecer as discussões no mundo acadêmico e nas práticas docentes. E, com isto, fortalecer processos em que os conhecimentos/saberes e a visão de mundo desses pequenos seres tão importantes para a sociedade do povo A’uwẽ sejam reconhecidos e valorizados. Palavras-Chave: Crianças Xavante, processos educacionais, povos indígenas, educação indígena, A’uwẽ. Abstract The present text reveals some aspects of the way of being and being-in-the-world of the A’uwẽ Uptabi / Xavante children living in the Wede’rã village in the Pimentel Barbosa Indigenous Land, in the municipalities of Canarana and Ribeirão Cascalheira, Mato Grosso. The Xavante people call themselves A’uwẽ Uptabi, true people. Most of these children are descendants of Apowẽ, a Xavante leader who established in 1946 the official contact with the federal government official Francisco Meireles. In addition to the literature, this text 1
Indígena Karajá e Javaé (GO). Mestra em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso. Graduada em Letras Modernas Inglês/Português pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professora licenciada da Escola Estadual Indígena de Educação Básica “Etenhiritipá”.
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considers my memories, the experiences with the children, in special my daughter and my nieces/nephwes, the listening and observing of daily life in the community where I live. As a result, we hope to strengthen discussions in the academic world and in teaching practices in schools. And, by this, strengthen processes in which the knowledge and the worldview of these little beings, who are so important to their society, are recognized and valued.
Key words: Xavante children, educational processes, indigenous peoples, indigenous education, A’uwẽ. […] Quando alcancei o caixa eletrônico, pensei: adoro meu cheiro e minha pele. Genética herdada de tempos imemoriais. Criada pelo Grande Alquimista que escolheu que viéssemos todos, cada um, em particular, com cheiros e gostos que nos fazem únicos neste universo da Via-Láctea. Sorri lembrando os cheiros dos amigos, da família, dos campos cerrados… Que me permitem ser e estar no mundo (IDIORIÊ, 2013).
Introdução Esses relatos tem como objetivo apresentar processos de aprendizagem de ser e estar no mundo. E, assim, poderemos observar como a infância indígena acontece; em particular, como eu aprendi e aprendo com as crianças A’uwẽ Uptabi/Xavante da aldeia Wede’rã da Terra Indígena Pimentel Barbosa, que fica nos municípios de Canarana e Ribeirão Cascalheira, no Leste de Mato Grosso.
Como dizia a poeta goiana Cora Coralina, sou do século passado. Sou filha de Javaé e Karajá de Goiás. Em 1969, enquanto o mundo via o homem chegar à lua, aos seis anos, eu iniciava minha exploração na cidade de Goiânia, Goiás. Minha mãe era Javaé e meu pai Karajá. Até os seis anos, eu vivi às margens do rio Araguaia, em língua materna o Berohokã. Nossa família era a única que restara de nossa aldeia. As demais famílias haviam se deslocado para as margens do rio Javaé e para outros lugares do rio Araguaia. O vilarejo denominado São José dos Bandeirantes era nosso vizinho. E, por isto, a presença de missões católicas na região. Conheci uma das freiras e fui morar com ela alguns meses depois. Minha mãe faleceu de sarampo quando eu tinha sete anos e meu pai faleceu dois anos depois. Cresci em Goiânia com minha família do coração aos cuidados de minha “avó”, mãe da freira franciscana que deixara a sua congregação para cuidar de sua mãe que ficara viúva. A autodenominação Karajá é Iny e pode ser traduzida como gente, ser humano.
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Crianças A'uwẽ Uptabi/Xavante-MT: Ser e Estar no mundo
Atualmente, os Iny vivem nos Estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Pará, com uma população, segundo a SIASI/SESAI (2014), de 3.768 indivíduos. Os estudos linguísticos classificam a língua dos Iny pertencente ao grupo linguístico Macro-Jê2. Os registros históricos informam que esse povo foi alcançado por duas frentes de contato entre os anos de 1658 e 1746 – as primeiras expedições foram de missões Jesuítas da Província do Pará e depois as bandeiras paulistas. Dessa forma, a partir de então, foram obrigados a manter contatos com os outros segmentos da sociedade brasileira. Também houve disputa para salvaguardar seus territórios tradicionais com os parentes3 Kayapó, Tapirapé, Xavante, Xerente, Avá-Canoeiro. E isso trouxe trocas de práticas culturais entre os Karajá e os Tapirapé. As guerras, atualmente, são pela demarcação de terras, pela retirada de posseiros e fazendeiros da Ilha do Bananal (ISA, 2014). Uma característica corporal marcante de nossa identidade Iny são os característicos círculos na face. Nós somos conhecidos pela arte das bonecas de cerâmica, as Ritxòkó. Nosso povo foi muito visitado por jornalistas, viajantes, missões religiosas, agências governamentais, fotógrafos e pesquisadores. Os estudos de Maria Heloisa Costa Fenélon, George R. Donahue, Nathalie Petesch, Edna Luiza de Melo Taveira, Manuel Ferreira Lima Filho, Maria do Socorro Pimentel da Silva, André Toral, Marcus Maia, entre outros, aprofundam conhecimentos antropológicos e linguísticos acerca do povo Iny.
Os Javáe habitam a Ilha do Bananal às margens do rio com o mesmo nome. Sua autodenominação é também Inỹ, Itya Mahãdu (“o povo do meio”) ou Ahana Òbirá Mhãdu (“o povo de fora” ou o povo com a face de fora) (ISA, 2014). Pertencentes à Capitania de Goiás no século XVI, sobreviveram às capturas e mortes trazidas pelos bandeirantes, à política repressora dos aldeamentos, às epidemias do contato. Eles ficaram mais isolados no interior da ilha e o contato com os não-indígenas foram por intermédio dos parentes Karajá. Os registros históricos falam de uma população Karajá e Javaé, na época das investidas das bandeiras de, aproximadamente, 9.000 pessoas. Relatos orais Javaé lembram de ataques dos bandeirantes às aldeias Marani, Háwa, Wariwari Imotxi e Manatiré. Os dados da SIASI/SESAI de 2014 revelam uma população de 1.484 Javaé. Os Javaé são conhecidos por terem conseguido manter aspectos essenciais de sua sociedade 2
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Segundo o linguista Aryon Dall’lgna Rodrigues, este tronco linguístico se divide em três línguas: Karajá, Javaé e Xambioá. Há diferenças entre o falar da mulher e do homem. Mas, isto não impede a comunicação entre todos. Ao falar a palavra estrela, o homem diz Tainá, enquanto a mulher Takiná.
O termo “parente” é utilizado pelos indígenas quando querem se referir a outro indígena que não é de seu próprio povo, portanto “parente” não é sinônimo de laços sanguíneos. Cada povo tem em sua língua materna formas de designar a si mesmo, outros povos, e cada grupo familiar que compõem sua estrutura sociocultural e econômica, geralmente articuladas à forma de conceber o mundo e à cosmologia que compreende sua existência humana.
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e cultura: rituais e cosmologia.
Todos os meus colegas de escola, amigos e família sabiam que eu voltaria para meu povo assim que eu concluísse minha graduação em Letras Modernas. Participei de projetos na universidade junto aos povos indígenas Krahó, Xerente e Karajá que me fizeram rever conceitos, vivenciar a alteridade, ver o preconceito, dimensionar as diferenças existentes entre povos. Eu me reafirmei indígena e minha vontade de voltar para “casa”, contudo não sabia me comunicar com meus tios e primos em minha língua materna. Minhas memórias eram do cheiro das pessoas, dos lugares e das casas. Em 1987, ao conhecer um projeto da Universidade Católica de Goiás, a Aldeia Juvenil, enamorei-me de um Xavante da aldeia Pimentel Barbosa. Nos casamos em 1988 e ficamos vivendo entre a aldeia e a cidade por conta das atividades do Projeto Jaburu – Manejo de Animais Cinegéticos. Queria conhecer o povo e não pensei em trabalhar direto com a educação. Eu me casei seguindo os ritos cristãos e Xavante, cortei meus cabelos conforme o costume do meu marido. Contudo, não aprendi a língua, e acreditava na época que era o único detalhe que me faltava para ser uma “Xavante”. Minha única filha tem o português como língua materna e aos quatro anos, quando fomos morar na aldeia Wede´rã, ela começou a falar a língua do pai e dos seus avós. Em casa, todos nós nos comunicamos em português. Atualmente, falo um xavantês4 nas aulas, nas reuniões tradicionais e da
associação e nas rodas de conversa com as mulheres. É fundamental esclarecer que sempre que há a necessidade de uma comunicação e compreensão melhor da minha fala, eu peço ajuda na tradução. Hoje me arrependo de não ter aprendido a língua Xavante porque gostaria muito de compreender o discurso dos anciãos. Apresento aqui, recorrendo não só ao que aprendi na minha vivência mas também a leitura de textos e documentos, a história deste grupo de A’uwẽ Uptabi que desde o século XVII, segundo registros históricos e narrativas orais dos nossos anciãos, evitou o contato com os não-indígenas adentrando mais para o interior do Brasil.
Conforme Welch, J.; Santos, R; Flowers, N.; Coimbra Jr, C. (2013), os Xavante estão no Planalto Central muito antes da chegada dos não indígenas ao Brasil. Os relatos orais dos anciãos revelam histórias de fuga, aprisionamento e mortes provocados pelos colonizadores desde a Província de Goiás. No século XVIII, as referências situam o povo Xavante nas regiões norte e central dos atuais estado de Goiás e Tocantins. A província de Goiás mobilizou esforços para o aldeamento dos Xavante por considerá-los “indomáveis”, “não civilizáveis” e que deveriam ser pacificados. Em 1788, alguns grupos são aldeados na aldeia Pedro III, Sítio do Carretão por Tristão Cunha Meneses, governador da Capitania de 4
Xavantês para a pesquisadora é a mistura da língua portuguesa com a língua xavante.
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Goiás. Os Xavante e os Xerente foram isolados no presídio de Santa Maria do Araguaia, que depois foi totalmente destruído por um ataque Xavante, Xerente e Karajá. A decadência do ciclo econômico da mineração deslocou o interesse para a agricultura e pecuária. A política governamental federal foi favorável à ocupação dos territórios tradicionais indígenas. Posteriormente, a população se dispersou em vários grupos que atualmente ocupam diferentes áreas5.
Na década de 1940, Apowẽ, líder/cacique dos Xavante naquela época, estabelece contato oficial com o sertanista Francisco Meireles do Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Os Posto de Atração do governo federal tinham como um dos objetivos estabelecidos por lei a proteção dos índios. Isto possibilitou os A’uwẽ a continuaram seu modo de vida tradicional de povo caçador por algum período (Maybury-Lewis 1984).
No final dos anos 80, eles vêem seus territórios invadidos por Warazu6: garimpeiros,
madeireiros, fazendeiros de gado e plantadores de arroz. Conforme Cipassé, neto de Apowẽ e liderança, foi somente no final da década de 1980 que o grupo liderado por seu avô consegue demarcar parte de seu território tradicional, após vários embates e lutas com o governo federal e “guerra” com os fazendeiros vizinhos que ocupavam suas áreas tradicionais de caça, pesca, coleta de frutas. Todavia, os Xavante conseguiram assegurar parte dos lugares e espécies sagradas para o povo A’uwẽ: cerrados, matas de galeria, veredas de buriti, nascentes de córregos piscosos, animais como anta, queixada, catetos, cervos, veados e o Rio das Mortes. Essas terras foram nomeadas de Reserva Rio das Mortes e posteriormente de Terra Indígena Pimentel Barbosa com uma área homologada e registrada de 328.966 hectares, atualmente nos municípios de Canarana e Ribeirão Cascalheira, leste de Mato Grosso.
Os Xavante não conseguiram garantir o seu território tradicional de forma contínua. Em 2014, vivem em nove pedaços de terra, demarcadas em Terras Indígenas pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI: Pimentel Barbosa, Areões, Sangradouro, São Marcos, Parabubure, Marãiwatséde, Chão Preto, Ubawawe e Marechal Rondon. Segundo os dados mais recentes são, aproximadamente, 18.380 pessoas (SIASI/SESAI, 2014).
Nas outras partes de seu território tradicional foram construídas cidades, com incentivos governamentais federais, que integram treze municípios. Esses incentivos atraíram principalmente pessoas das regiões sul e sudeste do país. Com a chegada dos Warazu ocorreram as epidemias, mortes e diminuição do território A’uwẽ e conflitos entre indígenas e não-indígenas conforme mencionado anteriormente. Graham (2010) afirma 5 6
Welch, J.; Santos, R; Flowers, N.; Coimbra Jr, C. 2013 Warazu – termo que designa os não-indígenas e significa “aquele que não é igual a mim; estrangeiro”.
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que esse momento permitiu que os agentes governamentais e missionários levassem os grupos sofredores para os postos indígenas ou missões para receberem tratamento médico e sanitário, enquanto isso o Estado vendia as terras indígenas com o objetivo de ocupar os espaços “vazios” e desenvolver o país.
E, nesse período da demarcação, Apowẽ inicia o que mais tarde foi chamado em documentário de Estratégia Xavante (Belisário 2007 ). Segundo Leal et al o sonho de Apowẽ fala do processo de pacificação do branco pelos Xavante, uma estratégia de liberdade que orientou um projeto de autonomia e de resistência diante do processo inexorável de integração que possui como um de seus fundamentos o conhecimento do Outro e a apreensão de suas tecnologias para mediar essa relação de alteridade. (LEAL 2014: 192). Para tanto, enviou oito jovens, entre eles, dois netos, para morar com famílias amigas na cidade de Ribeirão Preto. Os objetivos eram que os jovens escolhidos conhecessem os modos de vida dos Warazu, e depois, ao retornarem à aldeia liderassem esse grupo para reafirmarem o Ser A’uwẽ Uptabi conhecendo a lógica da cultura, o pensamento do “inimigo” convertido em vizinho (Leal 2013). Era fundamental que esses jovens analisassem e compreendessem a realidade que não era favorável à integridade física e cultural de sua comunidade e agir de forma a assegurar a continuidade dos valores tradicionais de sua sociedade. É um movimento que necessita de compreensão da lógica dos dois mundos e de si mesmo porque o processo iniciado por Apowẽ compreende que: Não se trata de uma tentativa de “inclusão” no mundo dos brancos, mas da continuação de um processo de conhecimento para enfrentar, da elaboração e da execução de uma estratégia de liberdade e de autonomia em relação a uma convivência imposta e incontornável. Uma resistência ao avanço do Waradzu que passava pelo conhecimento profundo do mundo e da cultura Waradzu, e pela apreensão e apropriação de algumas tecnologias. [...] (Leal 2013: 193).
Apowẽ faleceu em 1978 e sua estratégia continuaria sob a coordenação de seu filho Warodi. Ele, enquanto sucessor natural na liderança da aldeia, receberia e acompanharia os jovens que tiveram parte de sua formação na cultura dos não-indígenas. Essa ação permitiu a retomada de parte de seus territórios tradicionais por meio da demarcação das terras no que foi chamado Reserva Rio das Mortes no final da década de 1980. Bem como a participação nos movimentos políticos durante a Constituinte. Contudo, Warodi faleceu de um câncer no fígado em janeiro de 1987. E sua sucessão aconteceu de maneira não usual, conforme relatos orais dos anciãos pertencentes à família de Warodi. Mesmo assim, algumas das crianças da Estratégia assumiram chefias de aldeias, fundaram associações,
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desenvolveram projetos culturais, socioambientais, educacionais, entre outros.
A partir da década de 1990, as mudanças políticas empurram aos povos indígenas uma política educacional de inclusão. A Década da Educação, a meu ver, era uma prática de assimilação, de forma camuflada. Porém, possibilitou, via Constituição de 1988, as lideranças indígenas a conquistar e aprovar políticas públicas ligadas à educação escolar indígena, saúde, proteção e algumas demarcações de terras indígenas. Todavia, conforme minha ótica, as políticas de ações afirmativas como o bolsa-família, bolsa-escola, salário maternidade e a abertura de créditos para aposentados indígenas iniciaram mudanças não benéficas na dinâmica das aldeias da Terra Indígena Pimentel Barbosa. Com os recursos financeiros advindos as idas às cidades, os homens e rapazes começaram e aumentaram a dependência por alguns itens alimentícios, calçados, roupas, entre outros. E, aconteceu o acesso e consumo de bebidas alcoólicas por alguns homens e rapazes, o início da desnutrição e morte das crianças. Mesmo assim, a maioria da população é monolíngue em Xavante, continua seus ritos e cerimônias tradicionais e pratica sua economia de caça, pesca, coleta de frutas e roças. Deste modo, esse grupo xavante se constitui um interessante lócus de pesquisa para contribuir com os debates e as discussões sobre a infância indígena. Apresento as experiências vivenciadas por mim com as crianças pertencentes e descendentes do povo A’uwẽ Uptabi, mais particularmente a família de Apowẽ. Ao trazer minha vivência, a realidade vivida pelas crianças e as dinâmicas de sua sociedade como se apresentam hoje, dessa infância A’uwẽ, espero contribuir de maneira positiva para que nossa vida continue bem, assim como os conhecimentos tradicionais ligados ao respeito aos Mestres Espirituais dos lugares sagrados, entre eles os da Serra do Roncador.
Aldeia Wede’rã – Terra Indígena de Pimentel Barbosa – Mato Grosso Atualmente, em Pimentel Barbosa, segundo estimativa da SIASI/SESAI (2014), vivem, aproximadamente, 1.848 indivíduos, sendo 81 pessoas na aldeia Wede’rã. As demais aldeias são Atsere’ré, Belém, Caçula, Canoa, Eteñiritipá, Pimentel Barbosa, Reata, São Domingos, Tanguro, Pequi.
Em 1988, quando eu me casei, existiam três aldeias: Caçula, Pimentel Barbosa e Tanguro. A Pimentel Barbosa é a aldeia mãe desde quando mudaram para as proximidades da Serra do Roncador. Em Xavante a aldeia foi designada por Eteñiritipá, porém os nãoindígenas a nomearam de Pimentel Barbosa. Na época viviam os descendentes de Apowẽ e famílias aliadas. Fomos morar nessa aldeia com os pais de meu marido. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Em 1997, a aldeia Wede’rã nasce com 0 objetivo de melhoria de qualidade de vida, proteção das áreas de caça, pesca, coleta de frutas, plantio de novas roças, manutenção da identidade e autodeterminação. O cenário político desse período era, mais uma vez, desfavorável aos povos indígenas. Havia um retrocesso no cumprimento das leis e incentivo as especulações acerca das terras indígenas e sua ocupação por terceiros para o plantio de soja e outras monoculturas. O “lema” “muita terra para pouco índio” voltou com força e cresceu uma animosidade contra os Xavante, que sempre são vistos nessa pauta como um entrave para o desenvolvimento econômico regional. Não existe muita influência religiosa da sociedade envolvente em nossa aldeia. Na nossa comunidade privilegia-se a educação como prática social que une o saber, a vida e o trabalho nas roças e a coleta de frutos do cerrado, e na escuta dos saberes dos mais velhos e no fazer das cerimônias coletivas. A escola é outro espaço de aprendizagem e de uso da língua portuguesa.
Os Xavante dessa região se nomeiam A’uwẽ Uptabi – povo verdadeiro. Eles são os da região conhecida entre eles de Ape’siniu’wĩ. Esse povo, conforme todas as sociedades Jê, de filosofia de universo dualista, e de agrupamentos binários e descendência patrilinear, se divide em dois clãs: Poreza’õno (Girino) e Öwawẽ (Água Grande) - ou seja, a criança, ao nascer, pertencerá ao clã de seu pai e, quando adulta, só poderá se casar com parceiros pertencentes aos outros clãs. Após o casamento, o rapaz continua em sua casa e vai morar com a esposa somente após o nascimento do primeiro filho(a).
Cipassé afirma que são os pais quem escolhem com quem os seus filhos se casarão. Os rapazes serão considerados cidadãos plenos segundo a tradição A’uwẽ somente após serem padrinhos responsáveis pela formação de uma nova geração de jovens de um grupo afim. A criança ainda, segundo estudos antropológicos de Maybury-Lewis (1984), são pertencentes a duas faixas etárias de metades agâmicas – composta por quatro grupos denominados Classe de Idade. Portanto, há oito classes de idade, sendo elas compostas por pessoas de, aproximadamente, uma mesma geração. A sociedade A’uwẽ Uptabi apresenta complexos padrões de organização social típicos dos grupos Jê em geral e não nos cabe neste momento um aprofundamento. As Categorias de Idade Xavante foram observadas por Maybury-Lewis em 1954 e depois mencionadas por Giaccaria em 2000.Todavia, podemos dizer que as categorias de idade estão ligadas ao estágio de vida para homens e mulheres, enquanto o sistema de classes de idade é formada por oito cortes etários nomeados que se sucedem em um ciclo de aproximadamente 40 anos (Welch, J.; Santos, R; Flowers, N.; Coimbra Jr, C.
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2013:13)
Os homens e mulheres usam o cabelo longo com franjas e quando morrem algum familiar, em sinal de luto, raspa a cabeça. Os homens usam brincos circulares de madeira e com o passar dos anos há o aumento dos brincos e usam também gravatas de algodão confeccionadas por eles. O algodão é trabalhado pela mulher, cuja ornamentação é a pintura corporal, também utilizada pelos homens e com variação que marca o clã, ou a metade exogâmica que a identifica.
No período anterior ao rito de Reclusão, meninos e meninas de uma mesma geração ou próxima compartilham jogos e brincadeiras tendo acesso livre e irrestrito a todos os lugares da aldeia, até nas reuniões dos homens maduros no pátio central. Toda a aldeia é o espaço das crianças. Elas sabem tudo que ocorre na aldeia, desde fofocas até o planejamento de expedições de caça ou pesca e outros projetos/atividades. Nesta etapa da vida, as crianças aprendem com suas tias e com outras crianças tanto as brincadeiras quanto as tarefas ligadas à subsistência econômica: caça, pesca, coleta de frutas, roças coletivas e atividades rotineiras como lavar roupa, suprir a casa de água e outros gêneros alimentícios. Segundo afirma Tsi’rui’wa (2012, p. 75) cada categoria de idade, conforme o gênero, tem sua educação tradicional sob a responsabilidade de avós e avôs paternos e maternos, mães, família paterna e padrinhos.
Na aldeia Wede’rã temos escola de alvenaria desde 2008, poço semi- artesiano, bicas de água, energia elétrica via o programa Luz para Todos, e antena de celular. Os projetos socioambientais e culturais estão sob a responsabilidade da nossa Associação Aliança dos Povos do Roncador e do Conselho Tradicional dos Homens, o Warã. As ações da escola estão coordenadas pelo Conselho Deliberativo da Comunidade Escolar – CDCE. As casas estão distribuídas de forma semicircular e abrigam famílias de aproximadamente 10 pessoas e estão voltadas para o córrego Pezarupré. As casas são construídas com madeiras, tabocas e cobertas pelas folhas do coqueiro indaiá e duram em média cinco anos. Essas habitações sofreram influências em sua forma tradicional e atualmente são construídas inspiradas na arquitetura cabocla e tem forma hexagonal. As casas tradicionais tem o formato circular. Todavia, o uso interno segue os padrões tradicionais da casa circular para que a ventilação seja melhor. Toda a família participa da construção das casas, enquanto os homens selecionam e cortam as madeiras para a estrutura da casa, as mulheres são responsáveis por sua cobertura. Atualmente, as cozinhas ficam em uma outra construção ao lado da casa. Nos quintais estão plantados pés de mandioca para fazer farinhas puba e seca, pequizeiros, cajueiros, mangueiras, abacaxis, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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limoeiros e pés de jatobá.
As crianças e eu – meu processo de aprendizagem Mês de agosto, vasto céu com o colorido dos raios do amanhecer. Um menino, que começara a andar há alguns meses, vai ao encontro de seus amigos, sentados em um círculo. Caminha orgulhoso, olhar imponente, jeito cerimonial, executa gestos do Darini perante a roda de crianças. Ele foi iniciado nesta cerimônia espiritual em julho. Pais, avós, tios, enfim toda a comunidade num misto de orgulho, alegria e encantamento sabem que sua tradição está garantida nos passos deste menino-homem = Au’wẽ Uptabi. (Fato observado na Aldeia Wede’rã em agosto de 2003.) A menina, junto com as tias e primas, há algumas horas, andam no cerrado. Vão buscar palhas de buriti para confeccionar cestas, esteiras.
Quando passam pela palmeira Indaiá, a mãozinha da menina pega com destreza algumas folhas. Quando podem descansar, ela escolhe um lugar e começa a fazer seus trançados e com um sorriso, ela mostra que já consegue fazer seu próprio abano. As tias sorriem satisfeitas. (Fato observado próximo a aldeia Wede’rã em julho 2001.)
Para tratar do tema sobre os processos educacionais do povo Xavante faz-se necessário delimitá-lo dentro da questão da Educação Indígena, entendida como sendo o conjunto dos processos de socialização e de transmissão de conhecimentos próprios e internos a cada cultura indígena. Os conhecimentos sobre os cerrados, os rios, vales e montanhas, a maneira de pensar sobre si e seus semelhantes e outros povos, a maneira de realizar suas cerimônias, seus cantos, danças e sonhos, os A’uwẽ Uptabi trazem em suas memórias, em seu coração e em seus corpos pintados de urucum, carvão e às vezes de jenipapo. O cheiro das ervas, as cordinhas amarradas no pulso e as gravatas são usadas como seus ancestrais costumavam utilizar. Através dos processos tradicionais de socialização e de transmissão de conhecimentos próprios, a essência do povo Xavante permanece geração após geração. Este é o pensar e o viver do povo Xavante da aldeia Wede’rã, Canarana, Mato Grosso. O que eu quero dizer com isto é que se há um processo através do qual o indivíduo se torna Xavante, eu não posso e nem devo remeter ou resumir esse processo apenas à etapa em que ser um adulto Xavante se manifesta na plenitude das funções sociais e rituais que lhe competem como tal.
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Crianças A'uwẽ Uptabi/Xavante-MT: Ser e Estar no mundo Isto porque considero que cada uma das etapas do ciclo da vida pode ser vivida e cumprida com inteireza, nas dimensões e atribuições que lhe são próprias. Além do mais, se este não se cumprir igualmente em toda a sua plenitude, as etapas futuras poderão vir a ser prejudicadas. A etapa da infância está incluída nesse processo e, em si mesma, encerra um universo de papéis e funções, limites, possibilidades, aprendizados e descobertas que só ocorrem nesse período. Portanto, antes de “aprenderensinar-saber” ser um adulto Xavante, o indivíduo “aprende-ensina-sabe” ser uma criança Xavante (Nunes 1999: 152).
Grando e Albuquerque (2012) nos convida as reflexões sobre educação indígena e infância ao apresentar a importância do estudo da infância indígena:
A infância, como uma das fases mais significativas para o desenvolvimento das pessoas, é objeto de investigação recente nas sociedades indígenas. No entanto, esses estudos nos levam a refletir para além desses contextos particulares, pois evidenciam a complexa relação entre as práticas do cotidiano e do cotidiano imaginário com as quais a criança dialoga permanentemente para compreender-se como parte integrante do mundo na qual foi recebida e inserida. Um mundo pensado e organizado antes de seu nascimento, mas no qual ela intervém, recriando-o e ressignificando-o, ao imitar os outros, ao assumir papéis a ela destinados, reordenando-os a partir de sua sensibilidade aguçada pelo imaginário e para o novo, para a descoberta do mundo e de si mesma. (Grando; Albuquerque, 2012: 7)
Os estudos pautados em etnografias desenvolvidas a partir da década de 1990 reconhecem esses processos educativos que se diferenciam dos demais processos da sociedade não-indígena, especialmente porque cada povo tem, a partir de cosmologias próprias, concepções de aprendizagem muito distintas, assegurados desde a Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional de 1996 (Grando, 2014: 99) Um conjunto de pesquisas etnográficas desenvolvido nas últimas décadas com crianças indígenas vem revelando características muito diferenciadas de conceber e vivenciar a infância (Tassinari, 2012).
Grando (2014) afirma que os estudos antropológicos se debruçam para compreenderem como as sociedades indígenas educam suas crianças a fim de garantir que as futuras gerações possam ser reconhecidas e se conhecerem a partir de uma forma de pensar, de falar, de viver e ser, específica e diferente em cada comunidade e cada povo. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Vivendo com o “Inimigo” – “Quem educa quem?” As vivências relatadas aqui são de uma mulher do povo Iny, criada e amada por uma família não-indígena e depois casada com um homem de outro povo indígena que viveu um período na cidade e que se viu pertencente a um povo que em sua memória de criança era seu “inimigo tradicional”. Minhas lembranças de infância revelam as diferenças vividas, de um lado com meus irmãos todos os dias em meio à natureza, e do outro na cidade e sozinha, com brinquedos, muitas vezes, industrializados. Meu imaginário se alimentava de viagens ao redor do mundo. Todavia, minhas ilustrações traziam casas triangulares e com jardins, sem muita criatividade. Eu gostava muito de ler. Eu sempre brincava sozinha. Isto mudava quando meus irmãos, que viviam no orfanato, vinham nas férias de fim de ano. Desde 2000, sou professora/educadora efetiva da Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Primeiro, lecionei inglês na cidade em uma escola não-indígena e, depois de dois anos, comecei a ministrar aulas do ensino básico em uma escola Xavante.
Enquanto professora sempre optei por trabalhar com crianças maiores, a partir dos dez anos. As histórias que apresento aqui são de crianças com idades variadas, de 5 a 12 anos, meninos e meninas pertencentes aos dois clãs Xavante.
Tudo começou a mudar quando eu me casei e fui viver com o povo A’uwẽ Uptabi da aldeia Pimentel Barbosa. Todos ficaram impactados com a mudança de noiva de meu marido. Mas as crianças sempre me acompanhavam e observavam este ser “estranho” nos banhos no córrego, nas coletas de frutas, e as meninas me ensinavam a pilar o arroz, isto é, tirar a casca do arroz no pilão. Enquanto suas mãos batiam com força, precisão e rapidez, meu trabalho era exatamente o contrário. E em nenhum momento elas se mostravam impacientes. Como eu vi que eu as atrasava, acabei desistindo de “ajudar”. Enquanto “qualquer” criança era hábil em acender o fogo, eu não sabia apanhar a lenha boa e nem os gravetos. Aprender a língua Xavante foi o mais difícil porque eu não levava com o mesmo bom humor os meus erros. Depois de muito tempo, eu vi que as gozações eram um meio de levar com leveza o ensinamento e dilapidar as “dificuldades” do Ser e Estar no mundo. Nos primeiros anos de minha vida na aldeia, durante a volta de uma das expedições de coleta de frutas, um menino tocou o meu braço e me perguntou se eu estava vendo o pássaro. Eu olhei e não vi nada. Perguntei a ele onde estava o pássaro e ele estendeu o braço e apontou em direção às montanhas, e aí eu pude ver, ao longe, bem longe um urubu planando ao vento. E fiquei admirada com a visão daquela criança. E da minha total falta de conhecimento e limitação. Eu havia buscado o pássaro nas árvores perto de onde Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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andávamos.
Depois das viagens à cidade, sempre eram elas que nos recepcionavam e ficavam observando o que havíamos trazido, quem havia vindo conosco. Sempre atentas, dispostas a nos ajudar no carregamento de malas e caixas, e perguntando, querendo informações sobre as “novidades” que viam.
Muitos anos depois e hoje, a cada dia, compreendo o quanto a educação que vivi na cidade, as memórias e os sentimentos do meu coração Iny não me permitiram aprender com as crianças A’uwẽ. Essas ideias e sentimentos me cegaram durante um tempo considerável. As crianças foram minhas primeiras mestras. Eu não fui uma aluna nota dez. Tinha muito a aprender. Era uma época que eu ainda vivia entre os Xavante.
As crianças A’uwẽ Uptabi e seu modo de Ser e Estar no mundo Em 1997 fui agraciada com uma linda filha. Aldeia nova, mãe “nova”, nova escola... novos desafios. Começava a viver com os A’uwẽ Uptabi, com a família dos avós, tios, primos de minha filha e de meu marido. Meu coração estava todo com eles. Minha admiração e minha compreensão por sua cultura e sociedade haviam aumentado. Foram períodos de muita aprendizagem enquanto mãe e por conta dos meus trabalhos junto à nossa nova associação e à nova escola. Neste tempo, quase que minha filha morreu de grave infecção intestinal. Fui obrigada a voltar a viver na cidade e buscar meios para sobreviver. Em 2000, passei em um concurso para ser professora de inglês/ português na cidade de Água Boa. Depois de três anos, por causa de minha filha, voltamos a viver na aldeia. Sempre que havia feriados e nas férias íamos para a Wede’rã. Em um dia desses, ao voltar para a cidade, ao despedirmos de todos, procuro minha filha na camionete em que estávamos, vejo lágrimas silenciosas escorrerem em seu lindo rostinho de quatro anos. E sentimos que era hora de voltar. Voltamos felizes. Minha filha aprendeu a língua de seu pai e de seus avós paternos e todo o universo de seu povo. Foi com ela que me aproximei mais das crianças e de seu universo.
De repente, vi minha filha acordando antes do sol aparecer. Ela detestava acordar cedo na cidade para ir à escola. Antes de sair de casa, observava as casas em atividades e o movimento de seus primos para ir tomar banho “sozinha”. Não precisava ir com a mãe porque já não era mais bebê. Depois, ela me relatou que as crianças entre si “disputavam” quem eram os mais corajosos para tomar banho bem cedinho. Corriam em direção ao rio, às vezes com uma perna só, cantando, às vezes corriam girando seus corpos. Ela aprendeu Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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com seus primos que era bom esse banho para se fortalecer e crescer com saúde e alegria. As crianças voltavam ao mesmo tempo, correndo, saltitando, cantando... As meninas muitas vezes traziam as cestas cheias de cabaças com águas. As cabaças conservavam a temperatura fria da água. As bicas e a caixa de água ainda não tinham sido instaladas pela FUNASA.
As crianças, ao retornar do banho, se alimentavam com frutas, peixes ou carne de caças, mingau de abóbora, mandioca assada ou frita, milho, enfim, a depender se era o tempo das chuvas ou da seca. E, se o tempo era de seca, iam brincar nos quintais de casinha, de acampamento de caça, e assim faziam suas casas aproveitando pequenos galhos dos pés de mandioca, formavam suas famílias e “produziam” alimentos. Eram um conjunto que reunia crianças de colo até uns seis, oito anos, meninos e meninas. Muitas vezes ouvia mães gritando para alguma das filhas para ajudar a buscar água. Assim, o grupo se dispersava e ia para o córrego, algumas meninas aproveitavam para também ajudar suas irmãs, mães e tias a lavar roupa, dar banho nos irmãos menores e ao mesmo tempo brincar. As crianças menores e os meninos brincavam o tempo todo, algumas vezes de pique-esconde, de lutas, de barquinhos. Quando maiores, as meninas brincam de mergulhar e bater as águas com as pernas em um movimento muito próximo ao que as baleias fazem com suas caudas. É um bater de pernas muito forte, lindo e preciso que joga as águas para cima. Se os meninos com suas brincadeiras sujavam as águas, algumas irmãs ou tias chamavam-lhes atenção. Logo se dispersavam pelo córrego, indo brincar logo abaixo das tábuas de lavar roupa. Os meninos brincam sempre mais que as meninas, uma vez que na volta do banho, as meninas sempre ajudam no carregamento de água e roupa e a fazer a comida.
Todavia, é durante esses banhos na estação chuvosa que todos, incluindo as meninas, aprendem a nadar. Com as chuvas o pequeno córrego aumenta o volume de suas águas e permite brincadeiras mais “radicais”, período para as crianças aprenderem a nadar observadas pelos irmãos maiores. No período das chuvas o pátio da aldeia serve para as corridas nas enxurradas, a corrida de barquinhos de madeira, de folhas, e outros materiais, e mais um tempo de jogar futebol.
Nos períodos de seca, as crianças, de 08 – 11 anos, jogam futebol e vôlei, enquanto as menores fazem um campo ao lado e também jogam futebol. Outras vezes, as menores jogam bolinhas de gude e, quando não tem essas bolinhas, de sementes de buriti ou de macaúba, brincam de guerra de flechinhas e com insetos como gafanhotos e também os meninos constroem longas estradas e pontes no meio da aldeia e conduzem seus carrinhos puxados por um cordão. Eles brincam também, enquanto buscam água nas Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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bicas, de carregar nos carrinhos de mão os irmãos menores. Ainda brincam com aros de bicicletas empurrando e correndo pela aldeia toda. A brincadeiras são sempre coletivas, claro que todos com suas flechas e arcos, ou barquinhos feitos por eles mesmos ou pelos irmãos maiores. Outras vezes, meninos e meninas pescavam no córrego próximo a aldeia, o córrego Pezarupré e levavam os peixes para a família.
Quando minha filha ganhou uma bicicleta, todas as crianças aprenderam a andar de bicicleta. Nesse período, pude ver como as crianças se comportavam em relação a esse objeto, uns não queriam repassar a bicicleta, outras sem problema nenhum ajudavam os outros a conduzirem a bicicleta, uns zelavam mais pela bicicleta que outras. Pude observar que as brincadeiras permitem que as crianças se eduquem e se conheçam mais entre si. Eles se reconhecem ou reconhecem as suas virtudes e os seus “defeitos”. Nomeiam, entre risos e piadas, quem são Sõpru ou Sõtire, que em outras palavras significam pessoa generosa/abnegada ou egoísta/avarenta. E, quando há desentendimentos, o grupo para, escuta, analisa e resolve a questão.
As crianças e a escola da alegria A escola da aldeia foi apoiada pela prefeitura de Canarana a pedido dos anciãos que haviam construído o prédio de palha, conforme a arquitetura habitual, no final de um dos lados da aldeia que é em formato de semicírculo. Nos primeiros anos da década de 2000, a primeira escola, portanto, tinha como mantenedora a Secretaria Municipal de Educação. Em 2008, a escola optou pela rede estadual, buscando mais autonomia no processo educacional de suas crianças. O projeto político pedagógico foi pensado e idealizado por todo o coletivo da comunidade. Nós formamos os grupos de discussão e minha filha foi a tradutora do grupo das crianças:
A escola tem que trazer o conhecimento sobre o Warazu (Não-Índio) porque agora este povo faz parte da realidade do nosso povo A’uwe. Alguma coisa deles já chegou até nossa aldeia e nossa vida. As crianças querem entender o português, falar e ler em português também. Eles querem aprender a ler e escrever para “ficar inteligente, descolada”, em outra cultura, sem perder a cultura, a língua. Nós queremos continuar falando e cantando na nossa língua, fazendo as nossas festas e viver nossas coisas. A escola também é um lugar para ser feliz. (Clara ´Rewai’õ, aluna e tradutora cultural mirim da turma das crianças, 03 a 08/09/2007).
Isto possibilitou conhecer melhor as crianças porque a convivência ficou maior Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e diária. A comunidade da aldeia Wede’rã quer que o sistema do governo estadual compreenda que a escola é mais um espaço de aprendizagem das crianças. Ir à escola para as crianças A’uwẽ tem que ser prazeroso e proveitoso. A alegria e a felicidade devem fazer parte do processo de aprendizagem na escola.
No início não havia professores A’uwẽ formados em ensino médio ou superior. Somente eu era formada em Letras Modernas Inglês/Português e não tinha fluência na língua Xavante. É fundamental dizer que enquanto professores da rede municipal participamos de muitas formações continuadas. Havia técnicas habilitadas pelo governo federal com apoio do município de Canarana e comprometidas com o processo educacional das crianças A’uwẽ. Foi um trabalho inovador e rico entre secretaria e escolas e que contou com profissionais da Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT/Barra do Bugres e Fundação Nacional do Índio – FUNAI/Água Boa, Barra do Garças e Brasília.
Talvez, por isto mesmo, foi um processo bem rico de aprendizagem para todos nós da aldeia. Nós conseguimos aprovar salas e professores conforme nosso Projeto Político Pedagógico junto à Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso – SEDUC/MT.
Na escola, as crianças mostraram em atividades o quanto tem uma percepção mais ampla e concreta de seu espaço, do meio onde vivem e dos conhecimentos ligados ao seu povo. Elas me ensinaram a olhar com mais alegria e descontração o mundo. Ao mesmo tempo em que nós fortalecemos nossas identidades e o orgulho de sermos de culturas ancestrais e a compreensão de que cada povo tem um jeito de viver no mundo. Em uma das atividades de conhecimento do território da aldeia, eu solicitei o desenho da aldeia. Ao passar pelos alunos, observei que o desenho apresentava as casas da aldeia olhada da frente enquanto a escola era vista como filmado por um drone, de cima. E eu me perguntei, como eles sabiam sobre perspectiva, como sabiam que a escola tinha esse formato se vista de cima? Como eles sabem desenhar tão bem? Aos oito/ nove anos, eu desenhava muito mal. Sem nenhuma criatividade. E, eles não desenharam somente o espaço da aldeia, desenharam o local da escola, da casa do celular e as casas do projeto Uhö que ficavam distante uns dois quilômetros. O mapa era todo proporcional. E, ao perguntar para minha filha todas as questões mencionadas, ela simplesmente me respondeu: Uai, todo mundo sabe.
Em todas as atividades escolares, os alunos se envolviam e quando não estavam querendo ir ou achavam sem graça tais atividades, elas não iam às aulas ou iam embora sem perguntar ao professor (a). Contudo, ao perguntarmos sobre esses alunos, seus colegas diziam o motivo da ausência da criança em questão. Deste modo, planejávamos melhor nossas aulas. Muitas vezes, os irmãos menores iam com seus irmãos, observavam Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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o que faziam e depois retornavam à aldeia para suas brincadeiras no pátio da aldeia. A escola de alvenaria foi construída fora do semicirculo da aldeia.
Quando fomos em uma expedição para a aldeia antiga, os alunos acharam bem interessante. Eles já haviam ouvido as histórias dos avós e dos pais sobre a aldeia mais antiga daquela região chamada Arobonhipopá. A expedição familiar ficaria pelo menos uma semana e meia fora da aldeia. Fomos de caminhonete até uma parte do caminho, depois caminhamos. E dois caçadores foram mais tarde de motocicletas para ver as melhores trilhas. A região onde fica a aldeia fica próxima as fazendas. É um local que sabíamos ser de refúgio de animais importantes para a dieta tradicional. Constatamos in loco que o refúgio não era mais o mesmo.
As crianças de colo foram carregadas pela mãe e as demais foram caminhavam carregando pequenos cestos. Algumas vezes diminuíam a marcha e faziam algumas observações aos amigos ou familiares. Elas conseguiam suportar o calor, a fome, enquanto subiam e desciam os lugares íngremes desconhecidos por eles. Por isto, não se aventuravam longe. Nos locais próximos à aldeia, essas crianças andam com destreza e rapidez, muitas vezes na frente dos pais, entrando e saindo do cerrado trazendo e comendo frutos. Na primeira parada de descanso, depois de umas três horas, os meninos foram pescar junto com os pais/tios e as meninas foram buscar com suas mães/tias lenha e gravetos para cozinhar a primeira refeição substancial. Elas trouxeram também frutas. Tudo isto num clima de bom humor e brincadeiras. Na segunda parada, houve caçada. Os homens trouxeram uma anta e as crianças, principalmente, os meninos, brincaram com as partes que foram divididas da caça. Assim, todas as crianças se divertiram muito, ao mesmo tempo que examinavam as partes do animal caçado. Sabíamos que ao retornar à aldeia haveria muitas estórias. Os rapazes puderam observar o corte correto desse animal. Cada animal caçado tem um jeito específico de corte porque esses pedaços são destinados aos parentes e afins. As carnes não ficam somente para o caçador. Deste modo, são nessas ocasiões que são reforçadas e/ou alimentadas as relações sociais do grupo.
Atravessamos lamaçal, córregos que desembocam em pequenas cachoeiras, lugares cheio de frutas nativas do cerrado. E, depois de umas cinco horas de caminhada, aproximadamente, chegamos ao local próximo à aldeia antiga. Os lugares onde descansamos foram feitos como casas da aldeia, porém mais rústicos. As casinhas são feitas pelas mulheres utilizando galhos de árvores e de palmeira, a água é responsabilidade das meninas/moças e a lenha para o fogo tanto pelas meninas quanto pelos meninos menores. Observei que todos sabem os seus papéis e não esperam ninguém mandar fazer. Obviamente, os homens lideram a expedição, contudo as mulheres ainda mandam em
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suas cozinhas e cuidam da alimentação. As crianças se aventuram um pouco buscando coquinhos de indaiá ou tucum e outros frutos. As meninas e suas mães/tias buscam materiais para fazerem cestos ou observam se existem outros materiais para fazerem colar. É um período de muita aprendizagem e uma aproximação maior com sua família porque à noite todos ficam acordados esperando moquear a carne e ouvindo histórias antigas ou algum fato engraçado ou interessante que ocorreu naquele dia. É um momento em que vemos, sentimos, conquistamos e demarcamos nosso território. Vemos e sentimos o cheiro bom do mato molhado pela neblina da noite, os vários cheiros do cerrado, distinguimos o tipo de vegetação, vemos pássaros e a quantidade de animais e matérias primas que ainda existem. Reforçamos nosso Ser e Estar no mundo. Reconhecemos quem somos. Isto as crianças aprendem e nos faz lembrar que caminhos devemos trilhar no mundo. As crianças e os anciãos são sábios. É o princípio e o fim de um jeito bem peculiar de existência, ao meu ver.
Nos primeiros anos da aldeia, o cacique Cipassé havia conseguido apoio da FUNAI para um motor à diesel para a luz, para o tratamento das crianças quando gripadas e para o funcionamento da televisão e do vídeo. Assim, tínhamos a pequena farmacinha, a casa de televisão e vídeo.
Na casa da televisão toda a comunidade assistia junta à televisão e ao vídeo. As mães, os pais e os tios(as) faziam o controle social dos programas de TV e os filmes que as crianças assistiam. Nessas noites, as brincadeiras no pátio da aldeia e as histórias contadas pelos avôs eram substituídas pelos filmes de terror, de karatê. As crianças riam quando cabeças sangrentas rolavam, quando haviam mortes. Ao perguntar à minha filha, a resposta foi: A gente ri porque sabe que tudo é mentira. É tudo inventado. Nós assistíamos também aos documentários feito por um dos membros da aldeia, víamos os ritos, cerimônias, cantos e danças e corridas de buriti.
Tudo junto e misturado: conviver para respeitar e ser feliz Ainda preciso aprender muito com as crianças a Ser e a Estar no mundo de modo sábio e de acordo com minha geração, de acordo com minhas vivências.
O que aprendo e aprendi ao longo dos anos com as crianças e depois com os anciãos é que a vida deve ser leve, situada no presente. Há o presente e tudo se concretiza da maneira ancestral e para eternidade se somos e estamos no mundo de maneira inteira, sincera, sem egoísmo e prévios julgamentos. E, seremos autênticos, gente, no coletivo, ouvindo/observando/sentindo a natureza, o tempo, as pessoas, sem perder a
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nossa essência individual. Conviver é fundamental para apreender quem somos e como as crianças são, pensam e vivem. Como elas nos vêem e quais curiosidades, certezas e impressões tem acerca de nós adultos. Ao meu ver, as crianças são a vida em si.
Considerações finais As crianças A’uwẽ Uptabi que lhes mostrei é de uns quatro anos atrás. Eu tive que viver em Cuiabá para o Mestrado na Universidade Federal de Mato Grosso e depois fui morar com minha filha única que cursa jornalismo e também para me tratar de Pênfigo Foliáceo no Hospital de Doenças Tropicais em Goiânia. Nas últimas décadas muitos pesquisadores/antropólogos revelaram universos ricos da infâncias indígenas. Todavia, seria de importância fundamental uma maior divulgação dessas pesquisas nas escolas, entre pesquisadores de educação e outros, nas comunidades que foram objetos de pesquisa e nas cidades do Brasil e do mundo.
Tendo como base estudos sobre os A’uwẽ/Xavante, desenvolvidos e apresentados por Ângela Nunes; Aracy Lopes da Silva e Eduardo Carrara, por exemplo, antropólogas/o que se dedicaram às crianças e ao aprendizado Xavante, seja possível iniciar um processo de conhecimento acerca das características culturais e sociais desse povo e as suas crianças. E, assim, criar meios para aproximar a teoria e a prática nas salas de aula das escolas/ universidades dos centros urbanos do Brasil e exterior. Vivemos em um mundo com meios de comunicação midiáticos que permitem oferecer informações diretas de quem produz conhecimentos. É preciso oportunizar nesses meios uma inquietação, um interesse acerca dos saberes das crianças indígenas e de que modo isso contribui para uma qualidade de vida melhor, agora, no presente, e isto poderá possibilitar quem sabe o Futuro.
Essas crianças A’uwẽ nos mostram saberes/conhecimentos que são adquiridos com toda a inteireza, a vontade, a curiosidade, a percepção, a inteligência e o destemor próprio àqueles que aprendem os limites com seus pares, pessoas com experiências, poder físico, espiritual e mental semelhantes. Os adultos são parte desse processo educacional dessas crianças e o seu nível de responsabilidade com as crianças depende em que grau de conhecimento aquele adulto se encontra e quais são as relações de parentesco existentes ou não com as crianças de sua aldeia. Deste modo, observe o que afirma Lopes da Silva como se acontecem esse processo ensino-aprendizagem: Assim é que, a par das relações sociais nas quais são elaborados e expressos novos conhecimentos e a reflexão sobre o mundo, vivenciados os processos de ensino-aprendizagem, há uma fonte inesgotável de Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Severiá Maria Idioriê experiências de aprendizagem com os seres de outros domínios cósmicos. (Lopes da Silva 2002: 46)
Tanto as crianças quanto os adultos da aldeia Wede’rã, ao caminhar por outros domínios como as cidades e a escola, produtos concebidos pelos não indígenas, buscam novos conhecimentos que lhes permitam manter sua alteridade, fortalecendo e valorizando suas identidades, ao mesmo tempo que “amansam” novas tecnologias como o vídeo para divulgar por meio de palestras, exibição de vídeos, vivências de canto e dança do povo A’uwẽ; por meio de cartilhas bilíngues sobre a saúde Xavante o foco apresentado é a saúde, como ser saudável.
A nova geração tem que compreender o mundo em que vive e as coisas que acontecem ao seu redor para continuarem vivendo sem perder a essência do Ser A’uwẽ. (Wazaé 2016: 4) Se a língua e a escrita foram as primeiras tecnologias aprendidas, assim que reconheceram a importância política do vídeo, perceberam a necessidade de conhecer suas técnicas, o funcionamento de suas máquinas, e de produzir os próprios vídeos. (Caminati 2013: 283)
Em relação ao processo ensino-aprendizagem, se considerarmos a importância do diálogo com as crianças, haverá possibilidades de fortalecer a escola como mais um lócus de aprendizagem.
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Recebido em 31 de maio de 2017.
Aceito em 05 de setembro de 2018. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A criança Bororo: entre a educação escolar e a educação indígena Juliana Guimarães Saneto1 Doutora em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas Professora Titular da Universidade Vila Velha julianasaneto@gmail.com Jocimar Daolio Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas jocimar.daolio@gmail.com
Resumo O estudo de caráter etnográfico busca problematizar a criança indígena - como sujeito histórico, cultural e de direitos - assim como diferentes processos e contextos de aprendizado produzidos pela educação escolar indígena e pela educação indígena. O lócus de investigação foi uma das sete aldeias da etnia Bororo, situada no estado do Mato Grosso (Região Centro-Oeste do Brasil). A criança, inserida tanto na dinâmica da educação escolar, como no contexto da educação indígena, assume posturas que transitam entre tradição e modernidade que revelam tensões e implicam diferentes formas de se manifestar, aprender e ser criança. A escola emerge como lugar que foi apropriado e ressignificado pelos Bororo, considerando sua dinâmica cultural, como local importante de se ensinar, de aprender e de ser criança. Palavras-chave: criança; educação escolar indígena; educação indígena. Abstract This ethnographic study aims to discuss the Indigenous child - as a historical, cultural and a law subject - along with distinct processes and learning environments created by the indigenous school education and indigenous education itself. The research locus has been one of the seven Bororo’s indigenous villages, located at the Brazilian state of Mato 1
Bolsista CNPq durante o período do doutorado.
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Grosso. The child, while inserted simultaneously in the dynamics of school education and in the context of indigenous education, takes postures that vary from the historical tradition to the modernity, unfolding tensions and implying in a number of manners to manifest themselves, to learn and to be a child. The school emerges as a site that has been re-signified by the Bororo people as an important place to teach, to learn and to be a child considering their cultural dynamics. Keywords: child; indigenous school education; indigenous educationI.
Introdução Em tempos de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar (BERTOLD BRECHT).
O artigo apresenta um estudo etnográfico, consubstanciado por registros fotográficos, que buscou compreender a presença da instituição escolar no contexto da dinâmica cultural produzida pela etnia indígena Bororo. Todo material foi construído durante uma pesquisa de campo realizada entre os meses de agosto e dezembro do ano de 2014, na a aldeia Córrego Grande. (foto 1) A aldeia Córrego Grande é banhada pelo Rio São Lourenço e situada na Terra Indígena Tereza Cristina2,
localizada entre os municípios mato-mato-grossenses de Santo Antônio de Leverger e de Rondonópolis, e distante cerca de 180 km da capital Cuiabá-MT.
Trata-se de um contexto comunitário constituído por, aproximadamente, quinhentos indígenas da etnia Bororo, em que mais da metade é representada por
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Figura 1: Menina Bororo em momento festivo com adornos tradicionais.
Fonte: Registro de campo, 2014.
Os Bororo residem em sete aldeias, distribuídas em seis diferentes Terras Indígenas, demarcadas ou em processo de demarcação, no estado do Mato Grosso. Caiuby Novaes (1993) estima que os Bororo, assim como outras etnias no Mato Grosso, foram contatados desde o início do século XVIII pelos bandeirantes. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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crianças e jovens3. As famílias vivem em casas dispostas em uma ordem circular que seguem, em sua maioria, um padrão de engenharia tradicional, que utiliza recursos coletados da natureza, como fibras de palmeiras e madeiras, para a sua construção.
Figura 2: Registro fotográfico aéreo da Aldeia Córrego Grande na década de 1970. Fonte: Caiuby Novaes, 1971.
Figura 3: O baito, casa dos homens, localizado no pátio central. Fonte: Registro de campo, 2014.
A Imagem 1 possibilita a visualização do padrão de organização das casas Bororo, com destaque para o pátio central e para a casa dos homens, que recebe o nome de baito, retratados também na Foto 2. Esses são locais destinados às práticas rituais e, por vezes, interditados às mulheres e às crianças.
A configuração atual da aldeia Córrego Grande mantém, de certa forma, o padrão circular considerando algumas casas dispostas de maneira mais aleatória dentro de um grande círculo. Para Viertler (1978), as expressões de circularidade se estendem às coreografias das danças funerárias, à roda da cerimônia do marido (grande círculo confeccionado de fibra de buriti, transportado em uma corrida travada entre os homens), entre outras. Em termos de descendência, os Bororo são matrilineares4,e é a mãe quem introduz
a criança, filha de um casamento exogâmico5, como uma integrante de um dos clãs que
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Entre os Bororo não existe demarcada a fase da vida delimitada como adolescência, pois os meninos tornam-se adultos entre 10 e 14 anos de idade, quando passam pelo ritual de iniciação que ocorre pareado com o ritual funerário. O rito fúnebre rege toda a sociedade e de acordo com Caiuby Novaes (1993: 284), “não há vida sem morte nessa sociedade”. A matrilinearidade consiste em um sistema de filiação e de organização social no qual só a ascendência materna é levada em consideração para a transmissão do nome, das prerrogativas, da condição de pertencer a um clã ou a uma classe. A mulher Bororo é a chefe da casa e transmite o nome à sua descendência. Os filhos e filhas, mesmo depois de casados, demonstram muita afinidade afetiva com suas mães (Bordignon, 2001: 48-49). O casamento exogâmico entre os Bororo, tradicionalmente, segue a organização social que separa a
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A criança Bororo: entre a educação escolar e a educação indígena
compõem a sociedade Bororo. O nome dado à criança na cerimônia ritual de nominação, realizada logo após o seu nascimento, a identifica perante à sociedade Bororo e a situa nesta, dando-lhe um lugar e uma função determinada e orientada culturalmente pelos clãs.
Entre os Bororo, tendo como base as etnografias produzidas6 sobre a etnia e a própria imersão no campo, existe uma organização social e política de ordem clânica7 e um processo de continuidade social representados majoritariamente pelo rito funerário, pois é ele que regula toda a vida entre os Bororo, tendo implicações culturais, sociais, políticas e adaptativas de acordo com as descrições de Viertlier (1991).
Durante o processo ritual do funeral há uma mobilização de toda a comunidade em torno da pessoa falecida. Esse rito, de acordo com Caiuby Novaes (2006), se constitui de momentos que representam a desfiguração e refiguração do mundo, já que promovem uma renovação do conhecimento produtivo e estético por meio de cantos, danças, ornamentos e pintura corporal, além das atividades de caça, pesca e coleta de frutos provenientes do cerrado.
De acordo com Bordignon (1986), o histórico de contato e de aproximação forçada dos Bororo à sociedade não-indígena ocorreu em momentos protagonizados por diferentes atores, com diversas abordagens. O processo foi iniciado pelos bandeirantes e continuado por militares e religiosos. Apesar dessas frentes se diferenciarem em suas abordagens, todas as intervenções e ações foram física e simbolicamente violentas e, de alguma forma, apontavam para a “domesticação” dos indígenas, no sentido de tirá-los da condição de “selvagens” e “primitivos”. Tudo isso significou tentativas impositivas e violentas de descaracterização cultural. Tomados estes contextos étnico e histórico, apresentamos a etnografia realizada o na aldeia Córrego Grande com o objetivo de observar e analisar a escola indígena Korogedo Paru – seus espaços, ações e interações com a comunidade. A instituição escolar foi instalada nessa aldeia mediante a reivindicação de famílias que até então, por inúmeras vezes, haviam se distanciado dos seus filhos para que frequentassem a escola 6 7
aldeia em duas metades clânicas exogâmicas denominadas de Tugarege e Ecerae. Nessa lógica um indivíduo pertencente a um clã não pode se casar com outro do mesmo clã. Claude Lévi-Strauss (1970, 1976, 1996, 2008), Renate Brigitte Viertlier (1991) e Caiuby Novaes (1993, 2006). A organização clânica dos Bororo se justifica e se legitima pelo seu universo mítico. De acordo com Colbacchini e Albisetti (1942), são poucas as etnias indígenas que mantêm uma organização tão complexa e particular como a dos Bororo. Os autores ainda mostram que há um sentido de solidariedade e reciprocidade entre os dois principais clãs – os Ecerae e os Tugarege –, tendo em vista que essas duas metades clânicas possuem obrigações mútuas entre si como casamentos e funerais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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mais próxima, na cidade de Rondonópolis.
Tendo em vista a presença e legitimação da escola entre muitas etnias indígenas, o Brasil propõe, nas últimas décadas, uma proposta de educação intercultural implementada pelo Ministério da Educação. Tal proposta é articulada como uma forma de adequação e ressignificação da instituição escolar às demandas e necessidades apresentadas por diferentes contextos étnicos.
A educação escolar: uma perspectiva indígena
A Constituição Federal e o Estatuto do Índio no Brasil preveem como direito o reconhecimento de formas próprias e diversas de organização sociocultural, tradições, conhecimentos e processos de constituição de saberes e transmissão cultural. A extensão desses direitos no campo educacional gerou a possibilidade de os indígenas se apropriarem da instituição escolar, atribuindo-lhe traços identitários e funcionalidades peculiares. A escola, espaço institucional histórico de imposição de valores, passa a ser reivindicada pelas comunidades indígenas como um lugar que possibilita a construção de relações intersocietárias baseadas na interculturalidade8 e na autonomia política. O
direito a uma educação escolar diferenciada nasce de um amplo campo da diversidade sociocultural no país, submetido historicamente às práticas homogeneizadoras, geradoras de desigualdades e injustiças.
As ações do Estado – formação de professores indígenas, implementação de cursos de licenciatura e magistérios interculturais, produção de materiais didáticos específicos e ampliação da oferta de educação básica nas aldeias indígenas - se configuram como políticas públicas, ações governamentais, que buscam atender às leis e diretrizes. Tudo isso acontece sob o discurso de garantir aos indígenas, de diferentes grupos étnicos, educação escolar diferenciada - construída coletivamente com as comunidades indígenas, partir das referências culturais de cada etnia. O Ministério da Educação-MEC idealiza a Educação Escolar Indígena como uma forma de ensino intercultural que “[...] deve trabalhar com os valores, saberes tradicionais e práticas da comunidade e garantir o acesso aos conhecimentos e tecnologias da sociedade nacional relevantes para o processo de interação e participação cidadã na sociedade nacional” (Brasil, 2007: 21). Nesse sentido, o Estado aposta na interculturalidade como 8
A interculturalidade é discutida por Tedeschi (2008) a partir de relações de gênero da sociedade brasileira. Nas apreensões que o autor realiza acerca da educação intercultural, a considera uma perspectiva enriquecedora das práticas educativas, em que a educação é compreendida “[...] como um processo universal de aprendizagem de várias lógicas, baseada na comunicação e na troca permanente entre diferentes” (Tedeschi, 2008: 17).
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A criança Bororo: entre a educação escolar e a educação indígena
uma forma de engendrar um processo de construção e solidificação de uma sociedade democrática, pluralista e inclusiva, capaz de articular políticas de igualdade com políticas de identidade. Com isso, a previsão é de que a Educação Escolar Indígena intercultural possa se constituir como uma instituição que promova e possibilite a negociação entre contextos culturais diferenciados.
Num diálogo construído entre Antropologia e Educação, Gusmão (2003) teoriza e tece reflexões importantes acerca da tríade diversidade, cultura e educação. A autora sugere que as sociedades plurais, perante à escola, tendem a se homogeneizar, mas num movimento de contrapartida é contrariada por singularidades e especificidades de coletividades que reafirmam suas identidades. A flexibilidade da escola no diálogo com outras formas de conhecimento, propiciadas pelo contato e por trocas interculturais, pode ser também considerada uma importante possibilidade para repensar seu papel. Assim como Gusmão (2003), Lopes da Silva e Grupioni (1995) defendem a escola a partir da diversidade, no entanto se apresentam de maneira pouco otimista em relação à escola indígena por colocarem em questão a capacidade dessa instituição de se fazer efetivamente espaço de trocas, diálogos e convivências. Para Lopes da Silva e Grupioni (1995), a escola tem sido historicamente um espaço hegemônico de imposições, monólogos e verdades que circulam num movimento homogeneizante e desrespeitoso. Alinhado ao pensamento de Lopes da Silva e Grupioni (1995), o indígena Bororo Félix Adugoenau, em entrevista concedida quando era Coordenador da Educação Escolar Indígena de Mato Grosso, criticou a instituição escolar em contextos indígenas, sobretudo entre os Bororo. Em entrevista, ele se mostra pessimista com os rumos da Educação Escolar Indígena no Brasil, dizendo que muitas conquistas foram e estão sendo realizadas, mas que ainda estamos distantes de uma situação ideal. Acredita que tal situação seja uma utopia e por isso nunca será alcançada, devido à grande diversidade indígena existente no país, o que aos olhos dele impossibilita generalizações de qualquer ordem. Seria como ter de pensar orientações e diretrizes específicas para cada etnia indígena do país, senão para cada aldeia. O coordenador declara que considera a escola um instrumento/ instituição alienígena para os indígenas e que dificilmente a escola indígena, como o MEC idealiza, seria possível. Por ser um organismo de fora, a escola muitas vezes conflita com organizações sociais internas de cada grupo étnico e isso pode gerar instabilidades e problemas9. 9
Félix Adugoenau exemplifica os problemas da Educação Escolar Indígena, durante a entrevista, com a “produção” de desigualdades sociais entre os Bororo, tendo em vista que a escola perfaz grande parte das oportunidades de trabalho assalariado dentro das aldeias. Neste contexto, muitos almejam um emprego, poucos são contratados e somente esses detêm poder de compra e ocupam um lugar de Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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É fato conhecido que o Brasil empreendeu e assistiu à oferta de programas de educação escolar às comunidades indígenas como um instrumento para a catequização, civilização e integração forçadas dos indígenas à sociedade não indígena. Nesse contexto etnocêntrico de imposições, houve uma negação da diversidade de culturas por meio de ações e posturas que buscaram uma diluição rumo à consolidação de uma identidade nacional brasileira10.
Mesmo em face da relação histórica e hegemônica entre indígenas e a escola, ou talvez por causa disso, a Educação Escolar Indígena se tornou uma das principais pautas políticas do movimento indígena e mobiliza ainda hoje diferentes frentes. Não se discute se os indígenas devem ou não ter escola – isso parece um consenso –, mas como essa deve ser configurada com vistas a atender seus projetos de vida.
A Educação Escolar Indígena e a Escola Indígena aparecem idealizadas, mas, mesmo
assim, possibilitando, aos indígenas, assumirem papéis de protagonismo e exercerem uma gestão autônoma da instituição, de sua configuração e funcionamento. No entanto, essa autonomia não está livre dos entraves e amarras burocráticos que permeiam e caracterizam qualquer instituição. Muito menos essa idealização corresponde à realidade vivida pelas comunidades indígenas brasileiras.
Figura 4: Crianças em uma estrutura anexa à escola montada pela comunidade. Fonte: Registro de campo, 2014.
Figura 5: Escola Indígena Estadual Korogedo Paru. Fonte: Registro de campo, 2014.
prestígio dentro da comunidade. Apesar do desejo e da necessidade de consumo terem aumentado, não observamos os indígenas da aldeia Córrego Grande sendo absorvidos por atividades laborais de fazendas do entorno, como foi como observado e descrito para os Bororo por Grando (2005) e Almeida e Suassuna (2010) em outra aldeia. 10 Nesse momento histórico prevalecia a imagem do indígena genérico, selvagem e não civilizado. Não havia a compreensão de uma diversidade desenhada por singularidades e especificidades culturais. De acordo com Lévi-Strauss (1970), há uma grande dificuldade do homem encarar a diversidade das culturas como um fenômeno resultante das relações diretas e indiretas que se estabelecem entre as sociedades.
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A escola na Aldeia Córrego Grande funcionou cerca de vinte anos em uma estrutura semelhante às moradias tradicionais, construídas pelos próprios indígenas com palha de buriti, no chão batido e com paredes de pau-a-pique ou com palha trançada – semelhante ao que retrata a Figura 4. Durante esse período, quem ministrava aula era uma religiosa franciscana que viveu na aldeia Córrego Grande por cerca de vinte anos. Praticamente todos os professores que trabalham na escola atualmente foram alunos dessa religiosa em algum momento de seu histórico escolar. Em 1999, a escola passa por um processo de regulamentação e estadualização; concomitante a isso há a construção de um prédio de alvenaria, de acordo com a Foto 4. A estrutura construída e depois de um tempo reformada segue o padrão das escolas estaduais de Mato Grosso, composto de salas de aula, biblioteca, sala de informática, salas administrativas, banheiros e cozinha.
A Escola Indígena Korogedo Paru possui um Projeto Político Pedagógico que desenha a garantia de uma educação escolar diferenciada, na medida em que prevê um calendário específico e cuja organização e planejamento garantem como letivos os dias em que a comunidade está envolvida com alguma manifestação cultural, como por exemplo o ritual funerário. O calendário demonstra e exemplifica um dos avanços que o Coordenador da Educação Escolar Indígena de Mato Grosso havia mencionado.
Mesmo fora do espaço escolar, em tempo de rituais e manifestações culturais, as crianças estão imersas num momento intenso de aprendizado. Nesse sentido, tirar a criança do contexto e da participação, mesmo como expectadora, de eventos culturais seria cerceá-la do convívio social, da apreensão cultural, da observação e do aprendizado dos bens culturais produzidos por seu grupo social. No calendário específico, organizado pelos dirigentes escolares da aldeia Córrego Grande com a participação da comunidade e atestado pela Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso, existe um espaço para possíveis eventualidades, que na sociedade Bororo são majoritariamente ligadas ao ritual funerário. Esse espaço reservado a imprevistos implica a suspensão das atividades escolares em função das atividades tradicionais, que são consideradas como dias letivos e momentos de ensino-aprendizagem.
Entende-se que rituais e momentos celebrativos contemplam formas tradicionais de ensinar e aprender, em uma espécie de pedagogia tradicional, com métodos e intervenções próprias da dinâmica cultural Bororo e alheias à estrutura e organização da instituição escolar. Diante disso, é possível notar um estreitamento entre Educação Escolar Indígena Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e Educação Indígena. Momentos e fatos como esse levam à compreensão de que, apesar das ambivalências existentes entre as duas formas de educar, existem estratégias que foram galgadas no sentido de torná-las complementares. Com isso, no entando, o ritmo parece apontar para uma escolarizarização de conhecimentos tradicionais.
Os meandros da educação indígena
Diferentemente da Educação Escolar Indígena, a Educação Indígena não é escolarizada e nem pressupõe a institucionalização do saber e do aprender. Dessa forma, define-se a partir de diversos processos de socialização e de ensino e aprendizagem que decorrem desde a concepção dos sujeitos e de a sua construção como pessoa, pertencente a um determinado grupo social/cultural, como mostra Veiga (2005: 139):
[...] a criança vai sendo submetida a práticas que vão se constituindo como sujeitos sociais, como os rituais de pintura ou banhos para “curar” [...] Os pais deixam a criança experimentar suas possibilidades na execução de habilidades, na imitação dos comportamentos dos mais velhos.
Nesse sentido, as crianças estão sempre expostas e em contato com o conhecimento que é produzido e transmitido por meio de uma rede dinâmica de relações intergeracionais, que promove a construção, a troca e a transmissão de saberes. Trata-se de um processo de aprendizado baseado na observação, na experiência e na imitação como um treino/ensaio para a vida adulta e para o desempenho de papeis sociais.Todo esse processo se inscreve no corpo e em suas interações na medida em que “todas as práticas corporais educam” (Grando, 2005: 176).
É possível considerar a Educação Indígena a partir de autores como Mauss (2003) e Viveiros de Castro (1987), que afirmam que a pessoa e o corpo são “fabricados” num processo de construção cultural, em que as a cultura é nele inscrita. Sendo assim, tanto na “fabricação de pessoa” em Mauss, quanto na “fabricação do corpo” em Viveiros de Castro (1987), ressalta-se a existência de um processo educativo indígena em que o sujeito é marcado pela cultura.
O que está implícito em Mauss (2003) e Viveiros de Castro (1987) é o que Soares (1998) entende como um conjunto de pedagogias que, escolarizadas ou não, envolvem uma série de procedimentos que incidem sobre o corpo a partir de um contexto histórico. Esses procedimentos não são institucionalmente sistematizados, mas sim legitimados coletivamente como eficazes. Nessa discussão, o corpo e suas linguagens ganham centralidade como transmissores
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de saberes e tradições. Mauss (2003: 215) enfatiza que é na “[...] noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social”. Assim, tanto a criança como o adulto imitam atos que obtiveram êxito e que viram serem bem sucedidos em pessoas em que confiam e que têm autoridade sobre eles. Nesse sentido, “[...] quando uma geração passa a outra a ciência de seus gestos e de seus atos manuais, há tanta autoridade e tradição social como quando essa transmissão se faz pela linguagem” (Mauss, 2003:115).
A Educação Indígena parece acontecer num contexto mais amplo, contemplando diferentes formas de linguagem e expressão, que não se restringe à presença da instituição escolar, mas sim que se inscreve em todos os procedimentos que, de alguma forma, incidem sobre o sujeito e o educam seguindo referências culturais.
Para Cohn (2004: 94), “[...] a Educação Indígena não se encerra e nem jamais se encerrará na escola”. Ao contrário de uma educação escolarizada, a autora atesta que o processo educativo indígena corresponde a uma educação integral das crianças, que não as restringe do convívio social com os adultos de sua aldeia. Nesse contexto, a criança aprende no dia-a-dia se relacionando entre si e com os mais velhos que partilham conhecimentos sobre a vida, os mitos, os rituais e toda a dinâmica social produzida e compartilhada culturalmente.
Figura 6: Crianças acompanhando a retirada do biri - pele do animal caçado - utilizada como adorno durante os rituais. Fonte: Registro de campo, 2014.
Nos contextos indígenas em que há a presença da instituição escolar entende-se que a Educação Indígena compete com a educação escolarizada. Em contrapartida, o que se percebe é um movimento de integração, na medida em que a educação escolarizada tende a compor, com outros tempos e espaços, o universo amplo da Educação Indígena. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Parece óbvio que a escola, inserida em contextos indígenas, interfere na rotina da comunidade, criando outras rotinas e outras possibilidades para a transmissão de saberes, novas formas de se ensinar e de aprender. Tassinari (2001: 52) mostra que, ao se tratar de aldeias indígenas, “[...] nem tudo se move de acordo com os ritmos e as exigências do mercado ou do mundo globalizado”. Na aldeia Córrego Grande, a escola – mesmo impondo seus espaços, regras e rotinas institucionais – se constitui como uma aliada da Educação Indígena quando possibilita acessos e trânsitos de saberes de práticas tradicionais.
Figuras 7 e 8: Crianças reunidas no pátio da escola, sob a orientação de anciãos da aldeia, para aprender a feitura de ornamentos corporais tradicionais entre os Bororo. Fonte: Registro de campo, 2014.
Essa questão foi observada a partir da presença constante de uma anciã e um ancião nas rotinas escolares. As duas lideranças faziam questão de se reunir, praticamente todos os dias, junto aos alunos da escola e, no contraturno, ensinavam todo o procedimento de feitura artesanal de ornamentos corporais tradicionais, denominados pelos Bororo de akigo, assim como de abanadores e cestos. As cores, assim como suas disposições no adorno, são ditadas pelos clãs. Essa organização define traços estéticos em adornos e pinturas corporais que identificam e delimitam identidades e funções sociais pertencentes a cada um dos clãs.
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Figura 9: Menina Bororo fazendo akigo com espinho de ouriço. Fonte: Registro de campo, 2014.
Figura 10: Menina Bororo tecendo um adorno usado na cabeça. Fonte: Registro de campo, 2014.
Figuras 11 e 12: Menino e menina Bororo trançando linha a partir de técnica ensinada pelos anciãos. Fonte: Registro de campo, 2014.
A partir do que foi observado, é bastante aparente que a Educação Indígena, entre os Bororo de Córrego Grande, pautada nas tradições e nas dinâmicas culturais específicas, opera por meio da oralidade, da observação, da imitação e do convívio intergeracional. Todas essas vias apontadas como fundamentais para a construção da Educação Indígena entre os Bororo se encontram localizadas e, de certa forma, entremeadas nos espaços escolares, como atividades propostas pela comunidade e que são reconhecidas, adotadas e legitimadas pela escola. As mudanças na tradição são decorrentes dos processos históricos que delinearam a atualidade. Balandier (1997) e Giddens (2000) tecem considerações que apontam a tradição como mutável frente às transformações. No entanto, essas mudanças não implicam sua total superação, uma vez que a tradição é capaz de se adaptar a partir de ressignificações e rearranjos. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A Figura 13 retrata um momento de interação do ancião Burudui11 no cotidiano da escola indígena Korogedo Paru. Nessa ocasião, ele apresentava e ensinava aos alunos um jogo tradicional Bororo, denominado de adugo12. Isso mostra a tradição utilizando o espaço e tempo institucionais para se propagar por intermédio da oralidade e de ilustrações no quadro negro. Burudui desenhou com giz branco o tabuleiro e explicou as possibilidades no jogo em meio a uma série de contação de histórias.
Figura 13: Ancião Burudui ensinando aos alunos o jogo de adugo. Fonte: Registro de campo, 2014.
Em Córrego Grande, quem define as ações que são empreendidas no espaço/tempo da escola são os próprios indígenas. Todos os professores que atuam na escola da aldeia são da etnia Bororo e toda a aldeia participa do cotidiano e das decisões escolares. Ao considerar a instalação de escolas nas aldeias, tem-se duas formas distintas de
educação - Educação Indígena e Educação Escolar Indígena - que envolvem diferentes métodos, procedimentos, espaços e condutas. Além disso, pressupõe-se que haja interação entre essas duas formas de educação que estão postas aos indígenas. Os espaços em que são travadas essas relações entre tradição e modernidade são considerados por Grando (2003), em diálogo com Barth (1969), como fronteiras entre as concepções de “nós” e “eles”. Aqui fazemos a leitura de que a educação indígena é considerada pelos Bororo como “nós” e a educação escolar como “eles”. Para a autora é nesse jogo de relações fronteiriças que são construídas novas possibilidades de interação e educação. A releitura de Grando (2003) nos permite outra compreensão, a de que a escola, cada vez mais apropriada pelos Bororo, vá se constituindo cada vez menos como
11 Trata-se de um senhor considerado uma liderança dentro da aldeia. A ele é atribuído o título de “chefe de cultura”, grande conhecedor da cultura Bororo e responsável por conduzir cantos na ocasião dos rituais. 12 Traduzido como jogo da onça, é sempre realizado entre duas pessoas, em que uma assume como personagem o adugo, a onça, e a outra representa como personagens os cachorros. O objetivo é a onça comer os cachorros ou os cachorros encurralarem a onça e tolher suas possibilidades de ataque. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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uma representação do “eles”. Na medida em que ocorrem apropriações e ressignificações da escola e de seus espaços, a instituição vai se tornando, num processo gradativo, uma representação do “nós”. À luz de Balandier (1997) é possível interpretar a escola, em contextos indígenas, como um elemento moderno que, na medida em que é instalado em terrenos tradicionais, cria desordens. Essas desordens promovem uma desestruturação da tradição, que num movimento de contrapartida se reorganiza em torno de novas ordens. O que queremos dizer aqui é que a Educação Indígena, representando a tradição e a ordem, é desestabilizada pela desordem promovida pela modernidade com o advento da escola. Com isso, a Educação Indígena reage às perturbações e se infiltra nos espaços e rotinas escolares e se apropria deles.
Parece haver tensões entre Educação Escolar Indígena e Educação Indígena, ao passo que ambas disputam tempos e espaços de convivência com os sujeitos. A escola não é, necessariamente, blindada aos conhecimentos tradicionais produzidos por um grupo étnico. Esses conhecimentos acessam a escola e permeiam seus espaços, pois fazem parte do arcabouço cultural que acompanha os sujeitos por meio da oralidade e/ou da corporalidade, como formas de linguagem e expressão.
Nesse sentido, o contexto de interação entre Educação Escolar Indígena e Educação Indígena entre os Bororo de Córrego Grande atestam um movimento de contrapartida, uma ordem que se instaura a partir de uma desordem (Balandier, 1997). A escola indígena Korogedo Paru constitui-se como um espaço que pareceu se apoiar nos saberes oriundos da tradição que a prática escolar construiu ao longo de sua história e que se efetiva em seu cotidiano. Isso mostra um processo de construção coletiva da escola, seus saberes e fazeres a partir das referências culturais.
A infância Bororo: o corpo e as práticas corporais corpo é uma síntese da cultura porque expressa elementos específicos da sociedade da qual faz parte (Daolio, 1995:25).
O que mobiliza o direcionamento do olhar no estudo são os significados de ensinar e aprender e as maneiras como as ações/intenções/interações são inscritas pelo corpo, com o corpo e no corpo. Nesse sentido, entende-se que existem tensões criadas pelo atual contexto intercultural, em que tradição e modernidade se encontram e coexistem de maneira ambivalente. O corpo Bororo é construído social e culturalmente num cenaŕ io que é permeado por
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uma disputa tênue promovida entre a educação escolarizada e a educação indígena. Essas duas formas de ensinar e aprender envolvem procedimentos pedagógicos e metodologias específicas, em que a presença da instituição escolar se configura como o elemento que, claramente, denuncia as maiores distinções e disparidades. A criança Bororo está inserida em diferentes dinâmicas apresentadas pela educação escolar e pela educação indígena. É em meio a esse contexto e no trânsito entre docilidade e liberdade que as crianças de Córrego Grande são educadas e preparadas para a vida adulta. É fato que a escola, ao longo da história, tem incidido de maneira determinante nas configurações desenhadas como infância. Logo, é inevitável que a presença da escola indígena Korogedo Paru, na aldeia Córrego Grande, tenha trazido grandes transformações na rotina e cotidiano das crianças Bororo. Todo esse movimento aponta para uma face escolarizada da infância que pode ser vista no conjunto de fotos que seguem. Essas retratam parte do cotidiano escolar, que parecem se aproximar de muitas outras escolas brasileiras.
Figuras 14, 15, 16 e 17: Crianças Bororo em atividades escolares da aula de educação física e em sala de aula. Fonte: Registro de campo, 2014. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Para Mauss (1974), o corpo é, necessariamente, uma construção simbólica e cultural. Nessa dinâmica, toda sociedade se utiliza de formas para marcar seus corpos. Essas marcas de que falava Mauss, simbólicas ou não, são e estão inscritas no corpo Bororo, que não se despe delas quando adentra os espaços escolares. Apesar de se considerar diferentes concepções de infância e de se pressupor que a escola constrói um modelo de infância escolarizado, que implica, antes de qualquer coisa, aprender a ser aluno - o corpo, ao adentrar o espaço escolar, não é desvestido de suas marcas e memórias, mas a ele são impostas regras e normas disciplinares que vão de encontro à liberdade que o corpo Bororo vive fora da escola. Ora presa pelas amarras disciplinares e vigilantes da instituição escolar, ora livre pela aldeia, a criança Bororo se entrega a práticas como brincadeiras diversas, tais como jogos de futebol, caça de pássaros com estilingue, banhos no córrego ou no rio, entre outras.
Figuras 18 e 19: Crianças Bororo se divertindo às margens do rio São Lourenço e brincando no córrego que banha a aldeia Córrego Grande. Fonte: Registro de campo, 2014.
Figuras 20 e 21: Meninos Bororo caçando pássaros com estilingue e brincando de lutar um contra o outro. Fonte: Registro de campo, 2014.
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Figuras 22 e 23: Crianças Bororo brincando de pari, brincadeira tradicional. Fonte: Registro de campo, 2014.
Figuras 24 e 25: Crianças Bororo brincando na periferia do campo de futebol. Fonte: Registro de campo, 2014.
Os contextos retratados representam liberdade, a mesma que a criança tem de transitar entre as casas dos seus parentes, todos que pertencem ao seu clã e que, por conseguinte, são co-responsáveis pela sua educação. Na casa de seus parentes as crianças brincam, comem, se banham, dormem, ouvem e contam históricas. Essa dinâmica possibilita uma rede de interações rica em que a experiência corporal ganha centralidade. Entre os Kaxinawá das terras baixas sul-americanas, McCallum (1998) identificou a dependência do corpo em relação aos processos externos praticados milenarmente pela etnia. Nesse sentido, o corpo é construído periodicamente por meio de interações que estabelece com o mundo e com os outros. Todo esse processo interativo é sustentado pela dilatação do conhecimento que produz esse corpo e que ao mesmo tempo é produzido por ele.
O conhecimento é inscrito no corpo na medida em que “[a]prender (unan) e ensinar (umanma) envolvem vários processos físicos e sensoriais: visuais, táteis, auditivos e digestivos [...] Diferentes tipos de conhecimento situam-se em diferentes partes do corpo”
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(Mccallun, 1998: 225). A sabedoria inscrita no corpo é sempre de ordem empírica, pois é construída e constituída no campo das experiências e observações13, em que o sujeito aprende para agir socialmente e age, da mesma maneira, para aprender.
Da mesma forma como McCallum (1998) identificou entre os Kaxinawá uma educação corporal de movimentos e sentidos, observamos entre os Bororo processos educativos na formação e conformação de um corpo forte, seja ele masculino ou feminino. O corpo Bororo, desde o período em que é gerado, recebe intervenções que são inscritas no corpo. Em tempos rituais cabelos são cortados ou arrancados, o corpo é
escarificado e resiste dias sem comida em decorrência da morte de um parente. É somando à experiência empírica a transmissão oral de conhecimentos tradicionais que as crianças têm seus corpos educados de acordo com as referências culturais. O processo educativo das crianças Bororo é, portanto, um treinamento constante e
contínuo de aprendizagem das tarefas e atividades tradicionais. O corpo é educado com as dores, os risos, as danças, as brincadeiras, a fome e tudo mais que é definido pela cultura.
Associadas à assimilação paulatina de valores e referências culturais, as crianças são treinadas e “[...] brincam de representar as histórias míticas [...]. Nessas brincadeiras imitam os adultos, o velhos, os animais e os espíritos, em suas maneiras de falar, em suas posturas corporais [...]” (Rangel, 1999:148). Apesar de haver racionalidade em torno do aprendizado, não há formalidade durante o processo educativo.
A educação do corpo Bororo, desencadeada pelas tradições, seus objetos e saberes, acontece tanto pela oralidade quanto por meio da corporalidade. Essas duas formas de linguagem balizam experiências, como os momentos ritualísticos do funeral, em que os mais novos e os mais velhos interagem num processo de educação, pautado em procedimentos tradicionais que incidem sobre corpo e o educa.
Percepções sobre o campo O estudo etnográfico apresentado nos leva à compreensão de que aldeia Córrego Grande, assim como a Escola Indígena Korogedo Paru, está imersa num processo dinâmico de transformações. Esse é um panorama de transição que envolve apropriação, reinvenção e ressignificação por parte dos Bororo, de acordo com a sua dinâmica cultural, suas compreensões e suas demandas.
13 Para Cecilia McCallum (1998: 227), a experiência e a observação subsidiam e promovem o aprendizado do corpo, resultando no que a autora chama de “sabedoria da mão e do olho”.
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Há uma sequência possível de como a aldeia Córrego Grande foi construindo sua apropriação em torno da instituição escolar, por meio de uma reinvenção que corresponde a uma sucessão de ressignificações. Ao mesmo tempo que se baseia em ordens disciplinares características da instituição moderna, abre espaço e caminho às práticas tradicionais Figura 26: Menina Bororo observando outras crianças de cima de uma árvore. e lhes servem como lócus. O cenário Fonte: Registro de campo, 2014. apresentado revela um outro conjunto de ações escolares coadunadas que podem sem entendidas por Educação Indígena.
Não cabe negar a existência de uma rivalidade velada de tempos e espaços entre a Educação Indígena e a educação escolarizada. Em contrapartida, observa-se que entre os Bororo de Córrego Grande a escola vai, aos poucos, compondo o universo da Educação Indígena.
A pesquisa de campo revelou que a Educação Indígena acontece tanto fora, quanto inserida no âmbito educacional escolarizado. A escola Korogedo Paru não é blindada aos conhecimentos bororo. Esses conhecimentos acessam a escola e permeiam seus espaços, pois fazem parte do arcabouço cultural que acompanha os sujeitos por meio da oralidade e/ou da corporalidade, como formas de linguagem e expressão.
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Juliana Guimarães Saneto, Jocimar Daolio
Editor: 11-21.
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Aceito em 03 de setembro de 2018.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 204-231.
Infância Mbyá-Guarani e o processo educativo dos “pequenos indígenas” da Tekoá Pindó Mirim Luana Santos da Silva Mestra em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) luanaeducadoraambiental01@gmail.com Mártin César Tempass1 Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) potz_51@yahoo.com.br
Narjara Mendes Garcia2 Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) narjaramg@yahoo.com.br
Resumo O presente artigo apresenta um estudo sobre a infância indígena Mbyá-Guarani, com foco nos processos educativos. Foram investigadas as interconexões a partir das concepções da Sociologia da Infância, da Antropologia da Criança e dos aspectos que transpassam a Educação Ambiental. Os sujeitos dessa pesquisa foram os “pequenos indígenas” MbyáGuarani da aldeia Pindó Mirim, que se situa em Itapuã, município de Viamão/RS. Como método de pesquisa-intervenção, foi usada a cartografia. A partir dos resultados, pode-se concluir que as crianças indígenas da Tekoá Pindó Mirim são atores sociais plenos, que tem autonomia e responsabilidades frente ao coletivo, e que as aprendizagens ocorrem no cotidiano de vida na aldeia. Essas experiências de educação e cuidado podem apresentar importantes contribuições para o campo da formação dos educadores. Palavras-chaves: Infâncias; formação de educadores; Mbyá Guarani; crianças indígenas.
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Professor do Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Professora Adjunta do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Educação da Infância - NEPE.
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Abstract This study is focused at Mbyá-Guarani indigenous childrenand their educational processes. Interconnections among elements of the Sociology of Childhood, the Anthropology of Children, and Environmental Education issues were investigated. The subjects of this research were the Mbyá-Guarani indigenous children from the Pindó Mirim village, located in Itapuã, municipality of Viamão, southern Brazil. Mapping was used as an interventionresearch method. Results show that the indigenous children of Tekoá Pindó Mirim are full social actors, who have autonomy and responsibilities within community, and that learning takes place in the everyday life of the village. In conclusion, such experiences of education and care may have important contributions to the field of educator training. Keywords: Childhoods; educator training; Mbyá-Guarani indigenous children.
Introdução O presente artigo discute a infância na contemporaneidade e sua relação com o lugar, a cultura e o ambiente, na perspectiva da Sociologia da Infância, da Antropologia da Criança e das questões que permeiam a Educação Ambiental (EA) nos territórios indígenas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, delimitando como sujeitos da pesquisa os “pequenos indígenas”3 Mbyá-Guarani que vivem na aldeia Pindó Mirim localizada na Colônia de Itapuã, município de Viamão, Rio Grande do Sul, Brasil. Os Mbyá-Guarani são umas das parcialidades étnicas dos grupos de língua Guarani, da família linguística Tupi-Guarani, do tronco Tupi. Vivem historicamente em Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, em um vasto território que é ocupado de forma descontinuada. Neste vasto território, os Mbyá-Guarani ocupam apenas as terras com as configurações ambientais condizentes e necessárias para a sua reprodução física e cultural, vivendo, assim, “ilhados” dentre os não-indígenas. No Brasil, os Mbyá-Guarani vivem em aldeias em Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
O estudo das infâncias indígenas apresenta relevância no campo da Educação por assinalar outras possibilidades de interações entre infância, ambiente e os processos educativos, em contextos nos quais as crianças podem ser vistas como atores sociais plenos e participantes ativos do processo educativo (Silva 2017).
Para tanto, serão apresentados ao longo deste artigo os questionamentos, as reflexões e considerações que foram emanadas durante a pesquisa e que julgamos serem 3
Essa é forma como se denominam as crianças na aldeia Pindó Mirim.
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importantes para educadores das infâncias.
Infâncias e as cosmologias indígenas
As crianças se distinguem umas das outras nos tempos, nos espaços, nas diversas formas de socialização, no tempo de escolarização, nos trabalhos, tipos de brincadeiras, gostos, nas vestimentas, enfim, nos modos de ser e estar no mundo (Delgado & Müller 2005: 167).
As concepções de infâncias que possuímos hoje fazem parte de toda uma trajetória, de todo um processo histórico social. Esse olhar é importante para que se possa desconstruir a ideia de que a criança é um ser atemporal e universal.
Na sociedade medieval o sentimento e a ideia de infância não estavam presentes, ou seja, a consciência das especificidades das crianças enquanto sujeitos que integram a sociedade não existia. Nesse período, alguns pensadores e filósofos já tratavam da criança como um sujeito a ser reconhecido socialmente, no entanto este sentimento não se fazia presente no cotidiano das famílias e no senso comum da sociedade. Como afirma Pereira: “na Idade Média havia crianças, mas não havia interesse por elas, não havendo nenhuma preocupação em descrever a infância” (Pereira 2012: 45). Somente no século XVII, os temas da primeira infância começam a ser discutidos e as crianças começam a ser representadas em retratos e no discurso social do Ocidente.
A ideia social de infância e das crianças como sujeitos sociais, e não mais como “mini-adultos”, emerge mais forte no período da modernidade, com a sociedade burguesa e as alterações na compreensão e organização da família. De acordo com Ariès (2011), que estudou a arte medieval, por volta do século XII a infância não era ainda representada pelos artistas. No final do século XIII, a criança começa a ser representada, mas não era caracterizada por expressão particular e sim compreendida como um adulto em miniatura. A infância, assim, não era percebida como uma fase importante ou que se destacava em relação aos adultos. A tríade cultural, social e histórica é fundamental para compreendermos as questões que permeiam as infâncias. “O estilo de infância vai ser definido a partir dos valores e funções sociais destinados às crianças em diferentes culturas, lugares e tempos” (Profice & Santos 2017:309). A sociedade moderna concebia a infância como um vir a ser, com uma fase de preparação para a vida adulta. Contrapondo-se a essa concepção, Deleuze trabalha com o conceito de devir-criança e ao especificar a relação com os pais argumenta que: Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Luana Santos da Silva, Mártin César Tempass, Narjara Mendes Garcia Ora, os próprios pais são um meio que a criança percorre, com suas qualidades e potências, e cujo mapa ela traça (...). Não existe momento algum em que a criança já não esteja mergulhada num meio atual que ela percorre, em que os pais como pessoas só desempenhem a função de abridores ou fechadores de portas, guardas de limiares, conectores ou desconectores de zonas (Deleuze 1997:73).
Nessa perspectiva, “a infância é o ‘ser em devir’ e nesta transitoriedade se anulou por demasiado tempo a complexidade da realidade social das crianças” (Sarmento 2007: 26). Nesse momento histórico, as crianças são percebidas a partir do ponto de vista dos adultos, do que estes pensam e acreditam serem importantes para sua formação. Na modernidade, cabe sempre ao adulto indicar e fazer as crianças conhecerem a segurança presentes nas verdades. Vemos, neste cenário, um infantil que, por não possuir as categorias do adulto, é tomado como ponto de partida, para ser moldado (Pereira 2012: 84).
Os estudos de Àries (2011) apontam para o surgimento de uma ideia de infância “ocidental e burguesa”, concebida nos países europeus durante a ascensão da sociedade burguesa da modernidade. Mas, e as outras infâncias? E as infâncias nos e/ou dos povos indígenas? Tais questões são importantes pois, segundo Lopes e Vasconcellos, A pretensa universalidade, pressuposta no pensamento de Àries para o ser criança no mundo ocidental, na verdade esconde uma variedade de dimensões de infância que variam de localidade para localidade e constituem uma diversidade de marcas sociais (Lopes & Vasconcelos 2006: 117).
Na contemporaneidade, essas formas de conceber as infâncias e compreender a participação social das crianças começam a sofrer alterações. A década de 1980 se torna um marco nas novas discussões sobre as infâncias, posto que as questões relacionadas às infâncias passam a ser melhor problematizadas em diferentes áreas do conhecimento. Com maior visibilidade no campo das ciências, as crianças passam a ser percebidas como um grupo social, não mais como simplesmente uma fase, uma etapa da vida. A partir desse período muitas pesquisas passam a ser realizadas com elas, em que são captadas as suas percepções e interpretações sobre o mundo, e não apenas sobre elas. Muitos pesquisadores se destacaram nesse período, entre eles citamos Corsaro (2011), pesquisador que dedicou
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seu trabalho a compreender as crianças em seu contexto social, negando assim o discurso hegemônico ainda fortemente arraigado na época. Corsaro considerou em suas pesquisas os elementos locais da cultura em que a criança se insere e participa ativamente.
Por conseguinte, apresentamos as concepções de infância no campo da antropologia, que, nestes estudos, se preocupa em perceber a transformação que diversas sociedades produziram e produzem em seu ambiente frente à diferença entre a espécie humana relacionada com outros seres e também sobre o lugar da consciência na transformação social (Foladori & Taks 2004). Assim, a antropologia tem como um dos objetivos âncoras: [...] oferecer um olhar sobre a relação sociedade-natureza, que não caia nem no romantismo ambientalista daqueles que veem, em algumas sociedades pré-capitalistas, um modelo de sustentabilidade ambiental (e às vezes social) nem na apologia modernista do capitalismo, baseada na aplicação da ciência e da tecnologia hegemônica (Foladori & Taks 2004: 328).
Entretanto, apesar dos avanços nos estudos acadêmicos, podemos perceber ainda que as sociedades, em grande parte capitalista e adultocêntrica, focam o olhar no que os adultos acreditam ser importante para as crianças, procurando oferecer subsídios para que se tornem futuros adultos com os atributos necessários para a vida social, muitas vezes direcionando, inclusive, para posições específicas na sociedade. E, para que este processo funcione, as crianças precisam ser invisibilizadas e silenciadas. Advogamos pela revisão deste quadro. De acordo com Prout:
Ainda temos muito a aprender sobre formas de permitir que as crianças falem por si próprias e de sua maneira. Com muita frequência exige-se que as crianças se ajustem às formas de participação dos adultos, quando o que é necessário são mudanças institucionais e organizacionais que facilitem e encorajem as vozes das crianças (Prout 2010: 35).
As pesquisas antropológicas sobre as “infâncias” (no plural, para expressar a diversidade social) ainda têm pouca difusão no meio acadêmico, se comparadas com as produzidas pelas outras áreas do conhecimento. Dentre os poucos estudos predominam os que denunciam a visão “adultocêntrica” na produção da ciência, característica predominante a partir do século XVII nas sociedades burguesas e capitalistas. Conforme Sarmento: “A criança é considerada como o não adulto e este olhar adultocêntrico sobre a infância registra especialmente a ausência, a incompletude ou a negação das Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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características de um ser humano ‘completo’” (Sarmento 2007: 33). Com isso, as sociedades criaram mecanismos de controle e institucionalização da infância com o objetivo de normatizar e homogeneizar as crianças no estabelecimento de padrões de normalidade/ anormalidade, de cuidado e das atividades infantis. Esse pensamento sobre a infância é fortalecido com o iluminismo, a industrialização e as ideias de modernidade na Europa, e buscou expandir-se pelas sociedades urbanizadas pelo mundo, modificando-se com as especificidades culturais de cada país. Segundo Eisenstadt (2001), a modernização das relações sociais apresenta um caráter híbrido e contraditório, favorecendo o surgimento de “modernidades múltiplas” não estáticas. Outra questão a ser superada na tradição dos estudos antropológicos é o foco na socialização da criança, que na maioria dos casos não é reconhecida enquanto ser social e sim como um sujeito “pré-social”, que deve ser que gradualmente inserido no mundo dos adultos. Nos seus estudos sobre a concepção social da infância, Prout (2010) aponta a existência de duas formas de conceber a socialização das crianças: pré-sociológica e sociológica. Na concepção pré-sociológica, a criança é percebida como alguém fora de seu contexto histórico e social e que deve ser inserida (geralmente pela família e a escola) no contexto social. A concepção sociológica surge a partir da década de 1980, e desperta suas preocupações com a criança como sujeito social. Nessa concepção as crianças vivenciam e se constituem através de suas relações sociais desde o nascimento. De acordo com o autor, nos últimos 30 anos houve mudanças nas condições e experiências da infância “[...] desestabilizando os conceitos sobre o que ela é e o que deveria ser (...) geram um contexto essencial para que se entenda a emergência da voz e da participação das crianças” (Prout 2010: 22).
Contrapondo a ideia pré-sociológica, a infância gradativamente “sobe ao palco” para se tornar protagonista no campo específico de estudos antropológicos. A “Antropologia da Criança” apresenta como proposta os estudos sobre a cultura na perspectiva das crianças e na interação dessas como sujeitos sociais ativos do contexto em que estão inseridas. Conforme Gomes:
Superada a ideia que a infância ou as crianças se tornassem meros objetos de investigação, o que veio se evidenciando foi a necessidade de permitir – e promover – que as crianças tomassem o lugar de sujeitos nas investigações, ou seja, que fossem consideradas enquanto atores sociais, produtores de sentido, plenos participantes das práticas sociais nas quais se encontram envolvidos (Gomes 2009: 82).
O esforço dos estudos antropológicos resultou na expansão das pesquisas “com” as crianças e na ampliação da compreensão sobre a representação de infância. Profice
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e Pinheiro (2009) propõem que o pesquisador explore com as crianças, em harmonia, não sendo artificialmente infantil e sim buscando “[...] uma sintonia com o modo de percepção e de expressão próprias da criança e inacessíveis por intermédio dos modelos investigativos tradicionais” (Profice & Pinheiro 2009:17). As crianças podem contribuir para o processo de pesquisa antropológica como participante ativo do processo e que pode expressar as suas percepções sobre o lugar e a realidade em que se insere. Segundo Cohn: “Precisamos nos fazer capazes de entender a criança e seu mundo a partir do seu próprio ponto de vista. E é por isso que uma antropologia da criança é importante” (Cohn 2005: 8). Nunes contribui para esta compreensão afirmando que: Fundamentalmente, é preciso que nós, adultos, antropólogos, consigamos olhar a criança como um ‘outro’, inteiro e pleno, um agente social por si, e não como um ‘nós’ em ponto pequeno que temos vagamente guardado na memória, nem como um mero projecto ou esboço daquilo em que os anos e a experiência o tornaram (Nunes 2003: 32).
Nesta perspectiva, ao se desenvolver pesquisas antropológicas com crianças, é necessário estar atento às diversidades das infâncias, pois as mesmas têm relação direta com a sociedade da qual fazem parte. Segundo Gomes, precisamos “[...] perceber que estamos diante de formas muito diferenciadas de se considerar o que seja adequado para as crianças em função de concepções muito diferenciadas da criança e do seu lugar na sociedade” (Gomes 2009: 93). Portanto, estudar a infância – ou as infâncias – através de um olhar antropológico tem como objetivo oferecer um contraponto à visão global e dominante. Esses olhares visam contribuir para compreender novos “repertórios” interativos entre infância e ambiente e possíveis estratégias educativas diante desses repertórios, desmistificando a antiga (mas também ainda atual) visão global e única de criança e educação da infância. Segundo Cohn: [...] foi só quase no final do século 20 que esforços concentrados e focados foram expedidos para buscar entender as crianças e suas vidas por elas mesmas. A diferença, então, estava no fato de que estas pesquisas iriam prestar atenção nas crianças pelo que elas eram, e não pelo que elas deveriam ser ou viriam a ser (Cohn 2013: 224).
Como já afirmado, os estudos com foco nas infâncias e suas interpretações sobre a realidade são bastante recentes. E dependem de uma “desconstrução” interna de concepções pré-estabelecidas e paradigmas tradicionais de ciência. Tais pressupostos se Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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acentuam quando tratamos de outras infâncias em nosso próprio tempo, como pode ser considerada, por exemplo, as infâncias indígenas. Nesse sentido, os pesquisadores precisam evitar a concepção de uma infância universal, pois é fundamental considerar o ser criança no contexto local. Até mesmo a infância para os indígenas, por exemplo, pode apresentar concepções variadas, conforme o tempo histórico, cada sociedade e as interações locais. De acordo com Pereira: “[...] podemos reafirmar que a infância é profundamente plural. As faces que assume estão associadas com a relevância dos contextos cotidianos enraizados nas experiências do mundo prático” (Pereira 2012: 149).
Nesta perspectiva, no campo das pesquisas sobre a infância, os estudos de cunho etnológico vêm crescendo e levando em consideração o que essas crianças têm para dizer das suas vivências. Para os ameríndios, estes estudos tiveram início na década de 1990. Os materiais etnográficos referentes aos estudos sobre as crianças indígenas ainda são escassos, sendo a produção antropológica sobre as questões relacionadas à escolarização das sociedades indígenas no Brasil algo recente, tendo como alavanca as conquistas no campo dos direitos indígenas. O material disponível sobre escolarização indígena já se apresenta amplo, entretanto, estudos sobre crianças indígenas não. Os Mbyá-Guarani caracterizam-se pela forte mobilidade entre as suas diversas aldeias. São frequentes viagens, visitas e trocas de local de moradia que, desencadeadas por fatores diversos, fazem com que estes indígenas estejam em constante circulação pelo seu amplo território. Assim, com a troca de pessoas, coisas, ideias e emoções, podemos afirmar que a cultura Mbyá-Guarani está sempre sendo atualizada, onde quer que eles se encontrem. Em outras palavras, com raras exceções, os elementos que se encontram em uma aldeia Mbyá-Guarani também podem ser encontrados em todas as outras.
Porém, em seus desdobramentos, diferenças significativas podem ser encontradas entre aldeias no que tange questões de posse e qualidade da terra e na relação com os não-indígenas, principalmente no que diz respeito ao acesso a políticas públicas. E isso está diretamente relacionado com a educação formal escolar e com a interação das crianças com o meio ambiente. Posto isso, no presente artigo trataremos de questões que perpassam a infância Mbyá-Guarani como um todo, mas também apontaremos questões específicas presenciadas na aldeia Pindó Mirim, principal campo etnográfico desta pesquisa. Por exemplo, na aldeia Pindó Mirim, por suas especificidades, na relação com a sociedade juruá (não-indígenas), as crianças são chamadas de “pequenos indígenas”. Os “pequenos indígenas” são considerados como atores sociais tanto quanto os adultos membros da comunidade. Como vimos, isso difere da concepção ocidental de infância e, ao se pesquisar um grupo singular, segundo Sato & Passos (2011), é importante estar Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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atento às particularidades daquela determinada sociedade, suas identidades, para não se cair na armadilha da desintegração da Modernidade. Afinal, os grupos têm:
(...) suas vidas, técnicas, crenças, medicinas, enfim, suas cosmologias – nas quais eles se incluem – não podem ser compreendidas mediante a fragmentação teórica da modernidade, mas dentro de suas teias de significações e sentidos, traçadas por uma cosmogonia que diz respeito à sua identidade social (Sato & Passos 2011: 247).
Assim, para que pudéssemos pesquisar sobre a infância dos Mbyá-Guarani da aldeia Pindó Mirim, foi importante não compartimentar, não desatrelar a historicidade das categorias, e sim compreendê-las nas inter-relações existentes. Adentrar nas interconexões e compreendê-las exigiu reconhecer a sua indissociabilidade, bem como admitir as diferenças nas concepções de ambiente e infância emergentes nesse estudo, reconhecendo esse processo como uma construção histórica, social e cultural. A criança Mbyá-Guarani é considerada como um ser de fato (social e espiritual), que precisa ser cativado para que seu espírito seja feliz neste mundo e aqui queira permanecer4. Assim, a criança Mbyá-Guarani é valorizada e respeitada. E é também uma
dádiva. Segundo Assis: “as crianças significam a perpetuação do mundo, pois indicam que os deuses continuam sendo generosos com os homens, mandando suas palavras-almas (ñhe’ê) [crianças]” (Assis 2006: 67)5.
Mas, mesmo na condição de atores sociais plenos, as crianças Mbyá-Guarani são seres em constituição, que devem ser cuidadas e instruídas. Porém, isso ocorre de forma bastante singular na aldeia.
Metodologia Desde 2014 foram feitas incursões esporádicas na tekoá Pindó Mirim, realizando as primeiras aproximações, gradativamente sendo os pesquisadores acolhidos. A aproximação se deu principalmente através da escola Nhamandu Nhemopu’ã, situada dentro da aldeia. Em agosto e setembro de 2016 adentramos mais intensamente no campo, realizando uma média de três incursões por semana, durante duas semanas em cada mês, além de outras visitas combinadas previamente com a comunidade nos meses subsequentes. As visitas variavam quanto à duração, mas geralmente se chegava à aldeia
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Sobre isso ver Tempass, 2012. As palavras em Guaraní estão grafadas conforme os autores referenciados.
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no turno da manhã, por volta das 9h, e se ficava até meio da tarde (16h). A pesquisa foi finalizada em março de 2017.
As incursões em campo surgiram a partir do contato próximo que tínhamos com alguns integrantes do Instituto Sementes ao Vento, que, através do patrocínio da BrazilFoundation, realizam, desde 2013, trabalhos em parceria com a Pindó Mirim. Após algumas idas de aproximação com a aldeia e gradativas combinações, começamos a participar de algumas das vivências na comunidade, sempre realizadas na escola Nhamandu Nhemopu’ã e combinadas previamente com a diretora da escola. Nas incursões em campo, alguns rostos de “pequenos indígenas” se mostraram familiares, e outros se modificavam a cada ida, devido à mobilidade, característica da cultura indígena mbyáguarani. Inicialmente o Cacique ficou receoso em autorizar a pesquisa, mas com o tempo e a inserção gradativa no cotidiano da aldeia, a proposta foi aceita e acolhida pela comunidade. As crianças, enquanto atores centrais do processo de pesquisa, acolheram e participaram ativamente das interações.
A cartografia foi escolhida como o método de pesquisa-intervenção. De acordo com Passos, Kastrup & Escóssia (2015),, nesse método toda pesquisa é uma intervenção. A simples introdução do cartógrafo na vivência em campo já o impossibilita de ser neutro, posto que não há separação entre conhecer e fazer. O pesquisador, mesmo não desejando, é considerado observador atuante, intervém e transforma as situações e sujeitos da pesquisa. Esse método é considerado flexível, pois o cartógrafo vai traçando os caminhos sem que estes sejam decididos de antemão. Esse método tem consonância com a concepção de devir-criança proposto por Deleuze em que o trajeto percorrido “[...] se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade entre percurso e percorrido” (Deleuze 1997:73). Nesse sentido, conhecer a realidade é acompanhar seu processo de constituição, o que não pode se realizar sem uma imersão no plano da experiência. Conhecer o caminho de constituição de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto, constituir esse próprio caminho, constituirse no caminho. Esse é o caminho da pesquisa-intervenção (Passos & Barros 2015: 31).
Em relação aos dados, em uma perspectiva construtivista, no ponto de vista de recentes estudos, não existe uma coleta de dados, mas sim uma produção dos dados da
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pesquisa.
A pesquisa de campo requer a habitação de um território que, em princípio, ele [o pesquisador] não habita. Nesta medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnográfica e lança mão da observação participante. O pesquisador mantém-se no campo em contato direto com as pessoas e seu território existencial (Barros & Kastrup 2015: 56).
Os passos da pesquisa iniciaram com a aproximação respeitosa com os moradores da aldeia para criar vínculos, e assim gradativamente buscar compreender o universo deles. Foram realizadas “saídas exploratórias” (Eckert & Rocha 2008) com o intuito de observar o espaço, o contexto, com o olhar atento as particularidades. Após, foram observadas as brincadeiras que as crianças da aldeia realizavam e seu pertencimento ao ambiente. Nessa etapa, há um aspecto importante a salientar, que é a relação entre pesquisador e pesquisado, em que a experiência em campo não é externa, já que o pesquisador está inserido na cena que observa e não em uma relação de sujeito-objeto. Trazemos as contribuições de Sato e Passos, que salientam que: [...] o paradigma contemporâneo das ciências naturais, em especial da Física Quântica, tem compreendido a impossibilidade de @ pesquisador@ manter-se fora do jogo de sua observação (...). Não existe mais a ciência externalista do sujeito que observa o objeto, mas um mergulho dos sujeitos na relação com outros sujeitos (Sato & Passos 2011: 244)6.
Por sua vez, Brandão argumenta sobre a relação tradicional de:
[...] sujeito-objeto entre investigador-educador e os grupos populares deve ser progressivamente convertida em uma relação do tipo sujeitosujeito, a partir do suposto de que todas as pessoas e todas as culturas são fontes originais de saber. A partir, também, da consciência de que é da interação entre os diferentes conhecimentos que uma forma partilhável de compreensão da realidade social pode ser construída através do exercício de uma pesquisa. O conhecimento científico e o popular articulam-se criticamente em um terceiro conhecimento novo e inovador (Brandão 2005: 261).
As cenas observadas pelo pesquisador são alteradas por sua presença, ou seja, caso este não estivesse presente as situações transcorreriam de forma diferenciada, já
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As citações estão grafadas conforme os autores referenciados.
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que o pesquisador é um “personagem” da cena que está observando. Nesse contexto, essa observação, além de não ser externa, é um ver (olhar que se modela), pois implica em uma organização do que ocorreu.
Após a criação de vínculo e observações iniciais, a pesquisa abrangeu a interação com as crianças nas brincadeiras e trabalhos, nos momentos de aprendizagens. Visando estar receptivos para descobertas e outras concepções de infância, de possibilitar uma relação de troca, tentando tratar os “pequenos indígenas” sem relações adultocêntricas. Cohn sugere:
[...] seu caráter dialógico, de interação, terá que ser enfatizado, permitindo ao pesquisador tratar as crianças em condições de igualdade e ouvir delas o que fazem e o que pensam sobre o que fazem, sobre o mundo que as rodeia e sobre ser criança, e evitando que imagens ‘adultocêntricas’ enviesem suas observações e reflexões. Significa lembrar, desde a realização da pesquisa (e não apenas na análise dos dados), que a criança é um sujeito social pleno, e como tal deve ser considerada e tratada (Cohn 2005: 45).
Durante todas as incursões em campo foram utilizadas anotações feitas em diário de campo. As escritas nele contidas foram revisitadas em diferentes estágios da pesquisa com o intuito de reativar a memória, traçar relações, descortinar questões que por determinado tempo passaram despercebidas. Esse instrumento de pesquisa foi fundamental na elaboração e estruturação do trabalho, dando suporte para sua construção. O caderno de campo foi percebido como memória material das vivências em campo e utilizado enquanto produção de dados. Sobre o diário de campo, Barros e Kastrup explicam que:
Para a pesquisa cartográfica são feitos relatos regulares, após as visitas e as atividades, que reúnem tanto informações objetivas quanto impressões que emergem no encontro com o campo. Os relatos contêm informações precisas – o dia da atividade, qual foi ela, quem estava presente, quem era responsável, comportando também uma descrição mais ou menos detalhada – e contêm também impressões e informações menos nítidas, que vêm a ser precisadas e explicitadas posteriormente. Esses relatos não se baseiam em opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo que se dá no plano intensivo das forças e dos afetos. Podem conter associações que ocorrem ao pesquisador durante a observação ou no momento em que o relato está sendo elaborado. É interessante ressaltar que o momento da preparação do relato funciona muitas vezes como um momento de explicitação de experiências que foram vividas pelo cartógrafo (Barros & Kastrup 2015: 70).
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Registros fotográficos de momentos captados nas incursões em campo foram utilizados durante a pesquisa com o objetivo de ilustrar as vivências7. A partir da interação com as fotografias, foi possível escrever as análises das produções dos dados e reflexões sobre os trabalhos de campo. Andrade, ao trabalhar com o conceito da fotografia, relata que:
[...] a imagem fotográfica nasce da observação de uma realidade que está contida em uma estrutura cultural, ela vem carregada de significados, de fragmentos que deverão ser moldados em um relato único e revelador. A imagem comunga com o texto para nos fazer melhor compreender e elaborar uma análise desses significados (Andrade 2002: 52).
A máquina fotográfica possibilitou as primeiras aproximações em campo com os “pequenos indígenas” e a partir de então passou a ser uma parceira de trabalho em campo que nos acompanhou durante toda a caminhada da pesquisa. Essa parceira tornou-se parte também da comunidade a partir do momento em que a máquina fotográfica foi entregue para as crianças e adolescentes indígenas registrarem, através de fotos e filmagens, os seus olhares das experiências.
Durante o estudo, nos preocupamos em realizar um trabalho em conjunto com os sujeitos de pesquisa. Por conseguinte, estar atentos em qual forma de devolução dos dados seria mais interessante a partir do desenvolver das vivências em campo. Acreditamos que tal atitude, além de ser uma relação de troca entre pesquisadores e pesquisados, é uma forma de participação efetiva dos sujeitos da pesquisa com os resultados da mesma. Como devolução dos dados da pesquisa realizamos uma exposição na comunidade com o registro das fotos, elaborada com a participação ativa da comunidade.
Resultados e discussões Quem ensina, com quem se aprende, onde e quando? Qual a atmosfera que impregna situações de aprendizagem? Como são as relações entre gerações e entre gêneros nesses processos? (Silva 2002: 51).
A partir da produção dos dados, ficou evidente que ocorrem processos educativos nas interações das infâncias indígenas da Tekoá Pindó Mirim, ao traçar as particularidades das aprendizagens, do trabalho, do lúdico e da autonomia das crianças no cotidiano da
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A autorização do uso da imagem foi feita por um dos representantes da aldeia (Paulo).
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aldeia.
Na observação do cotidiano da aldeia, foi possível perceber o processo educativo e a aprendizagem acionada pela observação atenta, silenciosa e in loco. O processo de conhecimento da realidade se realiza a partir do acionamento do interesse dos “pequenos indígenas”. E muito mais do que a transmissão dos conhecimentos através da linguagem verbal, somente no aspecto cognitivo, as crianças e comunidade em geral aprendem através da observação e da participação ativa do corpo. As crianças menores aprendem com as maiores a partir dessas observações e imitações.
Figura 1: “Pequenos indígenas” cortando ou observando o corte de bambu. Fonte: Luana Santos da Silva, agosto de 2016.
A educação ocorre no cotidiano, na rotina da aldeia. Muito mais que uma preocupação para a aprendizagem cognitiva, através de explicações técnicas, utilização da linguagem oral e, sim, com o foco na aprendizagem na ação no aprender através da prática, na imitação, no desenvolvimento do corpo. Tassinari argumenta que: “A preocupação com a educação parece ser muito mais direcionada a preparar os corpos para a aprendizagem e a mostrar como se fazem certas coisas do que falar a respeito delas” (Tassinari 2007: 17). No mês de março de 2016, a comunidade se preparava para a realização da
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Semana Cultural, evento em que recebem estudantes de várias escolas e universidades da região. Em função dos preparativos, ficamos sabendo que eles estavam precisando de um pirógrafo e madeiras para confeccionar placas para identificar as árvores com o seu nome em guarani. Então conseguimos o material necessário. Após a identificação das árvores com o conhecimento de dona Laurina8 (anciã da aldeia), juntamente com o professor guarani, alguns ‘pequenos indígenas’ observavam o adulto Paulo, que pegava as caixas de madeiras e separava as partes das mesmas. Após essa observação atenta e silenciosa, os ‘pequenos indígenas’, em suas autonomias e iniciativas, puseram-se a imitar Paulo e passaram a realizar o trabalho também. Nesse sentido, Bergamaschi observa que:
O aprender, acionado pela curiosidade, privilegia a observação, o que configura um traço sobressalente e que busca no fazer, muito mais do que no dizer, possibilidades concretas para a aprendizagem. A pessoa é, desde pequena, uma observadora da natureza, da qual se sente parte, tendo-a como fonte inspiradora de vida e de educação, mas é também uma observadora do comportamento de outras pessoas. Especialmente os pequenos têm nos irmãos maiores e nos adultos seus parâmetros e, por meio da imitação, constroem seus comportamentos particulares (Bergamaschi 2007: 202).
É possível perceber as aprendizagens a partir do interesse dos “pequenos indígenas”, que realizam a atividade enquanto têm vontade, largando a mesma a partir do momento que ela não é mais interessante para eles. Os movimentos com o corpo para obter sucesso na separação das madeiras da caixa e a intensidade do movimento da batida com a mão são aspectos em que se pode perceber o quanto os “pequenos indígenas” estão atentos.
A aprendizagem, muito mais que conhecimentos passados de forma verbal e somente cognitiva, tem que estar atrelada às vivências. O processo se dá no interesse pela atividade, na aprendizagem in loco que é atravessada pelo corpo do aprendente que primeiro observa outra pessoa realizando para após imitá-la.
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A utilização dos nomes em português foi autorizada pelos Mbyá-Guarani.
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Figura 2: Crianças separando as madeiras das caixas para fazer as placas de identificação das árvores. Fonte: Luana Santos da Silva, março de 2016.
Os processos de aprendizagem ocorrem no fazer cotidiano da aldeia. A escola é percebida somente como um dos ambientes de educação, já que em todos os momentos a comunidade está aprendendo. A escola, além de trabalhar os conteúdos curriculares, participa da comunidade no sentido de valorizar os saberes tradicionais e se envolve em atividades que fazem sentido para a comunidade, respeitando e contribuindo com a cultura Mbyá-Guarani. As crianças aprendem umas com as outras. Aprendem também com os anciões, que são considerados pela comunidade como detentores dos saberes da tradição. Elas vivenciam situações de ensino e aprendizagem com os elementos naturais. Enfim, aprendem com e na cultura da qual fazem parte. Brandão trabalha com o conceito de “comunidades aprendentes” e argumenta que:
Nós aprendemos, em diferentes e integradas dimensões de nós mesmos, os diversos saberes, as sensações, as sensibilidades, os sentidos, os significados e as sociabilidades que, juntas e em interação em nós e entre nós, nos tornam seres capazes de interagir com uma cultura e em uma sociedade (Brandão 2005: 85 – grifos no original).
No cotidiano da aldeia, os “pequenos indígenas” vivenciam a cosmologia do grupo.
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As trocas e o compartilhamento de saberes e práticas são habituais nas comunidades indígenas, onde todos aprendem com todos, sendo consideradas “fontes originais de saber” (Brandão 2005). O processo educativo tem que passar pelo corpo, na aprendizagem in loco, e está permeado pela cosmologia Mbyá-Guarani. Os “pequenos indígenas” são percebidos como educadores, ensinam e aprendem entre si. O saber ancestral é fundamental na constituição do ser indígena. Este também é trabalhado na escola da comunidade, que está fortemente atrelada à cultura Mbyá-Guarani. Ao se trabalhar com o conceito de múltiplas infâncias e a partir do contexto, do local onde as crianças vivem, o pertencimento delas em determinado espaço, surgem reflexões sobre diversos aspectos. Cada um dos “pequenos indígenas” da Tekoá Pindó Mirim é um ser único, com suas características de personalidade, que são respeitadas por todos na aldeia. Os aspectos de conduta que se repetem entre elas são a autonomia e a responsabilidade. Assim como também as questões lúdicas e de trabalho se entrecruzam na rotina da aldeia.
As experiências em campo possibilitaram a reflexão sobre a forma de educação com as crianças que nós, não-indígenas, presenciamos, aprendemos e exercemos. Na aldeia, percebemos crianças indígenas responsáveis, autônomas, aprendendo na observação silenciosa e na prática. Cuidam uns dos outros, se preocupam com o próximo. Não presenciamos em nenhum momento brigas ou alterações de voz. Os adultos não supervisionam, nem repreendem de forma agressiva. Um dos aspectos referentes ao processo educativo que merece destaque é a autonomia das crianças no seu fazer cotidiano. Deslocam-se pela aldeia e realizam as atividades a partir do seu foco de interesse, sem a supervisão ou a necessidade de direcionamento dos adultos. As crianças estão por toda a parte, geralmente indo de um local a outro em grupos compostos por várias crianças.
Os pequenos indígenas possuem um papel fundamental no cotidiano dessas aldeias, pois, conforme Prates: “[...] crianças são criadoras e agenciadoras de significados, promovendo mudanças e alternando caminhos” (Prates 2008: 08). Como já apontado, a mobilidade é uma característica muito importante para os Mbyá-Guarani. Os processos dos caminhos e do caminhar Mbyá-Guarani fazem parte de sua constituição. Segundo Pissolato (2004: 69), “A movimentação de pessoas entre localidades, às vezes muito distantes, confere ao sistema o seu dinamismo: aproxima ou afasta grupos familiares, funda novas localidades, cria áreas de maior ou menos densidade de alianças”. Na lógica Mbyá-Guarani “escolher caminhos” equivale a tomar decisões. E, nesse sistema, as crianças possuem autonomia, elas podem tomar decisões que irão afetar suas famílias Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ou a comunidade em geral. A criança é considerada um ser no mundo, pois o todo é que proporciona o conhecimento.
Durante uma das incursões etnográficas, foram avistadas, caídas no chão, algumas cascas de Pindó (Palmeira Jerivá), e sugerimos que fizéssemos pinturas nelas. Os MbyáGuarani acolheram a ideia, juntamente com as professoras da escola e os pesquisadores. Achamos que seria interessante utilizarmos algum elemento da natureza para o trabalho artístico. A professora Adriana sugeriu que déssemos uma volta na aldeia em busca de mais cascas caídas no chão. As crianças prontamente atenderam e se organizaram de seu modo para a busca, sem necessitar perguntar aos adultos como realizar a atividade e demonstrando responsabilidade por seus atos. A atividade proporcionou um ótimo passeio pela aldeia, onde pudemos visualizar diferentes animais e plantas durante nossa procura pelas cascas de Pindó.
Figura 3: Busca por cascas de pindó na aldeia. Fonte: Luana Santos da Silva, agosto de 2016.
Percebemos nessa situação, assim como em outras ocasiões, que as crianças têm uma organização espontânea e responsável, e que não é necessário a supervisão ou o direcionamento de um adulto em cada um dos passos a seguir; sua autonomia é algo visível e frequente. A autonomia está diretamente relacionada com a responsabilidade, aspectos centrais na constituição dos “pequenos indígenas”. Eles sabem onde procurar Pindó, pois transitam livremente pelas matas próximas das casas. Eles sabem como retirar a casca de Pindó, já que suas aprendizagens se dão através do corpo, nas vivências in loco.
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São responsáveis pelos seus atos, pela sua vida, há um empoderamento na constituição do seu ser.
Durante a pintura das cascas, as crianças conversavam entre si em guarani – não entendemos o que elas falavam, mas pareciam estar se divertindo. Uns chegavam, faziam seus desenhos, largavam, voltavam, traziam mais casca de pindó para pintar. Outros somente observavam. Inicialmente estávamos na mesa dentro da escola, e Janaína solicitou a um dos pesquisadores se poderiam desenhar numa mesa na rua. A resposta positiva alegrou ainda mais a atividade. As crianças ficaram tão satisfeitas com os resultados que uma exposição com as pinturas foi organizada. Sobre os desenhos produzidos pelas crianças, havia símbolos Mbyá-Guarani que representavam a sua cultura e desenhos de elementos da natureza (árvore, sol) com cores variadas.
Foram evidentes as outras formas de expressão da linguagem presente nas interações dos “pequenos indígenas”. Algumas das crianças, principalmente as menores, falavam muito pouco o português. Quando estavam só entre eles, falavam unicamente na língua guarani. Mesmo não compreendendo o que falavam, utilizamos com eles outras formas de linguagem, como, por exemplo, as artes plásticas, fotos, filmagens, gestos e expressões corporais, brincadeiras, etc.
Figura 4: Pinturas nas cascas de pindó. Fonte: Luana Santos da Silva, agosto de 2016. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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As aprendizagens e interações autônomas promovidas na aldeia possibilitam enxergar outras formas de concepção de infância, desnaturalizando a ideia de se caracterizar as crianças a partir de uma visão única e adultocêntrica, em que a criança era percebida como uma tabula rasa que deveria ser trabalhada para a vida adulta. Em campo, vimos uma realidade diversa desta, em que as crianças são protagonistas em sua comunidade, atuando como atores sociais plenos e ativos no contexto cotidiano da aldeia. Essa outra forma de se perceber a infância (a partir do local onde ela é vivida) contribui e aprofunda os estudos sobre as multiplicidades das infâncias. Prosseguindo com as reflexões de Stumpf, Wolf & Bergamaschi:
Para haver este entrelaçamento entre o pensamento ocidental e indígena dentro de uma proposta educacional de ação socioambiental intercultural, além do respeito à temporalidade, é importante uma maior compreensão do seu sistema de pensamento e de percepção da realidade. Neste sentido, percepções ambientais Mbya Guarani indicam como essencial para um trabalho educativo ambiental, uma visão integrada entre cultura e ambiente (Stumpf, Wolf & Bergamaschi 2016: 255).
Em campo, foi possível presenciar atividades lúdicas em que um grupo de crianças maiores brincava no mesmo espaço que uma criança menor. Em nenhum momento os maiores “expulsaram o menor”. Ele ficava junto, interagindo do seu jeito e aprendendo com os maiores na observação participante. As crianças maiores são também pessoas educadoras em que eles aprendem no processo de ‘transmissão horizontal’ dos saberes – crianças aprendendo com outras crianças.
O cotidiano dos “pequenos indígenas” é marcado por situações de brincadeiras e “trabalho”, que eles executam com responsabilidade e comprometimento. Não existe uma separação entre o que é lúdico ou “trabalho”, pois existem entrecruzamentos a todo o momento. As brincadeiras ocorrem a todo o instante, sem regras estabelecidas ou tempo de duração. Conforme Nunes:
As rotinas do cotidiano e o brincar estão intrinsecamente ligados, muito embora essa ligação nem sempre seja consciente ou intencional. Isso quer dizer que o brincar ao qual me refiro não é o que tem hora marcada para acontecer, ou regras predeterminadas como num jogo de futebol, por exemplo, e sim o que é inerente às crianças e que delas emana, seja o que for que estejam fazendo (Nunes 2002: 68).
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O “trabalho” atravessado pelo componente lúdico e como um processo educativo de transmissão da cultura não pode ser interpretado como exploração do trabalho infantil. O “trabalho” é inerente à ação do ser humano no mundo e as crianças como seres sociais também aprendem e se divertem através do “trabalho”. São as brincadeiras que, no decorrer do período que corresponde à infância, oferecem às crianças alguns dos pontos de referências cruciais para a percepção das dimensões espaciais e temporais nas quais seu cotidiano acontece (Nunes 2002: 69).
Na aldeia, as crianças aprendem a assumir responsabilidades e ajudar os adultos desde bem pequenas. Meninas cuidavam dos afazeres domésticos assim como também de crianças menores, um “trabalho”/aprendizado/diversão que desenvolvem com autonomia, responsabilidade e interesse. Cuidar de crianças menores é uma atividade que também, em diversos momentos, se torna uma vivência lúdica, em que meninas brincam com as crianças pequenas. Juntas vão se constituindo enquanto pessoas pertencentes àquela determinada comunidade. O mesmo pode ser dito das atividades de caça e pesca dos meninos.
Figura 5: Menina cuidando de criança. Fonte: Luana Santos da Silva, março de 2016.
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Esses dados, reflexões e contribuições, visam trazer diversos aspectos importantes aos estudos com as infâncias, buscando se distanciar dos estudos de estágios de maturidade biológica, que foram durante muitos anos utilizados ao se tratar de estudos sobre crianças. O trabalho, enquanto discurso social, é percebido como uma função do adulto, em que a criança não teria maturidade e responsabilidade para desenvolver esta função. Entende-se que muitas crianças desenvolvem ações no mundo com responsabilidade, seja para ajudar os pais nas tarefas domésticas, auxiliar nas atividades tradicionais da família, realizar trabalhos e tarefas escolares, etc. Isso não significa que a criança deva ser explorada enquanto força de trabalho em substituição ao adulto ou deva deixar de brincar para exercer um trabalho remunerado. As vivências dos “pequenos indígenas” demonstraram a necessidade de aproximar das discussões as referências mais centradas em pesquisas com crianças e a necessidade de desmitificar algumas concepções sociais sobre as infâncias indígenas, como esta questão do trabalho infantil.
Dando prosseguimento aos aspectos que desenvolvemos na pesquisa, ao se abordar o conceito do lúdico, é importante perceber que a “cultura lúdica” se apresenta de forma interdependente com a sociedade a qual a criança pertence (Brougère 2006). Está relacionada com gênero, faixa etária, região onde vivem essas crianças.
Pensando o processo lúdico, quando uma escola do interior do Rio Grande do Sul visitou a aldeia, os alunos desta presentearam os “pequenos indígenas” com alguns brinquedos de sucata (pé de lata, bilboquê, vai e vem). Na ocasião, uma das crianças visualizou a caixa, pegou um brinquedo e observou como um adulto brincava. Em pouco mais de um minuto era uma barulhada e alegria em toda aldeia. Diversas crianças brincando, se ensinando, se emprestando os brinquedos.
Podemos com a situação acima refletir sobre o conceito de cultura e fazer intercruzamentos entre a mesma e a brincadeira, conforme Brougère:
Na brincadeira, a se criança se relaciona com conteúdos culturais que ela reproduz e transforma, dos quais ela se apropria e lhes dá uma significação. A brincadeira é a entrada na cultura, numa cultura particular, tal como ela existe num dado momento, mas com todo seu peso histórico (Brougère 2006: 76).
Outro momento interessante vivenciado na comunidade foi em uma aula do professor guarani. Era a brincadeira ‘xivi e uru’ (tigre e galinha). Quando a galinha cacarejava, os pintinhos tinham que atravessar o espaço sem que o tigre os pegasse. Se este conseguisse, os pintos viravam tigres. A brincadeira segue até que todos se tornem
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tigres9, e então se inicia novamente. Foi um momento bem divertido em que as crianças corriam, se jogavam no chão para conseguir fugir. Era perceptível a importância do corpo acionado como processo educativo. Foi nítida a desenvoltura do corpo das crianças na brincadeira, testando diferentes movimentos. Inclusive, uma delas, diversas vezes, virou ‘estrelinhas’, buscando, a nosso ver, fazer o mais rápido que conseguisse com o corpo bem esguio. O desenvolvimento dessas habilidades pode significar a sobrevivência do indivíduo no futuro quando confrontado com os perigos da floresta.
O futebol é um esporte apreciado pelos indígenas. Tal fato nos foi relatado pelo professor de Educação Física, assim como também foram vistos troféus na escola e em diversas incursões em campo os “pequenos indígenas” estavam no campo jogando futebol. Atividade que realizavam com interesse e respeito entre os times adversários.
O futebol tem grande importância entre os indígenas por permitir a interação entre índios de aldeias próximas, e também na interação com os não índios moradores de cidades vizinhas. Uma vez que rotineiramente os times de futebol das comunidades participam de amistosos e campeonatos envolvendo os times da região (Santos; Uema; Pimentel; Oliveira, s. d.: 7).
O cuidado com a manutenção de corpos saudáveis envolve os preparos para os processos educativos. A recíproca também é verdadeira. Os processos educativos geram corpos saudáveis. Na aldeia não se visualiza pessoas preguiçosas e/ou obesas. Isso não condiz com as aspirações cosmológicas dos Mbyá-Guarani10. Assim, desde pequenos, os Mbyá-Guarani são preparados para terem corpos saudáveis, através de cuidados com a alimentação e exercícios físicos. Seguindo com Tassinari:
A noção indígena de educação, portanto, não se dirige apenas à transmissão de idéias, conhecimentos, técnicas e valores, mas reconhece que aquilo que se sabe é “incorporado”, toma assento no corpo, e este deve ser adequadamente produzido para receber os conhecimentos (Tassinari 2007: 18).
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Um dos maiores temores dos Mbyá-Guarani é se transformarem em animais, com especial cuidado para não serem vitimados pelo espírito do jaguar (onça, mas traduzido pelos Mbyá-Guarani como tigre), tornando-os também jaguares. Este processo se chama jepotá e os Mbyá-Guarani seguem uma série de regras sociais para evitá-lo (Tempass 2012). Entendemos que a brincadeira “tigre e galinha” reflete a cosmologia do grupo e alerta as crianças sobre o perigo que as onças representam para a sociedade. 10 O corpo perfeito é um corpo leve e limpo. Somente com a perfeição de corpo e alma é que os MbyáGuarani podem alcançar a divindade (Tempass 2012). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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As brincadeiras sem regras estabelecidas ou ocasião oportuna vão constituindo o ser indígena. A infância, enquanto etapa da vida, vai se constituindo nas relações com a natureza, e na vida em comunidade. Os galhos de árvores caídas no chão não são somente galhos, podem virar chapéu, esconderijo, fantasia. Os processos criativos e lúdicos estão em todos os espaços e tempos na aldeia, basta ter um olhar atento e sensível. O brinquedo, um objeto para tal fim ou improvisado, possibilita a criança se apropriar dele e com ele criar. Brougère, em seu livro “Brinquedo e cultura”, relaciona as infâncias com os seus brinquedos, e afirma que a criança: [...] na maior parte das vezes, não contenta em contemplar ou registrar as imagens: ela as manipula na brincadeira e, ao fazê-lo, transforma-as e lhes dá novas significações. Quanto mais ativa for a apropriação, mais forte ela se torna. O valor lúdico reforça a eficácia simbólica do brinquedo. É isso que faz a especificidade do brinquedo em relação a outros suportes culturais: a relação ativa introduzida pela criança (Brougère 2006: 48).
Os elementos naturais, nas mãos das crianças, ganham vida através da criatividade. Rapidamente eles são transformados em brinquedos. Assim os “pequenos indígenas” vão se constituindo enquanto seres que brincam, aprendem, trabalham. Sem a necessidade de ter um objeto exclusivamente desenhado com o objetivo final de servir de brinquedo. E nisso eles vão tecendo as relações entre seres vivos e elementos naturais, reproduzindo e também produzindo a cultura Mbyá-Guarani.
Figura 6: Crianças brincando com galhos de árvore. Fonte: Luana Santos da Silva, agosto de 2016.
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Ao se tratar de ambiente, a vida na aldeia muda conforme as estações do ano. E os processos lúdicos, como não poderia deixar se ser, também mudam com a sazonalidade, posto que os Mbyá-Guarani percebem uma continuidade entre cultura e natureza. Assim, nos dias quentes, em que as chuvas começam a cessar, pudemos observar diversas vezes as crianças brincando de “pegar” no pátio. São momentos de diversão e risadas. Em nenhuma situação ocorreram brigas ou choros. Crianças de diferentes faixas etárias se divertiam juntas. Isso nos leva a questionar o que há na cultura deles, nos seus cotidianos, que permitem esse fluir das situações, sem discórdias, brigas ou choros? Será que essa outra concepção de infância, onde as crianças são autônomas e responsáveis, brincando e aprendendo sem necessitar de supervisão dos adultos, tem relação com essa forma respeitosa de se relacionar, sem discórdias? A vivência da sazonalidade implica, igualmente, tecer diferentes relações de espaço e tempo, nas quais a vida doméstica, a produção familiar e a organização comunitária encaixam-se e desdobram-se ao longo do ano, em arranjos que refletem também etapas do ciclo de vida de cada indivíduo (Nunes 2002: 79).
Cada membro da comunidade, no seu fazer cotidiano individual e ao mesmo tempo coletivo, se cuida e auxilia no cuidado dos outros. As vivências dentro da aldeia vão se constituindo, a vida vai fluindo de acordo com os ciclos das estações.
Considerações finais A partir das observações e dos dados produzidos na pesquisa, é possível afirmar que os indígenas Mbyá-Guarani da Tekoá Pindó Mirim concebem os “pequenos indígenas” como parte constitutiva do grupo com identidade própria, considerando as socializações das infâncias, nesse contexto, dignas de respeito por parte dos adultos. A educação é um processo espontâneo enraizado no cotidiano da comunidade.
Como os estudos com as crianças, a partir dos seus pontos de vista, são algo bastante recente, acreditamos, portanto, serem de fundamental importância pesquisas como a aqui proposta, bem como os novos debates sobre as infâncias indígenas. Como vimos, os Mbyá-Guarani respeitam as suas crianças e as consideram como seres sociais que ensinam e aprendem. Os processos educativos e as aprendizagens dos Mbyá-Guarani ocorrem no cotidiano e na prática de conviver no coletivo. Os “pequenos indígenas” observam, brincam, ajudam, cuidam, aprendem de forma espontânea e na interação com
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os outros seres humanos e não humanos.
Na pesquisa realizada, os “pequenos indígenas” da Tekoá Pindó Mirim foram protagonistas e demonstraram a possibilidade da constituição de uma infância autônoma, responsável, onde o cuidado entre pares é constante. São seres que se entrecruzam com a natureza, ou seja, são natureza. E os seus processos de aprendizagem passam necessariamente pelo corpo, aspecto central da constituição do ser indígena. Assim, ensinam-nos que a tríade liberdade, autonomia e responsabilidade torna o sujeito empoderado, não necessitando da supervisão ou controle de um adulto, pois cada um é consciente e responsável pela sua vida e pela vida dos outros. Mostram-nos caminhos de outra constituição de infância, onde o conceito de cuidado é diverso da sociedade urbano industrial. A cultura Mbyá-Guarani, a partir do que percebemos na Tekoá Pindó Mirim, pode ser caracterizada como propulsora para que possamos vislumbrar a multiplicidade das infâncias, contribuindo para o campo dos estudos das culturas das infâncias. As crianças indígenas têm liberdade na aldeia e não são consideradas seres que irão vir a ser, ou seja, seres passivos na educação. Ao mesmo tempo, as ações desenvolvidas pelos adultos na comunidade e pelos educadores na escola respeitam esta autonomia das crianças, promovem atividades em que o sujeito é percebido como integral, e reforçam a aprendizagem na interação entre pares, na comunidade.
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Aceito em 13 de dezembro de 2018.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 232-252.
Jeitos de ser criança Sateré-Mawé: dos elementos da cultura aos determinismos sociais da escola urbana Roberto Sanches Mubarac Sobrinho1 Professor associado da Universidade do Estado do Amazonas rmubarac@hotmail.com
Resumo A questão indígena, no cenário atual, tem conquistado espaços bastante significativos. Porém, estudos mais específicos com as crianças dos muitos povos nativos que ainda vivem nas terras brasileiras não têm alcançado o mesmo destaque. Esse texto traz à tona uma questão ainda mais frágil – a situação das crianças indígenas “urbanas” e suas relações com as escolas nas quais estudam. Nossa reflexão tem como base a pesquisa de doutoramento em educação que foi realizada em uma comunidade indígena na cidade de Manaus e em duas escolas públicas. Por isso, consideramos que educação e cultura, para esse grupo social de crianças, ainda representa um problema que se assenta entre a tradição e a reprodução ideológica, onde se evidencia fortemente um espaço de fronteiras. O debate está aberto e é a ele que nos propomos. Palavras-chave: Crianças Indígenas; Educação; Cultura. Abstract The indigenous issue, at the present scenario, has conquered some meaningful space. However, more specific studies with children of many native peoples that still live in Brazilian lands have not reached the same importance. This text brings to discussion a yet more fragile issue – the situation of the “urban” Indigenous children and their relationship with the schools where they study. Our analyse has as its base the research of PhD in Education which was developed in an indigenous community in the city of Manaus and
1
Doutor em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, com aprofundamento de estudos em Sociologia da Infância na Universidade do MinhoPortugal. Professor do Mestrado em Educação em Ciências na Amazônia e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas.
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in two public schools. Hence, we consider that education and culture, as public rights, for this social group of children still represents a problem that lies between tradition and the ideological reproduction, where space of frontiers is strongly evident. The debate is open and it is keep it that we propose this discussion. Keywords: Indigenous Children; Education; Culture.
Introdução O objetivo deste artigo é adentrar no cotidiano das crianças Sateré-Mawé, estabelecendo, a partir do movimento de partilhar dos seus modos de vida, uma possibilidade de compreensão de como esse grupo da infância concebe o mundo e a escola, partindo das suas brincadeiras, das relações de pares, dos momentos de estarem juntas para cantar, desenhar e partilhar a vida na comunidade e nas escolas.
As pesquisas com esse grupo da infância são razoavelmente recentes e demandam um esforço para a construção de bases teórico-metodológicas que possam dar visibilidade e garantir a participação das crianças nas investigações. Isto representa um necessário diálogo interdisciplinar, que vem possibilitando a sedimentação deste caminho no campo de pesquisa com as crianças indígenas nas cidades. A constituição deste campo é um desafio, e, por isso, nossa pesquisa é uma possibilidade de adentrarmos nesses outros territórios da infância indígena. De acordo com Tassinari (2007: 12):
[...] somente na última década a Antropologia volta sua atenção para estes pequenos interlocutores, a partir de uma abordagem atenta às crianças como sujeitos sociais e não apenas como objetos passivos da educação. [...]nossa visão da infância como um “vir-a-ser”, não nos permitia levar a sério o tratamento que os indígenas dispensavam às crianças.
2
A pesquisa foi realizada com 12 crianças da etnia Sateré-Mawé2 entre 04 e 12 anos
O primeiro nome - Sateré - quer dizer “lagarta de fogo’’, referência ao clã mais importante dentre os que compõem esta sociedade, aquele que indica tradicionalmente a linha sucessória dos chefes políticos. O segundo nome - Mawé - quer dizer “papagaio inteligente e curioso’’ e não é designação clânica. Os Sateré-Mawé que moram na comunidade são oriundos da região do médio rio Amazonas e habitavam as áreas indígenas dos rios Andirá e do Marau, que foram demarcadas em 1982 e homologadas em 1986, com 788.528 hectares, entre os estados do Amazonas e Pará. O processo de migração desta etnia para Manaus, assim como para outras cidades do interior do estado, deu-se devido uma série de fatores, mas, principalmente, pela ilusão da busca de melhorias. Hoje há uma estimativa de morarem em Manaus aproximadamente 2.000 indígenas dessa etnia. A língua Sateré-Mawé integra o tronco lingüístico Tupi. Segundo o etnógrafo Curt Nimuendaju (1948), ela difere do Guarani-Tupinambá. Os pronomes concordam perfeitamente com a língua Curuaya-Munduruku, e a gramática, ao que tudo indica, é tupi.
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de idade, durante oito meses em uma comunidade indígena localizada na zona urbana da cidade de Manaus-AM e durante dois meses nas duas escolas, uma da rede estadual e outra da rede municipal de ensino de Manaus, onde as crianças estudavam. Na comunidade fizemos uma etnografia e uma objetivação participante3, o que nos possibilitou um maior adentramento no cotidiano das crianças. Assim, segundo Cohn (2005, p. 10), “usando-se da etnografia, um estudioso das crianças pode observar diretamente o que elas fazem e ouvir delas o que têm a dizer sobre o mundo”.
Nas escolas realizamos uma pesquisa documental, uma observação das práticas dos professores e um processo de entrevistas com os diversos agentes da escola. Nosso quadro de análise teve na abordagem qualitativa sua fundamentação a partir de um diálogo interdisciplinar.
A comunidade na qual as crianças moram é chamada pelos Sateré-Mawé como WAYKIHU (estrela), e está localizada no bairro da Redenção, num espaço bastante íngreme, sob a forma de barranco. Possui uma área de aproximadamente 52 metros de frente por 54 metros de fundo, onde residem 14 famílias organizadas em habitações de madeira e alvenaria. Ao todos são 67 pessoas, entre crianças e adultos4. A principal atividade é o
artesanato, que é comercializado em barracas que ficam na frente da comunidade. Por morarem na zona urbana, as crianças estudam em escolas regulares da rede pública de ensino, pois não existe na cidade nenhuma escola indígena (Mubarac Sobrinho, 2011).
Assim, ao nos depararmos com esses dois espaços em contradição (comunidade e escola), é que vamos descortinar nossa caminhada, uma “viagem” cheia de imaginários, de representações, de expressões do cotidiano, que serão mediadas pelos pressupostos de várias Ciências Humanas e Sociais5, buscando uma análise que não se cristalize na visão hegemônica e homogeneizadora de mundo, e que se aproxime do universo infantil indígena, conferindo a ele reconhecimento social. Logo, reconhecer esses lócus próprios dos Sateré-Mawé demanda entrar em seus
3 4
5
O vocabulário mawé contém elementos completamente estranhos ao Tupi, mas não se relaciona a nenhuma outra família lingüística. Desde o século XVIII, seu repertório incorporou numerosas palavras da língua geral. (PEREIRA, 2003). Segundo Bourdieu (2007: 51) é preciso não confundir objetivação participante com observação participante. Para o autor a primeira representa de fato uma imersão no cotidiano da realidade por meio da pesquisa e a segunda representa “uma – falsa – participação num grupo estranho”. Esses dados foram coletados na própria comunidade no decorrer da pesquisa, com a colaboração do Cacique Luiz. É importante salientar que existe outra comunidade Sateré-Mawé, bem ao lado desta onde realizamos a pesquisa, mas, por conflitos entre eles, estão separados e não mantêm uma relação amigável, o que nos obrigou, de certa forma, a fazer a escolha por uma delas, neste caso a de maior população adulta e infantil. Antropologia, Sociologia, Filosofia, História e Pedagogia. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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mundos cotidianos, é vivenciar a realidade das crianças e compartilhar com elas suas expressões e modos de viver, é entender a vida como elemento contextualmente situado, como afirmam Berger e Luckmann (1985: 36):
O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que imprimem às suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles.
É nesse espaço que transita entre a tradição e a escolarização que buscaremos, no decorrer dos itens que se seguem, apresentar elementos que constituem tanto a realidade vivenciada pelas crianças na comunidade, quanto os dados obtidos nas escolas nas quais elas estudam, buscando evidenciar o papel que a escola assume para esse grupo social de crianças e como os processos pedagógico provocam (des)encontros entre as culturas escolares e as culturas das crianças Sateré-Mawé.
As falas das crianças Sateré-Mawé: elementos que contribuem para a construção de sua concepção de infância O conceito de infância que adotaremos neste artigo não será determinado pelos preceitos estabelecidos nos campos disciplinares, nem pelas determinações jurídicas, apesar de fazermos referências a estes, pois, no bojo das conquistas que se efetivaram nos últimos anos para os povos indígenas, o próprio direito das crianças também passa a ser de suma importância.
Assim sendo, vamos utilizar, além da concepção de infância definida por este povo, as próprias falas das crianças para podermos indicar elementos que possam representar essa fase da vida. Segundo Cohn (2005: 09), “[...] não podemos falar de crianças de um povo indígena sem entender como esse povo pensa o que é ser criança e sem entender o lugar que elas ocupam naquela sociedade”, e sob o ponto de vista das crianças o que é viver a infância, principalmente por se tratar desse espaço de fronteira.
“Ser criança é muito bom, nós podemos correr, brincar, fazer um monte de coisas...” (Raquel, 09 anos).
“Eu gosto de ser criança, de ser menino, mas quando eu por as mãos na luva das tucandeiras já vou ser homem” (Gabriel, 7 anos).
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Jeitos de ser criança Sateré-Mawé “Num sei por que as meninas que moram aqui perto da nossa casa, aquelas que não são índias, fazem um monte de coisas que nós não fazemos... acho que as mães delas que mandam” (Taíza, 12 anos). “É bom ser criança porque a gente não tem que ter filho, só de brincadeira” (Talice, 9 anos).
Uma análise mais detalhada que se prenda em determinados trechos das falas das crianças nos conduzirão ao desvelamento mais específico dessa transição entre os processos vividos no contexto urbano e os elementos da cultura dos Sateré-Mawé como espaços de fronteira. Educação, neste sentido, é entendida como uma ação que ultrapassa os limites escolares e se efetiva como a totalidade das experiências vivenciadas pelas crianças nos diversos contextos em que convivem.
A ideia de fronteira, entendida na sua mais forte polissemia, tem oferecido, na visão de Barth (a partir da leitura feita por Poutignat; Streiff-Fenart, 1998:189), “[...] uma importância primordial ao fator de que os grupos étnicos são categorias de atribuições e identificações realizadas pelos próprios atores”. Seguindo a visão deste autor, passamos aqui a estabelecer as nossas discussões a respeito das noções de fronteira, que são fundamentais para o entendimento dos processos culturais que envolvem a vida dos Sateré-Mawé no espaço urbano. Sendo assim, as culturas passam a ser percebidas em suas transformações e não em sua suposta integridade, pois o que as diferencia é o modo como se defrontam e como se transformam com as distintas realidades. Neste sentido, Barth (idem:195) afirma que “[...] a fronteira étnica canaliza a vida social – ela acarreta de um modo frequente uma organização muito complexa das relações sociais e comportamentais [...] [em] que se reconheçam limitações na compreensão comum, diferenças de critérios de julgamento, de valor e de ação...”. De acordo com Tassinari (2001: 68):
A noção que proponho, para o entendimento das escolas indígenas, baseia-se naquelas abordagens que consideram ‘fronteira’ como um espaço de contato e intercâmbio entre populações, com espaço transitável, transponível, como situação criativa na qual conhecimentos e tradições são repensados, às vezes reforçados, às vezes rechaçados, e na qual emergem e se constroem as diferenças étnicas.
Um exemplo bem claro dessa situação pode ser visto na fala de Taíza, de 12 Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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anos, principalmente quando nos diz: “acho que são as mães delas que mandam”. Com essa afirmação, aparece muita marcada a relação de poder que se estabelece entre os não-indígenas em que os adultos determinam o que as crianças têm que fazer. Para os Sateré-Mawé, isso é algo que causa estranheza, pois as crianças costumam fazer o que elas querem e não o que os outros determinam, mesmo sendo os seus pais.
São elas que definem como vão brincar, de que vão brincar e a hora em que querem fazer essas e outras atividades. A intervenção dos adultos acontece de forma mais corriqueira, fazendo parte do cotidiano das relações estabelecidas, sem imposições. Eles dialogam com as crianças e procuram definir com elas como se dará a forma como irão vivenciar as atividades do dia a dia.
É importante, porém, destacar que há algumas atividades em que as crianças não podem participar, pois a tradição define como sendo excluvisa dos adultos. Logo, elas vivenciam essas atividades de longe, mas as reinventam como maneiras de representálas. A forma de concretizar essa relação está no caráter de simbolizar e ressignificar para poder fazê-las, mas elas não participam diretamente, como é o caso dos rituais e de questões mais voltadas ao trabalho que gera renda. Para Bourdieu (2007: 10):
Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social enquanto elementos de conhecimento e de comunicação [...] eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a condição da integração moral.
Assim, a infância, para as crianças Sateré-Mawé, é um grande universo de aprendizagens, de liberdade, de escolhas e, sobretudo, de possibilidades de viver as mais diversas expressões do seu cotidiano. Os pais falam das crianças com um respeito que nos faz desejar aprender a lidar com o mundo infantil da maneira deles. Elas são, como nos disseram, “artesãs do futuro”6, que irão garantir a existência do seu povo. Nas palavras do cacique7 “... uma criança é o nosso maior tesouro, cada parente que nasce aqui, para nós, é sinal que Tupaná está nos dando mais vida e alegria, por isso fazemos muita festa para festejar quando uma das nossas mulheres tem criança”. 6 7
O uso do termo se explica pela confecção do artesanato, que é a principal fonte de sobrevivência do grupo, assim um artesão do futuro é um adulto promissor. Parte desta fala se encontra em uma série de conversas que foram gravadas tanto em vídeo como em áudio com o cacique.
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Apesar do estado de pobreza pela qual passa a comunidade e pelas precárias condições de vida, os adultos oferecem o que podem às suas crianças, e tudo o que possuem é dividido com elas e entre elas, não importa o que seja, de forma que as crianças possam ter sua alimentação assegurada. Vivenciamos algumas situações em que só havia farinha de mandioca para comer. As mães misturavam com água e faziam o chibé para que as crianças não passassem fome. Primeiro comia/m as crianças, e, quando sobrava alimento, os adultos iam dividindo entre eles.
A infância nesse grupo é cercada por essas questões fronteiriças, pois, ao mesmo tempo em que os adultos tentam manter a tradição do seu povo indígena, o espaço circundante é também marcante em suas vidas. A comunidade fica em um bairro de aproximadamente 10 mil moradores, logo, não pode viver isolada dos diversos condicionantes do “mundo dos brancos”, como eles assim o denominam. As crianças reproduzem uma série de situações que elas observam no entorno da comunidade e principalmente nas práticas a que são submetidas nas escolas, mas sempre as ressignificando. Para enveredarmos mais especificamente na concepção de infância para o povo Sateré-Mawé, é preciso que entendamos a existência de um ritual de passagem, que demarca de forma muito clara o mundo infantil e o mundo adulto. O ritual da Tucandeira ou da Tocandira, do qual apenas os curumins (meninos) podem participar, vai ser, entre outros, o balizador do fim da infância e o começo da preparação para exercerem papéis sociais que somente os adultos podem exercer, marcando, definitivamente, o status e as determinações das posições na sociedade. Neste sentido, segundo Álvares (2005: 04).
O ritual torna explícita a estrutura social, a cristaliza simbolicamente, expressa o sistema de relações sociais ideal aprovado entre os indivíduos que participam. Os ritos fazem visíveis as alianças políticas que precisam ser mostradas para serem simbolizadas, dão significado aos símbolos abstratos. Através dos ritos as pessoas se sentem parte de uma comunidade política. Os rituais relacionam o local com o pertencimento a unidades mais amplas, expressam as relações entre grupos, relacionam tempos míticos com tempos históricos.
Para compreendermos os processos que envolvem a construção da identidade e das culturas infantis, faz-se necessário enfatizar modo como o ritual é tratado e sua força na estrutura desta sociedade. Apesar das crianças não participarem diretamente, elas convivem com o poder simbólico8 que possui para os Sateré-Mawé, o que as leva,
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Cf. Boudieu (2004).
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indiretamente, a conviverem com os preparativos e com a importância que o “Waumat” possui para o seu povo. Ainda para Álvares (2005: 05):
WAUMAT, o ritual da tocandira, pode ser divido em três partes: a preparação; o ritual propriamente dito; a reintegração num novo status [...]. No caso do waumat o período de preparação para os que vão deixar-se ferroar estaria marcado por uma série de interditos alimentares, espaciais, e outros de caráter sexual. O interdito separa o iniciado do resto do grupo na preparação para o ritual, apesar de que na atualidade este período de interdito e tabus alimentares seja menos rigidamente observado. Durante o ritual propriamente dito, os jovens introduzem a mão numa luva de fibras onde são inseridas as formigas tocandiras (paraponera clavata sp), com o ferrão voltado para o interior. Esta ação é acompanhada por uma série de cantos, ao ritmo do chocalho, e uma dança da qual participam várias pessoas do grupo. A passagem aconteceria depois de introduzir a mão vinte vezes e passar por um teste de caça e outro de purificação, para completar a mudança de status. Apesar de certa flexibilidade na finalização da série de ferroadas, todas as pessoas sabem quantas vezes o rapaz botou a mão na luva e sua atitude frente ao desafio.
Logo, sendo o ritual um marco balizador entre a infância e a fase adulta, ele representa para as crianças a transformação mais forte no seu processo de desenvolvimento. Para os meninos (Pian), é o período de comprovar sua força às novas atribuições perante os mais velhos e, principalmente, demonstrar para sua família a capacidade de enfrentar a dor e superar os obstáculos da vida com saúde, coragem, honra e outros valores considerados fundamentais a esse povo. Já para as meninas (Pirin), é o período de esperar pelo marido, de ser escolhida por um dos guerreiros novos para continuar a tradição da maternidade. Entre elas, a idade é mais relacionada à primeira menstruação, não havendo uma idade que possamos especificar para serem escolhidas. A partir do ritual, começa a separação mais efetiva dos mesmos, que até então convivem diretamente nos diversos espaços da comunidade (PEREIRA, 2003). Elas assim relataram sobre o ritual: “A gente dança três passos pra frente e pra trás, nós só podemos fazer isso” (Laiz, 08 anos). “Eles, os meninos, botam as mãos na luva, tem que ferrar 200 vezes, eu acho que é assim né?” (Taíza, 12 anos).
“A gente fica espiando de longe, ouvindo as músicas porque nós não podemos participar, o ritual é só para os adultos” (Raquel, 09 anos). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Jeitos de ser criança Sateré-Mawé “Só os meninos maiores podem pôr a mão na luva, a gente não pode porque ainda é pequeno, mas quando eu for grande eu vou participar pra virar homem grande também” (Mateus, 07 anos).
Gabriel, 06 anos, ao falar sobre o ritual, nos disse que somente os meninos podem participar e, em seu desenho, expôs a aldeia (casa), o sol e a lua (pois segundo ele o ritual demora o dia todo) a luva e as formigas (Tucandeiras). “Eu como sou menino, vou fazer o ritual da Tucandeira, mas só quando eu tiver maior, ainda sou pequeno então não posso participar, mas eu já vi os outros pondo as mãos nas luvas. Quando eu for maior quero logo fazer o ritual”. Entre os Sateré-Mawé “urbanos”, a manutenção desta tradição é condição fundamental para a preservação de sua condição étnica e cultural9. Eles são enfáticos em
transmitir desde cedo para as crianças a importância deste momento para o seu povo e elas o fazem numa dimensão interpretativa10 através do brincar. Viver no espaço urbano e conviver com as diversas formas de negação e adaptação aos valores da sociedade circundante, leva os adultos a construírem estratégias de mediação entre essas fronteiras, e isso ocorre também com as crianças. Neste sentido, para Bhabha (2005: 20-21).
A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica [...]. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade (grifo nosso).
Logo, o ritual da Tucandeira, como afirmado por Bhabha, é, para os SateréMawé, um forte elemento histórico que conjuga fatores essenciais para a articulação e a garantia de poderem viver no espaço urbano e, ao mesmo tempo, manterem vivos os elementos de sua cultura. O contexto, apesar de todos os indicadores e das dificuldades, propicia a vivência desse momento, que transborda os limites da sociedade circundante e seus valores, garantindo a socialização, a cultura, o simbolismo, a participação e outros elementos fundamentais para a dimensão étnica do povo Sateré-Mawé.
9 Cf. Geertz, 1989. 10 Cf. Corsaro, 2002.
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Nas palavras do Cacique Luiz, essa importância se torna bastante evidente:
Nós sabemos separar a água do vinho, o branco tem o carnaval, as festas dele e nós temos o nosso ritual da Tucandeira. Coloca 200 Tucandeira no Saripé11 e aí nós colocamos a mão lá, aí mostrando que nós somos guerreiros, somos felizes, temos saúde e resistência. É só os homens que tem a condição de meter a mão no Saripé, a mulher é pra acompanhar o ritual, elas são as nossas parceiras. Pra nós aqui com 13 anos ele já é pescador, caçador, então ele já ta liberado pra enfrentar o ritual.
Os Sateré-Mawé nos demonstram, de forma bastante consciente, o respeito pela diversidade, talvez por serem minoria nesse espaço determinado pelas questões da cidade. Diferente de nós, não-indígenas urbanos, que ainda nos prendemos aos padrões estabelecidos pela vida urbana, eles concebem uma articulação de saberes que são capazes de ultrapassar as lógicas de aculturação e de negação, pois demonstram que a comunicação, a articulação entre a cultura de seu povo e a cultura do espaço urbano podem dialogar, possibilitando a preservação, tanto da tradição, quanto a renovação da mesma, a partir de valores que são apropriados do meio que os cerca, inclusive da escola.
Para nós, essa forma de conceber o diálogo representou um grande aprendizado, pois enquanto nos sentirmos os “donos do saber”, teremos mais dificuldades de pensar a sociedade como um espaço multicultural, onde as diferenças devem ser vistas como fundamentais para a garantia de um mundo em que os determinismos possam ser minimizados e a diversidade possam nos ensinar a conviver melhor (Santos 2005).
As crianças são testemunhos claros dessa possibilidade, pois representam de forma viva essa fronteira, que representa o espaço de encontro. Todas nasceram na cidade, mas têm a certeza de serem Sateré-Mawé, e isso foi demonstrado em todos os momentos que vivenciamos durante a nossa estada com elas, mesmo quando a escola tentava invisibilizálas e elas próprias buscavam se esconder para se proteger dos preconceitos e da violência simbólica que acontecia fortemente no espaço escolar. É a partir destas questões que iremos discutir no item posterior a presença da escola urbana na vida das crianças Sateré-Mawé e como este espaço educativo nega a presença do diálogo intercultural, impondo sua maneira de ver o mundo, de conceituar as crianças e suas formas de se expressarem, enfatizando-se, desta forma, a perspectiva de fronteira como o lugar que distancia, que separa, que distingue os membros da sociedade. 11 Luva tecida em palha e adornada de várias maneiras, com penas, pedras, artefatos de artesanato. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A criança indígena nos discursos e nos documentos das escolas: cultura escolar como elemento de distinção A escola é hoje uma das instituições mais discutidas da sociedade mundial atual, o que se reflete também em nosso país. Ela nos angustia e nos confunde, tanto porque somos bombardeados a todo o momento pelas diversas críticas sociais, quanto porque, de outro lado, somos tentados a nos convencer das suas qualidades, pelos modelos advindos da estrutura do sistema de ensino, a partir dos discursos instituídos nos documentos oficiais.
A idéia de que a educação escolar possibilitará uma garantia de vida melhor para o futuro ainda representa para grande parte da sociedade, talvez a única forma de buscar melhorias para sua condição de social. Pondo-se em destaque, a escola impõe-se como o “único e soberano” ambiente propício à aquisição de bens culturais capazes de transformar a vida da população, dando-lhe novas perspectivas, pelos menos sob a forma de discurso. Na prática, porém, ainda se tem uma grande distância entre as diversas realidades sociais e os fazeres – homogeneizados – no dia a dia da escola. Se a escola, no discurso “dito”, tem um papel determinante na maioria das vidas da população, qual importância exerce na vida das Crianças Indígenas e mais especificamente na vida das Crianças Sateré-Mawé? Valoriza-se uma escola que está no mundo das ideias hegemônicas, mas, qual dimensão a mesma exerce na cultura e nas tradições dos povos indígenas? No que tange aos processos de diversidade e multiculturalidade, como tem agido a escola e como têm sido elaborados os currículos para atender essa realidade tão presente em nossos dias? A Cultura Escolar e a Cultura da Escola dialogam entre si e contribuem para a construção de um diálogo intercultural? Essas questões são fundamentais para compreendermos, ou mesmo visualizarmos, o trabalho pedagógico e os diversos condicionantes que estão presentes na prática pedagógica dos agentes da escola, e, principalmente, procurar desvelar como se deu o processo de inserção das Crianças Sateré-Mawé nas duas escolas pesquisadas.
No entanto, o que percebemos durante a pesquisa é que a concepção de fronteira que está presente nas escolas e completamente oposta àquela defendida por Tassinari (2001). A prática cotidiana demonstrou a clareza com a qual os agentes escolares se identificam com a ideia de fronteira como algo que separa, que distingue, que mantem em polos apostos as crianças Sateré-Mawé das demais crianças, e, principalmente, da concepção pedagógica que fundamenta e norteia a prática das professoras. A visão de que a escola é um palco de múltiplas possibilidades, não se configura como um discurso novo, já de muito tempo tem sido ecoado nas políticas educacionais e
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no próprio discurso presente nos seus espaços sociais. No entanto, esse discurso se dilui na prática, dissolve-se na ação e perde-se num emaranhado de reproduções autoritárias e homogeneizadoras, que acabam presas a velhos costumes e a organizações pedagógicas que nos remontam às origens clássicas da instituição.
Passaram os anos, mas os resquícios ainda estão muito presentes na memória viva, não só dos agentes sociais, mas da própria configuração escolar em conceber a educação como prática de reprodução, manutenção das estruturas de dominação e homogeneização, condutas tipicamente obedientes. Estas indagações são reforçadas por ações educacionais que são vivenciadas dia após dia nas instituições e que invisibilizam a diversidade, destituem da prática social sua capacidade de movimento, de contradição, entendendo a escola como espaço de equilíbrio e coesão social.
Assim, a escola se constitui em local privilegiado para a assimilação de conteúdos e valores, como também de promessas de uma vida melhor, e, portanto, de uma boa vaga no mercado de trabalho. Porém, essa escola, pensada sob esses moldes, não conseguiu até os dias de hoje melhorar a situação social do nosso povo. Muito pelo contrário, pois, de um lado, grande parte da população vive na pobreza e miséria, enquanto, de outro, uma minoria que detêm o poder político e econômico torna-se cada vez mais rica. Isto, para Freire (2003: 94), contribui para que:
Tanto mais pobre seja uma nação, mais baixos padrões de vida das classes inferiores, maior será a pressão dos estratos superiores sobre elas, então consideradas desprezíveis, inatamente inferiores, na forma de uma casta de nenhum valor. As diferenças acentuadas no estilo de vida entre aquelas de cima é as de baixo apresentam-se como psicologicamente necessárias.
Essa desigualdade, na qual Freire, nas suas análises, faz a analogia a uma condição de casta, é mascarada no discurso da igualdade e atinge de forma mais crítica ainda as crianças Sateré-Mawé, o que tende a se estabelecer como algo predestinado ao fracasso e não como uma condição real de existência que ultrapassa os limites da escola, pois esta instituição possui mecanismos muito eficazes para a naturalização dos fatos e da condição das pessoas. Isso é o resultado vivo das ideologias e políticas que fragmentam cada vez mais os grupos sociais e étnicos. Daí a dificuldade de reconhecer a escola como um verdadeiro local de transformação social e um espaço intercultural. Desta maneira, duvidamos desta escola que está posta, desse local que mais representa um campo de confusões e expectativas mal-dimensionadas, seja por parte
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de professores e dirigentes, seja por parte das políticas públicas, e principalmente pelo descaso quanto à presença de grupos étnicos nas escolas “regulares”, especificamente como evidenciado no processo de nossa pesquisa nas duas escolas em Manaus – pela total ausência de um planejamento quanto a forma de atender esse grupo de crianças indígenas, que aumenta a cada dia mais nesses espaços, o que, segundo Lahire (2004: 19), acabam por ser culpabilizadas por não acompanharem os ritmos da escola.
De certo modo, podemos dizer que os casos de ‘fracassos’ escolares são casos de solidão dos alunos no universo escolar: muito pouco daquilo que interiorizaram através de coexistência familiar lhes possibilita enfrentar as regras do jogo escolar (grifo nosso).
A evidência desse descaso constitui um dos grandes pressupostos deste texto, pois as escolas pesquisadas quase nada têm feito para mudar essa situação de total descompromisso com as crianças indígenas, por ser, na visão das próprias escolas, um problema que vai muito além das suas especificidades, afirmando que “lugar de índio é em escola indígena dentro da aldeia”. Diante dessa realidade, entendemos que as crianças acabam ficando, propositalmente, sozinhas e alheias ao universo escolar (Lahire, 2004).
Buscamos analisar as questões levantadas nas duas escolas de forma articulada, para que pudéssemos ter uma visão mais próxima do contexto escolar, mas que ao mesmo tempo, não perdêssemos a totalidade das práticas que são vivenciadas e os discursos que são impressos tantos nos documentos oficiais, quanto nas falas de alguns de seus agentes sociais. É importante destacar que os nomes, utilizados para representar esses agentes, são fictícios, como foi solicitado durante a pesquisa. No caso das instituições, optamos em identificar as escolas como estadual ou municipal. Assim sendo, o nosso foco foi analisar os processos de “integração” das crianças Sateré-Mawé nas duas instituições tendo como foco os (des)encontros entre as culturas das escolas e as culturas infantis.
Neste sentido, identificar as crianças indígenas matriculadas nas duas escolas de ensino regular na cidade de Manaus foi uma das dificuldades encontradas durante a pesquisa nas instituições, pois, ao irmos nessas escolas, percebemos nas falas dos agentes um receio em nos fornecer informações sobre a presença dessas crianças. Em seus discursos, afirmaram que essa identificação não seria possível, porque, uma vez que elas ingressam na escola, misturam-se às outras, não havendo diferenciação por parte do corpo docente e discente no trato, o que foi desmistificado no processo da pesquisa. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Nas duas escolas, encontramos um ambiente bastante hostil à presença das crianças Sateré-Mawé que lá acompanhamos. Podemos, a grosso modo, comparar a organização do trabalho pedagógico a um “lugar obscuro”, principalmente devido à falta de organização e um grande descaso pelos espaços, que na época da pesquisa encontravam-se bastante deteriorados. Ao entrar na escola estadual, um cartaz que se encontrava na primeira parede que dá acesso à parte interna da instituição, imprimia como elemento de boas vindas a seguinte frase “A sabedoria é o maior tesouro de um povo”.
Esta frase representou nosso primeiro contato com o ambiente escolar e nos deixou um tanto curiosos acerca do trabalho realizado. Porém, no decorrer dos dias da pesquisa, começamos a perceber que a frase era um elemento decorativo que se destoava do restante das ações vivenciadas no dia a dia, pois, contrariando a ideia da sabedoria como um tesouro do povo – dos povos, inclusive os indígenas –, a escola concebe o conhecimento como algo a ser seguido de forma linear, e, reproduzido, literalmente, dos programas educacionais que são enviados pela secretaria de educação. Neste sentido, a ausência, no primeiro momento da pesquisa, de um Projeto Político Pedagógico e de um Regimento Interno, representou bem a dinâmica autoritária e nada participativa que a escola adotava na sua organização, o que se repetiu mesmo depois da elaboração desses documentos quando do nosso retorno à escola dois anos depois. Os discursos, impressos nos documentos, à primeira vista, tendem a enfocar uma prática participativa e dinâmica, mas, logo, contradizem-se em si mesmos, sendo comprovados nas ações dos agentes no contexto da escola. A primeira pessoa que se aproximou, ao adentrarmos o espaço escolar, foi a bibliotecária12, expondo sua visão acerca da presença das crianças indígenas. Ela começou
afirmando que é importante receber essas crianças, pois faz parte da formação histórica do nosso povo, a presença dos indígenas. Porém, logo em seguida nos relatou a seguinte situação: Tem um menino de lá da comunidade indígena que é uma verdadeira "benção". Tudo que não presta ele faz. Bate nas crianças, desobedece aos professores, joga os livros quando vai à biblioteca e no horário do recreio ninguém quer chegar perto dele. Eu não aguento mais essa situação e ninguém faz nada só porque ele é índio. Acho que esses índios deveriam estar em outro lugar, na mata, na aldeia, menos na escola atrapalhando o nosso trabalho (Margarida).
12 Que como todos os demais agentes da escola, receberão nomes fictícios. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Após sua fala, buscamos dialogar mais sobre a presença das outras crianças SateréMawé e até de outras etnias, e ela mais uma vez fez um comentário bastante constrangedor sobre elas. Falando em alta voz, afirmou:
Elas têm um mau comportamento e isso é muito negativo para a escola, pois como não aprendem nada, acabam deixando a situação dos professores ruim diante da secretaria que quer bons resultados. Sei lá o que eles sabem, às vezes nem entendo o que falam (Margarida).
Na fala da bibliotecária, fica evidente a visão preconceituosa a respeito da presença das crianças indígenas na escola, pois, para ela, deveria existir um espaço que separasse indígenas de não-indígenas, como se um fosse “contaminar” o outro, sendo preciso separá-los em locais totalmente isolados. Isso nos remonta à ideia advinda do tempo da colonização, onde os indígenas eram vistos como preguiçosos e deveriam se integrar aos costumes da sociedade da época. Anos se passaram e o pensamento ainda permanece muito presente entre muitas pessoas, como afirmado pela bibliotecária.
No meio da conversa apareceu um funcionário da secretaria da escola, que, ao ouvir o que estávamos falando, reforçou no mesmo tom o que a bibliotecária já havia afirmado. Ele disse que os professores não suportam quando entram nas salas e encontram essas crianças nas suas turmas. Segundo ele: Os professores nos dizem que é uma tortura trabalhar com crianças indígenas, pois elas são preguiçosas e não aprendem quase nada do que eles ensinam, além de terem comportamentos muito diferentes daqueles considerados normais para os alunos (Pedrinho).
A presença das crianças representa o diferente, aquele que se distancia de nós e ao mesmo tempo nos explicita a incapacidade de realizar um trabalho que se paute em outras possibilidades, senão as descritas nos manuais didáticos e nas velhas práticas educativas e sociais de se comportar (Sarmento, 2004). O funcionário deixa isso muito claro em sua fala, e ainda reforça que a presença das crianças é um problema para a escola, não entendendo que talvez o grande problema seja para as crianças Sateré- Mawé.
A pedagoga da escola, nesta mesma linha de pensamento, tem um discurso que muito se assemelha às falas dos funcionários. Ao ser indagada sobre a presença das crianças Sateré-Mawé e sobre a possibilidade de diálogo entre a cultura escolar e a cultura Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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que as crianças trazem de sua comunidade indígena, ela assim nos afirmou:
Acho mesmo que essas crianças estão sendo prejudicadas e prejudicando o trabalho dos professores aqui na escola, pois eles não sabem como trabalhar com elas. Em relação à cultura é algo bem difícil, pois não dá para aproveitar o que essas crianças trazem, pois os nossos conteúdos são bem diferentes (Benta).
Também observamos outros tipos de discursos. As conversas que tivemos com a pedagoga da escola municipal foram no sentido contrário ao exposto acima. Percebemos, inclusive, uma grande vontade em poder contribuir para que as crianças possam participar efetivamente no ambiente escolar. Porém, ela nos relatou que ter extrema dificuldade, pois a grande maioria dos funcionários da escola não aceita um convívio em que as diferenças possam fazer parte da dinâmica escolar e produzir nela mudanças na forma de reorganizar tanto os conteúdos, quanto as relações existentes. Ela assim nos afirmou: As crianças indígenas fazem parte de outra cultura e cultura é algo bem complexo, amplo, mas que eu vejo de forma muito importante para a educação, pois é o que você traz de si, da tua geração, são valores que passam pra você e que você coloca em prática. É isso que vejo nas crianças indígenas na escola, trazendo para nós outras formas de ver o mundo. No geral, são valores que elas trazem das suas origens, gerações, regiões. Infelizmente quase ninguém entende esse lado e acabam ignorando essas crianças (Emília).
Essa contradição, presente nos discursos e nas práticas que ocorrem no espaço escolar, é um elemento que permeia outras práticas de muitas escolas nos dias de hoje, em relação à presença das crianças indígenas13. Essa contradição, que se dá em favor da homogeneidade e da preocupação que a escola mantém com as normas, os conteúdos e a disciplina, acaba sendo justificada e naturalizada, mostrando que sua ação vai à busca por equidade, embora sua existência caracterize o oposto do discurso da justiça e da igualdade e se torna um dos primeiros exemplos da injustiça que se perpetua nesse espaço. O desrespeito à ausência de culturas apresenta-se muito evidente nas escolas pesquisadas, pois não possuem um tempo para que as crianças, sejam elas indígenas ou não-indígenas, possam expor elementos de suas realidades. As escolas não possuem uma preocupação com os 13 Essas questões também foram observadas em outros trabalhos como o de Freire (2005), Nascimento (2005). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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saberes do cotidiano dos estudantes, culpabilizando-os, e também às suas famílias, e, no caso das crianças Sateré-Mawé, em especial por sua condição étnica. Essa concepção preconceituosa que está nas escolas não se faz presente somente dentro delas. Ela ganhou maior dimensão no decorrer do tempo moderno, e, atualmente, assume uma das formas mais difundidas em que a cultura é uma construção de identidade, de valores e costumes, numa visão homogênea e que se propaga através dos jornais, revistas, filmes e demais elementos da mídia, sendo reproduzida pela escola. Ao trazer para sua discussão essas questões, afirma Hall (2005: 42), que:
O objetivo do "poder disciplinar" consiste em manter "as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os prazeres do indivíduo", assim com sua saúde física e moral, suas práticas sexuais e sua família, sob estrito controle e disciplina, com base no poder dos regimes administrativos, do conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento fornecido pelas disciplinas das ciências sociais. Seu objetivo básico consiste em produzir "um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil".
Conclusão Diante dos processos de exclusão apresentados no decorrer do texto, podemos afirmar que, ao não se adaptar a essa forma obediente e padronizada, as crianças SateréMawé, e muitas outras crianças, são concebidas pela escola como incapazes, como aquelas que não aprendem, não progridem, pois não seguem as regras postas pela cultura escolar, no seu mais puro sentido de “didatização” do conhecimento (Forquin, 1997). Assim é que os discursos ganham uma força mobilizadora no espaço escolar, que vai, gradativamente, invisibilizando as crianças indígenas, impondo-lhes a condição de se enquadrarem ou de serem “banidas” da escola.
Esse conjunto de visões de mundo ou de compreensões expressos nos discursos dos agentes escolares que participaram da pesquisa objetivam-se em práticas sociais e pedagógicas preconceituosas e seletivas, que tendem a excluir as crianças Sateré-Mawé das possibilidades de terem uma educação escolar que lhes propicie perceber melhor esse espaço de fronteiras enquanto espaço de intercâmbio. Muito pelo contrário, a escola acaba sendo o grande veículo de perpetuação do preconceito e do apagamento de suas tradições e modos de viver a infância, negando as dimensões étnicas de seu povo. A prática desses agentes que atuam na escola não está dissociada das suas vivências sociais, ou seja, ainda prevalece a ideia de que o indígena tem que estar isolado na mata
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e continuar vivendo como o “primitivo do primitivo”. Logo, a escola, que deveria ser inspirada na frase que abre suas portas – tida como um espaço democrático de discussão e difusão de saberes –, não possui coerência e sensibilidade para o trato com a educação das crianças Sateré-Mawé.
A educação, para os povos indígenas, não se realiza em uma única instituição, mas pela ação e pelo envolvimento de toda comunidade. Ocorre em tempos e espaços cotidianos, por meio de pedagogias próprias e diversas, que garantem tanto a reprodução quanto a recriação da identidade, da tradição, dos saberes, dos valores, dos padrões de comportamento e de relacionamento, na dinâmica própria de cada cultura. Contrariando essa lógica, a escola se impõe na realidade indígena como um grande desafio (CIMI 2001, p. 182).
Isso nos possibilita pensar que a escola que está posta para as crianças SateréMawé é, na verdade, contrária à tese da modernidade de que “a escola é o lugar das crianças”, pois entendemos que os saberes trazidos por elas de sua comunidade poderiam ser de fundamental importância para a apropriação dos outros saberes que se veiculam na escola, a partir de um diálogo intercultural. Neste sentido, acreditamos que outros espaços educativos e talvez outra escola, que não esta, possa ser mais significativa para as crianças, pois se o espaço escolar for norteado por processos tão excludentes, é bem mais vital para o povo Sateré-Mawé que suas crianças estejam na comunidade aprendendo elementos da cultura e fortalecendo sua etnicidade. Neste sentido, acreditamos que a escola urbana de educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental não é um espaço privilegiado de aprendizagens que contribua com o conhecimento das crianças Sateré-Mawé, no sentido de resguardar sua condição étnica. Ao contrário, nelas se reproduz o ideal da infância burguesa e se desqualifica todo o aparato de conhecimento que as crianças possuem.
Nossas indicações, a partir de tais constatações, vão em direção à própria luta dos Sateré-Mawé e de outras comunidades indígenas de Manaus, que defendem a construção de uma educação escolar indígena, ou seja, uma escola em que os professores sejam indígenas e que os “processos próprios de aprendizagem” de seu povo sejam reconhecidos como conhecimento capaz de interagir com os conhecimentos dos “brancos” (Bernal, 2009). Sabemos que a concretização dessa escola ainda vai demandar um processo de muita organização e luta por parte dos povos indígenas de Manaus e das diversas
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associações que estão engajadas nesta causa. Pensar essa pedagogia indígena representa compreendê-la no bojo do espaço urbano, pois o que está em discussão não é a escola, mas a própria educação escolar indígena, que já há algum tempo vem ganhando espaços nas muitas aldeias pelo país afora. Evidente que toda experiência acumulada no trabalho destas instituições são marcos essenciais para se desenhar uma escola indígena na cidade, mas é preciso muito cuidado para não se deixar cair no fosso das “idealizações localizadas” (Bourdieu, 2007). Outra questão que consideramos fundamental indicar é que a presença das crianças não se restrinja a compor o espaço como alunos, mas que devam ser entendidas como parceiras ativas na consolidação desse projeto de educação escolar indígena na cidade, onde se possa, de fato, compreendê-las como agentes de direitos e competentes na construção de visões de mundo que possam comportar os seus jeitos de viver a infância, consolidando-se a visão de fronteira defendida por Tassinari (2001) como espaço de encontro, de trocas interculturais.
Neste sentido, as falas das crianças Sateré-Mawé representaram um riquíssimo acervo para que pudéssemos chegar à compreensão dos seus jeitos de viver a infância. Porém, há ainda um caminho muito longo a se seguir, sendo necessário ultrapassar determinações metodológicas cristalizadas e compreender, de fato, que a criança indígena produz um conhecimento sobre si própria e sobre o mundo. Quando estivermos efetivamente vivenciando essa possibilidade, nossos esforços, e o de muitos outros pesquisadores citados neste texto, terão valido a pena. Aliás, já valem, pois nada mais gratificante do que ouvir o que elas têm a nos dizer. Nada mais rico do que aprender com elas a olhar o mundo. Nada mais fascinante do que caminhar pelos seus imaginários. Nada mais instigante do que ter a possibilidade de chegar a um destino onde o caminho não está dado, precisa ser construído num processo constante de interações. Aos que se encorajarem nessa experiência, o caminho é sem volta, felizmente, pois ao escutarmos o que elas têm a nos dizer, jamais seremos os mesmos. Esperamos que nossos estudos e pesquisas possam trazer contribuições tanto para o campo acadêmico como para a realidade das crianças. O convite para nos lançarmos a esse grande desafio está feito.
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Recebido em 31 de maio de 2017.
Aceito em 07 de dezembro de 2018.
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Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis: nova forma de resistência em área de retomada Sônia Rocha Lucas Mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados soninhalucas@gmail.com Antonio Hilario Aguilera Urquiza1 Doutor em Antropologia pela Universidade de Salamanca hilarioaguilera@gmail.com
Resumo O texto apresenta a realidade vivenciada pelas crianças kaiowá em uma área de retomada na região de Dourados/MS. O objetivo é apresentar a questão da regulamentação fundiária e a situação das crianças em moradias móveis. Os procedimentos metodológicos serão aqueles próprios da Antropologia, como o trabalho de campo e, a partir dele, a observação participante, diário de campo e outras formas de registros. O estudo fundamenta-se em autores como Brand (1993, 1997), Pereira (2007, 2009), Crespe (2009), Cohn (2005) e Aguilera Urquiza (2013). Ao analisar a realidade do constante trânsito das crianças da aldeia Pakurity pudemos perceber a ausência do Estado, bem como a ausência de políticas públicas e, sobretudo, o desrespeito aos direitos humanos. Ao final deste artigo podemos constatar que na situação de ir-e-vir exigida pela forma de moradias móveis, os indígenas são unânimes em dizer, inclusive as crianças, que preferem morar na aldeia Pakurity. Palavras-chave: Criança Kaiowá; moradias móveis; retomada. Abstract This article presents the reality that the Kaiowá childreen have been living in a retaking land at the region of Dourados/MS. The objective is to present the question of the land regulation and the childreen’s moving houses situation. The methodological procedures 1
Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor da Pós-Graduação em Antropologia (PPGAS) da UFMS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ2) CNPq.
Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis
were the usual in Antropology like the fieldwork, the participant observation, the diary and other forms of record. The study is based on authors such as Brand (1993, 1997), Pereira (2007, 2009), Crespe (2009), Conh (2005) e Aguilera Urquiza (2013). In considering the constant transit of children from the Pakurity village is possible we noticed the absence of the State, as well as the absence of public policies and the disrespect to the human rights. At the end of this article, we show how, in the transit required to this moving houses situation, all these indigenous, even the children, prefer to live at the Pakurity village. Keywords: Kaiowá Childreen; moving houses; Retaking Land.
Introdução As crianças Kaiowá e Guarani da aldeia Pakurity vivenciam no estado do Mato Grosso do Sul, juntamente com sua comunidade, um constante conflito fundiário. Abordar o tema sobre comunidades indígenas e território neste estado tem sido um desafio e uma forma de denunciar a violência que os tem assolado nos últimos anos, ou melhor, décadas. Em Mato Grosso do Sul encontra-se a maior população indígena da região CentroOeste e a segunda maior do país, com 77.025 indígenas2. Tal expressividade nos números
de indígenas não ameniza a situação de constantes conflitos fundiários entre índios e proprietários rurais, levando o Estado, há anos, a possuir a liderança no ranking nacional de violência contra os povos indígenas. Segundo o relatório de Violência Contra os Povos Indígenas em Mato Grosso do Sul (CIMI 2011: 16), no ano de 2003 a 2010 foram 250 os assassinatos só em Mato Grosso do Sul, enquanto no restante do Brasil, neste mesmo período, foram registrados 202 assassinatos. Só no ano de 2015, no relatório pulicado pelo CIMI, as informações são de que foram registrados 36 homicídios no Mato Grosso do Sul (CIMI 2015: 20), o que torna o Estado, neste ano, o recordista no registro de violência contra os povos indígenas, mais uma vez.
Apesar das garantias constitucionais, entre elas o Artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que reconhece o direito dos povos indígenas a possuírem seus costumes, línguas, religiões e organização social distintas da sociedade nacional, salientamos, no entanto, o fato da contínua violação de direitos humanos dos povos indígenas, e destacamos como sendo um dos principais indicadores, a baixíssima taxa de demarcação de suas terras tradicionais.
Tratar da situação histórica de esbulho do território tradicional, posterior retomada e luta atual pela demarcação da Aldeia Pakurity é um assunto muito delicado e 2
IBGE, Censo Demográfico 2010;
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de difícil lide, principalmente por se tratar de mais um dos casos inseridos no contexto dos conflitos fundiários que ocorrem no Mato Grosso do Sul, fruto de fatos históricos de ações e omissão do Estado brasileiro, que acabaram gerando, dentre outras consequências, a situação de confinamento, insegurança alimentar, fragmentação das formas tradicionais de organização social, perda da autonomia e a necessidade de apoio de terceiros para a realização de algumas ações da vida cotidiana, como o atendimento à saúde e a plantação da roça familiar. O presente artigo se origina da dissertação de mestrado em Antropologia3que
teve como objetivo principal elaborar um estudo das crianças Kaiowá e Guarani do acampamento Pakurity, quem são e como percebem a situação de acampamento, levando em conta as representações e vínculos com o território. Durante os trabalhos de campo fomos surpreendidos com a situação que as crianças, juntamente com suas famílias, vivenciam diariamente, a de moradias móveis, ou seja, uma nova forma de resistência e de luta pela permanência na terra tradicional. Esse conceito moradias móveis trata basicamente da mobilidade semanal de boa parte das pessoas, entre a aldeia Pakurity, vivenciando uma realidade alternando entre a área de retomada, e as aldeias Bororó e Jaguapiru, situadas nos arredores da cidade de Dourados. A aldeia Pakurity representa seu território tradicional (área de retomada, luta política, onde estão enterrados seus ancestrais), mas que por falta de infraestrutura e de políticas públicas, como o direito à educação, por exemplo, faz com que as famílias com suas crianças tenham que passar a semana fora dali, em outras localidades, onde possam ter acesso, sobretudo, à rede de ensino. Assim, as famílias vivenciam a posse do território tradicional, mas, ao mesmo tempo, durante a semana, se deslocam para uma aldeia tradicional, onde suas crianças possam ter acesso à educação formal.
Diante do contexto de moradias móveis, cabe abordarmos que esta ação é uma forma de mobilidade guarani e se caracterizava como uma circulação entre os territórios tradicionais e está diretamente ligada ao estudo da sua territorialidade e de sua cosmologia, pois a mobilidade faz parte da noção de mundo guarani. Assim, a mobilidade pode ser motivada por inúmeros fatores que se complementam e estão intrinsicamente interligados à cosmologia guarani. Antes de nos aprofundarmos no tema central deste artigo, se faz necessário apresentar, ainda que brevemente, um pano de fundo histórico, o qual ajuda a compreender a realidade da aldeia Pakurity, desde sua trajetória de esbulho da sua terra, passando por
3
A dissertação de mestrado teve como tema “Crianças Indígenas no Acampamento Pakurity - MS: quem são, como vivem e como percebem a situação de moradias móveis”
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um momento de trânsito entre as matas e as reservas, e permanecendo acampados na BR 463 até a ação da retomada, ou seja, tentativas de reocupar o direito às áreas que consideram suas terras tradicionais, seus tekoha4. Queremos, assim, reforçar o fato de que a atual aldeia Pakurity assemelha-se a tantas outras situações de áreas que foram usurpadas historicamente, e que, após a organização do movimento indígena, passam a ser reivindicadas. Diante da inércia do Governo Federal na demarcação de seus territórios tradicionais, garantido na Constituição Federal de 1988, esses povos começaram a retomar suas áreas, com de muita luta, sofrimento e determinação. Tal situação só é possível compreender quando consideramos o processo de colonização e de ocupação dos espaços do território brasileiro5.
Breve contexto histórico
Alguns fatos históricos contribuem para a compreensão da atual realidade enfrentada pelos indígenas, os quais passaram por uma situação de confinamento6 (Brand, 1993, 1997), resultando em uma ação de esbulho de seus tekoha. A Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), a Companhia Mate Laranjeira (1870) e a criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) foram os principais marcos históricos para a ocupação do território tradicional do povo Kaiowá e Guarani.
Os povos indígenas, particularmente os Guarani, já estavam ocupando estas áreas do Estado do Mato Grosso do Sul muito antes da chegada das frentes de ocupação agropastoril para a colonização do estado ou mesmo antes da Guerra do Paraguai.
Segundo Chamorro (2015: 111) a guerra ocorreu “em pleno território paĩ-tavyterã e kaiowá” e, somado com a ocupação pelas tropas paraguaias e brasileiras nesse território, causaram grandes modificações no cenário e uma drástica interferência na região através de uma “política civilizadora iniciada anos antes e o povoamento da região de fronteira com o Paraguai por não indígenas”. 4 5 6
Com o final da Guerra, segue-se a exploração da erva-mate, em território Paraguaio
Tekoha é o lugar físico – terra, mato, campo, águas, animais, plantas, remédios etc. – onde se realiza o teko, o “modo de ser”, o estado de vida guarani. Engloba a efetivação de relações sociais de grupos macro familiares que vivem e se relacionam em um espaço físico determinado (conforme Cavalcante, 2013; e http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva/1298 - acesso no dia 22/11/2013). O contexto histórico foi abordado por vários autores como: Schaden (1974), Brand (1997), Pereira (1999, 2004), Mura (2006), Barbosa da Silva (2007), Cavalcanti (2013), entre outros. O conceito de “confinamento” aparece pela primeira vez no trabalho de Schaden (1962), mas é utilizado na atualidade a partir dos trabalhos de Brand (1993 e 1997). O termo dá nome ao processo de constrangimento dos povos Kaiowá e Guarani a se instalarem nas oito Reservas demarcadas pelo governo entre 1915 e 1928, saindo de seus territórios tradicionais para pequenas áreas no entorno das cidades. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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(1877) e posteriormente em território brasileiro (1882), através da Companhia Mate Laranjeira, usando intensamente a mão de obra do povo guarani para a extração da erva (Chamorro 2015:112). Esta empresa conseguiu do Governo Imperial e depois da República, a concessão legal de vasto território, equivalente ao chamado “cone sul” do atual estado de Mato Grosso do Sul, para colher erva-mate nos chamados terrenos devolutos existentes nos limites da Província de Mato Grosso com a República do Paraguai. Este era o território tradicional do povo Kaiowá e Guarani, o que significou um forte fator de impacto no processo das relações interétnicas. A Grande Guerra somada com a Companhia Mate Laranjeira foram fatos preponderantes para a transformação do cenário territorial do Estado, mas cabe singular referência à criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) em 1943, como uma política de ocupação desta região. Esses fatos históricos em sequência trouxeram para o Estado muitos colonos com a finalidade de povoar o território, a colonização, do, até então, sul de Mato Grosso, efetivamente, habitat do povo Kaiowá e Guarani.
Assim, a usurpação do território dos Kaiowá e Guarani se iniciou com os contratos de arrendamento de terras para beneficiar a Companhia Mate Laranjeira, e se intensificou, após a decadência da empresa, com o processo de ocupação e colonização que proporcionou a vinda de colonos de vários estados do Brasil. Em nome do progresso abre-se, cada vez mais, espaços para a fixação de novos proprietários e os indígenas, cada vez mais, são pressionados a serem removidos de seus espaços tradicionalmente ocupados para as reservas.
Dessa forma, com o propósito de remover os indígenas de seus territórios e liberar as terras para os colonos, foram criadas oito reservas7 (1915 a 1928) no sul do estado para abrigar os indígenas das etnias Kaiowá e Guarani. Os indígenas deveriam ser removidos para as reservas, enquanto aqueles que conseguiam fugiam para as áreas nos fundos das fazendas ou passaram a viver em periferias de cidades (Eremites de Oliveira & Pereira 2009: 112).
Nas décadas seguintes as ações do governo em agrupar todos os indígenas nas respectivas reservas intensificaram-se mais ainda. O maior impacto é que essa ação de esbulho contra os povos indígenas contou com a ajuda do, até então, Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão governamental que tinha como objetivo a proteção dos povos indígenas. Podemos ver nas palavras de Pereira que houve poucos esforços para se garantir terras para os povos indígenas. O autor diz:
7
As oito reservas são: Amambai, Dourados, Caarapó, Porto Lindo, Taquaperi, Sassoró, Limão Verde e Pirajuí – (Cavalcante, 2013: 84).
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Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis Quando se pensou em reservar terras para os índios, o destino inicial desses espaços era, via de regra, abrigar a população kaiowá que já vivia nesses locais. Entretanto, logo acabou prevalecendo a intenção de reunir nesses espaços a população de um grande número de comunidades kaiowá dispersas pelo território (Pereira 2006: 72).
E continua o mesmo antropólogo:
A população kaiowá resistiu de diversas formas, procurando manter a posse das terras que ocupava. Entretanto, a maior parte das famílias das comunidades que tiveram suas terras expropriadas pelas frentes de ocupação agropecuária gradativamente cedeu às pressões dos fazendeiros e dos funcionários do SPI e se recolheu às áreas de acomodação (Pereira 2006:72).
Após a entrada dos colonos nas terras indígenas, era comum utilizar do trabalho dos próprios indígenas para a derrubada da mata e limpeza do terrenão. Crespe acrescenta que “depois de realizado o trabalho de limpeza, os índios, na maioria das vezes, não eram mais tolerados e então eram expulsos” (2015: 231). A autora descreve tal expulsão:
... a expulsão do tekoha tendia a ser gradativa, na medida em que as matas eram derrubadas para a introdução das lavouras e pastos. Quando saíram de lá outros parentes já haviam saído e se esparramado por diversas áreas. Alguns foram para a reserva indígena de Dourados, onde Bonifácio foi com a mãe. Entretanto, segundo Bonifácio, algumas famílias conseguiram permanecer escondidos dentro da área até pouco tempo atrás (2015: 229).
Neste período, segundo o líder indígena da aldeia Pakurity, Bonifácio,8 após a retirada da comunidade do território em que viviam, eles andaram em outros territórios indígenas e por várias vezes tentaram voltar ao seu tekoha, mas sempre foram expulsos pelos proprietários rurais. Ressalta que faziam caminhadas até seu território a fim de coletar frutos e remédios, fazer pescas e até mesmo, voltavam para trabalhar nas fazendas. Bonifácio afirma que ele mesmo continuou empregado da família que ocupou a área de seu território tradicional e “cheguei a ver os próprios índios desse tekoha trabalhar por uma galinha, por um bezerro ou cavalo. Muitos trabalharam para o fazendeiro” (Entrevista, 16/04/ 2016). 8
Registro no caderno de Campo: entrevista com Bonifácio Reginaldo Duarte no dia 16/05/2016.
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Neste período de itinerância dos indígenas pela região, podemos mapear o seguinte trajeto:
Depois de isso ocorrer com a família de Bonifácio eles passam a perambular de um lado para o outro porque, segundo Bonifácio, não tinha onde morar: E a gente começou, depois, não ter lugar para morar. Fui para Nova Alvorada do Sul e fiquei mais de vinte anos, vendendo arco e flecha, andando para lá e para cá. A ida para Nova Alvorada do Sul se deve a não acomodação na reserva e ao não desejo de permanecer nela, o que gerou uma perambulação forçada9dessas famílias, segundo o que me disse Bonifácio. Depois dessa perambulação, ele se lembra de retornar ao tekoha produzido pelos jary’i (Crespe, 2015: 231).
Durante esse período de perambulação pelas aldeias e vilas da redondeza, as crianças recebem um destaque em sua narrativa:
A criançada não podia mais falar guarani, dançar, caçar, e começou por em risco nosso costume; é pra terminar, esse é o primeiro pensamento que nós tivemos. A partir disso eu disse não pra isso aí, e o espaço é muito pouco. Aí nós lembremos de voltar pro nosso tekoha (Bonifácio Martins apud Crespe, 2009: 65).
Em todas as suas falas, Bonifácio demonstra grande preocupação com as crianças e o seu modo de viver. Diz que é de suma importância transmitir a elas os ensinamentos da cultura kaiowá. Explica que é necessário ensinar a cobrir flecha, fazer cerâmica, danças típicas, ouvir histórias dos antigos como a do Caipora e do Saci. Com isto notamos que a liderança, tanto no período da itinerância como no de retorno ao tekoha, e até o presente momento, preocupa-se com as crianças e a sua vivência da cultura no seio da comunidade indígena.
As áreas, após o retorno, ocupadas por fazendas de não-indígenas, são chamadas pelos Kaiowá e Guarani como áreas de retomada (Crespe, 2015: 23). Para a autora, “as áreas de retomadas são áreas dos antigos sítios de ocupação que passam a ser parcialmente reocupadas pelos índios, daí a noção de retomar algo que, segundo a ótica indígena, lhes pertence”. A maneira como se organiza e realiza as retomadas são descritas por Crespe da seguinte forma:
9
Perambulação forçada, situação que se deu após a acomodação de grupos indígenas em reservas e às consequentes dificuldades e, sobretudo ao não desejo de permanecer nos espaços circunscritos das reservas. Daí a constante peregrinação dos indígenas em busca do seu tekohá, ou de seu território tradicional, superando a situação imposta pelo confinamento.
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Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis Outros grupos tentaram se organizar às margens das rodovias, configurando acampamento em beira de estradas. Depois de organizado o grupo, formado por relações de parentesco e afinidade, eles precisam entrar na área. A entrada, chamada pelos Guarani e Kaiowá de retomada, é sempre muito tensa. Para se protegeram dos ataques de pistoleiros, as entradas, na maior parte das vezes, são feitas de madrugada. Depois dos ataques seguem os pedidos de reintegração de posse, feito pelo fazendeiro à Justiça Federal. O pedido de reintegração de posse pode resultar no despejo do grupo que, por sua vez, pode resultar em um novo acampamento na margem da rodovia. Também pode ocorrer do grupo se dispersar depois de um despejo, e as famílias retornarem para as reservas (Crespe, 2015: 136).
Como narrado anteriormente, por várias vezes os indígenas tentaram retomar o território do Pakurity, mas foram expulsos pelos proprietários rurais. A situação foi se tornando cada vez mais tensa, dificultando a permanência, não somente de Bonifácio, mas de todo o grupo indígena. Como forma de resistência, a partir do final dos anos de 1970 e mais intensamente nos anos 1980, toma maior expressão e força o movimento indígena, ou seja, a articulação de lideranças indígenas, com apoio de indigenistas e parceiros diversos, para retornarem às suas terras tradicionais, desencadeando, assim, o processo de retomadas.
Como estratégia de luta e resistência, para permanência em seus territórios, tal situação levou o grupo do Pakurity a viver à margem da rodovia, entre a BR 463 (Dourados a Ponta Porã) e o cercado da fazenda, ou seja, acamparam o mais próximo que podem de seu tekoha, enquanto não conseguem retomar a sua terra. Acerca desse processo de ida e volta (expulsão) dos seus territórios tradicionais e ficar às margens de rodovias, Pereira (2010: 118) comenta:
Tais tentativas são percebidas como necessárias para recuperar as condições necessárias à reprodução física e cultural de suas comunidades. Isto requer o empenho dos líderes no reagrupamento dos parentes e na atualização de formas de sociabilidade parental, tornando possível a atualização das comunidades políticas. Apresentar- se como comunidade política é o primeiro passo para novamente reivindicarem uma base territorial.
Na aldeia Pakurity, com a liderança de Bonifácio, a retomada foi realizada no dia 12 de agosto de 1988. O líder explica que essa data se refere ao momento em que “eu mesmo cortei o arame”, mas bem antes já haviam feito várias outras tentativas. Agora que estão Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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no tekoha, esperando o final do processo fundiário, para a posse definitiva, escolheram adotar a data desde a primeira tentativa de retomada, a de 1988. Os indígenas, liderados pelo senhor Bonifácio, seguem para o Pakurity e iniciam o processo de retomada do seu território tradicional. Segundo Crespe (2009: 64), os indígenas permaneceram acampados desde agosto de 1996 até o dia 12 de agosto de 201310. Sendo assim, o acampamento indígena permaneceu entre o asfalto da rodovia e a
cerca da fazenda por 17 anos até que finalmente conseguiram entrar na área de uma mata ciliar que é fragmento da área total de seu tekoha.
O campo e a situação das Moradias Móveis
Atualmente são mais de 40 acampamentos indígenas em Mato Grosso do Sul, os quais se encontram ou na beira da estrada ou em pequenas parcelas de seu território tradicional, ou, ainda, tentando mais uma retomada de seu território tradicional. De igual forma, ocupando parte do seu território tradicional, encontra-se o grupo do Pakurity.
Segundo Robson11 o nome Pakurity deriva de um fruto, uma espécie de limão bem docinho que é utilizado como remédio e tem efeito cicatrizante. O tekoha está localizado no km17 da BR 463, a aproximadamente 20 km do perímetro urbano de Dourados/MS em sentido Ponta Porã/MS (Figura 1).
Figura 1: Localização da Aldeia Pakurity. Fonte: Imagem de satélite do Google Maps – Acesso no dia 25 de agosto de 2016 às 10hs.
10 Informação de Bonifácio Reginaldo Duarte - Líder indígena entrevistado no dia 22 de janeiro de 2014 11 Robson é o segundo filho de Bonifácio. Caderno de campo do dia 02 de fevereiro de 2016. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis
Os Indígenas que vivem em Pakurity são, em sua maioria, Kaiowá e apenas alguns são Guarani (Ñandeva). Atualmente a aldeia Pakurity encontra-se em uma pequena parte de terra do território tradicional, ou seja, em alguns poucos hectares, dos 15.500ha reivindicado. Mesmo vivendo em parte do seu tekoha, trata-se de uma comunidade em situação de acampamento12, cercada de conflitos e provisoriedades. No local encontramos aproximadamente 15 moradias indígenas, em sua maioria barracos de lona espalhados ao longo de uma mata ciliar, e segundo o senhor Bonifácio13,
são aproximadamente 87 adultos e 80 crianças distribuídas em 10 famílias. É difícil precisar a quantidade “exata” de pessoas no local, pois há um trânsito muito intenso dos indígenas, entre a aldeia, a reserva (Aldeia Jaguapiru e Bororó) e o centro urbano de Dourados em busca de atenderem suas necessidades básicas de sobrevivência. No site na FUNAI e do Ministério Público não foi possível encontrar nenhuma informação quanto à atual situação do processo de regularização fundiária da aldeia Pakurity. Sabemos que em 12 de novembro de 2007 foi assinado o Termo de Ação e Conduta (TAC) com a finalidade de constituir Grupos Técnicos (GT) com vistas à identificação e delimitação de 07 Áreas Indígenas14. As Terras Indígenas estão divididas em grandes áreas
de bacias hidrográficas que abrangem várias aldeias. A aldeia Pakurity está inserida na Área Indígena Douradopegua. O GT foi constituído por especialistas, coordenado por uma antropóloga, que elaborou os relatórios de identificação das Terras Indígenas. No caso do Pakurity, até o momento, ainda não houve a finalização de todo esse processo.
No dia seis de fevereiro de 2016, ao chegarmos no acampamento Pakurity para iniciarmos “formalmente” os trabalhos de campo para a pesquisa do mestrado15, fomos
recebidos na porteira pelo Robson, o terceiro filho de Bonifácio e Priscila, o qual nos convidou a entrar até sua residência, ao final de uma trilha, rodeada por uma plantação de mandiocas até próximo da mata ciliar.
No início do trabalho de campo recebemos a notícia de que, no mês de janeiro, Bonifácio havia sofrido uma emboscada ao sair de uma visita à Fundação Nacional do 12 Conceito que nos remete a elementos históricos explicitados anteriormente, assim como a elementos sociopolíticos e culturais, que compõem o quadro atual dessas comunidades Kaiowá e Guarani do estado. 13 Entrevista: Bonifácio Reginaldo Duarte, no dia 22/01/2014. 14 As 7 áreas são: TI Iguatemipegua; TI Amambaipegua; TI Douradopegua; TI Dourados – Amambaipegua; TI Brilhantepegua, TI Ñandeva e TI apapegua. 15 Os primeiros contatos com a comunidade de Pakurity foi nos anos 2013/2014 para o Programa de Iniciação Científica (PIBIC) da UFMS/CNPq com o tema: Crianças Kaiowá e Guarani em situação de acampamento na região sul do estado de Mato Grosso do Sul: Quem são e como percebem a situação de acampamento. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Índio (FUNAI) em direção à Aldeia de Bororó (Dourados/MS). Robson conta em detalhes o atentado sofrido por seu pai, a mando do fazendeiro, uma tentativa de assassinato, com consequência de quase sua morte, tendo em vista a quantidade de ferimentos de arma branca.
Ao me encontrar pessoalmente com o Bonifácio não o conhecemos de imediato, a ponto de pensar que estávamos nos encontrando com o líder indígena errado. Ele estava diferente do Bonifácio que conhecíamos anteriormente. Estava muito magro, com o cabelo alto e grisalho e o seu rosto estava alterado, apresentava uma cicatriz no lado esquerdo que ia da orelha até a boca e uma outra menor no queixo. Tanto é que realmente achamos que estavam nos apresentando a outro Bonifácio. Só o reconhecemos quando ele começou a falar, mesmo porque, em sua atitude, ele tem um encanto e propriedade em contar as histórias do Pakurity, principalmente sobre a história do próprio povo indígena frente a luta pelo tekoha. Atributo de quem vivenciou cada fato por ele narrado.
Diante do fato ocorrido, o atentado, alguns encontros que tivemos com o líder indígena Bonifácio foram realizados na aldeia de Bororó, na casa de um parente, durante o período de sua recuperação da cirurgia a qual foi submetido pela agressão sofrida, principalmente a da região do abdômen. Essa situação forçou o líder indígena a permanecer um longo período fora da aldeia Pakurity e a leitura dos trabalhos, tanto a dissertação como a tese de Crespe (2009, 2015), levaram-nos a indagar e a procurar entender a situação de mobilidade dos indígenas da aldeia para a área de retomada.
Chegamos à conclusão de que os povos Kaiowá e Guarani praticam a mobilidade, o que é diferente do conceito de ser tratado como nomadismo. Crespe (2009) percorre um caminho que inicia na descrição da história desse povo, passando pela explanação de como se dá a formação das famílias extensas ao redor de um chefe de prestígio em um determinado tekoha. Cabe ressaltar que faz abordagem da organização social kaiowá a partir de unidades familiares que formam a parentela baseada nos estudos de Pereira (2004) no qual a família nuclear é caracterizada e simbolizada pelo “fogo doméstico”. Crespe comenta:
O chefe da parentela atua como um centro unificador dos “fogos”, e seus parentes vão se estabelecendo ao seu redor, tanto socialmente, quanto geograficamente. Quanto mais estreito o laço de parentesco, mais próximo estarão do tronco familiar, e a medida que o grau de parentesco vai se distanciando, diminui também a distância das lideranças, constituindo-se “fogos” mais autônomos. Como é comum conflitos dentro das parentelas, o chefe tem uma função de solucioná-los. Caso isto não ocorra, a solução encontrada é se mudar para outra parentela, ou tekoha, onde a família tenha alguma afinidade, consanguínea ou política (2009: 23).
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Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis
Dessa maneira podemos notar que as famílias nucleares de um determinado tekoha se movimentam dentro desse território determinado, seja através “do casamento, a iminência de alguma doença, prática de feitiços, a morte de parentes, e os conflitos com a parentela” (Brand, apud Crespe, 2009: 25). Essa mobilidade tradicional se dá, segundo Crespe, pela busca de uma boa terra para reproduzir o tekoporã, ou seja, reproduzir o modo ideal de se viver de acordo com a cultura guarani (2009: 26).
Para além da mobilidade tradicional, a autora, através da análise de dois acampamentos em margens de rodovias (Curral do Arame e Pacurity) e de duas ocupações indígenas localizadas no município de Dourados (Passo Piraju e Ñu Porã), segue através das narrativas da expulsão dos territórios e a tentativa de recuperá-los, demonstrando a prática da mobilidade, sobretudo, de retorno para seus antigos sítios de ocupação. Em todos esses casos citados pela autora, pode-se ter uma melhor compreensão do que são os acampamentos e ocupações e, assim, compreender as novas modalidades de organização territorial em “modalidades alternativas de mobilidade e assentamento”, em que “todas as alternativas se constituem em busca do caminho de volta para seus antigos sítios de ocupação” (2009: 89). Diante dessa situação precária, seja pela falta de atendimento em seus direitos básicos, ou dos conflitos existentes com os produtores rurais da redondeza enquanto estão na aldeia Pakurity e da mobilidade em que os indígenas são submetidos a uma situação de acampamento, cabe o entendimento do porquê do trânsito dos mesmos entre o acampamento, a reserva de Dourados e cidades circunvizinhas. Para Crespe:
Este fluxo é resultado, principalmente, das duras condições de vida no local, que são bastante precárias... como o lugar não oferece as condições necessárias para a sobrevivência, torna-se necessário estabelecer alternativas e estratégias que permitam a permanência deles ali, por isso, a maioria dos homens precisam trabalhar como diaristas nas roças vizinhas ao acampamento (Crespe 2009: 61).
Diante dessa dura realidade vivenciada em situação de acampamento os indígenas do Pakurity, desde os anos de 2013/2014, fazem solicitações e reclamações sobre a falta de atendimento de alguns sistemas de serviços básicos como a saúde e o ensino.
Quanto à assistência à saúde a aldeia do Pakurity o atendimento da Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI)16 deveria fazer quinzenalmente as visitas para realizar
16 A SESAI é o setor do Ministério da Saúde responsável por coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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a atividade de pesagem e vacinação das crianças da aldeia, mas, segundo os indígenas, não há uma regularidade no atendimento em sua comunidade, o que seria mais um motivo para levar as crianças para as aldeias de Jaguapiru e Bororó durante a semana. Outro elemento é a dificuldade de acesso da criança indígena ao sistema de ensino formal. A aldeia Pakurity não recebe nenhuma assistência quanto ao ensino das crianças indígenas referente ao seu território ou de transporte. As crianças precisam se deslocar até outras escolas, seja na reserva de Dourados, ou em outras cidades vizinhas, para terem acesso ao sistema de ensino, sendo esse o motivo principal para levar as crianças para a aldeia Bororó durante a semana.
Em uma reunião realizada pela comunidade no dia 16 de abril de 2016, a qual fomos convidados a participar, foi redigido um documento com a finalidade de apresentar e exigir providências junto à sociedade e ao governo, com vistas a atender a necessidade da implantação e implementação de uma escola indígena no seio da Aldeia, com a finalidade de atender os direitos de suas crianças, jovens e adultos na vida escolar, sem a qual, segundo a liderança, se compromete o crescimento saudável das mesmas e a efetivação de direitos inerentes ao ordenamento jurídico nacional e internacional. A solicitação continua sem uma resposta dos órgãos competentes até o presente momento. A implantação de uma escola dentro da aldeia, além de proporcionar a possibilidade de compreender os códigos dominados pelos não-indígenas, tem uma dimensão simbólica. Para além da retomada da terra, a escola é símbolo para a retomada de uma educação indígena, feita pelos indígenas para os indígenas, pois Bonifácio, como líder indígena da aldeia, em todo momento, demonstra preocupação, não somente com o conhecimento que a escola pode proporcionar, o qual ele chama de “educação dos brancos”, mas também com a educação tradicional, a qual poderá proporcionar o conhecimento “dos antigos”, para as futuras gerações. Uma educação tradicional é pautada no tekoporã, ou seja, o modo ser guarani que se dá no interior de cada comunidade orientada pela pedagogia de cada etnia. Sobre o aprender Bergamaschi apresenta:
“Para aprender tem que perguntar”, repetia várias vezes o professor Alberto, quando indagado sobre como ocorre a aprendizagem na perspectiva Guarani, pressupondo a curiosidade que move a pessoa em direção à pergunta. O aprender, acionado pela curiosidade, privilegia a observação, o que configura um traço sobressalente e que busca no fazer, muito mais do que no dizer, possibilidades concretas para a aprendizagem. A pessoa é, desde pequena, uma observadora da natureza, da qual se sente parte, tendo-a como fonte inspiradora de vida e de educação,
(SasiSUS), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
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Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis mas é também uma observadora do comportamento de outras pessoas. Especialmente os pequenos têm nos irmãos maiores e nos adultos seus parâmetros e, por meio da imitação, constroem seus comportamentos particulares. Nesse sentido, desde pequena, a pessoa observa, inspirandose naquilo que a rodeia, tendo como exemplo as imagens que estão a sua disposição, buscando assemelhar-se ao outro e, a partir daí, constituir um comportamento próprio, que também o distinga. Imitam nas brincadeiras e nas demais situações da vida, pois acompanham os adultos nas mais diferentes atividades (2007: 202).
Diante dessa realidade a comunidade tem buscado novas formas de viver, articulando o tekoporã, ou seja, o modo tradicional Kaiowá e Guarani de viver, em diálogo com as exigidas pela Sociedade Nacional, no caso específico, a Educação Escolar.
Diante do direito das crianças de ingressarem na vida escolar, as famílias indígenas da aldeia Pakurity estão em constante mobilidade e trânsito. Para Bonifácio, essa mobilidade e esse trânsito são maneiras de se adaptar às novas exigências da vida na aldeia e em situação de acampamento, pois o local não oferece condições para a sobrevivência e faz com que os indígenas do Pakurity vivenciem o que eles denominam a forma de viver em moradias móveis17, ou seja, durante os dias letivos os indígenas do Pakurity se
direcionam à Reserva Indígena de Dourados (Aldeia Bororó) ou à redondeza da cidade a fim de conduzirem suas crianças às escolas, sendo necessário providenciarem outro local de residência. E, aos finais de semana e feriados, retornam para Pakurity e para as suas atividades cotidianas na aldeia. Moradias móveis, segundo Bonifácio, é, principalmente, o esforço que os indígenas da aldeia Pakurity executam para atenderem as exigências do Estado de manterem as crianças nas escolas, para usufruírem de políticas públicas e atenderem suas necessidades básicas de sobrevivência.
As crianças Kaiowá e as moradias móveis: a criança Falar em criança, para alguns, é estabelecer pontes entre o presente e o futuro, ou seja, é um entendimento de que a criança existe hoje para ser o adulto que constrói o amanhã, sendo assim, essa ideia desconsidera todo o processo que abrange o crescimento e desenvolvimento da criança. É considerá-la como se fosse um livro em branco e que pouco ou quase nada influenciasse na realidade social em que está inserida. Esse entendimento
17 O termo nos foi apresentado pela primeira vez pelo Bonifácio Reginaldo Duarte em uma das visitas a campo para a realização da pesquisa para o Programa de Iniciação Científica (PIBIC) da UFMS/CNPq com o tema: Crianças Kaiowá e Guarani em situação de acampamento na região sul do estado de Mato Grosso do Sul: Quem são e como percebem a situação de acampamento. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ainda é uma realidade para muitos quando o assunto é abordar o modo de ser e viver das crianças, sem ao menos levar em conta ou não procurar conhecer o papel da criança no grupo social ao qual pertence.
Para Ariès a criança na sociedade velha, ou seja, antes da Idade Média, na França, era vista como filhote do homem. Tal característica lhe era atribuída pelo motivo de não conseguir cuidar de si mesma e quando conseguia superar os primeiros perigos e sobreviver ao tempo, ou seja, logo que a criança “adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem” (Ariès, 1981:ix). No século XI a criança era vista como uma espécie de miniatura do adulto sendo distinguida apenas pelo seu tamanho, ou seja, “representadas numa escala mais reduzida que os adultos, sem nenhuma diferença de expressão ou de traços” (Ariès 1981:17). Outra questão levantada por Ariès era a de que as crianças não eram portadoras de alma. Esse fato pode ser explicado, segundo o autor, devido à mortalidade infantil ser significante na época e que a possibilidade de perda da criança era muito grande. Para o autor “não reconhecer nas crianças nem movimento na alma, nem forma reconhecível no corpo” (Ariès 1981: 22) foi uma ideia que persistiu até o século XVII. No campo da Antropologia a criança passa a ser foco de estudos em pesquisa nos estudos apresentados pela Escola de Cultura e Personalidade, especialmente os de Margaret Mead nos anos de 1920 e 1930. Para Cohn essa Escola “preocupava-se em entender o que significava ser criança e adolescente em outras realidades socioculturais” e, é claro, a sociedade norte-americana era o contraponto para as comparações (2005:11). As pesquisas realizadas pela Escola de Cultura e Personalidade apresentam que a sociabilização das crianças ocorre gradativamente em um processo de reprodução dos conhecimentos culturais adquiridos por elas desde a mais tenra infância para que se tornem adultas conforme os padrões culturais do grupo em questão. Nesse momento ainda não constatamos o papel ativo das crianças como tema central na Antropologia. Não o encontramos como tema central nem na Escola Cultura e Personalidade, e nem na vertente da escola estrutural-funcionalista. A Escola Estruturalfuncionalista vem em contraponto à escola americana, pois nega o psicologismo e não se interessam pela formação da personalidade ideal, mas sim as práticas e o processo de socialização dos indivíduos (COHN 2005: 15). O ponto central dessa escola é entender a sociedade como um organismo cujas partes eram integradas e funcionavam de um modo mecânico para manter a estabilidade social como um sistema que possui papeis e relações sociais que definem o lugar da sociedade em que o indivíduo exercia para a manutenção e coesão da sociedade. Quanto ao papel da criança nos estudos estrutural-funcionalista Cohn afirma: Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis Com esse pressuposto, a criança dos estudos estrutural-funcionalista se vê relegada a protagonizar um papel que não define. Suas ações e representações simbólicas não precisam ser estudadas, portanto, para que se defina seu lugar no sistema: são dadas pelo próprio sistema (2005: 16).
Como vimos, até aqui, os estudos com criança ainda não possuem espaços nos estudos antropológicos. Esse motivo pode ser considerado pelo fato das crianças serem vistas apenas como aquelas que desempenham um papel passivo. Cohn relata tal fato:
Mas estudar as crianças tem sido um desafio para a antropologia. As razões são muitas, e a principal parece ser justamente a dificuldade em reconhecer na criança um objeto legítimo de estudo. Afinal, em várias esferas, que vão do senso comum às abordagens do desenvolvimento infantil, pensase nelas como seres incompletos a serem formados e socializados. Por diversas vezes foram propostas abordagens antropológicas das crianças. No entanto, os esforços pareciam morrer e se fechar em si mesmos, e elas foram por longos períodos abandonadas pelos estudos antropológicos. Até que, nas últimas décadas, acontece uma reviravolta, e elas ganham espaço e legitimidade em uma variedade de estudos (Cohn 2005:10).
A reviravolta citada por Cohn no final da citação acima acontece por volta da década de 1960, quando a Antropologia inicia uma mudança no que se diz respeito aos conceitos e pressupostos.
A cultura outrora vista como um “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábito adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (Geertz 1978:33) passa a ser compreendida como “um sistema de símbolos e significados” (Laraia 1986:63). Segundo Cohn (2005:19) nessa ação de revisão do conceito de cultura, os antropólogos “ao invés de tomá-la como algo empiricamente observável e delimitado, cada vez mais abdicam de falar em costumes, valores e crenças para frisar que o que de fato interessa está mais embaixo”. Sendo assim, para a autora, “não são os valores ou as crenças que são os dados culturais, mas aquilo que os conforma”. Para Cohn o que os conforma E o que os conforma é uma lógica particular, um sistema simbólico acionado pelos atores sociais a cada momento para dar sentido a suas experiências. Ele não é mensurável, portanto, e nem detectável em um lugar apenas – é aquilo que faz com que as pessoas possam viver em sociedade compartilhando sentidos, porque eles são formados a partir de um mesmo sistema simbólico (2005:19). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Sendo assim compreende-se que a cultura “não está nos artefatos e nem nas frases, mas na simbologia e nas relações sociais que as conformam e lhes dão sentido” (Cohn, 2005:20), sendo assim, entendemos as crianças, como seres que passam a atuar, não no sentido de um papel determinado, mas passam a ser elas mesmas a darem sentido no seu atuar na sociedade a modo de recriá-lo a todo momento. Para melhor explanação da ideia de autonomia da criança Cohn diz: Essas são revisões de conceitos-chave da antropologia. E, por isso, permitem que se vejam as crianças de uma maneira inteiramente nova. Ao contrário de seres incompletos, treinados para a vida adulta, encenando papeis sociais enquanto são socializados ou adquirindo competências e formando sua personalidade social, passa a ter um papel ativo na definição de sua própria condição. Seres sociais plenos, ganham legitimidade como sujeitos nos estudos que são feitos sobre elas (2005:21)
Por isso, falar em criança e nas relações sociais em que está inserida, de uma maneira particular, e não universal, compreendemos que é necessário abordar as várias infâncias. No decorrer do texto nos remetemos a Ariès (1981), pois seus escritos são importantes para nos lembrar de que a infância não é natural e universal, mas é historicamente construída, sujeita a mudanças e variações nesse decorrer. É importante, pois, compreender a infância e, consequentemente, a criança não como um ser único e universal, mas sim, como um ser cultural, que vive uma experiência social e pessoal, construída e resinificada continuamente. Em toda trajetória histórica da Antropologia até chegarmos aos estudos atuais sobre as crianças podemos verificar as modificações em que a ciência tem passado. Tais transformações nos levam a entender a criança de uma nova maneira – de seres incompletos e meros depositários do conhecimento para depois tornarem adultos formados, passam para o personagem principal de sua própria história e sujeitos de direitos. Encaradas como sujeitos sociais plenos e que pertencem a lógicas culturais distintas, sendo portadoras de autonomia, mesmo que relativa, diante de seu grupo social. Acrescentamos a demonstração por Nascimento, Aguilera Urquiza e Vieira (2011) de que a “criança indígena tem um papel muito importante dentro de sua sociedade em particular”. Para os autores é de suma importância reconhecer o real papel da criança em sua sociedade, pois reconhecer isto é assumir que ela é um ser completo em suas atribuições. Continuam:
É um ser ativo na construção das relações em que engaja, sendo parte integrante da sociedade, participante e construtora de cultura. A partir de sua interação com outras crianças (brincadeiras, jogos, afazeres
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Crianças indígenas da aldeia Pakurity e as moradias móveis domésticos, caminhadas, cumprimento de rotinas) elas acabam por constituir seus próprios papeis e identidades (Nascimento& Aguilera Urquiza & Vieira 2011: 32).
Desta maneira, assumimos que a criança indígena tem um papel ativo e de fundamental importância na construção da cultura. São agentes que constroem suas relações e lhes dão sentido. São atores sociais, produtores ativamente inseridos em sua cultura, participantes do ambiente e da vida diária da comunidade. Em tudo as consideramos como portadoras e fonte de saber.
As crianças e as moradias móveis
Diante do infortúnio sofrido pelo líder indígena no início de 2016, que fora vítima de uma emboscada e ficou tão debilitado que permaneceu em recuperação em uma casa na Aldeia Bororó, este foi o local em que foram realizados os primeiros trabalhos de campo, com entrevistas, para, só posteriormente, realizarmos as visitas na aldeia Pakurity. Enquanto permanecemos em Bororó pudemos acompanhar e ter maior contato com ele e sua família e ali entender a dinâmica do que chamamos neste trabalho de as Moradias Móveis. Tal fato promoveu a nossa permanência e convívio nos dois espaços: Reserva de Bororó e a Aldeia de Pakurity.
Durante nossa estadia em Pakurity tivemos contato com várias crianças da aldeia Pakurity, mas enquanto em Bororó, a companhia que tivemos foram a figura carismática de Bonifácio, sua esposa Priscila, dois dos seus filhos/filhas e cinco de seus netos (Figura 2). São com estes netos que pudemos observar e pesquisar a vivência destas crianças enquanto estavam em Moradias Móveis na aldeia de Bororó.
Figura 2: Crianças na Aldeia Pakurity. Fonte: Arquivo da pesquisa, janeiro de 2016.
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Esta situação, das Moradias Móveis, com o tempo, modificou o contexto da presente pesquisa, a ponto de se inserir aos poucos e modificar algumas abordagens, outrora não planejadas. No final de 2014, por exemplo, em uma primeira visita, encontramos a aldeia Pakurity repleta de crianças. No ano seguinte, ao iniciar o trabalho de campo para o mestrado que embasa este texto, quase não havia crianças na aldeia, situação que nos deixou inseguros a ponto de questionar: como vamos pesquisar crianças se elas não estão aqui? Somente com o passar do tempo é que fomos compreendendo a dinâmica da mobilidade das famílias, entre seu território tradicional e a busca de atendimento à saúde e da escola para suas crianças.
No decorrer deste texto, trouxemos informações de como se deu todo o processo de esbulho, retomada e ocupação da aldeia Pakurity, agora cabe explicitar que atualmente as aldeias Bororó e Jaguapiru formam a Reserva Indígena de Dourados (RID), uma das oitos reservas demarcadas pelo governo no Decreto Estadual 401 de 1917, com 3.600 ha. Localiza-se ao lado da MS 156 ou ao longo dos principais travessões que dão acesso a essa rodovia. Na RID encontramos 2900 famílias18 que, em sua maioria, são das etnias
Guarani, Terena e Kaiowá; no caso da Bororó, em específico, é dirigida pelos Kaiowá. É nesta realidade que presenciamos o dia a dia dos netos de seu Bonifácio.
Nos primeiros dias em que permanecíamos em Bororó a conversa girava em torno
da comunidade de Pakurity e dos relatos de Bonifácio sobre a história da aldeia e das necessidades, seja de atendimento médico, ou de educação em seu território. Enquanto éramos embalados pelo carisma e pela voz do líder indígenas, as crianças permaneciam na área de convívio que abrangiam duas casas, a casa em que senhor Bonifácio e sua esposa permaneciam e a do vizinho que era de um parente próximo. Durante toda a conversa os olhos de dona Priscila, esposa do Bonifácio, acompanhavam as crianças e suas movimentações, mas em nenhum momento as presenciei ultrapassarem ou saírem fora do espaço geográfico estabelecido por ela.
Ao questionar dona Priscila sobre a possiblidade das crianças poderem sair daquele espaço preestabelecido, a resposta firme que recebi foi “não”. Acrescenta que apenas acompanhado de um adulto as crianças podem fazê-lo. E no caso de ir para a escola? Indagamos. Ela responde que sempre vão acompanhados por um adulto e que não há a possibilidade de andarem sozinhas na aldeia de Bororó. A realidade da reserva de Dourados descrita por Pereira (2011) retrata muito bem o que as crianças, além de cruzarem “pedaços”, precisam percorrer para terem acesso a serviços públicos, justificando, assim, de maneira bem simplificada, o uso de moradias móveis pela comunidade. O autor 18 IBGE 2010.
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comenta:
No entanto, para a maioria das reservas, as pessoas para terem acesso aos serviços públicos, inclusive educação, são obrigados a cruzar “pedaços” de outros grupos, com os quais as relações não são sempre amistosas. As estradas são espaços relativamente neutros, mas nem sempre seguros, principalmente à noite e nos finais de semanas, circunscrevendo os horários de circulação. Para as crianças o trânsito entre a escola e a casa pode se transformar numa aventura perigosa, como no caso da reserva de Dourados, sendo muitas vezes necessário o acompanhamento das crianças pelos pais ou parentes mais velhos (Pereira 2011: 95).
Enquanto em Bororó o espaço geográfico é limitado e controlado por um adulto, em Pakurity as crianças estão em todos os lugares da aldeia. Em todos os espaços compartilhados com a parentela podemos encontrar as crianças. Elas dão conta de tudo que acontece na aldeia (Pereira 2002: 170). Elas possuem acesso a diferentes lugares e a diferentes pessoas, e também participam de várias atividades domésticas, educacionais e rituais, enfim, de quase tudo o que acontece à sua volta.
Em vários momentos em que estivemos na aldeia Pakurity, presenciamos a presença das crianças e por seus olhares curiosos éramos vistos. Um exemplo pode ser demonstrado na foto abaixo, em que um adulto explicava como adquiriam as varetas, tiravam partes da casca e partes deixavam para que ao queimar pudessem obter a cor preta e branca das varas. Tudo isso era acompanhado com muita atenção pelo menino de camiseta verde (Figura 3).
Figura 3: O menino indígena e o aprendizado. Fonte: Arquivo da pesquisa, abril de 2016. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Sim, as crianças estão presentes em todos os espaços na aldeia Pakurity. Nos primeiros meses estão no colo da mãe, parentes ou mesmo de crianças maiores, após isso estão no chão com algum brinquedo ou brincando com a própria terra. Mostrando que são parte integrante do mundo da aldeia. As crianças do Pakurity ensinam e aprendem entre si a nadar (Figura 4), a reconhecer as plantas do entorno, a reconhecer e dominar o espaço da aldeia entre outros como costumes, crenças, tradições (Nascimento & Landa & Aguilera Urquiza & Vieira 2009: 196).
Figura 4: Crianças nadando no lago. Fonte: Arquivo da pesquisa, abril de 2016.
As crianças do Pakurity, como já observado por Schaden há décadas, gozam de “notável espírito de independência. Na medida em que lho permite o desenvolvimento físico e a experiência mental, participa da vida, das atividades e dos problemas dos adultos” (Schaden, 1974: 67). Ainda podemos acrescentar: Liberdade, permissividade e autonomia, experimentando e participando da realidade concreta do dia-a-dia, seus conflitos e contradições, estão perfeitamente articuladas com aprendizagem e reponsabilidade na vida, que nas comunidades indígenas iniciam muito cedo (Nascimento& Brand & Aguilera Urquiza 2006: 19).
Observando-as em momentos, que consideramos livres ou de brincadeiras, percebemos que podem e fazem, a seu desejo, as atividades que lhe aprovem. A importância das brincadeiras entre os indígenas kaiowá e guarani é abordada por Nascimento et al. da seguinte maneira:
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As brincadeiras infantis têm-se mostrado de grande importância na transmissão cultural. Através delas a criança está experimentando o mundo e as reações, tendo assim elementos para desenvolver atividades sem a intervenção de um adulto. Entre si estabelecem um lugar identitário, material e simbólico (Nascimento &Landa& Aguilera Urquiza & Vieira 2009: 194).
Sejam brincando na e com a terra, caçando passarinho, brincando nas águas, se relacionando com outra criança, andando pela aldeia ou pelas trilhas ou brincando com um balanço, suas ações demonstram que, por mais que estejam vivenciando suas experiências sob um cuidado vigiado, elas possuem autonomia para circularem e experimentarem atividades que lhes aprazem (Figura 5).
Figura 5: Crianças circulando em todos os espaços da Aldeia Pakurity.
Fonte: Arquivos da pesquisa, agosto de 2016.
Na aldeia Pakurity as crianças possuem a liberdade de caminhar por todas as trilhas que cortam o mato e, também, para desvendar e descobrir muitos outros espaços que sejam bons para seu aprendizado e desenvolvimento como criança. Por diversas vezes acompanhamos grupos de crianças nas trilhas em várias direções da aldeia Pakurity e em nenhum momento presenciamos alguma destas crianças pedindo autorização para seus pais ou outro adulto para o fazerem, mas também percebemos que a área em que elas circulavam tinha um limite, o qual não se estendia para muito além ou fora da área de permanência atual das moradias da comunidade. Gozam de autonomia e de certa Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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liberdade para descobrirem o tekoha.
Em contrapartida, durante nossa permanecia na aldeia de Bororó toda a movimentação das crianças era precedida por pedido de concordância de um adulto. A área de circulação em Bororó possui limite geográfico bem reduzido, pois se estende apenas ao “quintal” da casa de moradia da família de Bonifácio e a do vizinho do lado esquerdo, pois tratava-se de um parente. Toda movimentação, seja para brincadeiras ou para aprendizado, era realizada naquele pequeno espaço que envolvia duas residências na aldeia de Bororó. Caso haja a necessidade de uma circularidade ou trânsito fora do espaço das duas casas eram acompanhados por um adulto. O percurso mais distante se resume na ida à escola de uma das netas de Bonifácio, visto que os demais netos ainda não frequentam a escola ou não haviam conseguido se matricular.
Cabe ressaltar que quando as crianças estão no Pakurity também possuem limites geográficos, mas são muito mais amplos do que quando estão na reserva de Bororó ou na redondeza da cidade de Dourados.
Em Pakurity encontramos objetos construídos, ora por adultos, ora pelas próprias crianças, para servirem como instrumentos de brincadeiras. Um exemplo é o balanço no centro da área de convívio e de reuniões da comunidade (Figura 6). Já em Bororó, mesmo com a existência de uma árvore no centro do espaço de convívio das duas casas, não encontramos nenhum balanço ou objeto lúdico.
Figura 6: Balanço no centro da Aldeia Pakurity. Fonte: Arquivos da pesquisa, abril de 2016. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A liberdade de caminhar por diversas trilhas, o espaço geográfico de circulação bem mais amplo, as possibilidades e liberdade de descobrir e desvendar a mata são motivos pelos quais as crianças preferem ficar na aldeia Pakurity.
Segundo Bonifácio, a aldeia Pakurity proporciona um ambiente favorável para a reprodução do tekoporã, ou seja, o modo de ser verdadeiro de um Guarani e Kaiowá. O líder indígena, com grande tristeza, conta que o cenário da aldeia Pakurity foi se modificando cada vez mais durante a história, pois o lugar em que viviam, o tekoha Pakurity, era cheio de indígenas e possuía uma população bem numerosa, tanto da etnia Kaiowá, como a dos Guarani. Segundo ele “nós podíamos viver, falar e andar livremente segundo o nosso costume e tradição. Havia, também, uma casa de reza e vivíamos, o dia a dia, na maneira tekojoja (viver entre iguais) em toda comunidade” (Bonifácio Reginaldo Duarte, 16/04/ 2016), mostrando a importância da posse e permanência na terra para a comunidade. Aguilera Urquiza e Nascimento dizem: ...esta terra torna-se fundamental para produção e reprodução da cultura de um povo, pois para eles, tudo que se relaciona com a estrutura social, ritual ou religiosa está intimamente relacionada ao território. A terra é, desta forma, um recurso sociocultural, mais que apenas um recurso da mãe natureza (2013: 64).
Desta forma a permanência das crianças indígenas, bem como de toda comunidade, em seu território tradicional proporciona o retorno a vida tradicional e desta forma estarão vivendo igual aos antigos no tekoha, pois o modo de viver está gravado na memória de cada um, desde as crianças até os velhos, ou seja, dos velhos que transmitem para as crianças. E nesse ciclo o tekojoja nunca acaba, mas passa de geração em geração (Bonifácio R. Duarte, 16/04/ 2016).
Considerações finais Observando as crianças enquanto estavam, ora na aldeia Bororó, ora na aldeia Pakurity, podemos afirmar que “o extraordinário respeito à personalidade e à vontade individual, desde a mais tenra infância” (Schaden, 1962: 68) está presente no Pakurity. Esse respeito se dá tanto pela liberdade na forma como a criança vivencia suas experiências como no modo educativo como os pais assumem a educação tradicional para com as crianças, em que elas não passam por nenhum processo educativo no sentido de repressão. Não presenciamos, em nenhum momento, adultos tratarem as crianças com violência ou desrespeito. O que presenciamos é um meio em que as crianças estão continuamente Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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cercadas de proteção, a ponto de concordamos com Pereira em que para as crianças “é inconcebível viver num lugar onde não seja possível uma convivência cordial nem realizar atividades coletivas”. Sendo assim, podemos citar o lidar diário da criança indígena da aldeia Pakurity com a comunidade, através de sua aprendizagem com o olhar atento, ou na pergunta feita, ou na imitação da menina enquanto cozinha com sua mãe, ou do garoto que vai pescar com seu pai. Nas diversas vivências do dia a dia as crianças tem demonstrado uma intrínseca relação interpessoal com outras crianças, com sua parentela e, bem como, com toda a aldeia do Pakurity.
A criança Kaiowá e Guarani vivencia uma jornada que inclui o seu nascimento, passando por várias outras etapas que abrange desde o momento do aconchego do colo da mãe/avó, os primeiros contatos com o solo (terra), a liberdade acompanhada dos olhares dos adultos, o aprender perguntando, até o momento em que deixa de ser considerada criança e apta para ingressar a vida adulta. Cabe ressaltar que toda esta trajetória é envolta por rezas e orações (ñembo’e). A atual realidade das crianças indígenas da Aldeia Pakurity é de uma comunidade que vive uma situação particular de violência, insegurança, luta política pela posse de parte do seu território tradicional e estratégias de sobrevivência que vão brotando a partir desse contexto, como é o caso do que denominamos ao longo desse trabalho de moradias móveis.
A situação das moradias móveis é um conceito que levou um certo tempo para ser amadurecido e compreendido pelos pesquisadores e traz ao contexto da comunidade indígena questões de estratégias e de sobrevivência. A liderança não costuma revelar exatamente a quantidade de moradias e de pessoas, pois trata-se de proteger a própria comunidade, assim como, a dinâmica de deslocamentos das famílias entre a aldeia Pakurity e as de Dourados (Jaguapiru e Bororó). Em um primeiro momento, pode-se pensar que pouquíssimas pessoas vivem ali, desconstruindo o discurso da necessidade de demarcação de seu território tradicional; por outro lado, a dinâmica das moradias móveis (morar de segunda a sexta em outra aldeia onde podem levar suas crianças para as escolas e o atendimento à saúde), longe de desmerecer a luta pela terra, reforça ainda mais a necessidade e urgência de políticas públicas para estas famílias. Se tivessem escolas e a assistência à saúde na aldeia Pakurity, certamente fariam daquela comunidade suas moradias permanentes. Dessa forma, estes deslocamentos forçados denunciam a ausência do Estado, ausência de políticas públicas básicas e, sobretudo, o desrespeito aos direitos humanos desta população. Mostra, por outro lado, mais uma forma de resistência desses indígenas ante as precariedades às quais são Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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submetidos.
As mudanças acima relacionadas e o esforço que os indígenas do Pakurity fazem diariamente para inserirem suas crianças ao sistema de ensino, por mais que não seja uma educação específica e diferenciada conforme prevista por lei, nos demonstra o sentimento de identificação com o espaço ocupado e requerido pelo grupo. Isso acontece por reconhecerem o território como sua área tradicionalmente ocupada e o único espaço possível para reproduzirem o tekoporã. Sendo assim, o retorno e a permanência ao tekoha é vital e de suma importância a ponto de enfrentarem todos os tipos de desconfortos, principalmente os sociais e políticos.
Entre os diversos momentos vivenciados pelas crianças indígenas do Pakurity podemos citar uma personagem que chama muito a atenção, a Patrícia. Uma menina de oito anos que se destaca por sua alegria e desenvoltura. Ao perguntarmos a ela sobre o que acha de viver na aldeia Pakurity, inusitadamente corre e nos conduz em direção à pequena fonte de água que serve para o consumo da comunidade, seja para a preparação de comida, banho ou afazeres diários, e, saltitante de alegria, diz: é bom viver aqui porque os bichos voltaram! É bom morar no mato! Outra criança para a qual fizemos essa mesma pergunta foi para Vanessa. Ela, em meio a um sentimento de constrangimento e timidez, reponde: porque sim. Ao insistir, indagamos em qual lugar preferia viver, na reserva ou em Pakurity? Ela respondeu: no acampamento Pakurity é claro! É importante destacar que essa resposta se faz de suma importância porque remete ao dia a dia da Vanessa em que faz uso da moradia móvel. Mesmo em contato com diversos espaços e em diversos momentos, Vanessa mostra indignação à pergunta e informa com convicção a sua preferência. Nesta situação de vai-e-vem, os indígenas são unânimes em dizer, inclusive as crianças, que preferem morar na aldeia Pakurity.
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Entrevistas Bonifácio Reginaldo Duarte: Entrevista [22 jan. 2014] Entrevistador: Sônia Rocha Lucas. Rio Brilhante (acampamento Pakurity), 2014. Anotações em caderno de campo. Entrevista concedida no âmbito do projeto de iniciação científica (PIBC/CNPq) desenvolvido por Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Sônia Rocha Lucas, Antonio Hilario Aguilera Urquiza
Sônia Rocha Lucas junto à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Bonifácio Reginaldo Duarte: Entrevista [16 abril. 2016 ]Entrevistador: Sônia Rocha Lucas. Dourados (acampamento Pakurity), 2016. Anotações em caderno de campo e filmagem. Entrevista concedida no âmbito do mestrado (Antropologia - UFGD).
Robson de Souza Duarte: Relato [02 fevereiro. 2016]. Dourados (acampamento Pakurity), 2016. Anotações em caderno de campo. Relato concedido no âmbito do projeto de mestrado (Antropologia - UFGD). Recebido em 31 de maio de 2017. Aceito em 05 setembro de 2018.
Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 282-307.
Os problemas nos direitos: os efeitos da extensão das políticas de direitos da criança e adolescente entre os Kaiowá e Guarani Diógenes Egidio Cariaga1 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina didioaems@gmail.com Silvana Jesus do Nascimento2 Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul sjesusn@gmail.com Levi Marques Pereira3 Professor na Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados levipereira@ibest.com.br
Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar aos leitores debates e reflexões sobre os efeitos da extensão das políticas de proteção e promoção dos direitos das crianças e adolescentes aos Kaiowá e Guarani que vivem no Mato Grosso do Sul. O contexto de vida destes coletivos é marcado por intensas transformações na paisagem política e nos modos de habitação ao longo do século XX, devido à criação de áreas destinadas ao reservamento das famílias extensas pelos órgãos indigenistas do Estado Nacional. Neste contexto, o desafio dos genitores é produzir pessoas em um cenário de vida distante das prerrogativas e moralidades que compõem o tekoporã (modo ideal de ser e de viver). O texto condensa reflexões etnográficas desenvolvidas em dissertações e tese sobre as relações sociais kaiowá e guarani, aproximadas aos campos de pesquisa em Etnologia Indígena e da Antropologia que tem as crianças e suas relações como foco temático da pesquisa. 1 2 3
Vinculado ao Núcleo de Estudos de Populações Indígenas (NEPI/PPGAS/UFSC). A pesquisa conta com financiamento do CNPq e do INCT Brasil Plural. Atualmente é professor substituto de Antropologia da Faculdade de Ciências Humanas na Universidade Federal da Grande de Dourados. Vinculada ao Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACi/PPGAS/UFRGS). Docente da Faculdade Intercultural Indígena e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Sociocultural da Universidade Federal da Grande Dourados. Líder do Grupo de Pesquisa Etnologia e História Indígena/CNPq.
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Diógenes Egídio Carlaga, Silvana Jesus do Nascimento, Levi Marques Pereira
Palavras-chave: Antropologia da Criança; Corporalidade; Parentesco; Kaiowá; Guarani; Objetificações da Cultura. Abstract
This article aims to present debates and reflections on the effects of the extension of policies of protection and promotion of the rights of children and adolescents to Kaiowá and Guarani who live in Mato Grosso do Sul. The social life of these collectives is marked by intense transformations in the political landscape and the housing modes throughout the XX century, due to the creation of areas destined to the reservation of extended families by the policies concerning Indigenous peoples of the National State. In this context, the effort of the parents consists on producing persons in a scenario of life that are distant from the prerogatives and moralities that compose the teko porã (ideal way to be and to live). The text condenses ethnographic reflections developed in dissertations and thesis on the social relations of the Kaiowá and Guarani, having as its debate area the fields of Indigenous Ethnology and Anthropology that has children and their relations as the thematic focus of research. Key-words: Anthropology Objetifications of culture.
of
Chilhood,
Corporality,
Kinship,
Kaiowá-Guarani,
Introdução Neste texto procuramos contribuir com algumas reflexões etnográficas a partir de nossas pesquisas interessadas em descrever as transformações na socialidade kaiowá e guarani4. O cenário etnográfico das discussões se concentram na descrição da vida social de famílias que vivem em situações de contingenciamento territorial, devido às políticas indigenistas que criaram pequenas áreas, adversas aos modos como refletem sobre suas relações com os lugares e modos de vida ocupados anteriormente à chegada dos empreendimentos nãoindígenas A expropriação territorial gerou sérios impactos para a reprodução de seus módulos organizacionais, nos processos de mediação e transformação dos regimes de conhecimento entre gerações, submetidas às novas formas de assentamento e ao impacto da extensão das políticas públicas aos Kaiowá e Guarani. Pretendemos adensar etnograficamente o campo das pesquisas sobre e com crianças na Etnologia Indígena e na Antropologia associadas a um conjunto de debates e discussões que interessam ao campo temático dos estudos da Antropologia da Criança. 4
Os dois primeiros autores foram orientandos de mestrado de Levi Marques Pereira em dissertações que tinham a pesquisa sobre e com crianças kaiowá e guarani como centrais na descrição das relações e transformações geracionais e de gênero vivenciadas pelos coletivos indígenas. A dissertação de Diógenes E. Cariaga foi defendida no PPGH/UFGD em 2012 e de Silvana J. do Nascimento no PPGAnt/ UFGD em 2013.
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O debate gravita em torno de questões acerca das transformações ameríndias assentados em temas como a produção e transformação da pessoa, da organização social e parentesco kaiowá e guarani. A discussão reflete sobre os desafios colocados a estes coletivos diante da intensa precarização da vida cotidiana e do aumento progressivo da vulnerabilidade deflagrada pelo processo de contingenciamento territorial e adensamento demográfico decorrente da criação das políticas indigenistas no século XX, bem como dos efeitos das políticas interculturais pós-constitucionais na educação das crianças.
Etnologia Indígena e as pesquisas sobre e com crianças O interesse das pesquisas em etnologia indígena sobre como as pessoas são produzidas e transformadas é constituinte de uma proposição etnográfica para se descrever as relações que produzem o modo de vida em diversos contextos indígenas, conectados como uma imensa região etnográfica chamada Terras Baixas da América do Sul. A compreensão sobre quais questões singularizam os modos de vida dos habitantes nativos que vivem nesta porção territorial ganhou projeção mediante os questionamentos das pesquisas etnológicas acerca do rendimento das categorias de tempo, espaço, parentesco e organização social em sínteses etnográficas que trouxeram contribuições regionais para reflexões teóricas e metodológicas para as etnografias em Etnologia Indígena sobre a vida social ameríndia (Overing 1976). Neste sentido, a proposição formulada por Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979) acerca do rendimento do tema da produção, ornamento, criação e destruição dos corpos estabeleceu uma perspectiva referencial em demonstrar que nos contextos ameríndios nas terras baixas sul-americanas existe um grande investimento social na corporalidade. Os autores (idem) demonstram que há um alto grau de engajamento das pessoas e reflexões, que formulam potentes teorias nativas sobre a concepção, gestação, nascimento, doenças, substâncias corporais, prescrições alimentares, ornamentação e destruição dos corpos. O tom ensaístico do texto de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (ibidem) inspirou grande número de etnografias na região, contribuindo significativamente para ampliar a compreensão sobre as teorias sul-americanas da produção da pessoa. Recentemente, e na mesma esteira de preocupações teóricas, o tema ganhou novo fôlego com a intensificação de estudos sobre as transformações ameríndias5. Estes estudos esforçamse por compreender a produção e a transformação da pessoa através da multiplicidade
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Desde os anos de 1980, nota-se o crescimento expressivo de etnografias interessadas em temas sobre os modos como os indígenas elaboram modos nativos de pensar suas transformações. Nossa intenção não é apresentar um resumo neste momento, entretanto, o livro de Gow (1991) e o texto de Viveiros de Castro (2002) e de Calavia Saéz (2003) produzem um bom panorama sobre as discussões. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de relações entre humanos e não-humanos que habitam distintos planos e patamares, que são agenciados pelos indígenas a partir de ações como cantos, rezas e procedimentos rituais. Entre os Kaiowá, tais agenciamentos são fundamentais para a fabricação de um corpo saudável e para o desenvolvimento de uma pessoa plena, condição denominada de aguyje. Entretanto, em contextos onde as relações com a sociedade nacional foram intensificadas ao longo do processo de contato, provocando uma condição nitidamente desfavorável aos indígenas, como vistas no Brasil Meridional, proliferam inquietações e disputas ontológicas (indígenas e não-indígenas) sobre o estatuto da pessoa indígena. Isto se dá, por exemplo, pela introdução massiva de religiões evangélicas, de perfil pentecostal, que confrontam as cosmologias indígenas, assim como pela intervenção de inúmeras políticas públicas, que passam a reivindicar papel crescente no ordenamento da vida nos coletivos indígenas, de modo especial no tema das crianças, tratado no presente artigo.
Este contexto é o que propicia que no Brasil emerja um paradigma teórico, formulado a partir de etnografias realizadas principalmente na região amazônica (Alto Rio Negro, Guianas e Brasil Central), que aponta que os modelos e teorias sobre o parentesco, a consangüinidade e aliança, em suma as relações que compõem as descrições sobre a organização social indígena, demandavam um modelo particular aos modos de ser constitutivos da socialidade ameríndia, assentados em questões sobre as quais lembraríamos novamente a necessidade de se tomar o discurso indígena sobre a corporalidade e a pessoa como informador da práxis social [...] como idioma focal, evita ademais cortes etnocêntricos em domínios ou instâncias sociais como “parentesco”, “economia”, “religião”. [...] Tudo que sugerimos aqui, na verdade, é a possibilidade de se repensar a Antropologia com olhos dos índios brasileiros, em vez de olhá-los com os olhos dos Nuer, dos Tobriandeses ou dos Crow (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979: 16).
Contudo, de modo análogo a como o gado figurava como fundo para a vida social dos Nuer, essencial à vida das pessoas, porém, mudos e incapazes de produzir reflexões (Scheper-Hugues; Sargent, 1998), as crianças indígenas desempenhavam um papel semelhante na maioria das etnografias. A existência delas se assemelhava a do gado dos Nuer, silenciadas e invisíveis, como se fosse possível falar de todos os temas relacionados à corporalidade sem descrever os modos como as crianças vivem e são educadas, isto é, como se a vida indígena só ganhasse sentido com a maturidade reprodutiva de seus indivíduos. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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As pesquisas sobre e com crianças na Etnologia Indígena ganharam impulso a partir dos anos de 19906 com pesquisas associadas ao MARI/USP – Grupo de Educação Indígena, interessadas em compreender os efeitos e transformações "nos processos de construção coletiva de conhecimentos", enfatizando que "o processo educativo está na aprendizagem e não no ensino" (MARI 1991: 122)7. As preocupações da época emergiam diante da mudança da política nacional de educação escolar para o ensino diferenciado e intercultural nas aldeias indígenas, de acordo com a mudança da concepção da política indigenista definida pelo Artº 231 da Constituição Federal de 1988, expresso na Lei de Diretrizes da Política Nacional de Educação Escolar Indígena (1993), regulamentada e orientada através do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (1998).
Entre as décadas de 1990 e 2000, por meio do projeto temático “Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola”8, houve um investimento na formação de pesquisadoras e pesquisadores interessados em conhecer os processos indígenas de transmissão e produção de conhecimentos na educação das crianças. Neste sentido, o campo temático de uma, então, emergente Antropologia da Criança se constituiu por meio de esforços entre aproximar as análises sobre a produção da pessoa, cosmologia, parentesco e questões encaradas como “concretas” na época, como a educação escolar e o engajamento das pesquisas com o da vida política dos indígenas, como observou Tassinari (2017). Em síntese, grande parte da preocupação teórica foi decorrente dos contextos históricos vivenciados pelos indígenas e pesquisadores que descreviam mundos em transformações e a ampliação das reivindicações por garantia de direitos, diante da intensificação das relações entre indígenas e não-indígenas, problematizados a partir
6 7
8
É preciso destacar que já no seminário Time and space in Lowland in South American Societies (Overing Kaplan, 1976), havia um texto em que Lux Vidal (1976, p. 361 – 367) chamava atenção sobre as categorias de idade e o papel da educação das crianças na produção da vida social. Fundado em 1989 pelas etnólogas Aracy Lopes da Silva e Lux Vidal, docentes no PPGAS/USP, o MARI/ USP reuniu discentes de graduação e de pós-graduação, assim docentes com pesquisas sobre Etnologia Indígena e Educação Escolar Indígena. Recentemente Grupioni (2016) publicou um artigo que versa sobre o projeto político, pedagógico e antropológico do MARI/USP através da trajetória de Aracy Lopes (1949-2000) e do engajamento coletivo na participação da elaboração da política nacional de educação escolar indígena. Pesquisa interdisciplinar e interinstitucional cujo objetivo central é a busca de caminhos para uma educação para a diversidade sócio-cultural. Para alcançá-los, articula as perspectivas da Antropologia e da História sobre a educação e toma, por referência empírica e teórica, o diálogo intercultural entre indígenas e não-indígenas no Brasil, destacando a escola como espaço privilegiado para a criação de novas formas de convívio e reflexão neste campo. Congrega 19 subprojetos sobre socialização e processos de transmissão do saber em sociedades indígenas; sobre o impacto da introdução de escrita e da escola; as relações históricas entre o Estado e as sociedades indígenas no campo da educação. Resumo disponível em http://bv.fapesp.br/pt/auxilios/1576/antropologia-historia-e-educacao-aquestao-indigena-e-a-escola, acessado em 30/03/2017. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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dos diversos contextos históricos da educação escolar em terras indígenas e das políticas indigenistas. Tais contextos já eram característicos a muitos coletivos indígenas, como notado por Lopes da Silva (2001) no início da primeira década do século XXI e, para a autora impunham
a superação de oposições rígidas que, embora, até então, aparecessem amplamente formulações antropológicas, não se sustentavam quando confrontadas com situações etnográficas como as clássicas oposições entre “tradicional” x “moderno”, “sociedade indígena” x “sociedade envolvente”, “instituições nativas” (supostamente puras e autênticas) x “instituições exógenas”, “índios puros” x “aculturados”. (Lopes da Silva, 2001: 23)
Tais discussões eram consonantes com outros projetos de pesquisa da época, como os coordenados por Manuela Carneiro da Cunha, no âmbito do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII-USP, atual Centro de Estudos Ameríndios), que orientou muitas pesquisas sobre o tema e produziram muitas publicações. Entre elas, as coletâneas História dos Índios no Brasil (Carneiro da Cunha, 1992) e Amazônia: Etnologia e História Indígena (Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha1993).
Deste modo, a intenção passava por alinhar as etnografias feitas entres os indígenas no Brasil com debates políticos e analíticos sobre o rendimento dos usos de conceitos desgastados9, que, lidos como meras oposições ou negações um do outro, terminavam por
reduzir a complexidade das concepções nativas sobre as transformações históricas e recaiam em uma textualidade que homogeneizava as relações, congelando as diferenças históricas entre os coletivos indígenas e tomavam as crianças, os conhecimentos e a educação indígena como entidades a priori. Tal leitura passou a ser revista com a publicação da coletânea “Crianças Indígenas – Ensaios Antropológicos”, na Série Antropologia e Educação10, organizado por Aracy Lopes da Silva, Ana Vera Lopes da Silva Macedo e Angela Nunes (2001). Este livro e outros da Série Antropologia e Educação buscavam contribuir no preenchimento de uma lacuna na etnologia indígenas nas Terras Baixas, em diálogo com as questões mundiais e nacionais a respeito dos direitos das crianças e da emergência de sínteses etnográficas que apontavam para as singularidades nos contextos indígenas no 9
Vide os debates presentes em Key Debates In Anthropology, organizados por Tim Ingold (1996).
10 A coletânea de livros publicados na Série Antropologia e Educação foram contribuições seminais para divulgação das pesquisas sobre educação indígena, crianças indígenas e educação escolar indígena. Além das obras citadas no corpo do texto somam-se Práticas Pedagógicas na Escola Indígena (Lopes da Silva, A. e Ferreira, M.K. L. 2001) e Ideias Matemáticas de Povos Culturalmente Distintos (Ferreira 2001). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Brasil sobre a centralidade das categorias natureza e cultura nas reflexões do pensamento ameríndio (Viveiros de Castro, 1996; Lima, 1996). Como assinalou Cohn (2005: 18-21), a efervescência da revisão dos grandes conceitos antropológicos como cultura, sociedade e agência também ecoaram em estudos interessados em pensar a criança e infância a partir de categorias nativas a respeito da vida social indígena. A diferença, segundo a autora, entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, ela sabe outra coisa (Cohn 2005: 33).
Avaliamos que este panorama se faz necessário para demonstrarmos que os interesses de nossas pesquisas etnográficas (Pereira 1999, Cariaga 2012, Nascimento 2013) partiram do diálogo com as questões suscitadas por estes debates, tendo como paisagem etnográfica as redes kaiowá e guarani, articuladas em descrições do parentesco, organização social, transformações geracionais e reflexões sobre os modos como a agência do pensamento kaiowá e guarani conceituam a intensificação da relação com a sociedade nacional e o aumento da dependência das ações do Estado Brasileiro em seu cotidiano, considerando a extensão e a complexificação crescente do campo relacional no qual os Kaiowá e Guarani se engajam. Assim, esperamos poder indicar algumas possibilidades de conexões entre a Etnologia Indígena e a Antropologia da Criança para pensar os limites e desafios na efetivação de políticas públicas e direitos junto aos indígenas, tomando um conjunto de pesquisas realizadas em Mato Grosso do Sul sobre os desafios das políticas interculturais e a socialidade kaiowá e guarani, em cenário de intensas transformações na paisagem política e de suas relações.
Transformações e relações entre os Kaiowá e os Guarani a partir de etnografias sobre das crianças, parentesco e cultura O processo de aumento da presença não-indígena na região de ocupação tradicional das parentelas kaiowá e guarani, região sul do Mato Grosso do Sul, foi intensificado a partir do início do século XX com a criação de uma política indigenista nacional pelo Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), como uma forma de substituir a política dos aldeamentos imperiais, coordenados por missões religiosas (Amoroso, 2015). Conforme documentou Brand (1997), a ação do órgão indigenista também tinha como objetivo complementar a política republicana em povoar a extensa faixa fronteiriça anexada ao território brasileiro após o fim da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai11. Esta ação compreendia o recolhimento das famílias extensas
11 O Brasil, juntamente com a Argentina e o Uruguai, deflagrou guerra contra o Paraguai na segunda metade do século XIX. Com o final do embate, o Império Brasileiro concedeu a região que compreende Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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para o interior de pequenas áreas de no máximo 3.600 hectares, sedentarizando-as. O recolhimento em reservas diminutas restringiu e limitou a mobilidade, necessária para a reprodução dos modos de ser e seus regimes de conhecimentos, que requeria o trânsito pela horizontalidade do espaço habitado e verticalmente, através dos diversos patamares celestes, habitados por seres míticos e demiúrgicos com aos quais trocam, intermediam e se comunicam para a produção das relações sociais e políticas. A interação com tais seres possibilitava as pessoas a produzirem amplas redes de relações entre humanos e nãohumanos.
Em suas narrativas, os Kaiowá atestam que uma extensa região, compreendida entre a porção oriental do território paraguaio e o centro-sul do atual MS, correspondia ao seu território tradicional (ñande retã), espaço onde as parentelas desfrutavam de ampla mobilidade e autonomia na educação das crianças pelos membros que compunham redes intercomunitárias glosadas por tekoha. O emprego de tekoha como um conceito nativo tem sido objeto de disputa entre a Antropologia e História; todavia, todas partem da definição canônica estabelecida por Melià, Grünberg & Grünberg (2008 p. 131): "el tekoha és el lugar que vivimos según nuestros costumbres, es la unidade semi-autónoma de los Paĩ"12. Alguns autores dão mais ênfase ao processo de esbulho territorial e os modos de
territorialização contemporâneos. Outra vertente enfatiza que mais do que uma tradução que remeta a noções de pertencimento geográfico ou espacial, tekoha pode ser mais bem compreendido como uma rede de relações que associam humanos e não-humanos na produção concomitante do espaço, da pessoa e da vida social entre os coletivos falantes de língua guarani, priorizando a postulação de que sem tekoha não há teko, e de que, inversamente, também sem teko – relações produzidas de acordo com o modo próprio de ser kaiowá - não há tekoha (Pereira, 2004)13.
o Sul do atual MS para uma empresa argentina, a Companhia Matte Laranjeira, para fins de exploração dos ervais nativos em áreas já ocupadas pelas parentelas kaiowá e guarani, que posteriormente foram transformadas em postos indígenas pelo SPI (CARIAGA 2016). 12 No Paraguai, o nome mais utilizado como auto-identificação é Paĩ-Tavyterã – seres que habitam o centro da terra (Melià, Grünberg & Grunberg 2008). A análise histórica dos nomes dos falantes de língua guarani por Meliá (2011) evidencia que o nome Kaiowá é uma corruptela decorrente das formas como as frentes de colonização e os demais falantes de língua guarani referiam-se aos indígenas guarani monteses - ka’agua, aqueles que viviam no fundo das matas, alusivo ao ambiente de floresta tropical encontrado ainda no século XIX na região entre as bacias fluviais brasileiras dos rios Apa, Amambai, Rio Brilhante Vacaria, Dourado e Ypané, Aquidabanno Paraguai. 13 Costumeiramente, os falantes de língua guarani no Brasil são descritos e reconhecem-se como Kaiowa, Mbya, Ñandeva. Estima-se que hoje a população se aproxime de 80 mil pessoas, sendo que mais de 50% vive no Mato Grosso do Sul, referindo a si mesmas como Kaiowa e Guarani. Grande parte vive em áreas criadas pelo SPI em condições muito adversas, de vulnerabilidade e precárias. Porém muitas famílias estão mobilizadas em processos de retomada de suas terras tradicionais, aguardando a identificação e demarcação pelo Estado Brasileiro. Para mais informações sugerimos a leitura da tese de doutorado de Aline Crespe Castilho (2015).
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Neste sentido, Pereira (1999, 2004) propõe que acompanhemos os itinerários das associações colocados pela descrição do conceito através da etimologia da palavra, composta por: teko (modo de ser, modo de conhecer e, em muitos casos, traduzido pelos Kaiowá e Guarani como cultura) + há (sufixo que, no caso, parece indicar espaço onde uma ação se realiza). Desta forma, o rendimento etnográfico do conceito tekoha é entendido como uma constelação conceitual nativa que opera associações e transformações humanas e não-humanas nos planos mítico-cosmológico, sociopolítico e espacial. A partir desta formulação, mais do que uma unidade territorial, tekoha é o modo como um conjunto de famílias kaiowá e guarani (te’ýi) efetivam seu modo de ser e conhecer em um local de habitação que reúna condições adequadas para tal empreendimento (tekohaguy).
O aumento da presença da população não-indígena e a privatização das terras da região consideradas devolutas pelo Estado no início do século XX, somado à retirada compulsória das parentelas dos seus locais de habitação tradicional, teve forte impacto na organização sociopolítica kaiowá, limitando a efetivação da produção dos modos de relação que configuram o tekoha. Diante do assédio do órgão indigenista para deslocar as comunidades para os postos indígenas, da derrubada crescente das matas para as atividades pecuárias e madeireiras, somado ao aumento das cidades, muitas parentelas viveram processos de fissão e fragilização das suas redes de alianças políticas-rituaismatrimoniais, período que é denominado de oresarampibá – quando nós fomos esparramados. Na segunda metade do século XX, este processo se acentua e torna-se mais grave com o ingresso de atividades agrícolas monocultoras, que, além de devastar a vegetação de mata, agravou a expulsão de parentelas que haviam permanecido no interior das propriedades, situação caracterizada por Pereira (2006) como “índios de fundos de fazenda”, atuando como trabalhadores rurais; todavia, em suas lógicas percebiamse ainda vivendo em seus tekohaguy. Ao propor uma teoria para o entendimento das transformações nas relações entre parentesco e da organização social kaiowá, Pereira (1999, 2004) dá relevo à extensão sociocosmológica na qual a produção da pessoa kaiowá engaja humanos e não-humanos, tendo nas crianças importantes mediadoras entre os patamares terrestres e celestes, também elaborado em etnografia de Cariaga (2012).
Oriundas dos patamares celestes, o envio de almas para tomar assento nas crianças em fase final de formação (quando são metaforicamente chamadas de apyka –banco) expressa a intenção dos seres celestes em manter a continuidade da comunicação e do intercâmbio com os humanos (Kaiowá), numa espécie de aposta no futuro de seus coletivos, pois enquanto continuar nascendo crianças, e elas continuarem recebendo almas – ñe’e, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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os coletivos kaiowá existirão. O itinerário do modelo etnográfico das relações kaiowá esboçado pelo autor dá relevo às formas de mediação política da vida social, entendendo que viver entre e como humanos (Ava - te’yi), para os Kaiowá, decorre de como um grupo de pessoas elabora relações de parentesco via a consanguinização dos seus afins, com uma centralidade nos modos de residência e convivialidade. Se tornar Kaiowá requer aprender a viver entre parentes e como parentes. No âmbito da produção do parentesco e da socialidade ameríndia, a convivialidade é o termo que se refere à importância das práticas cotidianas centradas nas “artes do viver” (Overing e Passes 2000), destacando-se que questões como a comensalidade (produzir e transformar alimentos e alimentar), a confecção de artefatos da cultura material e a educação das crianças são centrais nos mundos ameríndios. Entretanto, a aproximação do material etnográfico de Pereira (1999, 2004) aos conceitos de Overing (1991), Overing e Passes (2000) tem uma conexão parcial, porque em suas etnografias sobre os Kaiowá, o autor demonstra que a operação da produção da pessoa e do parentesco é atravessada tanto por questões de diplomacia e igualitarismo, condensados nos preceitos dos modos corretos de vida (teko porã), como por tensões e conflitos entre distintos módulos organizacionais, dispostos numa grade articulada por gradientes diametrais e concêntricos, expressa no movimento pendular entre dois princípios, ore (exclusividade) e pavêm (universalidade). A produção dos coletivos depende do manejo eficiente e equilibrado destes dois princípios, o que requer muitas habilidades do cabeça do grupo, modo como as pessoas traduzem a capacidade política de homens e mulheres dotados de prestígio suficiente para produzir um coletivo, seja de parentes e/ou de aliados, para uma ação política, como retomar uma área de reivindicação territorial ou em movimentos de mulheres, jovens e professores kaiowá e guarani. Todavia, a estabilidade destes grupos é bastante frágil e torna a “sociedade” um empreendimento sempre incerto. Mesmo quando se logra produzir os módulos organizacionais mais estáveis, como a parentela ou o tekoha, eles estão, ainda, sob constantes riscos de desarticulação que sustentam a vida social, através de comportamentos e moralidades identificadas como teko pochy14, modo de ser conflituoso e imperfeito, que pode levar à dissolução da humanidade kaiowá.
A noção de pessoa kaiowá está intimamente ligada à educação e circulação das crianças, devido ao papel de mediação e transformação realizado por elas nas relações
14 O material sobre as noções de pessoa kaiowa é extenso, aos leitores sugerimos que busquem mais informações, além das citadas no texto, em pesquisadoras como Seraguza (2013), Chamorro (2008) e em dissertações realizados por pesquisadores kaiowa como Benites (2009), João (2011) e Lescano (2016). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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entre os seres humanos e os “donos” (jara) dos patamares do cosmo de onde provem, ayvuyo u ñe’e (traduzido pelos kaiowá como alma), que é uma potência celeste que toma assento no corpo da pessoa no processo final de gestação. O ñe’e, quando habita a morada celeste mais elevada, o Kurusu Ambá, vive lá na forma de um pássaro; quando nasce um bebê, Nhanderú (Nosso Pai, criador do mundo kaiowá), que é o dono de tudo e todos – os Kaiowá também o chama de Nhande Jara – envia o ñe’e para ir viver com os humanos na terra e deve se tornar um avá (gente, pessoa, humano) através do empenho de seus parentes. O vínculo inicial é instável e frágil e a família deve se empenhar no sentido de fazer com que ñe’e pegue o jeito de querer morar aqui (na terra)15. Deve-se identificar a origem da alma da criança para identificar a qualidade da comunicação entre as divindades e a família escolhida. Isto é fundamental para saber como lidar com a criança a partir de condições imanentes à sua própria origem. No período inicial o ñe’e que tomou assento no corpo da criança tende a estranhar o mundo humano, e tende a sentir saudades do seu lugar celeste de origem. Este motivo demanda que o ñe’e deva ser convencido, estimulado e, principalmente, alegrado, para que crie vínculos afetivos com a família que o recebeu e com o ambiente de vida entre os humanos. Destacamos aqui duas características importantes no processo inicial da criança, a produção do sentimento de alegria e da afetividade, juntamente com uma série de procedimentos rituais e diários, como a alimentação adequada, que assegura a transmissão de saberes. Deste modo, a educação (ou criação) das crianças vai transformando pessoas em pais, avós, tios, tias, irmãos e irmãs e a ela mesma em pessoa de verdade – avá. Assim, o nascimento de uma criança não assegura automaticamente o seu status de humano, como uma condição estável, mas tal possibilidade só se efetiva através de formas cotidianas e rituais, necessárias para abrandar os estados de crise mais delicados na vida das pessoas: nascer, ficar em pé e falar são índices importantes da humanidade das crianças em construção (Cariaga, 2012). Já a puberdade, a gestação e a morte são
15 As etnografias de Seraguza (2013) e João (2011) dedicam-se a entender a produção de corpos e alteridades kaiowá e guarani a partir de diferentes perspectivas: a primeira sobre as relações entre corpos, saberes e habilidades, enquanto o segundo dedica-se a demonstrar as analogias e transformações sociocosmológicas entre pessoas e plantas no canto-reza para o milho branco – avatimorõti. A questão central observada a partir dos autores é que, na produção de corpos e da socialidade ameríndia, não se sustentam divisores que tendem a segregar aspectos relacionados às artes do bem viver e da coletividade, das questões que envolvem os riscos da predação e da guerra, como bem aponta McCallum (2013). O que sugerimos é que entre os Kaiowa e Guarani tais questões estão intimamente próximas e a ênfase na descrição opera imagens do tipo como Garrafas de Klein ou Fita de Moëbius, tomando de empréstimo as questões que Lévi-Straus coloca em relação às formas nativas de tradução dos mitos e das relações humanas e não-humanas, em que, ao mirarmos estas figuras, não podemos precisar o que seria interno ou externo (1986). Deste modo, insistir nas divisões de proposições antropológicas pode significar em recair em descrições pouco potentes dos modos como nas Terras Baixas tais questões estão profundamente imbricadas. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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vistas como transformações, que, assim como a produção de pessoas, pode transformar ou destruir seus corpos, e o cuidado com as potências divinas (ñe’e) demandam que o núcleo familiar, mais especificamente os co-residentes, empenhe-se em garantir que tais situações sejam atenuadas, prevalecendo as lógicas de socialidade do teko porá e da vida entre parentes, entendidas no que Pereira (2002) identificou como fogo doméstico.
O autor (idem), ao identificar o rendimento sociológico da categoria nativa che ypyky kuera (aqueles que são minha origem – pessoas que são meus ascendentes), traduzida como fogo doméstico, argumenta que se deva considerar a imagem metafórica da importância da cocção e distribuição de alimentos através do fogo e destaca as redes de relações (com ênfase no parentesco) que se entrelaçam, se ampliam e se transformam diante dos modos de vida experimentados pelos Kaiowá e Guarani. A noção nos permite entender a importância política da conjugalidade e dos regimes de conhecimentos em uma escala geracional, que nos auxilia a compreender de que modo as pessoas em uma mesma parentela se pensam no mundo como agentes de diferentes tipos de modos de ser e conhecer vinculados aos modos de ser de cada parentela (Cariaga, 2015, 2012). O contexto de vida atual é marcado pelo adensamento populacional e pela fragilidade nas formas de cooperação e das redes de parentesco nas áreas criadas através da política indigenista civilizatória do SPI, que foi sendo intensificada ao longo do século pelo aumento da presença das formas de controle do Estado na vida diária entre os Kaiowá e Guarani. Isto gera muitas dificuldades para os fogos e parentelas seguirem produzindo pessoas de acordo com os preceitos do modo próprio de ser. A maior parte dos antigos postos indígenas em Mato Grosso do Sul, onde vive cerca de 60% da população, estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 43.556 indivíduos, vive em uma situação que inviabiliza a realização das prerrogativas do teko porã. Esta percepção é explicitada pelos próprios Kaiowá e Guarani, embora tendam a apontar que esta característica seja predominante nas outras parentelas e não na sua própria. Todavia, o pessimismo aculturativo presente em Schaden (1974 p.04), do fim eminente dos povos de língua guarani era, em boa medida, condicionado ao modo vida das parentelas kaiowá e guarani na metade do século XX, quando viviam os processos de avanço das frentes agropastoris de ocupação do espaço rural e ainda não haviam refletido sobre os agenciamentos das novas relações com os brancos – karaí.
Porém, se consideramos a expressiva recuperação demográfica e a ampliação nas faixas etárias mais jovens (Colman 2015), podemos refletir de outro modo sobre a potência de inovação dos sentidos da vida social e dos seus modos de ser e conhecer, associados ao entendimento de que a existência da pessoa kaiowá e guarani é uma operação de
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mediação entre os aspectos convencionalizantes e inovadores acerca de como diferentes gerações conceituam “tradição, cultura e identidade cultural”. Em Cariaga (2015: 234), encontramos a seguinte reflexão Neste jogo, termos como “tradição”, “cultura” e “identidade cultural” são formulações elaboradas pelos Kaiowá, que refletem a experiência de cada geração sobre sua percepção no e do mundo. Assim, tekoymaguare pode ser compreendido como um dos polos das relações de convenção e diferenciação da cultura, que ampliam seus sentidos quando associadas ou contrapostas às categorias do pensamento kaiowa que dizem respeito à inovação cultural, como tekoko’anga e tekopyahu. Deste modo, a pessoa kaiowá é entendida como um campo de relações que conecta modos de ser que articulam diferentes temporalidades16.
Ao retomar o tema da educação das crianças e da socialidade, Pereira (2008) propõe uma perspectiva de análise da vida social kaiowá e guarani a partir das relações geracionais e de gênero para entendermos a agência e as reflexões nativas mediante um cenário de vida fortemente impactado pelo contingenciamento territorial e pela vulnerabilidade alimentar e nutricional devidos aos impasses na identificação e demarcação dos tekoha, e das próprias limitações ambientais dos espaços que ocupam. Para o autor, a condição de vida atual intensificou a multiplicidade de estilos comportamentais das parentelas kaiowá. Seguindo a proposição de Benites (2009: 18-21), que identifica teko laja enquanto o modo de ser de cada parentela kaiowá, propõe que as mudanças no ambiente e na sociedade fornecem elementos de singularização de cada parentela perante as demais. Assim, no cenário atual, a tendência é que se intensifiquem as distinções devido à oferta de materiais, no sentido da bricolagem do pensamento selvagem (Lévi-Strauss 1976), na composição de novos estilos de parentela – teko laja retã.
Deste modo, nos guiamos em dar mais atenção às etnografias com e sobre crianças que vem sendo realizadas por pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado no âmbito do grupo de pesquisa Etnologia e História Indígena (que associa pesquisas realizadas entre discentes e docentes da UFGD, UEMS, UFSC, UFRGS e USP). Esta rede de pesquisas tem se interessado em refletir sobre os efeitos do aumento da dependência das ações do Estado no cotidiano das famílias, assim como em descrever a performatividade do conceito de cultura como nexo político sob os quais as famílias e as crianças criam
16 O argumento proposto por Cariaga no artigo citado e em sua dissertação (2012) é demonstrar que os modos de ser e conhecer associados aos enunciados da tradição – teko ymaguare – e os que remetem à inovação – teko pyahusão – são operadores centrais no entendimento das transformações geracionais que conectam e associam as pessoas a regimes de conhecimentos que fazem uso de marcadores temporais e morais condizentes a suas reflexões sobre as transformações históricas e sóciocosmológicas. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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novas situações diante do contexto atual de vida, seguindo a argumentação de Carneiro da Cunha (2009) a respeito das traduções indígenas sobre o conceito de cultura, que, mais de o que um auto-enunciado, nos dias atuais, age como uma potente forma de criatividade indígena para se relacionar com os brancos.
Efeitos da cultura: paradoxos na extensão dos direitos da criança e do adolescente No sul do MS diversas pesquisas na área de humanas17 vêm sendo desenvolvidas com e sobre as crianças guarani e kaiowá a partir da relação com legislações e políticas que tratam dos direitos da criança e do adolescente. Com a antropologia e a etnologia, temos estimulado este debate com as discussões relativas às concepções de infância e da noção de pessoa. Entendemos que, quando se trata da extensão dos direitos da criança e do adolescente para as crianças indígenas, o que se observa é a configuração de um campo da proteção à criança no interior de um campo indigenista. Neste item trataremos sobre o modo como os discursos e as práticas sobre o sofrimento da criança indígena em perigo aparecem em Mato Grosso do Sul e os desafios das instituições para atuarem considerando o modo como os Guarani e Kaiowá entendem a pessoa.
As denúncias em diversas mídias locais, nacionais e internacionais da morte de crianças indígenas, no Brasil, por desnutrição, marcam a entrada destas no espaço público como efeito das políticas interculturais pós-constituição. As violações aos direitos indígenas, que vinham sendo denunciadas com mais intensidade, já que o momento tornou possível a emergência de suas vozes, desde o final da década de 1980, havia mantido os pequenos praticamente ausentes das discussões sobre os desafios a respeito do cotidiano indígena nas áreas reduzidas, com solos, matas e rios empobrecidos, com poucos e disputados recursos, com a intensificação dos conflitos internos às comunidades e em que as dificuldades para a produção da sustentabilidade alimentar se agravava.
Na década de 90, o Brasil foi notícia por apresentar altos índices de brasileiros que passavam fome; pesquisas semelhantes desenvolvidas pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), em 1995, em relação aos povos indígenas, constatou que em 1993 e 1994, em 66.67% das terras indígenas sobre as quais foram obtidas as informações, 34.25% da população indígena total, e 41.88% da população sobre a qual obtiveram as informações, havia problemas com a sustentação alimentar e a fome (VERDUM, 2003, p. 17 No âmbito da Antropologia, destacamos Lima (2014) e Cruz (2015); em Educação, Garcia Bruno e Suttana (2012). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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143)18. Com efeito, a situação de fome entre os povos indígenas alcança seu auge nos anos de 2004 e 2005, chegando a totalizar, em MS, 16 óbitos em um mês de crianças Guarani e Kaiowá (BRASIL, 2010).
É a publicização do sofrimento destas crianças que se desdobrará em políticas orientadas por sentimentos morais e sociais em relação à infância. O médico e antropólogo francês Didier Fassin (2016), em pesquisa realizada na África, apresenta um giro nas representações morais em torno da epidemia da AIDS quando a notícia de dezenas de milhares de crianças infectadas entra em cena. Enquanto os homossexuais brancos, depois os homens e as mulheres negras eram considerados, por suas supostas práticas sexuais, como responsáveis pela sua própria infecção, as crianças traziam a marca da inocência. Elas eram vítimas da conduta irresponsável dos seus pais e das decisões inapropriadas do governo. Argumenta Fassin (2016, p. 241) que a presença destas crianças como assunto central da epidemia reúne uma representação moral e uma representação social: a inocência e a vulnerabilidade. Em estudo publicado em 2014, Silvana Jesus do Nascimento (2013, 2014) apresenta compreensão semelhante a esta de Fassin em relação à visibilização das violações dos direitos da criança indígena kaiowá e guarani. Enquanto as crianças guarani e kaiowá mortas por desnutrição e em situação de risco social eram alçadas à representação de vítimas, de um lado pela conduta irresponsável e retrógrada de seus pais e de seu grupo étnico, e por outro lado das políticas governamentais indigenistas equivocadas, os adultos da família e parentela na mesma condição eram considerados responsáveis pelo próprio sofrimento e algozes de seus filhos. Em se tratando das crianças indígenas, entendemos ser necessário a compatibilização entre os direitos da criança com o direito indígena. Esse é uma condição que gera muitos tensionamentos entre os atores que compõem a rede de proteção à criança e ao adolescente no sul do Mato Grosso do Sul. As transformações nos direitos indígenas ocorridas com a desconcentração da política indigenista culminaram na descentralização dos serviços sociais, distribuídos entre União, estados e municípios e para diferentes ministérios como educação, saúde, justiça etc. Estas transformações causaram crises de competências e jogos de responsabilizações e desresponsabilizações (VICTORA; RUASNETO, 2011) das instituições e esferas de governo em relação aos indígenas em diversas partes do Brasil. A antropóloga Victora (2011) apresenta cenário semelhante envolvendo instituições públicas e os índios Charrua, em Porto Alegre. 18 O compromisso com a superação desses índices foi expresso no Plano Plurianual do Governo Federal para o quadriênio de 2004 a 2007, com o objetivo 1: Inclusão social e redução das desigualdades sociais, e o desafio 1: Combater a fome visando à sua erradicação e promover a segurança alimentar e nutricional garantindo a inserção social e cidadania (BRASIL, 2003). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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O modo de governo da infância também passou por mudanças pós-constituição de 1988, deixando de focar no “menor” e em ações de internação para falar em criança, em proteção integral e em direito à convivência familiar e comunitária (Rizini & Rizini, 2004). A antropóloga Patrice Schuch (2005, p. 20), ao estudar a implantação de novas políticas socioeducativas pós-ECA, em Porto Alegre, descreve a criação de outros equipamentos, linguagens, formações para os funcionários, constituição de uma forma específica de crianças e adolescentes. Era uma tentativa de transformação das instituições e discursos, mas também das sensibilidades e afetos. Neste contexto em que um campo da infância e um campo do indigenismo estão em transformação, tratar da criança indígena provoca tensionamentos. Diferentes argumentos e práticas são defendidos por atores indigenistas e por responsáveis pela proteção da criança que defendem tratamentos diferenciados ou generalizantes em relação as “indígenas crianças”. O argumento em prol de tratamentos generalizantes é registrado por Nascimento (2013: 28) a partir da fala de um responsável por uma instituição de proteção para “menores”19, que incluía indígenas e um juiz, responsável pela condução de processos de
adoção de crianças indígenas.
Eu percebo pessoalmente como uma adoção comum, uma criança se está em uma situação de vulnerabilidade, ele precisa de uma família como todo brasileiro tem direito a uma família. Até mesmo porque como criança, ele não tem o aspecto cultural, ele não tem a cultura do seu povo, ela vai ser adquirida, ela vai ser impressa nele, mas ele não tem isso. (Diretor do IAME, 2011). (...) a criança não tem muita ainda essa distinção da vida do índio pra vida do homem branco pra criança me parece que tudo é mundo. (Juiz 2).
Neste registro, o diretor de uma instituição de abrigamento e um juiz da Vara da Infância e Juventude defendem a homogeneização de tratamentos para as crianças indígenas, a partir da compreensão de que estas “não têm cultura”. Este imaginário sobre a criança, amparado em compreensões da cultura moderna que desconsidera as críticas antropológicas contemporâneas ao conceito de cultura, e os modos como os grupos indígenas a entendem, historicamente, foi útil aos propósitos de catequização: “a imagem da inocência e da pureza, qual papel em branco, prestavam-se idealmente para a inscrição dos princípios da doutrina cristã” (NUNES, 2003; p. 95). Esta é uma representação contestada pelos Guarani e Kaiowá e pelos estudiosos que com eles dialogam, pois a
19 Em Dourados, a instituição de abrigamento destinada à proteção de crianças e adolescentes do sexo masculino chama-se IAME – Instituto Agrícola do Menor. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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pessoa guarani e kaiowá é produzida a partir de complexas relações que precedem e sucedem sua concepção, gestação e nascimento até que aprendam viver a entre parentes e como parentes.
No contexto local das ações judiciais e dos órgãos de proteção aos direitos da criança envolvendo crianças indígenas em MS, predomina a orientação da percepção da infância como condição universal. As argumentações inspiradas nas proposições sociológicas e antropológicas que defendem a pluralização dos modos de ser crianças, acionando marcadores sociais, históricos, culturais e de gênero, são rechaçadas e, quando admitidas, culminam na negação do serviço. Ao assumir a dificuldade em lidar com encaminhamentos relativos aos direitos da criança indígena, a rede de proteção tende a alegar que os “problemas” envolvendo índios, inclusive suas crianças, diriam respeito à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), à Secretaria Especial Indígena (SESAI) e ao Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) localizado em algumas Terras Indígenas, e que se requer a atuação dos agentes da rede por incompetência dos órgãos indigenistas em resolver os “problemas dos índios”. Posicionamento este mantido há mais de uma década de políticas públicas tensionadas pelo direito à diferença, como demonstra Cariaga (2015, p. 238) a respeito dos registros de levantamentos realizados em 2004, cujos representantes dos Conselhos Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) diziam: “aqui cuidamos de crianças, quem cuida de índio é a FUNAI”. O paradoxo dos atendimentos pelo Sistema de Garantia de Direitos (SGD) da Criança e do Adolescente em relação às crianças guarani e kaiowá ocorre na medida em que as causas das violações de direitos e a ineficácia de determinadas políticas são atribuídas à cultura (Viudes, 2009; Nascimento, 2013). A “cultura” dos índios, com todas as aspas, é vista como o problema central, o que nos leva a deduzir que, se os índios não fossem diferentes, não haveria problemas, inclusive em relação às crianças. A questão que se coloca então seria: para quem e por que a cultura indígena é problema e qual a natureza deste problema? Pela análise de páginas de jornal que circularam na região sobre o problema da desnutrição infantil indígena, Priscila Viudes (2009) explicita esta associação entre a violência e a cultura por discursos de autoridades, de nutricionistas e políticos em relação à morte por desnutrição: é “tradição indígena as mães alimentarem os filhos com pão e açúcar” (O PROGRESSO, 24 jan. 2005 apud VIUDES, 2009: 96). “Sabemos que na cultura indígena, primeiro os adultos se alimentam e depois, se sobrar, as crianças” (O PROGRESSO, 26 jan. 2005 apud VIUDES, 2009: 98). Racionalidades e emoções semelhantes são utilizados por alguns desses atores para justificar as causas de denúncias de abuso sexual, abandono, “negligência” e maus-tratos. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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O argumento cultural está associado a um contexto de disputa entre as instituições governamentais sobre quem deve atender o público indígena, tido como um problema por seus direitos diferenciados. Nesta discussão, a figura da criança indígena em perigo por causa da cultura sensibiliza a sociedade civil, que se percebe implicada em continuar seu exercício moral de civilizar “os pobres índios”, reféns dos seus costumes e crenças, enquanto as instituições são moralmente mobilizadas a encontrar uma saída. É possível perceber esta lógica na série de reportagens divulgadas entre os meses de janeiro e fevereiro de 2016 sobre o percurso de internação hospitalar de um “indiozinho” (apelido dado pelos profissionais do hospital ao menino indígena guarani de quatro anos de idade).
A primeira reportagem, intitulada “Edemar, 4, mora no hospital para fugir de cultura que poderia matá-lo” (Campo Grande News, 21/01/2016), apresenta a história institucional do menino diagnosticado pela Santa Casa de Campo Grande com “defeito congênito no coração” (idem), logo após o nascimento. O principal problema cultural por parte dos índios, no caso de Edemar, apresentado pela narradora, é a diferença de concepção de saúde e doença e os meios para a realização do tratamento. Pela narrativa, dá a entender que parte dos problemas poderiam ter sido evitados se não houvesse essa fronteira entre brancos e índios. Ele nem precisava estar no hospital, mas vive há pelo menos um ano em hospitais de Mato Grosso do Sul por uma questão cultural: os médicos temem que a família não permita que ele volte para concluir o tratamento e fazer uma cirurgia.
A questão cultural, historicamente, é uma preocupação por conta do descarte das crianças indígenas que nasciam com alguma deficiência.
A internação social “desnecessária” é realizada pela preocupação histórica de casos de supostos “infanticídios”, mas também por outra prática de “ignorância” dos familiares que recusaram de imediato a intervenção médica. Os familiares não autorizaram os procedimentos e a cirurgia que “poderiam salvar sua vida” quando o hospital tinha recebido o material para fazer a intervenção. O problema no coração do “indiozinho”, chamado anomalia de Ebstein, é uma doença grave e rara, mas sem sintomas visíveis inicialmente; como a jornalista afirma, a cardiopediatra deduziu quando a família trouxe a criança para atendimento: “Só deve ter ido para o hospital porque começou a apresentar os sintomas da doença como falta de ar e até ficar roxo”. A ausência de sintoma levou os familiares a questionarem o diagnóstico e por sua vez a intervenção. A carta escrita pelo pai de Edemar no trecho publicado pelo jornal diz: “Cirurgia muito perigosa operar no coração.
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Faz favor. Não pode mandar entrar cirurgia. Aquele coração sagrado vida ainda izima da terra. Se perder aquele mia filha, depois vai pagar nós. Ele não é ainda quajo. Tem ainda pai dele”. (Campo Grande News 22/01/2016). Esta reportagem intitulou-se: “‘Coração é sagrado’, escreveu pai de 'indiozinho' ao proibir cirurgia”, e no argumento da jornalista esta resposta do pai é a prova de sua proibição à cirurgia com base exclusivamente na cultura. Esse reducionismo cultural, a nosso ver, desconsidera, por exemplo, o tempo envolvido até a compreensão da doença assintomática em princípio e outras experiências de morte de crianças submetidas a esse tipo de intervenção entre os Guarani e Kaiowá desta região. O que se nota é que a motivação da reportagem não era apresentar as compreensões indígenas sobre saúde e doença ou os dilemas dos profissionais de saúde diante deste encontro interétnico. A visibilização do caso de Edemar traz para o debate público as disputas em torno da competência e da responsabilização das três esferas do poder público para com o indígena. “Antes de fazer a cirurgia cardíaca ele precisa passar por um procedimento. Ambos são cobertos pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas que não fornece todos os materiais. Solicitamos judicialmente e estamos aguardando, afirma a cardiopediatra que atende o menino, Cláudia Piovesan Farias”. Portanto, a evocação dos “problemas culturais” como causa do sofrimento do “indiozinho” oculta as disputas institucionais de responsabilização e desresponsabilização das instituições para com os indígenas alçados à condição de sujeitos de direitos desde a Constituição de 1988.
As políticas públicas para as crianças guarani e kaiowá, alicerçadas nos direitos da criança e do adolescente ao partir de interpretações positivistas do Direito, com conceitos generalizantes que se pretendem universais, mesmo que possam ter resultados individuais positivos e finalidades justas (redução da mortalidade infantil, acesso a bens e serviços), equivoca-se quando se trata de proteger e fortalecer a diferença cultural e os sujeitos coletivos. Escapa à maioria dos atores envolvidos no sistema de proteção à criança a percepção de que nos contextos indígenas a noção de pessoa (ou a própria pessoa) só pode ser compreendida através das relações imanentes à produção de si e do mundo. Assim, a etnologia indígena e a antropologia têm demonstrando e debatido que em múltiplos modos de existência (indígenas e não-indígenas) a noção de pessoa ameríndia não é correspondente à forma como a noção moderna (euro-americana) de indivíduo opera. Entre os Kaiowá e Guarani, a existência da pessoa deve ser pensada como um conectivo entre relações que associam a produção do parentesco, a organização social, a cosmologia e moralidades. Strathern (2006), a partir de sua etnografia com os Hagen, procura evidenciar que, no contexto melanésio, a pessoa pode ser mais bem entendida Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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a partir das capacidades de extensão de relações e de partes que a compõem. A autora, ao elaborar a noção de pessoa compósita, apresenta uma perspectiva que transborda a noção de pessoa como mecanismo autorreferente, pois a pessoa melanésia é instável e, assim como entre os Kaiowá, pode ser composta e decomposta, pois ela não existe como um todo, no singular, ela é feita de e por partes, através das relações produzidas através de fluídos, almas, nomes, artefatos, prerrogativas.
Esta formulação nos leva a refletir sobre a produção da pessoa kaiowá, centrada na descrição dos itinerários acerca da criança kaiowá e guarani, evidenciando que ela vai se constituindo a partir de componentes e relações as mais diversas: a) tem seu elemento celeste (ñe’e/ayvu), que desce a terra, e comporta as relações com os seres que habitam os patamares celestes de onde ela se origina; b) toma assento no útero da mãe em forma de ser em gestação – apyka (termo que pode ser utilizado tanto para o útero materno como para o criança em formação, assim como é o nome dado ao banco cerimonial no qual as crianças recebem o nome) –, composto de substâncias da mãe e do pai; c) numa composição de corpos em que entram os alimentos, que por sua vez são produzidos por relações entre seu fogo doméstico e parentela e inúmeros seres não-humanos; d) na interação com os membros do fogo, da parentela, da comunidade e com outros seres que compartilham modos de existência múltiplos no patamar terrestre. E, à medida que vão crescendo, passam a adquirir e expandir suas relações, até se tornarem capazes de produzir outras vidas e reestabelecer tais conexões e mediações.
Considerações finais Ao longo do texto, nossa intenção foi demonstrar o modo como os problemas da “cultura dos índios” são pensadas em grande medida pelos gestores públicos e operadores de direitos que atuam nas redes de proteção e promoção dos direitos das crianças e adolescentes a partir de concepções que imprimem aos indígenas modos de pensar a pessoa, o parentesco e vida social como iguais aos dispositivos e normas da legislação nacional e também de percepções orientadas pelo ponto de vista dos não-indígenas. Entretanto, à medida que tais ações vão se estendendo aos Kaiowá e Guarani, estes passam a agenciar usos políticos do conceito de cultura em jogo para estabelecer dispositivos de mediação entre as políticas de Estado e as políticas kaiowá e guarani, ou seja, devemos encarar que as reflexões produzidas pelos indígenas a respeito da humanidade e das diferenças são eminentemente políticas, porque tratam de modos de mediar e transformar as diferenças entre si e seus outros.
Neste sentido, os brancos, seus modos de ser e seus modos de conhecer – karai
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reko – também compõem as formas como as quais os Kaiowá e Guarani produzem conceitos sobre si e sobre a cultura, pois, como problematiza Pimentel (2012), sem os karai também não há teko. Isso se dá porque os conceitos de cultura, como demonstraram Carneiro da Cunha (2009) e Wagner (2010), emergem de formas relacionais e reflexivas na produção dos sentidos a que se atribuiu o lugar da qualidade do cultural nos modos de produzir relações e diferenças. Ou seja, a cultura é sempre uma linguagem para comunicar diferenças e para produzi-las. Todavia, devemos reconhecer que tais dinâmicas nem sempre são simétricas, vide o contexto nos quais as famílias kaiowá e guarani têm que “negociar” concepções e uso da cultura perante os poderes de Estado que atravessam seu cotidiano. Deste modo, a prerrogativa de comensurabilidade de conceitos nas operações de tradução em torno do conceito de cultura e de teko (e vice-versa) não afasta os problemas das formas de compreensão do que está em jogo, como demonstrou Viveiros Castro (2004) ao propor que a equivocação controlada gera efeitos complexos na tradução dos modos como diferentes perspectivas usam o mesmo termo para comunicarem coisas distintas, e como coisas distintas usam o mesmo termo para se comunicar, isto é, a cultura-ou –teko, quando enunciada nos termos dos Kaiowá e Guarani, não é uma correspondência sinonímica para o modo como “nós” entendemos a cultura, e o melhor modo de entender os conceitos de cultura via a as traduções indígenas é observar quais relações estão se conectando através de uma gramática própria aos modos que são enunciadas.
Nossa expectativa, como pesquisadores, ao realizar descrições etnográficas e aproximações com os problemas derivados das políticas públicas em contextos indígenas, é demonstrar que tais complexidades possuem múltiplas percepções nas relações enredadas através das perspectivas das redes de relações indígenas com as formas não indígenas de produção de governo. Neste sentido é preciso que as políticas públicas ofertadas e implementadas nos contextos indígenas devam assegurar os mecanismos de consulta e monitoramento indígenas sobre as ações do Estado, como preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de que o Estado Brasileiro é signatário. Porque, diante de tantas décadas de relação entre os Kaiowá e Guarani e os karaí, a “antropologia deles sobre nós” é muito mais sofisticada do que nossas dissertações e teses sobre “eles”, e são capazes de oferecer alternativas de gestão da vida comunitária, podendo inclusive evitar o excesso de judicialização da vida. Por fim, esperamos que nossas reflexões (indígenas e não-indígenas) transbordem a nossa comunidade de fala e possam também ser lidas, criticadas e transformadas pelos gestores e operadores de direitos das crianças e dos adolescentes, para os coletivos indígenas, já que estes realizam isto desde os momentos Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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iniciais do contato, ao tempo que os não-indígenas criam (há séculos) ilusões para si na tentativa de tornar mais opacas e achatadas as relações e diferenças entre si e seus outros.
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Recebido em 26 de maio de 2017.
Aceito em 03 de setembro de 2018.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 308-329.
O banho de rio, a Barragem Norte e as transformações nos processos de produção do corpo entre as crianças Laklãnõ Marcondes Namblá1 Professor indígena Laklãnõ e licenciado na Licenciatura Intercultural do Sul da Mata Atlântica/UFSC
Resumo Este texto é parte da Monografia de Conclusão de Curso defendida na Licenciatura Intercultural do Sul da Mata Atlântica/UFSC. O autor elabora as relações diversas dos Laklãnõ com as águas do rio, e dá ênfase especial às crianças, à formação do corpo e à corporalidade, e às aprendizagens envolvidas nestas práticas realizadas no rio e nas águas. Recuperando uma história da ocupação territorial e dos vários ambientes fluviais que foram cenários dos banhos e das brincadeiras dos Laklãnõ, enfatiza os impactos das mudanças no rio advindas com seu alagamento com a construção da Barragem Norte, sendo uma importante colaboração para o debate dos impactos de grandes empreendimentos nas vidas das crianças indígenas. Este texto é publicado após seu falecimento por assassinato, colocando em tema também a discriminação e as violências sofridas por indígenas ainda no Brasil contemporâneo.
Palavras-chave: Laklãnõ; crianças indígenas; impactos socioambientais; Barragem; corporalidade. Abstract
This text is a part of the Monography defended at the Intercultural Licenciatura of the South Atlantic Forest / UFSC for the conclusion of the formation of the Indigenous researcher. The author elaborates the diverse relations of the Laklãnõ with the waters of the river, giving special emphasis to the children, the formation of the body, corporality and learning processes involved in these practices carried out in the river and in the waters. Recovering the history of the territorial occupation of his People and the various river environments 1
Autor da Monografia “Infância Laklãnõ: ensaio preliminar”, disponibilizada em http:// licenciaturaindigena.ufsc.br/files/2015/04/Marcondes-Nambla.pdf. Namblá faleceu assassinado, e uma nota foi emitida pela UFSC em sua homenagem: http://nepi.ufsc.br/2018/01/03/nota-porjustica-pela-morte-de-marcondes-nambla/
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that were scenarios of the baths and games of the Laklãnõ, emphasizes the impacts of the changes in the river coming with its flooding with the construction of the Barragem Norte, which makes the text an important collaboration for the debate of the impacts in the lifes of indigenous children. This text is published after his death by murder, putting also in the subject the discrimination and the violence suffered still by the Indigenous Peoples in contemporary Brazil.
Keywords: Indigenous children; Laklãnõ; corporality; bodiliness; learning processes; socioambiental impacts.
Apresentação Antonella Tassinari¹ Joziléia Daniza Kaingang² Suzana Cavalheiro de Jesus³
O instigante artigo que segue, intitulado “O banho de rio, a Barragem Norte e as transformações nos processos de produção do corpo entre as crianças Laklãnõ” de autoria de Marcondes Namblá, é fruto do seu Trabalho de Conclusão de Curso na Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina, defendido em 2015. Somos nós a apresentá-lo porque o próprio autor não pode fazêlo, nem poderá ver seu texto publicado neste dossiê que certamente lhe agradaria ler. Marcondes foi agredido de forma brutal na madrugada do dia 01 de janeiro de 2018, foi hospitalizado e veio a falecer dois dias depois. Foi vítima da violência contra povos indígenas, atacado em uma esquina, sem ter como expressar defesa.
Conhecemos Marcondes através da Licenciatura Intercultural da UFSC, professor Laklãnõ-Xokleng e liderança atuante na Terra Indígena Laklãnõ. Sempre demonstrou profunda preocupação com processos de revitalização da língua Laklãnõ e interessava-se pelos estudos sobre alfabetização, educação infantil e ensino bilíngue. Compunha canções na sua língua materna, divertia os colegas com o violão e participava ativamente dos 1 2 3
Professora do Departamento de Antropologia da UFSC, orientadora do TCC de Marcondes Namblá, coordenadora da Licenciatura Indígena no período de 2016 e 2017. Atual Coordenadora Pedagógica da Licenciatura Indígena da UFSC, antropóloga, pesquisadora e atua na política indígena em especial no tema das mulheres indígenas. Antropóloga, foi co-orientadora do TCC de Marcondes Namblá e atualmente é docente da Universidade Federal do Pampa, campus Dom Pedrito.
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debates em sala de aula e no espaço universitário.
Ao longo de sua trajetória na Licenciatura, foi aproximando-se das temáticas discutidas pelas pesquisas antropológicas com foco no cotidiano infantil. Interessou-se pelos estudos sobre corporalidade, noção de pessoa e técnicas corporais e identificou, com muita perspicácia, a relevância do banho de rio como um tema importante para sua pesquisa. Decidiu fazer seu TCC unindo seus estudos sobre a escrita da língua Laklãnõ e a vida das crianças dentro da Terra Indígena. Pontuou, em seu trabalho, que a construção da Barragem Norte, dentro das TI Laklãnõ-Xokleng, dividiu parentelas e reduziu a prática do banho de rio, impactando de forma muito significativa na constituição dos corpos das crianças. Mostrou que os banhos de rio criam espaços de aprendizagens, produção identitária e vida coletiva. Marcondes elenca brincadeiras que eram desenvolvidas na água, por adultos e crianças, as quais mobilizavam vocabulários específicos. Com isso, mostra o quanto a barragem interferiu no cotidiano das crianças, impedindo não somente que possam banharem-se, mas que venham a fazer efetivo uso social de sua própria língua. Além do espaço ocupado pelo empreendimento, as águas ficam sujas e perigosas e muitos espaços deixam de estar apropriados para o banho. Destaca, como alternativa, a importância de cachoeiras, não impactadas pela barragem, que constituem os refúgios de algumas famílias.
Ao longo do processo de escrita do trabalho de conclusão, assim como no dia em que realizou a defesa pública, destacava que estava fazendo um ensaio preliminar e que necessitava estudar muito sobre a vida das crianças de seu povo. Percebia na pesquisa antropológica uma forma de compreender as relações formadas pela complexa teia crianças-parentesco-ambiente-escola-língua nativa-Estado. Escreveu um TCC com vários trechos na língua laklãnõ-xokleng, inclusive um apêndice com as brincadeiras mais corriqueiras entre as crianças. Desejava que o material bilíngue pudesse subsidiar docentes nas atividades em sala de aula. Marcondes Namblá foi um dos 40 estudantes indígenas laklãnõ-xokleng a ingressar pelo vestibular específico na Licenciatura Intercultural Indígena da UFSC, no ano de 2011, juntamente com outros 40 estudantes guarani e 40 estudantes kaingang. Foram quatro anos de muitas disciplinas, em etapas intensivas de aulas na Universidade, participando ativamente de atividades acadêmicas e da vida universitária. Estes estudantes trouxeram para a UFSC uma nova realidade: causaram estranheza com o número de alunos indígenas a ocupar o Restaurante Universitário, a circular com suas crianças pelo campus, a visitar a reserva técnica do Museu Universitário ou a Biblioteca, numa turma de mais de uma Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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centena de alunos. Aos docentes do curso trouxeram desafios contínuos, ao se reinventar, em rearticular suas pesquisas e metodologias para as aulas, na intenção de discutir conceitos e a ciência ocidental e perceber as aproximações e distanciamentos com as ciências indígenas.
Marcondes cursou a terminalidade Línguas Indígenas, sendo um dos 78 alunos que concluíram o curso em 2015. Conquistou não só o título, mas também o respeito, enquanto pesquisador, com um olhar crítico e refinado, ousou analisar e escrever sobre a incidência do impacto da Barragem Norte na infância e vida Laklãnõ. A qualidade do seu trabalho foi reconhecida em sua participação no III Seminário Infância e Crianças Indígenas, realizado na UFSC em novembro de 2017. Professor atuante na Escola Indígena de Educação Básica Laklãnõ, continuou desenvolvendo projetos de revitalização da língua através da música. Eleito para o prestigiado cargo de Juiz da TI Laklãnõ, organizou um encontro visando estreitar laços entre lideranças laklãnõ-xokleng e UFSC, em dezembro de 2017. Nos últimos dias do ano, Marcondes ainda escreveu sobre seus planos de fazer mestrado em Antropologia Social e continuar suas pesquisas sobre infância. Teve projetos, estudos, expectativas e lutas interrompidas de maneira covarde e brutal... Acalenta-nos ver que seu trabalho está sendo divulgado ao público neste dossiê da R@U. É uma merecida homenagem ao seu trabalho, mas também uma forma de denunciar a violência cotidiana contra os povos originários. Lamentavelmente, o acesso ao Ensino Superior não tem minimizado as situações de vulnerabilidade a que estão submetidos. Pensar um Ensino Superior que não seja constituído apenas de privilégios nos move em busca de uma ciência mais plural e de uma Universidade que possa ser capaz de mudar realidades, de oferecer escolhas, possibilidades e vidas plenas.
Fonte: Intervenção de colegas em homenagem ao autor, realizada a partir de foto do perfil de seu Facebook.
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O banho de rio, a Barragem Norte e as transformações nos processos de produção do corpo entre as crianças Laklãnõ
O banho de rio, a Barragem Norte e as transformações nos processos de produção do corpo entre as crianças Laklãnõ Marcondes Namblá
Os banhos de rio e a infância Laklãnõ Ao falarmos em banho de rio, no senso comum, pode-se imaginar simplesmente que é uma prática sem significado qualquer e que não pode ser classificada como esporte, visto que não se segue uma regra e não há competitividade. Essa forma de classificar como esporte as atividades corporais é inadequada no contexto Laklãnõ. Essa questão nos faz buscar uma explicação para o que Tassinari (2014: 163) trata como a tendência dos nãoindígenas a separarem tudo o que no contexto indígena acontece em conjunto. Assim, para essa autora,
Ao separarmos de forma tão inequívoca os tempos e espaços do lazer e do trabalho, do sagrado e do profano, da produção e da diversão, da aprendizagem e da prática profissional, temos uma tendência em fragmentar os significados e a importância de práticas corporais indígenas no âmbito de uma ou outra dessas dinâmicas.
É por isso que o ato do banho de rio, para os Laklãnõ ou para qualquer povo indígena, significa um momento de diversão, de lazer, de socialização e principalmente de aprendizagem. Tudo isso acontece de forma conjunta e dinâmica, de maneira que uma criança aprende várias coisas ao mesmo tempo, o que lhe proporciona uma grande riqueza moral e social que levará consigo a vida toda.
Mas o que as crianças indígenas aprendem durante o banho de rio? Eis uma questão que todos devem estar se fazendo ao analisar esta temática. Um dos aspectos fundamentais nessa questão — o qual Tassinari (2007) identifica com a autonomia das crianças indígenas — traduz perfeitamente a realidade do sistema de ensino e aprendizagem entre os Laklãnõ. Esse aspecto é o fato da responsabilidade de ensinar não estar nos ombros dos adultos, mas na própria criança, que aprende vendo o que os adultos fazem, como aprende, por exemplo, o banho de rio ou a nadar. Essa autora conta sobre passou o mês que passou entre os Galibi-Marworno:
Foi também através do assombro dos Galibi-Marworno sobre nosso modo de vida que pude me aproximar de algumas de suas ideias sobre ensinar e aprender, sendo que a mais importante a pontuar aqui é a de que “para uma criança aprender, crescer forte, entrar no ritmo da aldeia, é preciso Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Marcondes Namblá soltar” (nas palavras do Cacique Paulo Silva), ou seja, deixá-la solta com os primos e irmãos para brincar na aldeia. Só assim vai “criar o corpo da aldeia” (Tassinari, 2014: 165-166).
Durante o banho de rio, é comum ver adultos e crianças se banhando no mesmo local. Isso acontece porque as crianças não são proibidas de participar da vida cotidiana dos adultos, pois só assim é que conseguirão se tornar definitivamente pessoas Laklãnõ. Tradicionalmente, a prática de banhar-se no rio era um hábito de todos os Laklãnõ. Segundo as pessoas pesquisadas, assim que amanhecia, era costume de todos, antes de qualquer outra coisa, dar um mergulho nas águas geladas do rio. Acreditavam que um banho frio todas as manhãs rejuvenescia a pele e lhes fazia não ficar velhos de forma prematura.
Essa tradição continuou após o Vãnhkala e era praticada tanto pelos adultos quanto pelas crianças. Durante o banho de rio, praticavam diversas brincadeiras, das quais pude coletar algumas que apresentarei a seguir, dando a explicação de seus significados. Em alguns casos, usarei o termo em Laklãnõ, pois as brincadeiras tradicionais não têm tradução em português.
Durante o banho de rio, os adultos praticam suas brincadeiras entre eles e as crianças entre elas, pois as crianças não são capazes de competir contra os adultos. Contudo, os adultos têm muito cuidado com as crianças, principalmente quando alguma delas ainda não sabe nadar e, por causa disso, precisa receber atenção dos adultos para evitar um afogamento acidental. Assim, os adultos costumam banhar-se próximo às crianças para não perderem a atenção nelas. Em outros casos, os próprios adultos ensinam as crianças a nadar e também fazem demonstração de algumas práticas corporais para o aprendizado dos pequenos. As brincadeiras no rio, e o vocabulário associado a elas, são as seguintes:
Blo — Significa o ato de banhar-se no rio. Atualmente usa-se este termo para referir-se ao banho de chuveiro2.
Klo — Brincar.
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Kózy kónãg — Significa a prática de procurar uma pedra no fundo do rio. Jogase uma pedra e alguém diz "já" e todos os banhistas mergulham à procura da pedra lançada. Marca ponto o banhista que a encontrar primeiro. Praticava-se
O banho de rio vai muito além de um simples ato de higiene pessoal, pois envolve um aprendizado complexo da formação da pessoa Laklãnõ, enquanto que no chuveiro simplesmente acontece a higiene, sem aprendizado algum.
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O banho de rio, a Barragem Norte e as transformações nos processos de produção do corpo entre as crianças Laklãnõ
esta brincadeira para treinar a resistência embaixo da água, pois, no contexto Laklãnõ, ser um bom e resistente mergulhador rendia certo tipo de fama para o banhista.
Vãnh kugmẽg — Pega-pega no rio ou "pego", como dizem os Laklãnõ nos dias atuais. Escolhe-se um pegador e um fráio (local ou objeto no qual não podem ser pegos) e inicia-se a brincadeira. O pegador tenta pegar alguém que mergulha, o que lhe obriga pegador a mergulhar atrás dessa pessoa. Se o pegar, passa o poder de pegador para ele e a brincadeira segue. Goj kalãg — Significa o ato de atravessar o rio. Neste caso específico, atravessar a nado. Vários banhistas se desafiam para ver quem chega primeiro à outra margem do rio. Escolhem um local para o salto, e a pessoa que está coordenando o desafio — geralmente quem está fora do desafio — ordena que eles partam e assim começa a luta para chegar ao outro lado do rio. Algumas vezes o desafio é duplo, ou seja, os nadadores devem ir e voltar.
Vãzókágjãn — É uma brincadeira que se realiza com uma pessoa que lança as outras do seu ombro. Os que estão sendo lançados devem virar uma pirueta antes de caírem na água. Para isso, o lançador segura as duas mãos da pessoa a ser lançada e se agacha no fundo da água para que a pessoa possa subir em seus ombros, colocando um pé em cada ombro do lançador. Feito isso, o lançador toma impulso e lança a pessoa. Este mesmo tipo de brincadeira também é praticado de cima dos barrancos altos, nos quais os banhistas correm e se arremessam na água, fazendo piruetas antes de cair no rio. Hoje em dia, muitos banhistas Laklãnõ fazem saltos mortais, tanto de costas quanto de frente. Goj ki pun ge jó — Essa brincadeira é um desafio para saber quem consegue permanecer submerso por mais tempo. Há um coordenador que marca o tempo de cada banhista. Todos os participantes mergulham juntos e quem permanecer por mais tempo embaixo da água marca ponto. Quando alguém marca os pontos combinados previamente, a brincadeira é encerrada.
Goj jãnbe mẽ jym ge — Os banhistas preparam com lama do rio uma espécie de tobogã tradicional Laklãnõ e se deslizam por ele caindo na água. Geralmente os tobogãs são feitos em terrenos inclinados em direção ao rio. Os mais corajosos procuram um barranco alto. A adrenalina é mais forte e é mais emocionante, pois com a velocidade com que o banhista se desliza, ele chega a voar antes de cair no rio. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Kagklo gỹnh — Essa é uma brincadeira na qual os banhistas se desafiam para ver quem faz mais peixinhos, arremessando pedrinhas chatas sobre a água de forma que elas vão pulando e batendo nas águas até afundar. A cada batidinha que a pedra dá na água, o arremessador conta um ponto. Ganha quem fizer mais peixinhos. Tradução: Goj Bág mẽ Klo3 Blo: Vãtxỹ ka ãg tõ goj bág mẽ blo kég ke jó kabel vã, jãgló nã ũn tóg te li ãg tõ ãg nẽ jó ki blo kég ke tóg ha to nã, ãg tõ goj bág mẽ blo kég ke te tovanh mũ; Kózy Kónãg: Kózy te tõ óg goj te ki zun kũ kónãg gég ke jó kabel vã. Kózy te tõ goj te ki zun kũ óg, to ũn jãg jã te vũ óg mõ “vãha!” kég ke kũ óg gonh te ki pun ge kũ kónãg gég ke mũ. Ũn tõ kózy ã ta te ve vén mũ ã ta vũ vãnh mõ ũ lán gég ke mũ. Goj ki vãnh kugmẽg tõ klo kabel: - Ũ tõ óg kugmẽnh ke ha zãg vén gég ke óg mũ. - Vel ũn ki óg kugmẽg vanh zãg ban gég ke óg mũ. - Kól kũ óg vãha klo ké ke mũ. Kũ ũ tõ óg kugmẽg ke te óg du blo ké ke kũ óg ti jo gonh te ki pun gé ke kũ ta óg du ki pun ké ke mũ. Ti tõ ũ kagmẽg mũ ã ta ha vũ vãha mẽ óg kugmẽg gég ke mũ. Goj ka lãg ge jó: ãg glo jó tóg te ki óg ẽ blo ã ta te kũ goj bág te ka lãg gég ke mũ. Kũ óg zé vãtxo vagzun kũ ũ tõ goj jógtanh ũ te tá tavi vén mũ te jé óg jógzẽn gég ke vã. Kũ ũ tõ óg klo te ka óg blé jã tũ ha vũ óg mõ tõ lẽl jã kég ke mũ, kũ óg gonh zyl ũ kónã kũ ki vãnhõ blé goj te ki lãglãg gég ke mũ. Goj ki Vãzókágjãn: Ũn blo nõdẽ mũ óg ki ũ vũ óg zun kég ke mũ. Kũ ũ te óg ti jãnmõg klẽ japly kũ ta goj te ki óg zun kũ óg ẽ tõ goj ki vál jobág ki óg vãzókágjãn kég ke mũ. Ãgglo tó te óg vel goj jãn bel ki óg liké keg ke mũ. Kũ óg goj ti zyl tóg ge to ból ka mũ kũ lãglãg kég ke mũ. Goj jãnbe mẽ jym ge: gó kãnhglo tõ óg goj jãnbe to klẽ kagklél mẽ vin kũ ló mẽ jymjym gég ke mũ. Kagklo gỹnh: tóg te ki óg vũ, ũ tõ kózy tõ kagklo tõ goj kle blo tẽg hãta li tõ ken kég ke mũ. Kũ óg zé jóvig gég ke mũ. Kózy gỹnh tapél gég kũ óg lẽg gég ke kũ ta goj te mẽ txun txun tẽ ké ke ã ta to óg tõ kagklo gỹnh tan gég ke vã, Goj ki pun ge jó: Tóg te ki óg vũ, ũ tõ goj ki pun ke téj ve jé óg jóvig gég ke vã. Kũ ũ 3
Tradução do autor deste trabalho, com revisão e correção de Namblá Gakran, linguista Laklãnõ.
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óg tõ zãg mũ ã ta te há vũ óg mõ tõ lẽl jã kég ke mũ. Kũ óg vãjõ blé goj te ki pun gég ke mũ. Ũ tõ ũn te óg pate goj te klãm nẽ téj mũ ã ta vũ vãnh mõ lán gég ke mũ. Kũ óg, ẽ tõ vãnhklẽ tõ klõg ge kan ã ta te kũ óg ẽ klo te kógtãm kég ke mũ.
Seguem algumas imagens das brincadeiras no rio:
Figura 1: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013.
Figura 2: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013.
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Figura 3: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013.
Figura 4: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Figura 5: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013.
Figura 6: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013.
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Figura 7: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013.
Figura 8: Brincadeiras no rio.
Fonte: Fotografia de Marcondes Namblá, 2013. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Essas são algumas das brincadeiras praticadas pelos Laklãnõ durante o seu banho de rio. É bom ressaltar que todas as brincadeiras aqui citadas são praticadas por todos os banhistas, independentemente de idade ou gênero. O que diferencia as competições é que os adultos disputam entre si e crianças entre crianças. As mulheres não são separadas dos homens na prática dessas brincadeiras e as praticam conjuntamente com eles.
Nesse contexto, é preciso destacar também que o modo tradicional do banho de rio sofreu algumas alterações após a construção da Barragem Norte. Um dos principais efeitos gerais sofridos pelo povo Laklãnõ que afetou na prática do tema em questão foi a divisão de uma única aldeia em várias outras, pois, desde a primeira enchente ocorrida nos anos 80 (cf. Fraga; Simas, 2010), o povo se dispersou do vale para as encostas dos morros, surgindo assim novos povoados, que hoje são todos aldeias, num total de oito.
Essa saída para outras regiões da TI gerou a divisão coletiva do povo entre si e consequentemente a divisão política, o que desestruturou o sistema de organização social tradicional Laklãnõ. Então os prejuízos não foram unicamente ambientais como se pensa. A Barragem Norte causou um impacto socioambiental. Esse termo talvez dê conta de interpretar o sentimento que os Laklãnõ hoje têm ao se referirem a esse empreendimento tão importante para a sobrevivência da população do Vale do Itajaí. Segundo Fraga e Simas (2010: 11):
A década de 1970 seria marcada por modificações profundas na vida do aldeamento. A construção da Barragem Norte colocaria as terras aráveis, a madeira das margens do rio e as benfeitorias em condições de alagamentos, gerando numerosos conflitos entre índios e madeireiros. Tal processo causou um enorme desgaste econômico, político, ambiental e social, inserindo a comunidade indígena num alto contexto de tensões, que passou pelos anos de 1980, 1990, 2000 e continuarão por muitas décadas, ainda, neste século, até que se encontre uma solução definitiva para os problemas inerentes aos índios de José Boiteux – a pobreza a que foram introduzidos e sua dependência em relação à sociedade regional –, mas, e acima de tudo, até ser possível evitar a irracional exploração das riquezas naturais da Reserva.
Pontuando a dimensão da barragem, estes autores destacam:
A Barragem Norte está localizada a 12 km a montante da cidade de José Boiteux. Sua bacia hidrográfica controla uma área de 2.318,00 km². Tal obra de engenharia é considerada a maior barragem brasileira com finalidade de contenção de cheias (Fraga; Simas, 2010: 5). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Após a construção da barragem, o que se pode ver até os dias atuais é que, nos anos iniciais após sua construção, o nível do rio aumentou significativamente, tornando as águas que antes eram límpidas em águas turvas, barrentas e impróprias para o banho. Conforme o tempo foi passando, o que mais aconteceu é que todo o rio criou lodo, o que deixou as águas com um cheiro desagradável e afastou por muitos anos os banhistas, que não se interessavam mais pelo banho de rio. Isso fez surgir uma geração que desconhece a arte de nadar e de praticar as brincadeiras de rio que praticavam as gerações anteriores. Os barrancos, que antes da barragem eram muito apreciados pelos Laklãnõ, agora se encheram de lama, o que os deixou sem condições de serem utilizados. Além disso, a mata ciliar, que era imprescindível para o ciclo de vida no rio, hoje se encontra toda desvitalizada, o que gera uma grande quantidade de entulhos na época de cheias e também contribuiu para o desaparecimento de muitas espécies de peixes. Esse é o caso do cascudo, que vive em lugares pedregosos e nos dias atuais se encontra só abaixo do eixo da barragem, porém em pouca quantidade.
Os Laklãnõ e seus locais de banho de rio antes e após a construção da Barragem Norte
O Rio Hercílio ou Itajaí do Norte é o principal afluente da margem esquerda do Rio Itajaí-Açu, que é formado pela confluência dos rios Itajaí do Oeste e Itajaí do Sul na cidade de Rio do Sul, 12 km a montante da cidade de José Boiteux (FRAGA; SIMAS, 2010). Suas águas de cor escura remetem muito à paisagem local, que é formada pela floresta ombrófila densa que caracteriza a floresta atlântica. O seu leito atravessa a TI de norte a sul, atualmente passando pelas aldeias Coqueiro, Figueira e Palmeirinha, que ficam à sua margem esquerda. Já as aldeias Toldo, Sede e Pavão ficam à margem direita. Há ainda a aldeia Bugio, que se situa a 60 km da margem direita do Hercílio, numa região de planalto, e a aldeia Barragem, criada em setembro de 2010, situada basicamente no antigo canteiro de obras da Barragem Norte e cujo perímetro abrange as terras indenizadas pela construção da barragem e que foram doadas para usufruto da comunidade indígena Laklãnõ através de um convênio assinado pelo extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e pela comunidade indígena no ano de 1981.
Para entendermos um pouco mais a respeito da temática aqui abordada, devemos mergulhar um pouco na história do povo Laklãnõ. Em relação à sua organização social tradicional, podemos dizer que os Laklãnõ se estruturavam em grupos exogâmicos que se identificavam por nomes pessoais e pinturas corporais e que, após o Vãnhkala, passaram Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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por uma série de arranjos e para uma quase que total dependência da sociedade regional. Segundo Goulart e Fraga (2000) (apud Fraga; Simas, 2010: 10):
Depois dos dramáticos acontecimentos da pacificação, representando uma dolorosa fase de adaptação dos Xokleng à sociedade regional e às agências governamentais, o papel de Hoerhann passou a ser o de forçar os índios a assimilar os elementos culturais da civilização europeia e evitar a contaminação por doenças; isso, porém, não ocorreu. Um dos maiores impactos sofridos pelos Xokleng no contato com os não-índios foram as doenças que estes lhes transmitiam.
Esses autores mencionam muito bem as consequências dramáticas ocorridas para o povo Laklãnõ após o Vãnhkala, e isso apenas foi o início da tragédia cultural que continuaria anos mais tarde com a construção da Barragem Norte. Dentre outros marcos deixados pela Barragem Norte na cultura Laklãnõ, citamos também o envolvimento de trabalhadores não-indígenas da barragem com os Laklãnõ, o que deu abertura ao que alguns Laklãnõ denominam de miscigenação e fez surgir uma nova classe de Laklãnõ, se é que podem ser assim considerados. Surgem então os mestiços, como bem dizem os meus interlocutores Laklãnõ quando se referem aos descendentes de casamentos entre Laklãnõ e não-indígenas. Embora essa prática tenha sido implantada entre os Laklãnõ por Katagãl4 anos após o Vãnhkala, o qual proporcionou o casamento entre um índio e uma descendente de imigrantes italianos em Ibirama, durante a construção da Barragem Norte essa prática tornou-se livre entre o povo. Em muitos casos os pais preferiam que a filha moça se casasse com um branco a que se casasse com alguém de sua própria cultura. Isso demonstra que o povo Laklãnõ, assim como todos os povos indígenas do Brasil, sofreu na pele a política governamentista de integração das populações indígenas à comunhão nacional.
E, no mundo das crianças Laklãnõ, o que aconteceu com a construção da Barragem Norte? Bem, se olharmos para vários aspectos da infância Laklãnõ, veremos que as crianças sofreram as mesmas consequências que os pais e mesmo mais. Uma vez que, tradicionalmente, o povo Laklãnõ se constituía numa coletividade social, na qual tudo era dividido entre todo o grupo, os alimentos, as casas e as lavouras eram do coletivo e não havia qualquer forma de opressão causada pela lógica do progresso, as crianças, também, além de dividirem o alimento, dividiam os mesmos espaços e territórios para as suas brincadeiras e, o que é mais importante, dividiam também a aprendizagem e vivência no
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Katagãl era o nome pelo qual os Laklãnõ chamavam Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, funcionário do SPI responsável pelo primeiro contato pacífico com os Laklãnõ em 22 de setembro de 1914.
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mundo tradicional em que estavam inseridas. Com a chegada da barragem e da divisão estrutural do povo devido à enchente do rio, as crianças tiveram que se afastar uma das outras para seguirem os pais. Essa foi uma mudança mais que radical, pois eles deixaram de estar juntos dividindo os mesmos espaços e territórios. Já falei do contexto tradicional de brincar e da prática do banho de rio, falei sobre a Barragem Norte e as consequências que ela causou para a população Laklãnõ e principalmente a respeito de como essa imensa obra de engenharia afetou a forma da prática do banho de rio, principalmente através da poluição das águas e da divisão do povo. Agora vou falar dos locais onde se praticava e onde atualmente se pratica o banho de rio.
Durante os anos iniciais do Vãnhkala, a prática do banho de rio se realizava em dois pontos principais da TI. O primeiro ponto ficava em frente da casa de Katagãl, como podemos tentar imaginar através da foto abaixo, de fonte desconhecida5.
Figura 9: TI Laklãnõ depois do Vãnhkala. Fonte: desconhecida.
Como se vê na imagem, há uma torre no fundo da foto bem próxima da margem do rio. Esse era o local, naquela região, segundo me foi informado, em que as crianças praticavam o banho de rio, uma vez que seus pais trabalhavam na lavoura do outro lado do rio. Quando digo que havia dois pontos principais para o banho de rio é porque o leito do Rio Hercílio era raso em vários pontos, e por isso se procurava um ponto com mais 5
Esta foto foi enviada para mim por Rafael Casanova Hoerhan e por isso desconheço a fonte.
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profundidade para o banho.
O segundo ponto mais utilizado para o banho de rio ficava de frente à primeira sede do Posto Indígena Duque de Caxias, atual aldeia Sede, por se tratar do centro do Posto e também porque a grande maioria dos Laklãnõ morava naquelas proximidades. Anos mais tarde, foi construído um campo de futebol e os jovens que praticavam o futebol banhavam-se lá nos finais de semana. Pouco tempo depois, mais precisamente nas décadas de 1970 e 1980, antes do
rio encher por conta da Barragem Norte, a Prainha começou a ser frequentada. Prainha era o nome que foi dado a um local que fica a uns 200 metros acima da primeira sede do posto, à margem esquerda do Rio Hercílio. Consistia numa área formada de pedrinhas e cascalhos finos que dava uma aparência de praia. O local foi inundado pela cheia do lago da Barragem Norte. Esse foi um dos locais mais frequentados durante aqueles anos, tanto por crianças, quanto pelos adultos, inclusive por não-indígenas da região e peões da obra da barragem. Esse lugar foi o local de muitos encontros das jovens Laklãnõ com os brancos, dos quais surgiram alguns casamentos e alguns casos de gravidez não assumida pelos pais. Fiz algumas buscas na tentativa de encontrar alguma imagem da Prainha, mas até o presente momento não consegui porque o tempo também não o permitiu. Algumas pessoas me disseram que, se eu fosse com mais tempo, juntamente comigo pegariam suas coisas e procuraríamos suas fotos antigas, já que possivelmente poderíamos encontrar imagens da década de 80 desse famoso lugar, e também da antiga sede.
A Barragem Norte foi concluída no ano de 1989 e inaugurada no ano seguinte (Fraga; Simas, 2010). Como até aquele momento o convênio de 1981 não havia sido cumprido pelo DNOS, os líderes Laklãnõ resolveram invadir o canteiro de obras da barragem para pressionar o governo federal a cumprir o prometido. De março de 1990 a maio de 1992, os Laklãnõ ocuparam o canteiro e só aceitaram sair, para que a empresa construtora pudesse ter acesso a seus maquinários, que havia sido interditado pelos indígenas, porque o DNOS decidiu pagar uma parte da indenização em dinheiro e também assinou um novo documento chamado Protocolo de Intenções, no qual foram reafirmadas as benfeitorias em prol dos Laklãnõ, previstas no convênio de 1981.
Com a greve em ebulição, os jovens e as crianças tiveram que se adaptar à nova moradia e à sua nova realidade e território. Durante a greve, que para os Laklãnõ significa o movimento organizado em defesa de seus direitos, os jovens recriaram a prática do banho de rio, utilizando o local que chamavam de motor. Esse nome se deve ao fato de que a bomba de captação de água para as famílias do canteiro de obras ficava no mesmo local, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ao lado do barranco do qual os banhistas pulavam durante o banho.
Após a saída do canteiro de obras da Barragem Norte, mais precisamente no ano de 1993, os Laklãnõ praticavam o banho de rio em diversos pontos da TI. Contudo, não eram lugares específicos como a Prainha, por exemplo. No ano de 1996, ocorreu a retomada das terras onde atualmente se localiza a aldeia Palmeirinha e como no princípio do movimento a comunidade se acampou em barracos à beira do Rio Hercílio, a prática de banho de rio tornou-se comum. O local escolhido era chamado de porto da Juklug, nome de uma senhora que mora naquela região até os dias de hoje.
Atualmente os moradores da aldeia Barragem praticam o banho de rio nas proximidades da ponte velha, conforme é possível ver nas fotos a seguir. Nesse local, várias crianças, jovens e adultos se reúnem nos finais de semana para curtir as águas geladas do Rio Hercílio.
Figura 10: Banho de rio nas proximidades da ponte velha. Fonte: Fotografia de Marcondes Nambla, 2013.
Figura 11: Banho de rio nas proximidades da ponte velha. Fonte: Fotografia de Marcondes Nambla, 2013.
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Figura 13: Banho de rio nas proximidades da ponte velha. Fonte: Fotografia de Marcondes Nambla, 2013.
Como relatado anteriormente, blo, banhar-se, hoje também é um termo usado para o banho de chuveiro. Essa parte do banho de rio, que trata da higiene, hoje pode ser feita em cada casa, não envolve mais a brincadeira e a aprendizagem coletiva. Já o klo, a brincadeira, continua sendo realizada normalmente pelas crianças em dias de banho de rio. Os banhistas de outras aldeias encontraram nas cachoeiras os lugares perfeitos para saciar a vontade de se banhar. Nos dias de verão, as duas cachoeiras mais famosas da TI recebem vários banhistas nos finais de semana. Tem a Cachoeira Esmeralda, do Rio Platê, afluente do Rio Hercílio, situada na aldeia Sede, e a Cachoeira do Veado, na aldeia Pavão. Podemos ver a Cachoeira Esmeralda na figura abaixo:
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Figura 14: Cachoeira Esmeralda, na aldeia Sede. Fonte: Fotografias de Eber Ricardo Kaipã Ndili6, 2011.
A seguir, apresento imagens de banhistas na Cachoeira do Veado, situada na aldeia Pavão, local onde banhistas de toda a TI se encontram nos finais de semana, da mesma forma que acontece na Cachoeira Esmeralda da aldeia Sede. São dois lugares estratégicos nos dias quentes para fugir do intenso calor do verão.
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Sobrinho meu e morador da aldeia Palmeirinha da TI Laklãnõ.
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Figura 15: Cachoeira do Veado, na aldeia Pavão. Fonte: Fotografias de Idalina Priprá, 2013.
Segue uma única imagem que mostra ao leitor que na aldeia Sede também existe outra cachoeira com o nome de Cachoeira do Encontro, mas que é pouco visitada pelos banhistas Laklãnõ pelo fato dela ficar em meio à mata fechada, o que torna suas águas muito geladas e afasta os banhistas. Apenas alguns jovens corajosos se embrenham na mata para curtir essa beleza natural, como podemos ver abaixo:
Figura 16: Cachoeira do Encontro.
Fonte: Fotografia de Eber Ricardo Kaipã Ndili, 2013.
A prática do banho de rio é a principal atividade corporal praticada pelos Laklãnõ e é muito importante, pois engloba aprendizagem, diversão e a produção de um corpo saudável. O que me deixa triste é saber que as águas do Rio Hercílio, que outrora, gostosas e límpidas, abrigavam os corpos dos banhistas Laklãnõ, hoje se encontram sujas e poluídas e estão perdendo sua importância para a prática do banho devido à Barragem Norte, que Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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levou consigo uma prática milenar desse povo, o qual busca hoje satisfazer sua vontade de se banhar nas geladas cachoeiras. Não digo que seja ruim banhar-se numa cachoeira, mas no rio havia mais espaço para a prática das diversas brincadeiras que fazem parte do banho de rio.
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Convite da organizadora do dossiê, recebido em 18 de março de 2019. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 330-346.
O que a Antropologia da Criança pode fazer pela construção intercultural dos direitos das crianças no Brasil? Assis da Costa Oliveira Professor de Direitos Humanos da Universidade Federal do Pará Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília assisdco@gmail.com
Resumo As etnografias com crianças em contexto de diversidade cultural vêm interpelando o campo antropológico para a reconstrução de referenciais teóricos e metodológicos, como os ligados às ideias de cultura e de socialização. Porém, trata-se também de informações e formas de análise da realidade sociocultural que colocam em pauta lógicas plurais de construção da infância em seus múltiplos meandros sociais e questionam o modo como o Estado normatizou os direitos das crianças e o tratamento da diversidade cultural no campo institucional da rede de proteção. Com base em pesquisa bibliográfica e vivência profissional do autor, o presente trabalho objetiva analisar o modo como a Antropologia da Criança no Brasil vem contribuindo para rediscutir as bases culturais das normatizações dos direitos das crianças e a forma de tratamento dos agentes envolvidos em suas aplicações, buscando abordá-la como subsídio científico para a reconfiguração intercultural desses direitos e serviços. Palavras-Chave: Antropologia da Criança; Direitos das Crianças; Interculturalidade; Povos e Comunidades Tradicionais.
Abstract Ethnographies with children in a context of cultural diversity have been challenging the anthropological field for the reconstruction of theoretical and methodological references, such as ideas of culture and socialization. However, it is also an information and analysis of the socio-cultural reality that put into question plural perspectives on childhood construction in its multiple social meanders and problematize the way in which the State has normalized children’s rights and the treatment of cultural diversity in the institutional
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field of the protection network. Based on a bibliographical research and the author’s professional experience, the present work aims to analyze how the Anthropology of Children in Brazil has been contributing to rediscuss the cultural bases of the norms of the children’s rights and the treatment the agents involved give to their applications, seeking to approach it as a scientific subsidy for the intercultural reconfiguration of these rights and services. Keywords: Anthropology of Childhood; Children’s Rights; Interculturality; Traditional People and Community.
Introdução A pergunta que fundamenta o título do presente artigo foi influenciada pelo trabalho de Pires (2010), intitulado: “O que as crianças podem fazer pela Antropologia?”1. Nesse artigo, a autora se interroga sobre como os estudos etnográficos com as crianças podem conduzir À revisão de conceitos centrais do campo antropológico, especialmente de socialização, sociedade e cultura, objetivando a superação de aportes teóricometodológicos “obsoletos” e evidenciando um papel distinto, mais interativo e ativo, das crianças nas relações que estabelecem com os indivíduos dos seus contextos socioculturais de vida.
Certamente, as pesquisas etnográficas com crianças, ao interpelarem o campo antropológico para a reconstrução de referenciais teóricos e metodológicos, não circunscrevem os efeitos de suas críticas apenas à Antropologia, sendo conteúdos que questionam – ou possibilitam o questionamento – do modo como outros campos do conhecimento científico, particularmente o Direito, e a administração político-jurídica do Estado produzem suas formas de compreensão e intervenção sobre as crianças. Trata-se de interpelação que se intensifica na medida em que os saberes antropológicos adentram os espaços de formação e/ou de atuação profissional dos sujeitos envolvidos na tessitura das práticas da rede de proteção, é dizer, do conjunto de instituições e sujeitos que operacionalizam a gestão dos serviços e dos direitos das crianças. E, concomitantemente, uma interpelação também intensificada pela presença, cada vez maior, de profissionais da Antropologia que ora desenvolvem pesquisas etnográficas em instituições da rede de proteção (ou que interrogam as condições de produção dos direitos das crianças), ora incorporam-se como parte das equipes multidisciplinares destes serviços, ainda que este último aspecto seja um desafio maior para adequada efetivação, 1
Pires (2010) explica que este título é uma homenagem ao trabalho de Otávio Velho (1998), cujo título centrava-se numa pergunta: “O que a religião pode fazer pelas ciências sociais?”.
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O que a Antropologia da Criança pode fazer pela construção intercultural dos direitos das crianças no Brasil?
como trabalharei mais adiante no texto.
Em suma, há um campo fértil de interlocução entre a Antropologia da Criança, o Direito e o Estado que vem contribuindo para rediscutir as bases culturais das normatizações dos direitos das crianças e a forma de tratamento dos agentes envolvidos em suas aplicações prático-discursivas, buscando abordá-las como subsídio científico para a reconfiguração desses elementos ante a desnaturalização de concepções universais de entendimento da infância e o olhar mais atento aos significados sociais emanados dos contextos e das interações sociais das e com as crianças. Assim, ao propor a interrogação do que pode fazer a Antropologia da Criança para a construção intercultural dos direitos das crianças no Brasil, procuro caminhar em dois sentidos complementares. De um lado, analiso um conjunto de elementos que possibilitam o aproveitamento dos “ganhos” desse campo teórico para a (re)construção dos direitos das crianças desde uma perspectiva intercultural, é dizer, que tenha um cuidado e uma qualidade mais adequados ao tratamento com as crianças, com ênfase àquelas pertencentes a povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais – contribuindo para a consolidação de um paradigma jurídico complementar à Doutrina da Proteção Integral, vigente no Brasil desde a promulgação da Constituição Federal de 19882, e que
venho designando por Doutrina da Proteção Plural (Oliveira 2014a), numa filiação teórica à interculturalidade e à descolonialidade dos direitos. Por outro, aportarei reflexões sobre a inversão da pergunta ou o olhar pela dimensão negativa dela, é dizer, os limites e o tensionamento do que “não pode” a Antropologia da Criança – e, de maneira mais ampla, o campo antropológico (saberes e sujeitos) – para a operacionalização intercultural dos direitos das crianças, sobretudo ante a integração dos antropólogos e das antropólogas na rede de proteção.
A base metodológica do trabalho situa-se tanto na pesquisa bibliográfica, quanto na prática profissional desenvolvida nos últimos oito anos, desde o olhar de quem, não sendo formado na Antropologia, aprendeu a apreender as possibilidades de interlocução interdisciplinar deste campo acadêmico com o meu de trato diário, o Direito, e, mais especificamente, os direitos das crianças. 2
No Brasil, a base normativa da Doutrina da Proteção Integral é o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, assim disposto: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Brasil 1988). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Antropologia da Criança e direitos das crianças: possibilidades e desconstruções Desde 2010 desenvolvo pesquisas e atividades de formação continuada com diferentes agentes da rede de proteção sobre o tema dos direitos das crianças indígenas (ou das indígenas crianças3, como estruturei conceitualmente), em que os conteúdos da Antropologia da Criança são o pontapé inicial e fundamental para o questionamento da construção universal e adultocêntrica dos direitos das crianças a partir da cristalização normativa, e de senso comum, de uma “infância ideal e passiva” que passa a balizar as lógicas de intervenção socioestatal sobre as crianças4.
Nisso, o trabalho com a perspectiva conceitual de socialização desde uma concepção dinâmica e historicizada de cultura (Silva & Nunes 2002; Cohn 2005, 2013; Pires 2010; Nunes & Carvalho 2010) e a interlocução interdisciplinar com a História e a Sociologia para análise da construção do(s) paradigma(s) moderno(s) da infância (Ariès 1989; Tumel 2008; Weinmann 2014) possibilitam explicitar, e ao mesmo tempo desconstruir, as bases histórico-culturais ou, para recuperar um termo de Santos (2006), o localismo globalizado do processo de estruturação social, normativa e científica da infância, muito em decorrência, no campo jurídico, da influência da Psicologia do Desenvolvimento, para o estabelecimento da compreensão do desenvolvimento infantil e dos marcadores hegemônicos que o identificam5.
Por um lado, a abordagem desconstrutiva ou desnaturalizadora da produção histórico-cultural da infância proporciona a identificação e a problematização das relações de poder que instituíram condições assimétricas de valoração, classificação e intervenção sobre as crianças de determinados grupos sociais, cuja produção da infância destoa dos padrões universais estabelecidos. Isto engendrou, tal como aponta Schuch, a 3
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A inversão de crianças indígenas para indígenas crianças é resultado dos aportes advindos da Etnologia Indígena, da Antropologia da Criança e da Antropologia do Corpo, que situam as concepções socioculturais de pessoa e os mecanismos de intervenção sobre os corpos como elementos centrais para o entendimento das construções indígenas sobre o que é “ser criança”, e, assim, permitem o deslocamento do referencial da fabricação da infância para a precedência dos elementos étnicoculturais que o estruturam. Tais questões, a meu ver, implicam, inclusive, na dimensão ocidental da dignidade da pessoa humana, e das possibilidades de realizar a tradução intercultural deste valor para o diálogo com os povos indígenas e servir como fundamento dos direitos das indígenas crianças. O detalhamento deste assunto encontra-se em Oliveira (2014a). Denomino o curso de “Aplicabilidade Intercultural dos Direitos das Crianças Indígenas”, cuja reflexão aprofundada sobre seus aportes e experimentações está presente em Oliveira (2016). Aprofundo a interseção entre Psicologia do Desenvolvimento e o campo de regulação jurídica da infância num outro trabalho (Oliveira 2014b), de modo a problematizar os aspectos positivos e negativos da internalização desse preceito nos direitos das crianças e as possibilidades de tradução intercultural da categoria pessoa em desenvolvimento via reconhecimento da pluralidade de construções socioculturais da pessoa e, nisto, também da infância.
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O que a Antropologia da Criança pode fazer pela construção intercultural dos direitos das crianças no Brasil? possibilidade de que um mesmo instrumento legal possa beneficiar uma parcela da população em detrimento da opressão de outra, tratando-se da implantação de legislações que pressupõem igualdade num contexto de desigualdade social, o que tem por efeito, muitas vezes, o acirramento de relações de dominação sobre grupos específicos da população (2003: 161).
De outro, abre-se também a percepção para a reconsideração dos valores, das realidades e das vozes das “infâncias invisibilizadas” pelo reconhecimento de que “o que é ser criança, ou quando acaba a infância, pode ser pensado de maneira muito diversa em diferentes contextos socioculturais” (Cohn 2005: 22). Portanto, da apreensão da pluralidade de expressões culturais de simbolização das infâncias imersa no campo mais amplo de fabricação de pessoas e corpos (Cohn 2013; Tassinari, 2007) e imbricada na compreensão geertziana de “saber local” (Geertz 1998), ou seja, dos sentidos e significados que os agentes sociais, em suas práticas e interações, estabelecem sobre as crianças (e seus direitos) como parte de uma maneira específica de imaginar a realidade e as relações/ classificações geracionais. Tão importante quanto teorizar sobre a diversidade dos modos de simbolizar a infância é analisar o conteúdo etnográfico das vivências concretas das crianças em suas sociedades e culturas6. A experiência de leitura e compreensão de realidades distintas e
complexas que conformam o “ser criança”, do nascimento à passagem para a vida adulta, passando pela educação, sexualidade, trabalho e cuidado familiar, entre outros aspectos, provoca um correlato “estranhamento” aos modos hegemonicamente estabelecidos em “nossa” sociedade para representar e valorar a infância. Assim, abre-se a possibilidade de pensar as “outras infâncias” como substrato do reconhecimento da legitimidade de produção cultural de determinados grupos sociais, especialmente os etnicamente diferenciados7, assim como da identificação de elementos transculturais que perpassam
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Ao invés de listar as referências bibliográficas de etnografias de minha leitura, sugiro a verificação da ampla lista contida no Blog Antropologia da Criança, pelo link: http://antropologiadacrianca.blogspot. com.br/ Concordo com Cohn de que o exercício de relativização da infância não pode resultar num inventário de infâncias possíveis, mas “perceber, sempre, que o modo como se pensa a experiência que as crianças podem e devem ter, informa o modo como se age sobre elas e também informa (mas não determina) o modo como elas agem sobre o mundo” (2013: 227). Assim, a afirmação das especificidades do “ser criança” deve advir com o controle redobrado para evitar a produção de especificidades paralisadas no tempo ou representadas num estereótipo a-histórico das diferenças culturais dos grupos sociais. Isto porque, em todos os casos, as especificidades são dinâmicas, pois tais grupos sociais possuem uma heterogeneidade interna de sujeitos e relações sociais, assim como uma dinâmica histórico-cultural permanente de reinvenção das especificidades do “ser criança”. Portanto, também de reinvenção das mediações entre especificidades locais e os direitos das crianças. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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as diferentes expressões da infância.
Aliado à compreensão da diversidade de construções socioculturais da infância, a Antropologia da Criança também postula a revisão do olhar sobre a capacidade de agência das crianças na produção da cultura e na constituição das relações sociais em que se engajam, com especial atenção aos grupos de pares e à interação com os adultos, “subentendendo-se que a criança não só participa, mas que sua participação pode adicionar algo à vida social, transformando-a” (Nunes & Carvalho 2010: 79).
Portanto, desigualdade, diversidade e agência são três elementos teórico-conceituais de elaboração crítica pela Antropologia da Criança que tensionam a problematização e reconsideração dos componentes sociais, normativos e científicos de embasamento dos direitos, das políticas públicas e das ações dos agentes (crianças e adultos). Paralelamente, a radiografia dos mecanismos ocidentais (ou nacionais) de estruturação dos direitos das crianças, e toda a engenharia socioestatal que se estrutura a partir disso, ao encontrar-se com outros mecanismos culturais de simbolização das infâncias e dos direitos que lhes cabem, inclusive numa perspectiva de pluralismo jurídico, também se defronta com os limites ou as incompletudes socioestatais de compreensão, interlocução e intervenção sobre estas “outras” dinâmicas de produção das infâncias e interação das crianças com seus contextos de vida social.
É justamente aqui, no campo de ação cotidiana de atendimento aos “problemas sociais” ou às “violações de direitos” das crianças, que o saber antropológico tem mais a contribuir, não apenas enquanto conhecimento a ser apropriado pelos sujeitos da intervenção, mas com profissionais (antropólogos e antropólogas) e métodos de produção de conhecimentos que passam a disputar as lógicas de concepção e de exercício práticoinstitucional dos direitos das crianças.
Antropologia e rede de proteção: marcos jurídicos da obrigatoriedade da presença de sujeitos e saberes antropológicos
Em 2009, houve a edição da Lei nº. 12.010, popularmente conhecida como Nova Lei da Adoção, que estabeleceu a revisão normativa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº. 8.069/1990) para instituir a obrigatoriedade, no caso dos procedimentos judiciais de colocação em família substituta de crianças (e adolescentes) de povos indígenas e comunidades quilombolas, da “intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso” (Brasil 2009. Grifos nossos).
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Passados cinco anos, em 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou o Provimento nº. 36, determinando aos Tribunais de Justiça Estadual a realização de convênios (não onerosos) com entidades8 que atuam junto aos povos indígenas, às comunidades quilombolas e às “outras etnias”, como define o documento, “de modo a selecionar e credenciar antropólogos em feitos envolvendo crianças e adolescentes oriundos destas e de outras etnias” (Conselho Nacional de Justiça 2014: 3), em cumprimento à revisão normativa empreendida pela Lei nº. 12.010/2009.
Em 2016, o então Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) elaborou o documento “Orientações Técnicas de Trabalho Social com as Famílias Indígenas”, destinado aos serviços da rede socioassistencial, no qual há orientação para que tais serviços possuíssem “equipe de referência multidisciplinar, que deve contar com antropólogo e/ ou indigenista experiente e/ou com assessoria antropológica” (2016: 38. Grifos nossos). Em dezembro do mesmo ano, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) aprovou a Resolução nº. 181/20169, contendo orientação à
aplicação dos direitos das crianças no contexto de povos e comunidades tradicionais, em complemento à Resolução nº. 91/200310 do CONANDA, ainda vigente. Esta nova resolução 8
Ao contrário da formalização de convênios “não onerosos” com entidades, deveria se optar pela realização de concursos públicos para inserção permanente do antropólogo ou da antropóloga como parte da equipe multidisciplinar. Em reforço, Vilhota (2014) indica que “[n]o ponto, oportuno mencionar que a oitiva de antropólogo é uma providência a ser realizada pela equipe interprofissional do juízo da Infância e da Juventude, não se conferindo ao Judiciário a possibilidade de transferir o custo [e os honorários] dessa obrigação legal à FUNAI [Fundação Nacional do Índio]”. De mais grave é o fato de alguns tribunais de justiça, como os localizados no Mato Grosso do Sul, desenvolverem um processo de oitiva dos antropólogos que não perpassa a produção de perícia antropológica, mas a simples escuta ou depoimento em determinado momento do processo judicial, por terem conhecimentos dos costumes indígenas e de outros grupos étnicos. Isto reduz o potencial interventivo do profissional da Antropologia na produção de conhecimentos – e de convencimentos – sobre os casos tratados, além de gerar riscos à estereotipização dos grupos étnicos e da produção de informações desatualizadas à dinamicidade das culturas e os modos de vida de povos e comunidades tradicionais, pois, com este procedimento, basicamente abdica-se do trabalho etnográfico de campo, e passa-se a se embasar naquilo que já foi produzido de informações sobre determinado povo ou comunidade tradicionais, e as questões relacionados às suas crianças. 9 A proposta original, encaminhada pela Associação Sara Mayle Kali (AMSK) em março de 2016, só foi possível de ser estruturada devido à presença de conselheiras (Elisa Costa e Lucimara Cavalcante) do CONANDA que são representantes do povo Romani (os assim chamados ciganos) e membros da ASMK, as quais passaram a intensificar o debate interno sobre diversidade cultural e direitos das crianças. Atuei na equipe de assessoria da Associação para a elaboração da proposta-base da nova Resolução e a negociação dentro do CONANDA, junto a Estela Scandola (ESP/MS), Esequiel Roque (OAB/RO) e Humberto Miranda (UFRPE). 10 A Resolução nº. 91/2003 apresenta um único artigo, com o seguinte texto: “Art. 1. Firmar o entendimento esposado pela Assembléia Ordinária do CONANDA, realizada nos dias 14 e 15 de maio de 2003, no sentido de que se aplicam à família, à comunidade, à sociedade, e especialmente à criança e ao adolescente indígenas as disposições constantes da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, observadas as peculiaridades sócio-culturais das Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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apresenta medidas para estruturação do que denomina por “serviços culturalmente adequados” da rede de proteção, dentre as quais: “b) Inserção de profissionais de quaisquer áreas de formação com conhecimento das tradições e costumes dos Povos e Comunidades Tradicionais ou de profissionais oriundos de Povos e Comunidades Tradicionais na equipe técnica das instituições do Sistema de Garantia de Direitos, especialmente nas cidades e regiões com a presença de Povos e Comunidades Tradicionais”11 (CONANDA 2016).
O que estas regulamentações vigentes sinalizam é o deslocamento do patamar de participação do profissional e do saber antropológico na rede de proteção do referencial da possibilidade para o da obrigatoriedade, ainda que restrito a poucas instituições, basicamente das áreas de Assistência Social e Poder Judiciário, com exceção da nova Resolução do CONANDA, que visa estender para toda a rede de proteção a inserção deste/ desta profissional. Os documentos jurídicos também delineiam o campo temático de legitimidade da intervenção do saber e do/da profissional da Antropologia, relacionado ao contexto sociocultural de povos indígenas, comunidades quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Isto certamente configura-se como um “ganho” afirmativo da Antropologia da Criança para a construção intercultural dos direitos das crianças, na medida em que permite sua incorporação nas práticas dos antropólogos e das antropólogas que passam a exercer os cargos nos órgãos da rede de proteção, além de possibilitar a circulação e interconexão desses conhecimentos, junto com outros do campo antropológico, no trabalho das equipes multidisciplinares.
No entanto, os documentos jurídicos apenas definem os lugares “autorizados” (ou regulamentados) da ação antropológica na rede de proteção, mas não o procedimento a ser adotado e a forma de interação com os demais saberes/profissionais existentes. Para isso, cabe discutir qual o papel do antropólogo e da antropóloga nos espaços “autorizados”
comunidades indígenas” (CONANDA 2003). 11 Importante mencionar que a proposta original deste texto, apresentado pela AMSK, era a seguinte: “[i] nserção de profissionais de formação antropológica ou de profissionais oriundos de Povos e Comunidades Tradicionais na equipe técnica das instituições do Sistema de Garantia de Direitos, especialmente nas cidades e regiões com relevante presença de Povos e Comunidades Tradicionais” (2016: 4. Grifos nossos). A mudança deveu-se à compreensão geral, dentro do CONANDA, de ampliar a priorização da inserção de profissionais com formações acadêmicas diversas que tenham competências e habilidades para lidar com os temas das tradições e costumes de povos e comunidades tradicionais. Evidentemente, isto gera a consequente problematização de como realizar a curricularização de conhecimentos sobre tradições e costumes para qualificação dos profissionais a atuarem com as crianças de povos e comunidades tradicionais? Talvez, a questão seja menos de curricularizar a cultura, e mais de organizar o suporte metodológico que permita, em cada contexto, relacionar-se melhor com os agentes locais e conhecer adequadamente as bases de suas práticas e concepções culturais, dentre as quais as tradições e os costumes, mas não somente estes aspectos.
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de intervenção na rede de proteção? E, nisso, como a Antropologia da Criança estabelece parâmetros necessários para a adequação da intervenção? Aqui, mais do que somente postular teorizações a respeito das implicações do conhecimento antropológico, indico a importância de se pensar os arranjos práticos de sua instrumentalização para a atuação profissional e institucional.
Aspectos práticos, éticos e colaborativos da presença antropológica na rede de proteção e na gestão dos direitos das crianças O carro-chefe da prática profissional são os laudos ou perícias antropológicas, exigidos, sobretudo, em sede de procedimentos judiciais. O laudo antropológico constituise num procedimento de coleta de dados e de produção documental que não se restringe ao simples tecnicismo descritivo, “mas reflete uma preocupação central: o aprofundamento resultante da pesquisa de campo etnográfica, elaborado na vivência ‘in loco’ e que busca realçar o ponto-de-vista dos grupos pesquisados” (Leite 2005: 17).
Os laudos antropológicos são instrumentos de tradução dos elementos culturais de produção da infância, de identificação dos modos nativos de interpretação do “problema” ou “conflito” e até das possíveis soluções para o caso concreto. Por isso, oportunizam a construção de pontes de comunicação entre as diferentes lógicas culturais em jogo, ainda que o estabelecimento dessas “pontes” dependa da competência técnica dos profissionais e das condições objetivas e interpessoais de interlocução entre os sujeitos envolvidos. Refleti, num outro texto, quais os meandros de conteúdos, procedimentos e temporalidades que precisam ser reconhecidos e respeitados aos profissionais da Antropologia que atuam no Poder Judiciário em casos de atos infracionais que envolvam indígenas crianças ou jovens, mas que serve para os demais espaços institucionais, nos seguintes termos:
os laudos antropológicos precisam ser realizados num tempo adequado mensurado em meses, e não em dias, com a possibilidade de investigar e analisar informações a respeito: (1) da caracterização básica do povo indígena, como localização geográfica, tronco linguístico, denominação étnica e dados demográficos; (2) de aspectos culturais identificados como relevantes para a elucidação do conflito, tais como relativos à organização social, relações de parentesco, tratamento e forma de inserção cultural dos indígenas crianças e jovens, costumes e sistema jurídico indígena; (3) da posição dos indígenas sobre o assunto alvo do conflito e das possíveis soluções para ele, por meio da inserção de suas falas e investigação etnográfica das implicações decorrentes para a compreensão do caso; (4) da posição do antropólogo sobre os quesitos formulados pelas partes do Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Assis da Costa Oliveira processo judicial para serem respondidos por ele, menos no sentido de dizer se a pessoa é ou não culpada (ou se é ou não “aculturada”), do que de apresentar elementos para reflexão mais profunda das circunstâncias que envolvem a situação alvo de intervenção judicial, de modo a mostrar que a decisão, seja ela qual for, não pode prescindir de uma análise mais atenta do contexto cultural e das proposições dos agentes indígenas (Oliveira 2014c: 175-176).
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), no documento “Protocolo de Brasília – Laudos Antropológicos: condições para o exercício profissional”, também delineia o procedimento de atuação na esfera judicial, indicando que:
Nesses casos, portanto, é imprescindível nas perícias levar em consideração a noção de pessoa, a compreensão dos aspectos morais e cosmológicos do(s) grupo(s) e de seu(s) arcabouço(s) jurídico(s) costumeiro(s), que define(m) formas de atuação, julgamentos e sanções, garantindo-se, portanto, a oitiva do(esses) grupo(s) social(ais) nas decisões sobre seu(s) destino(s). Ressalte-se também a importância a ser dada aos valores diferenciados no relacionamento interétnico e aos modos de administrar essas relações (2015: 26-27).
Evidentemente, a preocupação situa-se no cuidado técnico e ético do profissional na pesquisa de campo e na elaboração do laudo antropológico, pois sob ele recai uma carga de responsabilidade e de expectativas que interfere diretamente no sucesso do trabalho e da forma de intervenção a ser proporcionada, ainda que a responsabilidade tenha que ser compartilhada com os outros profissionais existentes.
Por isso, a atenção para a razoabilidade – em meses – do tempo de duração do trabalho antropológico e a necessidade de acioná-lo o mais breve possível, é dizer, desde o momento em que se identifique o marcador étnico dos sujeitos e o órgão seja acionado para realizar o devido atendimento. Ao mesmo tempo, a necessidade de alargar o espectro do foco da intervenção para além da percepção do problema ou conflito que se coloca mais diretamente sob atenção (e controle simbólico) das instituições, de modo a descortinar contextos socioculturais de vida, compreensões étnicas dos fatos e autoridades ou instâncias internas de atuação que pluralizem as possibilidades de leitura das situações e dos arranjos interventivos a serem propostos12.
12 Aliás, é isto que estabelece o Decreto n. 9.603/2018, que regulamenta os procedimentos da rede de proteção para atendimento às crianças e aos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, e que, no artigo 17, estabelece: “Art. 17. No atendimento à criança e ao adolescente pertencente a povos ou comunidades tradicionais, deverão ser respeitadas suas identidades sociais e culturais, seus costumes e suas tradições. Parágrafo único. Poderão ser adotadas práticas dos povos e das comunidades Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Nisso, a Antropologia da Criança tem muito a aportar aos profissionais da Antropologia e outros profissionais existentes nos espaços institucionais, de modo a ofertar aportes teórico-metodológicos para entendimento da diversidade de expressões culturais das infâncias e de como lidar com o trato direto com os povos/comunidades e a escuta/percepção das crianças. Além disso, pode também colocar em evidência as fundamentações que operam para estruturar diferentes concepções de normalidade e anormalidade do “ser crianças” nos lugares institucionais, e de como relativizar tais aportes contribui para o trabalho mais adequado com os sujeitos locais – sobretudo, para a escuta das falas das crianças, e como observa Cohn (2013), ter a capacidade de restituir a estas crianças a sua infância, ou seja, dar-lhes a primazia de concebê-la desde seus interesses e contextos de vida.
Logo, os conhecimentos produzidos pela Antropologia da Criança, tanto quanto pela Etnologia Indígena e Antropologia do Direito, oportuniza ferramentas epistemológicas, metodológicas e procedimentais para a qualificação do trabalho a ser desenvolvido, prioritariamente pelo antropólogo ou pela antropóloga, mas não restrito a estes, como uma fonte de recursos para compreensão das diversidades, desigualdades e agências nos casos concretos e num contexto mais amplo do que somente o olhar sobre o “problema” em si. Isto não quer dizer que os conflitos interculturais não existirão, inclusive com relação à legitimidade e à credibilidade do saber e do profissional da Antropologia e de outros profissionais da rede de proteção, muito pelo contrário. Seja internamente, dentro das equipes multidisciplinares, seja externamente, na interação com os povos e comunidades tradicionais, o uso da cultura como categoria de diálogo está imersa em relações de poder entre Estado e povos/comunidades13, entre os profissionais com campos de saberes tradicionais em complementação às medidas de atendimento institucional” (Brasil 2018. Grifos nossos). O reconhecimento de que existem práticas desenvolvidas por povos e comunidades tradicionais de atendimento a estes sujeitos em situações de violência é um primeiro passo importante para mudança da lógica de compreensão e tratamento da rede de proteção. Além disso, o fato de estas práticas poderem ser adotadas como medidas complementares torna legítima e lícita a autonomia de povos e comunidades tradicionais no cuidado das crianças e dos adolescentes afetadas por situações de violência. 13 Nesse aspecto, Cariaga é preciso ao indicar que “[n]o âmbito da gestão e administração das políticas públicas, a cultura (numa visão genérica, sem aspas) opera uma chave que aciona dois mecanismos: um de intervenção e outro de impedimento. Quando se precisa, a ‘cultura’ (de modo inventarial) é evocada para culpabilizar e responsabilizar os indígenas de questões como a morte de crianças ou, por se tratar de um ‘grupo étnico’, ela é o argumento para que os gestores públicos não atuem, sob o risco de estarem ‘prejudicando a cultura’” (2015: 237). A construção discursiva da “cultura como problema” é uma representação reiterada na rede de proteção ao lidar com situações de crianças de povos e comunidades tradicionais, reduzindo a apreensão da cultura como justificativa do problema a ser considerado, ao invés de elemento presente em todas as relações instituídas entre os sujeitos, inclusive nas da rede de proteção. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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distintos e internamente nos povos e nas comunidades tradicionais. Problematizar tais jogos de poder na gestão da diversidade étnica é reconhecer a complexidade do desafio de aplicação intercultural dos direitos das crianças, ao invés de abdicar dele ou desconsiderar as consequências dos atos e das relações estabelecidos.
Nessas sendas tortuosas do trabalho intercultural (e interdisciplinar), por vezes será necessário questionar as próprias bases histórico-culturais dos direitos das crianças, de modo a empreender o doloroso esforço de “estranhamento” – e, lembrando Kant de Lima, de que o esforço de “estranhamento do familiar é um processo doloroso e esquizofrênico a que certamente não estão habituadas as pessoas que se movem no terreno das certezas e dos valores absolutos” (2006: 97-98) – das concepções e dos valores “familiares” para desatar o nó da incompreensão e incompletude normativa e institucionalmente estabelecidas, avançando por caminhos de experimentação da participação dos povos e comunidades tradicionais, no mesmo status de legitimidade que os profissionais, não apenas para intervenção nos casos concretos, mas, por vezes, para reconstrução local e intercultural dos direitos das crianças e desenvolvimento do planejamento organizacional dos serviços da rede de proteção com a consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais.
Por outro lado, Pacheco de Oliveira, ao analisar o papel do antropólogo e da antropóloga nos laudos sobre demarcação das terras indígenas, indica: “[n]uma palavra, o antropólogo não deve substituir a participação indígena, mesmo que seu trabalho promova encontros interculturais realizados de forma mutuamente respeitosa e profícua” (2012: 136).
A lógica da substituição engendra-se na hiper-valorização do papel do antropólogo ou da antropóloga, e do conhecimento antropológico, de modo a tornar desnecessária a presença direta dos sujeitos ou encapsular suas vozes no que é traduzido pela expertise antropológica. Em contraposição, a presença da Antropologia (da Criança) deve ser tratada como ferramenta para impulsionar e complementar a participação dos sujeitos diretamente interessados, em termos individuais e coletivos, especialmente no caso de povos e comunidades tradicionais. De forma complementar, a Antropologia da Criança sinaliza a importância de perceber as desigualdades e diversidades de percepções existentes dentro dos grupos étnicos, muitas vezes só visibilizados pela ótica dos adultos que são consultados, raramente pelas crianças. Daí a necessidade de abrir espaços de escuta intercultural das crianças, e não apenas daquela individualmente atendida em cada caso pela instituição, para a melhor compreensão dos modos de vida e dos elementos que contribuem para o Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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entendimento e a resolutividade dos casos atendidos.
Por isso, para que a capacidade de interlocução entre os órgãos de execução dos direitos das crianças e os povos e comunidades tradicionais seja avaliada como adequada, ou melhor, intercultural, a tarefa não pode ficar circunscrita à presença/responsabilidade do antropólogo ou da antropóloga como única ponte de comunicação, mas ser dimensionada na capacidade de interculturalização da competência de todos os profissionais envolvidos e das instituições como um todo, objetivando desenvolver transformações estruturais na rede de proteção, com fomento à autonomia e ao protagonismo dos povos e comunidades tradicionais.
Porém, apesar dos documentos jurídicos estabelecerem um foco de intervenção “autorizada” para os saberes e os profissionais da Antropologia, é necessário questionar se tais limites podem ser expandidos ou qual seria a real capacidade de intervenção do campo antropológico na gestão institucional dos direitos das crianças?
Considero que os limites estabelecidos de intervenção antropológica na gestão institucional dos direitos das crianças são restritivos do potencial de contribuição e estruturados num núcleo de justificativa de presença “autorizada” aos casos em que a “cultura” torna-se “problema” para interlocução com “outros” sujeitos etnicamente diferenciados, mas desconsiderando que a cultura opera um papel de estruturação das diversidades internas em todas as sociedades, inclusive a “não-tradicional”, articulando marcadores de gênero, sexualidade, raça, classe social, etc. Assim, a intervenção antropológica seria possível em muitos outros contextos situacionais de acionamento da rede de proteção, como os relacionados às relações, às “vulnerabilidades” e aos conflitos familiares, às violências de gênero e àqueles devidos à orientação sexual ou à raça, e no atendimento de casos sobre educação e saúde, só para ficar nos mais recorrentes, pois em todos eles a cultura opera como uma fonte de produção de sentidos sobre a realidade e as relações instituídas, inclusive as que engendram violências. As próprias pesquisas etnográficas com crianças, referenciadas na Antropologia da Criança, têm abarcado um conjunto de investigações mais amplas do que as crianças inseridas em povos e comunidades tradicionais, problematizando dentro da “nossa” sociedade (em termos nacionais e ocidentais) o modo como diferentes elementos culturais operam para o estabelecimento dos sentidos e significados sobre as mais diversas questões sociais, da brincadeira à educação, da punição à iniciação sexual, tudo operando sob parâmetros culturais, cujos problemas também podem ser analisados com base nesses referenciais teóricos, metodológicos e profissionais. Assim, será possível dimensionar a amplitude do terreno da monocultura da
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produção jurídica dos direitos das crianças e como seus elementos sociais, normativos e científicos não são incompletos apenas para tratar a diversidade étnica das crianças, antes, são insuficientes para lidar com todas as expressões da diversidade, ainda que, na atualidade, já haja aberturas e ferramentas consideráveis, no Brasil e internacionalmente para a transformação de seu tratamento, embora imersas em disputas com pensamentos/ sujeitos conservadores e/ou universalistas que omitem suas bases discriminatórias nos jogos discursivos da defesa dos mesmos direitos das crianças.
Considerações finais A Antropologia da Criança apresenta um campo fértil de elementos teóricos e metodológicos para a desconstrução das condições modernas de produção da “infância ideal e passiva”, o reconhecimento da pluralidade das expressões culturais de simbolização do “ser criança” e o adequado entendimento da capacidade de agência das crianças em seus contextos de vida.
Mesmo assim, o desafio atual está na incorporação dos seus referenciais pelos profissionais da Antropologia – e pelos outros profissionais – na atuação interna da rede de proteção para reestruturação das lógicas de intervenção dos agentes nos “problemas” das crianças oriundas de povos e comunidades tradicionais e de outras expressões da diversidade, segundo marcadores de gênero, sexualidade, raça, entre outros.
A abertura dos direitos das crianças e da rede de proteção para a interlocução com a Antropologia da Criança representa um passo adiante no processo de melhoria da qualidade de intervenção sobre os casos concretos, sem abdicar da inevitável problematização às bases histórico-culturais de produção dos direitos, das infâncias e das práticas institucionais, tendo por consequência o estranhamento dos valores “familiares” e a familiarização com as diversas expressões das infâncias e das competências sociais das crianças. Isto, por certo, reforça a necessidade de abertura dos espaços institucionais de gestão dos direitos das crianças às vozes e às contribuições oriundas dos povos e comunidades tradicionais, seja para o planejamento prévio da forma de atendimento a ser ofertada, seja para o trabalho com os casos específicos da lida diária, sempre calcada na mediação igualitária e intercultural entre os sujeitos e na capacidade de apreensão dos contextos mais amplos que delineiam as causas e as consequências do problema e das estratégias de intervenção. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Recebido em 29 de maio de 2017.
Aceito em 19 de dezembro de 2018.
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Além da Doutrina da Proteção Integral: rumo às perspectivas indígenas de infância Romário Edson da Silva Rebelo1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará romariorebelo@live.com Raimundo Wilson Gama Raiol2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará rwraiol@gmail.com
Resumo Objetiva-se analisar, a partir de três casos envolvendo crianças de povos indígenas submetidas a situação de risco, tomados metodologicamente como exemplaridades, se a intervenção da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente leva em consideração as perspectivas de infância professadas por esses povos, ou se reproduz uma ordem jesuítica similar àquela da época colonial do país. Propõe-se discorrer sobre a Doutrina da Proteção Integral, paradigma jurídico do Direito da Criança e do Adolescente, para tratá-la a luz das peculiaridades da significação indígena de criança tal como previsto na Resolução n. 181 de 2016 do CONANDA. Palavras-chave: criança; indígena; risco; proteção; ECA; CONANDA. 1 2
Mestrando em Direito, na Área de Concentração Direitos Humanos e na Linha de Pesquisa Direitos Humanos e Inclusão Social, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Instituo de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará. Pós-graduando em Amazônia, História, Espaço e Cultura pelo Departamento de História das Faculdades Integradas Brasil Amazônia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, na Área de Concentração Direitos Humanos e na Linha de Pesquisa Direitos Humanos e Inclusão Social. Membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas.
Além da Doutrina da Proteção Integral: rumo às perspectivas indígenas de infância
Abstract The objective is to analyze, based on three cases involving children of indigenous peoples submitted to a risk situation taken as case studies, if the intervention of the Child and Adolescent Care Policy takes into account the perspectives of childhood professed by these peoples, or inversely reproduces a sort of Jesuit order similar to that of the colonial period. We discuss the Doctrine of Integral Protection, a legal paradigm of the Right of the Child and Adolescent, to read it in the light of the peculiarities of the indigenous meaning of children as foreseen in Resolution n. 181 of 2016 of CONANDA. Keywords: child; indigenous; risk; protection; ECA; CONANDA.
Introdução O presente artigo resulta de uma pesquisa documental e bibliográfica realizada a partir de três casos, a respeito dos quais optou-se por substituir o nome dos envolvidos por letras do alfabeto grego a fim de preservá-los, envolvendo a intervenção da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente em alguns povos indígenas que estariam colocando suas crianças em situação de risco. Objetiva-se analisar como se deu essa intervenção, demonstrando como se ignorou as perspectivas de infância desses povos ao interpretar a Doutrina da Proteção Integral de forma universalista. Para tanto, esses três casos serão tomados como exemplaridades, ou seja, servirão de plano de fundo para a discussão acerca da construção da Doutrina da Proteção Integral, e bem assim, de uma possível definição de infância, sobretudo aquela que serviu de substrato para esse paradigma do Direito da Criança e do Adolescente.
Tudo isso sem perder de vista a significação indígena dada às crianças, a fim de demonstrar que a demanda infantojuvenil proveniente desses povos se deve, em grande medida, ao desrespeito à sua identidade étnico-cultural. Por fim, tratar-se-á da Resolução n. 181 de 2016 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, CONANDA, que foi editada com vistas a orientar a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, em casos como os que serão aqui abordados.
A Doutrina da Proteção Integral De acordo com Amim (2014: 53), desde 1924, por meio da Declaração dos Direitos da Criança de Genebra, promovida pela extinta Liga das Nações, defendia-se um novo Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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paradigma para o tratamento jurídico dado às crianças e aos adolescentes, até então tidos como menores incapazes e sobre os quais recaia o interesse dos adultos.
Somente, porém, em 1959, com a Declaração Universal dos Direitos da Criança promovida pela Organização das Nações Unidas, ONU, esse paradigma se firmou, advindo, em 1989, após dez anos de estudos e negociações no âmbito dessa mesma organização internacional, a Convenção dos Direitos da Criança, internalizada pelo Brasil por meio do Decreto n. 99.710 de 1990, após a ratificação do Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n. 28 de 1990. O novo paradigma foi responsável por elevar as crianças e os adolescentes à condição de sujeitos de direitos, influenciando a Constituição brasileira, antes mesmo da edição final da Convenção dos Direitos da Criança, ao reconhecer em prol desse grupo, com absoluta prioridade, direitos fundamentais, determinando à família, ao Estado e à comunidade o dever concorrente de os assegurar.
A esse paradigma se chamou Doutrina da Proteção Integral, que, de acordo com Amim (2014, p. 52-53); é um sistema de normas próprias, na medida em que constitui um conjunto de princípios e regras que orientam a criação e a interpretação do Direito da Criança e do Adolescente, e foi sob a égide do referido paradigma que se editou a Lei n. 8.069 de 1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA.
Muitos consideram, a exemplo de Liberati (2004: 15), que a Doutrina da Proteção Integral representou uma revolução no tratamento jurídico dado às crianças e aos adolescentes, não só porque se ocupou da quase totalidade do universo próprio desse grupo vulnerável, mas, sobretudo, porque substituiu o então paradigma da Doutrina da Situação Irregular, que se ocupava apenas do que denominava de menores em circunstância de delinquência ou abandono. Embora o ECA tenha reservado significativa atenção a um projeto preventivo contra a violação dos direitos das crianças e dos adolescentes, também se preocupou, em sua Parte Especial, com o que chamou de: (i) situação de risco, prevendo, a esses casos, medidas protetivas; e (ii) situação de conflito com a lei pela prática de ato infracional, a esses casos prevendo, por sua vez, medidas socioeducativas. Isso, obviamente, ao levar em consideração, também na Parte Especial do ECA, os crimes e as infrações administrativas.
Para os casos de situação de risco e de situação de conflito com a lei pela prática de ato infracional, o ECA instituiu a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, cuja operacionalidade se dá por meio de uma rede de proteção formada por diversos órgãos do Poder Público (das esferas federais, estaduais e principalmente municipais), admitindo, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ainda, a participação de entidades da sociedade civil, desde que contribuam para maior efetividade às medidas protetivas e às medidas socioeducativas.
Apesar disso, a celebrada Doutrina da Proteção Integral se inspira em uma determinada perspectiva de infância, desconsiderando tantas outras perspectivas, a exemplo das que são professadas por muitos povos indígenas, o que pode por em dúvida a missão de conferir às crianças e aos adolescentes a condição de sujeitos de direitos. Qual seria essa perspectiva de infância na qual se baseou a Doutrina da Proteção
Integral? Tem essa perspectiva alguma relação com aquelas professadas pelos povos indígenas, a ponto de serem levadas em consideração na intervenção de casos envolvendo crianças desses povos? Na próxima seção, tratar-se-á detidamente acerca dessa questão.
Perspectivas de infância e a significação indígena de criança Segundo Beltrão e Oliveira (2011: 153), a infância é um instrumento de identificação geracional manejado por diferentes sociedades, cuja perspectiva varia de acordo com o espaço-tempo de cada cultura, para classificar como crianças os sujeitos que estão em um período inicial da vida. Portanto, infância e criança não se confundem, pois, enquanto a infância consiste numa significação cultural da fase inicial da vida, criança se refere àquelas pessoas a que são atribuídas à infância. A perspectiva de infância que serviu de substrato à Doutrina da Proteção Integral foi aquela que Beltrão e Oliveira (2011: 153-155) chamam de moderno-ocidental.
Historicamente, essa perspectiva de infância foi construída a partir do processo de racionalização marcada principalmente pela institucionalização das relações sociais, com destaque à escola, e, bem assim, da valorização da ciência, principalmente a da psicologia do desenvolvimento, que rompeu com a ideia de que as crianças eram homens de tamanho reduzido, concepção que, até meados do século XIII, reinava na Europa.
Na medida em que o processo de racionalização se solidificava como o modelo de vida europeu, a perspectiva de infância moderno-ocidental, por consequência, se universalizava pela legitimação que se atribuía à institucionalização escolar, por exemplo, e pelo avanço das ciências.
Devido ao imperialismo de muitos países da Europa, essa perspectiva de infância se difundiu por quase todo o mundo contribuindo para a subjugação de outras perspectivas Logo, pode-se dizer que a Doutrina da Proteção Integral representa um paradigma Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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colonizador, na medida em que se propõe a oferecer uma visão universal sobre a criança, ao considerá-la apenas a partir de uma perspectiva de infância.
Isso é perigoso, na medida em que muitos povos, a exemplo dos indígenas, não seguem o modelo de vida europeu, que ainda se impõe com base em padrões universalistas, como o faz a Doutrina da Proteção Integral. Desconsiderar a diversidade dos povos, negando-lhes a identidade étnico-cultural, é prejudicial, sobretudo, porque pode reproduzir atos de violência. No Brasil, segundo registros históricos indicados por Chaves (2000: 12 e 26), dentro da aldeia, as crianças de povos indígenas eram bem cuidadas não só por seus pais, e sim por toda a comunidade, como um ato de preservação de suas tradições.
As crianças dos povos indígenas, ainda de acordo com esses registros históricos
indicados por Chaves (2000: 12, 15-16), não conheciam o castigo físico, quer para o aprendizado quer para a disciplina, pois a pedagogia de muitos desses povos se baseava exclusivamente no ensinamento espontâneo, e o respeito se baseava na própria hierarquia do grupo, ou, em casos mais extremos, na ameaça de que o bicho do mato as castigaria, que, segundo Freyre (2003: 198-199), causava grande temor entre elas. Apesar de contribuírem, à sua maneira, para a manutenção da aldeia, o trabalho que desenvolviam, conforme explicação de Chaves (2000: 20), compunha uma força comunitária.
Embora presente em alguns povos indígenas a tradição da mutilação, isso ocorria não como castigo físico e sim como um ritual que há muito as próprias crianças desses povos esperavam com ansiedade, porque assumiriam uma nova posição social ou porque aquele ato neutralizaria a influência dos maus espíritos. O castigo físico só passou a ser sofrido pelas crianças de povos indígenas, no Brasil, segundo registros históricos indicados por Chaves (2000: 21-23), a partir da catequese do curumim3 pelo jesuíta que recorrentemente se utilizava da palmatória para obrigá-las
a estudar ou para simplesmente as repreender. Com os jesuítas, os curumins passaram a ser explorados não só para alimentar os padres, mas também para facilitar a locomoção deles entre as matas e pelos rios.
Isso foi tão prejudicial à identidade étnico-cultural que muitos curumins, ainda de acordo com esses registros históricos indicados por Chaves (2000, p. 22 e 24), quando cresceram, passavam a castigar fisicamente os filhos, e os explorarem tal como faziam os jesuítas, e há registros históricos dando conta de que muitos chegaram, inclusive, a vendêlos como escravos. 3
Menino na língua tupi-guarani.
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Assim, pode-se perceber que a interferência colonizadora sobre os povos indígenas só contribuiu para que passasse a ocorrer, entre os povos indígenas, situações de risco a que estariam sujeitas as crianças desses povos.
Levando em consideração o “fim” da colonização do Brasil, e o direito dos povos indígenas à sua identidade étnico-cultural, poder-se-ia afirmar que a intervenção da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente reproduz uma intervenção similar a dos jesuítas? Esse é um assunto para as próximas seções.
A Doutrina da Proteção Integral por si mesma: uma leitura do caso da menina α No julgamento da Apelação n. 70052687761, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul destituiu do poder familiar um casal de indígenas, cuja etnia não foi registrada na decisão, que exercia esse direito sobre a filha α, à época com pouco mais de dois anos de idade, em razão do risco a que a submetiam. Era comum que esses pais, de acordo com a decisão, deixassem a reserva onde se localizava a aldeia da etnia e levassem, em sua companhia, aquela criança, quando perambulavam alcoolizados pelas ruas de uma cidade vizinha.
Consta da decisão que a menina α foi hospitalizada devido aos maus cuidados, e que, durante o período em que assim esteve, a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, por intermédio da Fundação Nacional do Índio, FUNAI, recorreu ao cacique da aldeia que, por sua vez, teria se comprometido a acompanhar a situação, a fim de evitar que a criança continuasse sob a responsabilidade dos pais, enquanto eles não revissem seu comportamento diante da filha.
Contudo, mesmo com essa intervenção, nada teria mudado no comportamento de ambos os pais, que inclusive teriam recusado o tratamento para o alcoolismo que lhes foi oferecido.
Desse modo, tentou-se confiar os cuidados da menina α à sua família extensa, representada por seus avós maternos, únicos familiares da criança além dos pais, como refere a decisão, mas eles não teriam demonstrado interesse em se responsabilizar pela neta. Diante da frustrada tentativa de colocação da criança em família extensa, a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente optou por destiná-la a uma família substituta, com a qual, porém, não compartilhava a mesma identidade étnico-cultural, como frisa a
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decisão.
O que esse caso revela é o fato de ser cada vez mais comum que crianças provenientes de povos indígenas4 estejam em situação de risco provocada por circunstâncias alheias à
sua cultura, a exemplo do alcoolismo. Também chama atenção a circunstância de que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, enquanto integrante da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, interpretou a Doutrina da Proteção Integral, atribuindo importância secundária à identidade étnico-cultural da menina α. Vale anotar que, em sua decisão, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que a preservação da cultura indígena não deveria prevalecer sobre o bem-estar da menina α, na medida em que a situação de risco a que seus pais a submetiam justificaria destituíla do poder familiar por eles exercido, e por isso, resolveu mantê-la em família substituta, que, em seu entendimento, lhe poderia proporcionar vida mais saudável, equilibrada e feliz.
Esses foram os fundamentos para manter a sentença da juíza de primeiro grau que julgou o caso entendendo, de acordo com os trechos destacados por essa decisão, que toda criança precisa de família para se desenvolver de forma sadia, independentemente de se tratarem de índios, brancos, amarelos, negros, mamelucos, cafuzos e outras tantas variantes étnicas que já caíram em desuso, pois todos são brasileiros, com os mesmos direitos fundamentais, bem assim que a criança privada de sua condição pelo abandono ou rejeição de seus pares, tem aí o rompimento com sua cultura, e, portanto, a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, por ser a guardiã da uma infância una, deve lutar pelo respeito a ser dispensado, em iguais condições, a todas as crianças. O caso da menina α aqui serve como exemplaridade de como a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente costuma desconsiderar as perspectivas indígenas de infância, ao se basear em uma interpretação universalista da Doutrina da Proteção Integral. Considerando esse cenário, o que seriam essas perspectivas indígenas de infância? Isso ver-se-á na próxima seção.
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Seguindo Beltrão e Oliveira (2011, p. 152), devemos adotar o termo “indígenas crianças” para nos referir tanto às crianças quanto aos adolescentes de povos indígenas, tendo em vista que a classificação etária do ECA é própria à perspectiva de infância moderno-ocidental, de modo a não se compatibilizar às classificações de muitos desses povos.
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Situação de risco entre os povos indígenas como reflexo do desrespeito à identidade étnico-cultural desses povos: uma leitura do caso das crianças da etnia Kaiowá O caso da menina α não é o único de que se tem notícia acerca da situação de risco a que muitas crianças de povos indígenas estão submetidas e que, por isso, a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente intervém, contudo, sem observar as peculiaridades das perspectivas indígenas de infância. Em 2005, ganhou grande repercussão o caso das crianças da etnia Kaiowá acolhidas em espaços de acolhimento em Dourados, no Mato Grosso do Sul.
Há registros, divulgados inclusive pelo relatório final da Comissão Parlamentar de
Inquérito instituída pela Câmara dos Deputados em 2007 (2008: 14), de que quase vinte crianças dessa etnia teriam morrido em decorrência da subnutrição e outras várias teriam sido hospitalizadas, pela Fundação Nacional da Saúde, FUNASA, em razão do agravamento desse mesmo quadro de saúde. Devido ao que a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente de Dourado considerou como abandono dos pais, que não compareciam para visitar os filhos durante o período de hospitalização, bem como à ausência de condições em prover-lhes a subsistência, resolveu-se colocar em espaços de acolhimento essas crianças na medida em que recebiam alta médica. Isso provocou o acolhimento de quase cinquenta crianças dessa etnia apenas em 2005, conforme o levantamento realizado por Nascimento (2014: 273-274). Muitas dessas crianças da etnia Kaiowá foram adotadas, sem a avaliação técnica da FUNAI, por pessoas com as quais não compartilhavam a mesma identidade étnicocultural ou identidade similar, e outras tantas permaneceram abrigadas nos espaços de acolhimento, até sobrevinda a maioridade civil.
Em 2012, segundo esse mesmo levantamento, realizado por Nascimento (2014: 266 e 274), ainda havia mais de vinte crianças da etnia Kaiowá recolhidas nos espaços de acolhimento em Dourados. Nascimento (2014: 288) aduz que algumas dentre as referidas crianças, albergadas nos espaços de acolhimento, se sentiam envergonhadas de sua identidade étnico-cultural. Quando provocadas pelos colegas, diziam ser de origem japonesa, com o intuito de justificar as diferenças físicas, como, por exemplo, seus olhos mais cerrados.
Talvez isso se deva, como apontado por Nascimento (2014: 283), ao despreparo da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente para lidar com as peculiaridades de crianças de povos indígenas, a exemplo de uma assistente social responsável pelo trato Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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diário desse público, albergado naqueles espaços, destinados a bebês, que assim teria se expressado:
Nossa! Olha que menina linda, ninguém fala que é indígena. E vocês precisam ver, ela é muito limpa, desde que chegou aqui, ela não dorme sem tomar banho, diferente dos outros índios. Porque vocês sabem: índio é sujo, não gosta de tomar banho. Agora pensa só, como é que ela vai voltar pra casa, pra aldeia. Ela não está pra adoção, porque branco não pode adotar índio.
Essa imagem do indígena como um índio sujo e que, por isso, não gosta de tomar banho, não é exclusiva de um agente ou outro da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, embora registros históricos indicados por Freyre (2003: 182 e 210) demonstrem o contrário, como o costume dos indígenas de se entregarem à delícia do banho de rio ou do asseio impecável que empregavam aos seus recém-nascidos.
É comum ainda, esclarece Nascimento (2015: 10), que juízes nomeiem antropólogos para avaliar o grau de integração de indígenas ao que se chama de cultura nacional, incumbindo àqueles pesquisadores a tarefa consistente em apontar tanto a ausência de sinais diacríticos da indianidade quanto a presença de evidências de aculturação, como, por exemplo, o uso de aparelho celular, carteira de trabalho e escolarização. E diante da constatação de que a situação de risco é provocada por circunstâncias alheias à cultura indígena, dentre as quais Nascimento (2015: 11) exemplifica o uso abusivo de álcool e a subnutrição, como se observa no caso da menina α e das crianças da etnia Kaiowá, a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente ignora o atendimento particularizado a crianças de povos indígenas, ao argumento da aculturação dos pais. Assim pensa-se como se o indígena, para ser indígena, devesse manter total distância de outras culturas.
A rejeição das crianças de povos indígenas à sua própria identidade étnicocultural, tal como se testemunhou em Dourados, não é um fato limitando ao presente, pelo contrário, é uma herança da época da colonização do Brasil.
Cartas de padres jesuítas e demais registros históricos apontam que, desde esse período, quando muito curumim, por meio da catequese, teria sido liberto da malversação de Satanás pela salvação em Cristo, a maioria deles não só abandonou os costumes de seus povos, mas também passou a abominá-los, como relatou o Padre José de Anchieta, segundo Chaves (2000, p. 21), em uma carta datada de 1554: Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Além da Doutrina da Proteção Integral: rumo às perspectivas indígenas de infância [...] e esses até abominam os costumes paternos a tal ponto que passando por aqui para outro lugar o pai de um vento o filho, este longe de mostrar para com ele amor de filho, pelo contrário só lhe falava rarissimamente e de má vontade, e compelido por nós.
E com isso, por intermédio da catequese do curumim, a qual mais se assemelhou a um genocídio cultural, conforme o que se compreende da explicação de Freyre (2003: 218), foi se conquistando sucesso na invasão das terras dos povos indígenas, que hoje é Brasil.
A postura da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, na qual se inclui os juízes e cortes do país, a quem cabe, em definitivo, decidir o destino de uma criança de povo indígena em situação de risco, urge ser revista, na medida em que promover a aplicação do Direito da Criança e do Adolescente nessas situações, de acordo com o que preceitua a Doutrina da Proteção Integral, é desconsiderar as perspectivas de infância que esse diversos povos, que também são brasileiros, professam. Portanto, pode-se dizer que a Doutrina da Proteção Integral desconsidera não apenas as peculiaridades, mas a própria perspectiva de infância pois, segundo Beltrão e Oliveira (2011: 152-153 e 155-156), entre povos indígenas esta é diversa daquela que está consagrada em normas específicas, a exemplo do ECA.
Não é apenas na Doutrina da Proteção Integral que se fundamentam medidas que visem a proteção, que na maioria das vezes mais representa um ato de violência, às crianças de povos indígenas em situação de risco, mas também num paradigma ultrapassado, e que ainda não foi expressamente revogado, em uma cidadania assimilacionista que se conferiu oficialmente aos povos indígenas no final do século passado, por meio da Lei n. 6.001 de 1973, o Estatuto do Índio5.
Embora a Constituição brasileira e os tratados internacionais de que o Brasil é signatário reconheçam aos povos indígenas o devido respeito à sua identidade étnicocultural, em que se inclui muitas outras garantias, como o direito à autodeterminação e à participação no debate nacional referente às políticas públicas destinadas à sua inclusão social (e não destinadas à sua integração à cultura nacional pela defesa de uma cidadania assimilassionista), ainda parece que oficialmente se reproduz uma interpretação isolada e até mesmo desconstitucionalizada do ECA e do Estatuto do Índio, de modo a perpetuar 5
De acordo com Baniwa (2005: 157), até meados do século passado, havia previsões políticas e científicas dando conta de que os povos indígenas, devido à integração ao que se acostumou chamar de cultura nacional, tal como ainda prevê o Estatuto do Índio, desapareceriam progressivamente até a total extinção. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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uma suposta proteção às crianças desses povos indígenas que se vê desde a colonização do Brasil.
É essa intervenção irresponsável que transmite os problemas de uma sociedade para a outra.
Casos em que o alcoolismo e a subnutrição configuram situação de risco entre crianças de povos indígenas dá a sensação que ainda se vive sob uma ordem jesuítica no Brasil, época em que muitas delas eram vendidas como escravas pelos próprios pais, sob a influência do colonizador.
De acordo com dados levantados pela FUNASA, conforme registrou Baniwa (2005: 155), 27% das crianças da etnia Kaiowá de até cinco anos de idade estavam subnutridos. Causa disso?
Segundo Nascimento (2015: 6-7): exclusão que gera conflitos agrários.
Em Dourados, exemplifica Baniwa (2005: 155-156), onze mil indígenas da etnia Kaiowá tiveram a aldeia confinada a uma reserva de apenas 3.500ha, medida de espaço na qual se assenta no máximo duzentas pessoas, e por ausência de território, a subsistência ficou tão comprometida que o número de crianças desse povo que estavam subnutridas cresceu consideravelmente, e proporcionalmente, o índice de mortalidade infantil acompanhou esse crescimento, que em 2004 chegou a quase sessenta por mil nascidos vivos, o triplo do índice nacional dessa mesma época. Três dessas mortes por subnutrição, segundo Baniwa (2005: 156), ocorreram em um acampamento montado, na rodovia federal BR-163, por indígenas desse povo que protestavam contra a ocupação de suas terras por posseiros, mesma época em que uma idosa da etnia Kaiowá foi morta a tiros, conforme relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela Câmara dos Deputados, em 2007 (2008: 13). Diante desse cenário desolador, até 2014, ainda de acordo com Baniwa (2005: 156), mais de duzentos indígenas dessa aldeia teriam se suicidado e outros tantos passaram a fazer uso de álcool, sem considerar as implicações disso aos filhos. A solução para isso?
Além do acolhimento de quase cinquenta crianças da etnia Kaiwá, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, MDS, por meio do Programa Fome Zero, em parceria com a FUNASA, passou a distribuir cestas básicas às famílias desse povo, mas mesmo assim, o número de subnutridos não diminuiu, conforme constatou Nascimento (2015: 3-4). A simples distribuição de cestas básicas não foi o suficiente nem mesmo para a Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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resolução imediata do caso.
Isso porque, de acordo com o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela Câmara dos Deputados, em 2007 (2008: 14-15), o menino β, com pouco mais de dez meses de idade, que se encontrava sob o poder da mãe, morreu subnutrido. A mãe do menino β, aqui chamada de γ, justificou a morte do filho, dizendo que não tinha comida para alimentá-lo. A investigação realizada na época constatou, porém, entre os pertences de γ meio pacote de leite em pó, 5kg de farinha de trigo e ao menos 1kg de arroz, 3kg de feijão e uma lata de óleo. Questionada, γ limitou-se a explicar que dentre esses alimentos, seu povo só estava acostumado a comer o arroz. Durante as investigações, o cacique da aldeia disse que muitos ali trocavam as cestas básicas que recebiam por bebidas alcoólicas, citando γ como exemplo. Ela, sabendo disso, defendeu-se dizendo “[...] eu bebo, sim, mas não de cair. Não fiz isso. Eu tive o β com 2kg10g, ele sempre foi desnutrido (Brasil [Câmara dos Deputados. Comissão Parlamentar de Inquérito instituída em 19 de dezembro de 2007], 2008: 15).
Encontrar uma alternativa que garanta um discurso fluído apto a permitir não só o reconhecimento, mas, sobretudo, a inclusão de outras perspectivas de infância na Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, e com isso adequá-la, envolvendo os juízes e as cortes do país, aos casos das crianças de povos indígenas em situação de risco, mostra-se alinhado tanto à determinação constitucional de que se deve respeito à identidade étnicocultural desses povos, quanto ao impedimento de que uma ordem jesuítica se reproduza no Brasil.
Em busca do reconhecimento das perspectivas indígenas de infância: uma leitura do caso das gêmeas da etnia Araweté Recentemente, em 2016 para sermos mais precisos, foi amplamente divulgado o caso das gêmeas da etnia Araweté que nasceram num hospital de Altamira, no Pará.
Vale destacar que o nascimento de gêmeos representa para os indígenas desse povo um agouro, ou seja, um mal presságio, para toda a aldeia. Tendo conhecimento do nascimento das gêmeas da etnia Araweté, o cacique proibiu que a mãe delas as levasse para a aldeia.
Boatos preconceituosos começaram a ser espalhados em toda a região, de que indígenas desse povo, a mando do cacique, invadiriam o hospital onde as gêmeas recémnascidas haviam nascido para ali executá-las, o que logo foi desmentido pela FUNAI, que Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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depois encaminhou o caso ao conhecimento da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente de Altamira.
Sabe-se poucos detalhes sobre o desenrolar do caso das gêmeas da etnia Araweté, porque, depois que foi judicializado, recaiu sobre ele o segredo de justiça, mas em uma palestra que ocorreu no início de 2017, em Belém, teve-se conhecimento, por intermédio da antropóloga que foi nomeada para oficiar no caso das gêmeas da etnia Araweté, que elas foram entregues à guarda de outro povo indígena, que as aceitou com alegria. A partir de então, as gêmeas da etnia Araweté passaram a conviver sob os cuidados de uma indígena da etnia Asurini, que já tinha outros filhos e, portanto, tinha experiência com a arte da maternidade, embora não tenha ocorrido oficialmente uma adoção aos olhos da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente.
Diferente do caso da menina α ou das crianças da etnia Kaiowá, pode-se dizer que o caso das gêmeas da etnia Araweté respeitou, ao mesmo tempo, a identidade étnicocultural do povo indígena em questão, sem que a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente virassem as costas a elas.
Parece, portanto, que o caso das gêmeas da etnia Araweté fora resolvido além da Doutrina da Proteção Integral, sobretudo, porque a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente reconheceu a perspectiva de infância professada tanto pela etnia Araweté quanto pela etnia Asurini. Em verdade, sabe-se que isso é o que se espera da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, desde que o CONANDA, depois de muitos casos semelhantes ao da menina α e das crianças da etnia Kaiowá, editou a Resolução n. 91 de 2003, que assim dispunha:
Art. 1°. [Resolve] Firmar o entendimento esposado pela Assembleia Ordinária do CONANDA, realizada nos dias 14 e 15 de maio de 2003, no sentido de que se aplicam à família, à comunidade, à sociedade, e especialmente à criança e ao adolescente indígenas as disposições constantes da Lei n. 8.069 [...] de 1990, que dispõe sobre o ECA, observadas as peculiaridades socioculturais das comunidades indígenas.
Com isso, o debate sobre o tema foi elevado a um nível institucional, a ponto de constar projetos de lei que pretendiam fazer constar no ECA a recomendação do CONANDA esposada em sua Resolução n. 91 de 2003. Quase seis anos mais tarde, por meio da Lei n. 12.010 de 2009, a chamada Lei Nacional da Adoção, enfim, conseguiu fazer constar o
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seguinte dispositivo no ECA:
Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente [...].
§ 6o Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório: I – que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal;
II – que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia;
III – a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso.
Dessa maneira, desde 2003, a Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente deve buscar agir considerando as perspectivas indígenas de infância quando intervir em casos em que crianças de povos indígenas se encontrem em situação de risco, o que o ECA tornou obrigatório em 2009. Agrega-se que, como é possível perceber, o ECA não foi assim tão eficaz, porque se limitou apenas às crianças de povos indígenas e de comunidades “remanescentes” de quilombo, desconsiderando as perspectivas de infância que outros povos tradicionais brasileiros professam.
Desse modo, o CONANDA, muito recentemente, editou a Resolução n. 181 de 2016, que representa um verdadeiro reconhecimento não só às perspectivas indígenas de infância, mas também as das/dos: [...] comunidades quilombolas, povos e comunidades de terreiro/ povos e comunidades de matriz africana, povos ciganos, pescadores artesanais, extrativistas, extrativistas costeiros e marinhos, caiçaras, faxinalenses, benzedeiros, ilhéus, raizeiros, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, veredeiros, apanhadores de flores sempre vivas, pantaneiros, morroquianos, povo pomerano, catadores de mangaba, quebradeiras de coco babaçu, retireiros do Araguaia, comunidades de fundos e fechos de pasto, ribeirinhos, cipozeiros, andirobeiros, caboclos, entre outros; Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Pelo visto, a Resolução n. 181 de 2016 do CONANDA é extremamente avançada, não só porque prevê a pluralidade de perspectivas de infâncias, que são todas brasileiras, mas também porque representa simbolicamente o protagonismo de todos esses povos tradicionais, na medida em que foi proposta por uma representante do povo cigano, que compõe o CONANDA. Dentre os dispositivos da Resolução n. 181 de 2016 do CONANDA, destaca-se aqueles que se reputam serem os mais importantes:
Art. 1º. A aplicação da legislação pertinente à infância e à adolescência nas questões específicas que envolvam Crianças e Adolescentes oriundas de Povos e Comunidades Tradicionais deverá considerar as garantias jurídicas presentes na legislação específica dos Povos e Comunidades Tradicionais, assim como a autodeterminação, as culturas, os costumes, os valores, as formas de organização social, as línguas e as tradições.
Art. 2º. Devem ser respeitadas as concepções diferenciadas dos diversos povos e comunidades tradicionais acerca dos ciclos de vida que compreendem o período legalmente estabelecido como infância, adolescência e fase adulta. Art. 3º. Considera-se fundamental que a legislação pertinente aos Povos e Comunidades Tradicionais seja considerada para a formulação e a aplicação em todas as medidas relacionadas a Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais, de modo a assegurar que possam ter acesso aos serviços culturalmente apropriados no âmbito da saúde, da alimentação, da educação, dos serviços socioassistenciais, das medidas socioeducativas, das atividades de esporte e lazer, da convivência familiar e comunitária, do trabalho, do saneamento básico, da segurança pública, do meio ambiente e da seguridade territorial, entre outras questões. Parágrafo único – Para a adequação cultural dos serviços existentes ou a serem criados no âmbito das políticas setoriais, de caráter público ou privado, considera-se necessária a adoção dos seguintes requisitos: [...]
Art. 4º. Orienta-se que os serviços ofertados às crianças e aos adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais que residem, temporária ou permanentemente, no espaço urbano e em situação de itinerância, dêem especial atenção aos seus direitos, prezando pelo reconhecimento do direito à autodenominação e pelo enfrentamento de tratamentos discriminatórios.
Parágrafo único – São consideradas crianças e adolescentes em situação de itinerância aquelas pertencentes aos Povos e Comunidades Tradicionais que vivem em tal condição por motivos culturais, políticos, econômicos e de saúde.
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Verifica-se que o art. 3º da Resolução n. 181 de 2016 do CONANDA determina uma série de medidas que garantam a ativa participação dos povos indígenas naquilo que diz respeito à Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, como, por exemplo, nos processos de tomada de decisões e na fiscalização dos seus serviços, bem como a inserção de profissionais de quaisquer áreas de formação com conhecimento das suas tradições e costumes, especialmente nas cidades e regiões com a presença de povos indígenas e tradicionais, além de acesso à informação em linguagem culturalmente acessível e, preferencialmente, nas línguas étnicas, dentre outras medidas.
O objetivo aqui não é analisar todos os dispositivos da Resolução n. 181 de 2016 do CONANDA, mas sim demonstrar o espírito que ela representa: uma viagem além da Doutrina da Proteção Integral, por ela não corresponder à pluralidade de perspectivas de infância brasileira, uma vez que o Brasil é uma nação composta de tantas outras, para que enfim se reconheça o significado que os povos indígenas e outros povos tradicionais atribuem às suas crianças. Conclusão Com base na pesquisa que originou o presente artigo, chegou-se a três conclusões, que aqui se compartilha:
A primeira conclusão diz respeito à origem não-indígena das mais graves situações de risco a que estão sujeitas muitas crianças de povos indígenas. Rememorando aqui o alcoolismo e a subnutrição a que estavam submetidos a menina α e as crianças da etnia Kaiowá junto de seus povos, situações de risco essas que são claramente um reflexo de problemas que não tem origem indígena, mas sim numa má interferência dos não indígenas, assim como a venda dos curumins como escravos pelos próprios pais que o faziam sob a influência dos jesuítas no período colonial. O alcoolismo, por exemplo, talvez tenha se tornado uma forma de se ver com as dores e os sofrimentos devidos ao confinamento em um território do qual se extraia pouco ou quase nenhum recurso para a subsistência de toda a comunidade, levando, por isso, à subnutrição de suas crianças. Tudo em decorrência dos conflitos agrários que demoram anos para serem resolvidos. A segunda conclusão, por sua vez, diz respeito à pouca, quando não à falta propriamente dita, participação dos povos indígenas nas políticas públicas indigenistas, negando-lhes o protagonismo na tomada de decisões que lhes diz respeito diretamente.
Parece que, fazendo isso, está-se violando os direitos dos povos indígenas, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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principalmente ao reconhecimento de sua identidade étnico-cultural, que se insiste fazêlo mera promessa constitucional vazia. A terceira conclusão diz respeito à Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente, pois não se questiona que, diante de situações de risco, ela intervenha, mas sua intervenção, num primeiro momento, deve ocorrer de modo a se adequar às peculiaridades do caso, para então, em um segundo momento, atenda às perspectivas indígenas de infância, tal como ocorreu no caso das gêmeas da etnia Araweté.
Isso porque, entre os povos indígenas, há uma série de noções de infância tão ou mais genuínas à daquela disposta na Doutrina da Proteção Integral, mas que se encontram cada vez mais desafiadas pelo empreendimento colonizador promovido pelo o que o Estatuto do Índio denominou de integração à cultura nacional, paradigma que é ainda muito aplicado pelos juízes e cortes do país, embora se entenda que não fora recepcionado pela Constituição brasileira.
Ainda se tem muito a se discutir antes de se reavaliar a atuação da Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente diante de casos como aqueles tomados como exemplaridades no presente artigo, mas, para início de conversa, é necessário que se garanta a participação dos povos indígenas e de outros povos tradicionais em tudo àquilo que lhes seja pertinente, o que o CONANDA, por sua Resolução n. 181 de 2016, fez.
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Aceito em 06 de dezembro de 2018.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 366-386.
“Vocês napëpë estão sempre procurando seus filhos”: considerações sobre corpo e cotidiano entre crianças e mulheres yanomami e suas parceiras napëpë1 Ana Maria A. Machado Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina aninhamachado@gmail.com Ana Maria R. Gomes Professora da Faculdade de Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais anarabelogomes.bhz@gmail.com
Resumo A partir de experiências de campo realizadas em diferentes regiões da Terra Indígena Yanomami, o artigo apresenta uma abordagem exploratória das relações entre adultos e crianças Yanomami. A rica literatura sobre a constituição da pessoa e sobre a socialidade própria dos Yanomami orienta as análises de cenas que buscam colocar em evidência os diferentes tipos de orientação simbólica, considerando em particular as relações entre as mães e seus filhos e filhas. Essas observações se colocam dentro de um quadro singular de pesquisa que se anuncia, com a possibilidade de investigações realizadas em parceria entre pesquisadoras indígenas e não-indígenas, Yanomami e napëpë. Palavras-chave: Yanomami; crianças indígenas; educação indígena; corpo.
Abstract Departing from field experiments carried out in different regions of the Yanomami Indigenous Land, the article presents an exploratory approach to the relationship between adult and child among the Yanomami. The rich literature on the constitution of the person and about Yanomami sociality guides the analysis of scenes that seek to highlight different types of symbolic orientation, especially those considering relations between mothers and their sons and daughters. These observations are placed within a unique framework of 1
Napë: na língua yanomama quer dizer pessoa não Yanomami; inimigo; estrangeiro. Napëpë: o termo acrescido pelo morfema pluralizador (pë) – inimigos; brancos; estrangeiros.
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research carried out in partnership between indigenous and non-indigenous researchers, Yanomami and napëpë. Key-words: Yanomami; indigenous children; indigenous education; body.
O presente artigo nasce de uma colaboração de pesquisa que se construiu ao longo de muitos anos, e que hoje começa a ser triangulada entre pesquisadoras indígenas e nãoindígenas de diferentes etnias, e de diferentes gerações. Vamos nos apoiar principalmente em nossas experiências de campo realizadas entre os Yanomami, retomando cenas vividas em suas aldeias, que ocorreram ao longo de várias atividades de pesquisa e extensão que realizamos nas regiões de Demini, Papiu e Awaris.
Além de retomarmos situações que ocorreram no tempo e não foram ainda objeto de suficiente reflexão, buscamos aqui também introduzir em nossas reflexões um novo momento, que marca de forma significativa as relações em campo e nossas atividades como pesquisadoras junto aos povos indígenas. Trata-se da convivência com as crianças das pesquisadoras indígenas e não-indígenas, que passa a ser possível de ser observadas nas aldeias e na cidade, nos locais de vida cotidiana das mães indígenas, mas também nos locais de vida cotidiana das mães não-indígenas, propiciando assim um novo olhar sobre essas relações por parte de todas as pessoas envolvidas. Essa reelaboração de cenas se inspirou no trabalho pioneiro de Aracy Lopes da Silva, em particular na forma como ela recupera cenas cotidianas com o intuito de se perguntar sobre os modos específicos de se produzir a pessoa ou, em outros termos, como diz a própria autora, “quais são as linguagens e as condições da educação indígena”2. Nossa
tentativa é de registrar essas cenas não mais como eventos episódicos, que margeiam temas mais importantes de nossas atividades, mas de buscar integrá-las a uma reflexão que se quer progressivamente mais sistemática sobre os vários modos como as pessoas são produzidas em suas histórias e em seus contextos de vida. Em particular, interessa-
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“… ao escrever esse artigo sobre os contextos de aprendizagem infantil indígena, escolhi, do acervo de sensações e imagens de minha memória de campo, sete flashes que oferecem matéria para reflexão quando se buscam resposta para a pergunta: quais são as linguagens e as condições da educação indígena?” (Silva, 2002: 38). Por outro lado, a complexidade do tema da pessoa nas etnografias yanomami foi registrada por Leite (2010: 20 e ss), e envolve temas como “parentesco, morte, relação entre corpo e alma, aos estados de alteração – a doença e o xamanismo –, às atividades cotidianas, à socialidade, à subjetividade, etc. E ainda, às relações entre todas essas esferas”. Ainda com Leite coincidimos em considerar pertinente a afirmação de Taylor (1996), que considera a noção de pessoa como um “repertório de estados do ser” (idem: 21). Interessa-nos aqui sinalizar para essa complexidade dos conceitos envolvidos, porém iniciando por “perscrutar as múltiplas práticas a eles correlacionadas” (Leite, 2010: 20).
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nos desenvolver progressivamente uma abordagem e estilo de atividade conjunta na qual os dispositivos de pesquisa que orientam nossas ações – quer sejam elas organizadas enquanto pesquisa, quer sejam organizadas como atividades de outra ordem, mas que se baseiam em orientações que provêm das atividades de pesquisa – tornem-se progressivamente mais visíveis para nossas parceiras e parceiros indígenas e, portanto, passíveis de serem discutidos e/ou modificados, ou seja, agenciados por elas e eles da forma como possa lhes interessar ou que considerem adequada.
Os textos de Aracy Lopes da Silva, e as coletâneas por ela organizadas, tem sido usados sistematicamente na formação de professores e professoras indígenas na UFMG e tem permitido provocar interessantes deslocamentos na forma como são percebidos os processos de aprendizagem, assim como as premissas que orientam o olhar dos observadores e observadoras: nesse caso, quase sempre mães/pais (ou irmãos e irmãs) indígenas de crianças dos diferentes povos que participam do curso3. Esse exercício é
potencializado na medida em que as atividades do curso se deslocam regularmente e recorrentemente para as aldeias, e docentes e discentes se confrontam com seus modos peculiares de interagir e dar sentido ao que acontece, quando o tema evocado é o da “educação”. A partir dessa experiência contínua ao longo dos anos, que já desafiava o lugar do pesquisador e da pesquisadora nesse trânsito entre as universidades e as aldeias; e da ideia de que a formação para/na pesquisa é parte fundamental nas atividades de professores indígenas, foram colocados em questão os dispositivos de pesquisa que até então eram vistos como sendo de única e exclusiva pertinência e condução do(a) pesquisador(a) não-indígena. Essa orientação se ampliou ulteriormente na medida em que as atividades de formação de pesquisadores realizadas com outros povos indígenas – em particular com os Yanomami e os Yekwana – trouxeram novas ocasiões de interação e observação. A presença de jovens pesquisadores yanomami tem sido recorrente em atividades na UFMG, o que nos levou à formulação das questões que vamos focalizar neste texto4.
Antes de discutirmos nossos dados, apresentamos brevemente os Yanomami. Este povo indígena habitante do noroeste amazônico vive em um território localizado a oeste do maciço das Guianas, situado na fronteira entre Brasil e Venezuela. No Brasil, a população atual é de 24.603 habitantes (Instituto Socioambiental, 2018) e ocupa um território de
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A FAE/UFMG é frequentada nos últimos 15 anos, em função do curso de “Formação Intercultural para Educadores Indígenas” (FIEI), pelos povos Xakriabá (MG), Maxakali (MG), Pataxó (MG e BA), Pataxó Hã-hã-hãe (BA), Guarani (ES, RJ e RS). As atividades aqui referidas são realizadas no âmbito da colaboração da UFMG com o ISA (Instituto Sociambiental) e a Hutukara Associação Yanomami (HAY), e valem-se de situações e possibilidades que essas parcerias tem propiciado. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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9.664.970 hectares, em uma das maiores áreas de floresta tropical preservadas no mundo se somados seus territórios no Brasil e na Venezuela (Alves et al., 2014). Atualmente, os Yanomami têm como principais atividades de subsistência a caça, a agricultura, a coleta e a pesca.
Entre o final da década de 1980 e início de 1990, o território yanomami foi cenário de uma das maiores febres do ouro já vistas no Brasil, durante o século XX. Estima-se que entre trinta e quarenta mil garimpeiros invadiram este território, o que seria equivalente a quase cinco vezes a população yanomami existente no Brasil naquela época. A situação social e sanitária dos Yanomami foi gravemente desestabilizada na época, resultado em uma catástrofe demográfica, já que estima-se que 15% da população Yanomami teria morrido pelas doenças e violência levada pelo garimpo (Le Tourneau, 2008) Frente à gravidade dos acontecimentos, grupos apoiadores dos Yanomami em aliança com lideranças locais, iniciaram a luta e campanha pelo reconhecimento de seu território, homologado em 1992. Apesar da conquista da homologação de seu território, o caos sanitário entre os Yanomami na época era algo alarmante. Neste cenário, organizações que lutaram pela demarcação da Terra Indígena Yanomami (TIY), como a Comissão Pró Yanomami5 (CCPY) e a Diocese de Roraima, fortaleceram as ações em saúde e educação, somando às ações das Ongs Médicos do Mundo e Urihi Saúde Yanomami. Ao longo de uma década de ação, os índices de saúde melhoraram exponencialmente em toda TIY e as ações de escolarização nas línguas yanomami foram iniciadas por estas organizações em diversas regiões. Como reflexo deste momento positivo para os Yanomami, em 2004 um grupo formado por Davi Kopenawa e seus aliados fundam a Hutukara Associação Yanomami, assumindo maior protagonismo na defesa de seus direitos frente ao Estado. Os trabalhos de educação, especificamente, foram assumidos em sua maioria pela Secretaria Estadual de Educação de Roraima em 2005, o que levou a um considerável declínio das atividades escolares. Por outro lado, diferentes ações continuaram a ser feitas em parcerias com o ISA, a Hutukara e a UFMG. Nos últimos anos, temos acompanhado o surgimento de novas associações Yanomami, caracterizando o momento atual como de crescente protagonismo dos Yanomami no cenário político atual.
Os Yanomami se destacam no campo da Antropologia pela diversidade e riqueza de etnografias já escritas sobre eles. Entre os principais estudos, podemos destacar o trabalho de Albert (1985) sobre o complexo sistema ritual yanomami e sua articulação ao sistema sociopolítico e espacial yanomami; as descrições detalhadas de Jacques Lizot (1988) sobre a vida cotidiana e ritual yanomami; temas polêmicos como guerra yanomami, inaugurado
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As ações da CCPY foram incorporadas pelo Instituto Socioambiental (ISA) em 2009.
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por Napoleon Chagnon (em teorias sócio biológicas para apresentar os Yanomami como povo “feroz”) e os diversos trabalhos posteriores de desconstrução dessa teoria (ver Lizot, 1991; 1994; Albert, 1989; Albert 1990; Sponsel, 1998;Carrera 2010; Machado, 2015) sobre este tema, Do Pateo (2005) argumenta que a guerra, dentro do amplo espectro de agressões yanomami, seria elemento fundamental na manutenção e alternância das relações de aliança e antagonismo entre os Yanomami, sistema que é potencializado com o aumento das armas de fogo e consequente superatualização do sistema ritual yanomami
No Brasil, temos ainda o trabalho de Smiljnic (1999) sobre o amplo espectro da relação entre xamãs yanomae e seus hekurapë (espíritos auxiliares) e possibilidades de ação e temporalidades específicas; já Kelly (2003) nos fala sobre a relação entre Yanomami e napëpë visto a partir do sistema de saúde na Venezuela e argumenta como o conceito de napë seria, para os Yanomami, um conceito relacional. Mais recentemente, inaugurando um novo momento na Antropologia, destacamos o livro A queda do Céu, publicado no Brasil em2015, de co-autoria entre o xamã Davi Kopenawa Yanomami e e do antropólogo Bruce Albert. O trabalho, sem precedentes na etnologia ameríndia brasileira, é ao mesmo tempo um manifesto político xamânico, um relato autobiográfico e uma etnografia reversa sobre o mundo dos brancos. O livro, narrado por Davi Kopenawa Yanomami, foi escrito e traduzido por Albert, como fruto de uma relação de mais de trinta anos de amizade entre os autores.
Dentro do amplo espectro de etnografias aqui citadas, nos interessa o que tais estudos dizem sobre da noção de pessoa, e para isso nos valemos da cuidadosa síntese e análises produzidas sobre este tema por Tainah Leite (2010), a partir da leitura das principais etnografias yanomami. Não é nosso objetivo agora passar a um registro das práticas nas quais os diferentes componentes da pessoa se desdobram ou se fazem presentes na formação da pessoa ao longo do curso da vida, pois tal análise requerer um esforço maior do que esse artigo nos permite. Faremos incursões sobre alguns dos elementos para tentar compreender como algumas dessas dimensões vão se tornando parte das experiências vividas pelas crianças yanomami. A literatura sobre a pessoa e a socialidade entre os Yanomami muito pouco nos informa no entanto sobre a especificidade das relações entre crianças e adultos, assim como são marginais a presença das crianças nas etnografias yanomami. Buscaremos, neste artigo, privilegiar a interação entre mães e seus filhos e filhas pela natureza dos dados que temos aqui referidos, como forma de iniciar uma incursão nesse tema. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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“Vocês napëpë estão sempre procurando seus filhos” A frase que dá título a este artigo foi dita por Ehuana, uma perspicaz pesquisadora yanomami, ao observar a forma como duas pesquisadoras napëpë com seus filhos se preocupam todo o tempo em não deixar que os meninos, de um e dois anos, saiam do alcance de seus olhos, mesmo que estivessem dentro de uma casa fechada por muros. Ehuana expressa assim seu estranhamento diante do comportamento dessas duas mães, e nos coloca uma questão que evidencia a diferença nos modos de conviver e de se relacionar com as crianças na aldeia Yanomami do Demini e o modo como isso acontece com as crianças napëpë. Para explorar esses modos, e procurando estabelecer uma possível forma de considerar ambas as posições – a das observadoras napëpë e a das observadoras yanomami –, vamos lançar mão de algumas cenas vivenciadas e buscar focalizar alguns aspectos desses diferentes modos.
Nas descrições, vamos buscar explorar vários aspectos dos modos de agir e modos de significar que estão sendo ativados em campo pelas diferentes pessoas em interação, de forma a dar mais densidade às cenas etnográficas. A partir desse conjunto de elementos que as descrições vão permitir visibilizar, vamos em seguida abordar aspectos mais amplos que nos permitam avançar na maneira como abordamos essas diferenças, na direção de uma consideração cada vez mais rica desses diferentes mundos que se encontram e das mudanças que esse encontro pode trazer para as pessoas neles envolvidas6. CENA 1
Boa Vista, Roraima, março de 2017
Depois de passar alguns anos morando fora, eu e meu marido nos mudamos de volta para Boa Vista para continuar nossos trabalhos junto aos Yanomami. A novidade era que vinha conosco o nosso filho Lino, com um ano de idade.
Desde que Lino começou sua vida em Boa Vista, seu universo se resume à casa, ao quintal, à padaria, à mãe, ao pai e à babá. Neste convívio diário com tão poucas pessoas, Lino se tornou o centro das atenções na casa e, apesar da pouca idade, sabe bem disso. Nossa interação com Lino acontece sempre marcada por muito carinho, conversas direcionadas, olhos nos olhos e, quando ele faz qualquer coisa que nós, adultos, consideramos “bonitinha”, ganha risadas e olhares felizes nossos.
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Lino agora está com um ano e dois meses. Esses dias hospedamos em nossa casa uma grande amiga yanomami, a Ehuana, que é também parceira de trabalhos de pesquisa e produção de materiais em sua língua materna. Na ocasião ela havia ido para Boa Vista para trabalhar conosco em um projeto. É o primeiro encontro de Ehuana e Lino. É noite
As cenas aqui descritas que ocorreram até 2012 foram registradas por A.M. Machado; as cenas de 2015 foram registradas por A.M. Gomes; e a de 2017 foi elaborada em conjunto para essa publicação.
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"Vocês napëpë estão sempre procurando seus filhos" e estamos no sofá da sala conversando. Lino, animado com uma presença nova na casa, quer chamar atenção de Ehuana e para isso, usa seu repertório de “coisas bonitinhas”: ele caminha pela sala mantendo os olhos em nossa hóspede, esperando que ela o olhe de volta com sorrisos, mas não ganha esta resposta dela. Então ele pega um cestinho e o coloca na cabeça como um chapéu, se vira para Ehuana para ver sua reação, que é nula: o vê mas não muda o semblante, não diz nada, o olha sem nenhuma expressão. Ele pega uma blusa e tenta colocar no corpo, com a roupa apoiada na cabeça ele continua desfilando pela sala, ainda olhando para a hóspede: mais uma vez nenhuma resposta dela, apenas a minha, que continuo achando “bonitinho” as gracinhas do menino, olho para ele sorrindo e digo como está esperto.
Boa Vista, Roraima, abril de 2017
Lino aprendeu recentemente a pegar a comida com a colher e leva-la até a boca. Eu e o pai dele ficamos tão surpresos com essa nova habilidade que sempre fazemos uma “festinha” quando o vemos colocar sua nova habilidade em prática. Eu, o pai e a cuidadora de Lino, ao vermos a colherada sendo levada até a boca ainda de uma maneira um pouco desajeitada, batíamos palmas e sorríamos para Lino, tanto que ele aprendeu que as palmas talvez até façam parte desta pequena atividade e, portanto, a colher, ao sair da boca, deve ser apoiada na mesinha para que ele também possa liberar suas mãos para bater as palmas junto como os adultos.
Depois de alguns dias dessa habilidade conquistada, Lino simplesmente abandonou-a quase por completo, considerando talvez que já conseguira dominar a técnica com destreza e que para ele, o melhor jeito de comer, talvez, fosse mesmo com as mãos, valendo-se dos dedinhos para catar os grãos de feijão e levá-los até a boca. Ehuana havia voltado a se hospedar em nossa casa, agora com sua filha de 4 anos e outra de apenas 10 dias. No final do dia eu e Ehuana cuidávamos juntas da alimentação de nossos filhos: eu preparava um prato com arroz, feijão, ovo e espinafre, sentando Lino sozinho em cadeirinha de alimentação de bebês, enquanto Ehuana servia sua filha com peixe e farinha e se preocupava um pouco para que a filha não fizesse lambança na cozinha branca. Lino, novamente animado pela presença de pessoas a mais naquela noite, queria mostrar sua habilidade de usar a colher para nossa hóspede. Para isso, olhava para Ehuana, pegava a comida no prato, levava a colher até a boca. Ehuna, por sua vez, não olhava diretamente para ele, ou por vezes passava os olhos, mas mantinha um olhar blasé muito diferente do meu, de mãe animada e orgulhosa de ver as pequenas conquistas do filho. Lino levava novamente a colher até a boca, observando nossa hóspede para ver se teria alguma reação e nada. Embora eu tenha sorrido para ele, ele não buscava a minha atenção naquele momento, mas a de Ehuana. Lino repetiu o gesto três vezes seguidas, até desistir e voltar para o seu método preferido: pegar a comida com as pontas dos dedos e levá-la até a boca. A única coisa que levantou a curiosidade de Ehuana foi ver que uma criança tão pequena já sabia comer folhas e, por outro lado, que sua filha de 4 anos havia aceitado comer tomate – alimento típico dos napëpë.
Nessas cenas de um primeiro encontro, fica claro como Lino e Ehuana ativam enquadramentos (frames, no sentido batesoniano) muito diferentes para a situação de interação que estão vivenciando. É interessante observar que Lino, mesmo sem nenhum Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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domínio de palavras, já aprendeu uma outra natureza de mensagens que dizem respeito à relação no processo de comunicação, ou seja, as mensagens não-verbais sobre a natureza da relação que se instaura. As crianças muito pequenas são capazes de operar dentro desses enquadramentos, atuando coerentemente a partir de seus pressupostos, pois sem eles não haveria interação. De fato, o domínio das palavras será o último aspecto a integrar o quadro de comunicação. Mas que enquadramentos são esses? Já de saída essa cena inaugural informa sobre a especificidade do lugar da criança no moderno mundo urbano ocidental, de certa forma oposto e exclusivo em relação à figura do adulto (cf. Ariés, 1981); na forma como ela vem a ocupar um lugar central nas dinâmicas familiares, quase sempre concentradas sobre a família nuclear; no tipo de interação que se espera de um adulto diante de uma criança – de suspensão de sua atividade e de total atenção a ela; e por fim do próprio lugar de protagonismo da criança que, em ausência de uma suposta resposta adequada, se propõe ela mesma a solicitar que isso aconteça.
Ehuana por sua vez não vê motivo para “olhar” para Lino informando uma especificidade. Lino é parte de suas interações como tantos outros elementos presentes naquele contexto, e aos quais ela vai dedicar atenção no momento em que a situação exigir. Nesse sentido, a criança é situada em paridade de condições com os demais elementos que compõem a cena social (e se poderia acrescentar agentes humanos e não-humanos), e assim participa e evoca uma maior ou menor atenção em função das ações e atividades a serem realizadas. É importante notar que a criança pequena demanda recorrentemente cuidados e atenção para com suas necessidades, o que Ehuana sempre conduziu de forma exemplar com seus quatro filhos. Ou seja, o cuidado e atenção das crianças nesse caso não se confunde com sua centralidade nas interações enquanto pessoa, enquanto mensagem contextual que informa qual é o seu lugar na relação. Esse aspecto fica claro na segunda parte da cena em que essa atenção para com as necessidades das crianças é promovida – de modo diferentemente eficaz, diga-se de passagem – por ambas as mães. O lugar específico das crianças e adultos na relação não deixa de se mostrar muito diferenciado; assim como o lugar do alimento, que nessa cena fica de certa forma restrito à interação entre as pessoas que coabitam a casa. Para Lino, é um momento privilegiado de vivenciar suas relações a partir desse lugar específico de criança com a mãe e demais adultos. E descobre que sua potencial interlocutora não partilha das mesmas premissas.
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CENA 2: Comunidade de Olomai, Terra Indígena Yanomami, março de 2009
Uma nova casa está sendo construída nesta comunidade sanöma, onde já existem diversas outras casas com cobertura de palha de bacaba e paredes de barro. Todas as casas ficam no alto em frente ao rio. Na margem oposta às casas, está a pista de pouso, por onde chega a equipe de saúde, missionários e outros napëpë.
Hoje cinco homens estão completando o tramado das paredes de uma nova casa com barro. Enquanto trabalham, escutam músicas caribenhas em um radinho de pilha, enquanto conversam e preenchem a parede da casa com barro amassado. Do lado de fora, cerca de 5 metros de onde a casa está sendo construída, os homens fizeram um grande buraco, de onde é retirado o barro para fechar as paredes. O barreiro virou grande diversão para várias crianças da aldeia que devem ter entre três e dez anos. Algumas brincam de pular, jogam barro umas nas outras, riem, correm por ali. Os mais corajosos, saem correndo e pulam de cabeça no barreiro úmido, de consistência argilosa. A cada pulo a cabeça fica enterrada na lama por um tempo curtíssimo e é retirada no meio de muita risada por todas as crianças que estão ali: a criança que retira a cabeça cheia de barro divide a gargalhada com as demais. Eu assisto aquela cena em pânico, imaginando a hora que alguma criança vai quebrar o pescoço pulando de cabeça naquele buraco. Nenhum outro adulto está assistindo a esta cena, todos continuam empenhados em seus afazeres cotidianos: além do grupo dos homens que fecham a parede da casa, algumas mulheres cozinham, buscam água, várias pessoas estão na floresta ou em suas roças, ninguém “vigia” as peripécias das crianças em suas aventuras com o barro.
Esta segunda cena, ocorrida em um contexto tipicamente yanomami, nos traz um aspecto recorrente em muitas etnografias com crianças indígenas, o que é geralmente referido como a autonomia das crianças em conduzir suas atividades e ações dentro do cenário da vida cotidiana, cenário que não é alterado e nem controlado para evitar a participação delas, como é muito comum em nossos contextos ocidentais urbanos. É flagrante a percepção de que não há intencionalidade específica dirigida às crianças, e que são elas próprias que se aproximam das situações, explorando o que o ambiente oferece.
Embora as crianças yanomami cresçam com grande autonomia e liberdade – o que inclui também desde muito cedo saber fazer fogueira, ser capaz de descascar cana com facão, ou poder manusear facas ao mesmo tempo em que se aprende a andar – , por vezes acidentes ocorrem, como no caso em que a brincadeira das crianças com fogo feitas próximo à casa coletiva terminar em um grande incêndio, e várias famílias ficarem desabrigadas por isto. Nestes casos, as crianças são repreendidas verbalmente, mas nunca com violência. Até o presente momento, não presenciamos qualquer acidente grave envolvendo crianças e facas, tendo visto apenas crianças se tornarem muito habilidosas com o uso das facas desde a mais tenra idade. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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CENA 3: Comunidade Tɨhɨnakɨ, Papiu, abril de 2012
O dia é chuvoso, logo as pessoas não saem muito da casa. Na casa coletiva do Tɨhɨnakɨ cinco meninos, com idades entre 4 e 8 anos, se reúnem ao redor da fogueira de uma das famílias que vivem ali. Os meninos pegam pequenos pedaços de masɨkɨkɨ (cipó titica), o mesmo que as mulheres usam para tecer o cesto. Cada menino pega um pequeno fio seco do vegetal, parecendo então um graveto, e queima a outra extremidade na fogueira. Com a brasa na ponta, eles levam o cipó até o antebraço, encostando a brasa na pele, deixando queimála. Estes garotos estão preparando seus corpos para que se tornem corajosos (waithëri) e possam aguentar a dor. Um desses meninos, o menorzinho, vê a brasa queimando o braço e geme, como quem quer chorar, mas consegue segurar o choro e suportar a dor. Os outros meninos sorriem discretamente disso. O mais velho deles vê um pedacinho do cipó queimado cair em brasas em seu braço. A dor é grande e por isso larga o fio de cipó queimado para ocupar suas mãos segurando o antebraço onde a brasa queima, assim é capaz de suportar a dor. Ele olha fixo para o pedaço de brasa, bufa, arregala os olhos, mas não tira a brasa do braço. As pequenas queimaduras nos braços dos garotos irão cicatrizar e daqui a um tempo se tornará uma pequenina cicatriz como aquelas que podemos ver nos braços de vários rapazes e homens yanomami da região. Será uma marca da coragem e da capacidade de aguentar a dor.
Assim como vimos entre os meninos Yanomami nesta cena, os meninos Xikrin também tem a valentia como traço importante da formação da pessoa e, assim como os Yanomami, os cuidados do corpo são centrais para isso. Os rapazes e homens Xikrin tem como uma das atividades rituais a quebra de ninho de marimbondo, o que é tema de grande atenção dos meninos pequenos, que por sua vez reproduzem parte da atividade ritual como forma de se tornarem eles também valentes (Cohn, 2000a) A coragem, bravura e a capacidade de suportar a dor são importantes códigos morais entre os Yanomami. A cena que aconteceu na aldeia Tɨhɨnakɨ mostra a própria criança como agente na formação de seu corpo, na formação da pessoa waithëri.
Ser waithëri é o ideal moral da pessoa yanomami. Esta palavra complexa e polissêmica significa uma pessoa estóica, corajosa, que cumpre sua obrigação de vingança (Lizot, 1988). E, como acrescenta Albert (1985), traços característicos de uma pessoa waithëri incluem ainda a valentia, o humor e a generosidade.
Ser waithëri é portanto um valor moral importante também reconhecido pelas crianças yanomami, que como agentes, cuidam de seus corpos para tal. O cuidado com o corpo para a formação de uma pessoa waithëri é também uma preocupação das mães yanomami, que cultivam em suas roças a raiz waithëri kɨkɨ (Cyperus articulatus sp.), ralando a raiz da planta e esfregando-ajunto com urucum no corpo de meninos e meninas que têm geralmente entre 1 e 3 anos de idade. Esta raiz também pode ser pendurada no Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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pescoço da criança em forma de contas de um colar. As mães devem controlar o uso da raiz em seus filhos para que eles não se tornem muito agressivos. Ao falar sobre as crianças yanomami, o antropólogo francês Jacques Lizot (1988: 88,89) faz a seguinte observação sobre as relações com os adultos:
as crianças yanomami são pequenos reis tiranos que se beneficiam da complacência mais absoluta por parte dos adultos. Exceto nas comunidades meridionais, é muito raro que sejam punidos ou levem surras. Sua única aprendizagem é da das qualidades exigidas a um povo guerreiro: têm de adquirir resistência física, acostumar-se à dor, imbuir-se da ideia de que a vingança sempre deve ser levada a cabo e que toda a violência sofrida tem de ter uma resposta. O código moral constrói-se em torno de duas virtudes complementares: de um lado, devem-se trocar bens e alimentos com os amigos, do outro, é dever vingar-se das agressões.
Lizot nos fala portanto sobre a generosidade e a vingança como virtudes complementares. Podemos dizer que ambos os valores estão estritamente ligados à ideia de reciprocidade, seja ela capaz de cumprir as obrigações de vingança pela morte de um parente ou de construir e reforçar laços de parentesco e aliança – a generosidade, como veremos abaixo.
É regra em quase todas as comunidades yanomami que o caçador não coma a carne que caçou, o que por princípio mantém ativa a rede de trocas locais. Assistimos algumas vezes o retorno de um caçador para casa quando, ao capturar um animal de médio ou grande porte, como uma queixada, geralmente entrega o alimento para a sogra ou a esposa, e a limpeza e divisão da caça pode então ser feita por um grupo de pessoas sob o olhar curioso de mulheres. Homens e crianças da casa se reúnem ao redor da caça enquanto tecem comentários sobre o animal, fazem piadas, acompanham e comentam como deverá ser feita sua distribuição da carne. Apenas o caçador não irá comer a carne que caçou, mas certamente irá comer carne quando outra pessoa, que ele alimentou naquele dia, voltar para casa carregando uma caça, movimento esse que mantém viva a rede de reciprocidade. A caça é uma atividade que começa a ser praticada pelos meninos yanomami desde muito cedo. Eles costumam matar passarinhos e calangos com seus pequenos arcos e flechas, passeiam geralmente em dupla ou em trio na mata ao redor da casa em busca de animaizinhos para flechar. No Papiu7, quando um menino mata um passarinho, ele não
poderá comê-lo e sua mãe ou alguém de sua família indicará que entregue aquela pequena
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Comunicação oral feita do Alfredo Himotona Yanomama em agosto de 2011.
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caça à sua sogra8, aprendendo então na prática os tipos de relação que deverá manter com ela, o que inclui indiscutivelmente a necessidade de alimentá-la e ser generoso com ela.
Desde a mais tenra idade, as crianças yanomami são estimuladas a trocar bens e alimentos. No cotidiano de uma aldeia yanomami, todos os dias se vê as crianças circulando entre um compartimento familiar e outro, fazendo rodar cuias com pedaços de carne, macaxeira, peixe, banana assada, tabaco, etc. As crianças parecem ser os fios que fazem a conexão entre as famílias de uma mesma aldeia em seu cotidiano. Por diversas vezes, após ficar vários dias em uma mesma casa e nos relacionar com as pessoas ali através de termos de parentescos, acabávamos por entrar também no ciclo de trocas de algumas famílias. Na aldeia Surinapi, no Papiu, moravam cerca de 30 pessoas. Ali, uma menina de dois anos e meio – uma das mais novas da casa – era a grande responsável pela circulação de comidas e tabaco: CENA 4
Comunidade Surinapi, Papiu, março de 2011
Ana, a mãe da pequena menina, entregou uma cuia com macaxeira e um pedacinho de carne de queixada para a menina e disse perto de seu ouvido:
“nae Ana Maria, atha?” (mãe Ana Maria, tá?) – dando o sinal para que ela entregasse aquela cuia para aquela que ela deveria chamar de “mãe” Ana Maria. A mãe indicava então com os lábios onde eu estava deitada em minha rede, e dava um leve tapinha nas costas da menininha sinalizando a ela para que fosse me entregar a cuia. Ela então vinha em minha direção e me entregava a cuia e repetia o que tinha dito a mãe: “nae Ana Mari!”
A partir de então, por vezes eu passei a usar da mesma estratégia para entregar comidas para as pessoas no Surinapi. Quando queria dar um prato de arroz para a mãe da menina, chamava-a para perto de mim, lhe entregava o prato, apontava para sua mãe e dizia: “naho a! naho a!” (Para sua mãe! Para sua mãe!)
E ela seguia com o pratinho na mão, entregava para sua mãe e logo se sentava ao lado para comer junto com a mãe, afinal, comer não é algo para ser feito sozinho. Durante os dias que passei ali a pequena menina chegava para mim com pequenos tabacos enrolados pela sua avó ou por vezes, uma cuia com algum alimento. Sempre via a pequena andando pela casa, entre diversos compartimentos familiares, levando e trazendo cuias, panelinhas com comidas ou ingás (Surinapi, março de 2011).
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Pelo sistema de dravidiano de parentesco yanomami, as irmãs do pai são classificadas como sogras.
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Assim como a reciprocidade, aprender a se vingar faz parte também do ideal da pessoal waithëri, e portanto da educação das crianças yanomami. São frequentes as situações em que um bebê ainda de colo que, ao levar um tapa ou empurrão de uma criança um pouco mais velha, seja guiado pela mãe ou o outro adulto que, segurando o braço do bebê, revida o golpe na criança que o atingiu, ensinando assim a importância de se vingar de uma agressão. CENA 5:
Comunidade Sikamapiu, Papiu, 11 de abril de 2012
Na casa coletiva de Sikamapiu, onde vivem cerca de 50 pessoas, eu conversava com Terezinha (40 anos), ela em sua rede e eu deitada na rede de um de seus filhos. Estamos no compartimento familiar dela, que tem cinco redes e a fogueira no meio do triângulo formado pelas redes, sendo duas dispostas como se fossem “beliches” de rede. Ao redor de sua fogueira dorme ela, o marido que é xamã, e os quatro filhos homens com idade entre 2 e 16 anos.
Terezinha me contava histórias sobre seus parentes que morreram por causa das epidemias que vieram durante a invasão garimpeira. No meio de nossa conversa, o filho de dois anos e meio que estava brincando a uns 8 metros de nós, chega chorando perto da mãe. Ela continuando a conversa com os olhos fixos em mim, se desescora um pouco da rede onde está deitada com os pés para fora e, sem olhar para o filho, pega um pedaço de lenha e lhe entrega, em uma situação onde os dois sabem que o menino deverá pegar aquele pedaço de lenha e revidar a agressão que recebeu, nenhuma palavra sendo dita até o momento entre a mãe e o filho. O menino de dois anos está ao lado do seu irmão de 4 ou 5 anos, então o pequeno, ainda choramingando, ameaça bater em seu irmão grande com a lenha, até que o mais velho diz: “Kami ya kuo paxionimi! kami ya kuonimi!” (Não fui eu! Não fui eu!)
Então Terezinha vira o pescoço e, se voltando para o filho mais velho pergunta: “Uti a kuoma tha, asa?” (quem foi, meu filho?)
Ele aponta para um menino que deve ter 4 anos e que está no compartimento familiar ao lado. Ela então dá uma pequena resmungada do tipo: “ham!”; e volta a se escorar na rede para continuar a conversa envolvente que estamos tendo.
Depois de uns 25 min que estamos conversando, agora Terezinha já me conta outra história e as crianças também já voltaram a brigar. Agora foi o filho dela de 2 anos que fez alguma coisa contra o de 4, que ficou furioso. Então o maior, por sua vez, pega a faca da mãe que estava no chão e corre atrás do irmão. Terezinha, que manteve o tempo todo os olhos fixos em mim durante as nossas conversas, olha para o filho de 4 anos dizendo: “ Poa wa praa!” (deixa a faca no chão!)
Pouco tempo depois a criança menor volta chorando e eu pergunto porque chora. Terezinha diz que o irmão mais velho o ameaçou com a faca. O pequenino entra dentro da rede da Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Ana Maria A. Machado, Ana Maria R. Gomes mãe, pega os seios dela e se acalma enquanto mama, e ela ainda diz para ele:
“Dorme igual ele” – e aponta para o pai, que dorme profundamente em sua rede nesse fim de tarde quente no Sikamapiu.
Essa cena evoca questões semelhantes à anterior. Ao entregar um pedaço de lenha ao filho de dois anos que chegava para a mãe chorando, Terezinha dizia em gesto que o menino deveria se vingar de quem havia batido nele, mesmo sem ela ter acompanhado a cena de agressão (já que depois pergunta ao filho quem foi que tinha batido nele). Filho e mãe compartilham de um entendimento mútuo sobre a necessidade de revidar uma agressão e, o menino ainda pequeno, recebendo o pedaço de lenha, começa a bater no irmão mais velho, que nega ter batido no irmão mais novo. A naturalidade da cena e a forma como a interação não-verbal se deu no início da cena, no momento em que o menino chora e a mãe entrega um pedaço de lenha ao filho, revela um tipo de interação muito comum no processo de aprendizagem das crianças yanomami.
Porém, na segunda cena descrita, quando o filho de quatro anos pega a faca para agredir o menor, mostra também que existe uma “etiqueta” sobre o tipo de agressão, pois nessa cena, a mãe, que aparentemente não olhava diretamente a cena, intervém na briga dos filhos, evitando que o filho mais velho revide o golpe, levantando a faca para o pequeno agressor. Terezinha então fala fortemente para o filho deixar a faca no chão. Ou seja, é preciso se vingar, mas existe também um limite a ser aprendido sobre a intensidade e o mal que se pode causar ao se revidar um golpe, é preciso também aprender a etiqueta e a dosagem sobre a forma de se vingar.
Apesar das diversas ameaças de golpes sérios a outras crianças com facas, pedras ou pedaços de lenha em brasa, não se registram situações em que uma criança tenha machucado seriamente uma outra, a não ser uma vez em que uma menina chegou no posto de saúde do Papiu com um corte raso na cabeça, causado por uma pedrada dada por outros meninos, mas que aparentemente não tinham a intenção de machucá-la.
Nessas últimas cenas, pudemos ver a importância da formação da pessoa waithëri, seja aprendendo sobre as trocas e a generosidade, como a pequena menina do Surinapi ou os meninos caçadoras de passarinho, seja trabalhando seus corpos para serem valentes e suportarem a dor, como ocorre com os meninos do Tɨhɨnakɨ, seja aprendendo a se vingar, como vimos entre os irmãos do Sikamapiu. Explorando o diálogo com outras etnografias, encontramos esse tipo de exercício da troca também entre os Xikrin (cf. Cohn, 2000b). Nesse caso, ao descrever o cotidiano das crianças, Cohn refere que, ao fazerem suas caçadas de pequenos animais no entorno
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da aldeia, ou indo à roça derrubar marimbondos, os meninos xikrin reportam os frutos de suas incursões às suas irmãs, para que elas os preparem. Cohn realça o fato de que não se trata de mera imitação das atividades dos adultos:
o que esses meninos estão fazendo, ao presentear suas irmãs com frutos colhidos em suas andanças, nessa idade mais comuns a eles que a elas, ou trazendo o produto de sua caça para que ela possa preparar para eles, não deve ser entendido como um ensaio das relações entre marido e mulher, mas como o início e a efetivação de uma relação de reciprocidade que poderá durar toda a vida (2000a: 211)
CENA 6: Comunidade Tɨhɨnakɨ Papiu, abril de 2012
Saímos da comunidade Tɨhɨnakɨ para uma pescaria em um igarapé próximo. Estamos em um grupo de mais ou menos 10 mulheres adultas e talvez 6 crianças que acompanham suas mães na pescaria. Sirléia, uma jovem mãe, carrega no colo seu primeiro filho, que tem um ano de idade. Quando estávamos atravessando a floresta indo de um lado do igarapé para o outro, a mãe pede a seu pequeno irmão de 10 anos – tio do bebê - que segureoo por um instante. O bebê começa a chorar desconsoladamente. Sirléia havia visto uma árvore lainatihi, que tem a casca mole, ideal para a fabricação de tipóias para carregar bebês. Rapidamente, ela descasca com a faca o ponto mais alto que alcança da árvore, bate a faca em um pedaço do tronco, abrindo ali uma lasca que puxa até o pé da árvore, tirando dali uma longa faixa macia. O bebê continua chorando desconsolado no colo de seu jovem tio (ou genro nos termos yanomami). A mãe segura a faixa que tem mais ou menos um metro e meio, apoia o meio da faixa em seu joelho e com as mãos une as duas pontas da casca de árvore com um nó, obtendo assim uma tipóia para carregar bebês. Ela apoia uma extremidade da tipóia em sua cabeça e a parte inferior fica em suas costas, onde o bebê ficará apoiado pelas nádegas. Sirléia pega o bebê do colo de seu irmão e com uma mão o passa por cima de sua cabeça até apoiá-lo na tipóia, colocando os braços do pequeno menino acima de seu ombro, para não cair de suas costas. O bebê para de chorar imediatamente e todos voltam a caminhar pela mata.
Essa cena, gravada em vídeo, impressiona pela rapidez com que a criança suspende o choro e volta a dormir, em meio às condições em que se encontra: deslocando-se dentro da floresta com uma série de movimentos que faz sua mãe, e que a criança acompanha. Sua tranquilidade e pronta resposta demonstra um tipo de disposição corporal e afetiva que altera substancialmente muitas das informações sobre a “natureza” do corpo e da percepção de crianças pequenas não-indígenas com as quais lidamos cotidianamente, para muitas das quais o adormecer pode vir a se tornar um problema cotidiano de difícil gestão por parte de mães e pais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A cena descrita acima evoca uma outra descrição, feita por Ruth Paradise (1994), de uma criança Mazahua em um mercado mexicano. A criança e a mãe aparentemente não interagem, pois não há nenhum dos sinais que canonicamente indicam interação, como a troca de intervenções verbais, toque físico e mesmo contato dos olhos. No entanto, a autora mostra como suas ações são coordenadas, o que se percebe a partir de duas situações. Uma primeira, em que a mãe se vira rapidamente para trás, onde se encontrava a criança, e a segura, pois ela havia perdido o equilíbrio e estava por cair. Na situação seguinte, a mãe está observando a criança no chão e, a um certo ponto, quando chegam fregueses em sua barraca, pega a menina embaixo de seu braço – que nesse meio tempo estava entretida, sentada no chão, brincando com um objeto em suas mãos. A mãe suspende velozmente a criança para se deslocar com ela até a frente de sua barraca e a menina não se assusta, não chora e não modifica o que estava fazendo, ou seja, continua a brincar com o objeto em suas mãos. Essa capacidade de manter a própria atividade enquanto mantém também a interação com a mãe evidencia uma prontidão das disposições corporais que nós, não-indígenas, não estamos habituadas a lidar – nem como pessoas adultas, e nem as disposições das crianças, que parecem ser capazes de manter o curso de suas ações de uma forma autônoma, até mesmo diante ou durante uma intervenção física em seus corpos. CENA 7
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De retorno de uma longa caminhada pelas aldeias da região do Papiu, nos encontramos, já quase no final do caminho de retorno ao Posto de Saúde, com dois meninos que passam a nos acompanhar. Um deles, com idade de cerca 8 anos, carrega seu arco e flecha que tem dimensões proporcionais a ele (o arco é pouco mais alto que a cabeça do menino, a mesma proporção de um arco para adultos)9. Quando chegamos à pista de pouso, temos um longo trecho de terreno descampado e plano diante de nós, e então ele começa imediatamente a lançar flechas. A cada lançamento o menino para, se posiciona, e logo que a flecha é lançada se mantém imóvel observando sua trajetória. Só quando a flecha cai no chão ele se move – para correr em direção a ela, recolhê-la e continuar a caminhada. Essa cena nos lembrou outras que buscamos discutir, em que o aprendiz provê ele próprio as ações que servem para fazê-lo avançar no que pretende aprender – nesse caso, controlar o lançamento da flecha. Chama-nos a atenção sua concentração e domínio da situação. Ninguém intervém e diz nada; o menino, apesar de ainda não saber atirar bem a flecha, sabe o que precisa fazer para treinar e conseguir avançar no domínio dessa prática.
Discutimos em outro caso (Silva, Gomes, 2015) a situação em que o instrumento em questão não é produzido em dimensões reduzidas, entre os Xakriabá, o que faz com que o seu manuseio por parte de uma aprendiz ainda criança seja conduzido de forma muito diferente dessa que observamos com os meninos yanomami, pois nesse caso, o aprendiz não tem como reproduzir os gestos e movimentos do adulto por não ter força e disposições corporais que lhe permitam fazer assim.
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O menino, que caminha junto a seu pai e um irmão mais velho – ambos mais experientes com arcos e flechas do que ele ainda pequeno – não necessita que alguém direcione a atenção a ele e o oriente sobre o domínio do arco e da flecha. É o próprio menino que conduz seu treinamento e promove sua aprendizagem em busca do domínio dessa prática, da mesma forma como pudemos observar na cena3, na qual os próprios meninos trabalham seus corpos para se tornarem waithëri. Em ambas as cenas, embora haja adultos por perto, estes não conduzem ou “vigiam” as atividades realizadas pelos meninos. Mesmo quando o menino treina “por sua conta”, como nesta cena do menino com a flecha, podemos afirmar, de um certo ponto de vista, que ele não está “aprendendo sozinho”, pois age em função de um arcabouço de informações e disposições aos quais teve acesso porque participa de situações coletivas, por não haver nas aldeias yanomami distinção entre espaços exclusivos para crianças ou adultos, mas sim a livre circulação de todos. Trata-se, portanto, de uma outra forma de interagir que não se orienta pela explicitação direta do que cada um deve ou não fazer. CENA 8
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Saímos de nosso alojamento no Posto de Saúde (o único lugar nessa região que tem estrutura construída pelos napëpë, uma casa edificada em madeira há mais de 20 anos) para participar de uma reunião com lideranças locais para informar e decidir sobre a participação da comunidade em alguns dos projetos que envolvem produção de material escrito em língua yanomami. As aldeias são todas afastadas e requerem algumas horas de caminhada para se chegar até elas. Ao chegar na primeira aldeia, nenhum dos homens adultos está presente, pois se reuniram todos para sair em expedição motivada pelo assassinato de dois jovens de suas comunidades. Encontramos um casal já idoso chorando o luto por um jovem da comunidade, morto recentemente. A mulher havia emagrecido pela tristeza, ambos tinham as maçãs do rosto enegrecidas em sinal de luto, estavam fracos e choravam em forma de lamentos as lembranças que tinham de seu jovem genro. Mesmo de luto nos recebem e param o choro para contar sobre a morte do jovem e a tristeza que os havia acometido.
Enquanto uma parte da conversa acontece com os anciãos, me dou conta das atividades de um grupo de crianças no fundo da casa, para onde minha atenção foi dirigida por ouvir palavras em inglês: estão todas assistindo a um filme, que passa em um pequeno aparelho de DVD montado sobre uma bateria de carro. O filme, sobre um menino que tinha asas e voava, emite palavras às vezes mais fortes, e as crianças riem do que veem e ouvem. Surpreendeu-me a presença desse tipo de artefato em um local assim aparentemente isolado, e manipulado totalmente por crianças (as maiores têm entre 10 e 12 anos). As crianças todas se movem enquanto o filme avança, colocam a mão no aparelho, o tocam e retornam a se assentar no chão, demonstrando uma certa familiaridade no seu manuseio, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Ana Maria A. Machado, Ana Maria R. Gomes embora não pareçam estar seguindo o filme. Ao lado do luto que assisto do outro lado da maloca, essa cena me pareceu surpreendente e ao mesmo tempo indicadora de um cenário, presente e futuro, que não sabemos ainda como vai se desdobrar.
Esta cena emblemática nos apresenta vários elementos sobre momento singular vivido pelos Yanomami atualmente. Desde que as condições sociais e sanitárias ganharam maior estabilidade, após se recuperarem do impacto de obras desenvolvimentistas e da invasão garimpeira vividas até o início da década de 1990, o crescimento populacional ganhou grande impulso. Como resultado, temos o dado impressionante de uma população extremamente jovem, na qual 91% das pessoas tem menos de 50 anos de idade (Vieira, 2016). Com uma população tão expressiva de jovens e crianças, os conhecimentos tradicionais dos Yanomami estão severamente ameaçados, visto a presença cada vez maior da influência do modo de vida não-indígena nas aldeias, que chegam principalmente através de objetos e mídias digitais, e da crescente presença de jovens yanomami nas cidades de Roraima e do Amazonas.
A produção de pessoas como campo específico da agência humana – ou, de como se pensar de outra forma o que chamamos “educação” Os comentários das cenas devem ter nos ajudado a desestabilizar nosso olhar e a enriquecer o que podemos dizer sobre os diferentes modos como adultos e crianças, mulheres e homens, mães e pais e seus filhos e filhas, irmãos e irmãs, podem agir em consonância com seu próprio mundo e com o tipo de pessoas que nele se instauram. Para além dessas cenas e das situações contingentes que elas nos trazem, mas exatamente provocados por elas, vamos tentar avançar em nossa reflexão.
Partimos da proposta de Kelly (2003: 12-13) de recorrer a Roy Wagner (também assumido por Leite, 2010) para dar conta dos diferentes enquadramentos, dos napëpë e dos Yanomami. Ou seja, de uma forma mais ampla, ao assumir a criança como um “ser individual e natural” que, por isso mesmo precisa ser “socializado”, como ocorre na orientação coletivizante (cf. Wagner), assume-se essa natureza dada da criança, sobre a qual deve ser realizada as ações disciplinantes dessa condição primordial. As mães que seguem a lógica deste modelo apresentam uma performance coerente com esse pressuposto. Já as mães yanomami, que partiriam de um modelo simbólico diferenciante (cf. Wagner), buscam tornar possível a singularização da pessoa, uma vez que a condição humana é o dado; e a diferença o que precisa ser construído. Essa seria uma possível maneira de interpretar – no nível da interação entre mães e crianças – as duas formas de considerar Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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onde deve atuar a agência humana nesses dois modos de simbolização. Podemos dizer também que é onde deve atuar o que chamamos de “educação” – no sentido da produção de pessoas adequadas, educadas.
Uma outra reflexão nos é propiciada pelas análises de Toren (1993), quando ela observa que a matriz simbólica que orienta as sociedades modernas parte da distinção biologia e cultura e traz, na invenção cultural da noção de criança, a afirmação da criança como um “outro” (p.470), percurso esse que tem na psicanálise uma de suas referências conceituais. Curiosamente, esse “outro” é dominado por pulsões de tal ordem que, para serem explicadas na teoria psicanalítica, são paragonadas à imagem (oitocentesca) do selvagem. No entanto, aqui nos encontramos com uma presença – essa, de fato, indígena – marcada exatamente pela premissa contrária, que não atribui essa condição de alteridade e distância à criança. Pelo contrário, a insere com certa “naturalidade” na mesma ordem de pessoas humanas que os adultos (não um ser biológico “selvagem”, com potencial para se tornar adulto), embora com necessidades e capacidades diferenciadas.
O processo de individuação entre os Yanomami – que nos é indicado por Albert (1985) – é muito marcado, inclusive, pela forma como os nomes são atribuídos com quase exclusividade a cada pessoa. Embora, como nos adverte Albert (1985), na atenta releitura de Leite (2010), seja um nome em que sua razão de existir está na enunciação pelo outro: De acordo com Albert (op.cit.: 398), a antroponomia yanomami – na medida em que evita a todo custo a repetição de nomes – serve mais à individuação do que à classificação da pessoa, trazendo a marca da “singularidade mais irredutível e mais aleatória do indivíduo”. (...) Contudo há nesta individuação uma proscrição da reflexividade de uma identificação pessoal: uma pessoa (adulta) não pode nunca proferir seu nome próprio, este é sempre uma marca que lhe chega por outros. Tratase, portanto, de uma individuação que deve necessariamente passar pelos outros. (...) A singularidade objetiva do nome só pode ser empregada por outros sujeitos, é como se uma pessoa não pudesse ser socialmente um indivíduo senão por e para outros – justamente os parentes classificatórios e aliados, que fazem uso do nome (Albert op.cit.: 402). O nome próprio, parece assim selar uma concepção de pessoa que, dispersa e fragmentada em seus múltiplos componentes, situa sua identidade no olhar e voz dos outros (Leite, 2010: 78-79).
Começamos então a nos aproximar de uma concepção de criança como alguém dotado de um protagonismo em primeira pessoa, mas que não passa por, ou não coincide com, sua centralidade como pessoa, e nem mesmo pela acentuação de sua individualidade. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Todos esses elementos – individualidade, protagonismo, centralidade da pessoa – estão presentes nas concepções com as quais operamos em nossas vidas, mas aparecem aqui rearticulados em um modo que desafia nossa percepção e entendimento. E é diante desse quadro que queremos retomar a afirmação de Aracy Lopes da Silva:
As crianças devem ser vistas como ativas na construção e determinação de sua própria vida social, na dos que a rodeiam, e na da sociedade na qual vivem. As crianças não são apenas sujeitos passivos de estruturas e processos sociais (Silva 2002: 18).
Chegamos assim a identificar uma concepção de criança que, ao mesmo tempo, responde ao chamado de Aracy Lopes, e avança na direção das especificidades do quadro que caracteriza a socialidade dos Yanomami. E que nos desafia a renovar nossas parcerias entre mulheres pesquisadoras indígenas e não-indígenas – Yanomami e napëpë. Essa seria a hipótese conceitual a que chegamos no exercício que nos propusemos com este artigo que, como afirmamos, é uma incursão inicial – sobre o tema, e sobre suas novas condições de investigação. Deixamos como sugestão de reflexão, pois com certeza, o que estamos tentando colocar em movimento não diz respeito somente ao caso yanomami.
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Recebido em 31 de maio de 2017.
Aceito em 04 de setembro de 2018.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 387- 400.
(Con)textos das pesquisas com crianças/infâncias indígenas no Mato Grosso do Sul Adir Casaro Nascimento Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco
adir@ucdb.br Carlos Magno Naglis Vieira Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco
cmhist@hotmail.com Antonio Carlos Seizer da Silva Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco
aseizer@yahoo.com.br
Resumo Esse artigo foi escrito por pesquisadores da área de Educação atuantes há tempos com a Educação Escolar Indígena e que propõem um diálogo com a antropologia da criança e a etnologia indígena para suas reflexões e atuações neste campo. Realizando um mapeamento da produção neste tema na região específica de Mato Grosso do Sul, que é marcada pela violência e violação dos direitos indígenas mas também pela inovação em experiências escolares e formativas com e para indígenas, o artigo explora principalmente as mudanças epistemológicas que ocorrem neste campo quando indígenas assumem o papel de pesquisadores.
Palavras-chave: Crianças indígenas; Educação escolar indígena; Pesquisadores indígenas; Epistemologia.
(Con)textos das pesquisas com crianças/infâncias indígenas no Mato Grosso do Sul
Abstract This article was written by researchers of Education who have been working for some time with Indigenous Schools and propose a dialogue with the anthropology of children and childhood and the antropology of Indigenous Peoples as a basis for their reflections and actions in this field. Carrying out a mapping of the production in this area in the region of Mato Grosso do Sul, which is marked by violence and the violation of Indigenous rights, but also by innovation in Indigenous schooling and formative experiences with indigenous people, the article explores mainly the epistemological changes that take place in this field when indigenous people assume the role of researchers.
Keywords: Indigenous Children; Indigenous Schooling; Indigenous researches; Episthemology. Introdução As pesquisas com e sobre crianças/infâncias indígenas vem crescendo nos últimos anos, fato verificado a partir de levantamentos realizados no Banco de Teses e Dissertações da Capes. Esse crescimento das pesquisas, principalmente na área de Ciências Humanas e Sociais, com destaque para a Antropologia, em especial o campo denominado Antropologia da Criança, “um campo plenamente consolidado, com ampla representação nos debates nacionais e internacionais, em publicações e eventos de antropologia” (Cohn, 2013: 222). Essa centralidade evidencia que estamos frente à construção e ressignificação do tema que caminha por diferentes epistemologias (Vieira, 2015) e que essas produções refletem e reelaboram a visão romantizada com relação à criança/infância indígena.
Não só a Antropologia, com um campo próprio para as discussões com relação à Criança/Infância indígena, mas também a Educação tem produzido muitos trabalhos sobre a temática nos últimos anos, principalmente nos programas de Pós-Graduação que se abrem para “a experiência de aprender a ouvir as vozes dos que estão posicionados nas fronteiras da exclusão” (Backes; Nascimento, 2011: 25). O Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Católica Dom Bosco tem realizado esse exercício de ressignificação e de descolonização1 por receber discentes acadêmicos indígenas e também por “pensar sobre outros tempos e espaços, sobre o que significa viver, sobre como é possível construir outras narrativas identitárias” (Backes; Nascimento, 2011: 1
No texto a descolonização é entendida como “uma forma de (des) aprendizagem: desaprender tudo que foi imposto e assumido pela colonização e desumanização para reaprender a ser homens e mulheres. A descolonização só ocorre quando todos individualmente e coletivamente participam em sua derrubada, ante a qual o intelectual revolucionário tem a responsabilidade de ajudar ativamente e participar no ‘despertar’” (WALSH, 2009, p. 35). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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26). Sobre a presença indígena nas instituições de educação superior, registramos que os acadêmicos indígenas “tem provocado uma tensão no espaço acadêmico, no sentido de considerar o conhecimento a partir da diferença, de outras lógicas epistemológicas que não a produzida pela cultura ocidental e imposta como condição única de compreensão e concepção de mundo (Nascimento, 2014: 35). As reflexões explicitadas integram o projeto de pesquisa “A cosmovisão e as representações das crianças indígenas no Mato Grosso do Sul: as relações entre a pedagogia do cotidiano e a escola”2, vinculado ao grupo de pesquisa/CNPq – Educação e
Interculturalidade, do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado e Doutorado da Universidade Católica Dom Bosco/UCDB, e tem como objetivo trazer contribuições para as discussões dos estudos sobre criança/infância indígena e as suas singularidades.
Amparados por reflexões teóricas que se situam na convergência entre os estudos da Antropologia da Criança, das teorias pós-coloniais e dos autores do grupo Modernidade/Colonialidade, o texto, que parte das experiências de pesquisa dos autores, procura situar o cenário indígena do Mato Grosso do Sul/MS e suas complexidades e, em especial, descrever os modos de viver das crianças indígenas nestes diferentes contextos do Estado nos quais estão inseridas, tais como: terras indígenas/aldeias rurais, espaços urbanos/aldeias urbanas e situação de acampamentos/assentamentos (terras em litígio ou à beira de estradas).
Para o tratamento desse objetivo, faz-se necessário uma aproximação das produções já realizadas sobre o tema, dando destaque principalmente para os autores que utilizam um referencial bibliográfico orientado pelo diálogo com campos teóricos de análises que mostram a compreensão de que, ao descrever o campo pesquisado, “a teoria também o produz, uma vez que ela ‘conforma’ certos modos possíveis de vê-lo e de falar sobre ele” (Bujes, 2007: 21). De acordo com Paraíso (2012), esse procedimento de pesquisa deve acontecer por estarmos diante de uma proposta metodológica diferente, que faz emergir um novo tipo de pesquisador, capaz de compor, recompor e decompor teorias e métodos.
Neste sentido, o uso da bricolagem e da parceria com pesquisadores indígenas tem nos permitido uma maior aproximação com a criança indígena, pois compreendemos a necessidade de um aprofundamento epistemológico que nos permita um olhar diferenciado no contexto cultural, histórico e social em que estas crianças estão inseridas. Ou seja, a construção deste “olhar diferenciado” nos remete a um deslocamento enquanto pesquisadores: a compreensão dos processos de significação que as crianças fazem. Neste 2
O projeto de pesquisa conta com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq até 2017.
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sentido fica evidente a necessidade de uma revisão epistemológica, da produção de um trabalho etnográfico e/ou autoenográfico (levando-se em consideração as pesquisas realizadas por intelectuais indígenas), como alternativa metodológica, voltado para a infância indígena a partir das relações que com ela, a criança, são estabelecidas, considerando os contextos socioculturais particulares (histórias de contato e intermediações com os entornos) em que os saberes e as representações são produzidas. As pesquisas até então realizadas por indígenas3 e não-indígenas têm evidenciado
que as crianças indígenas constituem fontes de saber e estabelecem negociações com os mais idosos que respeitam as suas vontades no contexto do cotidiano por acreditarem em suas “sabedorias” infantis, bem como são produtoras e transmissoras de cultura, saberes e conhecimentos, em especial entre seus pares, ou seja, produzem e transmitem os seus saberes entre si, desconstruindo a clássica narrativa de que a cultura indígena é transmitida de geração a geração (pelos mais velhos aos mais novos).
O Mato Grosso do Sul e os povos indígenas O Mato Grosso do Sul é um território que possui uma grande diversidade demográfica e cultural4, representada por múltiplas línguas e inúmeros sotaques. Dentre os segmentos populacionais do Estado, destacam os povos indígenas, que, com a segunda maior população do país, apresenta um contingente indígena de aproximadamente 78 mil pessoas, segundo os dados do IBGE/2010, divididas em 8 (oito) etnias indígenas, sendo: os Kaiowá e Guarani (44.351 pessoas, habitam a região sul do Mato Grosso do Sul), os Terena (28.080 pessoas, sediados na região centro-oeste do Estado); os Kadiwéu (1.426 pessoas, localizados no extremo oeste da região, na maior área indígena fora da Amazônia Legal, suas terras estendem entre os município de Bodoquena e Porto Murtinho); os Guató (175 pessoas, antigos povos pescadores das margens do rio Paraguai, sediados no extremo norte do Mato Grosso do Sul, fronteira Brasil/Bolívia); os Ofaié (61 pessoas, localizados na região de extremo sul do Estado); os Kinikinau (136 pessoas, localizados no extremo oeste do Estado, mais precisamente na Terra Indígena Kadiwéu); e os Atikum (30 3 4
A linha de pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena/PPGE/UCDB, desde sua criação em 2004 já recebeu 21 acadêmicos indígenas, 17 já concluíram o mestrado e um concluiu o doutorado, além de cinco estarem com suas pesquisas em andamento no curso de mestrado. Estão presentes no território do Mato Grosso do Sul/MS populações de migrações nacionais (nordestinos, mineiros, paulistas, catarinenses, paranaenses, baianos e gaúchos) e estrangeiras vinda da Europa, Ásia e Oriente Médio (portugueses, húngaros, russos, búlgaros, gregos, franceses, poloneses, italianos, alemães, sírios, armênios e japoneses), além de populações quilombolas, camponesas, ribeirinhas e de fronteira. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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pessoas, oriundos de Pernambuco5, são sediados atualmente no centro-oeste do Estado mais notadamente na Terra indígena Terena de Nioaque/MS e Miranda/MS). Segundo Nascimento, Brand e Aguilera Urquiza (2011, p.18),
com exceção dos Kadiwéu, os demais vivem em contextos marcados pela perda territorial e correspondente confinamento em terras reduzidas, com os recursos naturais profundamente comprometidos, os quais não oferecem mais condições para a sua sustentabilidade.
Analisando o cenário indígena do Mato Grosso do Sul, identificamos uma forte presença e influência da colonialidade, principalmente pelo fato de provocar um padrão de controle, hierarquização e classificação dessa população (Quijano, 2005). Amparado pelas leituras do grupo Modernidade/Colonialidade6, verificamos que estamos diante de um “Estado em que a ‘cultura do boi’ dita as regras e impõe seus valores, e a economia do agronegócio e da pecuária constrói, estimula e reproduz um discurso carregado de estereótipos e intenso preconceito e discriminação” (Vieira, 2015: 127). A presença do colono resultou em um processo histórico agressivo e violento, principalmente a partir da década de 19207, que, interessados no domínio e na exploração
do território e do mercado, provocaram, por consequência, um “esparramo”8 (Brand, 1993), um “confinamento”9 (Brand, 1997) e um silenciamento dos grupos que já habitavam o local.
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Os índios Atikum que vivem em Mato Grosso do Sul saíram da Serra do Umã em diferentes fluxos migratórios e por diversas razões, entre a década de 1970 e 1980, atravessando o território nacional até se estabelecerem em Nioaque/MS e Miranda/MS (ULIAN, 2013). O grupo Modernidade/Colonialidade é formado por inúmeros intelectuais de nacionalidade latinoamericana e americanista. Dentre eles se destacam o filósofo argentino Enrique Dussel, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o semiólogo e teórico cultural argentino Walter Mignolo, o sociólogo portoriquenho Ramón Grosfoguel, a linguista norte-americana radicada no Equador Catherine Walsh, o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado Torres, o filósofo colombiano Santiago Castro-Gómez, o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, o antropólogo colombiano Arturo Escobar, a semióloga argentina Zulma Palermo, o antropólogo venezuelano Fernando Coronil e o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein. Referimos-nos ao estado de Mato Grosso, período anterior a divisão do Estado, em 11 de outubro de 1977. O termo esparramo, segundo Brand, foi amplamente empregado pelos informantes indígenas para
caracterizar o processo de destruição das aldeias e o desmantelamento das famílias extensas em função do desmatamento. É o processo de dispersão que precede o confinamento no interior das reservas. A informação pode ser consultada na dissertação de mestrado de Antônio J. Brand (1993). Segundo Brand, o confinamento dos Kaiowá e Guarani deu-se por diferentes fatores, em especial, em decorrência da perda de seus territórios tradicionais, provocando a falta de condições para manterem seu modo de ser nos tekoha (aldeias) tradicionais, fazendo com que se aglutinassem dentro das reservas instaladas pelo SPI. A informação pode ser consultada na tese de doutorado de Antônio Jacó Brand (1997),
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Neste sentido, essa “colonialidade do poder”, que ainda perdura muito forte no Mato Grosso do Sul, evidencia que “os grupos que vieram de fora [e] fixaram uma hierarquia racializada [entre]: brancos (europeus), mestiços [e,] apagando suas diferenças históricas, culturais e linguísticas, [tendo] índios e negros como identidades comuns e negativas” (Walsh, 2009: 14). Se para Walsh (2009), em uma interpretação mais genérica, houve um “apagar” das diferenças, em nossas observações junto aos povos indígenas e, neste caso, com as crianças indígenas, esse “apagar” não acontece. Há um silenciamento e uma subalternização de suas manifestações culturais (econômica, linguística, espiritual) que foram sendo ressignificadas, traduzidas, mas não “apagadas”. Poderíamos inferir que, talvez, em alguns grupos étnicos essa subalternização e/ou silenciamento fosse mesmo estratégico, ou, por outra, se enfatizou processos concebidos de negociação, como parece ser com as crianças indígenas urbanas (Vieira, 2015).
As condições de vida dos povos indígenas, em especial os sul-mato-grossenses é de sofrimento, pois desde a colonização, vêm sendo posicionados como minorias étnicas e, por esse motivo, têm vivido “nas margens da sociedade branca ou como obstáculos para a implantação dos valores civilizatórios, sendo vistos como ervas daninhas que devem ser eliminadas, sufocadas” (Backes; Nascimento, 2011: 25) e silenciadas na identidade do Estado.
No cenário indígena de Mato Grosso do Sul, em decorrência das diferentes situações apresentadas, destacamos o crescimento do número de indígenas que deixaram as aldeias no campo e migraram para a cidade. Entre as principais justificativas para o deslocamento de indígenas para o espaço urbano estão: a falta de trabalho nas comunidades indígenas e a degradação da terra (Vieira, 2015). Além disso, contribuem para esse êxodo o convite dos parentes para se juntar a eles, a necessidade de um tratamento de saúde, a falta de escolarização na aldeia, desentendimentos ou conflitos com lideranças e/ou membros da comunidade. Em decorrência desses fatores presenciamos no Mato Grosso do Sul 14 mil indígenas em contexto urbano10, segundo os dados do IBGE/2010. Essa população, grande parte
da etnia Terena, está distribuída em inúmeros municípios do estado. Dentre as cidades com maior contingente populacional indígena vivendo em contexto urbano se destacam: Campo Grande, Dourados, Sidrolândia, Amambaí, Miranda, Maracaju, Rio Brilhante e Nova Alvorada do Sul.
10 Como estamos diante de uma temática complexa, as produções sobre o assunto não apresentam um consenso com relação a que termo empregar: índios urbanos, índios na cidade, índios da cidade, índios citadinos, índios em área urbana e índios em contexto urbano (VIEIRA, 2015, p. 89). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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É importante registrar que não é somente na terra indígena que os povos indígenas sofrem com um processo histórico agressivo e violento. No espaço urbano, o processo histórico de violência e confrontos diretos ficam menos aparentes, mais silenciados, o que resulta na ausência de conhecimento da população não indígena sobre os indígenas em contexto urbano, além do preconceito e da negação da alteridade indígena (Vieira, 2015).
A população indígena em situação de acampamento/assentamento é outro contexto que encontramos no território sul-mato-grossense. Também conhecidos como indígenas de “corredor” (Cavalcante, 2013), esse grupo estão situados às margens de rodovias do Estado ou em uma pequena porção da área que reivindicam, em que lutam e aguardam a demarcação de suas terras. Em outras palavras, Pereira (2006) escreve que essa população, grande maioria famílias indígenas Guarani e Kaiowá, vivem de forma isolada em áreas que ficam delimitadas entre uma pista asfaltada e o cercado de arames.
De acordo com os estudos de Cavalcante (2013), somente entre os indígenas da etnia Guarani e Kaiowá existem no Mato Grosso do Sul 25 áreas nessa situação, destacando: Guaiviry (Aral Moreira-MS), Kokue’i (Ponta Porã-MS), Laranjeira Ñanderu (Rio Brilhante), Passo Piraju (Dourados-MS), Y po’ i (Paranhos-MS), Itay Ka’aguy Rusu (Douradina - MS), Guyra Kambiy (Douradina - MS), Pyelito Kue (Iguatemi-MS) e Kurusu Amba (Coronel Sapucaia - MS), entre outros. Os indígenas em situação de acampamento/assentamento “são marcados por ações de retomada de terras com histórico de conflitos violentos, com registros de assassinatos em muitos casos” (Cavalcante, 2013: 107). Neste caso, dos acampamentos, as crianças ficam em situação de maior vulnerabilidade e instabilidade.
As populações indígenas do Mato Grosso do Sul são marcadas por um processo de enfrentamento, no qual as perdas territoriais e humanas, o preconceito e a discriminação são constantes. Diante dessa situação, os indígenas são “constantemente desafiados a moldar e remoldar sua organização social, construir e reconstruir sua forma de vida e desenvolverem complexas estratégias, alternando momentos de confrontos diretos, permeados por enorme gama de violência, com negociações, trocas e alianças” (Brand; Nascimento, 2006: 02).
Contextualizando as crianças/infâncias indígenas no Mato Grosso do Sul
Os estudos com crianças/infância indígena iniciou no cenário brasileiro, no período de 1980 a 1990, pelos antropólogos que dedicavam seus estudos às populações indígenas. Segundo Cohn (2013: 222), os primeiros estudos sobre as infâncias indígenas já mostraram que “as crianças têm a dizer de seu mundo. Um mundo que às vezes, como em outros campos de pesquisa, só é acessível por meio delas, já que embora conhecido,
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é obliterado pelos adultos”. Verificamos, ainda, que isso somente aconteceu porque os estudiosos passaram a observá-las “no que elas são, ouvindo-as, acompanhando-as em suas atividades e em seus passos” (Cohn, 2013: 224).
A partir das crianças e suas experiências é que procuramos descrever seus modos de viver nestes diferentes contextos do Estado nos quais estão inseridas, tais como: terras indígenas/aldeias rurais, espaços urbanos/aldeias urbanas e situação de acampamentos/ assentamentos (terras em litígios ou à beira de estradas).
Para entender a criança indígena, o mundo em que está inserida e o modo como experimenta e se expressa na vida social, é necessário compreender as muitas infâncias indígenas. Para isso, é preciso estar atento à cosmovisão do povo indígena, as suas diferentes culturas, as suas trajetórias e seus inúmeros contextos. As crianças indígenas que estão em espaço rural, ou seja, vivendo em Terras Indígenas, possuem um papel muito importante dentro de sua sociedade, e, como destaca Lima:
vivenciam situações que vão permitindo, no universo da vida, interações sociais com membros da comunidade mais experientes, os adultos, que orientam e contribuem com o desenvolvimento do pensamento e o próprio comportamento da criança (Lima, 2008: 78).
Todas as pesquisas, sejam elas no campo da educação e/ou da antropologia, que têm por enfoque a criança indígena apontam que a liberdade e a autonomia nas atividades cotidianas favorecem o seu aprendizado por meio do olhar e do observar os mais velhos. Essa vivência da criança indígena permite a ela “criar, reinventar, reelaborar sentidos e traduções sobre os fenômenos que as cercam e experienciam e transmitem culturas e saberes, inclusive para o mundo dos adultos” (Nascimento; Aguilera Urquiza; Vieira; 2011: 33). As brincadeiras entre as crianças indígenas se fazem muito presentes, pois as atividades realizadas por essas crianças têm um papel significativo na vida delas. Nunes (2002) explica que, quando as crianças brincam, elas estão contextualizando e elaborando o contexto social em que vivem. Beatriz Landa (2011), em uma pesquisa com indígenas Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul, apresenta que numa simples brincadeira em uma mina d´água já é possível observar aprendizagens com implicações para a vida adulta. Entre as brincadeiras praticadas pelas crianças indígenas no Mato Grosso do Sul estão o futebol, as bolinhas de vidro, conhecido como bolinha de gude. Junto a essas brincadeiras tradicionais, é Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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comum encontrar nas comunidades indígenas bonecas, carrinhos e outros brinquedos apropriados pelas crianças indígenas do século XXI (Seizer da Silva, 2016).
As crianças indígenas que estão em contexto urbano e rural são observadoras e atuantes, pois perambulam por todos os espaços da comunidade, conhecem todos os parentes, casas, lugares, a geografia do local onde vivem e são as anfitriãs da comunidade (Seizer da Silva, 2016; Vieira, 2015; Nascimento; Aguilera Urquiza; Vieira, 2011; Cohn, 2005). Isso nos mostra o quanto “ela interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações” (Cohn, 2005: 28).
É possível verificar nas pesquisas com as crianças indígenas o quanto são respeitadas e reconhecidas em suas comunidades, possuindo liberdade nas escolhas e decisões, comportamento muito diferentes das crianças não-indígenas. Segundo Nunes e Carvalho (2007: 4) “a criança não só participa [da comunidade], mas [...] a sua participação pode adicionar algo à vida social, transformando-a”. Por esse motivo, muitos indígenas as veem como produtoras de muitos conhecimentos, até mais que os adultos; por isso, possuem um lugar significativo dentro da cultura. Ainda, sobre esse assunto, Tassinari (2007: 23) destaca: Ao contrário de nossa prática social que exclui as crianças das esferas decisórias, as crianças indígenas são elementos-chave na socialização e na interação de grupos sociais e os adultos reconhecem nelas potencialidades que as permitem ocupar espaços de sujeitos plenos e produtores de sociabilidade.
O fato das crianças indígenas sempre estarem juntas observando e interagindo com os adultos tem evidenciado que elas estão aprendendo as regras de convívio social, pois são os pais responsáveis pela socialização das crianças, principalmente por integrá-las na vida da comunidade transmitindo valores e tradições, sendo competência dos parentes próximos e das pessoas com quem se relacionam cotidianamente.
As crianças indígenas em contexto urbano, além do ambiente da aldeia e da família, circulam por diferentes espaços da cidade, frequentam escolas, creches, igrejas, shoppings, clubes, praticam atividades esportivas e realizam cursos profissionalizantes em diferentes instituições de ensino. Assim como na Terra Indígena, as crianças em contexto urbano “acabam repassando aos pais o que viram e ouviram, desempenhando o papel de facilitadores de comunicação” (Pereira, 2011: 97). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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As lideranças indígenas urbanas de Campo Grande/MS11 consideram que as crianças indígenas que vivem na cidade estão em “desvantagem”, principalmente porque estão perdendo o contato diário com o seu povo, sua cultura, sua tradição e sua vida comunitária. Nessa perspectiva os avós são acionados, ora vindo para a cidade, ora levando os netos para suas comunidades rurais, pois assim podem dedicar um tempo maior para sempre ouvir as crianças, brincar com elas, contar histórias e mitos, na expectativa de despertar o interesse na cultura e na tradição.
Em conversas com as lideranças indígenas, verificamos que muitos moradores sentem que as crianças indígenas em contexto urbano estão limitadas, principalmente com relação a determinadas atividades e brincadeiras, pois na cidade os perigos são diversos, desde excessivo trânsito a exposição à violência, visto que geralmente essas aldeias são vizinhas de conglomerados com grande quantitativo de não-indígenas em vulnerabilidade social. Essa situação mostra o quanto a identidade indígena em contexto urbano está sendo ressignificada na interação com a sociedade não-indígena, ou seja, estão sendo “formado[a] e modificado[a] num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (Hall, 2004: 11), sendo imersas em diversos entrelugares12 que se articulam e produzem novas posições. São crianças que
transitam entre fronteiras.
O processo de construção das crianças das aldeias urbanas é diferente no que tange os artefatos culturais, porém, a construção simbólica e cosmológica, apesar de hibridizada, é a que interliga os sujeitos que mantem contatos permanentes. O hibridismo coloca sobre a mesa um jogo de posições ambivalentes, pois se observa que o que está em jogo não é mais ser indígena ou não-indígena, mas a questão é carregar marcas e significados culturais.
As crianças indígenas que vivem em situação de acampamento no Mato Grosso do Sul entendem que o espaço de retomada é a possibilidade de um “futuro melhor”, se envolvendo desde o planejamento a sua vivência no espaço conquistado, num processo de manutenção cultural. Nesse contexto elas compreendem o sentido e o significado que a terra e o território possuem para a sua cultura, principalmente para a manutenção das práticas culturais de seu povo, ou seja, “as crianças não são apenas produzidas pelas
11 As lideranças indígenas mencionadas no texto correspondem a população indígena da Aldeia indígena urbana Darci Ribeiro. O diálogo com esse grupo foi realizado entre o período de 2012 a 2014. O município de Campo Grande/MS possui aproximadamente 6 mil índios (IBGE/2010), distribuído em 5 aldeias indígenas urbanas: Aldeia indígena urbana Marçal de Souza, Água Bonita, Darci Ribeiro, Tarsila do Amaral e Indubrasil. Além desses 5 espaços, a capital do Mato Grosso do Sul possui mais 4 assentamentos indígenas urbanos. 12 Bhabha ( 2003) Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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culturas, mas também produtoras de cultura” (Cohn, 2005: 35).
Circulando com as crianças no acampamento é possível observar o quanto elas são dinâmicas, pois caminham por todo o espaço, até mesmo nas proximidades das fazendas e nas margens das rodovias. Além de perambular pelos diversos lugares, as crianças interagem não somente com os adultos e as demais crianças da aldeia, mas também com o mundo à sua volta. As crianças indígenas que estão em situação de acampamento, mais precisamente as da etnia Guarani e Kaiowá, apresentam no que se referem à educação escolar um contexto muito próximo das crianças indígenas urbanas, pois vivem a todo momento as consequências da colonialidade sofrendo preconceitos, discriminação e principalmente a não aceitação da sua diferença, fatores verificados nas instituições não-indígenas que frequentam, como a escola, em alguns casos, como no assentamento indígena Laranjeira Ñanderu, cujas crianças, em idade escolar, estudam em escola não indígena (Gutierrez; Aguilera Urquiza, 2013) Os contextos indígenas do Mato Grosso do Sul são muito variados, porém, os aspectos de discriminação, subalternização e inferiorização em que a criança vive, permite mostrar sentidos próprios
mesmo que esse sentido seja do mundo imaginário, pois nesse processo de aprender e apreender o mundo que descobre com suas experiências, ela amplia suas formas de recriar o mundo e aprender apreendendo-o de forma cada vez mais enriquecida e complexa. (Tassinari, Grando e
Albuquerque, 2012: 08).
As observações aqui apresentadas evidenciam a necessidade de continuarmos a pesquisar com as crianças indígenas, pois esse universo pouco conhecido com suas singularidades demonstra o reconhecimento das mesmas como sujeitos ativos e produtoras de cultura. Cohn (2005: 8) afirma que é necessário nos “desvencilharmos das imagens preconcebidas e abordar esse universo e essa realidade tentando entender o que há neles, e não o que esperamos que nos ofereçam”. Embora já tenhamos realizado algumas pesquisas e acompanhado muitas outras, particularmente, as realizadas pelos intelectuais indígenas com a construção de metodologias próprias, com estratégias outras orientadas pelas suas pedagogias, pela oralidade, pelas suas cosmovisões, particularmente pela representação/cosmovisão que têm de criança/infância indígena, muito há para se conhecer sobre a construção étnica das crianças e as suas concepções e compreensão de mundo. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Os aspectos pinçados nesse trabalho são reflexões em um caminho aberto que em muito temos a percorrer para entendermos a vastidão em que as crianças sul-matogrossenses estão inseridas e estabelecem relações, principalmente para descentrar o pensamento decolonial presente nos sujeitos e nas instituições que recebem as crianças indígenas. Queremos aqui reforçar que entender o outro é um esforço enorme para compreender suas práticas, mas viver com as aprendizagens do outro-criança é a possibilidade de nos recentrarmos partindo de dentro de epistemologias que só serão de fato compreendidas quando adentrarmos esse universo.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 401-423.
Infância indígena no Sul do Brasil: considerações a partir de uma disciplina de Licenciatura Indígena Antonella Maria Imperatriz Tassinari Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina antonella.tassinari@gmail.com Suzana Cavalheiro de Jesus Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pampa suzanacavalheiro@yahoo.com.br Clarissa Rocha de Melo Doutora em Antropologia Social/Ação Saberes Indígenas na Escola (Núcleo UFSC) claramelo0505@gmail.com
Resumo O artigo aborda a diversidade de concepções de infância indígena no sul do Brasil, a partir dos trabalhos apresentados pelos acadêmicos Guarani, Kaingang e Xokleng na disciplina Infância Indígena, durante o Curso de Licenciatura Intercultural do Sul da Mata Atlântica/ UFSC. Ao serem motivados a apresentar as concepções de infância de seu povo e como compreendem o seu desenvolvimento, cada turma enfatizou aspectos relacionados também à cosmologia e socialidade: os Guarani enfatizaram a cerimônia de nominação e aspectos relacionados à alma-palavra; os Kaingang ressaltaram o pertencimento da criança às metades Kamê ou Kairu, dando ênfase à sua dimensão social; os LaklãnõXokleng indicaram que a infância não é uma atributo da pessoa em determinada fase da vida, mas diz respeito à posição da pessoa numa relação (com os pais) que perdura toda a vida. Ao analisar os interessantes resultados desses trabalhos universitários, pretendemos demonstrar a diversidade e complexidade das concepções indígenas de infância, bem como demonstrar a fertilidade e potência das pesquisas realizadas por acadêmicos indígenas. Palavras-chave: antropologia; infância; licenciaturas indígenas; kaingang; laklãnõxokleng; guarani.
Antonella Maria I. Tassinari, Suzana Cavalheiro de Jesus, Clarissa Rocha de Melo
Abstract The paper addresses the diversity of indigenous childhood conceptions in southern Brazil, based on the work presented by Guarani, Kaingang and Xokleng students for the Indigenous Childhood subject, during the Intercultural Licentiate of the South Atlantic Forest Course/ UFSC. When motivated to present their people’s conceptions of childhood and how they understand their development, each group emphasized aspects also related to cosmology and sociality: the Guarani mentioned the Nomination Ceremony and characteristics related to the Soul-Word; the Kaingang highlighted the child’s belonging to the Kamê or Kairu halves, stressing their social dimension; the Xokleng indicated that childhood is not an attribute of the person at a particular stage of life, but that it relates to a person’s position in a relationship (with his/her parents) that continues throughout life. By analyzing the interesting results of these university works, we intend to demonstrate the diversity and complexity of the indigenous conceptions of childhood, as well as demonstrate the fertility and potency of the research conducted by indigenous students. Keywords: anthropology; childhood; indigenous teaching degree; kaingang; laklãnõxokleng; guarani.
Apresentação Este artigo é fruto de uma experiência de docência junto à primeira turma da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, ocorrida na disciplina Infância Indígena, ministrada no segundo semestre de 2012, para três classes, cada qual com cerca de 40 alunos: guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng. A disciplina envolveu uma série de negociações relativas ao tratamento da vida das crianças, um assunto doméstico e cotidiano, enquanto um tema acadêmico e objeto de uma disciplina específica. De certo modo, e fazendo uma retrospectiva crítica de nossa atuação, percebemos que promovemos um processo de “disciplinar a infância”, na medida em que procuramos operar uma tradução de seus modos cotidianos de tratar, cuidar e compreender as crianças, enquanto um assunto a ser discutido na sala de aula, pesquisado, sistematizado e objetificado em trabalho final.
O artigo procurará refletir sobre esse processo e sobre as diferentes respostas dadas por cada turma, buscando compreendê-las como fruto de suas especificidades sóciocosmológicas e relações estabelecidas historicamente com a educação escolar. Para tanto, faremos uma breve apresentação do Curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica e da proposta da disciplina Infância Indígena no âmbito do seu Projeto Político Pedagógico, para seguir com a apresentação de algumas discussões desenvolvidas pelas turmas e dos resultados dos trabalhos apresentados. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Acreditamos que essa reflexão auxilia o entendimento da variedade e complexidade da infância indígena no sul do Brasil e nos permite pensar em conceitualizações de infância que transbordam os critérios que habitualmente utilizamos para defini-la.
Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica (LII) e os acadêmicos da primeira turma O curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, sediado na Universidade Federal de Santa Catarina, teve sua primeira turma iniciada em 2011, com 120 estudantes Guarani (ES, RJ, SP, PR, SC, RS), Kaingang (SP, PR, SC, RS) e LaklãnõXokleng (SC), com formatura de 78 alunos realizada em 2015. Encontra-se atualmente em andamento com uma segunda turma de 45 alunos iniciada em 2016. Com financiamento dos editais PROLIND-SECADI-MEC, está em processo de institucionalização dentro da estrutura da universidade, com vistas à abertura de turmas subsequentes.
O Projeto Político Pedagógico (UFSC 2009) que orientou a primeira turma tinha como eixo norteador: Territórios Indígenas – Questão Fundiária e Ambiental no Bioma Mata Atlântica. O curso oferecia a habilitação comum em Licenciatura da Infância, visando à docência na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, além de uma segunda habilitação a escolher entre três terminalidades – Licenciatura das Linguagens, Licenciatura em Humanidades e Licenciatura em Conhecimento Ambiental –, visando a docência nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. A disciplina Infância Indígena, foco deste artigo, foi oferecida no quarto semestre, quando a turma era dividida por grupo étnico em três classes (guarani, kaingang e xokleng). A partir do sexto semestre, os estudantes escolheram uma das três terminalidades e as classes passaram a congregar as três etnias, agora separadas por terminalidades.
Como é comum nos cursos de Licenciatura Indígena no país, a LII-UFSC funciona a partir da pedagogia da alternância, dividido o calendário letivo em tempo universidade – etapas presenciais e intensivas na Universidade Federal de Santa Catarina – e tempo comunidade – quando retornam para suas comunidades e realizam os trabalhos solicitados para a formação.
Certa itinerância acabou sendo característica do curso: além das constantes mudanças de prédios, salas de aula, os períodos das etapas presenciais são bastante variados. Em alguns momentos, coincidem com o período de recesso letivo da UFSC e, em outros, ocorrem nos períodos de aulas, estimulando, portanto, os encontros e diálogos com os estudantes não indígenas. Muitos foram os momentos em que os acadêmicos indígenas Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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puderam entrar em contato com esse ambiente universitário: a grande fila do Restaurante Universitário (RU), que os assustava; as atividades musicais e as rodas de capoeira, que encantavam os acadêmicos indígenas às quartas feiras, no “Projeto 12:30”1; os eventos sediados na Universidade – como a SEPEX (Semana de Pesquisa e Extensão) – quando os indígenas entraram em contato com os núcleos da Universidade e conheceram as pesquisas em desenvolvimento2. Enfim, foram diversos momentos de encontros, troca de saberes e também de estranhamentos – como para os acadêmicos Guarani, que achavam exagerado o barulho das conversas no RU e em outros locais da Universidade.
Foram momentos (e ainda são) em que os acadêmicos indígenas refletiam sobre o modo de pensar e agir dos não-indígenas e, aos poucos, formavam parte do cenário da UFSC: cada grupo selecionava sua árvore preferida e lá sentava para descansar nos intervalos das aulas, fumar um petyngua (cachimbo) e conversar. Aos poucos as pessoas iam chegando, perguntavam se podiam sentar e começavam a fazer perguntas que eram, em sua maioria, respondidas com simpáticas risadas. Ao passo que se acostumaram – de certo modo – ao espaço acadêmico, ressaltaram que as etapas que ocorreram no espaço de um hotel, contemplaram aspectos importantes: podiam assistir às aulas no mesmo local que iriam pernoitar, acordavam mais tarde, não havia trânsito e, além disso, as crianças tinham bastante espaço para brincar, com direito a parquinho e praia.
A LII conseguiu garantir que as crianças acompanhassem suas mães estudantes, condição fundamental para que algumas mães pudessem frequentar a Universidade, com o auxílio de cuidadoras. As crianças eram levadas a cada etapa, transitavam pelo espaço universitário, às vezes assistiam às aulas junto com suas mães e, aos poucos, foram crescendo na Universidade. Ali os acadêmicos indígenas reproduziam, de certo modo, o jeito de cuidar das comunidades indígenas: todos olhavam as crianças, muitos colegas de sala ajudavam as mães carregando seus filhos no colo, empurrando o carrinho e cuidando para que nada acontecesse às crianças, enfatizando a coletividade na criação das mesmas. Durante as etapas presenciais ou tempo-universidade, os acadêmicos indígenas esforçaram-se para vivenciar uma rotina que não faz parte do cotidiano das aldeias. Assim, o tempo-universidade se traduziu também, num tempo de transitar nos bairros de
1 2
O “Projeto 12:30” é um evento que acontece todas às quartas feiras na UFSC, e tem como foco apresentações artísticas e musicais sediadas na “concha acústica”, localizada no pátio central da Universidade. Na SEPEX realizada em outubro de 2013, foi criado um estande para a Licenciatura Intercultural, onde os acadêmicos indígenas puderam expor seus trabalhos em andamento e dar visibilidade do curso à comunidade acadêmica e em geral. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Florianópolis, conhecer suas características e as peculiaridades de cada hotel. Exemplo disso foi quando os acadêmicos hospedaram-se em um hotel com a estrutura de um prédio. Uma das estudantes Guarani nunca tinha andado de elevador e não quis enfrentar esse medo, pediu para trocar de quarto para que pudesse subir pelas escadas. Apesar desse incômodo, ficou maravilhada com a praia que se localizava nas proximidades.
O tempo universidade era também o tempo de conhecer a ilha de Florianópolis e vivenciar as distintas experiências que ocorreram de norte a sul da ilha: hotéis e bairros distintos, praias, amigos que moram nas proximidades. Tudo era novidade. Para experimentar as novidades, a turma Guarani – que possui estudantes que vivem nas aldeias mais próximas da ilha – traziam seus filhos e parentes para passar os fins de semana e até mesmo para as atividades do curso, que incluem viagens de campo a locais próximos. Esse tempo universidade também criou situações de espanto com a realidade da cidade, como um evento de greve quando um ônibus foi incendiado ao lado do hotel em que estavam alojados – foi uma cena chocante. Por outro lado, tomaram parte de uma grande mobilização que tomou conta das ruas do país em apoio aos grupos Guarani Kaiowá: saíram de ônibus de linha da Universidade e, em grandes grupos, se dirigiram rumo ao centro da cidade com faixas e placas em solidariedade aos parentes. É possível perceber que esse tempo universidade é um tempo de intensa exigência física e emocional, mas também de muitos aprendizados e reflexões sobre as experiências vividas. Experiências que provocam mudanças em cada um deles: uma nova maneira de pensar, de agir, de se organizar politicamente3.
A pesquisa de Melo (2014) traçou um perfil do alunado desta primeira turma. Observou que a maioria dos acadêmicos são professores indígenas, mas há uma parcela que não exerce a profissão, e que teria outros objetivos com o curso, que não necessariamente
atuar em sala de aula. Alguns indígenas trabalham em outras atividades nas aldeias, como Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e de Saneamento (AISAN); alguns ainda estão inseridos em projetos de sustentabilidade e outros projetos (Associação de mulheres, de pais e professores) nas comunidades; atividades nas igrejas e preparação de eventos religiosos também exigem tempo e dedicação de alguns estudantes – como acontece entre os Laklãnõ-Xokleng. As turmas de estudantes guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng tinham grandes diferenças. Para muitos deles, a rotina universitária de trabalhos para serem realizados 3
Observamos que os estudantes fortalecem a participação nos movimentos de estudantes, encontros e seminários que acontecem na Universidade e em outras universidades. Exemplo disso foi o encontro de estudantes indígenas que ocorreu na UFSCar e contou com a presença dos acadêmicos LaklãnõXokleng da UFSC em sua maioria.
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em casa não era habitual, principalmente no caso dos acadêmicos Guarani, que tem um histórico mais recente de escolarização e poucos estudantes com outras graduações. Já entre os Laklãnõ-Xokleng e Kaingang, muitos já haviam cursado outras graduações e estavam mais habituados à rotina e disciplina acadêmica4. Observando as três turmas, percebeu-se que tanto os acadêmicos Kaingang quanto os Laklãnõ-Xokleng vinham de gerações escolarizadas: seus pais foram à escola, alguns tem avós que passaram pelo processo escolar. Já os acadêmicos Guarani foram a primeira geração a frequentar escolas, aspecto que, por si só, provoca diferenças na facilidade/dificuldade de enfrentar os “ritmos acadêmicos”. A Língua Indígena é um aspecto valorizado pelos acadêmicos, visto como um problema em diversas TIs. A turma Kaingang é falante da língua materna, todavia, não são todos os acadêmicos que são bilíngues – alguns apenas entendem a língua Kaingang, mas falam português. Entre os Laklãnõ-Xokleng esse índice diminui ainda mais: não são todos os estudantes que falam a língua. Eles lutam, na atualidade, para “pró- vitalizar” a língua nativa. A turma Guarani é aquela que percebemos o maior número de falantes, com apenas algumas exceções. Muitos foram inclusive alfabetizados apenas em Guarani e aprenderam a língua portuguesa em idade adulta. Portanto, percebemos dois movimentos: acadêmicos que ao iniciar o curso ainda não falavam bem a língua indígena; e outros que não falavam bem a língua portuguesa. Um aspecto é presente nas três turmas: todos percebem cada vez mais a importância da língua indígena, a valorizam, e enfatizam a necessidade de incentivar as crianças a falar e valorizá-la também. Ainda observando as três turmas, segundo Melo (2014), percebeu-se que o número de mulheres é reduzido em comparação ao número de homens, sendo que, na turma Guarani, a presença feminina é ainda menor. Todavia, na atualidade, o Ensino Superior tem atraído cada vez mais as mulheres, que se utilizam deste como estratégia para diversos fins que vão além de uma qualificação profissional5.
Outro dado interessante é que a maior parte destes acadêmicos são professores indígenas que atuam nas escolas de suas comunidades. Nota-se que o percentual de
4 5
Essa situação é reflexo das diferentes histórias de escolarização de cada povo em Santa Catarina. Enquanto os Laklãnõ-Xokleng e Kaingang foram escolarizados pelo SPI desde a primeira metade do século XX (Santos, 1973;1975), os Guarani recusaram a educação escolar em suas aldeias até os anos 1990 (Oliveira 2004). Um trabalho que investigou sobre o tema (Lasmar, 2009) mostrou que as mulheres do Alto Rio Negro percebiam a escola e o ensino superior como um mecanismo de se reposicionar entre seus parentes. A partir das regras de parentesco, a mulher consegue, mudando-se para cidade, trazer sua família, sua mãe, irmãs e demais parentes para viver junto dela, algo impensável diante das regras do Uaupés, onde ela, ao casar-se, deve se afastar dos parentes e viver com a família do marido e aprender a falar a língua dele, geralmente proveniente de outro grupo étnico. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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professores na turma é maior entre os Guarani. A maioria deles está dando continuidade à sua formação no Magistério. Por outro lado, há vários acadêmicos que não são professores, e alguns que não pretendem seguir a carreira, mas percebem a formação em Licenciatura Indígena como mais uma possibilidade de atuação dentro das comunidades indígenas. Este é outro aspecto variável, pois enquanto as turmas Guarani e Kaingang querem a formação principalmente para atuar dentro das escolas indígenas, a turma LaklãnõXokleng enfatizou, ao longo do processo, o desejo de trabalharem como professores em outras escolas, inclusive não-indígenas.
Deste modo, apesar do curso ser voltado à formação de professores, o interesse desses grupos é variável, e não pode ser traduzido como uma busca apenas por formação ou qualificação profissional. A universidade é uma porta de acesso aos saberes dos brancos e também ao modo como estes pensam e agem.
Retomando os dados gerais sobre esses acadêmicos indígenas levantados por Melo (2014), observou-se que pouco mais da metade dos Guarani e Kaingang era casada (56% e 58%, respectivamente). A maioria dos acadêmicos indígenas das três turmas eram jovens, alguns tinham entre 18 e 19 quando iniciaram o curso. Cabe ressaltar que é distinto o conceito de “juventude” para os grupos em questão. Nas três turmas, poucos são considerados velhos, mas percebemos que na turma Laklãnõ-Xokleng, por exemplo, aquelas que já tiveram filhos e netos (apesar de parecerem jovens) são consideradas sábias pela experiência de vida. Para melhor compreensão, podemos citar a análise feita por Melo (2014), que explicita a faixa etária das três turmas6, e o número de filhos e netos por turma. Vemos que a grande maioria de todas as turmas tem filhos e que alguns têm netos (tabela I, abaixo):
Kaingang
Laklanõ Xokleng Guarani
6
Entre 20 e 31 a 40 30 anos anos
45%
60%
58%
33%
23%
35%
Mais de 40 anos
22%
10%
7%
Com filho Número (a) de filhos por turma 89% 81 crianças 67% 75 crianças 75% 84 crianças
Quadro 1: Faixa etária, filhos e netos por turma. Fonte: Melo (2014).
Número de netos por turma 6
6
4
Vale ressaltar que essa análise das faixas etárias corresponde ao segundo ano do referido curso.
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A importância da família para os estudantes indígenas é um fator que sobressai após alguns dias na Universidade. Muitos reclamavam de saudade dos familiares, dos filhos e dos respectivos companheiros e companheiras. Nos debates sobre ensino superior indígena ocorridos durante a formação no referido curso, os acadêmicos indígenas destacaram a necessidade de refletir sobre políticas públicas que beneficiem coletividades e não apenas indivíduos, que levassem em conta as especificidades culturais desses povos culturalmente distintos. Entre os acadêmicos Guarani, a maior parte da turma cursou o Magistério Indígena7,
enquanto entre os Kaingang percebemos uma divisão entre a formação diferenciada/ indígena e outros magistérios não específicos. Já na turma Laklãnõ-Xokleng, apenas 10 cursaram o magistério. Percebemos, nos acadêmicos que cursaram o Magistério Específico, o interesse em pesquisar e inserir cada vez mais elementos valorizados pelas suas respectivas aldeias nas escolas indígenas. Muitos assuntos os lembraram da formação que, apesar de longa, promoveu resultados importantes. Outro aspecto interessante é que, apesar de os acadêmicos Laklãnõ-Xokleng não terem investido no Magistério Específico ou outro – como na demais turmas –, é a turma em que a maior parte já havia cursado outras graduações. Além disso, percebe-se a busca dos acadêmicos Laklãnõ-Xokleng pelo Ensino Superior, que aparece na escolha da UNIASSELVI, uma Universidade particular próxima a suas aldeias8. Grande parte dos acadêmicos que cursou outras universidades escolheu o curso de Pedagogia, fato que demonstra o interesse – principalmente da turma Laklãnõ-Xokleng – em uma metodologia para ensinar suas crianças. Durante as aulas, os Laklãnõ-Xokleng
apontaram – além da carência de uma metodologia para ensinar as crianças – o interesse em ensinar em escolas não-indígenas. Percebemos também que a maioria das opções se refere a disciplinas da área de Humanas ou ainda Licenciaturas em áreas específicas (História, Geografia, Matemática, Biologia e Letras).
Com relação ao ensino Fundamental e Médio, entre as três turmas há um número alto de acadêmicos que estudaram fora das aldeias, sendo que entre os Kaingang esta porcentagem é maior no Ensino Médio. Cabe destacar que os motivos para estudar fora 7
8
Em 2004, foi firmado o Protocolo Guarani entre as Secretarias de Estado de Educação de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e Espírito Santo, o MEC e a FUNAI, para formação de professores indígenas. Esta formação teria objetivo de habilitar para Ensino Médio/Magistério Bilíngue, denominado: Programa de Formação de Professores Guarani Kuaa Mbo’e[1] – Conhecer, Ensinar. O curso se destinou a formação de professores Guarani das regiões Sul e Sudeste do Brasil, em uma parceria entre MEC, FUNAI e Secretarias de Educação dos Estados. A dissertação de Weber (2007) descreve justamente a trajetória de professoras Xokleng que cursam a UNIASSELVI. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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das aldeias indígenas são distintos entre as turmas. Alguns acadêmicos Laklãnõ-Xokleng apontaram que, mesmo com uma escola para atender a população indígena, preferem levar seus filhos a escolas fora da Terra Indígena, pois, em suas análises, esta última teria mais qualidade. Os acadêmicos Guarani, em contrapartida, reclamaram da falta de opção de estudo dentro das comunidades.
No ensino médio, o número de acadêmicos que cursam seus estudos fora das aldeias aumenta na turma Kaingang, talvez pelo intuito de realizar vestibular e posteriormente graduação em cursos regulares. De todo modo, não é possível uma análise precisa do motivo das mudanças de estudo de “dentro” para “fora” das aldeias e vice-versa, sem uma apreensão da realidade concreta das escolas indígenas, ofertas de estudo nas aldeias e do processo de escolarização de cada Terra Indígena.
Finalizando essa apresentação da LII-UFSC e seu alunado, vale destacar um movimento de formação xamânica pelo qual passaram alguns acadêmicos, em paralelo à sua formação acadêmica9. Isso ocorreu mesmo na turma Laklãnõ-Xokleng, com sua
predominância evangélica, que não impediu que alguns estudantes buscassem retomar rituais xamânicos. Entendemos que, da parte destes acadêmicos, o mesmo movimento de busca por conhecimentos exógenos que os levou à Universidade também os mobilizou a um investimento nos processos de formação xamãnica. Isto nos ajuda a dimensionar a relação destes estudantes com o conhecimento acadêmico, muito além de simples habilitação para uma carreira.
A proposta da disciplina de Infância Indígena Como informado acima, a disciplina Infância Indígena foi ofertada para esta turma no seu quarto semestre. Segundo o Projeto Político Pedagógico do Curso (UFSC 2009: 41), esta disciplina estava dirigida para a habilitação comum em Licenciatura da Infância e visava refletir sobre as noções de infância de cada povo e sobre a adequação da implantação de turmas de Educação Infantil nas aldeias. No entanto, especialmente entre os Laklãnõ-Xokleng, mas também entre os Kaingang, as experiências de Educação Infantil já estavam em curso em algumas aldeias e alguns cursistas da LII já atuavam como professores dessas turmas. A disciplina resultou, nesses casos, em espaço para refletir criticamente sobre essas experiências e seus desafios. Formulamos, como objetivos da disciplina: “Compreender a infância como uma construção social, que varia em diferentes contextos sociais, assim como em diversas
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Esse movimento foi analisado na tese de Melo (2014) com ênfase na formação dos estudantes guarani.
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áreas do conhecimento científico. Conhecer as abordagens antropológicas sobre infância, especialmente os estudos contemporâneos sobre infância indígena no Brasil. Refletir sobre as noções próprias de seu povo sobre infância, desenvolvimento infantil, aprendizagem, transmissão de saberes.” As atividades propostas incluíram desnaturalizar categorias, demonstrando as diferenças nos ambientes, na família, na alimentação, no cotidiano, nos medos, nos sonhos, nos anseios, na importância (ou não) da escola entre as crianças de vários lugares do mundo (UNICEF 2002).
O intuito central era de desconstruir uma noção homogênea de infância, como já apontado em pesquisas importantes que se tornaram um marco nos estudos da infância, adolescência e gênero10. Nesse sentido, buscamos romper com o que se denomina “modelo
hegemônico ocidental” que naturaliza as infâncias, e muitas vezes vinculando essa noção a uma tríade criança-infância-aluno – durante muito tempo seguido pelos Estudos da Infância. Ao mesmo tempo, procuramos mostrar que a própria academia, em suas várias áreas de estudo, trabalha com abordagens específicas de infância e vem definindo esse termo de variadas formas (Ariès1981, Piaget 1972, Vygotski 1971).
Foi também nosso objetivo valorizar as experiências dos acadêmicos indígenas, reconhecendo que as concepções indígenas de infância devem ser valorizadas, estimuladas e compartilhadas nos contextos não-indígenas, pois elas justamente não se limitam às experiências de escolarização, revelando pedagogias nativas. São pedagogias que reconhecem, como discute Tassinari (2007): a autonomia das crianças e sua capacidade de decisão; suas diferentes habilidades frente aos adultos; a educação como a produção de corpos saudáveis e o papel da criança como mediadora de grupos sociais e cosmológicos. Os conteúdos da disciplina trabalhados nas três turmas foram os mesmos, assim como os textos lidos e as atividades propostas. Todavia, as dinâmicas, diálogos e desenvolvimento das aulas foram distintos, conforme as respostas e os interesses dos alunos. O intuito era de que cada grupo pudesse refletir sobre suas concepções de infância para que, a partir desta reflexão, sistematizassem metodologias específicas para trabalhar em sala de aula, bem como criassem estratégias para que aspectos importantes de suas pedagogias nativas pudessem continuar a ser desenvolvidos em ambientes escolares ou não-escolares.
Como atividade em grupo para o tempo-comunidade propusemos que realizassem
10 Exemplo disso são as pesquisas de Margareth Mead (1930, 1931) e Ruth Benedict (1989) integrantes da Escola Norte-Americana de Cultura e Personalidade de Franz Boas. Realizaram pesquisas de campo que se utilizaram da comparação de grupos distintos pertencentes a várias comunidades e países na década de 30 e 40, justamente com o objetivo romper com modelos estruturados e naturalizados presentes nas sociedades Norte-Americanas. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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uma pesquisa sobre as concepções de infância de sua comunidade, procurando compreender suas características, se havia divisão em fases de crescimento e aquisição de habilidades. Usamos como exemplo a sistematização realizada junto às famílias de uma cooperativa de agricultores de Turvo (PR), posteriormente publicado em Tassinari (2014). Os trabalhos de Oliveira (2004) e Codonho (2007), que tratam respectivamente da infância guarani e galibi-marworno, também serviram de exemplos. Mostramos tabelas de “fases da infância” realizadas nesses três trabalhos e propusemos que pesquisassem sobre isso com vistas à posterior construção coletiva de tabelas com as fases da infância guarani, kaingang e laklãnõ-xokleng. O que observamos, através das discussões iniciais em sala, foram realidades muito distintas nas aldeias indígenas dos três grupos, mobilizadas por expectativas próprias. Os acadêmicos guarani compreenderam a diversidade da infância e acharam importante pesquisar sobre suas concepções: fases da infância, desenvolvimento infantil e aprendizado das crianças, relacionando-as aos aspectos cosmológicos. Os acadêmicos laklãnõ-xokleng queriam que a disciplina fornecesse uma metodologia para trabalhar com suas crianças, pois a educação infantil já era uma realidade dada em suas aldeias e, muitas vezes, frustraram-se com nossa falta de respostas para os problemas imediatos que estavam enfrentando. Já os acadêmicos kaingang lidavam com a realidade da educação infantil que chegava aos poucos nas aldeias, mas com muita apreensão e crítica propunham uma discussão sobre a infância com foco nas dimensões sociais e relacionais, principalmente relativas ao seu pertencimento às metades Kamé e Kairu.
O mais interessante foi as discussões realizadas a partir da apresentação dos resultados das pesquisas do tempo-comunidade, a maioria realizada em grupos de moradores de uma mesma aldeia. Mesmo que vários grupos tenham se dedicado à elaboração de tabelas com a sistematização de fases da infância, segundo características e habilidades de cada etapa, isso não foi o mais importante de suas pesquisas. O que nos mostraram é que suas concepções de infância transbordam as nossas habituais formas de compreendê-la enquanto um período da vida focado no desenvolvimento ou crescimento e aquisição paulatina de habilidades. A própria definição da infância como uma fase da vida foi questionada, especialmente pelos acadêmicos Laklãnõ-Xokleng, que insistiam em dizer que nunca deixaram de ser crianças diante de seus pais, mostrando-nos que a infância é tratada não como uma característica de uma fase da vida, mas como uma posição que estabelecemos em relação aos pais, que perdura por toda a vida.
Com isso, pudemos questionar nossos pressupostos, ao elaborar a proposta de
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trabalho para a disciplina, reconhecendo e valorizando a diversidade e complexidade das respostas que trouxeram. Percebemos o quanto estávamos tentando encaixar suas experiências e formas de conceber a infância dentro de um padrão que não lhes diz respeito. Essa constatação foi fundamental para podermos valorizar o resultado dos seus trabalhos e, ao mesmo tempo, indicar formas de relacionar esses resultados com os desafios da educação escolar e, especialmente, da educação infantil, que estavam enfrentando.
Sugerimos a importância de refletirmos sobre a adequação dos nossos modelos para pensar a infância, de modo análogo ao que fez Strathern (2006) a respeito do gênero. Não se trata de discutir se gênero ou infância são categorias universais, mas de pensar nas metáforas que têm sido usadas por outros povos para categorizar as diferenças entre crianças e adultos. Nas nossas aulas, percebemos que os acadêmicos nos indicavam a necessidade de um “deslocamento”, nos termos da autora, dos limites de nossa linguagem. Esse “deslocamento” indicava que as metáforas utilizadas por eles para definir crianças e adultos não se colocam como oposições ou atributos da pessoa ou de fases da sua vida. Fomos percebendo que infância poderia referir às posições que uma pessoa ou seu espírito ocupa num campo que envolve relações de parentesco e cosmológicas. Detalhamos essa experiência no próximo item, procurando mostrar que os grupos indígenas apresentam possibilidades variadas de conceber e vivenciar a infância em situações que não são definidas pela rotina escolar e nem se submetem a ela. Ao mesmo tempo, apontamos para a riqueza de conhecimentos que são trazidos para uma sala de aula de Licenciatura Intercultural Indígena e a efervescência que produzem quando permitimos que provoquem um “deslocamento” de nossos modelos e conceitos.
As formulações Guarani, Kaingang e Xokleng sobre as concepções de infância De modo geral, os acadêmicos destacaram certa liberdade dada à criança na realização das atividades para as quais demonstra interesse. Não apareceram relatos de que a criança, pelo fato de ser criança, seja proibida de participar das tarefas que envolvem cuidados com irmãos, produção de roçados ou desenvolvimento de pequenas tarefas no espaço doméstico. Estes foram aspectos discutidos a partir das concepções acadêmicas sobre infância, de modo particular das formulações da Antropologia a este respeito (Nunes 1999; Cohn, 2005; Tassinari, 2007). Os acadêmicos reiteraram que a criança circula por espaços em que os adultos não circulam e que a ajuda que desempenham nas tarefas cotidianas configura-se em um aprendizado que fortalece seus corpos e os preparam para executá-las sozinhos. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Ao serem convidados a sistematizar alguma forma de classificação das etapas do ciclo de vida e localizarem suas crianças neste exercício, demonstraram que isto teria pouco vínculo com categorias de idade. De modo geral situaram a infância como um período que antecede a vida adulta, encerrando-se no momento em que essas pessoas podem casar e ter sua própria família. Por conta disso, afirmavam não considerar uma fase semelhante ao que chamamos de adolescência. O trabalho de Melo (2014) pontua estas discussões que vivenciamos nas três turmas e destaca a centralidade da corporalidade no processo de definir a infância e as aprendizagens11 necessárias à vida adulta.
Tanto os Guarani, como os Kaingang, quanto os Laklãnõ-Xokleng, pontuaram aspectos bastante específicos com relação à aprendizagem das crianças e as ressalvas necessárias para pensar a escolarização. A alimentação foi ponto enfatizado pelos Guarani: é preciso não somente ensinar a criança a comer alimentos adequados para que seu corpo se fortaleça, mas sim garantir que toda a família alimente-se de modo adequado. O mesmo é considerado com relação às condutas e posturas, abrangendo o período que antecede a própria concepção e gravidez. Entende-se que formas de agir equivocadas e alimentação inadequada influenciam toda a trajetória de vida da criança nesta terra. Situam aqui o debate sobre o nascimento de crianças com deficiência, assinalando, em alguns casos, que o corpo diferente irá trazer desafios para o aprendizado desta criança na escola (Melo, 2014; Jesus; Benites, 2016). Demonstraram um esforço de expressar elementos que compõem as narrativas cosmológicas dos grupos guarani, as transformações que vislumbram no modo de compreender a infância a partir destas narrativas, os conselhos recebidos ao longo de suas trajetórias de vida e a política educacional vigente. Entre os Kaingang foi recorrente a crítica às transformações no modo de educar crianças a partir do momento em que a educação infantil adentra no espaço das aldeias. Para muitos estudantes, o ensino pensado para este nível da Educação Básica não corresponde às aprendizagens que as crianças deveriam vivenciar. Isso se torna um problema, justamente porque o período necessário de vivenciar tais aprendizagens é a infância e, se acaso não ocorrer, a pessoa não terá condições de se tornar um adulto pleno. De outro lado, uma parte significativa da turma defendia a possibilidade de planejar a educação infantil a partir da ideia de interculturalidade, inserindo muito do que as crianças aprenderiam em casa, no espaço da escola. Pontuavam ainda a necessidade de se trabalhar fora da aldeia e não terem mais com quem deixar os filhos.
11 A autora faz referência ao trabalho de Aracy Lopes da Silva (2002), acerca da importância da corporalidade nas aprendizagens das crianças indígena. Destaca o artigo Pequenos ‘xamãs’: crianças indígenas, corporalidade e escolarização, no qual defende o estudo da corporalidade como um dos mecanismos centrais para compreensão dos processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos, habilidades, técnicas e concepções próprias à educação das crianças indígenas. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A preocupação com a educação infantil também surgiu entre os Laklãnõ Xokleng, porém, com uma ênfase diferenciada: não se questionava a necessidade da educação infantil, mas a importância de planejá-la adequadamente. Muitos tinham a expectativa de estudar metodologias de ensino para a educação infantil na disciplina de Infância Indígena e demonstravam preocupação com o fato de não serem “preparados” para educar as crianças na escola.
Essas visões bastante distintas sobre o lugar da escola estão ligadas ao modo como cada um destes povos relacionou-se, historicamente, com processos de escolarização. Enquanto os Laklãnõ-Xokleng e os Kaingang vivenciam a escola desde as políticas de pacificação de indígenas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX (Santos, 1973;1975), os Guarani passam a ter escolas em suas aldeias a partir do início dos anos 1990 (Oliveira 2004). Importante assinalar que as diferentes relações com a escola são também diferentes relações com o Estado ou com instâncias externas, que implicam em circularidades de conhecimentos. Como consequência, tornava-se necessário discutir as classificações de infância a partir das relações com estes agentes, das reconfigurações territoriais, projetos de colonização, pacificação e civilização ocorridas no país e transformações vislumbradas em seus modos de vida e formas de vivenciar a infância. Melo (2014, p. 182), retoma uma fala de Bartomeu Melià junto à turma guarani que visava discutir a concepção de modo de vida: Essa relação que se estabelece entre os grupos indígenas aqui citados, pode ser considerada o traço diferencial em relação a outros grupos: Bartolomeu Meliá – em uma aula de Língua Guarani – perguntava aos acadêmicos sobre o que diferenciava um Guarani, oferecendo como exemplo os indígenas do Paraguai – que falam a língua Guarani, mas não querem ser vistos como indígenas pelo preconceito que já sofreram. Ele indaga: “será que é pela pele? Pela religião? Alimentação? Pensamento?”. Após diversas respostas, Meliá explica que, no Paraguai, os grupos guarani não vivem em comunidade, tem seus bens privados, desse modo, sugere que a diferença está na forma de vida. (Melo, 2014: 182)
Tais considerações sintetizam alguns aspectos da organização social, enfatizados por diferentes componentes curriculares do curso. A relação entre territorialidades, poder e processos de circulação de saberes entre em cada povo e entre povos e comunidades diferentes, impactam em formas complexas de conceber o lugar social da criança e classificá-la. Com base nisto, retomamos em Melo (2014), esforços de estudantes de cada Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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turma para classificar etapas do ciclo de vida e localizar a infância neste universo: Infância
Adolescente
Gel
Tá Tag
Gel katchin: Kálu criança pequena
Gel gynh óg: Tá Tag Katchplural de peque- in: moça nas crianças Kalu Katchin: rapaz moço
Jovem
Adulto
Velho
Kálu Kónhgág: rapaz, se formando homem
Tá/ Mulher
Kuzó Konhgág
Tag/moça, formando mulher
Kónhgág/ homem Kuzó
Kuzó
Kalu txi: Kuzó to: femhomem adulto inino Tá Tag Txi: mulher adulta
Txi Tá: muito velho Kuzó og: velhos
Quadro 2: Classificação ciclo de vida Laklãnõ Xokleng. Fonte: Classificação elaborada pelos acadêmicos Alair Patté e Newton Calebe (Melo, 2014).
Idade
Nome em kaingang Nenê si
4 meses a 1 ano
nene
1 a 2 anos
nene
2 a 4 anos
Nenê sanh Já sabe o que quer fazer e comer
0 a 4 meses
O que faz
Fase da amamentação, responde aos estímulos com gestos próprios do bebê Início da alimentação do bebe. Engatinha e caminha agarrado a móveis e animais domésticos. Faz brincadeiras, caminha e pede alimentos
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O que aprende
A se comunicar com gestos Desenvolve o tato e as emoções; começa a falar algumas palavras
Aprende com os familiares a língua e a se alimentar sozinho Aprende a confeccionar brinquedos, artesanato, caçar e pescar
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4 a 7 anos
Nenê mog
7 a 10 anos
Nenê kófa
10 a 12 anos
Kyru si/ táteg si
12 a 15 anos
Kyru/ táteg
Se banha sozinho, cuida dos irmãos menores, inicia trabalhos ao redor da casa, varrer, cortar lenha, buscar água, tratar de animais domésticos, asi sozinho, brinca na comunidade. Ajuda no ensino dos irmãos menores, vai à roça com os pais, pesca caça, vai à escola, vai ao comércio, faz comida e negócios (troca-troca).
Começa a tomar suas próprias decisões, dança, toca instrumentos musicais, tarefas de adultos, trabalha de diarista, compra objetos, participa das reuniões Faz praticamente tudo que um adulto faz
Aprende a confeccionar brinquedos, armadilhas e artesanatos, busca lenha e faz fogo sozinho. Fazer roça, época de plantio, a qualidade da matéria prima para o artesanato com os mais velhos, ervas medicinais, trabalhos e funções conforme o sexo e tamanho; contar histórias do povo kaingang; vender ou trocar artesanato na cidade; usar instrumentos como foice, machado, faca, facão. O valor da responsabilidade da fase adulta, a respeitar os usos e costumes do grupo tribal Nessa fase não há o que aprender no seio da família, pois já é considerado um adulto e se encarregará de adquirir conhecimentos variados no convívio com a comunidade indígena e não-indígena, pois está pronto para constituir sua própria família e repassar aos futuros filhos seus conhecimentos adquiridos.
Quadro 3: Fases da Infância Kaingang. Fonte: Classificação elaborada pelos acadêmicos Getúlio Narcizo, Claudemir Pinheiro e Charles Marcos Luiz (Melo, 2014).
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Mintaí Kyringué Kunumingue Kunhataín
Recém-nascido: possui o japyte ruu (moleira), é inocente e tem conexão direta com Nhanderu. São crianças pequenas; espírito conduzido pela família e seus ensinamentos.
Depois de mudança de voz; passa a dirigir seu próprio espírito nhe´e guxu. Depois da primeira menstruação; passa a dirigir seu próprio espírito nhe´e gue.
Quadro 3: Fases da Infância Guarani. Fonte: Classificação elaborada pelos acadêmicos Eunice Antunes, Adão Antunes e Marcos Moreira (Melo, 2014).
Estas classificações, feitas a partir de lógicas distintas e com detalhamentos de ordens diversas, nos conduziram à reflexão de que a localização da infância enquanto etapa de um ciclo de vida humana não era vislumbrada por todos os estudantes. Entre os Guarani, o Quadro 3 demonstra um entendimento da infância enquanto primórdio de uma nova trajetória espiritual nesta terra. Classificam as fases relativas ao amadurecimento do nhe’e (alma/duplo) e não exatamente da pessoa guarani. Este nhe’e procede de uma das moradas dos pais e mães verdadeiros dos Guarani, sobre os quais encontramos narrativas entre todas as parcialidades conhecidas. Em Cadogan ([1959] 1997), os registros que dão conta dos mitos de criação evidenciam que, antes de criar tudo, Nhamandu Ru Ete Tenondegua, o primeiro e verdadeiro pai Nhamandu, criou a si mesmo e à sua sabedoria, advinda da visão e da possibilidade de ouvir. Mais tarde, Nhamandu Tenonde criou Karaí, Tupã e Jakairá e suas companheiras femininas, a fim de ter com quem compartilhar as palavras que compunham o canto sagrado e a consciência da divindade (Cadogan [1959] 1997). Fez o mesmo com sua companheira feminina. Ao seu verdadeiro pai, os Guarani referem-se como Nhanderu e à sua verdadeira mãe, como Nhandetxy. Descrevem o coração como o lugar do saber e da palavra, sendo a linguagem humana uma manifestação do nhe’e – razão pela qual a antropologia convencionou traduzir nhe’e como alma-palavra. Dizia-nos um estudante mbya, que em sua aldeia desenvolvia aprendizagens de xamã, o quanto é enganoso pensar que a criança é um ser ingênuo ou imaturo. Segundo ele, o corpo pode ser jovem e habitar por
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aqui há pouco tempo, mas seu nhe’e é bastante experiente. Assim sendo, categorias de idade não dão conta de sua trajetória entre este mundo imperfeito e sua morada divina. Trata-se antes de um processo de aprender a viver em um corpo material e transitório, de desenvolver propósitos que possuía ao ser enviado à terra e de, enquanto ser humano, alcançar grandeza de coração.
Entre os Kaingang, a infância surge ligada à uma concepção dual, que organiza a vida social a partir de metades clânicas Kamé e Kairu. Tal perspectiva está relacionada ao mito de origem que diz que sua população se originou das metades Kamé (sol) e Kairu (lua). O parentesco patrilinear determina a qual metade a pessoa pertence, no momento do seu nascimento. Do mesmo modo, o saber xamãnico do kuiã relaciona-se com as metades kamé e kairu. Conforme Silva (2002), o kuiã dialoga com os seres da metade kamé e da metade kairu, através de um espírito auxiliar (iangrë), o qual pertence à sua metade oposta. Trata-se de um saber interdisciplinar acerca da natureza, dividida pelo dualismo cosmológico, ou seja, de um lado animais, plantas, seres inanimados e corpos celestes, que pertencem à metade kamé, e de outro aqueles pertencentes à metade kairu (Ibid.).
Ao longo de toda a trajetória dos Kaingang na Licenciatura Intercultural Indígena, um aspecto sempre enfatizado foi o de que não existe Kaingang sem metade, ainda que o pai não seja Kaingang. Neste caso, caberá ao kuiã examinar as unhas do pai ou, quando não for possível, da criança, a fim de determinar sua metade. Nesta perspectiva, tanto alimentos, remédios e saberes relativos às normas sociais são distintas conforme cada metade. Também o artesanato e as aprendizagens acerca do saber-fazer cestarias e colares diferem entre kamé e kairu, sendo que os modos de transmissão de saberes mostram-se organizados a partir de atributos de gênero. Por diversas vezes, foi ressaltado que as meninas aprendem por mediação da mãe e os meninos através do pai, havendo uma responsabilidade coletiva em zelar pelo bem estar das crianças. Isso se evidencia, por exemplo, no cuidado com as crianças que brincam longe de seu grupo de parentesco e na prática de mães que amamentam filhos de outras mulheres. A autonomia nas tarefas do dia-a-dia são mencionadas como algo que se adquire na infância e não na idade adulta, como acontece entre não-indígenas. A classificação kaingang das etapas do ciclo de vida encerra-se no início da idade adulta, mencionada como sendo por volta dos 15 anos. Contudo, para além da questão etária, o que é enfatizado no Quadro 2 são as aprendizagens junto à família, de forma que a infância é englobada em um processo de transmissão de saberes que garante a autonomia pessoal. A partir deste momento, o jovem já se instrumentalizou o suficiente para viver conforme sua metade, sendo capaz de transmitir o que aprendeu e, nesta perspectiva, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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constituir uma família. Os filhos são ainda um sinal aparente de maturidade, que confere respeito e prestígio aos adultos casados.
Entre os Laklãnõ Xokleng, conforme exemplificado no Quadro 1, foram trazidas todas as fases da vida, do nascimento à velhice. Para estes acadêmicos, efetuar um recorte que explicitasse um dado momento do desenvolvimento humano enquanto o período da infância não fazia muito sentido. Foi recorrente a menção ao fato de que um filho, na relação com seus pais e avós, será sempre considerado criança, embora em outros contextos sociais seja considerado adulto. Destacaram, nestas relações, o fato de que mulheres de gerações mais velhas costumavam amamentar um filho até próximo à adolescência. Quando outra criança nascia não se deixava de amamentar o mais velho – uma prática que foi sendo transformada nos últimos anos, havendo relatos de jovens mães que lamentavam por só conseguirem amamentar seus filhos até por volta dos seis meses de vida. A relação dos filhos com os pais é marcada pela obediência e respeito, que perduram por toda a vida.
Para finalizar, apontamos um importante indicador de que a disciplina instigou os estudantes a refletirem sobre a infância, a partir dos Trabalhos de Conclusão de Curso realizados dois anos depois pelos acadêmicos e defendidos em 201512. Vários
mencionaram questões referentes à infância, mas alguns trabalhos tiveram o tema como foco. Na turma xokleng, Wailui Camlem analisou As formas de aprender da criança Laklãnõ-Xokleng e Marcondes Nanblá produziu Infância Laklãnõ: Ensaio Preliminar. Na turma kaingang, Cenira Sales pesquisou A formação do corpo e da pessoa nos períodos da gestação, nascimento e infância Kaingang e Valdemir Pinheiro investigou Infância Kaingang na Terra Indígena Xapecó - SC: Saber e Aprender. Na turma guarani, Adriana Moreira escreveu Puru’a Reko: a saúde na gestação e no parto da mulher guarani, Sandra Benites elaborou o TCC Nhe’ë reko porã rã: nhemboea oexadarë. Fundamentos da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro (educação tradicional): o olhar distorcido da escola, Raiane Benites Samaniego escreveu Quem sou eu? Juventude guarani: Confronto entre gerações e Davi Timóteo Martins pesquisou Kyringuei’Kuery: noções nativas de infância, aprendizagem e desenvolvimento da pessoa. Com este mesmo tema, Davi ingressou em 2017 no curso de mestrado em Antropologia Social da UFSC. O ingresso no mestrado de Antropologia para pesquisar a infância Laklãnô-Xokleng era também um desejo de Marcondes Namblá, e lamentamos profundamente que não pode realizá-lo, vítima de um brutal assassinato na cidade de Penha/SC, em janeiro de 2018.
12 Esses trabalhos estão disponíveis para consulta em http://licenciaturaindigena.ufsc.br/guarani/, http://licenciaturaindigena.ufsc.br/kaingang/, http://licenciaturaindigena.ufsc.br/xokleng/ Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Considerações Finais Neste artigo, procuramos refletir sobre a complexidade e variedade das conceitualizações indígenas de infância no Sul do Brasil, a partir das discussões e trabalhos realizados na disciplina Infância Indígena, ministrada em 2012 para a primeira turma do Curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica.
Percebemos-nos realizando uma tentativa de “disciplinar” suas infâncias, tratandoas como objeto a ser analisado, sistematizado e comparado em suas diferentes fases, a partir das concepções de cada povo. Os trabalhos e discussões desenvolvidas pelos acadêmicos guarani, kaingang e xokleng, como procuramos mostrar, transbordaram os limites desta conceitualização de infância e nos indicaram importantes caminhos para a sua compreensão.
As pesquisas realizadas pelos acadêmicos possibilitaram questionar e redimensionar os limites de um certo modo de conceitualizar a infância. Indicaram a necessidade de promovermos um deslocamento e extensão dos sentidos que temos dado à infância, conforme Strathern (2006) analisa em relação ao gênero. “O que está em jogo, nesse caso, são maneiras de criar as condições para novos pensamentos” (id.ib.: 50).
Percebemos que não bastava questionar a universalidade da infância e buscar as suas definições próprias, enquanto não reconhecêssemos que as metáforas que estávamos usando precisavam passar por um deslocamento de sentido. Se as noções de pureza, ingenuidade e fantasia já tinham sido anteriormente criticadas como metáforas universais para definir a infância (Ariès 1981), os acadêmicos indígenas nos levaram mais além, deslocando as próprias noções de fase do ciclo de vida, de desenvolvimento, de oposição à vida adulta. Aprendemos com os Guarani que as metáforas usadas para conceitualizar infância se referem à alma-palavra, o nhe’e, em sua proximidade com as moradas divinas. A ideia de desenvolvimento infantil, enquanto aquisição paulatina de habilidades e conhecimentos, portanto, é alheia a essas formulações guarani, já que o crescimento implica num inevitável afastamento do nhe’e de seu princípio divino para tomar acento nesse mundo imperfeito. Com os Kaingang aprendemos outras metáforas para a infância, agora relacionadas às metades complementares kamé e kairu. Trata-se de relacionar esse período à composição da sociedade e à oposição primordial entre os dois demiurgos, que suplanta aquela entre crianças e adultos. Já os Laklãnõ-Xokleng nos ensinaram que infância é uma posição estabelecida numa relação entre pais e filhos, que perdura por toda a vida. Assim, não se é criança em geral, mas criança para alguém - os pais, os avós, sendo que essa posição permanece mesmo com o amadurecimento dos filhos. Esses deslocamentos de sentido Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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(Strathern 2006) nos levaram a reconceitualizar a infância a partir de novas configurações.
Por fim, acreditamos que esse esforço de sistematização e de diálogo com as nossas formulações de infância – que, inclusive, tem orientado a educação escolar –, não é um trabalho inútil, se reconhecermos que estas noções não abarcam nem esgotam as conceitualizações indígenas de infância. Consideramos que esse esforço realizado na disciplina Infância Indígena gerou uma maior atenção às formas próprias de conceituar a infância e à necessidade de promover seu reconhecimento ou inclusão no cotidiano escolar. Possibilitou também, para os acadêmicos indígenas, reconhecer as formas ocidentais de conceituar infância que embasam a educação escolar, de forma a poder contrastá-las com as suas.
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VYGOTSKY, L. S. 1991. Pensamento e linguagem. Trad. Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes. WEBER, Cátia. 2007. Tornar-Se Professora Xokleng/Laklãnõ: Escolarização, Ensino Superior e Identidade Étnica. Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.
Recebido em 31 de maio de 2017.
Aceito em 18 de dezembro de 2018.
Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Caderno de imagens *
* No caderno de imagens desta seção as fotografias são autorais e respeitam os direitos de imagens das pessoas fotografadas, assim solicitamos que não sejam reproduzidas sem autorização.
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Entre brincadeiras e olhos atentos as crianças aprendem a "ler" o mundo em que vivem1 Edgar Corrêa Kanaykõ (Xakriabá) Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais edgarkanaykonbanaykan@gmail.com
Aqui temos um breve recorte de alguns momentos e cotidianos de crianças indígenas Xakriabá, Guarani, Maxakali e Pataxó. As fotografias foram feitas a partir de experiências nas respectivas comunidades e durante alguns movimentos indígenas e foram reunidas para uma exposição durante o II Seminário Infância Criança Indígena - UFScar/2014, agora publicados. Utilizo- me da "Etnofotografia" como uma das ferramentas utilizadas como meio de descrever a vivência, o cotidiano, a cultura - a vida de um povo. Para nós indígenas é cada vez mais comum o uso dessa ferramenta como arma em favor do nosso povo, mostrando através da imagem o ponto de vista que temos sobre nós e que reflete sobre o "outro".
Recebido em 26 de fevereiro de 2017. Aceito em 02 de setembro de 2018.
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As fotografias que compõem este ensaio fotográfico foram também reunidas sob o título "Aikute: o território nas crianças Xakriabá" e receberam uma premiação atribuída pelo Júri Especial e pelo público na categoria de melhor ensaio ou sequência fotográfica no 2º Festival e Mostra de Audiovisual do NUPEPA/ImaRgens (2019). Imargens - LAPS-USP; LISA-FFLCH-USP.
Entre brincadeiras e olhos atentos as crianças aprendem a "ler" o mundo em que vivem
1 Crianças Pataxó, MG
2 Criança Guarani Mbya, RS Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Crianças Xakriabá, MG
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Criança Xakriabá, MG
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Eu, criança(s): instantes de curiosidades mútuas Daniel Revillion Dinato1 Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas) daniel@dinato.com.br
A curiosidade das crianças em mim, nawa, e em minhas coisas é gritante. A minha curiosidade nelas e em seus mundos, também. Esbarramos, porém, na língua. Elas, muito generosas, falam um pouco de português. São tímidas e firmes, ao mesmo tempo. Querem me devorar, tocam em mim, pedem, perguntam, ficam felizes e bravas. Eu pouco consigo dizer. Não domino o mínimo de hatxa kuin, a língua dos Huni Kuin. Viro criança, então. As nossas curiosidades fazem superar as dificuldades linguísticas. Conversamos com mímica, jogamos sem falar, apontamos, sorrimos, ficamos atentos aos sinais não-verbais. Em certo momento, alívio, a câmera do meu celular e ele próprio vira mediação. Crianças e tecnologia se encontram das formas mais inesperadas, sempre. Lá, na foz do Rio Jordão, não é diferente. Elas querem aprender, mexer, dominar uma técnica criativamente, e assim o fazem. As fotos aqui expostas são instantes da minha relação com as crianças no município de Jordão e na aldeia Chico Curumim, Acre. As imagens não pretendem ser registros etnográficos de um povo, mas registros das nossas curiosidades mútuas. São fotos que mostram a mediação, a timidez e as várias formas de ser criança. Não posso, desejo, nem conseguiria teorizar esse gesto de interesse recíproco. A última foto, em que aparece o meu rosto pintado, retrato de um eu já criança, foi tirada por uma das muitas crianças que lá vivem, a qual muito rapidamente aprendeu como manejar o celular e sua câmera.
Recebido em 24 de maio de 2017.
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Aceito em 04 de setembro de 2018.
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
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Brincar, experimentar e aprender: o "ser criança" entre os Palikur-Arukwayene Elissandra Barros da Silva1 Professora Adjunta do curso de Licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade Federal do Amapá
elisbarros22@gmail.com
Nos registros fotográficos deste ensaio podemos observar parte do cotidiano das bakimmnayh2 do povo Palikur-Arukwayene3. Neles destacamos a coletividade e a interação
das crianças com o meio, principalmente o rio, onde costumam permanecer boa parte do dia. As brincadeiras estão relacionadas ao experimentar e aprender, como pescar, mariscar, tecer ou remar, mas também envolvem o “cuidar”, em que os mais velhos cuidam dos mais jovens, independente das relações de parentesco. As imagens foram registradas por mim, entre 2009 e 2016, durante o trabalho de campo realizado para minha pesquisa de doutorado e hoje compõem o acervo do Núcleo Kusuvwi de Estudos Palikur-Arukwayene (NUKEPA), que dispõe de mais de cinquenta mil registros fotográficos desse povo, além de documentos, vídeos e desenhos. Recebido em 29 de maio de 2017.
Aceito em 04 de setembro de 2018. 1 2
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Doutora em Linguística, desde 2009 desenvolve pesquisas com e entre os Palikur-Arukwayene, é líder do Núcleo Kusuvwi de Estudos Palikur-Arukwayene (NUKEPA) e coordena a ação Saberes Indígenas na Escola Palikur.
Bakimmnayh é o termo na língua parikwaki para “crianças”, no plural, independente de gênero. O singular é Bakimni. Os Palikur-Arukwayene são um povo Arawak que vive na Terra Indígena Uaçá, Município de Oiapoque, e também na Guiana Francesa. No Brasil são aproximadamente 1326 indivíduos, sendo que no Kumenê, a principal das treze aldeias do povo, vivem em torno de 791 pessoas, mais da metade da população.
Brincar, experimentar e aprender: o "ser criança" entre os Palikur-Arukwayene
Figura 1: Crianças brincam de perna-de-pau na ponte principal (2010).
Figura 2: Meninos pulando da ponte sob o Urukawá, principal divertimento das crianças durante a cheia do rio (2015).
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Elissandra Barros da Silva
Figura 3: Crianças navegam na canoa em busca de pequenos cardumes (2014).
Figura 4: Grupo de crianças brincando com resto de tinta que encontraram próximo ao antigoPosto da FUNAI (2014). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Brincar, experimentar e aprender: o "ser criança" entre os Palikur-Arukwayene
Figura 5: Crianças matam com sandálias o pequeno peixe que pescaram durante suas brincadeiras na ponte. Aqui o brincar é a própria experimentação das atividades que eles executarão quando adultos (2012).
Figura 6: Meninos nadam entre as folhagens do Urukawá (2016). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Figura 7: Grupos de crianças, em que os maiores carregam os menores, são cenas comuns nas aldeias Palikur-Arukwayene (2015).
Figura 8: Criança carregando o remo em direção ao rio (2013). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Brincar, experimentar e aprender: o "ser criança" entre os Palikur-Arukwayene
Figura 9: Menina pescando os pequenos camarões que, na época de cheia, flutuam próximo da vegetação submersa (2015).
Figura 10: Criança brinca de tecer com os restos de palha usados para cobrir uma casa (2012). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Figura 11: Meninas passeando sob a ponte, ao fundo a planície do Urukauá (2015)
Figura 12: Criança brinca de lavar latas em frente de sua casa (2011) Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Brincar, experimentar e aprender: o "ser criança" entre os Palikur-Arukwayene
Figura 13: Criança sobre as canoas (2012).
Figura 14: Menina cuidando do irmão mais novo (2014) Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Figura 15: Grupo de crianças posando para foto (2016).
Figura 16: Menino brincando de esconde-esconde entre a vegetação do Urukawá.
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 452-457.
Ó Mãe de Deus, olha aqui meus Kurumins Tanielson Rodrigues (Poran Potiguara) Liderança indígena e estudante de Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília poranpotiguara@gmail.com
A proposta do ensaio é mostrar o cotidiano das crianças Potiguara da Paraíba. Potiguara, do tupi antigo, significa comedores de camarão. É o único povo indígena do litoral brasileiro que não mudou do seu local de origem desde a colonização, sendo citado na LETTERA DE 1501, por Américo Vespúcio, no mesmo local em que se encontram hoje. O povo Potiguara na Paraíba vive em 32 aldeias, divididas em três Terras Indígenas contínuas que totalizam 33 mil hectares. Sua população é de aproximadamente 20 mil indígenas, situados no litoral norte da Paraíba, nas cidades de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto.
Recebido em 30 de maio de 2017.
Aceito em 04 de setembro de 2018.
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A etnógrafa, a retratista e as crianças Xikrin Clarice Cohn1 Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos clacohn@gmail.com
Quando cheguei no Bacajá, no começo dos anos 1990, para estudar as crianças Xikrin, já sabia, pelos textos e pelas fotos de Lux Vidal, Terence Turner e Vincent Carelli, da importância da pintura corporal e dos adornos para esse povo, e o ensaio comparativo de Antonhy Seeger2. Iniciada a pesquisa, foi-se revelando a enorme importância da
ornamentação corporal na construção dos corpos e da pessoa dessas “pequenas pessoas”, meprire. O preto do jenipapo e o vermelho do urucum recobrem os corpos, o carvão misturado à resina decora as frontes, as cabeças e o corte dos cabelos, a resina e as penugens brancas recobrem as cabeças. Penas de diversas cores são usadas em braceletes, colares e cocares. Algodões e miçangas fazem cordões que são pendurados e amarrados nesses pequenos corpos. E as crianças estavam com frequência brincando e passeando pela aldeia lindas e ricamente adornadas. Essas composições fazem uso de diversas cores, cheiros e procedências que são protetores ou, ao contrário, perigosos, demandando cuidados. O cheiro da resina e do urucum mantem distantes espíritos e mortos, importante proteção para as crianças pequenas, especialmente vulneráveis a ter seu espírito por eles 1
2
Bolsista Produtividade CNPQ. As fotos aqui publicadas foram tiradas por mim desde 1992, em diversas visitas, nas aldeias da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, Pará, Brasil. Elas foram digitalizadas e a montagem deste conjunto respondeu a um convite da Comissão de Imagem e Som da ANPOCS, composta por Cornélia Eckert, Vera Chaia e Ana Paula Simioni, a quem agradeço, e exposta na Reunião Anual da ANPOCS em 2009. Em 2017, tive a oportunidade de apresentar o conjunto das fotos em formato digital (digitalizado) para os Xikrin do bacajá, com lindos resultados e debates, com o apoio do CNPq, de Camila B. Beltrame, de Takàk-jakare Xikrin, Bep-tô Xikrin, Nhoka Xikrin, Tumre Xikrin. Agradeço às agências de financiamento FAPESP, CAPES e CNPq que permitiram as diversas estadias e financiaram projetos diversos que apoiaram essas iniciativas. TURNER, Terence (1981; 1995); VIDAL, Lux (1976; 1977; 1978; 1983; 1984/1985; 1992); VIDAL, Lux e MÜLLER, Regina A. Polo (1987); SEEGER, Anthony (1980).
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Clarice Cohn
roubados e tornados cativos. O vermelho do urucum recobre o preto do jenipapo, abrindo à interação as extremidades do corpo: as faces, as mãos, os pés. A plumária substitui o material de origem vegetal quando o corpo da criança está fortalecido e pronto a suportar seu uso. A pintura e a ornamentação individuam, na utilização de ornamentos que são prerrogativas herdadas, ao mesmo tempo em que expressam a condição da pessoa. A superfície do corpo pintada, os motivos gráficos e o material utilizado são combinados para marcar as passagens durante os primeiros anos de vida. Em especial, o momento em que, tendo começado a andar e falar, a criança tem sua autonomia expressa pela mudança no recorte da pintura corporal, no corte da cabelo, e no material usado em sua ornamentação. A partir daí ela poderá utilizar (e receber) seus adornos particulares.
Diferente dos adultos, as crianças Mebengroké-Xikrin são adornadas no cotidiano. As mães passam horas as pintando com esmero, com motivos gráficos que criam acompanhando a maleabilidade desses pequenos corpos, cuidando do correto corte dos cabelos, e os recobrindo, e aos corpos, com resinas, penugens, penas, contas, algodões. É assim que elas podem ser vistas pela aldeia, com uma frequência que contrasta com a utilização desses adornos pelos adultos, que só os usam em ocasiões políticas ou rituais. As crianças também têm seus corpos ornados e pintados quando de sua morte e enterro. Trata-se de fazer aparecer, mostrar, dar a ver (amerin), identidades e individualidades, assim como a condição da pessoa – seu gênero, sua idade, sua situação social. Trata-se, também, de fazer e moldar corpos, fazer pessoas e parentesco e gerenciar relações com diversos seres, que auxiliam no crescimento e endurecimento destes corpos – os Xikrin falam do corpo duro e forte, tôx – ou são perigosos às crianças, que são então protegidas por cheiros que afastam quem lhes poderia fazer mal3.
Ao longo dessas descobertas, a máquina fotográfica foi uma importante aliada no registro dessa arte. Registrei as mães adornando seus filhos, as crianças adornadas,
as mudanças em sua ornamentação e sua presença na aldeia, em rituais mas também no cotidiano, com seus corpos pintados, seus corpos adornados e suas cabeças embranquecidas. Em todas as viagens, levava ampliações das fotos tiradas na viagem anterior, que eram circuladas e manipuladas por todos, em especial pelas crianças. Neste processo, as mães, por sua vez, viram em minha câmera um potencializador (e eternizador) desses momentos de fazer ver a condição e a identidade da criança que é realizado com a exibição no cotidiano dessa ornamentação. Começam a me encomendar registros de suas crianças adornadas, em especial nesse importante momento de passagem, quando
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Para minha produção neste sentido, ver: Clarice Cohn, 2000a; 2000b; 2010.
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A etnógrafa, a retratista e as crianças Xikrin
começam a andar. Avisam-me com antecedência seus planos de pintá-las, escolhem o cenário, e preparam as crianças para a foto: em pé, em posição rígida, sérias e olhando fixo para a câmera. Explicam-me também o enquadramento, centralizado, e que a foto deve ser revelada em tamanho grande e emoldurada de modo a ser pendurada na parede. Esse se revela de fato um potencializador, já que importa, nesse processo, dar a ver, fazer ver, as crianças, em seu processo de crescimento e individuação. Assim, uma série de fotos são tiradas, e eu sou tornada retratista oficial da ornamentação das crianças. Mas as crianças têm, elas também, seu modo de ver tudo isso – sua ornamentação, as fotos, o registro. Burlam as intenções da mãe, da fotógrafa, da antropóloga, sorrindo quando, insistem suas mães, não devem, ou se afastando. Acompanham atentamente a atividade da antropóloga, e das mães, e podem ser vistas ao fundo, observadoras, divertidas. Tiram fotos da antropóloga, tornando-se elas mesmas as fotógrafas. Se miram, se admiram, nas semelhanças e nas diferenças de seus adornos e de sua ornamentação. Ou, simplesmente, recuperando o interesse na foto que está sendo tirada, buscando se ver ao serem fotografadas. É desse percurso, da etnóloga à retratista à fotógrafa que registra a atenção das crianças, e também fotografada, de que trata esse ensaio.
Referências COHN, Clarice. 2000a. A criança indígena: A concepção xikrin de infância e aprendizado. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Universidade de São Paulo; Cohn, Clarice.
______. 2000b. "Crescendo como um Xikrin: uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os Kayapó-Xikrin do Bacajá". Revista de Antropologia (São Paulo), Universidade de São Paulo/USP, v. 43, n.2, p. 195-222.
______. 2010. "A criança, a morte e os mortos: o caso Mebengokré-Xikrin". Horizontes Antropológicos (UFRGS. Impresso), v. 34, p. 93-115, TURNER, Terence. 1981. "The Social Skin". In: Chefas, J. &amp; Lewin, R. (orgs.) Not Work Alone: Survey of activities superfluous to survival. London, Temple Smith.
______. 1995. "Social Body and Embodied Subject: Bodiliness, Subjectivity, and Sociality among the Kayapo". Cultural Anthropology, vol. 10, nº 2.
VIDAL, Lux. 1976. "As categorias de idade como sistema de classificação e controle demográfico de grupos entre os Xikrin do Cateté e de como são manipulados Bibliografia citada 187 em diferentes contextos". In: Actes du XLIIe Congrès International des Américanistes. Paris, Societé des Américanistes. ______. 1977. Morte e Vida de uma Sociedade Indígena Brasileira. São Paulo, Hucitec. ______. 1978. "A pintura corporal entre índios brasileiros". Revista de Antropologia, vol. 2
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(2ª parte).
______. 1983. "Plumária Kayapó". In: Arte Plumária do Brasil (catálogo da exposição, 17ª Bienal de São Paulo). ______. 1984/1985. "Aspectos da Pintura na Cultura Indígena". Revista de Antropologia, vol. XXVII/XXVIII.
______. 1992. "A Pintura Corporal e a Arte Gráfica entre os KayapóXikrin do Cateté". In: Grafismo Indígena. São Paulo, Nobel/EDUSP/FAPESP.
VIDAL, Lux; MÜLLER, Regina A. Polo. 1987. "Pintura e adornos corporais". In: Ribeiro, Berta (coord.) Suma Etnológica Brasileira 3: Arte Índia. Petrópolis, Vozes/Finep, 2ª ed.
SEEGER, Anthony. 1980. "O significado dos ornamentos corporais". In: Os índios e nós. Rio de Janeiro, Editora Campus. Recebimento em 11 de março de 2018.
Aceite em 11 de março de 2018.
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Dossiê Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade
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Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade José Miguel Nieto Olivar Doutor em Antropologia Social e Professor na Universidade de São Paulo escreve.ze@gmail.com Guilherme R. Passamani Doutor em Ciências Sociais e Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul grpassamani@gmail.com
O dossiê “Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade” começou a ser gestado no 13º Congresso Mundos de Mulheres – um encontro internacional e interdisciplinar de e sobre mulheres – que ocorreu concomitante ao Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, entre 30 de julho e 4 de agosto de 2017, na cidade de Florianópolis, junto à Universidade Federal de Santa Catarina. O referido congresso organizou uma série de reflexões e debates em torno da temática geral “Transformações, Conexões, Deslocamentos”. O objetivo era potencializar o diálogo sobre as questões de gênero para além da polarização hierarquizada entre Norte-Sul. No campus da Trindade, ouvimos vozes de todos os timbres, circularam saberes múltiplos, bem como a produção de conhecimento e o ativismo caminharam ladoa-lado. Fazendo eco à temática geral do evento, propusemos o Simpósio Temático “Fronteiras, gênero e sexualidade: conexões, deslocamentos e alteridades corporais, espaciais, temporais”. Nele, conseguimos colocar em diálogo pesquisas realizadas a partir de contextos espaciais, temporais ou corporais de marcada alteridade com relação aos grandes centros urbanos e suas narrativas majoritárias, ou que remetam a problematizações, conexões ou transformações a cerca destes. Fronteira, gênero e sexualidade, a partir dessa expectativa, funcionam como categorias de articulação para pensar as experiências de sujeitos e grupos sociais variados a partir da intersecção com outros marcadores sociais da diferença, particularmente com: etnia, região/procedência, geração, classe, escolarização, orientação sexual, religião, raça/cor, entre outros.
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Para tanto, ao pensar fronteira, gênero e sexualidade, estamos atentos a questões como trânsitos, deslocamentos, circulação e fluxos migratórios, bem como a processos de (des/re)territorialização, fronteirização e corporificação. Tentamos, pois, uma conexão de fluxos materiais e imaginativos, empíricos e analíticos, entre processos de produção de corpos e de territórios. Em vista disso, no Simpósio Temático e aqui no Dossiê, reunimos investigadoras/es preocupada/os com a construção social do desejo em/por “outros geográficos” (Guedes, 2017), “entre-cidades” (Nascimento, 2018) e cidades de diferentes escalas, priorizando, aqueles que estão atravessados pela temática de fronteira em sua constituição. Além disso, estamos pensando as tensões que emergem dos temas propostos (corpos, fronteira, gênero e sexualidade) entre as dimensões de urbano e rural, centro e margem, branco e índio, entre outras oposições heurísticas, e toda a miríade de práticas, relações, transações, estratégias e sujeitos que delas emergem complexificando e borrando as normas sociais hegemônicas nessa seara.
Esse Dossiê, ainda, é resultado de um processo de articulações entre diversos pesquisadores, pesquisadoras e centros de pesquisa que, a partir do projeto “Gênero em territórios de fronteira e transfronteiriços na Amazônia brasileira” (Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/Unicamp e Fapesp) vem se encontrando desde 2015 para discutir articulações possíveis entre Gênero e Fronteiras. Uma parte destes encontros girou entorno da sexualidade, dos afetos e dos desejos como uma chave de acesso para compreender as formas em que territórios entendidos como fronteiras são produzidos em termos de, e produzem, gênero, e como relações de gênero são produzidas nestes espaços.
As fronteiras, todas elas, são que, de alguma forma, cruzam os nossos interesses de pesquisa. Nesse sentido, fazer um “estado da arte” das pesquisas e abordagens sobre fronteiras resulta hoje num enorme e não necessariamente rentável esforço, não apenas pela grande quantidade de trabalhos sendo produzidos em diversas disciplinas e desde diversos países, mas pela ampla polissemia que fronteira tem ganhado nas ciências sociais (Hannerz, 1997; Donnan & Willson, 1999; Albuquerque, 2012; Iossifova, 2013; Cardin e Colognese, 2014; Albuquerque e Olivar, 2015; Cardin e Albuquerque, 2018). Cardin e Albuquerque (2018) realizaram recentemente um completo e detalhado estado da arte da produção sócio-antropológica brasileira sobre fronteiras, e no marco do projeto Gênero em territórios de fronteira.... Luiza Terassi (2016), Mario Carneiro (2017) e Tuanny Victor (2017) realizaram um levantamento cuidadoso da recente produção sócio-antropológica brasileira na articulação entre fronteiras, Amazônia e gênero. Desse conjunto de leituras, é possível extrair algumas caraterísticas sobre as associações mais recorrentes e predominantes da fronteira.
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Nessa paisagem, vemos uma prevalência do Estado-nação, ora como categoria explicativa fundamental na conceitualização da fronteira, ora como objeto de análise. Seja na relação com outros estados nacionais, com outras identidades nacionais, ou seja como marcador de avance dos projetos étnico-socio-econômico-estatais dentro do próprio território, o Estado-Nação aparece como referente sólido e âncora privilegiada nos estudos de fronteiras. Além da luz sobre, e desde, o Estado-nação, vemos outras três formas interligadas que ganham destaque no quadro. Primeiro, uma indagação pelas identidades e “culturas” em contato e pela natureza regulatória, porosa, contrastiva da fronteira (Cardoso de Oliveira (1972), Lopez (2000), Albuquerque (2010), – bem como os trabalhos de Zárate (2008) e Aponte (2011), para Colômbia, e Grimson (2003) para Argentina). Segundo, ao redor da ideia da fronteira como referente de migração, de mobilidades, trânsitos e circuitos inter e transnacionais de pessoas, bens, dinheiros e ideias (Piscitelli (2007), Silva (2010), Cardin (2012), Rodrigues e Pereira (2012), Togni (2014), Dias (2015), entre outros). E um terceiro eixo, próximo da imaginação da fronteira como margem territorial do Estado-lei, focado no sistema crime-segurança / ilegalidadespolíticas públicas (Torres e Oliveira (2012), Paiva (2016), entre outros). Por outro lado, há na paisagem uma outra fronteira, mais telúrica, que diz respeito à produção das fronteiras “internas”, dos frentes de expansão, em relação como ideias sobre poder, violência estatal, colonização e economia (Velho (2009[1979]), Martins (1997), Faulhaber (2001), Nobrega (2016), entre outros). Dentro de cada um dessas formas de se relacionar criativamente com a fronteira, é claro, há diversas abordagens e disputas, não se trata de uma paisagem homogênea.
Há, em nosso dossiê, a partir do que expusemos acima, um olhar sobre as fronteiras desde uma perspectiva fortemente antropológica, etnográfica e de gênero. Nosso desejo é avançar na produção de imagens outras da fronteira. Não no sentido de negar, mas no sentido de multiplicar as formas sociais da fronteira, de estilhaçar em corpos e afetos o Estado e a Nação, e de oferecer insumos para o processo de construção da fronteira – seus corpos, territórios, socialidades – como um objeto possível da antropologia brasileira contemporânea. Isto é, nos interessa abrir espaço para a proliferação de fronteiras diversas e contraditórias no marco de uma categoria muitas vezes usada – teórica e políticamente – como ontologicamente marcada, como determinante, mais ou menos estável e homogênea, de realidades sociais e econômicas. Nos interessa prestar especial atenção à fratura e proliferação de, digamos, “processos de fronteirização”, tanto no plano das fronteiras de expansão do capital, quanto no plano das fronteiras internacionais, quanto no plano dos processos internos Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de gestão de fronteiras, de territórios demarcados, de segregações urbanas, etc.. E, muito especialmente, nos interessa nesse dossiê, a possibilidade de avançar em algo que, de formas diferentes, os projetos de Glória Anzaldua (2012) e de Néstor Perlongher (1987), nos deixaram de muito valioso: a compreensão das territorialidades e das fronteiras na sua carnalidade, nas suas dimensões de tensões libidinais, nas suas dimensões generificadas, racializadas, etnicizadas.
Assim, chegamos à composição desse Dossiê, ainda um primeiro passo no caminho que buscamos continuar percorrendo. A chave de acesso disciplinar, como já dizemos, é a antropologia. Pontualmente, na capacidade que a antropologia tem de responder parcialmente a uma preocupação recente do campo dos Estudos de Fronteiras: a necessidade de produzir conhecimento desde as fronteiras (Staudt, 2017). Esta preocupação, como expressada por Staudt, diz respeito tanto às abordagens disciplinares (classicamente preocupadas com análises macro) quanto a localização de origem de pesquisas, pesquisadores e centros de pesquisa. Com relação ao primeiro aspecto, a etnografia possibilita à antropologia a produção de um conhecimento que emerge a partir da relação localizada, muitas vezes enraizada e sempre em processos de mutua afetação com as pessoas e os lugares que participam da pesquisa. Por outro lado, a antropologia abre a possibilidade do interesse mais atento pela diferença e pelas singularidades, pelos processos intensivos de diferenciação e de construção de relações e alianças laterais aos poderes estatais e às formas hegemônicas da cultura (nacional, especialmente). Nesse sentido, seria possível pensar que o conhecimento sobre fronteiras emergido de abordagens antropológicas e etnográficas possibilite a construção de um conhecimento inteiramente novo ao interior dos Estudos de Fronteiras.
Com relação ao segundo aspecto, esse dossiê apresenta a potência de deslocamentos em curso: pesquisas realizadas desde universidades localizadas em áreas de fronteira e por pesquisadores que são originários ou que habitam estes territórios. Contudo, é necessário dizer que se trata ainda de uma dívida. Os artigos a seguir apresentam resultados de pesquisas concluídas ou em curso, individuais ou coletivas, que de formas diferentes respondem às questões acima assinaladas.
O artigo “Identidades em processo: se fazer prostituta e indígena em um jogo relacional e contextual”, de Lívia Freire da Silva, encontra-se no campo de algumas questões emergentes na antropologia no Brasil: o espaço de conexão entre estudos com populações indígenas, estudos de gênero e sexualidade e estudos de dinâmicas de mobilidade e circulação territorial. No caso particular, o cruzamento acontece através dos Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Apresentação ao dossiê: Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade
corpos e territorialidades de mulheres indígenas que participam de mercados sexuais. Nesse sentido, aqui a fronteira está diretamente relacionada tanto à dinâmica social e política de gestão de determinados territórios, quanto aos processos de diferenciação étnica e aos processos de ajustes e limites morais de práticas sexuais e de possibilidades de gênero.
A delimitação territorial é clara e obedece a um específico processo de fronteirização interna: a demarcação de terras indígenas, a legislação indigenista e as lutas e tensões políticas destas populações pelo reconhecimento pleno e diferenciado dos seus direitos. Esse sistema de conjunções fronteiriças em que territórios, etnias, práticas econômicas e moralidades se combinam, é atualizado num gesto etnografado por Freire. A prática que conjuga o dever de sair do território e a manutenção do segredo como possibilidade das mulheres indígenas participarem da prostituição. Por “orientação” do grupo, a prostituição das mulheres indígenas deve ficar do lado de fora. Surpreendentemente, essa política tem seu reverso quando Freire nos ensina como, para outras mulheres forasteiras (e por tanto para o usufruto dos homens locais), a prostituição dentro do território se faz possível sempre sob uma estrita normativa administrada pelos poderes comunitários. A fronteira da terra demarcada, a fronteira étnica é, então, também generificada. Mas há ainda nesse artigo uma última e preciosa torção destes sistemas morais e territoriais de produção étnica. Em diálogo com toda uma literatura nacional e internacional sobre economias sexuais e processos de racialização e etnicização, as mulheres com quem Freire trabalhou experimentam também, e praticam, a valorização erótica/econômica da condição étnica, atestada pelo documento oficial de registro indígena, no marco do comercio sexual fora da terra indígena.
Seguindo pelo caminho da prostituição, o artigo aqui apresentado de André Rocha Rodrigues, “Tudo é Rua: apropriações, espaços e corpos no mercado do sexo em São Carlos/ SP”, marca uma importante torção proposta nesse desse dossiê. Seguindo parcialmente uma reflexão de Sassen (2013), abrimos o espaço dos estudos de fronteiras para dentro da cidade, inclusive de cidades distantes de territórios de fronteira internacional. A reflexão antropológica sobre ‘fronteira’ se abre para outras territorialidades que não apenas aquelas dos movimentos transnacionais, mas se abre também para dentro. A cidade e suas fronteiras internas, seus processos territorializados de diferenciação. Então emerge um quadro de diálogo no qual as fronteiras do Estado-Nação, historicamente autoevidentes nas linhas limítrofes dos países, entram em um diálogo tenso e criativo com os processos difusos ou sistemáticos de segmentação territorial, de produção de limites de diferenciação e de micro-territorialidades. É nesse sentido que a proposta de Rodrigues Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ganha relevância aqui.
Preocupado em compreender a configuração territorial da prostituição de rua em São Carlos (SP), o autor vai desvendando etnograficamente todo um (outro) processo de gestão de fronteiras, identidades, limites, corpos e territorialidades. O ponto de partida é, justamente, a noção de Rua, e a partir dela, uma série de segmentações micropolíticas que não dizem respeito (mesmo que estejam relacionadas) a ações governamentais do Estado ou à atualização da nação. Percorrendo com lucidez comparativa uma bibliografia sobre rua que vai de Damatta (1991) a Magnani (1998) e Perlongher (1987), o autor oferece uma perspectiva interessante para ler estas dinâmicas de fronteirização: antes que identidades opostas em jogo (como no caso de dois estados-nação, duas etnias em confronto ou a díade casa-rua), há uma sempre contingente performatização de posições e possibilidades morais, uma fluidez semântica do território (seguindo a Perlongher). Dessa forma, seguindo uma ideia que atravessa os artigos que compõem esse dossiê, se estabelece um vinculo empírico e analítico entre o corpo, o desejo e o território (na mediação estilística do gênero), como locus de gestão e contestação de fronteiras: ruas de “frente”, “atrás”, “dentro”, “baixo”, “fundo”, sugerem também estilos corporais e ajudam a definir posições territoriais, sexuais, econômicas e de gênero na complexa trama organizativa de diferenças no mercado do sexo.
Ainda mais, a fronteira de Rodrigues está permeada pela prostituição urbana, de ruas e regiões centrais da cidade. Rodrigues, seguindo uma extensa literatura brasileira sobre prostituição, mostra como a casa e a rua da prostituição atualizam, mas também contra-efetuam, a esquematização oposicional de Damatta entre Casa e Rua. Acontece que, como vemos também no trabalho de Lívia Freire, na prostituição os sistemas fronteiriços ganham outro código, outras chaves de acesso e tradução. A casa se desdobra minimamente em duas: a casa da família, da habitação, a casa mais moral, e a casa do trabalho, do comércio, das alianças laterais (que, como sabemos, não excluem a família). Nesse desdobrar, há uma casa na rua, há uma casa atravessada intensamente pelos códigosterritórios da rua, pelos seus tensores-libidinais e suas lógicas de transfronteirização. Mas há também a rua, que se torna profundamente familiar, doméstica, afetiva, íntima e moral. Nesse plano dos afetos, dos desejos, das diferenças corporais e suas marcas de territorialidade, encontramos o artigo de Silvana Nascimento. Porém, a partir de agora, o dossiê adentra no território das fronteiras internacionais brasileiras. Em “Fugas e contrapontos na fronteira: reflexões etnográficas sobre transitividades corporais e de gênero no Alto Solimões/AM”, Nascimento apresenta resultados de uma pesquisa antropológica sobre/na tríplice fronteira urbana entre Brasil, Peru e Colômbia a partir Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Apresentação ao dossiê: Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade
das experiências de pessoas gays e trans* vinculadas ao circuito dos salões de beleza e peluquerías.
Esse artigo nos obriga a um movimento em que a noção de fronteira se faz central e, ao mesmo tempo, colide consigo mesma nas suas mais banais capacidades explicativas: corpos e experiências trans (em termos de gênero e sexualidade) através de uma intensa e urbana tríplice fronteira amazônica. O “multiverso” evocado pela palavra trans, seguindo a autora, excita nos leitores a onipresença das dinâmicas e dos movimentos fronteiriços: na polifônica construção da diferença, tudo é fronteira. Tudo é alteridade, tudo é ponte, tudo é hibridação, tudo é controle de trânsitos e aproveitamento de diferenciais fronteiriços.
Por outro lado, aquela tradicional fronteira do Estado e da Nação, nada explica, como vemos. O mergulho etnográfico através de corpos e rituais de beleza e fabricação corporal dessas chicas trans de nacionalidades e etnicidades também trans, também forjadas performativamente e também entretecidas genealogicamente, oferece para esse dossiê um espaço precioso de reflexão sobre conceitos, disciplinas e métodos nos estudos fronteiriços. Nesse artigo “a fronteira” emerge como um lugar de materialidade própria, territorialidade de riqueza conceitual, estilístico-generificada (cosmopolítica, então) e cultural que nada diz respeito à matemática de duas identidades em relação (por mais dinâmica e processual que seja).
Em diálogo estreito com Nascimento, encontramos o artigo de José Miguel Nieto Olivar, intitulado “Gênero, cuidado e a reconfiguração da fronteira... fronteiras, fronteiras!”. Olivar apresenta um pouco dos resultados de uma pesquisa de caráter etnográfico levada a cabo em Tabatinga (AM), uma cidade transfronteiriça entre Brasil, Peru e Colômbia. É ali, naquele Brasil que acaba, que começa e que transita entre Peru e Colômbia, que Olivar propõe uma reflexão sobre fronteiras a partir de um diálogo profícuo das Ciências Sociais – a Antropologia em especial – com outras áreas. A análise da fronteira empreendida pelo autor conversa com os conceitos de cuidado, gênero, sexualidade, corpo e afetos, por meio das narrativas, tecidas fio a fio, por Flor, Cauã, Reyes, Cecilia e tantas outras personas que dão carne, osso e as mais contraditórias sensações ao correr dos dias na tríplice fronteira encravada em Tabatinga.
É assim, transitando entre os sujeitos transfronteiriços, que Olivar apresenta a fronteira como um território “em fazendo”. Ela aparece como um lugar dos múltiplos, das performances, das relações, dos corpos em movimento. Fronteira que transforma sujeitos e constitui afetos. As vidas que constituem a narrativa de Olivar são compostas por variadas relações relações, corpos, experiências, trajetórias e diferenciações a enunciar a todos nós como é potente olhar antropologicamente para a fronteira. Fronteira, então, não está Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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dada a priori, fronteira é produzida a partir da circulação de afetos, da rede de cuidado, das performances de gênero, das sexualidades disparatadas daqueles sujeitos que fazem com que um antropólogo também fique impregnado por um imaginário transfronteiriço. O artigo de José Mguel Olivar é potente ao promover uma análise de um lugar específico, “o cu do mundo”, de forma a articulá-lo, por meio das ferramentas seja da etnografia, seja do olhar antropológico, a outros contextos e a relações. As vidas que aparecem no texto, tão sedutor, de Olivar nos transportam para Tabatinga, ao mesmo tempo, quem enxergamos os sujeitos transfronteiriços da pesquisa pelas esquinas das nossas cidades. Eis uma das faces da potência da etnografia.
Álvaro Banducci, Guilherme Passamani e Tiago Duque no artigo “Fora chollos: gênero, sexualidade, alteridade e diferenças na fronteira Brasil-Bolívia”, incluído nesse dossiê, apresentam um valioso diálogo das suas trajetórias e interesses de pesquisa em/ por e sobre territórios fronteiriços entre o Brasil e a Bolívia. Os três autores discutem a múltipla produção de diferenças e desigualdades atravessadas pela fronteira internacional entre estes dois países. Na trilha de pensar intersecções e articulações entre eixos de diferenciação, o artigo aqui publicado demonstra a importância de pensar tais processos em marcos territoriais específicos, como as fronteiras internacionais. Nesse sentido, aqui emerge um jogo de alteridades e relações que multiplica as fronteiras na busca por beleza, por afetos e por encontros sexuais, que atravessa etnia, geração, gênero, nação e sexualidade. A cena de uma Colla drag negra em transas de carnaval, as marcações étnico-raciais, nacionais e geracionais de “efeminados” no mercado do sexo, e as memórias de homossexuais sobre encontros de juventude com marinheiros brasileiros, são materialidades muito valiosas que esse artigo oferece para pensarmos a complexa trama de práticas de fronteirização e de apropriação local, multiforme, dos códigos fronteiriços.
Assim, os autores propõem um diálogo interessante entre as provocações estéticopolíticas de Anzaldua e os controles dialéticos da sociologia (no caso, do Pablo Vila). Nesse artigo, a fronteira histórica, a fronteira das alteridades abismais e das desigualdades mais profundas, é operacionalizada cotidianamente por afetos que circundam o racismo: evidencia-se no mercado sexual local a exaltação (brasileira) da nacionalidade brasileira, associada ao não indígena, e à juventude. Muito mais que a literalidade dos controles policiais ou, inclusive, antes que o simbolismo da nação, a restrição de relações, a gestão dos vínculos e dos circuitos e o controle das mobilidades e transações, parecem ser englobados por afetos de outra ordem, profundamente interessados na assimetria e na construção/manutenção de hierarquias raciais, de gênero e de posição socioeconômica. É Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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nesse sentido que ganha maior sentido a figura dos marinheiros provenientes do Rio de Janeiro: estas fronteiras brasileiras, prenhes de tensores libidinais, são ao mesmo tempo as fronteiras internacionais e as frentes de expansão em que desejo e alteridade circulam de cima para baixo, de lado a lado e em modulações sinuosas, como gramáticas coloniais que vemos atualizar-se.
Esse dossiê encerra com o artigo “Mover-se nas fronteiras: percursos, políticas e saberes transfronteiriços”, de autoria de Flávia Melo da Cunha. Através de uma delicada construção narrativa, cheia de memórias, de afetos, de implicações corporais e de ricas reflexões teóricas, Melo da Cunha produz uma “biografia generificada das fronteiras vividas, rememoradas e transformadas”. A autora se propõe um diálogo especial com Glória Anzaldua através da evocação da ideia da antropóloga mestiza cuja biografia e genealogia materializa uma experiência particular, profundamente histórica, da tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e a Colômbia. Nessa biografia afetiva da fronteira, o gênero ocupa um lugar especial. Primeiro, gênero permite a identificação da versão familiar do processo histórico de fronteirização amazônico (ocupação militar, soldados da borracha, migrações provenientes do nordeste brasileiro e outras do Peru) como uma relação de masculinidades em jogo; segundo, gênero possibilita olhar essa fronteira-biografia através das mulheres da família identificando nelas muito mais que sujeitos homogêneos o apagados, mais que vítimas indígenas da colonização sexual, e mais que agentes passivos da reprodução nacional. Terceiro -uma das chaves da proposta da autora-, gênero, em articulação formativa com produção de etnicidade e de classe, e na perspectiva inacabada da trajetória de vida, possibilita que enxerguemos esse processo histórico-biográfico de produção fronteiriça através do exercício reflexivo de recontar o próprio retorno da autora à fronteira como professora e pesquisadora da Universidade Federal. Nesse movimento, a expansão universitária brasileira e a afirmação do estado civil e de direitos (em Tabatinga) durante a primeira década de 2000, e a pauta política das mulheres (particularmente o enfrentamento da violência), interagem ativamente como formas de governamentalidade fronteiriça. Retorno físico, reconfiguração narrativa, reflexividade antropológica. Por fim, é nesse marco de duplicações sucessivas (para usar a imagem que Foucault dirige às ciências humanas (2000[1966])), que a autora e a fronteira emergem em associação formativa, inacabada, como efeitos intensos de redes amplas de relações familiares, comerciais, políticas, afetivas, de ensino, de militância, de governamentalidade. Por fim, acreditamos que a potência desse Dossiê é ser uma espécie de instalação coletiva em plena construção. Muitos desdobramentos estão em aberto; porém, acreditamos que no conjunto de trabalhos aqui reunidos há já importantes aportes vindos Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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desde a antropologia e os estudos de gênero e sexualidade, para os Estudos de Fronteiras, ou para o crescimento de uma parcela de pesquisas antropológicas sobre, em e desde fronteiras territoriais. Cabe destacar: o descentramento, fragmentação, carnalização, generificação e subordinação do Estado e da Nação; as relações constitutivas entre corpos e territórios, como materializações de outras relações; a fronteira como um tensor libidinal densamente político e histórico, e como um agenciamento de gênero; a fronteira como um centro de redes ou sistemas de socialidade cuja existência e análise não é efeito da primacia na nação, do estado, da cultura e da territorialização; a fronteira como um centro de produção de conhecimento e como um território habitado (e não apenas de passagem); as conexões empíricas e analíticas diversas entre fronteiras nacionais, frentes internas de expansão, fronteiras étnicas e processos urbanos de reorganização do território, que permitem suspender temporariamente, metodologicamente, a globalidade e o transnacionalismo como marcos de sentido. Esperamos então, que a leitura dos artigos, aqui reunidos, possa servir de inspiração (crítica, sem dúvida) para pesquisadores e pesquisadoras, professores, professoras e estudantes, nas suas abordagens disso que, com maior ou menor abrangência, chamamos de fronteira.
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Identidades em processo: se fazer prostituta e indígena em um jogo relacional e contextual
Lívia Freire da Silva1 Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte liviafreire4@gmail.com
Resumo Analiso as construções de identidades das indígenas Potiguara que se prostituem na região que abrange a cidade da Baía da Traição e aldeias Potiguara circunvizinhas. A prostituição se organiza nesta região diante de questões de pertencimento étnico, mobilizando expectativas sobre as condutas femininas junto a segredos sobre suas práticas no mercado do sexo, construção dos corpos, questões de gênero e sexualidade. Descrevo como se constroem as identidades étnicas de mulheres que se prostituem atreladas às suas identidades como prostitutas, buscando perceber em quais momentos tais identidades são acionadas. Sobremaneira, essas questões perpassam um desafio maior: avaliar como as interlocutoras constroem suas identidades diante de uma perceptível fluidez. Considero também o modo como a vida na prostituição organiza o cotidiano dessas mulheres tendo em consideração que as indígenas exercem suas atividades na prostituição com segredo, e estabelecem esta atividade como um suporte financeiro ou mesmo como forma de lazer e sociabilidade. Palavras-chave: prostituição; sexualidade; identidade; fluxo; etnicidade Abstract I analyze identities constructions of the Potiguara indigenous women who prostitute themselves in the region that encompasses the city of Baía da Traição and surrounding villages of Potiguara. Prostitution is organized in this region in the face of questions of ethnicity, mobilizing expectations about female behavior along with secrets about its 1
Programa de pós graduação em Antropologia Social UFRN (PPGAS). Membro do grupo de pesquisas Gênero, corpo e sexualidade (GCS) da UFRN.
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practices in the sex market, body building, gender issues and sexuality. I describe how to construct the ethnic identities of prostituted women tied to their identities as prostitutes, trying to perceive in what moments such identities are triggered. Above all, these questions are facing a greater challenge: to assess how the interlocutors build their identities in the face of perceived fluidity. I also consider how life in prostitution organizes the daily life of these women , taking into account that indigenous women engage in prostitution with secrecy and establish this activity as a financial support or even as a form of leisure and sociability. Key words: Prostitution, sexuality, identity, flow, ethnicity.
Introdução Este artigo é fruto de uma pesquisa ocorrida entre 2010 a 20142, e visa analisar as construções de identidades das mulheres indígenas Potiguara que se prostituem no Litoral Norte paraibano, na região que abrange a cidade da Baía da Traição e aldeias Potiguara circunvizinhas. Através da observação participante e de interlocução com 14 mulheres com faixa etária entre 18 e 47 anos, que se prostituem esporadicamente, busco compreender como se constroem suas identidades étnicas e de prostitutas em constante negociações uma com a outra, analisando como estas são acionadas situacionalmente. Destas mulheres 9 se declaram indígenas e vivem no território de demarcação Potiguara, 4 trabalham nas cozinhas das pousadas e restaurantes da cidade, 2 são estudantes e 3 vendem artesanato local e dependem do período sazonal do verão, momento em que a demanda de turistas na cidade da Baía da Traição é maior e as vendas são intensificadas. Em outros períodos do ano, quando a procura por artesanato cai juntamente com as reservas em pousadas e frequência de turistas em restaurantes elas se mobilizam para outras cidades em busca de sustento financeiro exercendo as atividades da prostituição. O Litoral Norte da Paraíba é constituído por um conjunto de 11 cidades, das quais, nos termos desse trabalho, aponto significativamente para a Baía da Traição, uma comunidade cuja abrangência acolhe em si fluxos e fronteiras étnicas, culturais e sociais. Nesse aspecto percebo as “fronteiras” como categoria fundamental para o entendimento da dinâmica e dos atores envolvidos no contexto do mercado sexual local, dadas as particularidades do espaço social, cultural e geográfico. De acordo com as fontes do
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“Vender as carnes”: prostituição no litoral norte paraibano, Dissertação de Mestrado em Antropologia social apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFRN no ano de 2015 como requisito para obtenção do título de mestra em Antropologia social por esta instituição. Neste trabalho buscou-se compreender como a prostituição se apresenta no litoral norte paraibano, em especial Baía da Traição e aldeias indígenas Potiguara. O recorte central do trabalho é entender como a prostituição se adapta nessa região de constante fluxo cultural, levando em consideração questões tocante ao grupo indígena Potiguara como; territoriedade, identidade, fronteiras e segredo.
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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2014 a Baía da Traição era a cidade com maior concentração de indígenas no Brasil. É uma região cuja base produtiva encontra-se assentada no trabalho vinculado à agricultura e à pesca, além de pequenos salários e benefícios sociais como aposentadoria entre os mais velhos, ou Bolsa Família, entre os mais novos, e entre a população indígena especificamente, também por meio dos benefícios concedidos pela Fundação Nacional do Índio, a FUNAI. A Baía da Traição possui 8.696 habitantes, dos quais 5.687 são indígenas que se distribuem em territórios já demarcados ou em processo de reconhecimento e demarcação que juntos abrangem aproximadamente uma área equivalente a 20.820 hectares distribuídos em três áreas adjacentes, nos limites dos municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação. A Baía da Traição, por ser um polo turístico paraibano, possibilita o grande fluxo não só de turistas, mas também pescadores oriundos de outras cidades. O movimento da prostituição nesse contexto depende do fluxo de pessoas que chega à região, de feriados, festas, como a da padroeira da cidade, carnaval e a alta estação no verão, que muda a configuração da cidade e lota hotéis, pousadas, bares e restaurantes. Outro fator preponderante quanto ao aumento da procura por serviços de prostituição é o período sazonal de pesca de Lagosta e Camarão (inverno). Esse momento traz à cidade pescadores oriundos de outras localidades e intensifica a procura por sexo pago.
Por esse viés é possível entender uma série de questões a respeito de como se constitui a prostituição no Litoral Norte paraibano. A forma como a atividade ancora e se estabelece na Baía da Traição e aldeias Potiguara tem características singulares. Além do pertencimento étnico em virtude do papel ativo que grupos e territórios indígenas ocupam na morfologia social da região, podemos apontar também a sazonalidade do trabalho e da produção agrícola (principalmente devido a importância que a monocultura de cana de açúcar desempenha nesse contexto) e da pesca, em especial da pesca da lagosta, famosa na região. Além dessas atividades vinculadas a um domínio produtivo, também devem ser considerado o trânsito em virtude da posição que a rodovia federal BR 101 ocupa na região, proporcionando uma via de trânsito que costura o país no eixo Norte-Sul. Nesse caso, a prostituição enquanto uma troca econômica-sexual aparece como uma atividade que permite à mulher participar do jogo de interação das identidades, acionando a identidade indígena e de prostituta em momentos específicos, sem com isso anular uma a outra. Nesta região muitas mulheres se referem às atividades da prostituição como uma alternativa, um segundo plano e aplicam o termo “brincar”, “vender as carnes”, “ficar por dinheiro”, “receber agrado” enquanto categoria êmica para denotar tal argumento. Nesse contexto, percebo que tais categorizações presentes no campo denominam a prostituição Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de várias formas. São classificações que extrapolam a noção de prostituição enquanto categoria rígida.
Trânsitos e intercâmbios de serviços sexuais A prostituição pode ser entendida como uma troca econômica e sexual, uma permuta entre serviços sexuais prestados por um pagamento estabelecido. E abarca intercâmbios materiais e simbólicos. Nos termos desse trabalho se apresenta como uma alternativa de troca que vai além do comércio com o corpo. Os aspectos que abrange a prostituição ultrapassam a noção de comércio, e pode ser pensado no campo do simbólico, uma vez que envolve práticas e desejos que em conjunto com esses processos de negociações constituem um mercado com amplas possibilidades e possui uma gama de relações que envolve gênero, geração, classe, etnia e trocas afetivas e sexuais que abrigam as economias sexuais em toda sua amplidão. Pensar na prostituição apenas como comércio desconsidera as diferentes escalas em que a atividade se configura. Contudo, há um universo amplo de intercâmbios sexuais que não abarca apenas a prostituição, há casos onde as trocas sexuais são estabelecidas por presentes, passeios, roupas, calçados, ou até mesmo supermercados, como acontece com uma parte significativa das interlocutoras com as quais trabalhei. Esse tipo de troca pode ser pensada como “ajuda”, como argumenta Adriana Piscitelli, (2011), onde as pessoas intercambiam sexo por benefícios econômicos de maneira autônoma, fora de estruturas organizadas e, sobretudo, de maneira ocasional. Porém, a ajuda que aparece nesse contexto, faz parte da economia das mulheres que se prostituem na região e que aceitam presentes como forma de pagamentos devido à economia local. Segundo Cabezas (2009) e Hunter (2010), esses intercâmbios envolvem benefícios materiais, presentes, passeios, viagens em troca de sexo, e no contexto da Baía da Traição e aldeias Potiguara se constituem como uma forma de romper as barreiras econômicas e de classe. Contudo, é primordial compreender essa modalidade de intercâmbio como uma espécie de sexo mercantilizado do qual as interlocutoras entendem essas negociações como prostituição, uma vez que negociam serviços sexuais. Por outro lado, podemos perceber a prostituição enquanto prática que remete à agência (ORNTER, 2006). Reformulando as distribuições de poder que permeiam as trocas sexuais. Esse aspecto de agência permite que elas escolham a melhor forma de negociação para os serviços prestados e como e onde vão efetuar. Esse princípio contribui para pensar diversos tipos de “inserção no contrato explícito de intercâmbio entre sexo e dinheiro” (PISCITELLI, 2005, p. 1). É interessante pensar na categoria “usar o corpo” (OLIVAR e GARCIA, 2017) para escapar da limitação que o termo prostituição acarreta e
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que sistematiza as dinâmicas de transações entre sexo e dinheiro, bens, trocas afetivas e uma multiplicidade de arranjos presentes nessas operações em contexto de prostituição. Ou seja, a troca explicita de sexo ou bens no Litoral Norte paraibano mostra um uso do corpo para acessar dinheiro e bens como uma economia sexual próxima a noção de sexo tático (CABEZAS, 2009), onde as mulheres vão utilizar o corpo como forma de acessar bens econômicos e aliviar a ausência daquilo que é necessário, economicamente falando sem com isso eliminar os intercâmbios presentes nesse contexto como o prazer e as relações afetivas, por exemplo.
Na Baía da Traição e aldeias Potiguara a prostituição tem características singulares e bem comuns ao local. Nesta região pesquisei em dois bares, um situado dentro das delimitações das terras indígenas Potiguara e outro na Baía da Traição. As mulheres com as quais mantive interlocução nesses espaços atribuem às atividades de negociações de sexo por dinheiro como alternativa, como segundo plano e aplicam o termo “brincar” para se referir as suas práticas sexuais. Durante a pesquisa de campo, quando perguntava às interlocutoras o que elas entendiam como prostituição, ou mesmo se elas se consideravam como parte integrante desta prática, as respostas eram quase imediatas: “eu vendo as carnes”, “eu brinco” e “negocio a brincadeira” por dinheiro ou presentes. Logo, o termo “brincar” utilizado para remeter prostituição é uma categoria nativa que indica recreação e se insere no contexto de lazer, mas também uma noção ampliada da prostituição. É uma categoria da qual me aproprio para demonstrar que as mulheres que se prostituem embora consigam um suporte financeiro devido às ‘brincadeiras’, também se divertem e utilizam espaços de lazer como todos os habitantes do recorte etnográfico. Além disso, há o fator marcante da sazonalidade da prostituição em razão do período de pesca de lagosta e verão transformam a estrutura social e econômica da cidade. Devido à economia local ser baseada na pesca e por ser uma cidade turística, esses espaços de tempo fazem com que a clientela em busca de sexo pago migre de outras regiões aumentando assim o movimento nos bares que abrigam as atividades da prostituição. As negociações na prostituição não envolvem apenas o serviço sexual mediante o pagamento monetário, faz parte de economias sexuais que segundo Adriana Piscitelli (2016) situa intercâmbios sexuais e econômicos em contexto sociais mais amplos. A mulher que negocia com o corpo, também pode receber presentes3, pequenas dádivas 3
Os presentes adquiridos como via de troca entre a prostituta e o cliente não tira o valor econômico do programa. No caso em questão, os presentes recebidos pelas mulheres que se prostituem geralmente são de utilização pessoal como roupas, calçados, perfumes, maquiagens, bijuterias. Produtos que elas comprariam com o dinheiro arrecadado nos programas, logo, este tipo de troca não afeta negativamente a economia das mulheres, ao contrário, lhes poupa uma parte do ordenado recebido. Geralmente aceitam presentes que vão necessitar no seu dia a dia no procedimento de preparação para “vender as Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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como perfume, maquiagem, roupas, calçados, etc. Tais presentes em outros contextos talvez não fossem reconhecidos como integrantes de uma relação de trocas financeiras por sexo, ou mesmo “vender as carnes”, que segundo às interlocutoras, em seu sentido êmico representa as negociações de sexo por dinheiro ou por produtos, é uma configuração de relação constitutiva dos usos do corpo. Por essa razão a econômia sexual pode ser pensada tomando como base as marcas de gênero que atravessam as relações, nota-se que os fatores para o ingresso na prostituição são diversos e não condizem apenas a questões econômicas ou a falta de oportunidade. Portanto, a prostituição aqui, se organiza dentro de um cenário de estratégias, deslocamento e segredos. Há uma grande rotatividade de mulheres que usam o corpo para fins financeiros e que se deslocam de suas respectivas aldeias para poder se prostituir. Esse trânsito é estratégico, uma vez que elas precisam manter segredo sobre suas atividades na prostituição. Além do mais, também possibilita a “carne nova no pedaço”, termo utilizado por elas a respeito de ser novidades nos bares/cabarés por onde passam e com isso atrair uma clientela maior.
Sobremaneira, essas questões perpassam um desafio maior: avaliar como as interlocutoras acionam suas identidades em contextos específicos. Observo também o modo como a prostituição é percebida e tomada pelo cotidiano delas considerando que as indígenas que se prostituem articulam as atividades sexuais de forma discreta, sob o signo do segredo. Nesse caso a prostituição não se apresenta apenas como possibilidade de sustento financeiro; além disso, o lazer e a sociabilidade aparecem como plano de fundo. Visto que os deslocamentos proporcionados pela atividade possibilitam elas irem a festas e viajarem para outras regiões, ampliando suas experiências e perspectivas de relação para além do território indígena. Vários são os elementos que tornam a região do Litoral Norte da Paraíba como um espaço produtivo para se refletir sobre as particularidades e complexidades do mercado do sexo. Se no contexto da sociedade envolvente muitas vezes o trabalho sexual é avaliado como moralmente negativo, desvalorizado e carente de regulamentação, nas esferas de populações tradicionais essas questões são ainda mais sensíveis porque perpassa pela moral do grupo que é visto e avaliado pela sociedade envolvente como uma comunidade homogênea, sobremaneira frente a um histórico de combate à exploração sexual em territórios étnicos. Nesse aspecto, se por um lado as mulheres indígenas que se prostituem buscam no trabalho sexual uma alternativa para complementação de renda e suprimento de aspectos que leem como de carência, por outro o imaginário social que as carnes” ou mesmo para sair para festas e participar dos circuitos de lazer e sociabilidade.
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envolve as compreende como vítimas. No Litoral Norte, o pertencimento étnico configura algumas expectativas em torno da imagem pessoal como forma de enunciação de uma representação coletiva, e em virtude do papel ativo que grupos e territórios indígenas ocupam na morfologia social da região.
Na experiência dessas mulheres, as interseções entre identidade étnica e o exercício da prostituição estão em constante diálogo. Este fator é uma unidade de identificação que vai de acordo com a manutenção das fronteiras e não pelo conteúdo cultural em si. Depende da conservação das relações e trocas entre grupos, do conjunto de regras restritivas e instrutivas que conduzem o contato interétnico. Segundo Barth (2000) a identidade étnica não é estática, é mutável, dinâmica e temporal, não podendo ser entendida como um “suporte” da cultura e sim como uma organização social e política de informações, valores, práticas que estão disponíveis num aspecto mais amplo de relações. Por esse viés falo em identidade de prostituta para sinalizar a dinâmica da prática em seu aspecto mais amplo; como elas se organizam nas suas relações e constroem estratégias para se prostituir.
Há uma prática comum entre as mulheres indígenas Potiguara que se prostituem, de se deslocarem de seus territórios para exercerem a atividade longe dos olhares familiares, assim elas mantêm o segredo sobre suas práticas no mercado do sexo. Por esse ângulo é pertinente pensar que tal atitude tenha ligação direta com questões de etnicidade, uma vez que ao questionar as indígenas sobre esses trânsitos elas afirmam que o segredo sobre a prostituição ajuda a manter a identidade étnica intacta diante do Estado nação. Existe uma regulamentação do comércio sexual local, o funcionamento de bares é estritamente proibido na área de delimitação territorial, porém, devido a acordos entre lideranças e os donos dos estabelecimentos é possível encontrar bares abertos ao público nessa região. O mesmo acontece com a prostituição. Há uma série de regras, restrições e normatizações locais que fazem com que se adeque as normas estabelecidas. Tais atributos se aplicam ao número permitido de bares e mulheres exercendo a atividade no território Potiguara.
Acácia4, mulher indígena, 45 anos, começou a se prostituir em parceria com sua irmã, e posteriomente abriu um bar dentro do território Potiguara, quando inaugurou o estabelecimento com quartos destinados a prostituição sofreu várias represálias por parte das lideranças indígenas, até conseguir por meio coercitivo que o bar pudesse funcionar para o público. Esse aspecto sinaliza a prostituição imersa em fronteiras do
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Mantenho o anonimato das interlocutoras da pesquisa como forma ética de proteger a integridade delas, uma vez que elas se deparam com questões como preconceito, estigma, e estão em constante contato com temas que são delicados e ilícitos. Portanto, aplico nomes fictícios às interlocutoras e bares e embaralho alguns dados como forma de resguardar o segredo na prostituição das mulheres com quem mantive interlocução durante esta pesquisa. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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legal e do ilegal, e essas fronteiras fazem com que se criem e se compartilhem códigos de condutas específicos (PAZZINI, 2014). Contudo, o código do legal e ilegal no caso de Acácia para se tornar legítimo passou por conflitos. Esse aspecto constitui a existência de um comércio sexual regulado dentro das terras indígenas de acordo com a conduta moral local. A necessidade de manter um número limitado de bares na delimitação territorial Potiguara devido a acordos internos do grupo permite até duas mulheres se prostituindo dentro do bar que funciona na aldeia. Porém, as prostitutas que trabalham neste espaço geralmente são oriundas de outras regiões, ao passo que as indígenas se deslocam para outras cidades para poder se prostituir. Acácia explica que essa determinação serve para maquiar a existência de prostituição em território indígena e que para manter essa discrição as indígenas que se prostituem se deslocam de suas respectivas aldeias para exercer o ofício em outras cidades e esse movimento se dá devido a uma rede de apoio que elas mantêm. Essa rede permite estratégias para a manutenção do segredo, a troca de experiências na prostituição, mudança de território, assim como indicação de melhores lugares para morar/ se prostituir.
A fronteira do legal e ilegal também marca a restrição em relação aos bares com atividades de prostituição, só é permitido um bar por vez funcionando entre as 14 aldeias Potiguara. O primeiro estabelecimento com atividades de prostituição com mais de 10 anos de funcionamento fechou suas portas devido ao avanço do mar. Nesse período em que se manteve fechado, abriu outro bar em uma aldeia próxima. Porém, devido a políticas internas e códigos morais do grupo, fechou as portas como parte de uma reivindicação das indígenas que não queriam um bar com prostitutas funcionando na aldeia. Após seu fechamento, abriu outro bar e assim sucessivamente. Esse aspecto sinaliza que a prostituição na região se estabelece devido a um movimento cíclico de abertura e fechamento de bares, as mulheres entram e saem da prostituição constantemente e a exercem como uma atividade secundária. As Potiguara são discretas com seus usos do corpo e para tal fins se locomovem de suas respectivas aldeias para poderem se prostituir, mantendo assim, segredo sobre suas práticas na prostituição. Geralmente, as viagens ocorrem nos fins de semana para os estados da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e outras regiões próximas, e duram em média 3 dias sob a justificativa de que vão exercer trabalhos renumerados relacionados ao âmbito domésticos. A estratégia de viajar para se prostituir fora do território Potiguara é uma questão chave para o entendimento de como o trânsito ajuda a manter o segredo entre o grupo, uma vez que se locomovem para ambiente onde não são conhecidas e com isso evitam estigmas e sobretudo, que seus familiares saibam de seus usos do corpo. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Nesse aspecto, a atualização histórica da identidade étnica, o sentimento de origem e até mesmo reforçar essa identidade não anula as possíveis construções que as interlocutoras desenvolvem ao longo de suas jornadas. A prostituição, portanto, adquire um espaço singular na vida dessas mulheres que constroem suas identidades enquanto indígenas em busca de direitos frente ao Estado nação, dialogando com questões políticas internas do grupo e com suas sexualidades, busca de lazer, e vivenciar outras experiências fora de suas aldeias.
Pertencimento étnico e a prostituição
Os Potiguara passaram por um processo histórico de reconhecimento e territorialização étnica no Nordeste, através do qual a disputa pelo território historicamente ocupado era um dos principais dispositivos de constituição de uma identidade étnica em contextos marcados por conflitos e pela descaracterização desses grupos como etnicamente diferenciados pelo Estado Nação e por segmentos da sociedade envolvente (OLIVEIRA,1999). Durante longo período, se afirmaram como caboclos e sertanejos e, posteriormente, durante o processo de retomada e demarcação de terras acionaram a identidade indígena5. Esse processo de territorialização é parte de um movimento de reorganização social, manutenção da identidade diferenciada e inserção de mecanismos politicos. É a partir da década de 1930 que se iniciam as reivindicações de reconhecimento
étnico e pedido de proteção por parte do Estado, um processo mais intenso pelo qual os indígenas tentavam se afirmar enquanto grupo étnico. Esse fenômeno se inseria também dentro de um contexto político de demanda por terras no qual a etnicidade foi um fator primordial para a organização do grupo em busca de direitos políticos. Ao organizarem-se e reconhecerem-se como uma coletividade etnicamente diferenciada, os sujeitos sociais estabelecem processos que criam fronteiras, que sinalizam modos de viver e estar no mundo que lhe são tanto característicos. A identidade étnica, é uma atribuição de valor e identificação, é situacional, relacional e contextual. Contudo, a manutenção de suas fronteiras baseia-se em jogos de interesse. Frente a essa concepção, percebo que a identidade das mulheres que se
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Segundo Palitot (2005, p.4 -9), no período que antecedeu as demarcações das diferenças e reivindicações de terra, muitos potiguara “escamoteavam” suas identidades na procura de acionar outros qualitativos, entre esses o de “caboclo” como argumentado por João Pacheco (2010, p. 34, n.10). Segundo o autor, o imaginário indígena sobre o Nordeste brasileiro é de que as populações indígenas teriam sido exterminadas ou assimiladas durante o processo colonial. Das populações restantes como saída emergencial restou se identificar enquanto “caboclos” ou “mestiços” e estes não poderiam ser pensados como povos indígenas. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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prostituem é acionada em momentos específicos, de acordo com seus interesses. Em suma, quando elas, em algum contexto de interação frente a não indígenas, se dizem Potiguara buscam produzir uma forma de diferenciação, uma performatização, para tanto, fazem uso de significantes culturais que condizem com os símbolos e signos da comunidade em si. Já a identidade de prostituta é acionada quando necessário e, sobretudo, longe do olhar da comunidade a qual elas pertencem. Devido ao medo de exposições sobre suas práticas eróticas sexuais, dos olhares julgadores e do estigma do qual a mulher que se prostitui sofre. É nesse cenário que as Potiguara se organizam na prostituição, dentro de um conjunto de estratégias de trânsitos para manutenção do segredo sobre seus desempenhos no comércio do sexo. Elas constroem mecanismos para se prostituir longe de suas aldeias reforçando a ideia de que não existe tal ocupação no território Potiguara. Dentro desse conjunto de estratégias, como afirmei anteriormente o número de bares com movimento de prostituição é limitado fazendo com que a crença moral a cerca das práticas indígenas seja mantida. Portanto, quando uma mulher sai de seu território para se prostituir em outro espaço social ela não está apenas mantendo sigilo sobre seu trabalho com o corpo, também está ajudando a preservar a identidade Potiguara, uma vez que acreditam que a prostituição possa afetar as reinvindicações de direitos. Cunhã, 28 anos, começou a “vende as carnes” aos 18 anos, por convite de uma amiga também indígena, e entende esse meio de obtenção econômica como prostituição, em algumas épocas do ano se desloca para outros estados para se prostituir e em períodos de alta estação ela permanece na Baía da Traição para vender artesanato indígena aos turistas que visitam a região. Ou seja, ela utiliza uma espécie de prostituição transitória para complementação de renda. Todavia, com o passar do tempo, e em vista da organização como grupo étnico em busca de conquistar a garantia dos direitos à terra de seus antepassados, houve uma reconfiguração das práticas nesse aspecto, as indígenas foram orientadas a não se prostituir o que gerou uma contradição a respeito de como elas iriam se sustentar economicamente. Sob essa orientação formularam possíveis saídas para continuar se prostituindo sem atingir as reinvindicações do grupo étnico. Foi a partir desse fenômeno que começaram a se deslocar para outras regiões para se prostituirem. Sempre em dupla ou grupo se deslocavam do território Potiguara e firmavam acordos de moradias, alimentação para trabalharem em bares/ cabarés em outros estados como, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Para as mulheres que se prostituíam o impacto foi bem marcante, especialmente no que tangia à situação econômica. Elas foram orientadas a não se prostituírem dentro do território indígena, gerando assim uma série de restrições para manter uma boa imagem dos índios frente ao Estado e aos órgãos de assistência ao indígena, e de maneira difusa, também Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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frente à sociedade não indígena. A partir daí desenvolveram mecanismos de manutenção de segredo sobre suas atividades no mercado do sexo e se constituiu uma rede que elas mantêm com veemência.
Acácia abandonou o comércio do sexo para se casar e constituir família. Após o rompimento do casamento voltou a se prostituir. Em um movimento cíclico de ‘entrada’ e ‘saída’ na prostituição Acácia abandonou e retornou o trabalho com o corpo várias vezes e na maioria das vezes esse movimento se deu devido a relacionamentos monogâmicos que firmou com seus parceiros. Essa dinâmica fez com que Acácia se estabelecesse em outra área do mercado do sexo, o que a levou a posteriormente administrar um bar com quartos destinados a prostituição no Litoral Norte paraibano. Ela explica que foi muito difícil no início, que houve muitos empecilhos para seu bar finalmente funcionar nas imediações do território Potiguara. Entre outros obstáculos, afirma que, por diversas vezes, as lideranças do grupo juntamente com parte da comunidade tentaram, por vias legais, barrar seu negócio até conseguirem firmar um acordo que permitisse que o bar continuasse com as portas abertas, mas com uma série de restrições. De acordo com esses termos a prostituição não anula a identidade étnica das mulheres, o que acontece é que elas acionam a identidade indígena, assim como a de prostituta de acordo como julgam necessário. Geralmente quando saem de suas aldeias para se prostituir não acionam a identidade indígena nesse percurso, porém, em alguns momentos, podem achar necessário reivindicar o pertencimento étnico. Amarilis, estudante do ensino médio, 31 anos, pertencente a uma família de 5 irmãos onde as tarefas domésticas, assim como cuidar dos irmãos mais novos eram destinadas a ela. Através de um convite de uma prima começou a se deslocar da aldeia que mora para se prostituir em outras cidades longe dos olhares familiares. Em lugares onde ninguém a conhece consegue manter segredo sobre suas atividades com o corpo. Quanto mais distante da aldeia ela for “vender as carnes”, mais o seu segredo pode ser mantido. Em um jogo relacional e contextual a interlocutora afirma ter acionado a identidade indígena durante um programa que fez na cidade de Cabedelo/ PB como forma de aumentar o valor cobrado: o cliente ao suspeitar que ela era indígena pediu que provasse a pertença étnica e assim aumentaria o valor pago pelos serviços, fazendo com que ela exibisse seu registro indígena fornecido pela FUNAI (RANI- Registro Administrativo de Nascimento Indígena). A identidade não é fixa, ela serve para compartilhar sinais, signos e símbolos criados pelo grupo para fins representativos, mas que podem ser ocultas ou acionadas em momentos específicos. Sinais esses que só adquirem sentido quando se consideram como grupo, e podem oscilar ou ser razoavelmente fixos, exaltados ou ignorados. São Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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aspectos que remetem à práticas, modos de conceituar o mundo, mitos, linguagem, formas de organização política, festas, dinâmicas de sociabilidade que caracterizam material e simbolicamente os sujeitos como partes de uma unidade maior, e que são acionados durante as situações de contraste, tornando-os visíveis para os demais grupos.
Adónis, 21 anos, estudante, se prostitui como complemento de renda e oportunidade para viajar, participar de espaços de lazer como ir a festas e boates, não possíveis dentro do território Potiguara. Começou a se prostituir quando uma amiga sugeriu que ela trabalhasse com o corpo para comprar roupas novas para ir para festa da padroeira da cidade de Mamanguepe/ PB. Iniciou sua vida sexual aos 17 anos e aos 18 anos viajava com frequência para se prostituir na capital paraibana, longe da sua comunidade. E para isso informava aos familiares e amigos que trabalhava na Paraíba como doméstica e muitas vezes como babá. Em contraste com outras culturas, ela sempre acionava a identidade étnica Potiguara, quando vendia seu artesanato para turistas dentro das delimitações do território demarcado, ou mesmo quando queria se firmar enquanto indígena em interação com outros povos. Em outros momentos, dentro desse mesmo território, ela escondia suas práticas na prostituição. Adónis, sempre conversou comigo longe de olhares familiares, quando falávamos de prostituição ela se certificava que não tinha ninguém por perto para escutar a conversa. Esse é um tipo de precaução utilizada para a manutenção do segredo. Relembra que, certa vez, quando viajou com uma amiga, também indígena, para se prostituir em João Pessoa/ PB encontrou uma vizinha que ameaçou contar para sua família sobre suas atividades no mercado do sexo. Esse encontro fez com que Adónis passasse meses angustiada com medo de seu segredo vir à tona a qualquer momento. E para evitar que isso acontecesse cessou por um tempo de se prostituir. Após alguns meses, a vizinha se mudou e não revelou sua intimidade a seus familiares e amigos. E Adónis continuou mantendo o seu segredo.
Adónis, sempre acionava suas identidades num jogo relacional, de acordo com cada contexto. Quando viajava para outras regiões, no momento em que fazia programas sempre escondia sua identidade indígena, a fim de proteger a imagem pública do grupo Potiguara como um todo. Esse processo de acionamento pode acontecer de mais variadas formas, desde os aspectos que sinalizam a identidade étnica, até atributos relacionais, como a apresentação de aspectos do parentesco ou a descrição da região de origem.
A identidade compreende fronteiras que são mantidas e entram em disputa no momento da interação, de acordo com o interesse do grupo. Em outras palavras, a identidade étnica só tem sentido enquanto coletiva. É um mecanismo de identificação, um tipo de organização social que fornece ao grupo uma autoafirmação a partir de traços culturais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Contudo, a identidade étnica se conceitua no nível coletivo e social, possui conteúdos que se comunicam e orientam no que tange às relações sociais como um sistema de oposição e contraste. Esse conteúdo reflexivo orienta como as relações sociais vão se desenvolver durante o contraste. Assim, a identidade étnica é um meio pelo qual os indivíduos vão se afirmar e que emerge em situações particulares. Porém, a identidade de prostituta apesar de parecer nesse aspecto uma identidade individual, também se mostra coletiva, em razão que as mulheres se organizam para exercer a prostituição fora das aldeias, elas se mobilizam para firmar a identidade quando inseridas no mercado do sexo e para omitir a identidade de prostituta dentro das aldeias. Adquirindo assim, características fluidas devido as idas e vindas no mercado do sexo.
Os traços identitários, no entanto, não existem por si só, mas a partir de como os sujeitos significam- nos como seus atributos e do grupo ao qual pertencem. A identificação de quem são os outros ocorre da mesma maneira. São aspectos que norteiam minha pesquisa etnográfica entre as Potiguara. Quando as mulheres acionam suas identidades indígenas fazem por questões políticas, territoriais ou mesmo por identificação do grupo, ao passo que a identidade como prostituta funciona sob o signo do segredo, que elas mantêm dos parentes e vizinhos e só compartilham com sua rede de confiança. Acreditar que esse segredo tem a ver com questões étnicas do grupo foi o que moveu a construção desse artigo.
Considerações finais Ao longo deste artigo debati a prostituição enquanto troca econômica-sexual, utilizada pelas Potiguara como forma de romper barreiras econômicas e de classe. Uma parte constitutiva do comércio sexual na qual as mulheres vão utilizar o corpo como forma de acessar bens e aliviar a ausência daquilo que é necessário, economicamente falando, sem com isso eliminar os intercâmbios presentes nesse contexto como o prazer e as relações afetivas. Além dos benefícios materiais, presentes, passeios, viagens em troca de sexo.
A prostituição constitui uma atividade com vários arranjos que escapam de modelos que a colocam enquanto classificação rígida. “Brincar”, “vender as carnes”, “ficar por dinheiro”, “receber agrado” entre outras categorias êmicas são utilizadas como referências as diversas formas de “usar o corpo”, terminologias que nem sempre o conceito de prostituição dá conta. A ideia de transação entre sexo, dinheiro e outros bens materiais e simbólicos como parte do universo de economias sexuais também serve para pensar as novas configurações identitárias, a produção de modelos relacionais alternativos, e para Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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refletir sobre a experiência do gênero no mercado do sexo articulado nas fronteiras entre indígenas e não indígenas na prostituição.
Além do mais, o campo etnográfico permitiu debater sobre novas estratégias de usos dos corpos que as mulheres desenvolvem em contextos onde a prostituição aparece como uma alternativa ao sustento econômico. Porém, se conceitua como uma atividade de segundo plano, da qual as indígenas se organizam para exercer longe do território étnico. E para isso desenvolvem estratégias para a manutenção do segredo sobre suas atividades. Tais métodos se concretizam a partir de uma rede de apoio que elas mantêm para os trânsitos que fazem entre aldeia/ cidade, com o objetivo de estabalecer contatos, vínculo de trabalho e moradia quando se deslocam para outras regiões. O trajeto aldeia/ cidade é marcado pela utilização de estratégias de manipulação de identidades atreladas a conjunturas complexas e particulares.
A prostituição, nesse aspecto, se constitui em articulação com uma ampla rede de relações que a torna cada vez mais fluída e com fronteiras borradas. O interessante de pensar os “usos do corpo” em território indígena é analisar as formas locais de controle do território e identidade, uma vez que a identidade indígena, enquanto pertencimento étnico de forte marca territorial, é circunscrita por uma fronteira frente a outras. E recebe influências internas e externas, é um tipo de organização social e política de informações, valores, práticas que estão disponíveis num aspecto mais amplo de relações. Porém, a identidade de prostituta chega para marcar uma fluidez e borrar as fronteiras e com isso ressignificar a diferença.
A prostituição permite à mulher participar do jogo de interação das identidades, acionando a identidade indígena e de prostituta em momentos específicos, sem com isso anular uma a outra. Entre as Potiguara esse tipo de intercâmbio não é a ocupação principal de trabalho, apresenta-se como um segundo plano, uma atividade alternativa para sustento econômico que as mulheres executam esporadicamente quando precisam de dinheiro imediato. Geralmente saem de suas aldeias nos fins de semana para se prostituir em outros espaços e no início da semana retornam as suas aldeias. Além desses fatores, também possibilita viagens, passeios, festas, e uma rede de relações criada e mantida para a manutenção das fronteiras do que se quer ser, do que se quer mostrar pro outro. É interessante notar que esse processo de acionamento das identidades se fundamenta numa lógica prática que tem como efeito a preservação da imagem comunitária e sua desvinculação do trabalho sexual dentro dos limites da aldeia, ao passo que fora dela, em outras situações de interação, eventualmente a identificação como indígena e como trabalhadora sexual pode coincidir e se traduzir como uma opção de potencialização para Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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os rendimentos que se obteria nos “programas” com determinados clientes. Assim, parece haver uma estreita relação entre as fronteiras e limites territoriais com as fronteiras entre dispositivos classificatórios ou identidades. Que constatam complexidade, heterogeneidade em todos os aspectos de tal forma que é notável que a mudança de identidade ocorra sempre quando a performance dos indivíduos não tem condições de sucesso, assim, há outras identidades alternativas à sua disposição.
O não acionamento da identidade de prostituta dentro do território Potiguara faz parte da construção do segredo social em torno dessa prática e aparece com muita frequência em diversas situações de fala das interlocutoras e transmite o sentido, significado ou significante de uma determinada situação, onde a moral das mulheres que se prostituem está intimamente relacionada a sua reputação na comunidade. Ao saírem de suas respectivas aldeias mostram preocupação em manter suas identidades resguardadas e consequentemente evitar falatórios a respeito de suas sexualidades. Esse fenômeno gera uma espécie de segredo em grupo devido ao fato de desenvolverem artimanhas juntas com fins na manutenção do segredo social. Tal desempenho baseia-se em um cenário etnológico onde os padrões podem ser compreendidos dentro de uma lógica de significados e significantes pertencentes aos padrões sociais e culturais do grupo. Esse processo se dá devido a questões de pertencimento étnico, preconceito social e estigma perante suas práticas na prostituição. E se constitui em um constante jogo interacional, de esconder-se e mostrar-se, de acionamento e não acionamento identitário. Portanto, as identidades de indígena e de prostituta são construídas em meio a negociações contextuais, processos que dinamizam poder de agência e que encontra no corpo um marcador do uso desse poder, e um terreno das disputas em torno das novas identidades. Nesse sentido, a manutenção de identidade indígena e de prostituta que as envolvem deve considerar os modos como as relações de poder se atualizam devido a processos sociais, onde a prática se constitui como parte de um território de desejo que perpassa espaços e situa interações. Levando em consideração que as identidades podem ser múltiplas, dinâmica e temporal as mulheres assumem várias identidades e interagem em espaços sociais distintos. O que eu quero dizer com isso, é que elas podem se prostituir sem que isso implique uma correlata e inescapável ilegitimidade da identidade indígena. E ainda, no jogo de posições podem assumir várias identidades, fazer parte de liderança indígena, ser prostituta, dona de casa, artesã, entre outras possibilidades. Essa dinâmica constitui um jogo interacional onde as identidades, identificações e possibilidades são acionadas no momento específico, de acordo com o que elas julgam apropriado. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Recebido em 30 de novembro de 2017.
Aceito em 05 de março de 2018.
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“Tudo é rua”: apropriações, espaços e corpos no mercado do sexo em São Carlos/SP1 André Rocha Rodrigues Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos euandre.rocha@gmail.com
Resumo Este trabalho tem como objetivo apresentar as diferentes formas de apropriação espacial por mulheres e travestis que desenvolvem a atividade de prostituição na região da Avenida Getúlio Vargas, na cidade de São Carlos/SP. A etnografia contribuiu para a percepção de como as profissionais do sexo produziam, viam e se relacionavam com este espaço e com a cidade, bem como possibilitou notar que, para elas, esta região possuía divisões, apropriações específicas e características próprias. Toda a referida região, que inclui a Avenida, era por elas percebida como Rua, e esta, por sua vez, era classificada em categorias, como frente, atrás, dentro, baixo e fundo, apresentando uma sintaxe própria, códigos internos que, de certa forma, atrelavam espaços e corpos. A partir desse contexto, argumento que a Rua apresenta possibilidades analíticas que parecem extrapolar os limites colocados por alguns conceitos e categorias muito mobilizados na antropologia urbana (tais como Casa & Rua; Pedaço; Código-Território), permitindo reflexões sobre as relações entre apropriação e construção de espaços e corpos. Palavras-chave: Apropriação do espaço; Corpo; Mercado do Sexo; Rua. Abstract This study aims to present the different forms of spatial appropriation by women and transvestites who develop the activity of prostitution in the region of Getúlio Vargas Avenue in the city of São Carlos/SP. The ethnography contributed to the perception of how prostitutes produced, saw and related to this space and to the city, as well as made 1
Uma versão preliminar deste texto foi apresentado no 13th Women’s Worlds Congress & Seminário Internacional Fazendo Gênero 11, realizado de 30 de julho a 04 de agosto de 2017, em Florianópolis/ SC. Agradeço a Guilherme Rodrigues Passamani e a José Miguel Nieto Olivar pelos ótimos comentários e observações.
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it possible to note that, for them, this region had divisions, specific appropriations and characteristics own. The entire region, which includes the Avenue, was perceived by them as Street, and this one, in turn, was classified in categories like front, back, inside, bottom and background presenting a proper grammar and internal codes and, in a certain way, linked spaces and bodies. From this context I argument that Street presents analytical possibilities that seem to extrapolate the limits placed by some concepts and categories very mobilized in urban anthropology (such a Home & Street; Piece; Territory-Code) and allows reflections on the relations between appropriation and construction of spaces and bodies. Keywords: Body; Sex market; Space appropriation; Street. “O engraçado foi justamente eu, que tinha horror à ideia de me prostituir, eu, que retardei minha transição ao máximo pra tentar me livrar desse caminho, mal me assumi e já fui quase de cara fazer a rua” Amara Moira
Introdução Era quase meia noite de uma quinta-feira, no começo do ano de 2012, quando voltava dirigindo do Jardim Veneza, próximo ao bairro Maria Stella Fagá, em direção ao Núcleo Residencial Dr. Sylvio Vilari, mais conhecido como Lagoa Serena. Por praticidade, saí do bairro e entrei na Rodovia Washington Luís. Após aproximadamente quatro quilômetros andando na Rodovia, entrei no acesso a São Carlos2, o qual já me deixou na Avenida Getúlio Vargas, uma das principais vias de acesso da Rodovia para a cidade.
Com aproximadamente três quilômetros de extensão, a Avenida compreende duas vias de mão única paralelas (uma em direção à cidade e outra à Rodovia) dividida por um pequeno canteiro com grama e palmeiras. Por ser extensa, a Avenida Getúlio Vargas conecta vários bairros. Ao iniciar na Praça Itália3, faz ligação entre Centro e Vila Luftalla 2
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São Carlos é um município brasileiro localizado no interior do estado de São Paulo, na região CentroLeste, e à distância rodoviária de 230 quilômetros da capital paulista. Com uma população de 246.088 habitantes (IBGE, 2017), distribuídos em uma área total de 1.137.332 km², é a 13ª maior cidade do interior do estado em número de residentes. Os dois campi da Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e a FATEC, além de uma instituição de ensino superior particular, o Centro Universitário Central Paulista (UNICEP), tornam intensa a atividade universitária no município, que conta com uma população flutuante de mais de vinte e nove mil graduandos e pós-graduandos (IBGE, 2017), sendo boa parte atraída de outras cidades e estados. No campo de pesquisas, além das universidades, estão presentes no município dois centros de desenvolvimento técnico da Embrapa. Espécie de complexo viário com uma rotatória principal que liga o início da Avenida São Carlos e o
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e, mais à frente, faz intersecções entre Vila Irene, Vila Isabel, Jardim São Paulo, Vila Alpes, Parque São José, Recreio São Judas Tadeu e Jardim Maracanã. Na altura de dois quilômetros, no sentido do Centro à Rodovia, uma rotatória dá acesso ao Distrito Industrial Miguel Abdelnur e aos bairros Jardim Nova São Carlos, Castelo Branco e Azulville. E, ao atravessar a Rodovia Washington Luís, chega-se ao Jardim Novo Horizonte.
Figura 1: Fragmento do mapa da cidade de São Carlos (região da Avenida Getúlio Vargas). Em azul: Avenida São Carlos; Amarelo: Avenida Getúlio Vargas; Vermelho: Rodovia Washington Luís (No encontro entre Avenida São Carlos e Avenida Getúlio Vargas, em verde: Praça Itália).
Fonte: Disponível em http://www.saocarlos.sp.gov.br/index.php/conheca-sao-carlos/153923-mapa-dacidade.html. Acesso em: 30 nov. 2017.
Na Avenida, notei que havia algumas travestis e mulheres ocupando lugares esparsos. Já sabia que aquele era lugar de prostituição, pois morava em São Carlos há cinco anos e era muito comum ouvir os habitantes são-carlenses comentarem que ali, no período noturno, era desenvolvida tal atividade. Não sei explicar exatamente por que naquela noite surgiram em minha cabeça algumas questões sobre a cidade, sobre a Avenida Getúlio Vargas e sobre a atividade de prostituição: Por que aqui? Desde quando isso acontece aqui? Após as indagações iniciais, voltei o olhar para como os sujeitos que ocupavam a região da Avenida Getúlio Vargas, que desenvolviam a atividade de prostituição, produziam, viam e se relacionavam com aquele espaço e com a cidade. Foi justamente essa orientação que me fez realizar a etnografia, a qual, dentre outras coisas, permitiu notar início da Avenida Getúlio Vargas.
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que para as trabalhadoras do sexo, a Avenida Getúlio Vargas era a “Rua da frente”4 e toda a região possuía uma divisão, apropriação e características próprias. A partir disso, meu interesse se voltou muito mais para pensar como se dava a ocupação do espaço urbano a partir das mulheres e travestis que desenvolviam a atividade de prostituição, do que uma abordagem mais urbanística ou de uma sócio-antropologia urbana.
A antropologia urbana, desde a Escola de Chicago, ao invés de uma cartografia em sentido estrito, destaca a dimensão simbólica do espaço, mostrando que existem indícios para crer no seu caráter subjetivo, ou, dito de outra forma, aponta que entre o meio físico e o homem se interpõe sempre uma ideia, uma concepção determinada (Becker, 1996). Trata-se da semantização do espaço, que, em sentido amplo, transforma-o em um espaço socializado e culturalizado, em função do significado que existe em tudo que rodeia o indivíduo. Entretanto, a tradição de estudo herdeira da Escola de Chicago ainda se manteve presa ao pensamento da cidade como corpo social, um organismo autônomo, onde as condições ambientais determinam as mudanças no comportamento humano. Contudo, o espaço urbano não diz respeito apenas à sua função e como ele determina a vida dos citadinos, mas, sobretudo, ajuda a pensar as comunidades que nele moram (Perlongher 2005).
Foi com o intuito de olhar para as relações que se instauram no espaço urbano e os contatos que este propicia, que procurei entender a influência de determinados trabalhos e atividades (formais ou informais) no que diz respeito à ocupação de espaços públicos e privados da cidade. O complicador foi como fazer. Como apreender a dimensão simbólica e subjetiva do espaço? Como demonstrar os significados que as pessoas atribuíam ao espaço e os significados que o espaço atribuía às pessoas? Como colocar em palavras o que era, afinal, a Rua? E, ainda, mais do que colocar em palavras, de que maneira transformar isso em um texto que respeitasse a complexidade intelectual das pessoas que significavam esse espaço?
A Rua Desde minhas primeiras incursões etnográficas e contatos iniciais com travestis e mulheres, percebi que elas tinham uma categoria própria para se referir à Avenida. Para elas, assim como disse a travesti Raabe5, “Tudo é rua. Pra fora de casa é rua. Sempre quando
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Nesse trabalho, Rua (em itálico) é uma invenção feita pelas travestis e mulheres da Avenida Getúlio Vargas, ou seja, é expressão nativa. Rua é o que elas fazem da Avenida e arredores no período noturno. Também utilizo o recurso da grafia em itálico para diferenciar da rua damattiana (DaMatta 1991). Substituí por nomes fictícios por pensar em possíveis consequências aos envolvidos, ainda que todos
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vamos sair, a gente fala ‘vamos pra rua’. Aí você vai ouvir ‘a rua foi bem’ ou ‘a rua não foi bem’, é assim”. E nesse contexto, em que tudo é Rua, outras categorias foram inventadas, tais como “atrás”, “fundo”, “dentro”, “baixo”, e a Avenida Getúlio Vargas se tornou “Rua da frente”.
Durante a pesquisa, a categoria Rua despertou meu interesse por seu caráter polissêmico e por marcar um espaço de relações. Quando Raabe diz que “pra fora de casa [tudo] é rua”, ela sugere uma separação de dois contextos distintos: o dentro de casa e o fora de casa. Contudo, esses contextos são muito particulares e possuem relações próprias. A “casa” a qual ela se referiu poderia dizer respeito à uma espécie de pensão administrada por uma travesti mais velha a qual servia de residência para Raabe e outras travestis que vinham de outras cidades; poderia ainda dizer respeito à casa própria das travestis que moravam na cidade há mais tempo e possuíam residência fixa; e também “casa” era usada para se referir a boates que são utilizadas como espaço de trabalho, inclusive com quartos para efetivação dos programas.
Apesar de inúmeras tentativas, não obtive acesso às casas. Nem residenciais, nem à pensão, tão pouco às boates. Letícia da Luz Tedesco (2008) e Letizia Patriarca (2015) têm trabalhos muito interessantes sobre “casas”. Tedesco (2008), preocupada com a produção de sentido e representações sobre o que vem a ser trabalho e exploração nos mercados do sexo em Porto Alegre – RS, mostra as relações construídas e estabelecidas em diferentes espaços (público e privado). A autora faz a distinção casa/rua como especificidade local, não como categorias para pensar a apropriação do espaço. Ela mostra como há um discurso feito pelos donos de casas (drink bar/pensão/boate) e pelas prostitutas sobre a diferença entre o trabalho e a exploração em cada um desses espaços. Patriarca (2015) mostra como as casas de prostituição em Campinas – SP e suas donas podem ser um suporte econômico e afetivo para as construções identitárias das prostitutas, representando um apoio seguro diante de violências policiais e de clientes que acometem suas experiências no mercado do sexo.
No contexto são-carlense a Rua delimita uma fronteira para se distinguir do ambiente doméstico e também do ambiente estritamente profissional. Essa é uma das razões, como mostrarei a seguir, pelas quais não necessariamente a Rua se defina por oposição ao lar, reforçando a dualidade damattiana.
Roberto DaMatta (1991) afirma que a Casa e a Rua são os modos diferenciados
afirmassem que não haveria problema se eu fizesse uso dos nomes verdadeiros na pesquisa. Os nomes utilizados foram inspirados em personagens históricos e literários relativamente conhecidos nas narrativas sobre prostituição. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e complementares de “ordenar” e também de reconstruir e constituir a experiência social brasileira. E que “é estudando o espaço de uma sociedade que se pode lançar luz sobre questões tão importantes como o seu sistema ritual e o modo pelo qual ela faz sua dinâmica” (DaMatta 1991: 70-71).
Segundo o pesquisador, o código da Casa é fundado na família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no compadrio, ou seja, é emocional. A casa é o espaço onde exigimos nossa presença e opinião; é onde se quer um lugar determinado e permanente na hierarquia da família, um espaço com direito inalienável e perpétuo. Já o código da Rua é baseado em indivíduos anônimos e desgarrados, que são maltratados pelas autoridades, pela aplicação de leis universais, por uma burocracia antiga e profundamente ancorada entre nós, e por um formalismo jurídico-legal que chega às raias do absurdo. Neste, não se tem paz, nem voz. Segundo o autor, o espaço público serve como foco para a relação estrutural entre o indivíduo e a massa. A Rua, assim como a Rua damattiana, abriga também malandros, párias e marginais. E isso foi personificado na figura de Paulão, que se apresentou dizendo: “boa noite, meu nome é Paulão e sou violento”. Logo em seguida, as trabalhadoras do sexo me alertaram que ele era “uó” e que era para eu tomar cuidado. Segundo me segredaram, ele mantinha relações com o Primeiro Comando da Capital (PCC), costumava sair com as travestis (nunca com mulheres) e, às vezes, batia nelas. Algumas chegaram a ajoelhar na rua com ele segurando uma arma enfiada em sua boca.
Porém, minha percepção etnográfica e as entrevistas realizadas sinalizaram que isso não era tudo, já que a Rua também comporta outras relações. Apesar do julgamento moral da travesti Maria Madalena sobre as colegas de profissão: “Elas não vivem uma vida social. Elas vivem a vida da noite e acabou [...]”, me interessei em saber sobre a “vida da noite” e esta se tornou um dos focos de atenção da etnografia.
Não só as mulheres e travestis me disseram, como eu também observei, que a Rua não era somente o lugar da impessoalidade, do perigo etc., mas que havia a “vida da noite”; havia “vida” na noite e, por conseguinte, na Rua. Quero dizer, com isso, que a Rua não era somente Rua (damattiana). Em alguns momentos, como exemplificado, sim, a Rua possuía aspectos da Rua, mas, em tantos outros, a Rua se mostrava com outras características, inclusive com traços semelhantes aos descritos como pertencentes à Casa.
Quem contribui para o avanço da discussão a partir dos elementos anteriormente apontados é José Guilherme C. Magnani, em seu trabalho sobre os espaços de lazer na periferia de São Paulo dos anos 1970 e início dos 1980. Ele observou que a Rua nem sempre é o lugar da impessoalidade; muito pelo contrário, as pessoas constroem relações,
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mesmo neste espaço. Magnani (2012) destacou que existia um ordenamento para as formas de lazer. E observando o espaço onde as atividades eram praticadas, percebeu a oposição entre “em casa” e “fora de casa”, que pode sugerir semelhança com “Casa e Rua”. Entretanto, ele mostrou que o “fora de casa” não era a Rua, pois “em casa” ocorriam festas de aniversário, batizados, casamentos etc.; e o “fora de casa” subdividia-se em: “na vizinhança” e “fora da vizinhança”; “a vizinhança” abrigava os locais de lazer e encontro, como bares, salões de baile, campos de futebol, espaços comunitários em paróquias etc.
Isso mostrou que os sujeitos estavam dentro de uma determinada forma de controle exercida pelas pessoas que se conhecem de alguma maneira, por morarem próximas ou por, no mínimo, fazerem uso dos mesmos equipamentos urbanos, como pontos de ônibus, telefones públicos, armazém, farmácia, centro de saúde e quadra de esportes. Quando um espaço mais ou menos demarcado tornava-se referência para diferenciar um grupo de frequentadores como pertencentes à uma rede de relações, recebia o nome de pedaço6.
O termo, na realidade, designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade. [...] Para além da soleira da casa, portanto, não surge repentinamente o resto do mundo. Entre uma e outro situa-se um espaço de mediação cujos símbolos, normas e vivências permitem reconhecer as pessoas diferenciando-as, o que termina por atribuir-lhes uma identidade que pouco tem a ver com a produzida pela interpelação da sociedade mais ampla e suas instituições (Magnani 1998: 116-117).
Essa categoria nativa levou Magnani a pensar para além da sua pesquisa específica e travar um diálogo sobre apropriação do espaço urbano com outras propostas, inclusive (e, sobretudo) com a de Casa & Rua, de Roberto DaMatta (1985). Se o antropólogo carioca anunciou uma forma paradigmática dividida em dois planos que pretendia dar conta da realidade brasileira, Magnani apresentou o pedaço, que sugeria uma terceira via, ou um terceiro domínio, desvelando a complexidade das relações sociais para além do dualismo. Nesse terceiro domínio, desenvolvem-se práticas e estabelecem-se laços que diferenciam
6
Pedaço é uma categoria “nativa” de que Magnani se apropriou para denominar esse espaço. Trata-se de uma gíria paulistana, do fim dos anos 1970 e início dos anos 1980. Alexandre Barbosa Pereira (2005) faz uma relação do pedaço com a categoria “quebrada”, que vem a ser, de certa forma, uma atualização do “pedaço”. “O termo quebrada é utilizado para se referir ao bairro onde se mora. Ele tem bastante similaridade com a noção de pedaço, [...], mas também designa uma forma de apresentá-lo para quem é de fora, mostrando-o como um lugar hostil e perigoso para quem não pertence a ele e não conhece suas regras” (Pereira 2005: 56). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e agrupam uma rede de frequentadores. Assim, o pedaço só existe a partir das práticas da coletividade e se torna condição para seu exercício e usufruto.
Como já mencionado, a Rua possui elementos da Rua damattiana, mas não somente, nem totalmente. Quando, uma vez, insisti em uma pergunta objetiva para as meninas: “O que é a Rua para você?”, recebi a resposta também objetiva: “trabalho e diversão”. Se tudo que está para fora da Casa é Rua, seria até ingenuidade supor que só há trabalho nela. O De Ponta Cabeça Bar, por exemplo, é Rua. E é bom lembrar que, quando perguntei para o Coxinha (dono do bar) sobre a relação das profissionais do sexo com seu estabelecimento comercial, ele me disse que, às vezes, quando faziam um bom programa, paravam ali para tomar uma cerveja. Aliás, meu contato se iniciou por meio desses momentos de lazer. Elas chegavam ao bar, pediam cerveja, colocavam música na jukebox, dançavam, paqueravam. Em resumo, se divertiam na Rua. O próprio Coxinha confessou que sua intenção inicial com o trabalho no bar era se divertir e ficar rico (trabalhando). A conversa com Charlotte Bittencourt, pela rede social Facebook, não deixou dúvidas que há muito mais que Rua na Rua: há criação e estabelecimento de vínculos e relações. [Eu] Oi! Tudo bem?
[Charlotte Bittencourt] Oi! Tudo e você? [Eu] Tudo bem. Estava em São Carlos ontem e não vi você. [Charlotte Bittencourt] Eu não estou mais em São Carlos. [Eu] Está onde? [Charlotte Bittencourt] São Bernardo na minha casa repousando a pele [risos]. [Eu] Não gostou de São Carlos?
[Charlotte Bittencourt] Fiquei quase três meses aí. [Eu] Era o plano ficar três meses em São Carlos ou menos? [Charlotte Bittencourt] Menos, bem menos. Três semanas no máximo. [Eu] Entendi. [Charlotte Bittencourt] Mas gostei do que conheci. Conheci pessoas incríveis que hoje viraram minhas amigas. [Eu] Que bacana! [Charlotte Bittencourt] A rua tem disso [...] Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Esses vínculos e relações também se mostraram quando, junto com Raabe, socorri sua amiga que passava mal no bar. Quando ofereci ajuda sozinho, ela não aceitou, mas quando me viu com Raabe, concordou em entrar no meu carro e ser levada para casa. A presença da amiga lhe deu segurança para receber ajuda de um estranho.
Posso afirmar, então, que há pedaço na Rua também. A Rua não é o resto do mundo fora da casa, pelo contrário, é, assim como o pedaço, o espaço intermediário entre o privado e o público, concentra pessoas e permite relações mais personalizadas e duradouras. Na Rua há também uma espécie de terceiro domínio, onde se desenvolvem práticas e se estabelecem laços que diferenciam e agrupam uma rede, não de frequentadores, mas daquelas que fazem a Rua existir a partir das suas práticas de coletividade, e essas se tornam condição para seu exercício e usufruto.
Raquel, que já havia trabalhado em boates e na Rua, sempre que podia falava bem da Rua. Quando perguntei o que era melhor, ela não titubeou. [Eu] E na rua é melhor?
[Raquel] Na rua é melhor. Fica mais à vontade, né, André? Cê tem liberdade pra tudo. A hora que eu quiser ir embora eu vou, não tenho que pagar nada pra ninguém. Não tenho que nada. [Eu] Entendo. [Raquel] E a rua é bom por isso, cê tem liberdade, cê ganha dinheiro, cê se diverte, faz amizade, faz tudo. Me diverti pra caralho ontem, fui embora travada [risos].
Faz-se de um tudo na Rua7, inclusive ficar “travada” (bêbada) no De Ponta Cabeça Bar ou em outros lugares. Como tudo para fora de casa é Rua, os lugares físicos específicos de ocupação e relações se diversificam, ainda que dentro do contexto. [Eu] Você falou que veio pra São Carlos e começou trabalhar em casa [de prostituição], lá na Getúlio Vargas mesmo. Começou lá e aí começou a fazer amizades com o pessoal da rua e foi pra rua.
[Raquel] É, porque o pessoal da rua eu já conhecia. Na verdade eu já tinha amizade com o pessoal da rua. Eles passavam em frente às boates, às vezes entravam e aí comecei ir pra rua, fazer amizade. Nós nos encontrávamos ali no posto, entendeu? [Eu] Entendi. [Raquel] Aquele posto BR ali era o fervo, era o nosso fervo ali. 7
Medeiros (1999), Askabide (2006) e Tedesco (2008) mostraram que, na Rua, as trabalhadoras do sexo se sentem mais livres para organizar seu próprio trabalho e vida.
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André Rocha Rodrigues [Eu] Ali que juntava? [Raquel] É. Ali que juntava. [Eu] Mas agora não pega mais nada ali. [Raquel] Não pega porque não pode mais ficar lá, né? Não pode ficar muito movimento ali. Ali era o point nosso. Mas aí começou juntar muito negócio de droga e tal, né? Som alto, né? Aí parou. A polícia começou a pegar geral direto lá aí parou. E aí o dono do posto já não quis mais que ninguém ficasse ali. Às vezes a gente vai toma uma cervejinha e fica lá, mas se começa muito movimento o gerente ou o dono do posto já liga e já chama os homens [polícia] e aí já esparrama todo mundo.
Na Rua pode-se “ferver” e até mesmo se apaixonar ou causar apaixonamentos.
[Raabe] E tem umas que acha que cliente é marido, que é delas que só pode sair com elas [...]. [Eu] E rola de se apaixonar ou o cliente por vocês?
[Raabe] Ah, rola de monte. Mais do cliente pela gente. [Eu] E aí ele procura sempre a mesma. [Raabe] Ah, procura sempre, mas eu corto. [Eu] Por quê? [Raabe] Por que aí depois já não quer mais programa, quer amorzinho, mas eu não gosto, não. Já tive marido lá em Ribeirão e foi difícil largar, então hoje não dá [...].
A última vez que encontrei Giovana, ela me disse que estava um pouco “sumida” porque havia “arrumado um marido”, por isso estava indo pouco para a Rua. Estava feliz.
Charlotte Bittencourt me contou que o que a levou para a Rua foi um relacionamento “mal sucedido”, mas que na Rua encontrou outra maneira de ver a vida e o mundo, onde é possível “gozar e ganhar” dinheiro.
[Charlotte Bittencour] Conheci um rapaz. Ele tinha dezoito anos. Nos conhecemos eu era Office boy e ficamos juntos dez anos. Construí estando junto com ele dois salões de beleza e pensava que era feliz, mas eu queria mais. Foi aonde resolvi me plastificar coloquei meus seios e fiquei solteira. Vendi meus dois salões e fui virar periguete. [Eu] Mas essa vontade surgiu do nada? [Charlotte Bittencour] Cansei de ser somente um objeto sexual de uma pessoa no qual passei dez anos sabendo depois de oito anos que ele tinha uma amante. Fui fiel, sincera e dei de tudo pra ele viver uma vida de playboy.
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"Tudo é rua": apropriações, espaços e corpos no mercado do sexo em São Carlos/SP Então depois de tantos anos de dedicação somente por um homem resolvi virar puta. Chupar e gozar por dinheiro com velho fedido e homens lindos cheirosos. Ali vi que eles me davam valor como puta. Então eu gozava e ganhava.
Há uma produção substancial sobre a multiplicidade dos mercados do sexo e prostituição de rua no Brasil8. Tal produção efetua ótimas análises das socialidades e relações de poder que constituem essa multiplicidade para compreender os temas da corporalidade, parentesco, sexualidade e gênero. Olivar (2013) mostra a batalha de mulheres pelo espaço da rua em Porto Alegre – RS, locais que o autor classifica como “zonas simbólicas”, “territórios corporais”, “sensíveis” e “da imaginação”. E apresenta como a experiência adquirida na prostituição de rua conjugase às mudanças no cenário político para ensejar novas formas de constituição de sujeitos na intimidade e nas relações com o Estado e com a “sociedade”.
Fonseca (1996) e Sales (2013) relatam as relações observadas em praças (a primeira em Porto Alegre – RS, a segunda em Fortaleza – CE), que ultrapassam relações estritamente profissionais. França (2014) ao mostrar o papel dos afetos na prostituição, apresenta os múltiplos arranjos que as profissionais do sexo realizam em suas relações com clientes que extrapolam um sentido único de impessoalidade das trocas econômicas que supostamente estariam presentes nos mercados do sexo. De maneira parecida, Piscitelli (2013) articula a categoria “ajuda” para demonstrar que há nuances e permeabilidades entre o mundo profissional e o mundo pessoal.
Esses trabalhos com os quais dialogo também corroboram meu argumento de que a Rua não é só Rua, ao mesmo tempo que não é só pedaço. A seguir apresento que além da fronteira entre “casa” (ou casas) e Rua, na própria Rua há fronteiras internas e uma lógica própria.
“Frente”, “atrás”, “dentro”, “baixo” e “fundo”
A Rua tem apropriações, vivências e experiências tão pessoais e particulares que as divisões que as trabalhadoras do mercado sexual fazem dela sugerem que essas qualificações – “frente”, “atrás”, “dentro”, “baixo”, “fundo”, podem ter sido pensadas a partir da relação entre os próprios espaços locais. Tal vocabulário pode ser (e é muitas vezes) utilizado para se referir ao corpo. Charlotte fez até piada com isso certa vez, quando uma das meninas disse para ela ir “lá para trás” e ela respondeu: “eu vou, mas faz tempo que não 8
Entre outros trabalhos importantes, conferir Fonseca (1996), França (2014), Patriarca (2015), Pelúcio (2009), Piscitelli (2013), Olivar (2013), Sales (2013), Santos (2012).
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levo nada atrás”, após se queixar que “nessa cidade só tem viado, faz tanto tempo que não dou o cu que até esqueci como faz”.
Os sujeitos na Rua estão dentro de uma determinada forma de controle exercida pelas pessoas que se conhecem de alguma maneira por um período de tempo, por ocuparem o mesmo espaço com as mesmas finalidades, e por fazerem parte do mesmo contexto. Não é qualquer pessoa que pertence à Rua e não é permitido fazer qualquer coisa e em qualquer lugar dela. Justamente por isso, há na Rua fronteiras espaciais baseadas em elementos simbólicos e regras de conduta muito próprias.
Logo de início, percebi que havia uma divisão espacial muita clara: mulheres em um determinado local e travestis em outro. As mulheres ficavam “embaixo” e as travestis ficavam na “frente”, “dentro”, “atrás” e no “fundo”. “Embaixo” dizia respeito a “subir” a Avenida Getúlio Vargas, desde a Praça Itália, até mais ou menos a altura da Rua Fagundes Varella, perpendicular à Avenida. A Rua da frente, como já dito, é a própria Avenida Getúlio Vargas. Não encontrei “embaixo” lugar que me possibilitasse permanecer, observar e ter mais contato com as mulheres como consegui com as travestis no De Ponta Cabeça Bar. O melhor lugar que consegui foi um posto de combustível, mas pouco promissor para a etnografia. Mais tarde, soube que a maioria das mulheres que ficavam “embaixo” respondia para uma cafetina pouco amigável, a qual dificultava a interação delas com as outras pessoas do contexto. Havia também um acordo tácito que dividia o espaço de mulheres e travestis e impedia o deslocamento delas para outras regiões. A região com que tive menos contato foi o “fundo”, onde me disseram que era o lugar das “velhas” (travestis com mais de 30 anos). Assim como na parte de “baixo”, no “fundo” não havia um bom lugar para sentar e observar.
Ao longo de toda a extensão da Rua da frente, transitavam mulheres e travestis, ainda que na parte de “baixo” ficassem só mulheres, e no restante, travestis. Entretanto, na Rua da frente havia um código que impedia que travestis e mulheres ali permanecessem trajando pouca (ou pouquíssima) roupa. Isso só era permitido “dentro”, “atrás” e no “fundo”, que se localizavam nas ruas paralelas e perpendiculares à Getúlio Vargas, sempre ao sul da Avenida. A divisão entre mulheres e travestis foi logo percebida e confirmada. Quanto aos outros códigos, demorei um pouco mais para perceber. À primeira vista, não chamou minha atenção o fato de as que estavam com menos roupas estarem do lado de “dentro”, e as com mais roupas na parte da “frente”. Notei isso quando comecei a ter contato com elas Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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e observar que muitas com as quais eu conversava no De Ponta Cabeça Bar não eram as mesmas que eu via na Avenida. A confirmação veio justamente por elas mesmas:
[Eu] E como é que fica essa divisão de quem fica na Avenida, quem fica na rua de trás? [Maria Madalena] Só quando acontece essas brigas entre elas. Eu fico lá e você fica aqui, aquela coisa toda. Mas elas podem ir pra lá, podem ficar aqui, podem ficar no postinho, depois das 22h eu fico no postinho. Na rua de trás elas ficam mais porque é mais escuro, elas podem trabalhar nua. Porque não vai ficar nua aqui, né? [Eu] Se ficar aqui tem algum problema? [Maria Madalena] Uma que eu começo a implicar, né? Se quiser ficar nua fica lá atrás, porque lá é mais deserto. E aqui passa gente direto, é muita família. A questão que eles vão olhar, vão xingar ou falar alguma coisa, né?
Quando fiz uma gentileza para Paulão, que estava no bar e me pediu para levá-lo à uma farmácia, também notei que dividir os espaços em função do vestuário era uma espécie de código compartilhado por quem estava naquele contexto, não somente pelas profissionais do sexo. Após sairmos da farmácia e seguirmos pelas ruas centrais da cidade (desviando da rota da polícia), ele disse que iria “mostrar onde ficam as bichas peladas”; era precisamente em uma das ruas de “dentro”, na região onde elas costumam chamar de “atrás”.
O código era claro, de tal maneira que, após percebê-lo, pude presenciar uma cena emblemática e representativa. Em uma noite que ofereci carona para Raquel e ficamos conversando no bar até tarde, entraram três travestis para, assim como nós, beber cerveja e conversar. Uma delas trajava apenas um “tapa-sexo”, saltos altos e uma bolsa. Enquanto as outras duas pegavam a cerveja, nos cumprimentavam e sentavam em uma mesa, essa que estava em trajes mínimos foi para o banheiro. Quando ela voltou para sentar à mesa com as outras duas, estava vestindo top e minissaia (saltos e bolsa). Ela sabia que na Rua da frente não era permitido ficar nua ou com pouca roupa, e, por isso, tratou logo de se trocar.
De maneira indireta (ou não proposital) fronteiras produzidas pela Rua contribuem para a própria produção dos corpos. Além da divisão entre corpos jovens e velhos, nota-se que aquelas que optam por ficar nas ruas de “dentro” ou “atrás” possuem mais intervenções cirúrgicas e estéticas em seus corpos. O volume de silicone aplicado nos quadris, lábios e seios costuma ser maior, a preocupação com o peso e a circunferência da cintura também Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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é mais elevada, se comparada com as que estão em outros territórios, e toda apresentação do corpo é supervalorizada, uma vez que este será apresentado com pouquíssima ou nenhuma roupa.
Segundo Perlongher (1987), cabe ler o território como uma rede de sinais por onde transitam os sujeitos, não com identidades individualizadas, definidas, conscientes, mas como sujeitos cambiantes, na multiplicidade dos fluxos, na instantaneidade e acaso dos encontros. Uma vez que esse espaço não é moradia e pode ser apenas lugar de uma visita eventual dos sujeitos, no momento em que estão no espaço, identificam-se e ou são identificados como, no mínimo, simpatizantes da atividade ali desenvolvida.
Em vez de falar em identidades, passamos a falar de territorialidades, de lugares geográficos e relacionais. Isto nos convida a conceber uma trama de “pontos” e “redes” por entre as quais circulam (“transforma-se”) os sujeitos, definindo-se conforme sua trajetória e posição “topológica” na rede, e não conforme uma suposta identidade essencial. O conceito de identidade dá lugar ao de territorialidade, à pergunta “quem é?” superpõese a [sic] pergunta “onde está?” (Perlongher 1993: 7).
De acordo com Perlongher (1993), o território representa, então, um lugar de reconhecimento de identidades. Depende de onde o sujeito está situado, remete à uma identificação, mas esse sujeito não está sempre no mesmo território. Aliás, o comum é que esse sujeito transite por vários territórios. Contudo, o destaque nas identidades passa a ser substituído pelo destaque nas territorialidades, lugares relacionais e lugares categoriais, de modo a captar como os sujeitos se definem mutavelmente a partir de posições e trajetórias variáveis dentro de uma rede, bem como da participação em diferentes redes.
Não se trata, segundo Perlongher (1993), de pensar a cidade como um mosaico de mundos sociais que fragmenta também o sujeito. Tal pensamento vem de uma concepção do espaço urbano muito inspirada na Escola de Chicago, a qual supunha que o espaço urbano produz modificações per se no comportamento dos sujeitos. Muito pelo contrário, a cidade tem de ser julgada e entendida apenas em relação àquilo que seus habitantes desejam dela.
Perlongher (1993) faz uma apropriação particular do clássico conceito de região moral, que, para Robert Park (1979), designava um território residual para o qual convergiam interesses, gostos e temperamentos ligados à boemia, ao desejo não convencional, ao “vício” e à toda sorte de marginalidades como área de convergência e circulação, mais do que fixação residencial, para repensá-la como código-território.
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"Tudo é rua": apropriações, espaços e corpos no mercado do sexo em São Carlos/SP A expressão “código-território” se refere à relação entre o código e o território definido por seu funcionamento. [...] na qual se distinguem dois elementos: uma “sobrecodificação” – sucordage, código de códigos – e uma “axiomática”, que regula as relações, passagens e transduções entre e através das redes de códigos, que por sua vez “capturariam” os corpos que se deslocam, classificando-os segundo uma retórica, cuja sintaxe corresponderia à axiomatização dos fluxos (Perlongher 2005: 276).
Perlongher (2005) coloca a referência ao código como central na noção de territorialidade, uma vez reconhecidas as dificuldades de defini-la com precisão. A partir disso, envereda para as noções de desterritorialização e reterritorialização, pensando esses processos com referência a códigos sociais no sentido amplo.
Com isso, Perlongher (2005) destaca uma territorialidade expressa em um código peculiar, que distribui prerrogativas categoriais a corpos e desejos em movimento. Ou seja, o “código território” é o território que aparece como referência na produção de subjetividades. Significa dizer que a territorialidade não se limita a um espaço físico, mas, sobretudo, diz respeito ao espaço do código, pois é este código que se inscreve num determinado lugar e lhe dá um sentido muito menos descritivo (o que é feito lá) do que prescritivo (o que pode ser feito lá) (Silva, 2006).
Como demonstrado, a territorialidade vincula-se também a identidades, que apesar de marcadas pela fluidez, são estabelecidas relacionalmente. A demarcação espacial é também moral e passa por jogos de poder pelos quais se determina quem pode ficar onde e os significados dessa fixação. Fixação que não pode ser confundida com imobilização/ sedentarização, mas com aceitação e compartilhamento de códigos que circulam e informam, mas que são fluidos (Pelúcio, 2009). Como se vê, os territórios e identidades se confundem pela significação que os sujeitos imprimem nos corpos: formas, músculos, saltos, olhares, gestos, práticas eróticas anunciadas e insinuadas nessa marcação.
Tais considerações se coadunam com as observações de Magnani (2012), que pensa o pedaço como espaço de relações. Perlongher (2005) foi feliz em notar que quem ocupa um lugar é um sujeito que, em algum momento, assume um discurso que coincide com o do lugar ocupado. Ou, ainda, que estar nesse lugar dá ensejo a, no mínimo, ser reconhecido como conivente com o discurso daquele lugar no momento da ocupação. E que não quer dizer que em todos os momentos da vida desse sujeito esse discurso será o mesmo. Muito pelo contrário, ao longo de sua trajetória, ele ocupará diversos lugares e assumirá ou será reconhecido por ser portador de diversos discursos. Na medida em que a Rua também é um território apropriado e produzido pelos
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sujeitos e que se torna referência de espaço de prostituição em São Carlos, ela também contém o “código-território”, pois é também uma territorialidade expressa em um código peculiar, que fornece atribuições categoriais a corpos e desejos em movimento, produzindo subjetividades, representando de igual modo um movimento de desterritorialização e promovendo também uma espécie de reterritorialização. As divisões da Rua em “frente”, “baixo”, “dentro”, “atrás” e “fundo”, e os códigos de cada local não deixam dúvidas disso, ao demonstrar que é código em relação, não apenas pela posição geográfica definida, mas pelos usos, pelo código em jogo e que é através do mesmo e nesses lugares que múltiplas fronteiras se constroem. Fronteiras entre mulheres e travestis, entre as mais novas e as mais velhas, entre as com mais roupas e as com menos roupas, entre as com os corpos mais modificados e as com os corpos menos modificados.
Como contou Maria Madalena, a região da Avenida Getúlio Vargas foi apropriada como lugar de prostituição após ser “conquistada” em meio a diversos conflitos. Essa apropriação se consolidou e fez do lugar referência para a atividade. Tal identificação do lugar se tornou tamanha que Raabe disse que, ao ser convidada para ir à São Carlos, já foi direto para a Avenida Getúlio Vargas. Perguntei se não tinha outra referência de outro lugar na cidade pra isso e ela me respondeu: “Não. Só me disseram dessa região mesmo”.
Com isso, a Rua também é código-território, no sentido proposto por Perlongher (2005), quando diz que o território aparece como referência para notar a produção de subjetividades dos interessados que vão até ela, pois qualquer pessoa que é vista na região da Avenida Getúlio Vargas no período noturno é identificada como, no mínimo, simpatizante das atividades ali exercidas.
Considerações finais A Rua corresponde, como já apresentado, a tudo que diz respeito ao contexto externo ao da casa, seja ela pensão, residência ou boate. Com isso, é possível entender a região da Avenida Getúlio Vargas como um contexto na prostituição em São Carlos. E, partindo da ideia de contexto – um ambiente no interior do qual pessoas e elementos simbólicos se relacionam entre si, e é justamente constituído pelo ato de relacioná-los (Wagner 2012), a Rua se mostra como uma categoria desse contexto que indica uma série de possibilidades a serem consideradas. Não considerei apenas uma atmosfera que envolve e rodeia pessoas e coisas, na qual um símbolo é utilizado e foge dos limites e conceituações, mas, em um aspecto amplo, empreguei-o para qualquer conjunto de elementos simbólicos que ocorriam no mesmo
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lugar, de alguma maneira, formando uma continuidade reconhecível. Um contexto é, ao mesmo tempo, parte da experiência e algo que esta constrói. Cada parte identificável de um contexto reconhecido se pertence mutuamente, da mesma forma que mesas, cadeiras, copos, cervejas, mesas de sinuca pertencem a um bar.
A Rua apresenta possibilidades que extrapolam os limites colocados por alguns conceitos e categorias clássicas da antropologia urbana (Casa & Rua; Pedaço; Códigoterritório). Contudo, faz isso sem negá-las; aliás, muito pelo contrário, contém nela, de alguma forma e em determinados momentos, aspectos de cada categoria já anunciada. E, se Magnani chamou o pedaço de terceiro domínio em relação à Casa e à Rua, de Roberto DaMatta, a Rua é uma espécie de “outro domínio”, algo que aponta para o além, que, se não quebra as categorias já exploradas, ao menos expande suas fronteiras e apresenta uma nova maneira de pensar as apropriações pelos sujeitos da e na cidade. Não como uma categoria estática que se encerra em si mesma, tornando-se autorreferente e auto significativa, mas através da invenção que as mulheres e travestis fazem dela em diferentes momentos e lugares, na relação com outros espaços, outras pessoas e outros corpos. Mostrando que a produção e apropriação de territórios não estão exatamente atreladas às estabilizações identitárias de pessoas e ou espaços, mas na circulação e ressignificação de códigos, possibilitando pensar que a partir da afirmação de Raabe que “tudo é rua”, a Rua é ou pode ser tudo.
O aspecto original encontrado na categoria Rua é como ela realiza conjunções e justaposições de outras categorias já descritas e sua heterogeneidade. Tendo sempre como horizonte a percepção das mulheres e travestis da Rua, é impossível negar que as observações e considerações sobre a Rua, de Roberto DaMatta (1985), são pertinentes e facilmente identificadas na Rua, porém, elas não são exclusivas e/ ou majoritárias. Há, sim, em determinados momentos, a presença da Rua na Rua, como exemplificado, mas não de forma contínua, pois aparece também o pedaço na Rua. Mesmo não sendo local de moradia, são construídos e estabelecidos laços característicos de um terceiro domínio, que não é Casa e nem Rua. E, ainda, a Rua se mostra como código-território por ser um território reconhecido por abrigar a atividade de prostituição e também por produzir fronteiras e distribuir atribuições categoriais a corpos e desejos em movimento, produzindo subjetividades não só na Rua, mas também nas regiões específicas da Rua: “frente” seria o lugar de travestis com mais roupas e de até trinta anos de idade; “atrás” e “dentro” seria o lugar de travestis com pouca roupa e também de até trinta anos de idade; “fundo” seria o lugar de travestis com mais de trinta anos de idade (consideradas velhas); “baixo” seria o lugar das mulheres. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Essas divisões não são rígidas e instransponíveis. O exemplo disso é que encontrei Raquel em uma das ruas de “dentro” junto com travestis; também vi travestis com mais roupas nas ruas de “dentro” e “atrás”; assim como entrevistei Maria Madalena (que já havia passado dos trintas anos) na “Rua da frente”.
A Rua apresenta um espaço dinâmico onde o mesmo lugar pode ser pessoal e impessoal e produzir seus próprios códigos. Como visto, ela é rua, mas também pedaço e também código-território. Por ser ou conter nela todas essas categorias, ela não é nenhuma delas. Ela é Rua. Sua dinâmica e fluidez se dá justamente porque se negocia, muitas vezes com rigor formal, algo que é construído para ser muito íntimo e pessoal e, assim, as fronteiras se intercruzam e se resolvem por meio de “boas combinações” (Zelizer 2009)9. Quando Raabe diz que se relaciona com homens jovens, velhos, mulheres, casais, pessoas que pagam seu tempo só para conversar e clientes recorrentes que até se apaixonam, fica claro que, ainda que haja algum tipo de negociação econômica, esta permanece longe de ser a única via predominante e ou determinante na construção das relações no local, mas é evidente que esse fator não deixa de existir e ser latente e, por isso, as relações não se dão somente a partir de laços afetuosos ou algo parecido. Da mesma forma, as abstrações e divisões da Rua existem, produzem, identificam e organizam o espaço e as pessoas, mas não são estanques e/ ou impedem um trânsito (relativamente) livre entre esses espaços. Portanto, a Rua aparece como uma categoria, dentro do contexto da prostituição são-carlense, na região da Avenida Getúlio Vargas, que combina uma série de categorias sem se limitar a nenhuma delas, e faz justamente desse potencial de conjunções, sobreposições e justaposições sua característica principal. Travei esse diálogo não apenas em respeito à uma bibliografia já muito discutida, mas com o intuito de construir uma reflexão sistemática sobre a apropriação dos espaços pelos sujeitos e contribuir com o tema por meio de outra abordagem.
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Segundo Viviana A. Zelizer (2009), quando os participantes estão negociando ao mesmo tempo relações interpessoais delicadas e marcando diferenças entre essas relações e outras com as quais elas podem ser facilmente confundidas, há conflito e confusão gerados em função da intersecção de “Dinheiro, poder e sexo”. E para lidar com essas dificuldades, as pessoas fazem uso de um conjunto de práticas chamado por ela de “Boas Combinações”.
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"Tudo é rua": apropriações, espaços e corpos no mercado do sexo em São Carlos/SP
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R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 524-551.
Fugas e contrapontos na fronteira: reflexões etnográficas sobre transitividades corporais e de gênero no Alto Solimões/AM Silvana de Souza Nascimento Professora Doutora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo silnasc@usp.br
Resumo Este artigo pretende oferecer algumas reflexões iniciais que resultaram de experiências etnográficas realizadas na região transfronteiriça amazônica, no Alto Solimões, entre as cidades de Letícia, na Colômbia, Tabatinga, no Brasil e Santa Rosa, no Peru. Buscase compreender como performatividades de gênero podem compor uma pluralidade de corporeidades femininas dentro do multiverso trans*: niños que se mudan, travestis, mulheres transexuais, chicas trans, transformistas, transgeneristas, mulheres, mujercitas, mujeres. O texto se propõe a mostrar que, no espaço dos salões de beleza, elas se dedicam a cuidados corporais por meio de diversos serviços de beleza e, nestes lugares, onde trabalham e habitam, também materializam seus próprios corpos por meio de experiências intersubjetivas. Além disso, nos espaços de sociabilidade, em bares, calçadas, avenidas, praças, adquirem visibilidade nas paisagens urbanas e vivenciam formas de controle, produção de diferenças e desigualdades. Palavras-chaves: corporeidade, feminino, trans, fronteira, Amazônia Abstract This article aims to provide some reflections that resulted from ethnographic experiments in the Amazon border region of Alto Solimões, in the cities of Leticia in Colombia, Tabatinga, Brazil and Santa Rosa, Peru. It seeks to understand how gender performativities can make up a plurality of female corporeities within the trans multiverse: niños que se mudan, travestis, mulheres transexuais, chicas trans, transformistas, transgeneristas, mulheres, mujercitas, mujeres. The text proposes to show that, in the space of beauty salons, they
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dedicate themselves to body care through various beauty services and, in these places, where they work and live, they also materialize their own bodies through intersubjective experiences. Moreover, in social areas, in bars, sidewalks, avenues, squares, they acquire visibility in urban landscapes and live social controls, differences and inequalities. Key-words: embodiment, feminine, trans, border, Amazonia.
Prelúdio O som de uma nota só do secador de Jennifer, peluquera colombiana da cidade fronteiriça de Letícia, preenche todo o salão, que se mistura às vozes da televisão, ligada continuamente. A cada cliente que se senta na cadeira, serviços diferentes são realizados, alguns mais rápidos, como lavar o cabelo e cortes, outros mais lentos, como alisamentos, relaxamentos, alongamentos (mega hair), hidratações, escovas, colorações, mechas. Jennifer brinca com os clientes, procura ouvir as suas demandas, sempre sorridente. Ana, também de nacionalidade colombiana, mais calada, concentra-se em aplicar queratina em longos cabelos negros para depois escová-los e deixá-los absolutamente lisos. Quando o salão esvazia, varrem-se os restos de cabelos cortados espalhados pelo chão do salão, à espera de mais clientes. Quando o movimento está mais parado, distraem-se com o movimento das ruas, com os transeuntes e possíveis paqueras. Saem para comprar lanches e produtos de beleza em suas motocicletas. Atentas à televisão, comentam os telejornais ou os próximos capítulos da novela mexicana “Yo no creo en los hombres”. A poucas quadras dali, Venus, de origem indígena ticuna, trabalha como assistente de cabeleireira no salão de Mónica, também leticiana, lugar que, além de ser um espaço de beleza já conhecido na cidade, é um local de passagem e de sociabilidade para jovens gays e travestis. Depois do expediente, elas se reúnem para escutar música, conversar e também aproveitar o espelho, maquiagens e escovas para se prepararem para a noite em alguns bares e casas noturnas na cidade de Letícia, capital do estado do Amazonas, na Colômbia, que faz fronteira com a cidade de Tabatinga, do lado brasileiro, na região do Alto Solimões. O salão de Mónica também é um ponto de encontro de integrantes da Asociación LGBTI “Amazonas sin fronteras”, na qual praticamente metade das/os associadas/os declaramse pessoas trans1.
Diferentemente da parte colombiana, onde os salões de beleza se espalham pelos bairros da cidade, em lugares comerciais estratégicos que possam atrair clientes, do lado brasileiro, chama a atenção uma rua que desemboca no porto de Tabatinga onde estão 1
Todos os nomes aqui citados são pseudônimos, para preservar o anonimato de nossas interlocutoras.
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localizados dezenas de salões de beleza que se agrupam em dois quarteirões, intercalados com pequenos restaurantes, lojas e uma igreja pentecostal. Esta área da cidade é ocupada, especialmente, por peruanos/as, que trabalham e circulam pelas ruas e seus equipamentos de serviços. A centralidade desta rua – entre o porto e a avenida principal – faz com que haja grande circulação de pedestres e motoqueiros, facilitando o atendimento da clientela nos salões. A música dos secadores mistura-se, além do som das televisões, aos aparelhos que tocam cumbia peruana e brega brasileiro. Em praticamente todos os salões de beleza destacam-se a presença de rapazes gays e chicas trans peruanos/as. Alguns são encarregados/as dos salões, outros/as trabalham de forma temporária, outros/as ainda passam para conversar.
Este cenário repleto de salões de beleza foi o espaço de minhas breves pesquisas de campo, em 2016 e 2017, na região do Alto Solimões como parte de uma pesquisa comparativa mais ampla sobre como cidades, de diferentes contornos, são ocupadas e vivenciadas por travestis, mulheres transexuais e outras pessoas incluídas no que eu chamo “universo trans”2. A pesquisa buscou problematizar a noção de urbano e de
urbanidade a partir de experimentos etnográficos em cidades que apresentavam escalas diferenciadas, de pequeno porte a metrópoles, e observar como as fronteiras entre cidades são construídas e desconstruídas3. Para tal intento, foram produzidos experimentos etnográficos em três diferentes regiões do país, Nordeste (Paraíba), Norte (Alto Solimões, na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru) e Sudeste (na metrópole São Paulo) com o propósito de compreender como estas protagonistas circulam pelos territórios urbanos e resistem a múltiplas formas de violência e transfobia que são constantemente acionadas pelo Estado e pela sociedade em geral. A pesquisa mostrou diferentes modos de ser-estarno-mundo que envolvem construções de si (corpo-pessoa), relações entre sexo e dinheiro, 2
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Entendo a expressão “universo trans” como um ambiente plural de produção transitiva de corpos, subjetividades e territorialidades que dependem de uma auto identificação de pessoas como travestis, mulheres transexuais, pessoa tran, transformistas, transgeneristas, chicas trans, homens trans, entre outras categorias êmicas, que podem construir condições permanentes ou situações ser e/ou de estar que envolvem investimentos corporais, sexuais, afetivos, econômicos e políticos que escapam aos binarismos de gênero e ao mesmo tempo replicam esse binarismos em modelos identitários e corporais almejados. Pesquisa financiada pela Fundação do Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) intitulada “Cidades-devir: experimentos etnográficos entre fronteiras, pessoas, lugares,” de setembro de 2015 a setembro de 2017 (auxílio à pesquisa individual). Contou com a participação de 12 pesquisadores/as, em diferentes níveis de formação acadêmica; estudantes de graduação da Universidade de São Paulo: Venusdre Martins, Beatriz Rossi, Maria Iachinski Natália Corazza, Sabrina Damaceno e Lucas Vechi; e alunos de pós-graduação em Antropologia: Veronica Guerra (Universidade Federal da Pernambuco/ UFPE), Thiago de Lima Oliveira (USP), Martina Lima (USP) e Letizia Patriarca (USP). A pesquisa contou também com a colaboração de Flávia Melo, professora de antropologia da UFAM e doutoranda pelo PPGAS/USP (Universidade Federal do Amazonas) e de José Miguel Olivar Nieto, professor do departamento de Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da USP. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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trabalho e performatividades de gênero.
Assim, dentro desta investigação mais ampla, este artigo pretende oferecer algumas reflexões que resultaram das experiências etnográficas realizadas na região transfronteiriça amazônica, no Alto Solimões, na tentativa de compreender como performatividades de gênero4, no multiverso trans5, compõem uma pluralidade de corporeidades femininas,
que se fazem e se desfazem em fronteiras simbólicas, intersubjetivas e territoriais. Gays, niños que se mudan, travestis, mulheres transexuais, chicas trans compõem um mosaico plurissexual que perpassa marcadores geracionais, étnico-raciais e de nacionalidade, produzem diferença e ao mesmo tempo elaboram construções miméticas de variações de um feminino. Desse modo, trago como inspiração teórica o conceito de diferença problematizado por Avtar Brah, como experiência e relação social que, de um lado, forma o sujeito de modo processual a partir de sua trajetória individual e específica e, de outro, produz narrativas históricas e culturais coletivas compartilhadas. O conceito de diferença, então, se refere à variedade de maneiras como discursos específicos da diferença são constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados. Algumas construções da diferença, como o racismo, postulam fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença como relacional, contingente e variável. Em outras palavras, a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política. (Brah 2006: 371).
Este mosaico plurissexual, por outro lado, pode ser pensado por meio da metáfora musical, da construção da fuga e do contraponto. Ele será aqui apresentado como uma composição de vozes polifônicas que dialogam por meio de um estilo baseado na reprodução sucessiva dos mesmos ritmos (ou melodias), que respondem uns aos outros como se estivessem, ao mesmo tempo, em fuga e perseguição. E por meio desta reprodução contrapontística, estas vozes replicam o contraponto na mesma cadência e constroem uma composição a partir de variações sobre um mesmo tema, variações do gênero feminino. Nesse sentido, “se o gênero é algo que a pessoa se torna – mas nunca pode ser – então, o próprio gênero é uma espécie de devir ou atividade, e não deve ser concebido como
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Utilizo a noção de performatividade de gênero a partir de Judith Butler (2003, 2008), como práticas reiterativas reguladoras do “sexo” e dos corpos, que reproduzem ou contestam as normatividades produzidas discursivamente pela matriz da heterossexualidade hegemônica. Talvez multiverso seja uma palavra mais adequada para pensar o universo trans*.
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substantivo, como coisa substantiva ou marcador cultural estático, mas antes como uma ação incessante e repetida de algum tipo” (Butler 2003: 163)
O mesmo tema incessante que será tratado aqui se refere a pessoas-corpos e suas redes de relações, que transitam por modos femininos de ser e de estar, mas que não necessariamente são designadas ou identificadas como “mulheres”. Pessoas que, por trajetórias e condições distintas, vivem em uma região transfronteiriça e transnacional e que trabalham, intensamente, com serviços de beleza, limpeza e alimentação. De algum modo, são pessoas que flertam com feminilidades (mas que não necessariamente se fixam nelas) e que se empenham em ocupações por vezes precárias, como cabeleireiras, cozinheiras, faxineiras, atividades que estão voltadas para cuidados corporais e domésticos. Elas se dedicam, de um lado, a cuidados de si que têm na produção corporal sua principal atenção e, de outro, realizam trabalhos que têm como foco também o corpo, em suas dimensões estéticas e dietéticas, além das ocupações domésticas como a limpeza.
Uma fronteira abundante A região da tríplice fronteira compreende municípios distribuídos entre três países, Brasil, Colômbia e Peru. Localizada na calha do Rio Solimões6, no extremo sudoeste do Amazonas, é formada pelas cidades de Tabatinga7, do lado brasileiro, e Letícia, do lado colombiano (conhecidas como “cidades-gêmeas”). Tabatinga faz fronteira com o povoado de Santa Rosa e com a cidade de Islândia, ambas no Peru. Nesta área, encontra-se também a cidade de Benjamin Constant, a 30 minutos de barco de Tabatinga, pelo rio Amazonas, e que faz fronteira também com a cidade peruana de Islândia. Mapa 1 - Retirado do Google Maps
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A região do Alto Solimões, no Brasil, compreende os municípios de Amaturá, Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Santo Antônio do Içá, São Paulo de Olivença, Tabatinga, Tonantins, Fonte Boa e Jutaí. Está a 1200 quilômetros da capital Manaus em linha reta e 1600 km em linha fluvial, e o acesso se dá por transporte fluvial ou aéreo.
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Estas pequenas e médias cidades conformam um complexo urbano de difícil apreensão. Há forte presença de peruanos/as vivendo do lado brasileiro, provenientes de regiões como Iquitos e Caballococha. Tabatinga, com a maior população do lado brasileiro, cerca de 62.300 habitantes, tem sua economia baseada em comércios de pequeno e médio porte, com intensa presença peruana, sobretudo voltados a gêneros alimentícios e vestuário, sem contar a renda gerada pela presença de servidores públicos. A cidade recebe, além de peruanos/as, pessoas provenientes de diferentes regiões do Brasil pela presença das Forças Armadas (grande parte do sexo masculino) e de institutos públicos de ensino, que recebem técnicos e docentes de outras cidades, como a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o Instituto Federal do Amazonas (IFAM) e a Universidade Federal do Amazonas (UFAM, campus Benjamin Constant). Ademais, destaca-se a presença dos povos indígenas Ticuna, além de outras etnias como os Bora, Cocama, Kambema, Kaixana, Kanamari, Korubo, Kulina, Matiss, Matsés, Mayoruna, Marubo, Miranha, Quichua Tsohom Dyapa, Uitoto, Yagua, etc. Nesta região da fronteira, A metáfora do mosaico talvez não seja a mais apropriada para exprimir a sociodiversidade componente da cidade de Tabatinga. Inadequada, pois o mosaico compõe, a partir de peças diversas e incoerentes, um todo coerente cujas peças estão harmonicamente justapostas. A imagem de uma rede, cujos fios embaralham-se e cujo movimento constante tenciona um ou outro nó, comprimindo um ou outro vão, talvez expresse mais adequadamente o modo como se configuram as relações sociais e o uso e desuso dos recursos (humanos, estatais, naturais) continuamente buscados, reivindicados ou negados nesse híbrido/complexo/ contraditório contexto (Cunha 2016: 10).
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Em continuação à zona urbana de Tabatinga, ao longo da avenida da Amizade no sentido oposto ao rio Solimões encontra-se a cidade de Letícia8. Apesar de serem conhecidas como “cidades-gêmeas”, apresentam características econômicas, políticas e culturais diferenciadas. Letícia apresenta uma centralidade política na região Amazônica colombiana por ser a capital do departamento do Amazonas. Possui melhores infraestruturas urbanas, é um centro regional de venda de produtos importados e recebe turistas que são atraídos por diferentes atividades voltadas para o ecoturismo e o turismo étnico9. Tabatinga, por sua vez, é composta por áreas de uso exclusivo das forças armadas e diversos bairros distribuídos de ambos os lados da avenida da Amizade, com ruas sem pavimento, com abastecimento precário de água e energia elétrica e sem redes de tratamento de esgoto. Na tríplice fronteira, ainda encontramos Santa Rosa de Yavarí, do lado peruano, que é um pequeno povoado com aproximadamente 1000 habitantes, localizado em uma ilha no rio Solimões que permanece alagada durante a cheia do rio. E não devemos esquecer de Islândia, conhecida como a “Veneza peruana”, com por volta 2.300 moradores: uma cidade-palafita, onde as casas estão construídas acima do nível do rio, já que toda a cidade permanece inundada pelas águas do rio Yavarí durante suas cheias. Em meio a uma grande diversidade de espaços urbanos, rurais, indígenas e povos multiculturais, realizamos, como já foi mencionado anteriormente, breves incursões de pesquisa nesta região entre 2016 e 2017, que foram acompanhadas também de pesquisadores/as que estão realizando seus trabalhos de doutoramento nesta região10,
Flavia Melo e Thiago Oliveira, além da generosa colaboração de José Miguel Olivar que realiza pesquisas nesta área desde 2010, especialmente sobre a relação entre mercados do sexo, desejo, afeto e dinheiro (Olivar 2014; 2015; 2017).
Diferentemente de outras cidades onde iniciamos os primeiros contatos com nossas interlocutoras em espaços de prostituição e dos mercados do sexo, no Alto Solimões tivemos
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Letícia está localizada a 1.100 quilômetros de Bogotá, capital da Colômbia, cujo acesso só é possível por transporte aéreo. Em 1867, a menos de dez quilômetros de Tabatinga, surgiu Letícia, resultado de um acordo de navegação entre Brasil e Peru. Até o final do século XIX, Letícia estava restrita a uma pequena alfândega, que tinha como propósito regular o comércio da borracha no rio Amazonas que era realizado entre Iquitos, no Peru e Manaus, no Brasil. Em 1927, fruto de um polêmico acordo entre Peru e Colômbia, Letícia foi cedida para esta última e o Peru ganhou o território da zona sul do rio Putumayo. A insatisfação popular peruana levou a uma guerra entre os dois governos, que terminou em 1934, por intervenção das Nações Unidas (Aponte 2011). Até 1981, a cidade de Tabatinga fazia parte do município de Benjamin Constant. Teve origem no povoado de São Francisco Xavier de Tabatinga, fundado em 1766 para instalação de um destacamento militar para guarda de fronteiras entre Portugal e Espanha. 9 O município de Letícia apresenta uma população de aproximadamente 70.400 habitantes, sendo que 26.700 encontram-se na zona urbana. 10 Flavia Melo e Thiago Oliveira, ambos doutorandos em Antropologia pela Universidade de São Paulo. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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a oportunidade de realizar outra aproximação, que se deu, especialmente, em salões de beleza, lugares do cotidiano que parecem invisíveis na paisagem urbana, e em espaços de sociabilidade, como bares, restaurantes e praças públicas. Considerando as enormes diferenças entre os contextos observados, este artigo pretende problematizar, ainda que de forma provisória, como a corporeidade contribui para pensar as transitividades de gênero e as elaborações corporais de feminilidades que ora contestam as normatividades hegemônicas, ora as reproduzem.
A corporeidade é entendida aqui a partir da perspectiva teórico-metodológica de Thomas Csordas (2008), que a define como o reconhecimento da condição existencial do corpo como ser-no-mundo, agente no mundo. “Essa abordagem da corporeidade parte da premissa metodológica de que o corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas é o sujeito da cultura; em outras palavras, a base existencial da cultura” (Csordas 2008: 102). Nesse sentido, o corpo não é uma forma vazia que vai sendo moldada pela cultura ou uma representação simbólica construída culturalmente, mas uma “fonte da existência e o local da experiência” (Csordas 2013: 292). Ademais, o enfoque na corporeidade também possibilita pensar, aqui, na centralidade do cuidado corporal, material e simbólico, que se traduz nas ocupações que nossas interlocutoras exercem, nas preocupações que possuem para construir a beleza almejada, nos territórios urbanos que ocupam (e aqueles dos quais são excluídas) e nas redes de relações que tecem.
Para Butler, as normas reguladoras do “sexo” atuam de maneira performativa para construir a materialidade dos corpos e para materializar os sexos dos corpos. Nesse sentido, para a autora, a materialidade do corpo só pode ser concebida a partir da sua norma reguladora. Contudo, penso que esta materialidade, ou corporalidade, também escapa às normas reguladoras pois, como condição de existência da cultura, está no mundo e age sobre ele. As corporeidades trans materializam-se num ser-no-mundo em busca da feminilidade regulada não apenas pelas teorias nativas do “ser mulher” dentro de um modelo heteronormativo, mas de produzir, processualmente, outras feminilidades que podem gravitar em torno da norma reguladora e, ao mesmo tempo, contestá-la justamente pelas potencialidades criativas de seus próprios corpos.
A beleza e seus contrapontos Feminilidades plurais materializam-se em corpos não necessariamente designados femininos ao nascer, corporificam-se em meio aos secadores, chapinhas, alisamentos, hidratações, maquiagens. Tornam-se femininos por meio de gestos, práticas, vestimentas,
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estilos, sentidos que são, ao mesmo tempo, absorvidos por fios intencionais do domínio da percepção (Csordas 2008; Merleau-Ponty 2006) e apreendidos e transmitidos de forma coletiva. Marcas corporais como sobrancelhas feitas e delineadas, unhas crescidas e pintadas, cabelos com mechas coloridas e com franjas alisadas, cabelos longos, um detalhe da cor rosa na roupa ou mesmo apenas um nome feminino (sem necessariamente o uso de vestimentas femininas), borram normatividades de gênero e de sexualidade. Este borramento também se evidencia na maneira pela qual nomeiam umas às outras e que dificilmente se enquadram nas categorias LGBT11: chicas trans, niños que se mudan, maricas, chibas, maninhas, mariposas, mujeres, travestis, gays (palavra usada no masculino e no feminino), mulheres transexuais, e assim por diante.
Para além destas categorizações, o importante aqui é chamar a atenção para a dedicação intensiva à produção da corporalidade. De um lado, dispensam grande parte de seu dia aos serviços de beleza, proporcionando bem-estar por meio de cuidados, especialmente, com cabelos de homens e mulheres: cortes, tinturas e alisamentos são os serviços mais procurados. E, de outro, elaboram cuidados de si, que incluem os cabelos, maquiagem, sapatos, roupas, perfumes, adereços, etc., que produzem, de certo modo, variações do feminino (Nascimento 2014). Esses cuidados de si não são unívocos e traduzem experiências subjetivas que evocam diferentes maneiras de lidar com seus corpos em distintos territórios e situações.
Jennifer, por volta dos seus 49 anos, tem uma longa experiência como peluquera. Filha de pai brasileiro e mãe colombiana, viveu 23 anos em Bogotá, capital da Colômbia, e lá aprendeu o ofício que exerce até hoje em Letícia, sua cidade natal, para onde retornou há alguns anos. Na época da pesquisa, compartilhava o aluguel de uma pequena sala com mais duas pessoas, Ana e Martin, onde ofereciam serviços de cabeleireiro. Naquele período, o salão estava localizado em frente à maloca do Cabildo Indígena Urbano da cidade de Letícia (CAPIUL), na zona urbana de Letícia, local onde povos indígenas de diversas etnias realizam assembleias e rituais, além de ser um importante ponto turístico no qual turistas podem escutar narrativas contadas por lideranças, experimentar o tabaco, o mambe (padu) e bebida, comprar artesanato, etc. Em Bogotá, Jennifer tinha uma performance corporal diferente pois, segundo
11 Como estamos lidando com uma região na fronteira entre três países, os quais possuem históricas específicas da construção dos direitos e do movimento LGBT, especialmente quando consideramos a letra “T”, as expressões utilizadas podem ser bem variadas, tais como transexuais, travestis, trans, transgênero, transgénero, transgenerista, etc. Desse modo, buscamos não adotar nenhuma definição em particular pois estas expressões não estão limitadas ao território nacional de cada país mas são acionadas em diferentes situações e contextos que evidenciam muitos intercâmbios linguísticos e culturais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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conta, usava vestimentas femininas 24 horas por dia e ali realizou cursos de formação em peluqueria. Contudo, ao retornar para Letícia, resolveu parar de se maquiar, mas não deixou de se pensar como mulher12. Martin, seu parceiro no salão, também já viveu em Bogotá e Medellin, e também retornou para sua cidade natal depois dos quarenta anos, o que se pode conjecturar que, talvez, evidencie uma questão geracional relacionada ao retorno para sua cidade de origem depois de uma certa idade. Ana, por sua vez, nunca viveu em outra cidade e, na faixa dos quarenta e poucos anos, sempre morou com sua mãe em Letícia e, hoje, abriu seu próprio salão onde tem oferecido: alisamento e cacheado permanentes, queratina, depilação com cera, maquiagem, penteados, sobrancelha com hena, hidratação, cortes e tinturas (mechas, iluminação e luzes). Todos estes processos de produção estética estão ligados a ideia de que ninguém nasce bela/o por natureza, mas que pode se tornar por meio de todas as técnicas corporais (Mauss 2003). “No hay mujer fea, sino mal arreglada”13, explica Ana.
A poucos metros dali, em outro salão, trabalham Mónica e Venus, sua assistente. Mónica é nativa de Letícia, com aproximadamente 35 anos, Venus é de origem indígena ticuna14, entre 25 e 30 anos. O salão está localizado em uma rua de bastante movimentação,
com dois bares em sua frente, além de equipamentos comerciais. Ambas trabalham em ritmo frenético nos finais de semana e nos momentos onde há circulação de dinheiro na cidade, na época dos pagamentos. Oferecem todos os serviços ligados aos cuidados dos cabelos e sua rotina de trabalho está vinculada à demanda de clientes, o que significa que elas não têm horário fixo de atendimento. Como elas também moram nos fundos do salão, em um pequeno cômodo15, elas recebem clientes todos os dias da semana, a qualquer hora do dia. À noite, elas fecham as portas e fazem do espaço do salão um lugar de sociabilidade e intimidade, entre amigas e amigos. Aproveitam também para se produzirem para a vida noturna, com uma cuidadosa preparação corporal de maquiagem, penteados e vestuário. Compartilhando seus preparativos corporais entre si, elas elaboram um demorado processo de produção da beleza que se inicia com a roupa: saia, vestido ou shorts curtos, brilhos, decotes e salto (peça que não pode faltar). Depois, começa o caprichoso processo da maquiagem do rosto: primeiro, uma base para nivelar o tom da pele, em segundo, a
12 Para Jennifer, a manutenção da maquiagem, em uma região extremamente úmida como a Amazônia, torna-se muito mais trabalhosa e ela prefere, portanto, não se maquiar como fazia em Bogotá, com o clima mais montanhoso e frio. 13 “Não existe mulher feia mas somente mau arrumada” (tradução minha). 14 Os ticuna são o mais numeroso povo indígena na região Amazônica brasileira e também ocupam áreas no Peru e na Colômbia. 15 O cômodo tem um pequeno banheiro, um colchão de casal de ar, um fogareiro de duas bocas, um espelho e uma arara para pendurar roupas. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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sobrancelha (marca-se com um lápis preto, reforçando seus contornos), em terceiro, sombras das mais variadas cores. Também realizam diferentes penteados nos cabelos, que devem ser bem escovados, alisados, amarrados, ajeitados. Por vezes, utilizam apliques e perucas, outras vezes colocam mega hair, uma técnica para alongamento dos cabelos nos quais se aplicam fios de cabelos naturais de modo que pareçam mais longos ou mais volumosos. “Me gusta ponerme siempre sexy, siempre sedosa, provocativa, me gusta ser así”16, comenta Venus. As travestis buscam, em todo seu processo de transformação, aquilo que elas chamam de feminino. Um feminino que lhes é bem peculiar e que está orientado por valores e práticas os mais diversos, especialmente no que diz respeito ao corpo e seus usos – sendo as práticas e preferências sexuais os principais pontos levados em conta. (Benedetti, 2005, p. 89).
Mónica, que não costuma sair com suas amigas à noite, mais discreta, participa da Asociación LGBTI “Amazonas sin fronteras”, onde quase metade das associadas se identificam como chicas trans17. Com poucos recursos e incentivos governamentais, a associação promove, com alguma frequência, encontros para debater formas de combate contra o preconceito contra LGBTIs mas, segundo a coordenação, há uma grande dificuldade de mobilização e participação da comunidade. Uma das formas de atração do público está na organização de festas e concursos de beleza, como o “Reinado Miss Gay de La Confraternidad Amazonica”, durante o Festival da Confraternidade Amazônica, que ocorre, em Letícia, na primeira quinzena de julho, um evento que busca promover atividades culturais, econômicas, desportivas, gastronômicas entre os três países da fronteira. Certas vezes, na abertura do festival, há um desfile que se inicia no marco zero, entre Colômbia e Brasil, pela avenida principal de Letícia, com a glamourosa participação de chicas trans e transformistas. O festival acontece durante cinco dias, com apresentações de grupos indígenas, grupos artísticos e musicais conhecidos e competições esportivas. Na última noite, realiza-se o Miss Confraternidad, onde se elege a jovem candidata peruana, brasileira ou colombiana considerada mais bela. Em algumas ocasiões, também se realizam os reinados gays, mas que ocorrem de forma menos visível dentro da programação oficial. O documentário “Transamazónicas”18, produzido pelo grupo Vice, mostra, por exemplo, um festival no qual o reinado gay foi, repentinamente, cancelado da programação, e suas 16 "Gosto de estar sempre sexy, sedosa, provocativa. Eu gosto de ser assim” (tradução minha). 17 Segundo o ex-presidente da associação, ela contava, em 2016, com 117 associadas sendo mais da metade de ascendência indígena. 18 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fAr8GvxxBKM.
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candidatas resolveram organizar um concurso paralelo que terminou por acontecer em uma das praças de Letícia.
Os concursos de beleza gay não são apenas um momento de valorização estética e de expressão de corporalidades femininas sensuais. Revelam-se como um espaço ritual de reconhecimento, fortalecimento e visibilidade de experiências trans, transformistas, travestis, transexuais, homossexuais que, apesar de estarem presentes na paisagem urbana e atuarem em salões de beleza, restaurantes, instituições públicas, bares, etc., possuem territorialidades controladas pelo Estado e pela sociedade. Especialmente em Letícia, a circulação pelos espaços urbanos deve ser feita nos períodos noturnos, em alguns lugares da cidade, ou limitada aos seus locais de trabalho e moradia. Segundo Monica, em “cidade pequena tem que saber se comportar” e, muitas vezes, passar-se por mujercita para adentrar em determinados espaços sem ser reconhecida como chica trans, o que significa performar vestimentas, gestos e maquiagens mais discretas que não chamem tanto a atenção. Por outro lado, há territórios propícios para performatizar suas transitividades de gênero e tener passarela, como será descrito no próximo item.
Do outro lado da fronteira, no Brasil, por sua vez, a circulação de corpos que borram as fronteiras das normatividades de gênero não é controlada do mesmo modo que na cidade vizinha colombiana. Na verdade, pode-se observar a existência de territorialidades nos quais sua circulação se dá, de forma mais intensa, relacionada aos seus espaços de sociabilidade e, mais do que isso, aos lugares frequentados por peruanas/os ou pessoas ligadas a religiões de matriz africana. Há, desse modo, em Tabatinga, marcadores de nacionalidade, raça/etnia, gênero e sexualidade que definem territorialidades específicas nos espaços da cidade, ainda que não sejam exclusivas a determinados grupos. Desembarcando do porto de Tabatinga em direção ao centro da cidade pela rua Santos Dumont, nos deparamos com uma impressionante concentração de pequenos salões de beleza19 onde trabalham peruanas e peruanos, principalmente gays e chicas
trans de variadas idades. Durante a semana, o número de clientes pode ser escasso, de modo que a maior parte das pessoas que ali trabalham permanece uma parte significativa do tempo dividida entre flertes, televisão, rodas de conversa e o atendimento aos clientes, cujo movimento aumenta a partir de quinta-feira. Alguns salões oferecem, além de cortes, outros serviços para o cabelo, como escova, alisamento e penteados. As calçadas estão repletas de placas de madeira sinalizando as peluquerias e seus serviços. Neste território de Tabatinga, cidade brasileira, a principal língua que se escuta é o espanhol. Por ser um lugar que concentra um público gay e trans, brasileiras trans também costumam frequentá19 Quinze a dezessete salões distribuídos de forma mais intensa em um quarteirão. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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lo, seja para trabalharem nos salões, de forma regular ou pontual, seja para encontrarem com amigas/os, beber cerveja e comer. A jovem Alexandra, brasileira, que atualmente mora em Manaus20, sempre caminhava por entre os salões, por vezes fazia bicos “quando estava dura” e afirmava que o que realmente gostava era da “putaria da noite” e almejava fazer uma cirurgia plástica para aumentar os seios, “colocar peito”.
A rua Santos Dumont é bastante movimentada, onde também está localizado o mercado municipal, no qual se pode comprar frutas, verduras, legumes, farinhas, carnes, ovos, etc. cuja grande maioria de seus vendedores são indígenas. Em frente ao mercado, também há lojas que vendem produtos peruanos, oferecendo variados tipos de sementes, farinhas e também milhos, além de vendedores ambulantes de frutas frescas. Um bar, aberto noite e dia, chama a atenção pela sua música alta e pelos letreiros grandes e coloridos pintados acima da porta. Este bar parece sempre estar ocupado por homens, sejam turistas, sejam trabalhadores. Já subindo a rua, depois dos salões, no próximo quarteirão, encontram-se diversas lojas de calçados e roupas, cujas vendedoras são exclusivamente mulheres, e há também, neste quarteirão, uma sede da Igreja Assembleia de Deus. Algumas peluqueras também moram neste mesmo território, alugando pequenos quartos, como Gilda, que faleceu ano passado. Natural de Iquitos, no Peru, à época com 45 anos, em 2016, Gilda apresentava-se como um “niño que se muda” ou “uma gay” e vivia no Brasil há pelo menos 30 anos. Antes de trabalhar como cabeleireira, também realizava trocas sexuais por dinheiro. Primeiro, saindo de Iquitos foi para Benjamin Constant e depois se mudou para Tabatinga. Era uma das peruanas gays considerada “mais velha”. Este dado a preocupava pois se sentia solitária, já que todas suas amigas/os tinham saído dali para outras cidades brasileiras ou peruanas, retornado para suas cidades de origem ou morrido. E ela, na verdade, no último ano de sua vida, também retornou para Iquitos e, já em processo de adoecimento, lá faleceu. Enfim, dois anos atrás, quando ainda vivia em Tabatinga, nos dias de folga no salão saía para putear pelos bares na beira do rio, conhecido como a feira e, nestes momentos de lazer, mudava-se: vestia minissaias, perucas, saltos e maquiagem. Gilda era uma figura conhecida entre as gays peruanas por suas performances ousadas e abordagens insinuantes e, ao mesmo tempo, pela sua situação frágil à medida que começou a envelhecer e adoecer21.
20 Alexandra, assim como o perfil de muitas jovens travestis e transexuais em diferentes cidades no Brasil, já viajou para vários lugares como São Paulo e Mato Grosso, além de Manaus. 21 Considerar-se “velha”, entre pessoas trans femininas, pode ser um processo que se inicia, precocemente, por volta dos quarenta anos, e revela uma expectativa de vida baixa considerada em relação ao resto da população. No Brasil, segundo pesquisas do Projeto Muriel, a expectativa de vida de pessoas trans encontra-se na faixa dos 35 anos, sendo que a média brasileira é de 75 anos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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As peruanas encontram-se em situação de grande vulnerabilidade social e econômica: migraram para o Brasil, não necessariamente de forma legal, e vieram de cidades como Iquitos e Caballococha buscando melhores condições de vida. Para elas, Tabatinga foi uma cidade que as acolheu, lhes oferecendo trabalho em salões de beleza e nas cozinhas dos restaurantes. De acordo com José Miguel Olivar, Flávia Melo da Cunha, e Patrícia Rosa (2015), o imaginário popular na fronteira em relação aos peruanos constrói uma visão que reproduz desigualdades e preconceitos.
A visão dos peruanos como pobres, subdesenvolvidos e irregulares, antes de representar piedade, identidade ou solidariedade, parece aproximarse mais da repulsa, rejeição e repressão, posto que assevera a condição de disputa face à suposta escassez de recursos públicos que caracterizaria para muitos agentes sociais e políticos a região analisada” (Olivar, Cunha & Rosa 2015: 20).
Não é à toa que a região com menor valor monetário em relação ao mercado sexual, em Tabatinga, esteja localizada na região da feira, próxima ao porto e às peluquerias.
A região de transações sexuais de menor valor monetário em Tabatinga é a região da Feira, tida como um espaço urbano onde se articula peruanidade, ilegalidade, pobreza e indianidade. Os prostíbulos mais baratos de Tabatinga estão localizados nessa feira, são descritos e produzidos como peruanos (administradores desta nacionalidade, músicas, mulheres, frequentadores) e como relativamente mais perigosos, o que significa que, performática e discursivamente, as mulheres que ali trabalham ocupam a posição de peruanas. (Olivar, Cunha & Rosa 2015: 10).
Do mesmo modo, chicas trans indígenas, de variadas etnias, originárias de Puerto Nariño, na Colômbia, também não se encontram em situações favoráveis, pois muitas delas passaram a assumir a transição para uma identidade feminina apenas quando se mudaram para Letícia. Venus, por exemplo, foi obrigada a cortar seus longos cabelos na comunidade em que morava e sua família nunca a aceitou como chica trans. Antes de trabalhar no salão de Mónica, trabalhou também como cozinheira em um restaurante e há oito anos está em Letícia. Neste ano, mudou-se para Bogotá.
Contudo, esta não é uma condição generalizada. Martina, indígena yagua, por exemplo, migrou de Puerto Nariño para Letícia com sua família (pais, irmãos, cunhados, sobrinhos, num total de 12 parentes que hoje compartilham uma casa de apenas três Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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cômodos em um bairro periférico), trabalha como faxineira e transita entre sua identidade de gênero masculina, designada no âmbito familiar, e uma performatividade de gênero feminizada sem se assumir como trans. Apresenta-se por um nome feminino – como uma gay – e participa ativamente dos reinados, produzindo-se com vestimentas femininas e que, geralmente, possuem uma conotação étnica. Desde a puberdade, por volta de seus doze anos, passou a entrar em contato com o mundo artístico e tomou gosto pelos concursos de dança que aconteciam no internato, onde estudou até a secundária (correspondente ao ensino médio no Brasil). No internato, mesmo que ainda não pudesse namorar meninos publicamente, já podia ensaiar performatividades femininas durante as aulas de dança. Em Tabatinga, para além da região da feira, existem outros salões cujos(as) proprietários(as) são peruanos/as e que já possuem um maior reconhecimento dentro dos serviços de beleza da cidade e atendem clientes de maior poder aquisitivo, como funcionários públicos e esposas de militares. Este é o caso de Mariana, peruana de uma pequena cidade próxima a Caballococha, que se identifica como gay (mas que já foi trans), que pode ser considerada uma liderança que aglutina outras peluqueras e peluqueros peruanos(os). Seu salão, que é também sua casa, é um ponto de encontro em diferentes dias da semana e, especialmente, aos domingos, quando ela promove, com excelente comida peruana, almoços e confraternizações. Mariana é presidente da Associação de Gays, Lésbicas e Travestis da Tríplice Fronteira (AGLFF), criada em 200622, e hoje
trabalha como educadora em um programa do AIDS Healthcare Foundation (AHF), uma organização sem fins lucrativos, sediada em Los Angeles (EUA), que realiza ações de prevenção e combate a aids em diferentes continentes23. Chegou em Tabatinga há quase vinte anos e foi aqui, segundo ela, que “se abriu”. Quando jovem, no Brasil, trabalhou na cozinha de um restaurante e, depois, aprendeu o ofício de cabeleireira no salão de Mário, já falecido, que se tornou um grande amigo e foi o primeiro presidente da AGLFF. Passou anos vivendo como travesti e transformava seu corpo com a ajuda de hormônios. Contudo, ao envelhecer, preferiu voltar a se tornar uma gay ainda mantendo o nome feminino, com a qual é conhecida em toda a cidade. No salão de Mariana também trabalha Marcela, peruana de Iquitos, com 28 anos, que está há 11 anos em Tabatinga. Marcela já circulou por várias cidades, países e regiões do Brasil. “Com meu corpo, já viajei para Itália, Buenos Aires, Santiago do Chile, Equador, Guatemala”, conta.
22 A AGLFF foi criada por meio de um programa de intercâmbio entre militantes e ativistas da região Norte, e teve como primeiro presidente João Gonçalves de Souza, também conhecido por João Maria, já falecido. Na ocasião, com apoio do Ministério da Saúde, a perspectiva era de formação de lideranças capazes de atuar no crescente número de pessoas contaminadas com o vírus hiv na região (Oliveira e Nascimento, 2016). Segundo Mariana, os/as associados/as mais atuantes são peruanos/as. 23 No Brasil, desde 2014, atua no Amazonas especialmente oferecendo teste rápido para a população. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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No período de minha última pesquisa de campo, em 2017, Mariana estava preparando o Miss Fronteira Gay, que seria realizado duas semanas depois, na ilha de Santa Rosa, no Peru. Uma das candidatas do concurso era Luiza, moradora de Santa Rosa, natural de Iquitos. Com 23 anos, e vivendo uma relação estável com seu namorado desde os 17 anos, passou a se assumir como trans nesta região da fronteira, com o uso de hormonioterapia. Nesta pequena ilha, no vilarejo que representa o Peru na tríplice fronteira, segundo Luiza, vivem quatro chicas trans, sendo que todas trabalham nas cozinhas dos restaurantes. Santa Rosa é uma pequena cidade, com apenas uma rua, que está repleta de restaurantes e bares que recebem, principalmente, nos finais de semana e feriados, peruanos e peruanas que moram em cidades vizinhas como Tabatinga, Benjamin Constant, Islandia, etc. De tempos em tempos, Mariana organiza concursos de beleza e também paradas da diversidade sexual, eventos muito esperados e que tem grande participação da comunidade LGBT da região. Um dos concursos foi organizado na discoteca Scandalos Dance, localizada na avenida da Amizade, um dos principais espaços dançantes frequentados por LGBTs.
Fugas da noite (e do dia) A Scandalos Dance, em Tabatinga, sempre organiza shows de bandas durante os finais de semana dos mais variados estilos musicais: funk, funknejo, forró, pagode, brega, boi, eletrônico, etc. Nesta boate, democraticamente, circulam militares, solteiros e casados, professores universitários, servidores públicos, trabalhadores de diferentes ocupações, entre eles nossas interlocutoras trans cabelereiras e cozinheiras. Em frente à Scandalos localiza-se uma pequena praça, que é o principal ponto de encontro LGBT de Tabatinga. Nesta praça, travestis e mulheres trans brasileiras também podem encontrar com homens e estabelecer relações afetivo-sexuais. Foi passando a madrugada na Scandalos que Kim, peluquero peruano de Iquitos, se apaixonou por Tabatinga (e por um rapaz). Naquela época, morava em Benjamin Constant e terminou mudando-se para cá há dez anos. Durante as paradas, uma vez ao ano, ele se monta, sobe no salto, põe uma peruca e desfila pelas ruas de Tabatinga chamando a atenção. As relações afetivo-sexuais podem ser mediadas por trocas monetárias, como explica uma interlocutora de José Miguel Olivar: Vamos fazer de conta que tu tá dançando em Scandalos e eu quero transar contigo… Ahhh tá, aí tu chega, né, te aproxima e diz: ‘E aí? Bora prum motel? Vamos ficar juntos? E eu digo: Mas vai pagar? Quanto vai me dar???’ Olha… Eu tinha um amigo que era da Aeronáutica… ele me tratava muito
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Fugas e contrapontos na fronteira bem, era um cara muito legal… sempre me ligava e a gente saia… eu gostava muito dele, e sempre que eu precisava de alguma coisa eu ligava para ele… ele dizia ‘quem gosta, apoia’... (Lívia apud Olivar 2014: 92).
Como revelam as pesquisas de Olivar (2014; 2017), há uma complexa equação entre afeto-sexo-dinheiro que não necessariamente é pensada como prostituição por parte das protagonistas e que, ao mesmo tempo, não a exclui de suas práticas. Há uma miríade de transações que são definidas por diferenças de nacionalidade, raça/etnia, geração, identidade de gênero, orientação sexual, entre outras. Como o autor demonstra, jovens gays e travestis brasileiras divertem-se à noite em busca de dinheiro e aventuras sexuais, fazem “babado”, ou seja, estão dispostos(as) a encontrar e fazer sexo com homens que possam lhes oferecer dinheiro. Por sua vez, mulheres colombianas fazem “prepago”24, uma prática conhecida na Colômbia que se define por ser uma forma de prostituição não institucionalizada que pode criar relações de endividamento entre mulheres e seus clientes, onde colaboração e pagamento imbricam-se e confundem-se.
Em nossas pesquisas, com relação às jovens chicas trans colombianas, parece haver uma relação ambígua com os homens que encontram por la noche. Durante os finais de semana, Venus e Carolina saem para caçar em um bar em uma das principais avenidas do centro da cidade e lá se encontram com outras chicas trans e com homens, com os quais fazem sexo, se divertem, dançam e, por vezes, recebem dinheiro em troca. Estes homens, muitas vezes senhores adultos, não estão interessados em se relacionar com “mujer, mujer” mas com mulheres com pênis que podem lhes oferecer outras relações sexuais. Como nos explica Venus, “eles sonham com uma mulher que os penetrem”. As chicas trans que buscam estes encontros não se veem, de modo algum, como prostitutas, mas isto não significa que os homens nãos lhes ofereçam dinheiro e que elas não aceitem.... Nosotras no salimos a vendernos. Salimos a bailar, a disfrutar, ahora, si…. ¿Cuánto vale? Ahí una va porque le gusta, no porque le va a pagar. Si no hay más plata, salimos a cazar unos por ahí. Busco señores, miro que calidad de señor es; dependiendo, pues me voy (Venus, Letícia, maio de 2017)25.
24 “'Prepago' es una categoria colombiana sobre género, sexo y dinero, directamente asociada a la prostitución (mujeres prepago), que indica una forma de relación que no passa por la institucionalización y territorializacioón de la prostitución regularizada, sino por formas de contacto y de negociación más fluidas y que se apoyan en instrumentos como internet, celulares, redes sociales, aplicativos de encuentros” (Olivar 2017: 12). 25 Nós não saíamos para nos vender. Saímos para dançar, aproveitar. Agora, “Quanto vale?” Aí uma vai porque gostou não porque ele vai pagar. Se não temos mais dinheiro, saíamos para caçar uns [homens] por aí. Procuro senhores, olho que qualidade de senhor é e, dependendo, saio com ele” (tradução minha). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Estes bares fazem parte do circuito gay-trans da cidade de Letícia, onde se destacam las trans, que desfilam pelas calçadas arrumadíssimas, com seus tacones (saltos), entram e saem dos bares, ganham bebidas, fazem jogos de sedução com homens que permanecem, mais discretamente, dentro desses espaços, que são estrategicamente organizados com pouca luminosidade, e vão disputando as aceitações das meninas. São elas que decidem com quem vão se relacionar. Nas calçadas, amigos e amigas bebem e conversam, entram e saem do bar, observam quem está chegando e saindo. Neste território, um pedaço gay-trans colombiano26, aglutinam-se pessoas com experiências e estilos de vida distintos, mas que possuem em comum um devir feminino, que pode ser evocado desde um discreto detalhe de uma sobrancelha delineada e marcada até performances afirmadas, com distinção, como trans. Marcia Ochoa (2011), em suas pesquisas sobre transformistas e “chicas de aparencia femenina” na avenida Libertador, em Caracas, na Venezuela, mostra que a ocupação da avenida por trabalhadoras sexuais faz parte da lógica deste espaço urbano, e que a visibilidade trans na cidade está diretamente relacionada ao trabalho sexual nesta avenida. A autora descreve diferentes manejos e estratégias de visibilidade e invisibilidade para, de um lado, atrair homens e, de outro, escapar do controle policial. Uma das mais importantes é “tener pasarela”, uma forma de andar estilizada, performativa, que reorganiza o espaço e a temporalidade para que tudo ao redor possa ser observado por meio de movimentos de ir e vir ao longo da avenida, em pontos estratégicos em que possam ser vistas e, em situação de risco, rapidamente escaparem. Essa forma de andar também se relaciona a toda uma estética nacional feminina relacionada aos concursos de Miss. La pose y la pasarela crea una visibilidad para las transformistas. Les brinda legitimidad social cuando reconocidas como mujeres glamorosas. Y aunque se conoce que las mujeres glamorosas de la avenida Libertador son transformistas, esta postura normaliza su visibilidad dentro de la estética venezolana de belleza y femenidad. (Ochoa 2011: 138)27.
Na tríplice fronteira, num contexto amazônico, tener pasarela e adquirir visibilidade
26 A noção de pedaço “designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade” (Magnani 1998:116). 27 “A pose e a passarela criam uma visibilidade para as transformistas. Elas ganham legitimidade social quando são reconhecidas como mulheres glamourosas. E, embora se reconheça que as mulheres glamourosas da Avenida Libertador sejam transformistas, sua visibilidade se aproxima da estética venezuelana de beleza e feminilidade”. (Ochoa 2011: 138; tradução minha) Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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em lugares públicos estão condicionados a certos territórios, a técnicas corporais adequadas e a formas de lidar com os desejos de outrem.
Se, para as colombianas, o principal ponto de encontro e de “caça de homens” são bares no centro de Letícia, por sua vez, para as peruanas, além dos bares localizados na beira do rio, na feira, a ilha de Santa Rosa, no Peru, é seu principal local de sociabilidade. Santa Rosa de Yavarí é, literalmente, uma ilha peruana, um refúgio que acolhe seus conterrâneos em meio a uma fronteira transnacional na qual os/as peruanos/as encontram-se em uma condição de subalternização. Santa Rosa reúne peruanas e peruanos que migraram para a tríplice fronteira e pode ser considerado como um território multicultural, de encontro e lazer. Também recebe turistas, brasileiros e de outras nacionalidades, que podem desfrutar de alguns pratos típicos, como o tradicional ceviche, e conhecer a música popular peruana.
Quase que religiosamente, todos os domingos, las gays e las trans se dirigem para a pequena ilha para beber e dançar depois de uma longa semana de trabalho. Para chegar à Santa Rosa é preciso pegar um pequeno barco, no porto de Tabatinga, para um curto deslocamento de aproximadamente 15 minutos atravessando um estreito braço do rio Amazonas. O povoado recebe muitos peruanos/as aos domingos que moram do outro lado do rio, e também nas cidades de Benjamin Constant, no Brasil, e Islândia, no Peru. Logo na beira do rio, há algumas barracas de madeira que vendem comidas e bebidas. O clima é festivo. Crianças nadam nas bordas, brincam com o barro. Pessoas vão descendo dos barcos e canoas e já são convidadas a ir para as barracas ou restaurantes, por meio de animadores que as chamam pelos microfones. O transporte, pela pequena ilha, também pode ser feito por motocicletas tricíclicas, as peque peque, adaptadas a um terreno irregular, que podem andar por cima de madeiras que fazem as vezes de “rua” ou “ponte”, dependendo da cheia ou da vazante do rio. As casas são, em sua grande maioria, de madeira e construídas como palafitas, levando-se em conta que, em determinados períodos da cheia do rio, a ilha se torna alagada. A rua principal, a única asfaltada, possui uma serie de restaurantes e quatro hospedarias, além de uma boate “La noche”, que anima as noites da ilha e, por vezes, recebe o Miss Frontera Gay. As músicas altas dos restaurantes, que contratam bandas que tocam músicas típicas do Peru, preenchem a rua principal como se todo o vilarejo estivesse em festa. Muitas vezes, bandas diferentes estão tocando a mesma música, que se repete em tonalidades variadas e vai se propagando pela pequena ilha. Ao final do dia, canoas motorizadas amontoam-se na beira da praia, onde pessoas vão embarcando de volta para Tabatinga e cidades vizinhas. Em Tabatinga, também aos domingos, longe do centro, próximo ao Aeroporto Internacional de Tabatinga e à terra indígena ticuna de Umariaçu, a Comara Casa Show
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atrai um público bastante diversificado, homens, famílias, casais, amigos/as, e oferece espetáculos de música e dança com bandas e cantores/as dos três países. Destacam-se, frequentemente, bailarinas e bailarinos que realizam coreografias sensuais, com poucas vestimentas, embaladas/os por samba, forró, carimbó, axé, brega, pagode, funk, cumbia, salsa, música pop. Fernando, presidente da Asociación Amazonas sin Fronteras, de Letícia, foi um desses bailarinos, apaixonado pela banda Aviões do Forró. Ainda que a dinâmica da Comara esteja marcada por práticas afetivo-sexuais mais heteronormativas, no palco, dançarinos/as podem performatizar coreografias criativas, que sacodem paradigmas das normas reguladoras, celebrando o sexo, a sedução, a nudez, curvas, bundas, genitálias, etc. Dos salões para as calçadas e bares, dos salões para Santa Rosa, passando pela Scandalos ou até pela Comara, há um movimento pendular entre lugares de refúgio e cuidado de si e lugares de visibilidade em espaços públicos fora do “gueto gay-trans”.
Marcas da fronteira plural A partir das descrições etnográficas apresentadas acima, podemos pensar que a transitividade de gênero, corporal e territorial, que se prolifera em abundância, esbarra na nacionalidade e na etnicidade, que são fortes marcadores sociais da diferença, lembrando a presença tanto dos Estados-nação quanto dos povos indígenas na fronteira. Muitas de nossas interlocutoras possuem ascendência indígena, dos lados paterno ou materno. Algumas se identificam como indígenas e saíram de suas comunidades na adolescência por suas famílias não aceitarem suas formas de existência ambíguas, como chicas trans ou travestis ou homossexuais. Outras ainda vivem com suas famílias em bairros periféricos nessa região. É comum também que possuam pais, mães e outros parentes brasileiros, colombianos ou peruanos, evidenciando uma grande heterogeneidade de relações de parentesco e étnico-raciais.
A nacionalidade, que, muitas vezes é performatizada e negociada em diferentes lugares, pode delimitar, para as travestis e mulheres trans, em quais territórios elas podem circular, em quais circuitos de lazer podem se movimentar e que bares podem se divertir e encontrar homens. A etnicidade traz marcas corporais, que as classificam segundo critérios de beleza e feminilidade. Além disso, essas diferenças nacionais e étnicas também evidenciam formas de acesso a políticas públicas nos três países, principalmente a serviços de saúde. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Fugas e contrapontos na fronteira Ellas [as brasileiras] son muy dañosas….ellas no nos dejan por allá. Porque nosotras colombianas tratamos de tener la forma de nos travestir como, un poco, como le llaman atención a las personas. Te va a vestir. “Mira, la chica trans, son tan bonitas, están bien vestidas. Se va a ser mujer que va a ser mujer en todos los sentidos. Saber como caminar. Ellas [as indígenas ticunas] no les importa, con camisa de hombre, como no tienen seguro de lo que quieren ser. Las de Tabatinga hay mucho bonitas. Las brasileras son muy odiosas. Tabatinga es un territorio de ellas. Son problemáticas, envidiosas. Nosotras también somos odiosas, ellas quieren hacer los bares y no los puedo hacer. Porque no vienen, no cruzan. Silvana: ¿Y las peruanas?
Venus: Las peruanas, creo, son más pulidas. Son más normales. No les atacan. Normales con eso. (Venus, Conversa registrada em diário de campo, Letícia, maio de 2017).
Do ponto de vista de uma chica trans colombiana, nota-se uma distinção entre indígenas ticunas, colombianas, brasileiras e peruanas. As ticunas, por apresentarem uma estética mais ambígua e andrógina, não são bem vistas pelas colombianas. Por sua vez, há uma disputa acirrada entre brasileiras e colombianas especialmente no que se refere àocupação dos territórios por onde circulam homens durante a noite.
Em relação às colombianas, observamos que elas são as que possuem menos mobilidade territorial e, geralmente, são naturais da própria cidade de Letícia, originárias de cidades próximas, como Puerto Nariño ou comunidades indígenas da região. Diferentemente das peruanas, que migraram para a tríplice fronteira, ou das brasileiras, que circulam frequentemente entre Tabatinga, Manaus e outras outras regiões do Brasil, as colombianas são as que apresentam processos de maior fixidez. Contudo, possuem o mesmo tipo de ocupação que as peruanas e as brasileiras, são cabeleireiras em salões de beleza, cozinheiras e assistentes de cozinha em restaurantes e também faxineiras. Assim, passam a maior parte de seu tempo em espaços fechados, trabalhando conforme a demanda da clientela, cortando, alisando, pintando cabelos, fazendo barbas, arrumando sobrancelhas, etc. Em seu tempo livre, além dos bares e discotecas, as mais jovens participam de times de futebol e voleibol.
Em relação às transformações corporais, não observamos um único modelo feminino. Há aquelas que realizam intervenções e hormonioterapias, as que já realizaram, mas não se adaptaram à medicação e há as que não pretendem fazê-las e estão, de certo modo, satisfeitas com seus corpos mesmo que eles não se adequem aos padrões normativos de gênero. Como já descrevemos, as experiências de Gilda, Mariana, Valentina, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Martina, Venus, Jennifer, Mónica são muito distintas e percorreram trajetos diversos até chegarem à tríplice fronteira. Algumas buscam uma subjetividade feminina mais definida, outras não se preocupam com categorizações fixas. Não há, portanto, uma preocupação tão recorrente em se identificar como trans, ainda que todas se apresentem por um nome feminino. Algumas gays já experenciaram vivências trans femininas no passado e hoje continuam a se identificar no feminino fazendo uso de vestimentas mais básicas, como camisetas e jeans. Outras gays se montam, ocasionalmente, nas paradas LGBTs e nos reinados e concursos de beleza. Algumas trans fazem questão de se vestirem de forma sexy, com roupas curtas e saltos altos (taconadas), e outras são mais discretas e não procuram demarcar sua identidade de gênero por meio das vestimentas. Mesmo que praticamente todas se vejam no feminino (seriam elas mulheres?), elas fazem questão de se diferenciar das mulheres cisgênero28, que elas chamam de “mujer,
mujer”. Não é uma distinção dualista, como ocorre na classificação entre cis e trans, mas um diferencial que às vezes é posto em evidência, outras vezes não. Este é o caso de Michele, professora doutora de Geografia da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), que mora em Tabatinga e é natural de Manaus. Com 42 anos, há dez passou a assumir a sua transexualidade, mas ela não se identifica como mulher transexual. Ela se vê simplesmente como mulher.
Quando me perguntam se sou homem ou mulher eu respondo “o que você acha?”. O que você achar que eu sou, pronto. Eu não tento, na realidade, que explicar nada para ninguém. [...] Eu, particularmente, não gosto da palavra transexual porque eu não sou transexual, eu sou mulher. Eu tenho orgulho de ser quem eu sou, mulher, ponto. Tem transexual que não quer operar, porque tem relação ativa, e isso pra mim é novo. Será que isso não é travesti? Eu acho que existe uma grande confusão ainda, o que é transexual, quem é transexual, que é homossexual. Eu não gosto de me enquadrar nessa categoria. Eu sou mulher, pronto. Não tenho o que falar. (Michele, entrevista realizada por Silvana Nascimento e Thiago Oliveira, Tabatinga, maio de 2017).
Michele nunca se sentiu gay, apesar de se sentir atraída por homens desde pequena, e foi apenas quando assumiu seu posto como professora na UEA que iniciou seu processo de transição, tardiamente, depois dos 30 anos. Em Tabatinga, apesar da ausência de 28 A expressão cisgênero, que não é usada de forma frequente pelas protagonistas desta pesquisa, refere-se a “pessoas que se idenfiticam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento” (Jesus 2012: 10). Na tríplice fronteira, talvez, o par de oposição cis/trans não pode ser usado de forma generalizada já que as performatividades de gênero trans-gays vão muito além de categorias dualistas. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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profissionais de saúde que atendam pessoas trans e de serviços especializados, passou a fazer uso da hormonioterapia de forma independente, assim como grande parte de outras travestis e mulheres transexuais no Brasil, e aprendeu seu uso compartilhando experiências em grupos de apoio nas redes sociais e comunidades virtuais. Planeja realizar sua cirurgia de redesignação sexual, mas não quer se enquadrar em categorias prescritas dentro do campo da transexualidade. Mesmo no ambiente universitário, sofre preconceitos por parte de seus colegas e utiliza o banheiro masculino, temendo mais discriminações por parte de docentes e estudantes. Como mulher, não performatiza uma feminilidade costumeira como uso de vestidos, saltos e maquiagem e, por vezes, é classificada, por exemplo, como lésbica masculinizada ou como gay. “Uma aluna falou para mim, “eu pensava que você era uma mulher” e eu respondi, “mas eu sou mulher””, conta.
Michele dedica a maior parte de seu tempo à universidade, como coordenadora do curso de graduação em geografia, inclusive durante os finais de semana. Não costuma sair à noite e, por vezes, mantém relações afetivo-sexuais com homens casados. Na verdade, sua rotina limita-se à casa, onde recebe seus casos e afetos, e à UEA. Não sou uma pessoa de festa, de bebida, sou uma pessoa bem fechada. Brinco muito aqui dentro na universidade. Colegas gays, eu tenho pouco porque eu acho que eles não gostam de mim porque parece que eu sou puritana. Mas não é isso. Eu não tô procurando ser destaque de nada. Estou procurando algo que me complete.
Michele vem a somar um seleto grupo de profissionais, dentro do multiverso trans, que alcançou a formação superior e atua como professora doutora universitária no Brasil (grande parte das pessoas travestis e mulheres transexuais abandona os estudos antes do ensino médio) e, talvez, a tríplice fronteira seja um espaço propício para abrigar estas corporeidades dissidentes.
Nesse sentido, há uma diversidade da categoria mulher, que é, necessariamente, plural. Não há uma premência de classificação da identidade de gênero e da orientação sexual tal como encontramos nos movimentos LGBTs. Assim, apostamos na produção de pessoas que manipulam categorias prescritas e possuem uma habilidade em flutuar por entre elas como estratégias de autoafirmação e demarcação de fronteiras que dependem dos contextos observados e das redes que são acionadas por relações de oposição, justaposição, verossimilhança ou mimese. A noção de mimese, aqui, refere-se àquela usada por Michael Taussig: “The wonder of mimesis lies in the copy drawing on Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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the character and power of the original, to the point whereby the representation may even assume that character and that power" (Taussig 1993: xii). Para este autor, a faculdade mimética possibilita que a cópia ganhe o poder do original, e adquira vida própria. Além disso, não se cria simplesmente uma réplica, mas um permanente exercício de tradução. O autor cita em diferentes passagens a frase de Roger Caillois: “he is similar, not similar to something, but just similar”.
Na mesma cadência, com peculiaridades nas escalas e tonalidades de cada voz, performatividades femininas criam práticas, corpos e pessoas que criam similaridades originais. Nesse sentido, gênero pode ser pensado aqui, também, a partir dos referenciais de Marilyn Strathern (2006), como uma relação que contém outras relações – mesmo sexo (same sex), sexo cruzado (cross sex). Nas transitividades de gênero que possuem um devir feminino, as relações same sex podem ser imaginadas entre mulheres trans que, ao estabelecerem trocas e compartilharem conhecimentos sobre si mesmas e suas transformações corporais, produzem um corpo generificado em processo de individuação. Ou seja, por meio de um projeto coletivo, elas se tornam mulher de forma plural para além das definições baseadas na heteronormatividade hegemônica, como mulher, mujer, mujercita, chica trans, gay. As relações cross sex aparecem, então, nos desejos que sentem por homens, que movimentam suas caçadas afetivo-sexuais. Com os homens, mantêm relações de alteridade. Podemos aventar, aqui, que, diferentemente da análise de Simone de Beauvoir (1976), o Outro aqui não é uma mulher. Esta é o espelho de si mesma, uma “outra eu mesma” (Csordas, 2008) que é dada pela experiência intersubjetiva materializada na corporalidade e na performatividade femininas. Nesse sentido, há uma miríade de produções corporais e performances de gênero que compõem o universo trans no Alto Solimões muito mais complexa e diversa quando a comparamos a outras regiões pesquisadas. O complexo urbano da tríplice fronteira reúne a possibilidade de trânsitos de gênero, corporais, materiais e territoriais que se cruzam a mobilidades por espaços urbanos, rurais e indígenas com escalas e características políticas, econômicas, históricas distintas.
Considerações finais Tomando cuidado para não reificar exotizações reproduzidas sobre a Amazônia e seus corpos femininos no senso comum, coincidentemente, ou não, foi em uma área de fronteira onde pudemos encontrar uma pluralidade que não se encaixa necessariamente nas categorias transexualidade, travestilidade e transgeneridade, mas que pode ser
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incorporada no que chamamos de “multiverso trans”, pois enseja uma transitividade de gênero, corporal e territorial. Assim, essas cidades na e da fronteira podem ser compreendidas como lugares estratégicos onde a circulação e a mobilidade se fazem presentes na constituição de uma certa experiência trans, no caso feminina, que se faz no movimento entre corpos, desejos, relações nas beiras e nas margens.
Alejandro Grimson (2003), em suas pesquisas sobre a fronteira Brasil e Argentina, destaca que é necessário observar como a fronteira é reatualizada cotidianamente pelos seus agentes. Para Grimson, a fronteira não é um dado fixo, mas um processo político disputado, que envolve diversos poderes, em diferentes escalas, globais e locais. Nesse processo, constituído como movimento material e simbólico, há uma relação complementar entre fluxos, espaços e populações que compõem o que o autor chama de “zona de fronteira”. E para compreendê-la, então, é preciso apreender as práticas transfronteiriças por meio de redes de relações que atravessam as fronteiras nacionais e estados territoriais, de populações que vivem em ambos os lados da fronteira, de fluxos socioculturais e dos diferentes sentidos de fronteira compartilhados e construídos por diferentes populações, instituições e estados. Além de considerarmos a complexa problemática de processos de fronteirização entre países, como faz Grimson, Michel Agier apresenta a ideia de “situação de fronteira” que pode ser observada em distintas localidades, temporalidades e regiões. La situation de fronteire s´observe sur des lieux, des moments ou des expériences qui mettent en oeuvre une relation avec un “autre”, un sujet extérieur qui franchit ou penetre un espace qui ne lui est pas familier, devenant lui-même le non-familier pour celui qui est la (Agier 2013: 40)29.
Assim, a “situação de fronteira” pretende superar a ideia de limites e muros que separam, ideia esta que reforça movimentos identitários e nacionalistas. Esta noção possibilita valorizar a relação, em detrimento da identidade, e observar de que modo experiências de alteridade em lugares ou circunstâncias são agenciadas e interpretadas. Em nossas pesquisas, nos deparamos com movimentos de pessoas que são vistas como “outras” por um certo padrão corporal e heteronormativo e que se produzem no e pelo deslocamento urbano e corpóreo. São agentes fronteiriços – movimento e margem – que podem atravessar fronteiras entre países, entre cidades e dentro das cidades. Na tríplice fronteira, no Alto Solimões, a fronteira, ainda que provoque processos
29 “A situação da fronteira observa-se a partir de lugares, momentos ou experiências que produzem uma relação com um “outro”, um sujeito exterior que atravessa e penetra um espaço que não lhe é familiar, tornando-se ele mesmo não-familiar para aquele que está lá” (tradução minha).
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de exclusão, possibilita abrigar diferenças que, talvez, em outros contextos, fossem consideradas sem possibilidade de existência. Mesmo que muitas trans e gays assumam a existência de preconceito e discriminação, e também da ocorrência de transfeminicídio e homofobia30, elas buscam esta zona de fronteira para poderem sobreviver em meio às adversidades econômicas em suas cidades de origem e às rupturas com os laços familiares. Nos cruzamentos entre sexos e gêneros, Jennifer, Venus, Carolina, Mónica, Mariana, Valentina, Martina, Gilda, Alexandra, Luiza e tantas outras vivem na tríplice fronteira amazônica de forma plural, e constroem modos de vida por meio de técnicas corporais que tornam belos os mais variados cabelos e corpos e atravessam territórios marcados por diferenças que, ao mesmo tempo, as exaltam e as discriminam. De todo modo, por fim, há uma feliz confluência de diferentes possibilidades de vivência trans que dialogam entre si, de modo transnacional. Os trânsitos, flertes e definições de feminilidades moleculares são materializados em corpos que vivem, constantemente, na fronteira. Viver na fronteira é estar-no-mundo em fronteira. Nesse sentido, o complexo urbano transfronteiriço, el centro y el culo del mundo (Olivar, 2017) que perpassa pueblos, povoados, cidades de pequeno e médio porte (sem contar suas conexões com as capitais Bogotá e Manaus), proporciona modos de ser e viver extraordinários e divergentes, que convergem em zonas de fronteira que se cruzam, se multiplicam, se superpõem e se contrapõem.
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30 Segundo relatório do Grupo Gay da Bahia, de 2016, “a média de assassinatos de LGBT no Brasil é de 1,69 por um milhão de habitantes, sendo que a Região Norte computou quase o dobro: 3,02 para um milhão. [...]. Os estados que notificaram o maior número de LGBT assassinados em termos absolutos foram São Paulo com 49 homicídios, Bahia, 32, Rio de Janeiro, 30 e Amazonas, 28.”. Assim como as demais regiões do Brasil, o Amazonas parece apresentar também um alto índice de violência contra LGBTs, ainda que haja poucas denúncias e registros oficiais tendo em vista a dimensão do estado e sua diversidade étnico-cultural. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Gênero, cuidado e a reconfiguração da fronteira... fronteiras, fronteiras! José Miguel Nieto Olivar Doutor em Antropologia e Professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo
escreve.ze@gmail.com
Resumo Como resultado de pesquisa antropológica baseada na porção brasileira da cidade transfronteiriça entre o Brasil, o Peru e a Colômbia (Tabatinga, AM), o presente artigo propõe uma reflexão teórico-metodológica sobre fronteiras como objeto de estudo para as ciências sociais, a partir da relação analítica da fronteira com a rede conceitual dos estudos antropológicos do cuidado, do gênero, da sexualidade, do corpo e dos afetos. Busco apresentar a fronteira como uma territorialidade performativamente real, múltipla e desdobrada em – e conectada com – muitos outros lugares, corpos e relações. Tal exercício pode propor ou provocar deslocamentos e afinações que me parecem necessárias nas formas como lidamos com a categoria fronteira, em particular nas suas relações com gênero e com dinâmicas actanciais de produção social. O artigo está baseado na reconfiguração de narrativas em que circuitos de afetos, dinâmicas de cuidado, corpos e fronteiras são articulados para favorecer os deslocamentos buscados. Palavras Chave: gênero; afetos; cuidado; Amazônia; etnografia. Abstract As a result of anthropological research based on the Brazilian part of the transborder city between Brazil, Peru and Colombia (Tabatinga, AM), this article proposes a theoreticalmethodological reflection on borderlands as an object of study for the social sciences. It is done through the analytic relationship of the border with the conceptual network of anthropological studies of care, gender, sexuality, body and affections. This article is part of a larger exercise in which I seek to present the border as a performatively real territoriality, multiple and unfolded in - and connected with - many other places,
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bodies and relations. I have the idea that such an exercise can propose or cause some displacements and some adjustments that seem necessary to me in the way we deal with the category border, particularly in its relations with gender and with dynamics of social production. The article is based on the reconfiguration of narratives in which circuits of affection, care dynamics, embodiment processes, and borders are articulated to favor the desired displacements. Key-words: gender; affect; care; Amazon; ethnography. Agradecimentos Esse artigo é resultado de vários afetos, diálogos e leituras. Primeiras versões foram apresentadas em forma de palestras na UFAM e na Universidad Complutense de Madrid, em 2016, e na UFMS em 2017. Agradeço a Fábio Candotti, María Lois e Guilherme Passamani pelo espaço de reflexão e discussão. Lindomar Albuquerque (UNIFESP), Yohana Pantevis (Universidad Nacional de Colombia) e Luz Gabriela Arango (Escuela de Género, UNal), leram e comentaram detalhadamente uma versão preliminar, agradeço enormemente o apoio e as ideias. Agradeço a Flávia Melo, companheira de trabalho de anos, pelas intensas reflexões sobre gênero, estado e fronteiras amazônicas; também a Sabrina Finamori (UFMG) pela ideia de articular minha pesquisa com as formas do cuidado. Finalmente, às mulheres do Núcleo de Estudos de Gênero, PAGU, nicho institucional-afetivo onde tudo isso foi possível. A Luz Gabriela Arango, in memoriam.
Cuidado em terras inóspitas e salvajes Começo com uma história.
Quando Socorro contou chorando a Cauã, seu amigo, que o dono do local do restaurante lhe pedira para sair no prazo de 15 dias, Cauã, furioso, se ofereceu para ir e falar com o dono, um grande comerciante local, porque “ele nos deve alguns favores”. Não era a primeira vez que seus “bebés” lhe ofereciam sua ajuda e proteção. Contudo, dessa última vez, ela, entendendo a dimensão dos favores e dívidas, e os conteúdos dos negócios, preferiu negar o oferecimento. Aceitou, na sua lógica, a vontade de Deus, e se preparou para desmanchar, em duas semanas, o projeto que construíra em quase 10 anos. Nas suas últimas semanas em Tabatinga, antes de finalmente ir embora para sua terra
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natal, Cauã, junto a um outro “bebé”, algumas pessoas da igreja e a mim, fomos as pessoas que acompanhamos emocional e logisticamente sua despedida.
Nos últimos anos, Socorro cuidou do Cauã como de um filho, tendo como eixo da relação o restaurante dela e, portanto, a alimentação. Mas não só. Socorro teve todos aqueles anos uma empregada com quem construiu uma clássica, tensa e hierárquica relação de afeto, cuidado, trabalho doméstico, “quase” maternidade e ambiguidades econômicas: a Flor. Flor trabalhou como garçonete no restaurante, como cozinheira e, em alguns tempos, como administradora. Ela era jovem e muito desejada pelos homens que frequentavam o restaurante. E Flor namorou o Cauã. Foi uma relação forte, intensa e tormentosa, e foi nesse contexto que Cauã e Socorro se fizeram mais amigos. “Civilizando” a Flor, de início ela torceu a favor da relação, pois para ela Cauã encarnava a possibilidade da Flor deixar de ser “tan índia”, “salvaje” e melhorar de vida. Ela favorecia encontros, mediava brigas, aconselhava a Flor a polir suas maneiras. Mas a relação foi mudando, e Socorro passou mais a cuidar dele. Inclusive, cuidou o Cauã das fúrias, “salvajadas” e “brujerías” da Flor. Enquanto a amizade e confiança com Cauã cresciam, a relação com Flor se fazia de maior distância e desconfiança. Nos últimos tempos da vida da Socorro em Tabatinga, ela suspeitou que a Flor e sua mãe (numa comunidade “indígena” distante) estavam lhe fazendo algum “trabajo” ou feitiço. Em outubro de 2015 Socorro e eu fomos a Iquitos, no Peru, em busca de uma “bruja” muito recomendada que desvendaria esse mistério. Socorro é peruana, da serra, de muito longe desta fronteira; uma mulher independente e solteira na casa dos 45 anos, não indígena. Ela chegou a Tabatinga sozinha, como parte de um processo de fuga do seu contexto amoroso e familiar local, e depois de uma tentativa fracassada de fazer negócios em Manaus. No seu caminho de barco de Manaus a Iquitos, decidiu soltar a âncora e ficar em Tabatinga: negava-se a voltar a sua terra assim, fracassada, sem nada, e tão rapidamente. Tabatinga era um lugar estratégico, pela facilidade de ficar, de fazer negócios, e pela fundamental presença peruana na configuração social, cultural, econômica e política da cidade. De alguma forma na sua narrativa, essa fronteira é o lugar mais remoto, o último lugar em que ela conseguiria se imaginar. Completamente Brasil (como era o desejo migratório), completamente Peru (sua terra), surpreendentemente Colômbia: o primeiro emprego e o primeiro romance aconteceram em Leticia, no lado colombiano. “Brasil” e “la frontera”, para muitos vizinhos peruanos e colombianos, são referentes massivos de melhor ou mais fácil acesso a dinheiro, de melhores condições de assistência de saúde, de maior liberdade sexual (me dizia una “chiva” -homossexual- peruana), de acesso a terra e a sistemas aparentemente melhores de garantia de direitos. Pontualmente, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Tabatinga, no seu processo de municipalização e urbanização dos últimos 30 anos, materializou essas possibilidades de um Brasil-na-fronteira que para alguns brasileiros resulta ser desigual e excessivamente aberto1. Mas esse não era o caso da Socorro. Ela não era uma migrante pobre buscando serviços e direitos no país relacionalmente melhor estruturado. Ela havia sido empresária com algum sucesso, estava muito bem relacionada na sua cidade e incluso em Lima, e além disso havia herdado algumas terras na recente morte da mãe. Como já disse, como ela me disse andando por Iquitos, ela fugia. E não da lei, do Estado, mas dos efeitos destrutivos da mistura entre “amores indevidos” e malresolvidos, e a moral sexual e de gênero compartilhada.
Como muitos e muitas peruanas em Tabatinga, Socorro entrou no negócio das comidas e depois de alguns anos conseguiu montar um restaurante muito bem sucedido, localizado na principal via da cidade, de conexão transfronteiriça, e muito perto de alguns dos prédios do poder local tabatinguense. Seus principais clientes eram pessoas brancas, brasileiras e colombianas, profissionais da área da saúde e professores universitários, militares do exército, policiais federais, alguns comerciantes colombianos e brasileiros... Principalmente homens e suas famílias. Com eles construiu relações de amizade e cumplicidade, de ajuda mútua e proteção. Aí está o Cauã, seu “bebé”. Homem na casa dos 25 anos, branco, de corpo malhado, do sudeste do Brasil; intenso, sincero, violento e “machista”, nas palavras da Socorro, que também chamava a atenção sobre sua inteligência, sua sagacidade e sobre a ferocidade dos seus preconceitos. Cauã trabalhava como agente federal de segurança pública em Tabatinga. Sua passagem pela cidade, que faz parte da estratégia brasileira de controle policial/militar das fronteiras, das migrações e dos mercados transfronteiriços ilícitos (particularmente tráfico de drogas)(Hirata 2015; Paiva 2016), durou 3 anos, como serviço obrigatório da sua carreira, e implicou uma “indenização” adicional ao seu salário, elevando seus ganhos a algo em torno dos 10.000 reais por mês2. Ele desconfiava dos estrangeiros, detestava peruanos e não escondia esse afeto; em diversas ocasiões chegou a agredir verbalmente a alguns “estrangeiros” durante a realização da burocracia migratória.
Porém, sempre gostou da Socorro, e criou com ela um vínculo de proteção bastante forte. Quando os pais dele foram visita-lo em Tabatinga, ficaram encantados com ela, e a nomearam como a representante da mãe nessa cidade, nessa fronteira, que sentiam como 1 2
Para uma discussão crítica à ideia de migração peruana, e sua relação com “nacionalismo metodológico” com a reprodução de desigualdades e hierarquias nessa fronteira, ver: Olivar, Cunha e Rosa (2015). O pagamento de adicional está previsto na Lei 12.855/2013, sob a denominação de indenização, aos servidores públicos federais situados em localidades estratégicas, vinculadas à prevenção, controle, fiscalização e repressão de delitos transfronteiriços.
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Gênero, cuidado e a reconfiguração da fronteira... fronteiras, fronteiras!
tenebrosa, infernal e muito perigosa.
Essas relações de afeto e cuidado, que incluíram altos oficiais, produziram para ela uma fronteira bastante aberta, e fizeram com que o processo de legalização da presença da Socorro no “Brasil” fosse mais simples, antes da entrada em vigor do acordo Mercosul3. Fizeram com que um casal de amigos peruanos dela pudesse, de maneira
mais fácil, registrar seu filho no Brasil, e assim por diante, contrário a tudo que vemos com as mulheres peruanas que parem na vizinha cidade de Benjamin Constant e que são pesadamente violentadas pelos funcionários da saúde brasileira (Campos 2018). Afinal, o gênero, a classe, a posição de forasteiros mais metropolitanos nestas terras bárbaras, a desconexão dos parentescos de origem, eram cotidianamente tecidos no encontro destes atores, ao redor dos cuidados, da alimentação e da forte suspeita sobre esse lugar. O efeito destes agenciamentos foi a construção de determinadas imagens e relações. A capacidade de múltipla transfronteirização da Socorro implicou para Flor e Cauã o acesso mútuo, regulado por Socorro, a essa particular e libidinal fronteira –fronteira, frente e limite- que cada um era em relação cruzada.
Flor é jovem, divertida e muito atraente. “Porém”, é loretana, quase índia, ribeirinha, com baixa escolaridade, “salvaje” e “sin aspiraciones en la vida”. Ela, muito sedutora, desprezava a todos os homens que chegavam perto, desprezou propostas de casamento, todas elas financeiramente rentáveis, de homens brancos brasileiros e colombianos. O que em certa gramática local compartilhada por suas irmãs e pela própria Socorro, seria um absurdo. Foram vários os integrantes das forças federais de defesa e segurança brasileiras que quiseram namorá-la, casar, leva-la junto. Já nos dias finais do restaurante, nos quais seu futuro econômico aparecia mais incerto, desprezou a proposta de casamento do pai de uma colega do Cauã, fazendeiro no Centro-Oeste do Brasil, que lhe enviava fotos das suas propriedades para seduzi-la. Nesses anos o único homem com quem teve uma relação mais forte e duradoura foi com o Cauã, que, “porque es um tacaño”, odiava a ideia de dar celulares, câmeras fotográficas, caixas de som, perfumes, para seduzi-la. Segundo Socorro, a relação tinha um componente forte e violentamente erótico, de combate, de domesticação mútua. Flor, afinal, era boa parte de tudo aquilo que ele desprezava naquele “cu do mundo”. Ela – a Flor, a tríplice fronteira, Tabatinga, o Peru – foi a fronteira que ele e Socorro buscaram, fantasiaram, odiaram.
Para pessoas como Socorro e Cauã, a fronteira é uma ameaça da qual é preciso se proteger, na qual é preciso tecer fortes vínculos de cuidado. Era a fronteira da macumba, 3
O acordo (Portaria nº 6.975 de 7 de outubro de 2009) foi criado para facilitar a migração entre os países do Mercosul: Brasil, Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai. Peru, Colômbia e Bolívia entraram nesse acordo em 2009. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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dos “índios preguiçosos”, dos “maus modos”, dos nativos que não sabem trabalhar, da enorme distância das capitais. O fantasma dos “confins do humano”, das “charapas ardientes” e das “visitadoras”4. Nessa retórica, o “mito-conceito” da Fronteira (Serje 2005) e sua associação com a produção de medo, é atualizada de maneira persistente e de forma fractalmente geopolítica: mais (perto da linha de, do corpo da) fronteira, mais perigo. “Cidade de fronteira”, “bairro de fronteira”, “na fronteira” (corpos da fronteira, poderíamos pensar seguindo a Anzaldúa (2012)?) podem ser categorias mobilizadas para explicar a variável necessidade de se cuidar ou de estar atento.
Dessa fronteira Cauã é outra dobra, outra versão prática: O Estado, a carne das forças federais de proteção da fronteira. Ele fazia parte de um dos grupos sociais mais cobiçados em Tabatinga em termos de acesso a dinheiro (e a sexo), ele corporificava uma forma-posição bastante privilegiada, comentada e vigiada informalmente pelos e pelas habitantes da cidade. Mas também, como preciosamente mostrou Flor, uma posição semelhante à de missionários religiosos ou altos oficiais do exército: sempre restrita a sua absoluta exterioridade e desconexão. Como dizia uma missionária branca, paulista, da igreja católica, com um sentimento de frustração nos últimos dias dos seus anos em Tabatinga também a final de 2015: “aqui não precisam de nós”.
Fronteiras – gênero – Cuidado O presente artigo propõe uma reflexão teórico-metodológica sobre fronteiras como objeto de estudo para as ciências sociais, a partir da relação analítica da fronteira com a rede conceitual dos estudos antropológicos do cuidado, do gênero, da sexualidade, do corpo e dos afetos. Esse artigo faz parte de um exercício de apresentar a fronteira, a particular fronteira dos meus amores etnográficos dos últimos oito anos, como uma territorialidade performativamente real, múltipla e desdobrada em – e conectada com – muitos outros lugares, corpos e relações5. Tenho a ideia de que tal exercício pode propor ou provocar alguns deslocamentos e algumas afinações que me parecem necessárias 4
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Referências aos trabalhos de José de Souza Martins (1997) e de Angélica Motta (2010), respectivamente, e à novela Pantaleón y las visitadoras, de Vargas Llosa. Entre 2010 e 2017 desenvolvi junto ao Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da Unicamp, uma pesquisa antropológica com base na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, sobre as articulações entre gênero, territórios de fronteira, sexualidade e dinheiro; particularmente sobre os mercados do sexo em contextos amazônicos e transfronteiriços. Realizei mais de 12 meses não contínuos de etnografia com base na porção brasileira da cidade transfronteiriça (Tabatinga, AM), focando em contextos de prostituição e em redes de sexo transacional brasileiras e colombianas (principalmente), e em redes familiares de origem peruana. Além disso habitei etnograficamente a cidade, circulando por âmbitos sociais os mais diversos, com a minha atenção nos focos da pesquisa.
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nas formas como lidamos com a categoria fronteira, em particular nas suas relações com gênero e com dinâmicas actanciais de produção social. Essa espécie de instalação tem incorporado técnicas e materiais sobre os quais falarei mais adiante, e tem tido como recurso empírico privilegiado as articulações entre sexualidade, dinheiro e gênero, especificamente as economias sexuais, a “prostituição” e as políticas que as afetam e que participam ativamente da produção da fronteira e seu governo. Para esse artigo, exploro outros materiais: refiro-me ao cuidado. O foco no cuidado surgiu de uma sugestão da pesquisadora Sabrina Finamori, então pós-doutoranda no Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, num seminário de pesquisa em 2015 nesse Núcleo, no qual apresentei pela primeira vez o projeto Gênero em territórios.... Nessa ocasião, ouvindo-me relatar a história de Socorro, Cauã e Flor, Sabrina sugeriu o caminho dos estudos do cuidado [care], já trilhado por ela (Finamori 2013), como um bom recurso analítico para compreender essa fronteira. Contudo, antes de aprofundar na noção de cuidado, considero importante entender como, através de quais recursos analíticos, estou me aproximando à fronteira (veja também a apresentação desse dossiê). Fronteira, aqui, tem fundamentalmente dois componentes: sua materialidade territorial e sua dimensão mito-conceitual.
Primeiro, nesse trabalho fronteira faz referência a processos territoriais concretos e não a limites entre categorias conceituais, ou a expressões que remetem à marginalidade de práticas de Estado, entre muitos outros usos. Fronteira se refere aqui a duas territorialidades político-administrativas massivamente denominadas assim: fronteiras internacionais e fronteiras internas (“frentes”) – ambas co-produzindo a Amazônia como uma “região”, como uma enorme “fronteira” (Candotti 2017). Nesse sentido, fronteira aqui tem um forte componente êmico que faz referência a processos (Grimson 2003; Zarate 2008) e a dinâmicas (Albuquerque 2010) sociais, históricas e políticas atreladas a determinados territórios e seus habitantes contingentes: esses lugares são chamados de – e vividos como – “fronteiras”, em múltiplos sentidos, por uma enorme diversidade de pessoas que ali habita, que por ali transita, que sobre ali fala, exerce poder, pensa, escreve e mobiliza políticas públicas6. 6
Temos operado, então, um mecanismo culinário de redução para manejar a
Mas essa ideia de fronteira aqui mobilizada foi encontrando nos últimos anos fortes correlatos e relações analíticas e empíricas com outras territorialidades muitas vezes também descritas ou qualificadas como “fronteiras”: me refiro especialmente a regiões centrais de “revitalização” em grandes centros urbanos, a algumas periferias e margens urbanas, e às espacialidades de instituições como prisões. Esse caminho dos estudos de fronteiras, ainda praticamente não explorado na insistente ênfase no transnacional e global que esse campo mantém, emergiu principalmente do diálogo com pesquisadores como Bruna Bumachar (2016), Daniel Hirata (2015; ver também Telles & Hirata 2007), André Guedes (2017) e Taniele Rui (2014). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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fronteira. Isto é, buscamos controlar a potência metafórica e polissêmica da fronteira concentrando – no fogo e no tempo – a sua materialidade territorial, corporal e relacional, no intuito de dar maior relevância às práticas sociais situadas, aos sentidos em jogo, às implicações localizadas destas formas sociais. Reduzir para multiplicar. Por isso evito aqui assumir fronteira como uma metáfora instrumental para falar de mobilidades, e como uma teoria ou uma categoria explicativa, como é comum nos Estudos de Fronteira. Nesse sentido – segundo componente –, a crítica de Serje (2005) aos usos mito-conceituais da noção de fronteira resulta fundamental. No seu livro El revés de la nación, a antropóloga colombiana Margarita Serje se debruça sobre o processo histórico, multidimensional e conceitual de construção dos “territórios selvagens”, das fronteiras e periferias do estado-nação colombiano (em relação com a “América equinoccial”). Esse processo a leva a compreender a forte dimensão mítica, autoreprodutiva e mistificadora do conceito de Fronteira, intimamente ligado à ideia de territórios vazios e de populações selvagens, de ameaças e de riquezas, e à imagem dos “héroes de la Frontera”. A autora mostra como esse sistema imagético sobre a fronteira, que se disfarça de verdades científicas, de quantificações de pobreza e de violência, de descrições exotizadas e erotizadas, e de largas retóricas de periferização da periferia, é atualizada contemporaneamente em termos de políticas públicas, de narrativas midiáticas, de ações humanitaristas, e até de pesquisas sociais que tentam produzir informação sobre os confins da humanidade ou sobre as “resistências” de fronteira. “El concepto de Frontera tiene un efecto reiterativo. Su retórica es especialmente eficaz para naturalizar los supuestos en los que se fundamenta” (ibid: 135). Um mito ao qual está ancorada, de maneira reflexa e espetacular, o projeto nacional, “a Nação” (ibid: 120-138)7.
O problema fundamental com a proposta de Serje é que a ênfase no plano discursivo/ideológico dificulta entender que o mito existe em toda sua práxis e sua eficácia capilar. Para lidar com o problema do mito, Serje (2005) produz uma abordagem,
digamos, desconstrucionista, que tende a desvendar o mito (conceitualizado por ela a partir de autores como Barthes) a partir do controle mais racionalizado e histórico da produção política e epistemológica. A nossa atenção etnográfica na dimensão material e performativa da fronteira nos obriga a tomar distância dessa abordagem. Uma tradição mais antropológica de “mito”, presente em autores como Marshall 7
Seguindo uma literatura brasileira sobre “frentes de expansão” (veja por exemplo o clássico livro de José de Souza Martins (1997) Fronteira, ou a meta-análise de Falhauber (2001), ou a investigação histórica de Galetti (2012)), bem como acompanhando o revigoramento nos últimos 8 ou 10 anos das preocupações brasileiras com suas fronteiras internacionais e com a Amazônia como uma grande fronteira interna e internacional (Hirata 2015), podemos entender que as análises de Serje resultam perfeitamente úteis para o Brasil.
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Sahlins (1985) ou Michael Taussig (1993), está associada a estruturas sociais de conhecimento e de sentido, às condições de possibilidade da história e, por isso, às condições sociais de produção de verdade e de existência em determinados âmbitos sociais. Em termos de Taussig (1993):
Aqui o mito não é “explicado” para que possa ser “dispensado”, como se da nas lastimáveis tentativas das ciências sociais. Em vez disso ele é brandido como algo que você precisa tentar por si mesmo, aprofundando cada vez mais seu caminho no coração das trevas, até você sentir de verdade o que está em jogo: a loucura da paixão. Isto é muito diverso de fazer reflexões morais do lado de fora ou de expor as contradições que ocorrem, como se o tipo de conhecimento com que nos preocupamos de certa forma não fosse o poder e o conhecimento possuídos por uma pessoa e, por tanto, imunes a tais procedimentos. A dimensão artística da política presente na subversão mítica do mito precisa implicar um mergulho profundo no naturalismo mítico do inconsciente político da época. (: 32)
Em termos de Sahlins (1986), a realidade mítica existe nos “esquemas conceituais”, nas conjunturas sociais, nos corpos e ações práticas das culturas e seus sujeitos, e é permanentemente atualizada nestas práticas. E é justamente nessa práxis que, como afirma o autor, toda estrutura mítica-conceitual é colocada em risco.
Há um movimento constante entre a dimensão mito-conceitual assim reformulada, e a materialidade actancial, empírica, territorial e corporal da fronteira. É nesse sentido que o gênero, os afetos, a etnografia, o cotidiano, as narrativas fazem sentido e se encontram. Pontualmente, como conectora, a noção de performatividade resulta especialmente útil. Performatividade, em Butler (1998[1990]), diz respeito à prática e à ação (“repetición estilizada de actos”) que tem como base e efeito a materialidade do corpo (ou de instituições ou espaços). Permito-me aqui projetar holograficamente a noção butleriana de atos performativos sobre as questões de compreensão da fronteira. Assim, entre gênero e fronteira (não é acaso o gênero um dos mais primários mecanismos de fronteirização da experiência social?), entre corpo e território como materialidades, podemos forjar um jogo de transparências: En este sentido, el género no es, de ninguna manera, una identidade estable; tampoco es el locus operativo de donde procederían los diferentes actos; más bien, es una identidade debilmente constituida en el tiempo: una identidad instituida por una repetición estilizada de actos. Más aún, el género, al ser Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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José Miguel Nieto Olivar instituido por la estilización del cuerpo, debe ser entendido como la manera mundana en que los gestos corporales, los movimientos y las normas de todo tipo, constituyen la ilusión de un yo generizado permanente. (Butler 1998 [1990]: 296-297)
Essas repetições, essa identidade debilmente instituída do gênero/fronteira, essas estilizações do corpo/território, não são efeito da vontade espontânea de sujeitos individuais, e nem carecem de histórias, normas, esquemas ou estruturas que orientem as formas, os ritmos, as possibilidades das repetições. Na verdade, trata-se de toda uma outra ontologia dos gerúndios e dos vínculos fenomenológicos (Butler 1998), das co-dependências e precariedades (Butler 2010) e das dinâmicas regulatórias do gênero enquanto norma/mito-conceito (Butler 2004), que produzem as materialidades corporais/territoriais como sistemas contínuos, históricos e normativos de atos.
A fronteira, assim, seria o efeito reiterativo de atos e normas em relação, de materialidades de todo tipo em relação (corpos, dinheiros, documentos, instituições, projetos econômicos, intervenções sobre a terra, dinâmicas fluviais, etc) de encenações espetaculares e cotidianas em que a nação, a cultura, a fronteira, o lugar, a língua, a moeda, “a pena e o perigo” (Melo 2017), se atualizam eficazmente na aparência de naturalidade, de obviedade... ou de capacidade explicativa. É nessa lógica estética de montagens sociais que gênero tem sido um dispositivo fértil de reorganização de vínculos e de conceitualizações. Porém, como tem sido avaliado em leituras internacionais, gênero é um recurso escassamente usado e pobremente articulado, nos estudos sobre territórios de fronteiras (Segura & Zavella 2008; Collins 2016)8. Vejamos.
Se retomamos a ideia da fronteira como mito-conceito, vemos como todo esse sistema mito-conceitual se potencializa quando prestamos atenção à articulação entre gênero e territórios de fronteira (especialmente amazônicos), central na formulação do nosso problema teórico, e que evidentemente escapa às análises de Serje9. Abordagens
conectando gênero e territórios de fronteira no Brasil, principalmente no que tem a ver com os recortes empíricos desta pesquisa, estão fortemente marcadas por um imaginário
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De mais de 250 trabalhos brasileiros de ciências sociais revisados (entre artigos, livros, tccs, dissertações e teses sobre – territórios de – “fronteira”) por Terassi (2016), Carneiro (2017) e Victor (2017), menos do 10% faziam alguma relação a questões de gênero/mulheres e territórios de fronteiras, sendo que, em termos analíticos, essa relação era quase inexistente nos trabalhos analisados. A pesar de que no seu trabalho Serje (2005) dá pistas suficientes para pensar a produção mito-conceitual da Fronteira como um agenciamento masculino e como um processo importante de produção, expansão e embate de gênero, essa autora não se detêm analiticamente sobre isso.
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vinculado ao sistema civilização-e-barbárie, várias vezes traduzido em termos de violências sexuais e de gênero contra mulheres e meninas nativas atreladas a processos de fronteirização (Martins 1997), ou à caraterísticas explicita ou implicitamente tomadas como “culturais” ou “históricas” da região amazônica (Torres & Oliveira 2012, entre outros). Essas perspectivas tendem a reproduzir a imagem das mulheres fronteiriças, amazônicas ou indígenas como agentes passivos e vitimados (ou então imensas guerreiras), e a cristalizar as relações de gênero na matriz colonial de dominação. Por esse caminho, todo um universo de princípios e relações de gênero, atravessado pela história e a organização social amazônica, que não apenas diz respeito a mulheres nem a dominação/violência, é deixado de lado. Destino semelhante têm práticas e dinâmicas sociais e agenciamentos cotidianos e corriqueiros, ambíguos, contraditórios marcados por gênero e por lógicas de socialidade muito compartilhadas regionalmente (como as mobilidades, a construção social das gerações, as relações com a sexualidade, as relações de troca econômicas, etc)10. Segura & Zavella (2008), na apresentação do dossiê Gendered Borderlands sugerem que “um projeto feminista de fronteiras [feminist borderlands Project] interroga os múltiplos sentidos dos limites e das fronteiras [borders and borderlans]”, e nesse exercício propõem
quatro dimensões de análise: estrutural, discursiva, interacional e agentic (actancial) (: 539). Elas seguem uma tradição chicana/norteamericana de “teoria de fronteiras” muito inspirada por Glória Anzaldua (2012[1987]), que rompera com as visões mais geopolíticas ou sociológicas, e está construída na chave da “cultura”, da identidade, das resistências e hibridações, das sexualidades “transgressivas”, e da semiótica, com forte base disciplinar nos Estudos Culturais e na Crítica Literária.
Se bem a proposta do nosso projeto vai ao encontro do espírito da crítica feminista, o faz por caminhos teóricos e metodológicos diferentes ao exposto por Segura & Zavella. Teoricamente, a abordagem que estamos propondo é outra: está fortemente influenciada pelo que é chamado de “virada ontológica” dos anos 80/90 na antropologia, mobilizada por mulheres e por críticas teóricas feministas (Strathern 2006 [1990]; Butler 1990; Haraway 1991), além de por outros aportes dos enlaçamentos entre antropologia, história e narrativa (Sahlins 1985; Taussig 1993; McClintock 2010; Das 2007). Ou seja, como na reconfiguração generificada, libidinal e afetiva que Perlongher (1987) propôs do centro de São Paulo, construímos uma instalação desde o gênero; uma instalação na qual gênero não é apenas um tema, uma questão a ser observada, e nem propriamente uma categoria
10
Veja como contra-exemplo o trabalho de Angélica Motta (2010).
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analítica, mas, como potência de certos feminismos, é uma forte correnteza capaz de liberar energias e conexões novas ou esquecidas.
Esse repertório teórico-político possibilita uma abordagem que está mais interessada nas relações e nas práticas de fabricação social do mundo, das desigualdades, diferenciações e distinções, de materialidades e imaginações múltiplas e conectadas parcialmente - inclusive das materialidades do Estado (Vianna & Lowenkron 2017; Olivar 2015) -, das complexidades relacionais da violência e dos desejos (Gregori 2003), do que na lógica do significado, da dominação sine qua non, e das distinções entre simbólico e material, estrutural e discursivo, literal e metafórico, entre outras (Wagner 2010).
Por fim, junto com Flávia Melo (Olivar & Melo 2018) temos pensado a fronteira como um agenciamento de gênero; isto é, colocando o gênero não apenas como um efeito (tipicamente negativo) dos processos de fronteirização, mas como um mobilizador dos estilos fortemente estetizados de produção de fronteiras (amazônicas), que entra em relação com discursividades nacionais e transnacionais sobre “mulheres” e sobre formas de governamentalidade (Melo 2017). Gênero poderia funcionar como uma chave para ler, também, as múltiplas disputas e embates, as formas minúsculas e paradoxais de contrafronteirização, de apropriação e devoração da fronteira em termos de gênero por parte de agentes locais (Olivar 2018). Por esse caminho, chegamos ao cuidado.
Pesquisas sobre “cuidado” [care] têm se preocupado com os “trabalhos e mercados do cuidado”, com as economias globais do care, e costumam estar marcadas por gênero (feminino). A literatura sobre trabalho do cuidado tem sido produzida no marco de preocupações feministas e de gênero com as dimensões simbólicas, econômicas, políticas e jurídicas de tais trabalhos nas vidas das mulheres (principalmente cuidadoras pobres, racializadas ou do sul global) e no marco de relações transnacionais. Na elaboração clássica de Joan Tronto (1993), no marco de uma crítica à generificação moral e estratégica da labor de cuidar, o cuidado é compreendido como:
...as a species activity that includes everything that we do to maintain, continue and repair our ‘world’ so that we can live in it as well as possible. That world include our bodies, our selves, and our environment, all of which we seek to interweave in a complex, life-sustaining web. (1993: 103)11.
11 Para reelaborações mais recentes das propostas de Tronto, ver Debert e Hirata (2016). Outro caminho, mais descolado das discussões feministas e mais próximo das questões da antropologia da saúde, é proposto por Mol (2008). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Para a socióloga e feminista colombiana Luz Gabriela Arango, em comunicação pessoal via e-mail:
Esta definición amplia de cuidado permite seguir variadas pistas y profundizar en los significados situados, ambivalentes y polisémicos del cuidado, de las prácticas y relaciones que se tejen en torno a este y de la forma como el cuidado teje otras relaciones, instituciones y “mundos”.
Implica una visión de la vulnerabilidad y la interdependencia humana, de las redes complejas de cuidado que sostienen la vida, como hechos universales (materializados en configuraciones sociales históricas muy diversas por supuesto) que rompe con la idea del cuidado como actividad realizada por personas “válidas” sobre personas dependientes. Incluye el cuidado del entorno: medio ambiente, objetos, lugares y seres vivos no humanos12.
Então essa compreensão de cuidado tem a vantagem de abrir a categoria e colocar, a princípio, em segundo plano a ênfase na carência e nas limitações físicas e vitais como mobilizadoras do cuidado. As razões do cuidado passam assim de uma evidência excepcional e localizada de carência para, talvez, uma noção mais ampla e mais relacional de precariedade (Butler 2010) ou da práxis relacional, sócio-técnica, através da qual o “mundo” se faz possível (Mol 2008). Política, economia, Estado e cuidado (Lima 2016) encontram-se em planos diversos como recursos cruzados de governamentalidade e sustentabilidade em contextos imaginados como “em crise”, como fronteiras, etc..
O que resulta interessante no nosso estudo é ver como esses cruzamentos podem tomar sentidos diversos, inclusive opostos, e como esses sentidos, na materialidade de corpos e relações específicas, de desejos e de estilos de gênero, agem para a produção de ditas imaginações territorializantes. Mais ainda, como veremos na continuação, a ideia de pensar cuidado apenas no sentido da proteção generificada, da mercantilização etnicizada de trabalhos do care, resulta rapidamente sufocada pelos dados de campo. O cuidado e a fronteira, o cuidado na fronteira, se multiplicam. E, em alguns casos, a própria materialidade da fronteira torna-se objeto de cuidado, provocando interessantes desvios
12 Esse artigo tornou-se um diálogo e, depois, uma homenagem a Luz Gabriela, a quem tive a sorte de conhecer em Campinas. A sua singeleza, firmeza política e capacidade de escuta atenta e carinhosa foram fundamentais para mim em momentos de muita dificuldade pessoal. Assim nos tornamos amigos, dividimos espaços de trabalho e conversamos longamente em Campinas, São Paulo, San Juan de Puerto Rico e Bogotá. Ela leu e comentou com generosidade uma versão preliminar desse texto, me ajudando a compreender melhor as questões do cuidado, atrevimento meu e expertise dela. Mantenho aqui um trecho literal da sua comunicação para explicitar e compartilhar um pouco da sua clareza mental e da sua contribuição. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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tanto nas discussões mais convencionais sobre cuidado, como sobre as estabilizadas formas de imaginar a fronteira. Vejamos.
Cuidar a fronteira; ser (d)a fronteira Nessa narrativa derradeira conecto duas perspectivas-da-fronteira que me servem como contraponto para reforçar os argumentos e as possibilidades de investigação abertas até agora.
Como Cauã, o sr. Reyes chegou aqui sendo homem jovem e solteiro, como parte de uma estratégia nacional de defesa e produção militar/policial e masculina das fronteiras. Mas sua trajetória e posição era, foi e é absolutamente diferente. Ele era soldado da marinha colombiana nos anos 70 quando foi enviado ao Trapécio Amazônico no então ainda incipiente projeto de vigiar a soberania nacional e de reprimir o contrabando fluvial. O departamento de Amazonas era um territorio nacional, Leticia “era un pueblo”, e Tabatinga estava em plena construção, ainda precária e dependente do Município de Benjamin Constant13. Reyes, o soldado raso da marinha, era um jovem camponês do interior do país, empobrecido e com uma trajetória infantil e adolescente de desamparos, errâncias, aventuras e experiências de trabalho impossíveis de descrever aqui. De forma análoga, o Estado colombiano daqueles tempos e naquele lugar não era o brasileiro, e nem o colombiano de hoje. A marca da narrativa de Reyes, inclusive como soldado da marinha, é a pobreza e a precariedade. Em absoluta oposição a Cauã.
Em setembro de 2015 Lindomar Albuquerque, Luiz Fábio Paiva e eu conhecemos o sr. Reyes enquanto fazíamos uma caminhada etnográfica pela linha de fronteira entre Tabatinga e Leticia. O sr. Reyes estava sozinho, tranquilo, capinando a grama e cuidando de uma pequena horta entre o muro da sua casa e a margem brasileira da linha fronteiriça, antes do sol começar a arder. O sr. Reyes nos contou como “yo cuido mi frontera” e, quiçá imaginando que três doutores de três universidades grandes do Brasil teriam algum poder político, expressou um desejo profundo: “quiero que me adjudiquen estas tierras para cuidar la frontera”. A fronteira ali, aquela que o sr. Reyes cuida, é aquele espaço de costas às casas e às próprias cidades, onde a linha (a mesma do mapa) vai ganhando sua forma mais delgada,
13 A afirmação da soberania colombiana a partir de Leticia começou em firme somente depois da ratificação do Tratado Salomón-Lozano, assinado em 1932 no Rio de Janeiro, no qual o Peru entrega tal território à Colômbia. Tabatinga ganha emancipação municipal em 1983, e é justamente entre o final da década de 70 e o início dos anos 80, coincidindo com a municipalização de Tabatinga e com a “bonanza” do tráfico de cocaína a partir de Leticia, que estas cidades tem sua explosão urbana e sua conurbação (Aponte 2011). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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sua capacidade de ser indicada com um dedo sobre a grama. Um micro-território que é imaginado sem lei nem dono (o mesmo do mito) a poucos metros do rebuliço urbano do principal passo de fronteira entre Tabatinga e Leticia: a dobradiça das avenidas da Amizade e Internacional. A fronteira é terra de colono; espaço delicado a ser limpado, cuidado, cultivado, habitado. Por isso é ele que cuida da fronteira, perante o que descreve como a negligência das prefeituras, polícias e ministérios das relações exteriores. Foi ele que ajudou a pintar os marcos daquele branco reluzente, ele que jogou abaixo um coqueiro e um matagal entre o muro da sua casa e a linha de fronteira no qual apareciam cadáveres, e “bandidos se drogavam, transavam e estupravam”. A fronteira nacional é então uma margem moral e estética que, nessa lógica, precisa ser cuidada e protegida.
Essa casa, aliás, materializa um outro processo histórico em pequena escala: o processo de trânsito e transformação da experiência de colonização de territórios “selvagens” para o de regulação e cuidado de trânsitos e permanências transfronteiriças. Explico-me. Após aquele primeiro encontro, voltei a visita-lo uma e outras vezes. Da primeira vez fiz o mesmo caminho e cheguei na porta da sua casa pela linha. Algumas mulheres com aspecto indígena lavavam roupas e cuidavam de crianças. Em espanhol de sotaque peruano me indicaram que a casa do Reyes é do outro lado, mas que podia passar por aqui. Entrei. Um corredorzinho estreito, meio escuro, com várias portas de quartos ao lado esquerdo, que, da linha de fronteira, me levou até a parte da frente da casa, já propriamente em Tabatinga. Ali estava ele com sua mulher, descansando embaixo da sombra de uma mangueira. A casa, pois, como as casas vizinhas, dava as costas para a fronteira. Após o seu serviço na marinha colombiana, no final dos anos 70, Reyes, novamente empobrecido, com uma mulher e um filho para sustentar, conseguiu através de arranjos econômicos e comerciais adquirir essa casa. Era uma casinha meio caindo aos pedaços, perto do cemitério de Tabatinga, numa rua que ainda não era asfaltada e da qual se falava ser muito perigosa, entre outras razões, pela sua proximidade com “a fronteira”. Parte das razoes pelas quais conseguiu a casa é que ela fora tomada por “bandidos”, “por drogados”, que a usavam como refúgio e como passo camuflado de um país a outro. O dono queria se desfazer da casa. Reyes conta, em uma narrativa cheia de detalhes omitidos, que foi com a ajuda da Polícia Federal da época, “porque yo estaba legal y le caí bien al Delegado”, que conseguiu ocupar a casa, expulsar os moradores, e começar o processo ainda inacabado de melhorar a infraestrutura para alugar os quartos. Desde essa posição, então, podia aproveitar para cuidar da fronteira; para roçar, ampliar sua horta, mantê-la bonita e segura, e assim evitar que terminasse sendo o micro-território produzido pelo lixo que as Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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pessoas jogavam ali, pelos certos cadáveres que apareciam, pelas práticas dos “bandidos”. Com suas próprias mãos, em aliança sub-reptícia com o Estado brasileiro e em companhia da sua esposa peruana (vemos então os pontos de conexão com Cauã+Socorro), Reyes transforma-se afetivamente num agente de gestão, cuidado e proteção da fronteira. Diferentemente de Cauã e da Socorro, o sr. Reyes não considera esse lugar “o cu do mundo” (no sentido de pensar o cu como algo ruim e associado ao fim) do qual deve, fundamentalmente, cuidar-se enquanto não chega a hora de ir embora para algum lugar melhor como São Paulo, Bogotá, Lima ou Estados Unidos. Como Cauã e Socorro, Reyes também mantém um certo discurso de colon(izador)o que retoma os velhos giros sobre a preguiça dos locais, sobre a capacidade predatória dos peruanos, sobre a mestiçagem, etc.; ele também fala dos muitos mortos do narcotráfico, dos “bandidos”, da violência. Porém, quiçá por ele ser aquele menino camponês sozinho e perdido nas montanhas colombianas, para ele nada disso parece endógeno e nem um motivo para sentir repulsa pelo lugar. Para ele a fronteira, a área fronteiriça, as cidades de fronteira, a linha de fronteira e as terras e plantas que ali crescem, são seu lar, o local em que escolheu viver. O lugar que leva mais de 40 anos conhecendo em detalhe, que descreve geográfica, histórica e relacionalmente com a mesma precisão que sua terra natal, que ajuda a cuidar e a regular. Uma forte cumplicidade com o local e a terra; uma desigual relação com as gentes da fronteira enquanto se torna cuidador dela. Então é preciso realizar mais uma torção para intensificar a potência do cuidado.
Sentados em Santa Rosa (Peru), no meio do rio, e aproveitando para beber a boa cerveja Cusqueña difícil de conseguir em Tabatinga e em Leticia, Cecília me explica que “la frontera no existe”. Na sua explicação, a fronteira, aquele limite e obstáculo, aquele lugar temido, desaparece na prática, nas relações (e nas genealogias, disse eu) das pessoas que cotidiana e capilarmente habitam esse complexo urbano transfronteiriço. Ela se refere a como essa imagem de fronteira se desmancha na circulação, nas porosidades, no “contornamento” (Haesbaert 2011), no conhecimento empírico do saber viver aqui. Sua afirmação é uma provocação, mas não é uma irrealidade.
Cervejas à frente Cecília me mostra no seu celular dezenas de fotos da sua mais recente viagem de trabalho na região fronteiriça da Colômbia com a Venezuela (e próxima à tríplice fronteira com o Brasil), no rio Negro, departamento colombiano de Guainía. Eram fotos dela com muitas pessoas de diversas comunidades de lado e lado do rio, fotos de oficinas nessas comunidades, fotos de barquinhos encarando a selva, fotos de cervejas colombianas e cervejas venezuelanas, de painéis solares em escolas públicas, etc. De igual forma, me contava entusiasmada sobre o trabalho de oficinas de “produção de conteúdo” Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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desde a fronteira, que vem desenvolvendo em parceria com o Ministério da Cultura de Colômbia. Cecília é leticiana, de pele escura e cabelos pretos e encaracolados, filha de migrantes colombianos comerciantes que desde pequena a estimularam a estudar para que não ficasse “sin futuro” - o que eles imaginavam seria o normal naquele lugar -, graduada, mestre e doutoranda da maior universidade do país: ela representava o Ministério das Relações Exteriores da Colômbia na Amazônia através de um plano institucional cujo objetivo era “realizar proyectos de inversión en zonas de frontera...”.
Desde essa posição ela corporifica e ativamente produz uma estratégia absolutamente diferente de produção governamental da fronteira. Isto é: ela não é homem, nem militar, nem policial, nem missionária de igreja nenhuma, nem branca, nem veio de fora para vigiar, defender, legislar ou civilizar essa fronteira, e esperar com ansiedade o momento de ir embora14. Parte da sua estratégia é se afirmar como mulher e “paisana”,
“bien paisanita”: aquela categoria êmica colombiana, amazônica, de localidade, oposta aos que viemos e somos de fora - principalmente brancos e das capitais -, através da qual se marca o forte pertencimento corporal, genealógico e cultural à região (índio, mas não só; caboclo, poderia se pensar em brasileiro, mas não só). E como “paisana” da fronteira sua rede de parentesco, afetos e desejos se desdobra no Brasil, no Peru e em algumas terras e corpos indígenas. Ela, como Cauã, como Reyes no seu tempo, corporifica e representa o Estado. Mas seu interesse é radicalmente outro: que as políticas foquem no melhoramento das condições materiais de vida das populações fronteiriças, no cuidado dessa fronteira pela que sente tanto carinho, para além das necessidades de transformar toda essa vitalidade transfronteiriça em normatividades e “harmonizações”.
A fronteira aqui é o lugar de origem, ao qual se pertence e o qual, corporal e coletivamente, se é. A fronteira é o povo que habita a fronteira e do qual se faz parte. Antes que uma marca de transnacionalismo ou cosmopolitismo transfronteiriço e contracultural, antes que uma marca de transações comerciais e de formas marginais do Estado, fronteira aqui é, novamente, um centro-do-mundo, o lugar da experiência da “paisana” (por sua vez tão distante da mestiza Anzaldua).
Através do sr. Reyes e a Cecília vemos que “a fronteira”, antes que constituir um agente do qual é preciso se cuidar, constitui um objeto material e social de carinho que precisa cuidado, conhecimento e trabalho. Cuidar das sociedades que habitam a fronteira, cuidar do terreno pelo qual passa a fronteira para que possa ser habitado. Cuidado tanto com relação aos “bandidos” e aos vizinhos descuidados, como com relação aos ímpetos
14 Cecilia, como é comum na Colômbia, não tinha um contrato laboral como funcionária do Ministério, mas era “contratista”, prestadora de serviços como “assessora regional”, com um pagamento mensal próximo aos U$800.
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econômicos, de controle e de regulação - incluso pela retórica do medo - dos Estados nacionais. No sentido dessa forte sensação de localidade, “ser da fronteira” constituise numa condição que, ao mesmo tempo, atualiza e despedaça o “mito-conceito” de a fronteira (Serje 2005), pois a afecção pelo medo ou pelo desamparo como recurso político é substituída por uma elaboração complexa de carinhos, pertencimentos, regulações e inversões (o desamparo habita fora da fronteira)15.
Algumas considerações finais As duas narrativas apresentadas reconfiguram um coletivo de relações, de corpos e posições, de experiências, trajetórias e diferenciações múltiplas que, enquanto pequena parcela empírica, compõe uma imagem das condições de possibilidade de pesquisar antropologicamente a fronteira. Cruzando as duas narrativas vemos como a produção da fronteira como um espaço ameaçador revela ameaças para a(s) própria(s) fronteira(s) de quem nela(s) habita, como podemos ver olhando para Flor ou nas queixas do sr. Reyes ou da Cecilia sobre o “abandono” e a instrumentalização da fronteira por parte de policiais e ministérios. Como é apresentado por Río e Cardía (2009) no seu estudo sobre a tríplice fronteira entre o Brasil, a Bolívia e o Peru, há grande diferença na maneira de sentir, pensar e viver “a fronteira” entre aqueles que de alguma forma são dali, e os que vem chegando mais recentemente produto das transformações econômicas recentes e das políticas de presença do Estado no local. Há aqui cortes históricos que resultam fundamentais. A diferença entre Reyes e Cauã, por exemplo, que passa produtivamente pelo gênero e pela geração, marca também formas históricas e estratégicas muito diferentes de ocupação militar da fronteira, que têm, além disso, implicações de classe: de um lado, o recurso a soldados rasos, pobres e muitos deles rurais, que eram enviados para ocupar e povoar, no meio de uma estratégia nacional precária (Zárate 2008) que, de fato, se faz muito presente nas genealogias de tabatinguenses e leticianos com pais ou avós policiais, militares e soldados não amazônicos, e do outro, o recurso a frentes de avançada, altamente especializados e diferenciados, e estrategicamente colocados para não pertencer ao lugar. “Eles falam pra gente: namorar sim, mas nunca casar; a gente tem que se cuidar muito das mulheres daqui”, me dizia um jovem soldado da Força Nacional de Segurança alguma vez (coisas que Cecilia e Flor ouviram muitas vezes).
O cuidado e a fronteira, então, veem sua existência multiplicada e deformada pela associação entre construções históricas das políticas e das estratégias de fronteirização,
15
Sobre afetos, desamparo e Estado, ver Safatle (2015).
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“tensores” (incluso “libidinais”)(Perlongher 1987) associados ao gênero, à classe social e à procedência, e também com dimensões mais propriamente individuais e biográficas.
Mudando a perspectiva inteiramente vemos como Cecilia corporifica um processo crescente, mais na Colômbia que no Brasil e no Peru (pelo menos nessa fronteira), de incremento de ações e presenças femininas, civis e locais do Estado: o fato de ser uma mulher local num cargo de representação regional do governo nacional não é um dado desprezível, e dificilmente poderia ter sido possível alguns anos atrás. Essa nova configuração do processo de fronteirização, com maior e mais impactante participação política e econômica de agentes locais - incluindo indígenas, mulheres, “gays”, entre outros -, e com outros âmbitos do Estado presentes no território deve ser ainda melhor estudada (Melo 2017). Cuidado, então, pode expressar sentidos operativamente opostos e consequentemente serve para pensar formas diversas, e fortemente marcadas por gênero, da fronteira e das suas formas de governamentalidade. Perante uma determinada compreensão de precariedade ou desamparo (que se expressa através do conjunto analógico fronteira), o cuidado aqui visto tomou dois grandes caminhos. De um lado, fortalecendo os laços de mutualidade entre pessoas efetiva ou virtualmente ameaçadas ou temerosas que transformam a fronteira (ora lugar ora processo, imaginada, territorializada e corporificada) num potencial inimigo. Cuidar-se mutuamente, desse modo, pode se transformar facilmente num combate, ou numa relação de domínio; numa oposição que assume visos de violência colonial nos atos performativos de gênero no “circuito de afetos” entre Cauã, Socorro e Flor. Ou entre o Sr Reyes e “los bandidos”. Do outro lado, compreendendo ou construindo um vínculo, digamos, rizomático entre a coisa e a pessoa, entre o lugar e os projetos pessoais, o cuidado assume a forma de um engajamento laborioso com a precariedade ou com a ameaça (que, como vimos na história da casa do Reyes, não exclui o combate). E esse outro cuidado implica, e depende de, uma sofisticada e multidimensional elaboração política e econômica capaz de produzir ou de acolher outras relações e outras performatividades de gênero: Cecilia, ou Flor, agenciando o medo mistificado dos colonizadores. Esse artigo é, como disse, parte de uma instalação maior, de elaboração coletiva algo dispersa, que busca produzir deslocamentos nos caminhos de aproximação e análise sociais das fronteiras. Uma instalação fragmentada, que permite visualizar, tocar e transitar por espaços transfronteiriços de formas menos “espetaculares”16. Isto é, esse artigo é
16 Sigo aqui o jogo de provocação apresentado por María Lois (2017), seguindo outros autores de fronteiras européias, entre “fronteras espectaculares” e “fronteras aburridas”, que serve para chamar a atenção sobre a operação de espetacularização de certas fronteiras (marcadas por grandes tensões, grandes e Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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parte do exercício de tentar tirar do centro algumas verdades e chaves de acesso muito estabelecidas sobre a fronteira para, em um primeiro momento, atentar ao que resta. O que resta da fronteira se por alguns instantes (pelos minutos de leitura das narrativas acima) tirarmos um pouco da solidez do contrabando, das ilegalidades, do narcotráfico, da violência e crime, da centralidade da afirmação da nação (seja como política ou como prática cultural), da confiança no grande Estado, do atravessamento das fronteiras, da transnacionalidade, da proeminência das formas governamentais espetaculares e molares? Estado e cuidado se encontram nesse marco para compor uma nova, múltipla, fronteira. Nada do aqui apresentado elimina o Estado como objeto de pesquisa ou como variável de análise. Porém, na sua articulação particular com antropologia e com gênero (Vianna & Lowenkron 2017), o despedaça e o coloca em termos de arranjos e desarranjos contingentes, estratégicos e multidimensionais, de relações cotidianas de produção de diferenças e desigualdades marcadas interseccionalmente por gênero, altamente emotivas e íntimas, e o entrelaça em “circuitos de afetos”, sexuais e econômicos.
Por outro lado, e eis aqui um giro importante, esse circuito de afetos e cuidados materializa o caminho através do qual se produzem as desigualdades e as imagens reificadas e diversas de precariedade ou de necessidade de cuidados e alianças. Veja-se a posição da Flor nesse triângulo relacional, sujeitada e governada por “mãe” e namorado em função da sua posição social (gênero, procedência, classe, etnicidade), e o meu exercício de corporificar nela a imagem mítica da fronteira amazônica da qual os outros deveriam se cuidar. Flor é suspeita de estar enfeitiçando Cauã nos jogos do sexo e do amor, e Socorro nas invejas econômicas. Em resposta, a “bruja” que visitamos em Iquitos com Socorro foi clara, sobre a suspeita dela ser vítima de “daño” por parte da Flor e da mãe desta: “No hay daño, no hay; nadie te está haciendo daño. El problema es que administraste [cuidaste? governaste?] muy mal tu negocio”. A resposta vem da terra.
(...mas Flor continua uma intriga nessa instalação, uma projeção de luz em aberto. De um lado Flor é a tentação por substancializar a fronteira em um corpo desejado e desejante: de corpo-terra penetrada e seduzida, a mestiza combativa tecedora de novos mundos transfronteiriços. Por outro lado, Flor é seu silêncio, seu agir lento e tímido, suas recusas a casar, a namorar, a ser como suas irmãs, a obedecer Socorro, a subordinar-se a Cauã, a falar comigo-pesquisador. Flor é a lembrança dessa tentação substancializante, que é, por sua vez, a lembrança da perspectiva, da posição: nós, não fronteiriços-nafronteira, nós que lemos artigos acadêmicos no distanciamento étnico-racial, geográfico, conflitivos movimentos migratórios, guerras e tráficos, etc., e que implica maiores rentabilidades em termos de divulgação acadêmica, de financiamentos), e a condição de “aburridas” de outras.
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intelectualizado... nós olhamos através de Cauã+Socorro e vemos na Flor a fronteira. Mas e Flor? Silêncio. A fronteira não é para Flor a mesma que é para Cauã+Socorro, não precisa ser intensamente falada. Ou, por que não é Cauã, seu corpo branco, másculo, malhado, heroico, endinheirado e armado, a substancialização temporária da fronteira? Por que já foi? (Martins 1997). Ainda mais: porque, seguindo a linha butleriana que nos acompanhou, nenhum desses corpos substancializa a fronteira, não há corpo capaz de conter essa e nenhuma fronteira, não há metonímia possível em um corpo que imaginemos como um. Ainda mais: porque a fronteira, como o medo, o desejo e o cuidado, desliza através deles e é relação pura. Relacionalidade, materialização temporária e parcialidade. Fronteira parece mais um recurso semântico para designar tautologicamente formas de relação que um recurso analítico para aproximar-se a territórios-corpos-dinâmicas definidas). Por outro lado, a leitura do cuidado na chave Tronto (1993) – Mol (2008) permite a conexão com outras práticas, noções e relações de cuidado que incluem animais e objetos ou, como na relação proposta entre o sr. Reyes e Cecilia, incluem o cuidado de lugares, linhas e povos associados à fronteira. Vemos então que aquilo que no outro sistema relacional aparece como fonte de ameaça e potencial precarização (a fronteira), na perspectiva materializada pelas relações do sr. Reyes e da Cecilia, como de muitos outros habitantes, aparece como o objeto a ser cuidado e como a própria materialidade do cuidado (essa fronteira). A vida fornecida pela fronteira não se opõe e nem ameaça os fluxos e projetos de vida, por assim dizer, destas pessoas; com elas se entrelaça. Nesse sentido, afetos como o carinho, bem como práticas de conhecimento sistemático do objeto e dinâmicas de laboriosidade persistentes (a horta e a casa do sr. Reyes, as reuniões e viagens incansáveis da Cecilia) junto ao próprio objeto que assim se transforma em sujeito de ação (a fronteira, sua terra, seus locais, suas comunidades), resultam fundamentais para compreender esses outros cuidados. Trata-se quiçá de uma sorte de “parceria” entre o cuidador (que é também um agente de exploração) e o objeto cuidado, num sentido próximo ao que é demandado por Haraway (1991) na relação entre científicos e animais de laboratório. Esse deslocamento que estou tentando propor, ao menos como suspenção temporária, está diretamente relacionado com uma crítica emergente nos Estudos de Fronteiras, que diz respeito à necessidade de produzir muito mais conhecimento desde os lugares chamados fronteiras e em processos de engajamentos laborais e políticos com estas (Staudt 2017). A hipótese aqui é que tais deslocamentos nos permitiriam acessar a fronteira como um sistema de práticas performativas, como um enlaçamento de corpos e afetos, na sua multiplicidade e na sua relativa autonomia existencial. Isto é: é Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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possível pensar esses lugares fractalmente chamados fronteira para além da sua função subordinada na produção da nação, da lei, do Estado, da cultura? Dito de outra forma, é possível conhecermos essas “dinâmicas das fronteiras” (Albuquerque 2010), esses “processos de fronteirização” (Grimson 2003), na incompleta e conectada parcialidade das suas vidas e intensidades sociais, nas materializações e performatividades dos seus cotidianos e, mais ainda, na sua relativa capacidade de falar de si mesmas –e não apenas do revés da nação? Ou a fronteira somente faz sentido como referência para a nação, como argumento para as mobilidades e como limite reflexo para o Estado?
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: Fora chollos: gênero, sexualidade, alteridade e diferenças na fronteira Brasil-Bolívia Álvaro Banducci Júnior1 Professor do PPGAS da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul banducci@uol.com.br Guilherme R. Passamani2 Professor do PPGAS da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul grpassamani@gmail.com Tiago Duque3 Professor do PPGAS da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul duque.hua@gmail.com
Resumo O fluxo permanente de bens, pessoas e símbolos caracteriza o cotidiano das cidades fronteiriças de Mato Grosso do Sul. Na cidade de Corumbá-MS, divisa com a Bolívia, a presença de bolivianos é percebida com indissimulada reserva, tencionando o convívio e a interação com a alteridade étnica e nacional. Assim, este estudo, pautado em questões de gênero, sexualidade e outros marcadores sociais da diferença, se volta para a discussão de relações entre jovens “efeminados” de Corumbá em interação com diferentes grupos sociais da cidade e com o país vizinho. Do mesmo modo, o trabalho problematiza o processo de construção da alteridade na fronteira Brasil-Bolívia a partir da investigação de um grupo de pessoas não-heterossexuais maiores de 50 anos residentes na região. A ênfase aqui será dada à constituição ou não de tramas afetivas, eróticas e sexuais destes sujeitos, tanto os mais jovens como os mais velhos, com potenciais parceiros bolivianos. 1 2 3
Doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, professor do Curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFMS. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professor do Curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFMS. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, professor do Curso de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Educação/CPAN e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFMS.
Fora chollos: gênero, sexualidade, alteridade e diferenças na fronteira Brasil-Bolívia
Palavras-chave: Alteridade; Diferenças; Fronteira; Corumbá; Bolívia. Abstract The permanent flow of goods, people and symbols characterize the daily life of border cities in Mato Grosso do Sul (MS). In the city of Corumbá (MS), in the frontier with Bolivia, the presence of Bolivians is perceived with undisclosed reservation, creating tension on the coexistence and the interaction with the national and ethnic alterity. Therefore, this research, grounded in questions regarding gender, sexuality and social markers of difference, is concerned with the relations between “effeminate” younglings from Corumbá, their interaction with other social groups in the city, and the neighboring country. In the same way, this research problematizes the construction process of alterity in BrazilianBolivian border through an investigation of a group of non-heterosexual people above 50 years of age living in that area. The emphasis will be on the constitution (or not) of the subjects’ affective, erotic and sexual networks, between young and older subjects, and also with potential Bolivian partners. Key-words: Alterity; Differences; Border; Corumbá; Bolivia.
Introdução A intensidade e a abrangência global dos fluxos humanos e de bens, que resulta em interações incessantes de pessoas, símbolos e valores através dos limites nacionais, têm desencadeado reflexões crescentes sobre a diversidade e complexidade das experiências de fronteira. Tomadas ora como espaços eminentemente demarcatórios e de preservação de soberanias nacionais, áreas de presença ostensiva do Estado e de militarização, as fronteiras também se configuram como zonas de circulação e trocas materiais, sendo percebidas por alguns estudiosos como espaços de interação e de hibridismos (Canclini, 1997). Menos que limites e barreiras, as fronteiras tendem a se constituir, no dizer de Hannerz (1997), em espaços atravessados. A porosidade e ausência de controle legal em algumas zonas de divisa internacional têm levado teóricos a predizer a dissolução material das fronteiras, o que implica, em última instância, em uma redefinição da própria ideia de Nação. Há, no entanto, outras configurações fronteiriças, em que obstáculos alfandegários ou de migração se impõem ao livre trânsito entre países. De acordo com Foucher (2009), ainda nos dias de hoje, o acesso a territórios nacionais permanece em muitas áreas do mundo inviabilizado pela existência de muros e cercas de arame farpado, além da vigilância armada, que, se não imobilizam, controlam intensamente a passagem de pessoas e mercadorias em espaços Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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As fronteiras constituem assim fenômenos de configuração complexa que compreendem, na visão de Grimson (2001), tanto relações interestatais diversas quanto múltiplas experiências de interação e resistências entre povos fronteiriços. É nesse sentido que as ciências sociais têm acentuado a necessidade de se conhecer as vivências e as práticas de fronteira em suas manifestações concretas e multifacetadas. Como afirma Vila (2003: 322), “a tarefa dos estudos de teorias da fronteira é precisamente procurar a múltipla leitura das situações fronteiriças, onde diferentes narrativas coexistem no mesmo local”. Este é o caminho que se pretende percorrer neste artigo, analisando os espaços e situações de diálogo intercultural, de construção metacultural de identidades e de relações ambíguas e, não raro, desencantadas do cotidiano da divisa entre o Brasil e a Bolívia em território sul-mato-grossense.
As vivências fronteiriças na região de Corumbá, se dão em âmbitos diversos e de forma as mais distintas, implicando em momentos de aproximação e repulsa, de diálogos e de enfrentamentos. Se as fronteiras em geral são movidas por dinâmicas próprias (Albuequerque, 2010), que as diferencia em relação a outras regiões de um país; se cada fronteira é particular na multiplicidade de suas manifestções políticas e sociais (Vila, 2003), reclamando atenção detida acerca das experiências concretas e cotidianas; o que particulariza a área de divisa aqui abordada são as inúmeras manifestações de fronteiras que ocorrem dentro da fronteira. Trata-se de muros simbólicos, visíveis e invisíveis, no dizer de Costa (2013), que se interpõem em meio às relações nacionais, de caráter político e econômico, e no âmbito dos contatos étnicos, dos afetos, das trocas comerciais, das práticas religiosas, entre outros. Este artigo, que resulta de pesquisas mais amplas realizadas nessa área de divisa, aborda a complexidade das relações transfronteiriças, no que têm de ambíguas e conflituosas, a partir da análise das interações, das evitações e da produção de diferenças entre homens jovens “efeminados” de/em Corumbá com os bolivianos, bem como das expressões dos afetos e desejos de sujeitos não heterossexuais em relação aos potenciais parceiros do país vizinho.
A fronteira em/de Corumbá O estado de Mato Grosso do Sul possui ampla faixa de divisa, numa extensão de aproximadamente 1.500 km, compreendendo limites com territórios do Paraguai e da Bolívia. A história de ocupação desses espaços fronteiriços, o tipo de relações que se
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estabeleceram entre os povos do lugar, as trocas econômicas e comerciais, as interações sociais e afetivas, diferem significativamente em se tratando da divisa com o Paraguai ou com a Bolívia4.
Na fronteira Brasil-Bolívia, em território sul-mato-grossense, é considerável o fluxo de pessoas e bens que cruzam diariamente a linha de divisa. São comerciantes e outros trabalhadores bolivianos que deslocam-se para o mercado de Corumbá; turistas brasileiros que fazem compras de importados em Puerto Quijarro; são migrantes, de diferentes nacionalidades, que fazem dali a porta de entrada para o território brasileiro. No entanto, a cidade de Corumbá, e a vizinha e conurbada Ladário, encontram-se separadas de Puerto Quijarro e Puerto Suárez, na Bolívia, por ostensivas barreiras físicas e simbólicas. Além da distância espacial entre os centros urbanos - Corumbá está a aproximadamente 5 km da divisa com Puerto Quijarro - existem, na linha que limita os países, postos alfandegários e de controle, como a Receita Federal brasileira e o Controle Fronteiriço de Migração e Alfândega boliviano que, com seu aparato policial e de fiscalização, materializam a coação legal que dispõe-se a inibir o livre trânsito na fronteira.
De acordo com Pablo Vila (2003), à ideia das zonas de divisa porosas e fluidas, que o debate sobre o fim das fronteiras tem disseminado nos últimos anos, deve-se contrapor a metáfora do reforço da fronteira, pois, se muitos povos não desejam atravessá-la, outros tantos não querem vê-la atravessada pelo estrangeiro. O termo border crosser, empregado pela escritora e feminista chicana Glória Anzaldúa (2007) para definir o ator fronteiriço, visionário e transgressor, habilitado a cruzar divisas nacionais e políticas, da mesma forma que barreiras étnicas, de classe e de gênero, precisa ser tomado com cautela, segundo Vila (2003), diante das evidências de intolerância e conflitos nos contatos fronteiriços. 4
Se Anzaldúa intui, no personagem marginalizado do chicano - mestizo, pobre e
Dos 11 municípios do estado que limitam-se com o Paraguai, quatro possuem suas sedes em situação de conurbação com cidades do país vizinho. Essa conformação espacial e política favoreceu historicamente o contato e as trocas entre os povos dos dois países. As cidades de Ponta Porã (BR) e Pedro Juan Caballero (PY), por exemplo, separadas em fronteira seca apenas por uma longa e larga avenida, diariamente vivenciam intensa circulação de pessoas e bens para ambos os lados da divisa, sem intervenção do poder fiscalizador ou regulador do Estado. Com a economia em grande medida baseada no comércio reexportador, que impulsiona o turismo de produtos importados, o mercado das cidades gêmeas atrai tanto trabalhadores brasileiros para atuar no comércio de Pedro Juan Caballero, quanto paraguaios para trabalhar no setor hoteleiro e outros setores de serviços na cidade de Ponta Porã. O fluxo de mão de obra, a circulação de estudantes brasileiros e paraguaios, de turistas e viajantes, entre outros atores transfronteiriços, proporciona contextos permanentes de interação social e cultural nessa zona de divisa. É certo que a fronteira é marcada também por contradições e violências, decorrentes das assimetrias sociais entre os países, da existência de mercado ilícito e das mais diversas situações de discriminação, sobretudo de brasileiros em relação a paraguaios. No entanto, há um contexto de proximidade que favorece relações constantes de trocas e afinidades, o compartilhar de costumes e o reforço de laços de amizade e de parentesco entre as populações locais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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fronteiriço -, o prenúncio da resistência e da transgressão às segregações e às assimetrias sociais, seus críticos apontam para o descolamento de sua leitura em relação a uma realidade fronteiriça tanto mais conflituosa e desigual quanto mais permeável aos fluxos humanos e de capital. Da mesma forma, na divisa Brasil-Bolívia, atritos étnicos e de identidade acompanham o processo migratório de bolivianos que se deparam, ao ingressar em território corumbaense, com a resistência de uma população que não quer ter a fronteira atravessada.
No caso de Corumbá, essa advertência faz todo o sentido, ao menos no que diz respeito aos bolivianos. Os “atravessadores de fronteira” provenientes da Bolívia, agentes dispostos a superar as diferenças de nacionalidade, os atritos étnicos e de identidade a que a migração os predispõe, encontram na cidade vizinha a resistência de uma população que não quer ter a fronteira cruzada.
A presença boliviana em Corumbá é fator de desconforto e gerador de permanentes conflitos com moradores locais. Nesse caso, para quem está do outro lado, como afirma Jessica Chapin (VILA, 2003), o cruzar a fronteira representa o perigo de contaminação do nós pela presença do “outro”. Para além desse fato, no entanto, os corumbaenses resistem em aceitar a própria condição de fronteiriços. De acordo com Costa (2015: 40), na
situação de interdependência entre as cidades [de Corumbá e Puerto Quijarro], há uma negação histórica da condição de cidade fronteiriça por parte dos moradores de Corumbá, resumida na frase: ‘a fronteira é lá, e não aqui’. Os corumbaenses associam a fronteira à Bolívia e a identidade de fronteiriços apenas aos bolivianos.
As assimetrias econômicas e sociais contribuem para alimentar essa visão estigmatizada do país vizinho e da fronteira em si. Sendo área com carência de serviços públicos e marcada pela pobreza, a zona de divisa boliviana é concebida pelos brasileiraos como portadora de todo tipo de mazelas, desde a sujeira, a desorganização, falta de higiene, até a criminalidade (Costa, 2013).
Fundada em 1778, às margens do rio Paraguai, a cidade de Corumbá serviu de posto avançado de defesa dos domínios portugueses nos limites, ainda indefinidos, com a colônia espanhola. Durante a Guerra da Tríplice Aliança, a cidade esteve sob domínio paraguaio, tornando-se, ao final dos conflitos, um dos mais importantes centros comerciais e financeiros do Alto da Bacia Platina. A cidade estruturou-se como polo de redistribuição comercial, ligando os territórios do Mato Grosso e do Paraguai com os mercados europeu e platino.
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A cidade viveu seu apogeu na passagem do século XIX para o século XX, quando assistiu ao surgimento de grandes e importantes casas comerciais, especializadas na exportação de carne e couro bovino, de plantas medicinais, de peles de animais silvestres, entre outros produtos regionais para os grandes centros da bacia do Prata e para cidades litorâneas da faixa atlântica brasileira. De outro lado, importavam todo tipo de produtos de origem europeia, desde vestuários, alimentos, até maquinários e utensílios agrícolas, para suprir a demanda da indústria incipiente e das fazendas de gado da região. Nesse período, a cidade recebeu vários grupos de migrantes, como italianos, portugueses, espanhois, franceses, sírios, libaneses, entre outros, inclusive grande contingente de paraguaios, que deixaram o país ainda abalado pelos efeitos desastrosos da guerra. Residindo a algumas gerações em Corumbá, esses migrantes não mais se consideram estrangeiros (Costa, 2015).
Se o responsável pela vinda desses migrantes das mais diversas origens e nacionalidades foi o rio Paraguai, com a ferrovia chegaram à região, na década de 1940, os primeiros grupos de bolivianos. Muitos vieram para trabalhar nas obras da estrada de ferro; outros, porém, ocuparam-se de tarefas do comércio, serviços e construção civil (Peres, 2009). A cidade de Puerto Quijarro, fundada em 18 de junho de 1940, surge em decorrência da implantação da linha ferroviária, que visava estimular as relações comerciais do oriente boliviano, tendo a cidade de Santa Cruz de La Sierra como polo centralizador, com o mercado brasileiro, mediante a ligação com a cidade de Corumbá, distante aproximadamente 600 km, já servida por tronco ferroviário. Em decorrência desse empreendimento, Corumbá experimentou novo ciclo de desenvolvimento econômico, na década de 1940-50, com instalação de indústrias e expansão do comércio, intensificando as relações com os vizinhos bolivianos (Ramaho Jr & Oliveira, 2010) e atraindo famílias de migrantes desse país que passaram a se instalar naquele centro urbano. De acordo com o censo demográfico de 1940, os bolivianos eram maioria entre os estrangeiros residentes em Corumbá, contando com um contingente de 882 recenseados (Peres, 2009).
Atualmente, a cidade de Corumbá conta com população estimada em 108.000 habitantes (IBGE, 2010), enquanto que Puerto Quijarro e Puerto Suárez possuem respectivamente 12.000 e 9.000 habitantes em número aproximado (Souchaud, Carmo & Fusco, 2017). De acordo com Souchaud e Baeringer (2008), foi registrada a existência de 789 domicílios com presença boliviana em Corumbá, totalizando uma população de 3.240 pessoas. Esses migrantes são provenientes das Terras Altas bolivianas, compreendendo departamentos como o de La Paz, Potosí, Cochabamba, entre outros, e das Terras Baixas, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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incluindo Santa Cruz de La Sierra, na parte oriental do país. Essas distintas origens implicam não apenas em diferenças de ordem regional, mas também étnicas e sociais.
Grande parte dos migrantes bolivianos vindos das Terras Altas possui origem Quéchua ou Aymara, enquanto que os das Terras Baixas pertencem a grupos étnicos como os Chiquitanos e os Kamba. A origem indígena dessa população imprime uma característica peculiar à identidade na fronteira Brasil-Bolívia que tende a ser: problematizada não apenas por critérios de nacionalidade (brasileiros/ bolivianos), mas também por critérios étnicos (índios/ não índios). Há uma dupla alteridade do boliviano em solo brasileiro: ao mesmo tempo em que é visto como um ‘outro’ nacional (estrangeiro), é representado como um ‘outro’ indígena, duplicando, em grande medida, o estigma social que recai sobre o grupo (Costa, 2013: 38).
A categoria colla, utilizada pelos bolivianos das terras baixas para referir-se aos povos do altiplano, tem seu sentido pejorativo potencializado quando empregada por corumbaenses para referir-se aos bolivianos residentes na cidade brasileira. Trata-se de termo que associa os migrantes à figura do bugre, o índio descaracterizado, atrasado, miserável e bárbaro. Numa das principais avenidas de Corumbá é possível ler, num muro pichado em castelhano, os seguintes dizeres: “Fuera Chollos”, “persona non grata” (Ramalho Jr & Oliveira, 2010), evidenciando a intensidade do preconceito e o grau de intolerância da/o corumbaense com os migrantes bolivianos. O fluxo de bolivianos para a cidade de Corumbá ganhou impulso na década de 1990, quando muitos migrantes vislumbraram no comércio informal, destinado sobretudo a atender a população de baixa renda com produtos variados, como brinquedos, roupas e eletrodomésticos (Paes de Andrade, 2014), uma fonte segura de renda para o sustento da família. Instalados em feiras livres ou lojas improvisadas em pequenas garagens, atuando como camelôs ou vendedores de artesanato, esses comerciantes, na medida em que consolidaram seu lugar no mercado informal, passaram a ser vistos como competidores de lojistas do comércio formal e, como tal, sofreram duras reações por parte dos comerciantes da cidade e do poder público (Costa, 2015). O mercado informal, ainda que em parte regularizado e controlado pela prefeitura, tornou-se, na perspectiva da elite local, uma ameaça à economia da cidade. Como consequência, foram deflagradas sucessivas operações repressivas contra os comerciantes bolivianos - Operação Bras-Bol (2011),
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Interdição da Feira Brasil-Bolívia (2013), Operação “No Caminho” (2013), entre outras em parcerias que envolvam a Polícia Federal, a Receita Federal e a Prefeitura Municipal, com apoio do exército, da mídia e da elite locais.
Criminalizados, os comerciantes informais tiveram suas mercadorias confiscadas e apreendidas, sofreram, muitas vezes com familiares, violência física, constrangimento público e abalo emocional, numa demonstração de que sua presença em território corumbaense é um problema social a ser resolvido com apoio explícito de aparatos repressivos. Os conflitos revelam a condição de exclusão social e a intensidade dos estigmas que recaem sobre a população boliviana, vista como afeita ao ilícito, à contravenção e merecedora de desconfianças. Ignora-se, nesse caso, o próprio “diferencial fronteiriço” (Costa, 2013), a condição propícia da fronteira para realização de negócios, seja pela flexibilidade do câmbio e a diferença de legislação, condição que atraiu a instalação e mantém os negócios de muitos migrantes de outras nacionalidades.
Como cruzadores de fronteiras, os migrantes bolivianos conseguem vencer os limites nacionais que separam os dois países, porém, diante das assimetrias de ordem econômica e de poder que regulam as relações cotidianas com a população corumbaense, acabam sendo confrontados com outras fronteiras, sejam sociais ou étnicas, expressas por meio de representações preconceituosas e depreciativas ou por meio da força física e repressiva. É preciso cuidar, como lembra Vila (2003), para não essencializar a figura do “outro”, tanto quanto o “nós”. Há diferentes experiências de ser boliviano em Corumbá. Não se pretende aqui reduzir ou priorizar subjetividades, porém, o cruzar fronteiras em território corumbaense, em se tratando de bolivianos, revela significados mais controversos que interações afetuosas, hibridismos ou conquista de liberdade.
Assim, a seguir, discutiremos o que não está visível pelo uso recorrente da expressão local “aqui é tudo junto e misturado”, em especial, no que se refere à interação e produção de diferenças entre homens jovens “efeminados” de/em Corumbá e os bolivianos durante eventos organizados por esse jovens.
“Aqui é tudo junto e misturado” A compreensão da maior parte dos moradores da cidade de Corumbá é que no município não há preconceito contra homens “efeminados”, em especial, contra os mais jovens. Este termo êmico (“efeminados”) apareceu em campo tanto no formato gramatical do gênero masculino como feminino. Ainda que ele se refira a homens gays e também a Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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travestis, o empregamos neste texto na forma gramatical masculina por ter sido a sua maneira mais recorrente empregada em campo pelos interlocutores. Não se trata, portanto, de não reconhecer a identidade de gênero feminina das travestis, antes, reconhecer uma característica do uso dessa categoria, inclusive, entre as próprias travestis que vivem na cidade.
Esse entendimento sobre estar “tudo junto e misturado”, caracteristico dos discursos sobre a realidade local, também pode ser associado aos próprios “efeminados”. Quando se questiona sobre os atos de discriminação e violência contra esses jovens, a frase “aqui é tudo junto e misturado” aparece para justificar uma resposta negativa quanto à existência de violência voltada a eles na cidade.
Os “efeminados”, segundo trabalho etnográfico5 desenvolvido na cidade, são aqueles identificados como do “sexo”6 masculino ao nascerem que não são masculinos nos termos dos “discretos”, isto é, daqueles que, de forma mais apropriada para as normas e convenções locais, comportam-se como homens masculinos (leia-se heterossexuais). Este termo êmico (“discretos”) sempre apareceu em campo no formato gramatical do gênero masculino. No entanto, é preciso compreender esta categoria sob rasura, isto é, em contextos de acentuada fluidez identitária e performática no que se refere às questões de gênero e sexualidade. Gênero e sexualidade aqui são pensadas a partir da matriz de inteligibilidade de gênero apresentada por Butler (2003), isto é: “sexo” masculino = gênero masculino = desejo pelo “sexo oposto” (ou, em se tratando de feminilidade, “sexo” feminino = gênero feminino = desejo pelo “sexo oposto”). Aquelas experiências de gênero e sexualidade não correspondentes a esse ideal regulatório podem ser vistas como dissidentes. A complexa dinâmica das experiências envolvendo estes dois demarcadores sociais da diferença constituem regimes de visibilidade que fazem com que homens “discretos” sejam inteligíveis como heterossexuais, por, supostamente, performatizar um gênero masculino coerente com a expectiavia heterossexual (de desejo por alguém do “sexo” oposto), ainda que mantenha relacionamentos afetivo-sexuais com pessoas “do mesmo sexo”. Evidentemente que, no caso em questão, o não cumprimento dessa matriz em relação ao desejo por alguém do “sexo” oposto, que escapa a certos controles disciplinares dos prazeres, produz uma espécie de sexualidade disparatada (Foucault, 2007).
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Trabalho de campo offline e online referente a pesquisa “Gênero, sexualidade e diferenças: normas e convenções sociais na fronteira Brasil-Bolívia”, coordenada por Tiago Duque, o qual teve início no primeiro semestre de 2014 e segue em andamento. Utilizamos a palavra “sexo” entre aspas em um sentido crítico, na tentativa de problematizar qualquer perspectiva bio-naturalizante desta categoria, destacando, portanto, seu caráter sociocultural.
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Comumente os “efeminados” estão em busca de relacionamentos afetivo-sexuais com homens tidos como “discretos”. Os usos das categorias “discretos” e “efeminados” apareceram em campo ora se referindo a um “outro”, ora a si próprio, de maneira autoatribuída. Seja um ou outro, os usos são dinâmicos e carregam em si certa fluidez em termos de valoração, sendo mantidos em alguns contextos de desprestígio social e em outros de valorização dos sujeitos.
Em relação à referida “mistura” entre homens jovens “efeminados” e as demais pessoas da cidade, segundo os próprios interlocutores, ela se dá devido ao fato de os “efeminados” estarem envolvidos em diferentes eventos, que atrai o público local e os turistas, inclusive bolivianos. Os desfiles cívico-militares em comemoração ao aniversário da cidade, os desfiles das escolas de samba durante o carnaval e o concurso de quadrilhas durante a festa do Banho de São João, por exemplo, são parte desses eventos. Mas, também há aqueles dirigidos especificamente à temática gay, como o Miss Gay e o Musa Gay do Carnaval.
Considerando os objetivos deste artigo, discutiremos aqui as relações de vizinhança entre brasileiros e bolivianos no que se refere a estes eventos, especialmente focando em parte das experiências que envolvem os “efeminados”. Para isso, partimos de uma noção de que a diferença não é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Antes, compreendemos que é “[...] uma questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade e formas democráticas de agência política” (Brah, 2006: 374). Nesse sentido, atentamos para a agência dos interlocutores deste estudo via os marcadores sociais da diferença, como classe, raça/etnia, gênero, sexualidade, idade, nacionalidade, entre outros. Isso nos permite definir a agência como “as possibilidades no que se refere à capacidade de agir, mediada cultural e socialmente” (Piscitelli, 2008: 267).
Dito isso, considerando a região fronteiriça, agência e marcadores sociais da diferença constituem-se assim as relações de identificação e diferenciação envolvendo os “efeminados” e os bolivianos. No período preparatório do concurso de Miss Gay Corumbá, no ano de 2014, pudemos ouvir de um interlocutor tido em campo como efeminado, que não haveria interessados bolivianos em participar do concurso, afinal, em sua opinião, como na de outras pessoas da cidade, “lá não tem gay”. Ele prossegue a justificativa explicando sobre o contexto fronteiriço do país vizinho: “aqui nós fazemos fronteira com os índios, não há, não tem nada lá, só índios, roupas, coisa pra comprar mesmo”7.
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Sobre o imaginário da fronteira por moradores jovens de Corumbá, Costa (2013) desenvolve um estudo que aponta para dados duais em relação à fronteira (leia-se “a cidade vizinha”), isto é, ainda que suja, desorganizada, perigosa, feia, também um espaço para compras, lazer e trocas culturais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Por outro lado, em pesquisa realizada na internet, encontramos informações sobre o mesmo concurso, realizado em 2012, que indicam outro tipo de relação com a Bolívia. Segundo matéria jornalística, no ano de 2012, foi realizado o quarto “Miss Pantanal Gay”, com participação, pela segunda vez, de representantes das cidades bolivianas de Puerto Quijarro e Puerto Suárez8. Segundo a mesma fonte, o organizador do desfile afirmou que isso mostra uma “integração entre os povos” que vivem nessa faixa fronteiriça.
Uma característica do concurso de Miss Gay e do Musa Gay é o riso da plateia. Isso marca outras atividades que são organizadas e tem participação dos “efeminados” na cidade. Nesses dois eventos, além da performance da passarela causar essa reação do público, há também a participação de convidadas que tem o objetivo de fazer o público rir. Nos eventos que pudemos participar, diferentes drag queens foram chamadas para “animar/apresentar” as candidatas a Miss ou Musa, performatizando, no corpo e no discurso, estereótipos risíveis de diferentes femininos.
De forma geral, o que diferencia as drags de outras performances de gênero são aspectos como temporalidade, corporalidade e teatralidade. Temporalidade porque a drag tem um tempo “montada”, outro “desmontada” e, ainda, aquele em que “se monta”. Diferentes das travestis e transexuais as mudanças no corpo são feitas, de modo geral, com truques e maquiagem (Vencato, 2003: 196). Em nosso campo, as drags são “caricatas”, isto é, fogem ao estereótipo de beleza feminina. Elas provocam o riso do público com situações nada “glamourosas”, com roupas e acessórios classificados como risíveis, pela forma como os incorporam. Quando não, brincam com a imagem do seu “glamour” que o público sabe não existir.
Uma drag queen também teve lugar de destaque na cidade durante o carnaval de 2015, como membro da “Corte de Momo”, que envolve o rei momo, a rainha e as princesas, sempre formada através de concurso. Nessa ocasião, em uma das noites de desfile, a drag se caracterizou de mulher boliviana, dando destaque ao vestido rodado, às longas tranças no cabelo e o típico chapéu de camponesa. A referência era à etnia colla, que comumente é alvo de preconceito na região devido ao estereótipo em torno dela (principalmente ligado à forma como cuida das crianças, se alimenta e se higieniza). Essa performace drag é um tipo de agência que pode ser entendida como resistência ao poder que se constrói na dinâmica da interação social (Butler, 2003). O ator que interpreta a drag caricata com elementos esterioripados de uma mulher boliviana não branca, é negro. Ainda que sob a maquiagem e a vestimenta a sua cor não fique visível, 8
Mais informações disponíveis em: <http://www.diarionline.com.br/index.php?s=noticia&id=42694> Acessado em: 09 fev. 2015.
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podemos comprender o quanto, em contextos de busca por reconhecimento, como os do carnaval em contexto fronteiriço, o jogo de produção das diferenças atue em vários diferentes marcadores, fazendo com que, como o poder, o reconhecimento também circule entre distintos quadros de inteligibilidade. Isto é, o homem negro que interpreta a drag risível, por trás da construção estética da personagem que apresenta-se com a cor branca, ainda que com uma boca enorme com batom vermelho, caracterizado de colla, uma mulher não branca estrangeira, em um contexto fronteiriço que comumente a desprestigia, durante uma festa tipicamente nacional. O riso do público, acompanhado de muitos aplausos, no intervalo do desfile de uma escola de samba e outra, quando a corte passava pela avenida, era sempre presente. A drag “caricata”, ao se apresentar com os elementos do “outro”, apontados acima, se faz risível a partir de um imaginário local que ronda a fingura da colla, contribuindo para a depreciação da mulher boliviana, ainda que, segundo o que foi anunciando no evento, se tratasse de uma homeagem ao país vizinho.
Assim, reconhecendo a ambivalência (os múltiplos sentidos) do riso na contemporaneidade, o que, de certa forma, todos os intelectuais do século XX que se dedicaram a estudar esse tema fizeram (Mions, 2003), é possível compreender o quanto não há consenso entre os “efeminados” se o riso é uma espécie de reconhecimento (valoração) ou de preconceito (desprestígio). Esta ambiguidade está dada pelo contexto cultural em que estas experiências são produzidas, para além da realidade específica da fronteira. Assim, seja em Corumbá ou em outra cidade, para compreendermos e rirmos com uma piada, segundo Possenti (1998), é preciso conhecer os traços da cultura, assim como para entender histórias infantis, mitos locais, receitas culinárias, aspectos da legislação, regras políticas, ou o que gritam os torcedores de times de futebol nas tardes de domingo. Este autor nos oferece uma pista importante para pensarmos os efeitos ambivalentes das relações de vizinhança aqui em discussão. Ele afirma que “o que faz que uma piada seja uma piada não é o seu tema, sua conclusão sobre o tema, mas uma certa maneira de apresentar tal tema ou uma tese sobre tal tema” (idem: 46).
E, o mais importante para esta reflexão: se necessita de um tema proibido ou controlado por regras sociais de bom comportamento (evitar preconceito, reprimir desejos sexuais ou de eliminação do diferente, etc.). Nesse sentido, as mulheres bolivianas, assim como as outras mulheres performatizadas pelas drags nos diferentes eventos de intensa participação de “efeminados” enquanto organizadores, podem ser compreendidas como alvo de homenagens, ao mesmo tempo em que também são tidas como risíveis por serem desprezíveis. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A mulher vista como feia, e, por isso, “fora de contexto”, presente nas passarelas dos concursos de beleza na fronteira, ou a mulher já culturalmente discriminada por ser boliviana nas ruas da cidade, quando materializada na figura da drag “caricata”, é exemplo das experiências risíveis que caracterizam os processos de diferenciação envolvendo “efeminados” e bolivianos na região fronteiriça. Por outro lado, na produção desses processos de diferenciação, como buscaremos deixar claro com o exemplo a seguir, a masculinidade viril é marcadamente importante nas interações afetivas-sexuais entre “discretos” brasileiros e “discretos” bolivianos. No entanto, isso não deixa de ser marcado pelas lógicas de produção de diferenciação hierarquizadas que alocam bolivianos em contexto de desvalorização quanto à origem, afinal, ao perguntar a um interlocutor boliviano o motivo pelo qual ele não conta que é boliviano quando nos primeiros contatos com homens brasileiros via aplicativos de celular ou através da sala de bate papo online, ele disse que, em relação a outros “discretos” em busca de relações afetivo-sexuais com “discretos”, quando se diz que é boliviano e mora do outro lado da fronteira, “eles somem”9. Das relações que ele já pode estabelecer, elas
parecem acontecer porque, mesmo sendo boliviano, a sua performance de masculinidade viril, associada à pele não tão escura (o que apaga marcas de identificação com etnias indígenas) e a aparência bastante jovial (mesmo tendo trinta anos), são valorizadas na economia do desejo local.
Assim, compreendemos o reconhecimento das diferenças entre essas relações de vizinhança como algo que se dá necessariamente por um caminho comum entre histórias singulares, e esse caminho o coloca em circulação (Butler, 2007). Isso porque “o reconhecimento é uma relação intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o “outro”, ele tem que recorrer a campos existentes de inteligibilidade” (Butler, 2010: 168). Os marcadores sociais da diferença, em contextos fronteiriços, nos permitem refletir sobre agência e nacionalidade de modos muito distintos de (não)reconhecimento e hierarquização. Para além dos jovens “efeminados”, isso também ocorre, reiterando determinadas normas e convenções aqui colocadas, mas também apontando para outras formas de diferenciação. Sobre isso, discutiremos a seguir.
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Esse tipo de discriminação ocorre ainda que existam muitos casos, especialmente entre as pessoas de classe social tida como mais baixa, de casamentos e constituição de famílias heterossexuais entre pessoas dessas duas nacionalidades (Costa, 2013a; Esselin [et al], 2012).
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Afetos transfronteiriços: as (in)delicadas relações na região de Corumbá Em uma pesquisa anterior (Passamani, 2015), realizada nas cidades de Corumbá e Ladário, entre 2012 e 2015, na qual se problematizava a intersecção entre envelhecimento, memória e condutas homossexuais, com pessoas entre 52 e 82 anos, pertencentes a diferentes camadas sociais, a alteridade em relação aos desejos foi uma expectativa desde o princípio. Afinal, os desejos rompem o muro invisível da fronteira? Nos primeiros contatos com o campo, uma das estratégias foi a aproximação a partir da internet, em salas de bate-papo online. Durante algumas semanas, foi estabelecido um canal de diálogo com um contato que apresentava o nickname “Raul 42”10. Suas informações
elucidavam um pouco do trânsito dos desejos não heterossexuais na cidade, bem como as principais estratégias utilizadas para a efetivação de encontros. Um dos temas surgidos foi o uso da prostituição por homens brasileiros mais velhos, de Corumbá e Ladário, com jovens bolivianos da região fronteiriça. “Raul 42” parecia muito interessado em colaborar com a pesquisa e contava uma história bem articulada sobre relações eróticas e sexuais entre homens mais velhos de Corumbá e jovens bolivianos de Puerto Quijarro. Estas informações contrastavam, e muito, com o que fora ouvido nas primeiras semanas de trabalho de campo em Corumbá. No contato com as pessoas da cidade, os bolivianos, recorrentemente, apareciam nas falas como erótica e sexualmente desinteressantes. No entanto, o contato da internet afirmava que alguns distintos senhores de Corumbá atravessavam a fronteira para fazer o uso tarifado11, anônimo e mais barato do corpo de
jovens bolivianos. E, assim, satisfazer desejos que ainda eram vistos como problemáticos na cidade vizinha. No enredo de “Raul 42”, a fronteira corrobora a ideia de lugar anônimo, indescritível, em que o segredo é possível e o invisível tem caráter sedutor. Suas falas admitiam o desejo marginal buscando um refúgio além da fronteira.
A história era deveras interessante. “Raul 42”, contudo, não deu maiores detalhes e, simplesmente, desapareceu ao final de algumas semanas de conversa. As informações dadas pelo contato online eram, ao mesmo tempo, instigantes e intrigantes. A possibilidade de tudo que fora dito ser mentira era muito grande. Mas também tudo poderia ser verdade e representar um achado a uma pesquisa recém iniciada. Além disso, há pesquisas de fôlego que mostram este trânsito dos desejos em regiões fronteiriças, como é o caso dos 10 Ele passou a ser contato privado no skype e algumas conversas foram realizadas. Intrigava o fato de “Raul 42” não ligar a webcam e realizar conversas por vídeo. Ele relatava problemas com a ferramenta. 11 Expressão utilizada por Fernando Pocahy (2011) para se referir às negociações envolvendo garotos de programa e homens mais velho em uma sauna de Porto Alegre-RS. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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trabalhos de Olivar (2014, 2015) na tríplice fronteira norte do Brasil, e de Piscitelli (2008, 2013) no nordeste do país.
Entretanto, como dito acima, os primeiros contatos offline estabelecidos em Corumbá, com pessoas ligadas a ONGs LGBT, bem como uma futura rede de interlocutores maiores de 60 anos, dava conta de afirmar, quase que categoricamente, a inexistência destes fluxos desejantes transfronteiriços. As pessoas desconheciam a ocorrência de qualquer trânsito erótico, afetivo e sexual com os bolivianos de Puerto Quijarro. Aliás, as referências aos homens bolivianos, antes de fazer qualquer alusão a aspectos sedutores e aproximativos, destacavam elementos pejorativos e de rechaço, como “feiura e sujeira. Lá só tem gente feia. Eles são sujos. Ui, bolivianos fedidos”. Estas foram algumas das muitas expressões ouvidas nas primeiras semanas de campo. Segundo o que pudemos apurar em campo, de fato, o lado boliviano da fronteira, a parte mais imediata, não abriga qualquer tipo de fluxo no que diz respeito à prostituição masculina de jovens bolivianos com homens brasileiros. O negócio (Perlongher, 1987) que ali opera é de outra ordem que não a dos desejos dissidentes (Foucault, 2007). Durante o dia, o comércio de produtos variados. Durante a noite, pelas ruas pouco iluminadas, tudo parado. Quando há algum movimento comercial, ele estava associado à venda de drogas ilícitas. No que tange a interesses eróticos, afetivos e sexuais parece que o movimento operado pela fronteira diz respeito a elementos mais físicos e menos simbólicos. Ainda assim, a fronteira geográfica, que pode ser lida como um traço limitante, é importante para pensar as tramas desejantes dos interlocutores não heterossexuais mais velhos de Corumbá e Ladário. O “outro” da relação, no entanto, não está além da fronteira, na Bolívia, mas ele chega, pelo rio Paraguai, para guarnecer a fronteira. A alteridade não é representada pelos bolivianos, mas pelos marinheiros vindos do Rio de Janeiro. Entre as tantas histórias ouvidas, aquelas que recordam os afetos com os marinheiros são as mais recorrentes.
Os marinheiros eram os parceiros mais valorizados nas estreitas redes de relações estabelecidas pelas “bichas” locais. Tais sujeitos, eram “diferentes” dos homens da região. Eles eram, sobretudo, diferentes dos “indesejados” bolivianos. Os marinheiros eram vistos como “estrangeiros” no Pantanal, algo que agregava valor em um suposto e fluído mercado sexual (Piscitelli, 2013; Olivar, 2014) e no erotismo local. Conquistar um “marinheiro” era razão de prestígio diante dos demais. Os marinheiros corporificaram um tipo particular de masculinidade viril e hegemônica (Kimmel, 1998) que era sintomática do sudeste do país. Eles eram mais altos, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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mais fortes e mais brancos. Os códigos linguísticos eram outros e o sotaque marcava uma fronteira entre uns e outros, que colocava os forasteiros em flagrante vantagem. Algo um pouco assemelhado ao que Perlongher (1987) chama de fugas desejantes e tensores libidinais quando se refere ao negócio estabelecido entre michês e clientes no centro da cidade de São Paulo no começo dos anos de 1980. Rubens (66 anos), um interlocutor de pesquisa, administrador de empresas, pertencente às camadas altas e branco, conta que os marinheiros eram, de fato, os amantes mais desejados, pois os homens da região, na época, guardavam uma semelhança fenotípica grande com os bolivianos do outro lado da fronteira e isso resultava desinteressante para as bichas locais. Rubens relata que durante “muito tempo” sustentou “um rapaz da Marinha”. Eles [os marinheiros] tinham bem menos frescura e ficavam direto com as bichas. O fato é que os marinheiros vinham pra cá e ficavam sem qualquer referência. Não tinham família, não tinham nada. Além disso, as boas famílias não queriam a filha casada com marinheiro, porque em seguida ele ia embora, além de ganhar pouco. Antigamente era assim. Hoje é prestígio ser de Marinha. Antes era fim de carreira. Aí, eles ficavam sozinhos. Nesta hora, os homossexuais caiam em cima e sempre dava certo. Fisgavam os marinheiros.
Na fala do interlocutor, o marinheiro é uma figura de prestígio para as “bichas”, mas isso não ocorria diante das ditas boas famílias da cidade. Para estas, os homens da Marinha eram percebidos, inclusive, com desprezo. Uma explicação possível, como conta Rubens, está no fato de os marinheiros terem um vida modesta e transitória na cidade, o que não parecia atrativo para o mercado afetivo e matrimonial local. Outros interlocutores, como afirma Mauro (67 anos), branco, pertencente às camadas médio-altas e comerciante, ratificam a assertiva de que os “marinheiros gostavam e gostam muito dessa safadeza toda”. A relação entre “bichas” locais e marinheiros é permeada pela ideia de fronteira. Por um lado, uma fronteira geográfica materializada no rio Paraguai que divide o território brasileiro do boliviano. Por outro lado, por uma fronteira simbólica que separa as partes envolvidas no processo de conquista afetiva, erótica e sexual. A fronteira geográfica poderia, por exemplo, aproximar amantes brasileiros e bolivianos. Parece que este não é o caso nesta investigação. Há, como salientou Costa (2013), uma espécie de muro invisível entre os dois territórios. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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No entanto, esta fronteira nacional, em sua parte navegável (o rio Paraguai), é o canal que torna possível o encontro com os amantes mais desejados, os marinheiros. Logo, a fronteira torna-se elemento decisivo na configuração de um mercado afetivo, erótico e sexual na região. Não com os bolivianos, mas com os marinheiros, que estão no Pantanal em função da fronteira. Se por um lado a fronteira separa afetiva, erótica e sexualmente (brasileiros de bolivianos), por outro lado ela aproxima (corumbaenses e ladarenses dos marinheiros).
Falamos portanto, no campo dos afetos das “bichas mais velhas” locais sobre um território de fronteira específico. Além disso, a própria ideia de interior se apresenta como complexa para permitir que a partir dela se promova algum tipo de generalização. Sabemos, de outro modo, que Corumbá e Ladário são cidades encravadas em pontos estratégicos do território brasileiro. Há ali um contingente grande da Marinha e do Exército.
Tais cidades são cidades de desterritorializações e perfazem um fluxo constante de homens, de corpos masculinos desterritorializados. Esses homens, das Forças Armadas, das empresas de mineração, do ecoturismo, os pescadores, os “homens de fazenda”, todos eles, ajudam, por meio de suas presenças na região, a moldar um imaginário específico de aproximação de suas personas no sentido de conformar o desejo das “bichas” locais “mais velhas”. A alteridade desejante se aplica a estes corpos, a estes sujeitos, muitos dos quais, forasteiros naquele território de fronteira. Assim, as atenções são dirigidas para os que chegam e o prazer nefando (Trevisan, 2000) se coloca de costas para os bolivianos que, de inúmeras formas, parecem compor o cotidiano de Corumbá e Ladário. O território de fronteira do Pantanal, então, não tem como vocalizar uma ideia mais geral de interior do Brasil, ainda que casos assemelhados possam ser percebidos, por exemplo, na tríplice fronteira do Brasil, Peru e Colômbia, na cidade de Tabatinga no Amazonas, conforme Olivar (2014). A região de Corumbá e Ladário é um território de cruzamentos, de migrantes, de turismo e de trabalho.
Essa diferença constitui, nas relações das “bichas” locais “mais velhas”, uma forma específica de organização das sociabilidades, da produção de identidades e uma gestão particular de afetos e desejos, pois se os bolivianos são presença constante, familiar, e há o estabelecimento de uma razoável estética de vizinhança, ainda que muitas vezes indesejada, os homens que chegam em função do rio, do território de fronteira e do que se pode dele extrair, estão ali, em grande medida, de passagem. Esta ideia de estar no lugar de passagem confere algum grau de anonimato às relações e não desestabiliza a produção de sentido e significados que as pessoas estabeleceram para as suas vidas. Até mesmo, porque muitas destas tramas desejantes se desenvolvem no subterrâneo de uma Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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heterossexualidade pública, social e compulsória.
Considerações finais Há muitas variáveis ao pensar o território de fronteira entre Brasil e Bolívia na região de Corumbá. Primeiramente, é imporante frisar as particularidades das relações transfronteiriças ali observadas. De outro lado, as evidências apontadas em torno da diversidade e ambiguidade das interações entre as populações vizinhas, as distintas formas de interação, pautadas na violência, proximidade e resistência, servem de advertência para confrontar o alcance e a pertinência de modelos generalizantes no campo dos estudos fronteiriços.
Fronteira consiste, de modo geral, na condição de embate complexo e permanente entre o “nós” e os “outros”, no movimento dialético que aproxima e repele alteridades. É mediante a etnografia que os antropólogos têm conseguido revelar a multiplicidade e as peculiaridades desse diálogo em âmbito local, apontando para as mais variadas configurações materiais e de significados que orientam os comportamentos perante a alteridade em áreas de divisa nacional. Foi, da mesma forma, com base no esforço etnográfico que este estudo buscou revelar as peculiaridades da dimensão regional da fronteira Brasil - Bolívia, apontando para a ambiguidade que permeia as relações interpessoais; para o poder das barreiras físicas e sociais, visíveis e invisíveis, que se interpõem no contato entre brasileiros e bolivianos nas cidades de Corumbá e Puerto Quijarro; e para as assimetrias existentes mesmo no interior de extratos subalternos nos quais as hierarquias não se revelam senão em termos de pertencimentos nacionais ou étnicos. São múltiplos “outros” que se manifestam no cenário liminar dessa divisa nacional. Não apenas o sujeito estrangeiro, em sua personificação negativa e negada, mas o “outro” forasteiro, cuja presença se potencializa em decorrência mesmo dessa negação, abrindo espaço para outras interações no mercado pouco conhecido, nas áreas de divisa, dos afetos e desejos de sujeitos não heterossexuais. O estar “tudo junto e misturado”, para parte dos nossos interlocutores, é uma característica valorativa da cidade brasileira. Antes de ser um sinal da ausência de preconceitos contra “efeminados” e/ou bolivianos, é um modo de nos fazer entender como os processos de diferenciação (logo, de produção de reconhecimento) em relação ao país vizinho pode ser repleto de ambiguidades. Para parte da lógica local, o riso, por exemplo, do público dos eventos que envolvem concurso de beleza em que os jovens “efeminados” se apresentam e/ou organizam, seria uma prova do quanto gêneros dissidentes e Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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sexualidades disparatadas são aceitas. Ao mesmo tempo, em tom de homenagem, durante o carnaval (festa tipicamente reconhecida como brasileira na região) uma drag se torna risível quando adere a símbolos culturais de um outro desvalorizado – a mulher colla, colocando em movimento diferentes marcadores de diferenciação, inclusive, que envolvem a própria representação perforamtiva do ser homem negro por trás da caracterização de uma “caricata” branca. Em meio a essa aparente aproximação não preconceituosa, a percepção de alguns de que no outro lado da fronteira “não tem gay, só índios”, demarca as relações fronteiriças onde um lado, o brasileiro, é tido como mais valorizado. Isso faz com que se tenham processos de interação em que, quando dos interesses afetivos sexuais, no primeiro contato via redes sociais, não se convêm informar que se é boliviano. São diferentes regimes de (in)visibilidade de jovens “efeminados” e, por vezes, “discretos” em Corumbá que são demarcados por questões de gênero, sexualidade e diferenças fronteiriças.
No que diz respeito às pessoas mais velhas com condutas homossexuais, as chamadas “bichas locais”, o próprio Pantanal – em Corumbá e Ladário – pode, a partir de algumas idiossincrasias apontadas acima, estabelecer nas relações transfronteiriças, condições, situações e realidades que permitam articular essas possíveis e prováveis diferenças que constituem de maneira distinta esses lugares de pertença. A partir da análise dos afetos e desejos das “bichas locais” mais velhas e dos marinheiros, é importante perceber que a fronteira nota-se menos por aqueles que ela separa e mais por aqueles que ela aproxima. Ao boliviano, que está, imediatamente, depois e é personagem rotineiro pelas ruas da cidade há a construção de um complexo processo de evitação afetivo, erótico e sexual; ao marinheiro, no entanto, que está, iminentemente, a chegar e que logo partirá outra vez, faz-se um sem número de estratégias de aproximação nesses campos.
Por fim, entendemos relevante frisar que a região estudada não faz parte de conglomerados caracterizados como grandes centros urbanos e isto, inclusive, pode ser apontado como uma das idiossincracias do lugar, colaborando para aprofundar o olhar sobre outras lógicas que permitam pensar os territórios de fronteira para além da lógica centro-periferia, ou capital-interior. A região fronteiriça de Corumbá nos mostra a complexidade das cidades de pequeno e médio porte distantes dos grandes centros e de seu lugar não apenas na economia regional, seja mediante o comércio lícito ou ilícito, mas também do mercado simbólico, das peculiaridades que engendram as representações de nacionalidade, as relações étnicas, de dissidências no campo de gênero e sexualidade, entre outras. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Mover-se nas fronteiras: percursos, políticas e saberes transfronteiriços Flávia Melo1 Doutoranda no PPGAS da Universidade de São Paulo fmcunhamelo@gmail.com
Resumo Perseguindo os movimentos de diferentes personagens, eu inclusive, no território amazônico concebido como a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, experimento neste artigo um exercício de reflexividade antropológica forjado na contextura de diferentes biografias e cartografias nas quais a produção de territórios, de fronteiras nacionais e identitárias embaralham-se a políticas de Estado, crônicas familiares e temporalidades diversas. Revisitando uma intensa experiência de ensino e pesquisa em antropologia nessa mesma região, especulo sobre os seus efeitos e contribuições para uma teoria etnográfica na fronteira. Palavras-chave: fronteiras; percursos; estado; etnografia. Abstract Pursuing the movements of different characters, including myself, in the Amazonian territory conceived as the triple frontier between Brazil, Peru and Colombia, I experiment in this article an exercise of anthropological reflexivity forged in the context of different biographies and cartographies in which the production of territories, national frontiers and identity issues are shuffled to state policies, family chronicles and diverse temporalities. Revisiting an intense experience of teaching and research in anthropology in the same region, I speculate on its effects and contributions to an ethnographic theory at the frontier. Keywords: border; routes; state; ethnography. 1
Professora da Universidade Federal do Amazonas. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas/PROPG (2016-2018). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior/ PDSE (2018-2019) Processo 88881.187521/2018-01.
Mover-se nas fronteiras: percursos, políticas e saberes transfronteiriços
Introdução Proponho neste artigo um exercício de reflexividade antropológica em que rememoro e lio diferentes percursos2. Minha contribuição para o dossiê “Corpos, fronteiras, gênero e sexualidade”3 consiste, pois, na composição de uma narrativa forjada na contextura de diferentes biografias e cartografias nas quais a produção de territórios, de fronteiras nacionais e identitárias embaralham-se a políticas de Estado, crônicas familiares e temporalidades diversas. No decurso dos anos 2000, a implementação de um conjunto de políticas públicas para a interiorização da educação superior, a proteção social e a equidade de gênero transformaram a feição da institucionalidade pública em muitas cidades brasileiras, antes notada quase exclusivamente pela existência de quartéis militares, delegacias de polícia e cartórios judiciais. Esse foi o caso de pequenas cidades amazônicas situadas na tríplice fronteira de Brasil, Peru e Colômbia, como Benjamin Constant, município onde se instalou o primeiro curso de graduação em antropologia do país4.
Em 2010, como centenas de outras profissionais de nível superior, eu chegava a essa cidade para trabalhar como professora no recém-criado campus universitário. Embora componente de minhas crônicas familiares, aquela fronteira5 até então desconhecida, pouco a pouco, materializou-se noutros territórios, corpos e trajetos que transmutaram o meu desejo pela aventura profissional em uma intensa e prolongada experiência de (re) descobertas, o que me conduziu, também, a um profundo e profícuo incômodo com o fazer antropológico ali produzido. “O que acontece com gente como eu que está ali no entre-lugar de todas essas categorias diferentes?”. Ao rememorar o meu próprio percurso, essa indagação da chicana
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Percurso (singular ou plural) será empregado como sinônimo de trajeto ou caminho. A acepção atribuída aos termos advém dos trabalhos de Tim Ingold (2015) para quem “cada ser é instanciado no mundo como um caminho de movimento ao longo de um modo de vida” (Ingold 2015:26). Consonante ao autor, optei por seguir os percursos traçados pelos movimentos de vidas e de fazeres antropológicos. Agradeço a Jose Miguel Olivar (USP) e Guilherme Passamani (UFMS) o acolhimento deste trabalho. Agradeço também aos diálogos que me permitiram aperfeiçoá-lo, especialmente com Silvana Nascimento, Catarina MorawaskaVianna, Adriana Vianna e Fabio Candotti. Maria Inez Melo, José Cícero da Silva e Rizonete Gomes compartilharam generosamente os relatos que compuseram parte significativa deste texto. Em 2006, a Universidade Federal do Amazonas iniciou o primeiro curso de graduação em Antropologia do Brasil. Na mesma época, o Ministério da Educação autorizou a criação de outros cursos na Universidade Federal da Paraíba (2007) e na Universidade Federal de Pelotas (2008). A Associação Brasileira de Antropologia organizou um fórum e uma coletânea em que se analisa o início dessas experiências (Tavares et al. 2010). Utilizarei itálico para enfatizar algumas expressões em língua portuguesa, como fronteira, ou para expressões em língua estrangeira. As “aspas duplas” serão empregadas apenas para citações. Expressões regionais ou termos êmicos são explicados em notas de rodapé quando necessário. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Gloria Anzaldúa (2000:215) ressoou em meus pensamentos e se constituiu um imperativo ao caminho que eu traçava entre fronteiras. Não por acaso, adquiriu cada vez mais relevo entre minhas preocupações acadêmicas e impactou o meu fazer antropológico. Aqui, pretendo demonstrar a formação de um prolongado esforço reflexivo e metodológico em que – por meio de uma biografia generificada das fronteiras vividas, rememoradas e transformadas – especulo a potência criativa dessa experiência para o esboço de uma teoria etnográfica.
Profundamente interpelada pelas provocações multilíngues de Anzaldúa (1987) e intensamente afetada por sua desestabilizadora “conciencia mestiza”, compus o meu “inventário” reconhecendo as diferentes partes que me compõem e o modo como o meu corpo se transforma e se movimenta pelo mundo, encontrando nesse caminho pessoas, lugares e objetos; e experimentando outras formas de ser e fazer nas fronteiras da Antropologia. Não desejo com isso avultar uma trajetória excepcional. Escrevo justamente sobre o contrário: percursos biográficos e cartográficos tão ordinários quanto continuamente ocultados pelas incessantes e espetaculares políticas das agências de expansão e de controle dos estados-nação. Tampouco se trata de banal imersão em si mesma per se, mas de uma análise auto reflexiva capaz de apreender e apreciar a antropologia cultivada nesses encontros e caminhos.
Crônicas de mobilidades na e para a Amazônia Além de comandar cerimônias cívicas, Brácio cuidava também da limpeza das vias públicas, gerenciava a produção de alimentos no Pelotão, socorria os civis doentes, administrava os conflitos entre os moradores da pequena vila, organizava bailes e abençoava a união de jovens casais apaixonados. Em suma, fazia às vezes do prefeito, do comerciante, do delegado, do juiz, e, em algumas ocasiões, do padre. Quando deixou o comando do 10º Pelotão, foi substituído pelo tenente Schultz, natural de Santa Catarina, casado com uma filha de colonos alemães, que já se dispusera a ajudar a professora na escola mantida pelo Pelotão. No epílogo da estória, enquanto assiste a um casamento triplo, cheio de simbologia, o novo comandante de Curi-Curi define com poucas palavras a percepção que o Exército tem de sua missão na fronteira amazônica: “É isso que faz a grandeza deste país. Um crioulo, baiano, casa com uma cabocla, um caboclo com uma índia e um branco com uma cabocla. Todos ficarão aqui e terão filhos... Assim vai-se construindo uma pátria”. (Marques 2007: 90) Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Componho essa narrativa dezoito anos após minha primeira viagem à Tabatinga. Hoje, Tabatinga designa um município brasileiro6, no sudoeste amazônico, situado nos limites nacionais de Brasil, Peru e Colômbia. No entanto, se considerarmos a história administrativo-territorial dessa região, notaremos que o território atual desse município pertenceu antes a São Paulo de Olivença (1817-1898) e, depois, a Benjamin Constant (18981981). Tabatinga, São Paulo de Olivença e Benjamin Constant – atualmente municípios autônomos da federação brasileira no estado do Amazonas – foram em passado muito recente localidades componentes de uma região cuja forma administrativa e cartografia foram alteradas muitas e significativas vezes. Embora filha de tabatinguense, eu conhecia a cidade apenas pelas estórias de assombração narradas por minha bisavó em sotaque castellano; pelo tacate7 amassado nas
mãos de minha avó para os almoços da família; e pelas repetitivas anedotas de velhinhas contrabandistas contadas pelo meu avô materno, sargento do exército brasileiro que cumpriu anos de caserna no pelotão de fronteira daquela cidade. Foram essas mesmas lendas, anedotas e comidas as “pequenas aberturas” que, anos mais tarde, produziram a minha ligação com aquele lugar e com uma parte desconhecida da minha família. Esses vetores e substâncias permitiram-me estabelecer liames com “histórias mais amplas”, com temporalidades e geografias que eu ignorava, “espessando” laços antes “diluídos” no tempo e no espaço8.
No início dos anos 2000, quando estudante da graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), em Manaus, experimentei uma de minhas breves incursões etnológicas: como estudante extensionista, acompanhei uma assembleia da Organização de Saúde do Povo Ticuna do Alto Solimões, na cidade de Benjamim Constant. A bordo de um boeing 737 da Viação Aérea Rio-Grandense com capacidade para mais de cem pessoas, viajamos eu e outras colegas estudantes, por cerca de três horas. Durante a viagem, olhos fitados na janela da aeronave, eu me perdia entre os ondulados labirintos formados por tênues linhas de cor marrom no denso verde-escuro da floresta. Aterrissamos no aeroporto de Tabatinga e, minutos depois, no porto da mesma cidade,
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Criado pela Emenda Constitucional do Amazonas nº. 12 de 10/12/1981. Também conhecido como tacacho, é um prato preparado com banana pacovã verde (ou com bananada-terra, em algumas cidades brasileiras) cozida e amassada, temperada com gordura animal e cheiro verde (cebolinha, coentro e chicória). Convém reportar ao conceito de relacionalidades proposto por Carsten (2014: 113). Esta autora, recorrendo a memórias familiares, mobilizou as histórias que escutara de sua mãe sobre o tio hemofílico para pensar como vetores e substâncias eivados de temporalidades e geografias podem espessar ou diluir relações de parentesco. Espessamento e diluição operam nesse caso como metáforas de sangue, substância emblemática na produção das teorias de parentesco, como amplamente discutido em seus trabalhos. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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debaixo de uma forte chuva, embarcamos – com certo desequilíbrio – em uma baleeira9 que nos transportaria ao nosso destino. A monotonia da viagem de avião (interrompida poucas vezes por esparsas nuvens) cedeu lugar à ininterrupta trepidação da pequena lancha que deslizava habilmente entre grandes troncos de árvores e canaranas10, enfrentando com destreza o rebojo11 do rio.
Por uma semana, auxiliamos lideranças indígenas a dominar técnicas de elaboração de projetos para captação de recursos e de participação em conselhos de saúde para controle social. Impossível imaginar, na época, que o prédio que nos serviu de abrigo nos dias de reunião se tornaria, anos depois, a sede do Instituto de Natureza e Cultura, campus universitário da Ufam no Alto Solimões12. Tampouco podia prever que justamente ali, dez anos mais tarde, eu iniciaria minha carreira docente. O rio e a floresta avistados do avião, a agitada viagem em baleeiras que vão-e-vem entres as duas cidades dezenas de vezes ao dia, as refeições com toda sorte de preparo da banana pacovã tornar-se-iam corriqueiros.
Muitas décadas antes, no final dos anos 1940, Manoel (1910-1989), meu bisavô materno, labutava em seringais no Vale do Javari, nas proximidades dessa mesma região. O caboclo amazonense era filho de um migrante nordestino cearense que, como milhares de nordestinos, havia se aventurado em um navio e cruzado o Rio Amazonas para trabalhar na exploração do “ouro branco”. Naquele período, Manoel seguia forçosamente os passos do pai. É provável que o meu tataravô materno tenha chegado à região no final do período que a historiografia convencionou designar por “apogeu da borracha” ou “primeiro ciclo da borracha”, ocorrido na passagem do século XIX para o século XX. Essa fase da exploração gomífera na Amazônia foi tão próspera quanto efêmera. Segundo a historiografia oficial, após a perda do monopólio da borracha para empresas inglesas, os seringais amazônicos entraram em crise, sendo revitalizados a partir dos anos de 1940, no contexto da II Guerra Mundial, quando os governos brasileiro e americano assinaram acordos para aumentar a exploração das seringueiras nativas. Se tratava, portanto, do final da segunda fase de exploração do látex. A “batalha da borracha”, reavivada pelo comércio bélico internacional13, terminava. A mão-de-obra 9
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Benjamin Constant é um município amazonense vizinho à Tabatinga. O transporte entre as duas cidades é exclusivamente fluvial, realizado principalmente por pequenas embarcações de fibra de vidro, movidas por motores de popa, conhecidas como baleeiras. Hoje, as viagens nessas lanchas com capacidade para 15 a 18 pessoas duram cerca de 40 minutos. Vegetação aquática. Redemoinho de água muito frequente naquele trecho do Rio Solimões. Denominação atribuída à região administrativa composta por nove municípios situados na calha alta do Rio Solimões, no estado do Amazonas: Amaturá, Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Fonte Boa, Jutaí, Santo Antônio do Içá, São Paulo de Olivença, Tabatinga e Tonantins. O Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para Amazônia (Semta), criado em Fortaleza
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nativa não suportava mais a ambição de comerciantes da borracha e, com a recusa de muitas famílias a trabalhar na exploração da seringa, regatões14 coagiam-nas a adentrar a mata, amedrontando-as com histórias de guerra. Embora a segunda guerra já estivesse no fim e as tropas retornando ao Brasil, Manoel acreditou nas palavras de um tal regatão, e para não ser recrutado ao front, fugiu com a esposa e seus quatro filhos para o Vale do Javari. Deixados à própria sorte no meio da floresta e longe do rio, lutavam dia e noite para domar a seringueira, proteger-se da selva e sanar a inacabável dívida registrada na caderneta do regatão que ali os deixara com um punhado de sal, feijão, arroz e carne seca.
Manoel e Sebastiana (1913-2001) construíram uma pequena tapera15 e permaneceram naquela região por mais de cinco anos. No início, meu bisavô e sua filha mais velha (na época com pouco mais de dez anos) trabalhavam na mata, pelejando para extrair o leite de seringa. Sebastiana ficava na tapera cuidando dos três filhos mais novos, desmatando o terreno ao redor da casa para evitar ataques de onça e cultivando pequenas roças de banana e macaxeira. Certeira no uso da espingarda, para cuidar dos filhos não podia mais dedicar-se à caça. Exímia pescadora de arpão, mas afastada do rio, tampouco podia alimentar bem a si e a sua família. O pagamento da dívida era feito exclusivamente com a borracha extraída por Manoel e a filha, mas como ainda não sabiam retirar o leite e a produção era insuficiente, as anotações na caderneta só aumentavam. Foram anos muito difíceis. Próximo ao fim da estada na colocação16 do Javari, encontraram finalmente um lago
e Sebastiana voltou a pescar. Ali perto ergueram outra tapera, o roçado vingou e passaram a produzir a própria farinha. Manoel e a filha dominaram cada vez mais a extração do leite da borracha e, com o aumento da produção, pouco a pouco, diminuíram a dívida. Uma doença grave acometeu um dos filhos e a família decidiu abandonar a colocação. Quitado o débito, armazenaram algumas bolas de borracha, deixaram tudo o que ali cultivavam e desceram17 do Alto Rio Javari para a Ilha do Aramaçá18 de onde fugiram anos antes por
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em 1943 (Prates & Bacha 2011), transportou para a Amazônia cerca de 50 mil pessoas, sobretudo homens e nordestinos, com o objetivo de extrair borracha durante a II Guerra Mundial. Segundo Lima (2013), em 1940, havia cerca de 35 mil seringueiros na Amazônia, mas a produção gomífera de guerra demandava mais de 100 mil trabalhadores. O governo brasileiro, subsidiado pelo norte-americano, financiou o deslocamento de homens do nordeste brasileiro para a região norte, especialmente para os estados do Amazonas, Acre e Rondônia, configurando-se uma importante agência de migração. Comerciantes de miudezas que navegam entre rios e comunidades ribeirinhas. Habitação de acabamento rudimentar, com estrutura de madeira e cobertura de palha. Alocação dos seringueiros para explorar a borracha. Descer e subir o rio são expressões comuns entre as pessoas que navegam os rios amazônicos. Os movimentos de descida e subida acompanham o fluxo das águas. Assim, subir o rio significa navegar contra a correnteza, e descer significa navegar a favor dela. Essa pequena ilha existe ainda hoje e está localizada em frente à cidade de Benjamin Constant. Seu Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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causa da suposta guerra.
Não descobri as origens precisas de meus bisavôs maternos. Soube tão-somente que chegaram ao Rio Solimões pelo Rio Içá. Quando coagidos pelos boatos de guerra, residiam na Ilha do Aramaçá – onde haviam se casado em 1936 – e viviam da pesca e da caça. Movimentando-se pelos rios Içá, Solimões e Javari; do Vale do Javari para a Ilha do Aramaçá; trabalhando na pesca, na caça, na agricultura e nos seringais, Manoel e Sebastiana, por fim, chegaram a Tabatinga onde nasceram mais oito filhos. O sítio da família, no nascente bairro da Comara, se situava entre a comunidade indígena de Umariaçú19, e a vila militar do Pelotão Especial de Fronteira (PEF). O nome do bairro,
Comara, referenciava uma antiga pista de terra, em clareira aberta ao lado da vila militar do PEF, preparada pela Comissão de Aeroportos da Região Amazônica (Comara) para o pouso dos hidroaviões Catalina e dos aviões C130 que ali pousavam e partiam para outros pelotões mais distantes, como Estirão do Equador, Japurá, Ipiranga e Vila Bitencourt. No final dos anos 1950, outro nordestino chegava às paragens do Rio Solimões. Recrutado pelas Forças Armadas Brasileiras numa praça portuária do Recife/PE, onde carregava sacos de açúcar, o jovem Cícero (1935-atual) atendeu à convocação do Exército Brasileiro para “servir à nação” e alistou-se, deixando o litoral pernambucano para trabalhar na capital do Amazonas. Em 1957, embarcou no Navio Motor Irineu Evangelista rumo ao Pelotão Especial de Fronteira, em Tabatinga. Irineu Evangelista era uma embarcação comercial que percorria o Rio Solimões transportando mercadorias diversas, alimentos, carros, animais e pessoas. O navio era homônimo do patriarca da navegação amazônica, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá20.
Essas embarcações são ainda hoje o mais popular e acessível meio de transporte para pessoas e mercadorias de toda sorte, entre as cidades e sobre os rios amazônicos. Eu mesma, aos oito anos, vivi uma grande aventura de infância ao percorrer um longo trajeto a bordo de um navio-motor, descendo o rio Madeira até Manaus, com meus avós e todas as
território pertence ao mesmo município. 19 Comunidade indígena da etnia Ticuna, cujo território foi reconhecido em 1998, atualmente conurbada a Tabatinga. Segundo informações do Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org), os Ticuna são o maior povo indígena na Amazônia brasileira. Viviam no alto dos igarapés afluentes da margem esquerda do rio Solimões até o rio Içá e hoje habitam toda a região do Alto Solimões, nos municípios de Tabatinga, Benjamim Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá e Tonantins. Sua história é marcada por violentas relações de contato, como o massacre do Capacete (1988) quando 4 índios foram assassinados, 19 feridos e 09 desapareceram. A este respeito, convém consultar o minucioso e comovente relato de “A lágrima Ticuna é uma só” (Maguta 1988). 20 Em 1852, um contrato de concessão do governo imperial para Irineu Evangelista de Souza, futuro Barão de Mauá, assegurou o pagamento de uma subvenção pecuniária mensal para implantação da navegação a vapor no rio Amazonas (Gregório 2009: 195). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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quinquilharias da família; inclusive o Ford Belina que nos transportara da capital federal para a cidade amazonense de Humaitá. Recordo-me de assistir, atenta e apreensiva, ao translado de nosso carro da balsa ao convés do navio. Nas madrugadas, o som grave da buzina do navio anunciava a chegada a cada novo vilarejo ou cidade. A cada porto o ritual se repetia: redes desatadas, malas arrumadas, pessoas perfumadas desembarcavam e novas ingressavam, acomodando-se com suas redes coloridas nos vãos deixados pelas egressas. Durante o dia, as refeições servidas pontualmente às seis, doze e dezoito horas eram distribuídas em compridas mesas montadas no mesmo salão em que pendurávamos nossas redes durante a noite. Quando Cícero chegou ao pelotão de fronteira em 1957 – vinte anos antes de entrar para a reserva militar na cidade de Brasília/DF – o grupamento era formado por algo em torno de trinta homens militares: a maioria deles, soldados nascidos em Benjamin Constant e na Ilha do Aramaçá. Os sargentos e oficiais transferidos de outras cidades brasileiras eram poucos. A maior parte dos homens vivia com suas famílias e os poucos solteiros logo se arranjavam com as mulheres nativas em cerimônias incentivadas pela corporação. Com meu avô não aconteceu diferente: enquanto fazia serviços elétricos nas ruas da Comara, conheceu uma jovem empregada doméstica, Nazaré (1937-1996), minha avó materna, a primogênita de Manoel e Sebastiana, com quem se casou e teve três filhos. A cerimônia de casamento coletivo, presidida pelo capelão militar do PEF em 1959, oficializou, na mesma ocasião, a união de outros vinte casais. Analisando o povoamento de Tabatinga desde as crônicas de meus familiares e de moradores atuais da cidade, é notável como as relações de parentesco e aliança conformaram-se importante estratégia de estado para o povoamento. É muito frequente na história das famílias da região, como na minha, o casamento de homens do nordeste do Brasil (militares ou trabalhadores da borracha) com mulheres indígenas de diferentes etnias. Essa estratégia militar de povoamento e defesa das fronteiras amazônicas esteve certamente associada a ideários de fixação e miscigenação, e a práticas de reprodução sexual, incentivadas institucionalmente pelas Forças Armadas para a construção da pátria (Olivar e Melo da Cunha 2018).
Assim, as alianças matrimoniais constituídas pela minha família naquele período não eram episódio singular. Afinal, aquela era uma região de consolidação e expansão das fronteiras do Brasil, alvo de políticas de segurança nacional e de ocupação da Amazônia pela forte – e ainda atual – presença militar. E, não por acaso, a carreira militar se configurava, para muitos homens e mulheres, um fator influente para a organização familiar, a segurança financeira e a mobilidade social. Representava, além disso, a possibilidade de viver em Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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outras cidades, na capital do estado, ou mesmo em outros estados do país.
O militarismo que servia aos interesses estatais como estratégia de fixação e povoamento, representava, para muitas pessoas da região, um meio de mobilidade social e deslocamentos. Não somente minha avó materna, como outras de suas irmãs casaramse com militares de baixa patente, oriundos de diferentes cidades nordestinas e, depois de alguns anos, passaram a morar na capital do estado, Manaus, onde educaram seus filhos e netos. A influência da carreira militar seria observável na minha família por muito tempo, tendo alcançando outras gerações que conheceram os privilégios da carreira militar, mesmo para baixos oficiais como nossos avós.
Mulheres em movimentos: outros caminhos nos rios amazônicos Durante a viagem, Domingas se alegrou, quase infantil, dona de sua voz e do seu corpo. Sentada na proa, o rosto ao sol, parecia livre e dizia para mim: “Olha as batuíras e as jaçanãs”, apontando esses pássaros que triscavam a água escura ou chapinhavam sobre folhas de matupá; apontava as ciganas aninhadas nos galhos tortuosos dos aturiás e os jacamins, com uma gritaria estranha, cortando em bando o céu grandioso. Minha mãe não se esquecera desses pássaros, reconhecia os sons e os nomes, e mirava, ansiosa, o vasto horizonte rio acima, relembrando o lugar onde nascera. (Hatoum 2000: 74)
Nas crônicas do patriarca de minha família materna e nos álbuns de família, as mulheres eram coadjuvantes ou, simplesmente, não eram retratadas nas imagens em que os protagonistas, varões destemidos, enfrentavam a selva, a guerra e a pobreza para “proteger”, “ocupar” e “desenvolver” a Amazônia. Parte significativa das análises sobre a ocupação da Amazônia (Reis 1989; Prates & Bacha 2011) têm enredo bastante semelhante: centram-se na descrição e análise da região a partir de projetos fomentados por agências coloniais, missões religiosas, expedições militares ou políticas de estado quase sempre protagonizadas por homens, fossem eles aventureiros, missionários, comandantes, seringueiros ou militares. De fato, convém enfatizar, essas agências desempenham ainda hoje papel fundamental na produção e expansão das fronteiras nacionais, de territórios estatais e no controle de populações. No entanto, nas lembranças de minha mãe e de outras mulheres da família, os seringais, os casamentos, a vida militar e a cidade são prenhes de outros movimentos, protagonizados também por mulheres, o que me permitiu vislumbrar outras imagens e
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reconhecer outros caminhos afetivos e identitários. Foram nessas lembranças partilhadas por minha mãe que redescobri as nossas antigas raízes de mestiçagem21. Minha tataravó materna, mãe de Sebastiana, era índia de origem peruana e se casou com um jovem negro vindo do Pernambuco. Minha bisavó Sebastiana, com quem pouco convivi na infância, era conhecida como mulher impávida. Nas idas e vindas entre a ilha do Aramaçá, o Vale do Javari, Tabatinga e Manaus, pariu e criou doze filhos, outra dezena de netos e alguns bisnetos. Da bisa, como a chamávamos, nunca esqueci as histórias de assombração, o pente dourado com que prendia os longos cabelos lisos e brancos – sempre arrumados em um coque, as lições de bom comportamento na semana santa e as severas advertências sempre proferidas com um acentuado sotaque. Nos últimos meses de vida, senil e adoecida, encostava-se ao portão de sua casa em Manaus para observar na rua de asfalto os barcos que desciam o rio, conversar com o marido e a filha mais velha (falecidos anos antes) e esbravejar em uma língua desconhecida. Sua filha mais velha, Nazaré, minha avó materna, ainda na infância, enfrentou com o pai as cobiçadas seringueiras no Vale do Javari. Moça feita, morando em Tabatinga, aprendeu a costurar e a cozinhar nas casas de oficiais militares do PEF onde prestava serviços domésticos. Devota de Nossa Senhora de Nazaré, de quem herdou o nome, cuidava com esmero do novenário da padroeira e participava assiduamente de todos os ritos litúrgicos dedicados à santa em uma capela franciscana do povoado de Tabatinga22.
Entre o sítio na Comara, onde vivia com os pais e irmãos, e as ruas da vila militar do PEF, conheceu um soldado nordestino, Cícero. Com ele se casou e teve três filhos: Inez, a mais velha; Darcley, a caçula; e seu único filho homem, a quem deu um nome composto
em homenagem ao padroeiro católico do bom parto e ao patrono do exército brasileiro, Raimundo Caxias, nascido no dia do soldado. Não por acaso, o nome de meu tio sintetizou duas importantes formas de governo daquela região: a missionação e o militarismo. Minha mãe Inez nasceu em junho de 1959 no povoado de Tabatinga, na época pertencente à Benjamin Constant, então “território de segurança nacional”23. Passou
21 Esse é um termo deveras controverso e extensamente discutido no pensamento antropológico, em diferentes vertentes (Laplantine & Nouss 1997; Moutinho 2004; Stolke 2008). Ciente dos deslizamentos que o emprego do termo produz, assim como das implicações políticas de seu uso, mobilizo-o, neste texto, na mesma e restrita acepção proposta por Anzaldúa (1987). 22 “A presença missionária também é antiga e sabe-se que, em Tabatinga, desde o ano de 1873, havia uma igrejinha de alvenaria, junto ao forte, dedicada a São Francisco Xavier. Os missionários mantinham uma ótima relação com os oficiais e praças daquele Pelotão Independente, pois várias vezes ao ano, ali estavam para dar assistência religiosa aos militares e civis. A capela de Nossa Senhora de Nazaré foi construída pelo Revmo. Pe. Frei Silvestre de Pontepattoli, juntamente com os militares, quase todos paraenses e devotos de Nossa Senhora” (Silva 2011:78). 23 Em 1898, o território do povoamento de Tabatinga foi incorporado ao recém-criado município de Benjamin Constant (Amazonas-Brasil). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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os primeiros anos da infância no Brilhante, bairro às margens do igarapé homônimo, adjacente ao PEF, lado oposto ao da Comara. Estudou na única escola do povoado onde alguns militares e esposas de militares dividiam a tarefa de ensinar as crianças. Estas, em sua maioria, eram filhas de oficiais militares residentes no PEF, de praças24 que moravam na Comara e no Brilhante – como minha mãe –, e de comerciantes locais, alguns de origem portuguesa. Outras dessas crianças, a minoria, eram filhas de caboclos25 da comunidade de Umariaçú. O caminho hoje asfaltado e percorrido por motos e carros, era improvável em 1965, quando ali se chegava exclusivamente de canoa. E foi de canoa que Inez, aos seis anos, chegou pela primeira vez àquela comunidade.
Em Umariaçú, a menina conhecia as afilhadas de sua mãe, crianças com quem conviveu intensamente nos primeiros anos da infância. As tias e tios de Umariaçú visitavam Cícero e Nazaré mensalmente. Enquanto Inez e as outras crianças brincavam de subir em ingazeiros, tomar banho no igarapé e cuidar de patos, as comadres trocavam presentes: Nazaré distribuía uma parte dos mantimentos recebidos da Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal) e as roupas que costurava com tecidos que Cícero comprava em Letícia/ Colômbia. Em troca, recebia galinhas, banana, macaxeira e farinha. Minha mãe recorda as iguarias que integravam o rancho militar: além de arroz, feijão, macarrão, sal, açúcar, manteiga e bolacha, recebiam jabá26, chouriço, fiambre em conserva, queijo do reino e goiabada.
Aquela, no entanto, não era uma visita familiar à parentela de Umariaçú, mas uma excursão escolar para a inauguração da primeira escola de Umariaçú, a Escola Estadual
Almirante Tamandaré27. Estiveram presentes à cerimônia algumas autoridades militares,
o capelão e a comitiva escolar, da qual minha mãe fazia parte. Uma enorme bacia de alumínio com açaí e um grande paneiro28 com farinha de tapioca foram oferecidos aos visitantes. No rito inaugural, não por acaso, as crianças da comunidade apresentaram uma dança “folclórica” e as crianças de Tabatinga uma peça teatral. Minha mãe, que sempre ouvira, em casa, a parentela ser chamada pelo nome próprio, descobria naquela ocasião que os caboclos de Umariaçú eram índios como aqueles representados por Peri, o herói romântico de José de Alencar. Na peça escolar, Peri foi interpretado por um de seus colegas de escola, vestido com penas de galinha, um arco e uma flecha. Inez protagonizara a
24 Militares de baixa patente, como soldados, cabos e sargentos. 25 Nas memórias de infância de minha mãe, era assim que os moradores de Tabatinga se referiam às pessoas indígenas da etnia Ticuna que viviam em Umariaçú. 26 Charque ou carne seca, em outras cidades do Brasil. 27 A escola é hoje considerada uma das mais antigas escolas indígenas bilíngues da região, embora não tenha sido assim desde a sua fundação. 28 Cesto amazônico confeccionado com fibras de arumã em traçado hexagonal. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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romântica Cecília, eternizada na ópera de Carlos Gomes.
A diferença aprendida na escola, era produzida também em outros espaços. Anos depois daquela inauguração, em 1968, Cícero foi promovido a cabo e transferido para outro posto, passando a viver com a família no PEF de Cucuí, em São Gabriel da Cachoeira/AM, outra fronteira amazônica na região do Alto Rio Negro. Ali, Inez se descobriu uma menina branca, diferente dos índios que passou a temer. Ao deixar Tabatinga, sua mãe recebera das mulheres de militares que haviam morado em Cucuí duas insistentes recomendações: a primeira, alertava-a a recusar qualquer alimento oferecido pelos índios, acostumados a matar inimigos envenenados. A segunda, informava-lhe que esses mesmos índios não gostavam de gente de pele clara, como Inez. Esses e outros episódios da biografia de minha mãe revelaram como ela experimentava na infância e adolescência a descoberta de diferenças e percebia a formação de uma certa branquitude e de outras marcas.
A adaptação a Cucuí foi difícil nos primeiros meses. Minha avó, impressionada pelos maus conselhos, temia ser envenenada e por muito tempo evitou laços de amizade e compadrio com a vizinhança. Do mesmo modo, recusava os pães gentilmente oferecidos por uma das novas vizinhas. A cada cesta de pães presenteada, explicava aos filhos as razões de jogar os pães no lixo. O medo do envenenamento e o desejo provocado pelo apetitoso cheiro dos pães eram sentimentos confusos para as crianças. Por dois anos, Inez frequentou um colégio mantido pelas missionárias salesianas em Cucuí e, em 1970, foi enviada para o Patronato Santa Terezinha, um internato feminino mantido em Manaus pelas mesmas missionárias. Tendo descoberto as diferenças entre a cor da sua pele e a de outras crianças pelas estórias assustadoras sobre os índios de São Gabriel da Cachoeira, experimentou no patronato outras diferenças e desigualdades.
Muitas jovens do interior do Amazonas foram (e ainda são) enviadas por suas famílias para estudar na capital do estado. Naquela época, algumas delas eram recebidas e educadas em internatos religiosos, mantidos por missionárias católicas, como o Patronato Santa Terezinha. Outras jovens, certamente a maioria, eram recebidas por famílias que as acolhiam em apadrinhamento com o compromisso de oferecer abrigo, alimento e educação. Em ambas as situações, a família das meninas retribuía com o envio de mantimentos – farinha, peixe, banana e outras frutas –, e as meninas com a prestação de serviços domésticos e, não raras vezes, serviços sexuais, como ocorreu à Domingas de Milton Hatoum (2000). Aliás, a literatura amazônica (Rangel 1908; Hatoum 2000), predominantemente escrita por homens, é povoada por estórias de filhos bastardos, violências de gênero e relações abusivas entre patrões, padrinhos e suas afilhadas. O mesmo não ocorreu a Inez, mas tão logo chegou ao patronato percebeu o modo
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como ela e outras crianças eram tratadas. O excesso das tarefas domésticas, as regalias reservadas às meninas de famílias abastadas e a distância dos pais fizeram do internato um lugar insuportável para a menina que, desencantada pelo noviciado, planejou uma fuga frustrada pelo pai que, ao perceber seu descontentamento, a trouxe de volta.
Apesar da má experiência no internato religioso, Inez nutriu o sonho de estudar, voltar a Manaus, viajar e conhecer outros lugares. Sempre me contou, com deslumbramento, a sua primeira viagem aérea a bordo do Catalina. O sonho nascera antes mesmo de a menina conhecer a capital. Uma inflamação no joelho direito foi tratada com uma cirurgia malsucedida, realizada pelo único médico do PEF, um ginecologista. O erro médico agravou o problema de saúde e a impediu de andar por dois anos, período em que esteve sob os cuidados diários de um enfermeiro militar, o cabo Carlos. Cresceu cultivando a admiração pelos jalecos brancos, sonhando em se tornar enfermeira. Aos onze anos passou a morar em Manaus com seus pais e irmãos. Tendo deixado Tabatinga e, depois, a vila militar de Cucuí, a adolescente terminou o colegial, estudou administração e aos 17 anos se casou na cidade de Agrestina, em Pernambuco, a terra natal de seu pai – para onde ele retornara com toda a família para cuidar da mãe idosa e adoecida29. Inez conhecera o seu futuro
marido ainda em Manaus: um jovem negro do interior goiano, funcionário de uma das primeiras empresas de transporte urbano da capital amazonense. À empresa pertencia a linha de ônibus que minha mãe utilizava para frequentar as aulas na escola Presidente Castelo Branco30.
Do sertão pernambucano meu avô foi transferido para o planalto central e toda a família se mudou para Brasília. Em 1986, meus avós e tios maternos voltaram para o Amazonas31 em uma longa viagem de 2800 km pelas rodovias BR 364 e BR 319 percorridos no Ford Belina e mais 700 km navegados pelo Rio Madeira até Manaus. Eu voltava com eles. Minha mãe e meus dois irmãos permaneceram na capital federal por mais alguns
29 A bisa Inez, de quem minha mãe herdou o nome, era pernambucana, de estatura alta, pele branca e de olhos muito claros. Diz-se que dela alguns de nós herdamos a pele mais clara, como minha mãe. Cega pela quebra do resguardo - a não observância de repouso e dieta alimentar após o parto - quando do nascimento de meu avô Cícero, era mãe solteira e hábil tecelã. Até bem pouco tempo antes de morrer, trabalhou no seu velho tear, cujos fios coloridos eram cuidadosamente ordenados para que ela continuasse a desenhar as redes tecidas com esmero. Eu não a conheci, morreu meses antes de meu nascimento, quando minha família já havia deixado Pernambuco e residia em Brasília, a capital federal inaugurada nos anos 1960. 30 A escola tem o nome do primeiro presidente militar brasileiro após o golpe de 1964 e localiza-se no bairro São Jorge, zona oeste de Manaus. O bairro cresceu ao redor de uma vila militar das Forças Armadas. Muitos militares de baixa patente transferidos para Manaus fixaram residência nas adjacências da vila o que contribuiu para a formação de vários bairros nas proximidades. 31 A família voltava para acompanhar os últimos anos de vida do meu bisavô Manoel, adoecido pelo câncer e falecido antes de conquistar o reconhecimento de seu direito à aposentadoria como soldado da borracha. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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anos. Com o fim do casamento, Inez voltou a viver em Manaus. Muitos anos se passaram até que pudesse revisitar sua terra natal, Tabatinga. Meio século depois de seu nascimento, quem retornava a esta cidade era eu, sua filha mais velha, para trabalhar como professora universitária.
A viagem de volta: para além da aventura antropológica Comecei a pensar: Sim, sou chicana, mas isso não define quem eu sou. Sim, sou mulher, mas isso também não me define. Sim, sou lésbica, mas isso não define tudo que sou. Sim, venho da classe proletária, mas não sou mais da classe proletária. Sim, venho de uma mestiçagem, mas quais são as partes dessa mestiçagem que se tornam privilegiadas? Só a parte espanhola, não a indígena ou negra. Comecei a pensar em termos de consciência mestiça. O que acontece com gente como eu que está ali no entre-lugar de todas essas categorias diferentes? (Anzaldúa 2000:215)
Nos anos 2000, a instalação de universidades no interior da Amazônia compunha um conjunto diversificado de políticas criadas ou radicalmente ampliadas no país ao longo dos últimos quinze anos sob o signo do desenvolvimento. Refiro-me, principalmente, a políticas de expansão da educação superior, da segurança pública e da proteção social, cujo alcance e efeitos no Amazonas foram notáveis. Para uma vaga ideia desses efeitos apenas na educação, de 2001 a 2011, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) criou 68 novos cursos de graduação, ampliando em 262% as vagas oferecidas em vestibular. Com a adesão ao Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), em 2005, a Universidade Federal do Amazonas criou 30 novos cursos sediados em 5 unidades espalhadas no interior do estado. A interiorização, que implicou na contratação de mais de 500 servidores, incluiu o Instituto de Natureza e Cultura, em Benjamin Constant, onde se implementou, em 2006, o primeiro curso de graduação em antropologia do Brasil. No mesmo ano, surgia em Manaus um programa de pós-graduação na mesma área.
Diferentes concepções convergiam em prol do fomento ao ensino da antropologia no Amazonas. Notas de imprensa do Ministério da Educação destacavam os investimentos milionários do governo federal, justificados pela numerosa presença indígena e pela vocação antropológica da região que atraía pesquisadores de todo o mundo (Bastos, 2006). Essa justificativa antecipava algumas das controvérsias observadas na efetivação daquele Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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projeto; e uma delas foi a tensão entre uma tradição de distanciamento e alteridade produzida pela pesquisa antropológica feita na/sobre a Amazônia por pesquisadores estrangeiros, e a formação de estudantes – e, logo, de antropólogas – pertencentes aos grupos de populações tradicionalmente estudados por essa disciplina. Uma avaliação dos primeiros anos da graduação em Benjamin Constant publicada em coletânea da Associação Brasileira de Antropologia (Tavares et al. 2010) revela uma parte desse conflito:
Como os alunos são da própria região, alguns têm simpatia por algum grupo local, já vem dos movimentos sociais ou da experiência pessoal ou familiar cotidiana em algum segmento, e acabam colocando essa militância, essa ideologia, certa sociologização e politização da antropologia, acima do próprio conhecimento antropológico. Então, a meu ver, é “querer colocar o carro na frente dos bois” e querer fazer militância sem ter fundamentação antropológica sólida que dê sustentação as suas reivindicações e, muitas das vezes, boas intenções. Se por um lado a região carece dessas políticas, por outro acredito que da maneira imediatista como alguns alunos de antropologia pensam em resolver os problemas sociais históricos da região, a própria antropologia acaba perdendo com isso, pois alguns projetos de antropologia caberiam melhor num curso de serviço social ou de outra área que não a antropologia” (Vieira 2010: 23).
Essas e outras diferenças manifestavam-se também em outras camadas de relações, dentro e fora da sala de aula. Eu mesma, quando retornei para a fronteira em 2010, voltava como patroa32 e possuía, de certo modo e em algumas relações, um corpo estrangeiro, intelectualizado e embranquecido33 pelos privilégios que pude experimentar. A formação acadêmica, a experiência profissional e a circulação por espaços em nada
32 Termo comumente empregado em Tabatinga e Benjamin Constant para designar mulheres com ascendente posição social e/ou econômica. Por exemplo, médicas, professoras universitárias, pastoras, militares e vereadoras são chamadas de patroa. 33 Essa tentativa de articular estrangeirismo e branquitude se deve ao diálogo com os trabalhos de Candotti (2017a) que os emprega para descrever uma experiência distinta. Considerando sua trajetória de homem branco e “sudestino” em Manaus, o autor descreve “a posição do estrangeiro [na Amazônia como aquele] que não é capaz de entender a vida local e de se misturar a ela, e que, provavelmente, não demorará muito para ir embora”. Essa, evidentemente, não é a minha posição, marcada diferente pelo gênero, origem e destino. No entanto, meus movimentos para fora de Manaus e da Amazônia, assim como a volta como pesquisadora (e, depois, professora universitária), me aproximavam, em alguma medida, dessa posição estrangeira compartilhada por pesquisadores na região, em sua maioria homens brancos. Nesse caso, branco não diz respeito exclusivamente a cor da pele – o que definitivamente é uma marca relevante –, mas a outros elementos que a ela se somam, como status e renda, constitutivos da branquitude (que hoje, em alguma medida, também me compõe) e que produz corpos “mais sábios e inteligentes, mais civilizados e modernos, mais bonitos, brancos e cheirosos, mais trabalhadores e mais ricos” (Candotti 2017b). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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periféricos produziram outras e novas experiências que se misturaram àquelas que antes me compunham. Embora filha de amazonense, pobre e criada em um dos bairros mais estigmatizados de Manaus, eu havia ingressado aos 17 anos em uma universidade pública e, desde então, obtido bolsas de estudo que me permitiram contribuir para o sustento da família e realizar o mestrado em importante universidade brasileira. Além disso, eu voltava ao Amazonas após cinco anos dedicados aos estudos de gênero, avaliação de políticas e segurança pública: primeiro como estudante de mestrado e, depois, como consultora de agências internacionais. Por essa trajetória, e apesar dela, na ocasião do meu ingresso na carreira docente, eu ansiava abandonar os estudos de gênero e me concentrar nos estudos de práticas policiais e de controle para investigar a formação da Polícia Indígena do Alto Solimões (Mendes 2014). No entanto, poucos meses de trabalho foram suficientes para me dissuadir: uma a uma, chegavam a mim estudantes interessadas em “aprender sobre mulheres, direitos e gênero”. O fato é que, naquele momento, se eu não estava mais interessada nesse tema, aquelas estudantes estavam. E, não sem resistências, deixei-me, afinal, guiar por elas.
“Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para a terra Zande, mas os Azande tinham; de forma que tive de me deixar guiar por eles” (Evans-Pritchard 1978:300). Este excerto – inspirador naquilo que expõe sobre a tensão entre as diferenças e seus efeitos para a teoria antropológica – revela um tipo de relação diferente da que experimentei pelo vínculo e tensões produzidas entre prática docente, pesquisa e teoria antropológica. Se, como Evans-Pritchard, eu cedia aos interesses das estudantes; por outro lado, tanto eu como elas nos constituíamos pessoas marcadas, ao mesmo tempo, pela alteridade e pela identidade, pela diferença e pela semelhança. Eu era a professora de fora. Elas eram as estudantes nativas. Nossos interesses eram diferentes. Nossas posições na universidade e fora dela não eram socialmente equitativas. Mas algo nos permitia o mútuo reconhecimento e o estreitamento de laços de cuidado, afeto e afinidade. Junto a elas me movi e pude observar por meio de suas descrições iniciantes e sagazes, o cotidiano de profissionais do sexo em Tabatinga (Lima 2010); o fluxo da justiça criminal em Benjamin Constant e Atalaia do Norte (Sangama 2011; Duarte 2011); os obstáculos enfrentados por parturientes peruanas no sistema de saúde brasileiro (Campos 2012); os efeitos locais de proposições legislativas para criminalização do “infanticídio” indígena (Maia 2014) ou contra a descriminalização do aborto (Tapudima 2014; Oliveira 2015); e, especialmente, as configurações locais de políticas de segurança pública, defesa nacional e proteção social desde a perspectiva de mulheres habitantes daquela região multiétnica e transnacional (Albuquerque 2013; Lopes 2013). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Nesse “engajamento com pessoas reais” (Ingold 2012)34 forjei minha trajetória docente e de pesquisa e, como meus antepassados, vivi e percorri cidades e rios. Enquanto ensinava, aprendia e liderava projetos concentrados sobremaneira no estudo das relações de gênero, das violências e dos direitos humanos, reconhecia naquela “paisagem”35 memórias e genealogias. O que para muitas pesquisadoras seria uma aventura amazônica e antropológica36 teve para mim conotações diferentes. Em que pesem meu embranquecimento e relativo estrangeirismo (cf. nota 32), eu era patroa, mas não era nem branca nem estrangeira – não no mesmo sentido que se atribuem aos homens brancos do sudeste do Brasil ou de outros países que chegam ao Amazonas com ascendente posição social e econômica, imediatamente associados a missionários, pesquisadores ou turistas, e sempre interpelados pela categoria acusatória “você não é daqui, é?” (Candotti 2017a). Além do mais, eu não estava ali apenas como pesquisadora, embora essa fosse uma de minhas principais atividades profissionais. Minha estadia prolongada não se limitava ao tempo de uma expedição para trabalho de campo, ainda que eu tenha vivenciado uma dezena delas. Como professora concursada, eu chegava para habitar a cidade e viver com aquelas pessoas; dentro e fora da sala de aula e da universidade; em contextos de pesquisa e de trabalho de campo, mas também fora deles.
Confesso que, por um certo tempo, pensei e intentei adotar um modo-de-vidatrabalho-de-campo-full-time, crendo, ingenuamente, que poderia viver e trabalhar sem imiscuir-me à vida das pessoas e da cidade, e sem que elas se imiscuíssem à minha. Mais uma vez meus intentos foram desfeitos. E, desta feita, por uma inesperada visita: fim de tarde, encerradas as aulas, eu estava na sala de professores quando uma estudante entrou em minha sala, me chamou pelo nome completo e apresentou-se também com seu nome completo. Dividíamos o mesmo sobrenome, Melo. Disse-me, então, que era minha prima, 34 Essa forma de conhecimento “engajado”, como define Ingold (2012), é gestado no percurso da vida por encontros entre pessoas que penetram na experiência umas das outras. 35 Segundo a Enciclopédia de Antropologia da USP, “paisagens estão intimamente relacionadas à temporalidade; são histórias e nos oferecem modos de contar histórias mais profundas sobre o mundo. Mas “temporalidade” não se confunde com “cronologia”, sucessão regular de um tempo vazio e quantitativo, ou com “história”, entendida como série variada de eventos qualitativos que nunca se repetem; perceber a paisagem, para Ingold, corresponde a um ato de memória, relacionado ao engajamento e à circulação em um ambiente impregnado de passado”. (EA, Verbete Paisagem - Tim Ingold. Disponível em http://ea.fflch.usp.br/conceito/paisagem-tim-ingold) 36 A expressão faz referência ao título do livro “A aventura antropológica: teoria e pesquisa” (1986), organizado por Ruth Cardoso. No contexto de emergência dos estudos urbanos no Brasil, a “valorização da pesquisa de campo” e a “preferência pelo microestudo” suscitaram “novos temas e novos impasses metodológicos” debatidos nessa coleção (Cardoso 1986: 13) em que a pesquisa antropológica é definida como uma aventura ao desconhecido. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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a filha caçula de um dos meus tios. Expliquei-lhe que não era possível, pois meu único tio vivia em Manaus e desde criança não retornara ao Alto Solimões. Indagada sobre o nome de seu pai, a resposta da jovem desfez o mal-entendido: seu pai era uma das quatro crianças que estiveram no seringal do Vale do Javari com meus bisavôs Manoel e Sebastiana. Tioavô, primos de segundo grau... a professora que lecionava a disciplina Organização Social e Parentesco acabara de descobrir novos enlaces em sua genealogia. Enfim, mover-me pelos caminhos de minha ancestralidade familiar e por onde minhas linhagens acadêmicas produziam suas alteridades não foi uma aventura ao outro exótico, apartado e desconhecido, mas o reconhecimento de uma vida, a descoberta de uma rede de corpos e afetos de longa duração que revelaram a hibridez pela qual sou constituída.
Itinerários de pesquisa e de vida Em meio a essa e outras descobertas, surgiu o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas, programa de extensão universitária que criei e coordenei por cinco anos. Sua proposição, na linguagem técnica dos projetos públicos, alinhava os interesses daquelas estudantes aos princípios do Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (2010) e do Plano Nacional de Educação (2001). Do mesmo modo, reiterava a Política Nacional para as Mulheres (2011) e o Pacto Nacional pelo Enfrentamento a Violência contra as Mulheres (2007), especialmente no que se referia ao “fortalecimento do controle social” e das “redes de atenção às mulheres em situação de violência”. As reivindicações daquelas jovens estudantes – junto aos sagazes temas de pesquisa que elegiam, somados à minha experiência profissional e a uma conjuntura de financiamento público que atendia aos propósitos da “interiorização do ensino superior”, do “desenvolvimento regional” e da “equidade de gênero” – foram determinantes para a feição formal do projeto. A constituição do Observatório era, portanto, indissociável das políticas de educação, de promoção da equidade de gênero e de combate à violência implementadas no Brasil naquele período. Esse contexto o tornou importante agente estatal e de intervenção social e, ao mesmo tempo, ferramenta eficaz para a produção de pequenos estudos antropológicos sobre violências de gênero, políticas de estado e para a formação de feministas. Nos permitiu principalmente a composição de um complexo mosaico etnográfico daquela região transfronteiriça, revelando contextos nos quais gênero (e outras marcas de diferença), violências, direitos e estado se articulavam de modo muito Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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peculiar e instigante37.
Foi desse modo que continuei minhas viagens, percorrendo rios e cidades amazônicas. Em sentido oposto ao de meus antepassados, desci o Rio Solimões e, saindo de Benjamin Constant, chegamos à cidade de Amaturá em julho de 2012. Em dois anos, percorremos toda a calha do Alto Rio Solimões, permanecendo de uma a duas semanas em cada uma das suas nove cidades. Em 2013, aportamos no Baixo Rio Amazonas, passando pelas cidades de Maués e Parintins. Dois anos depois, estávamos em São Gabriel da Cachoeira, na região amazônica do Alto Rio Negro. Em cinco anos de pesquisa e intervenção, atuamos em 17 dos 62 municípios amazonenses; navegamos pelos rios Solimões, Negro e Amazonas e percorremos cidades que abrangem mais de 500 mil km2 e uma população estimada em pouco menos de 600 mil habitantes (IBGE, 2015).
Eu não viajava sozinha. Um grupo de estudantes me acompanhava a cada expedição. Não se tratava de uma aula convencional de antropologia, nem do tradicional trabalho de campo, quase sempre solitário. Essas não eram as minhas primeiras viagens de barco ou de pesquisa, mas, definitivamente, as experiências anteriores de navegação, a formação acadêmica e os poucos anos de pesquisa e docência não haviam me preparado para a prolongada excursão e incursão que experimentamos.
Com o passar do tempo, e no desenrolar de nossas atividades, algo intrigante emergia da fricção entre os objetos investigados, nossa atuação pública, as trajetórias das estudantes e a minha própria. A cada seção de estudo surgiam, em verdadeiras catarses, relatos de violências – sempre carregados de muita emoção – vividos pelas participantes do projeto. A escuta de seus relatos em nossos espaços de formação acadêmica nos aproximava de uma forma inusitada e estabelecia formas de comunicação e afeto que eu nem sempre pude explicar. Às teorias estudadas, misturavam-se fragmentos de histórias de vida e relatos confessionais de como aquelas mulheres construíam rupturas com relações violentas, conjugais e familiares, ensaiavam atuações políticas e reinterpretavam as suas práticas, o feminismo e a teoria antropológica. Pouco a pouco, descobríamos que nossos caminhos, e o entrelaçamento deles, teciam um experimento de universidade, de antropologia e de feminismo no qual os limites do “distanciamento”, da “objetividade” e da
37 Durante cinco anos, todas as estudantes envolvidas no Observatório foram beneficiadas com bolsa de estudos. Como a maioria delas era composta por mães e trabalhadoras, esse auxílio era indispensável para a subsistência de suas famílias e para garantir a permanência na universidade e a continuidade dos estudos, inclusive na pós-graduação. De 2012 a 2016, realizamos 09 projetos de iniciação científica, 01 projeto de inovação tecnológica e 17 trabalhos de conclusão de curso. Três dessas estudantes ingressaram em programas de pós-graduação – uma delas no doutorado, e duas tornaram-se professoras na Ufam. Infelizmente, sabemos, essas políticas têm sido interrompidas no Brasil e os investimentos drasticamente reduzidos nos últimos anos, especialmente para políticas de equidade de gênero na área da educação. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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“militância” eram continuamente borrados.
Souza (2014), uma das primeiras integrantes do Observatório, analisou sua trajetória na universidade. Em uma narrativa minuciosa, descreveu o que denominou de a “redescoberta de si e da violência”, em um emblemático enredo dos conflitos impostos pelo fazer antropológico e pelo reconhecimento de suas vivências.
A leitura me deu uma espécie de flash, lembrei de coisas que aconteceram comigo e que eram discutidas no texto como sendo violência contra mulher. Saía da leitura, da conversa e ficava pensando e relembrando situações. Raiva, repulsa, eram sentimentos que se misturavam dentro de mim. Foi a partir dessa primeira leitura que passei a entender muitos momentos de minha vida em que havia sofrido violência. Passei então a me apropriar das leituras e do aprendizado tanto na universidade como em outros espaços para me assegurar e reconhecer algumas situações do meu dia-a-dia (Souza 2014:21).
O trabalho do tempo na minha experiência foi se revelando na medida em que passo por um processo de descoberta e aquilo que entendia como violência, que estava guardado, se mistura às novas descobertas e se torna objeto da linguagem. Do silêncio absoluto e da ocultação da experiência, passo a, paulatinamente, rememorar e falar sobre as minhas vivências após ser confrontada com as vivências das mulheres com quem me encontrei no trabalho de campo. Essa experiência despertou em mim o interesse de me sentir conhecedora de meus direitos e poder, eu mesma, fazer algo por mim e talvez por outras pessoas (Souza 2014:18).
Em suas palavras, a participação no projeto havia se configurado um espaço de percepção e nominação das experiências vividas como violentas, e do reconhecimento de si como “sujeito de direitos”, como mulher “comprometida politicamente” (Souza 2014: 20). De certo modo, essa experiência parecia cumprir o papel de instrumentalizar a nominação de experiências e acionar uma certa “gramática de direitos” (Vianna 2013) notada em processos de fronteirização (Albuquerque 2009) como aquele do qual o Observatório havia se tornado partícipe. Esse era um processo ambíguo. Ao descrever a si mesma por meio das palavras “estrangeiras” aprendidas na universidade, e “sussurradas” ao seu ouvido pelas teorias antropológicas e feministas, Souza (2014) se apropriava, transformava-as e lhes conferia novas formas e sentidos. Tornava-se de fato “dona” daquelas palavras, tal como defendeu Simião (2015:251) ao mencionar a participação de crianças em campanhas contra a violência de gênero no Timor Leste. Essa experiência me interpelava continuamente. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Por se tratar de esforço hercúleo (e por que não dizer, também, violento e desleal aos interesses daquelas estudantes?), as emoções não foram ignoradas ou afastadas do nosso experimento etnográfico. Ao contrário, passamos a integrá-las a nossas pesquisas, incorporá-las às nossas descrições e a buscar, quiçá, meios para nos movimentar entre os percursos que nos compunham e experimentar grafias e teorias coerentes a esses movimentos.
Nossos percursos individuais e coletivos nos situaram em constantes trânsitos e produziram deslocamentos entre teorias e agências, identidades e institucionalidades, trajetórias e experiências. E, nessa zona de tensão e de fronteira, tenho permanecido. Reconhecer a paisagem, singrar os mesmos rios navegados por meus antepassados, rever os traços de meus caminhos, reencontrar aquela paisagem em diferentes temporalidades, rememorar minha ancestralidade e me entrelaçar às experiências das estudantes com quem me movi, transformou a minha relação com a antropologia e com o feminismo. As vivências compartilhadas me permitiram experimentar um fazer antropológico que somente agora começo a compreender em todo o seu potencial de generosidade, crítica e abertura. Um fazer vivido no percurso e no trânsito, no fazer-se em contínuo movimento. Mais tarde, compreendi que aquela experiência passava necessariamente pela “possibilidade de unir tudo o que estava separado” (Anzaldúa 1987: 706) e por especular a potência dessa escolha.
Para cada fronteira, uma ponte Neste artigo, escrevi sobre o declínio precoce de um projeto profissional interpelado e subvertido pelos interesses das estudantes de antropologia com quem trabalhei por seis anos. Como guias generosas, aquelas mulheres me conduziram a itinerários percorridos coletivamente (não era possível fazê-los de outra maneira). Nos movimentos que experimentávamos, hesitantes, nossas vidas foram fortemente implicadas umas pelas outras. Com elas – na universidade, em suas casas e com suas famílias – reencontrei lugares comuns, como os seringais e os internatos religiosos; reconheci sabores familiares, como dos alimentos preparados por minha avó e tias; compartilhei dolorosas vivências como as violações domésticas, a pobreza e o luto; enfrentei constrangimentos acadêmicos, assédio moral e uma gama de entraves burocráticos que engessavam a nossa atuação. Éramos todas pesquisadoras, em diferentes momentos de nossa formação, e compartilhávamos do desejo de aprender e fazer com que essa tal antropologia tivesse sentido em nossas vidas. Mas não nos contentávamos com um saber/fazer alijado. A
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experiência etnográfica que buscávamos exigia um engajamento tal que nos permitisse compreender as formas de comunicação e afetação propiciadas pelo nosso encontro. Que nos permitisse reconhecer como nossos corpos e percursos se transformavam em constante movimento. Que nos ajudasse a enfrentar os conflitos produzidos por nossas diferenças. E a descobrir e respeitar as diferentes formas de descrever o que descobríamos, cada uma a seu modo. Esse estar a meio caminho não me parece uma posição a ser ignorada no fazer antropológico, ao contrário, se devidamente refletida, quiçá, nos permitirá descobrir e valorizar as formas de conhecimento que essa experiência tem tornado possível. A tarefa de atribuir lugar capital e produtivo para o hibridismo, a contradição e a ambivalência de processos de vida, de ensino e de pesquisa – como os aqui descritos – me parecem provocar – como a “conciencia mestiza” de Anzaldúa – uma “fonte de dor intensa”, uma perturbação da qual decorrem movimentos desestabilizadores, mas, e ao mesmo tempo, potentes, profícuos e criativos para uma nova teoria etnográfica, ainda amorfa e inominada. “Estoy norteada por todas las voces que me hablan simultáneamente” (Anzaldúa 1987: 704).
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Recebido em 06 de junho de 2018. Aceito em 22 de agosto de 2018.
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Artigos
R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 624-647.
Atravessando as fronteiras de um mercado global: trabalho e diferença na selva alta peruana Ricardo Cruz Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ) e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
ricruz@uol.com.br
Resumo As últimas décadas registraram uma forte expansão no cultivo de cafés certificados como “orgânicos” entre os cafeicultores peruanos, um movimento que tem implicado numa mudança nas suas formas de trabalho, e que vem sendo conduzido pelos funcionários das suas cooperativas. Este artigo procura olhar para essa transformação produtiva como um meio para entender como se dá a crença dos produtores nas ações e nas falas desses profissionais. Os primeiros costumam desconfiar dos trabalhadores não rurais, identificados com as atividades – técnicas ou administrativas – envolvidas na comercialização de seus grãos. O texto mostra que a confiança entre os produtores e os “técnicos” (que intermediam suas relações com as normas internacionais de produção orgânica e a perspectiva dos consumidores) é construída através de um processo pedagógico marcado por uma metamorfose de pontos de vista, no qual as suas diferenças – historicamente irredutíveis – são diluídas. Palavras-chave: trabalho; rural; mercados; tradução; Peru. Abstract The last decades have witnessed a strong expansion in the cultivation of certified “organic” coffees among Peruvian coffee growers, a movement that changed their ways of working, and that have being led by the employees of their cooperatives. This article seeks to look at this productive transformation as a means to understand the producers’ belief in the actions and speeches of these professionals. The assumption is that the former usually distrust the non-rural workers, identified by them with the – technical or
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administrative – activities involved in the marketing of their grains. The text shows that the trust between producers and “technicians” (who intermediate their relations with international standards of organic production and the perspective of consumers) is built through a pedagogical process marked by a metamorphosis of points of view where the – historically irreducible – differences between them are diluted. Key-words: labor; rural; markets; translation; Peru.
Introdução A agricultura “orgânica” é, por definição, um modelo de cultivo que se contrapõe ao uso de fertilizantes e pesticidas inorgânicos nas plantações. Trata-se de um ideal que enfatiza a utilização de materiais vistos como facilmente degradáveis no meio ambiente; uma maneira de “preservá-lo” de transformações mais radicais produzidas pela intervenção humana. Existem diversas normas, tanto públicas quanto privadas, que servem de parâmetro para que as chamadas “agências certificadoras” identifiquem uma mercadoria como oriunda de um cultivo orgânico. Cada uma dessas normas é representada por um selo que acompanha os produtos certificados por essas agências. Isso permite aos seus consumidores se depararem com um sistema que controla a relação dos agricultores com os insumos produzidos sinteticamente. As últimas décadas registraram uma expansão no cultivo de cafés certificados como orgânicos entre os cafeicultores da “selva alta” (onde se costuma plantar o grão no Peru). Esse movimento tem implicado numa mudança na forma de trabalho desses sujeitos, e vem sendo conduzido pelos funcionários das cooperativas nas quais estão inseridos1.
Este texto procura olhar para essa transformação produtiva como um meio para entender como se dá a crença ou confiança dos produtores nas ações e nas falas dos profissionais responsáveis por adequar seus comportamentos às novas normas vigentes nos mercados agrícolas internacionais. Ele se soma a um esforço, dentro da antropologia, de pensar “a ideia de tradução e diferença num mundo contínuo” (Velho, 2007: 348).2
Traduzir implicaria fazer sentido segundo a perspectiva de uma pessoa “como um todo” ou enquanto “um nódulo em um nexo de relações” (idem). É com essa ideia de tradução que podemos compreender os esforços dos funcionários das cooperativas em diluir as
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A selva alta é uma região do Peru, de clima tropical e úmido, situada entre a cordilheira andina e a planície amazônica, que o atravessa de norte a sul. Existiria uma continuidade, entre as pessoas e o mundo ao redor, anterior aos atos de tradução: “não que a vida social não implique, portanto, atos de construção e de separação, mas esse não é o momento inicial, e sim a habitação do mundo, contínuo” (idem: 347). Tal continuidade implica, segundo o autor, não encarar as percepções das pessoas a partir da separação entre mente e corpo.
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fronteiras historicamente construídas entre eles e os agricultores com quem se relacionam, haja vista a tradicional desconfiança dos cafeicultores diante dos trabalhadores não rurais, identificados com as diferentes atividades envolvidas na comercialização dos seus grãos. Do seu ponto de vista, esses trabalhadores costumam obter ganhos econômicos a partir do trabalho dos produtores na terra sem, contudo, oferecer uma contrapartida satisfatória3. Diante desse pano de fundo, a mudança em suas lavouras – que envolve a legitimação do trabalho não agrícola dos funcionários das cooperativas – vem sendo conduzida por uma nova geração de membros das famílias dos cafeicultores, através de um processo definido aqui como a “pedagogia da agricultura orgânica certificada”.
Ao longo do artigo procura-se abordar a relação que um grupo de cafeicultores pertencentes a uma das cooperativas localizadas na selva alta mantêm com os “técnicos” que trabalham nessa organização. Grande parte do trabalho realizado por estes últimos envolve o “controle” das práticas dos agricultores, tendo em vista as chamadas “inspeções” dos representantes das agências responsáveis pela certificação das plantações como orgânicas. Contudo, olhando de perto esse papel desempenhado pelos funcionários da cooperativa é possível perceber que os ensinamentos e indicações, dirigidos aos cafeicultores, possibilitam não apenas uma interiorização de normas em torno dessa forma de cultivo, mas também uma preocupação sistemática e cotidiana com a visão dos compradores e consumidores estrangeiros dos seus grãos. Trata-se, portanto, de um processo de racionalização do comportamento desses agricultores aparentemente afim com a emergência de um “sistema agroalimentar global orientado pela demanda”.4 Tendo
como base uma pesquisa etnográfica realizada em meados de 2005, o objetivo do texto é refletir sobre a disposição dos cafeicultores para trabalhar dessa maneira sistematicamente pautada pelas perspectivas externas.
O que a análise revela é que a racionalização de conduta submetida a esses cafeicultores busca engendrar uma forma de trabalho subordinada não só à “demanda estrangeira”, mas, também, à sua própria realidade, para além de seus interesses em produzir mais cafés e vendê-los por um preço maior.5 Os técnicos procuram controlar
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Apresento, mais à frente, o arcabouço conceitual ou simbólico que dá sentido a essa suspeita. Entretanto, é importante ressaltar que essa desconfiança recai não apenas sobre os comerciantes propriamente ditos como também sobre os funcionários das cooperativas de cafeicultores, independentemente dos seus cargos. A ideia de “sistema agroalimentar global orientado pela demanda” aparece em John Wilkinson (2002). Retomo, mais à frente, os argumentos desse autor. O contraponto aqui são os estudos que encaram a adoção de novas práticas agrícolas como uma questão de maximização de recursos econômicos dentro do sistema capitalista. Segundo José de Souza Martins (1975), por exemplo, a inovação agrícola no capitalismo deve ser “funcionalmente racional no nível do sistema e substancialmente racional no nível do proprietário da terra” (idem: 81). Para ele, a adoção de Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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as ações dos membros da cooperativa, assim como traduzir para eles os parâmetros ou referenciais utilizados nesse controle, em uma atitude que parece se valer de suas experiências como filhos de produtores do grão. Conforme será destacado mais à frente, a perspectiva dos produtores de café deve ser entendida como um ponto de vista no qual se conjugariam os planos da razão e da sensibilidade – dimensões que estariam separadas no discurso de muitas pessoas de fora do universo cafeicultor que se relacionam com eles. A socialização desses técnicos, desde seus primeiros anos de vida, nesse universo social, os diferenciaria dessas pessoas de fora, em especial, de quem se apoiaria, basicamente, numa racionalidade econômica para convencer os cafeicultores a mudar suas práticas e/ ou a direcionar sua produção para um canal comercial qualquer.
O mercado de café, nos seus diferentes segmentos e com os seus distintos atores, é o espaço de encontro com a alteridade, por excelência, para esses produtores do grão. Sob o prisma desses agricultores, a diferença está no corpo: o “outro” é aquele que gozaria a vida à custa dos seus suores e seus sacrifícios na lavoura; ele olharia o mundo a partir de um lugar apartado do dia a dia de quem trabalha na terra; sua insensibilidade perante os primeiros transpareceria nos seus gestos e modos de falar. A presença, cada vez maior, de filhos de cafeicultores em posições de mediação mercantil, que antes eram ocupadas, notadamente, segundo os produtores, por pessoas não identificadas com seus universos, tem feito com que o mercado de café deixe de se colocar para os agricultores como uma zona fronteiriça marcada por divisões intransponíveis e se apresente como um espaço caracterizado por situações em que “uma coisa gradualmente se transforma em outra, onde há indistinção, ambiguidade e incerteza” (Hannerz, 1997). A legitimidade do trabalho dos técnicos das cooperativas caminha junto com a diluição das fronteiras entre eles e os cafeicultores. Os primeiros não seriam capazes de justificar seus ofícios com base apenas nas propriedades sociais que os diferem destes últimos sujeitos, como um papel de mediação comercial ou uma maior familiaridade com as novas regras dos mercados externos, por exemplo6. São suas aptidões para incorporar
6
novas técnicas pressupõe uma “consciência burguesa” ou “vocação empresarial”. Ricardo Abramovay (1992) entende que a transformação dos camponeses em “agricultores profissionais”, isto é, dotados de uma “racionalidade econômica”, se constitui na “base fundamental do progresso técnico e do desenvolvimento do capitalismo na agricultura contemporânea” (idem: 211). Tais estudos reconhecem, mas não retratam, os papéis (cruciais) desempenhados pelos agentes responsáveis pela intermediação das relações dos produtores rurais com as novas tecnologias ou técnicas agrícolas. Eric Wolf (2003), tomando como referência a história mexicana, analisa as transformações dos agentes que intermediam as relações dos camponeses/agricultores com os universos sociais mais abrangentes (com destaque para o Estado Nacional). A “função básica” desses “intermediários” seria “estabelecer relações” entre os “indivíduos orientados para a comunidade”, que buscam satisfazer suas necessidades materiais, e os “indivíduos orientados para a nação”, interessados em aumentar seu “séquito” político. Wolf acaba reduzindo a perspectiva dos agricultores sobre os intermediários
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ou encarnar o ponto de vista dos produtores rurais, isto é, torná-los presentes em suas falas, olhares e gestos - nos seus argumentos e sentimentos - que fazem com que seus prismas sejam encarados por eles como algo possível de ser interiorizado e suas ocupações reconhecidas como socialmente legítimas. Essa metamorfose de perspectivas (ou o que, com base em Geertz (2002), poderia se chamar de “diferenças mescladas”) parece estar no centro das ações dos técnicos que conduzem a construção social da disposição dos agricultores em trabalhar de uma maneira sistematicamente pautada pela perspectiva dos compradores e consumidores estrangeiros7.
A interiorização do ponto de vista da demanda externa Em um plano maior, essa disposição pode envolver outros cafeicultores peruanos. Dados recentes indicam que 35% dos cafés exportados pelo país são destinados aos chamados mercados de cafés “especiais”, isto é, que demandam grãos considerados de “melhor qualidade” (com menos “impurezas”, como pedaços de gravetos e de terra, por exemplo, e com sabor mais valorizado) do que os normalmente comercializados no dito “mercado convencional” (onde circula a esmagadora maioria dos cafés e a preços, em geral, mais baixos).8 Há três tipos principais de cafés especiais: “solidários”, orgânicos e gourmet. No Peru, a maior parte deles é exportada através de cooperativas e não pelas empresas “privadas” que dominam o mercado convencional. É comum que os cafeicultores da selva alta se refiram a um passado no qual
a principal preocupação seria a de “produzir muito café”, fazendo uso intensivo de fertilizantes e pesticidas sintéticos. Atualmente, “produzir um grão de qualidade” seria mais um de seus objetivos. Para esses agricultores, o significado de um “café de qualidade”
7
8
a uma questão econômica. Ele não se preocupa em indagar sobre as condições sociais por detrás da legitimidade desses mediadores. De acordo com Clifford Geertz (2002), os antropólogos têm que lidar, nos dias de hoje, com um mundo marcado pelo que ele define como um “espectro gradativo de diferenças mescladas”. “Lévi-Strauss, Evans-Pritchard, Malinowski e Benedict atuaram num mundo em que havia uma montagem mais descontínua de diferenças mais separadas (os bororos, os azande, os trombriandeses, os zunhis), e os grandes poli-historiadores que eles substituíram (Tylor, Morgan, Frazer etc.) haviam funcionado num mundo de imensa dicotomia entre os civilizados em aperfeiçoamento e os selvagens aperfeiçoáveis” (idem: 192). Velho (2007) chama a atenção para a importância de se reconhecer as “pequenas diferenças”, nas cadeias ou redes de mediadores, que articulam diferentes “socialidades” pelo mundo.
Esse número – de 35% – se refere ao ano de 2014 e foi divulgado pela Junta Nacional do Café (o “grêmio” que reúne as cooperativas do Peru). Ver: www.juntadelcafe.org.pe. Em 2004, o número era de 13,48%, com 71% vendidos só como orgânicos, 14% como de comércio justo (orgânico ou não), 11% como sostenible e 4% como gourmet (Schwarz, 2005). Ou seja, nesse intervalo de 10 anos, a porcentagem de cafés especiais exportados aumentou. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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está mais ligado as exigências do mercado em relação à “pureza” dos grãos e aos aspectos sensoriais do produto pronto para o consumo, e não tanto ao fato de sua produção ser certificada como orgânica. Contudo, como já ressaltado, o processo de “transição” de um produtor “convencional” para “orgânico” se coloca como uma forma de racionalizar sua conduta de modo a adequar o aumento da produção ao atendimento das demandas de compradores e consumidores estrangeiros. Portanto, dentre os produtores de café, o cafeicultor orgânico ocupa uma posição paradigmática, principalmente quando se trata da interiorização desse prisma externo. De acordo com Laura Raynolds e John Wilkinson (2007), as últimas décadas têm sido marcadas por uma produção de comida industrializada feita cada vez mais com base numa segmentação dos mercados alimentícios (em “nichos”) e/ou numa diferenciação dos produtos comercializados nesses mercados. Trata-se, nas visões desses sociólogos, da passagem de um sistema global onde a competição entre os agentes econômicos se dava essencialmente através dos preços para outro onde eles também competem por meio da “qualidade” de seus produtos. Isso implicaria na introdução do chamado paradigma da “produção flexível” no mercado de alimentos (em substituição a um modelo “fordista” de controle mais centralizado). Tais mudanças seriam conduzidas pelos grandes grupos atacadistas do setor agroalimentar (anteriormente as indústrias alimentícias que orientariam a dinâmica desse setor). É dentro desse contexto atual que podemos entender a difusão dos “cafés especiais” e também o aprimoramento da qualidade dos “cafés convencionais”. Mas o que levaria um cafeicultor a se preocupar, de forma sistemática, com as exigências dos compradores ou consumidores estrangeiros? Um caminho para se responder essa pergunta pode ser encontrado na literatura sociológica e antropológica que se debruça sobre um dos principais ramos ou segmentos dos mercados de cafés especiais: o “comércio justo” regulado pela Fair Trade Labelling Organizations International (FLO).9 Trabalhos como os de Raynolds, Murray & Wilkinson
(2007), Jaffee (2007), Sick (2008) e Luetchford (2008), por exemplo, apontam para a necessidade das cooperativas de cafeicultores em adequar os grãos de seus associados às exigências dos consumidores do comércio justo, como é o caso de suas demandas por um produto não só orgânico, mas também “de qualidade”.10 A questão que deixam em aberto é entender, nos seus pormenores, esse papel de mediação técnica desempenhado pelos 9
O comércio justo de café certificado é um mercado internacional criado no ano de 1988 e organizado com base num ideal de solidariedade dos consumidores para com os “pequenos produtores” reunidos em cooperativas autorizadas a participar desse sistema comercial. 10 Há uma associação entre o comércio justo e a produção de cafés certificados como orgânicos, por conta, em especial, do valor maior pago a esses grãos dentro desse sistema comercial. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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funcionários dessas organizações11.
Segundo esses estudiosos, o mercado convencional, responsável pelo comércio da maioria dos cafés ao redor do mundo, se caracteriza, desde o final da década de 1980, por períodos prolongados de preços reduzidos desses grãos, a ponto de ocasionarem uma “crise” na cafeicultura de “pequena escala”, aquela que congrega a maior parte de seus produtores.12 Estaríamos diante de um cenário no qual o cultivo de café perdeu seu lugar de
destaque como uma atividade privilegiada para a reprodução social de inúmeras famílias espalhadas pelo mundo. O comércio justo se colocaria como um entre outros modos de atenuar - e não, suplantar - suas “carências materiais” (caberia a cada uma das famílias cafeicultoras a escolha de uma “estratégia econômica” supostamente mais adequada às necessidades e às capacidades dos seus membros).
Em meados de 2005, me dirigi até o Peru para dar início à pesquisa de doutorado sobre o comércio justo entre os seus produtores de café. Para além do que era definido como uma “crise” internacional nos preços desse grão, me deparei com problemas que agravavam ainda mais a situação vivida pelos cafeicultores, como, por exemplo, a fragmentação das propriedades rurais devido às suas transmissões através de herança, o envelhecimento das plantações e o esgotamento dos solos.
Naquele ano, depois de alguns dias acompanhando seu trabalho junto aos produtores orgânicos, um dos técnicos, aqui retratados, me disse que os últimos tendiam a se “desanimar” quando os valores do café no mercado interno eram superiores aos praticados internacionalmente e que serviam de referência no estabelecimento dos preços do café orgânico vendido através do comércio justo. Tal desânimo provinha da desvalorização dos grãos orgânicos em relação aqueles produzidos de forma convencional que, justamente, alimentavam esse mercado interno. A produção de café, em todo o país, decaiu bastante em 2005, principalmente por causa da seca, fazendo com que o preço do “café convencional” praticamente se equiparasse com o do “café orgânico”. As cooperativas tiveram que pagar aos “sócios” o mesmo valor que os comerciantes estavam oferecendo para os produtores locais. Ao contrário, ficariam sem a quantidade necessária de café para cumprir seus contratos com os compradores do comércio justo, apesar de seus associados serem obrigados a entregar quantidades pré-estipuladas do produto. Contudo,
11 Conforme aponta Ricardo Abramovay (1992), na década de 1920, o economista russo Alexander Chayanov chamava a atenção para o papel dos funcionários das cooperativas de agricultores em adequar a produção de seus associados às demandas do mercado mundial. 12 Entre os sintomas dessa crise se destacariam: uma situação de pobreza nas regiões associadas à produção de café, um êxodo rural oriundo dessas zonas, uma ênfase de seus moradores na agricultura de subsistência e a substituição dos seus cafezais por pasto ou outras lavouras comerciais (incluindo plantações de matérias-primas utilizadas na produção de drogas ilícitas). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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os produtores ainda se viam em desvantagem diante de suas vendas para as cooperativas, na medida em que os comerciantes aceitavam os cafés com maior umidade e com mais “impurezas” ou “defeitos físicos”, o que fazia com que o peso dos grãos e, consequentemente, seu valor, aumentassem.13 “É todo um esforço para, no fim, acabar vendendo pelo mesmo preço disponível para quem não é certificado”, afirmou o técnico, ponderando, logo em seguida: “mas isso não acontece todos os anos”, ou seja, normalmente, os agricultores “orgânicos”, filiados às cooperativas, recebem um valor maior para seus cafés do que seus vizinhos não certificados.
Mas os cafeicultores não se comportavam como pessoas que agiam de acordo com valores de ordem exclusivamente econômica. Justo pelo contrário, eles também se viam como sujeitos que olhavam o mundo a partir de um lugar muito além das posições que ocupavam em suas relações mercantis. Durante os contatos que mantive com os associados de distintas cooperativas de produtores de café do país, percebi que era comum criticarem os profissionais graduados ou especialistas, que chamavam de “engenheiros” – independentemente do curso de Ensino Superior que estes últimos haviam participado. Segundo eles, esses profissionais vinham até as suas propriedades para apresentar uma série de propostas produtivas e que se mostravam inviáveis por questões não apenas econômicas, mas também temporais, morais, pedagógicas e afetivas. Muitos funcionários de suas organizações eram criticados pelo seu comportamento excessivamente citadino, isto é, demasiadamente impessoal, frio, impaciente ou deselegante. Por um lado, a transformação dos cafeicultores em “produtores orgânicos” tinha como pano de fundo a autoridade dos técnicos construída sobre seus títulos acadêmicos e o caráter científico, além de mercadológico, de suas práticas.14 Mas o seu trabalho podia
também levar em conta o prisma mais amplo dos agricultores, que incluía não só as distintas temporalidades que orientavam as suas vidas, como formas de se comunicar ou de interagir com as pessoas, próprias do universo social desses sujeitos, adquiridas pelos técnicos através do convívio com eles, como era o caso, por exemplo, do uso da língua nativa (o quéchua) ou de um comportamento qualquer que envolvia o estabelecimento de uma relação de confiança ou proximidade. Essas linguagens e sensibilidades se mostravam, muitas vezes, imprescindíveis para captar a atenção dos cafeicultores e os motivá-los em relação aos seus ensinamentos. Cerca de 150.000 famílias se dedicavam, em 2005, à produção de café no Peru.
13 As chamadas impurezas ou defeitos físicos podem ser não só os já citados pedaços de gravetos e de terra como também de folhas, além de grãos “verdes”, “pretos” ou atingidos por uma praga. 14 O trabalho dos técnicos pressupunha uma socialização dos cafeicultores numa sociedade dominada pelas relações mercantis e onde o espírito técnico-científico é valorizado. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Mais ou menos 90% delas tinha entre meio e cinco hectares de terra e praticamente todas viviam nas chamadas zonas de selva alta (JNC, 2005). Os cafeicultores eram, em geral, migrantes oriundos dos Andes peruanos e seus filhos. A interiorização da perspectiva da demanda externa, por parte dos produtores orgânicos, pode ser pensada como um processo cuja eficácia nos mostra o quanto a adequação desses agentes às alterações mais gerais do capitalismo pressupõe um trabalho de mediação que leve em conta seus prismas. Como assinalado, esse processo se apoiava nas diferenças sociais entre os técnicos e os cafeicultores e na capacidade dos primeiros olharem o mundo da posição dos segundos. Isso implica não apenas em ver o trabalho rural (no caso, a agricultura de base familiar) como uma forma de trabalho e como uma perspectiva sobre a realidade, mas também em compreender a relação entre esses seus dois modos de expressão num contexto social onde ele igualmente se expressa enquanto uma matriz de significados dentro da qual o comércio agrícola aparece como uma atividade assentada na apropriação indevida dos valores produzidos através do cultivo da terra.
O contato com o campo A selva alta foi surgindo, pela primeira vez, diante dos meus olhos, durante uma caminhada de quatro dias até Machu Picchu. Era julho de 2000, e eu havia partido de Cuzco, centro do Império Inca (1483 – 1533), hoje uma cidade de 300.000 habitantes, capital do departamento homônimo, localizada a 3.400 metros acima do nível do mar. Estava na companhia de um colega da faculdade e de outros visitantes estrangeiros que, assim como nós, seguiam um guia turístico por uma trilha de pedra construída pelos incas, segundo nos era informado. A exuberância da vegetação amazônica foi aos poucos se sobrepondo à – aparentemente – menos diversa e um tanto monótona flora característica da cordilheira andina. O ápice dessa transição ecológica se deu quando avistamos as imponentes ruínas de Machu Picchu cercadas de montes verdejantes.
Mas o trajeto até esse ícone do turismo global não me chamou a atenção apenas pela indescritível beleza da selva alta. Fiquei igualmente fascinado pelos moradores desse espaço intermediário entre os Andes e a Amazônia. Não sabia quem eram eles, apenas tinha certeza de que estavam mais próximos do universo social andino do que dos povos tradicionalmente associados à floresta amazônica. O desejo de conhecê-los viria à tona quase cinco anos depois. Estava terminando de escrever minha dissertação de mestrado e buscava um grupo que pudesse retratar no doutorado15. Foi então que me deparei com a
15 A dissertação tratou da construção social de um mercado financeiro agropecuário organizado com base Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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seguinte imagem numa página eletrônica da internet:
Acabei decidindo que iria pesquisar os agricultores responsáveis pela produção dos grãos de café cultivados nos arredores de Machu Picchu - havia chegado até essa imagem através de uma breve investigação, na internet, sobre os produtos identificados com algum tipo de certificado do comércio justo. Assim, em julho de 2005, deixei o Brasil tendo apenas um destino certo no Peru: a XXII feira anual da Central de Cooperativas Agrarias Cafeteleras COCLA16. Era através dessa feira que pretendia entrar em contato com cafeicultores do entorno de Machu Picchu. Ao longo do evento, transitei pelas barracas (ou stands) das então 23 cooperativas filiadas à COCLA, e onde expunham seus cafés, além de outros produtos de menor importância econômica. Procurei, circulando pela feira, me relacionar com os expositores - os funcionários e sócios das cooperativas. Ao visitar suas barracas, era confundido com os “gringos do comércio justo”, isto é, com algum dos - não mais que 10 - compradores estrangeiros de café certificado que também perambulavam por lá. Ao contrário deles, não havia sido convidado para o evento e, consequentemente, não era esperado por ninguém. De qualquer modo, o seu caráter público me pareceu no ideal do mercado “perfeito”. Para o doutorado, pretendia estudar a construção social de um mercado organizado através de um ideal de “solidariedade”. 16 As “centrais” de organizações de produtores de café são entidades legais de “segundo grau”, isto é, diferentemente das cooperativas e associações, cujos membros ou sócios são os próprios cafeicultores, entre as centrais os associados são as cooperativas ou as associações.
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ser uma via de acesso privilegiada para entrar em contato com um universo social que desconhecia completamente.
No stand de uma cooperativa em particular, de nome Huadquiña, me chamaram a atenção determinadas amostras de café nele expostas, cada uma demarcada com o nome de seu produtor e o selo de certificação do produto. Sete amostras estampavam a certificação orgânica própria da união europeia e outra um selo de “sustentabilidade” de uma organização não governamental, todas concedidas por uma agência certificadora.17
Conversando com os expositores conheci Israel, o presidente da Cooperativa Huadquiña, e que me convidou para visitar as dependências da organização. Alguns dias depois, descobri que tal cooperativa era justamente aquela responsável pela produção do café cuja embalagem havia despertado meu desejo inicial de realizar minhas pesquisas no Peru. Israel me apresentou ao “técnico” Juan Carlos que, por sua vez, me colocou em contato com outros membros daquela organização. Acabei me tornando o fotógrafo “oficial” da cooperativa durante um concurso em que um de seus associados alcançou o primeiro lugar pela qualidade de seus grãos de café. Dias depois, fui com Juan até Santa Teresa, capital de um distrito de mesmo nome, um dos nove distritos da província de La Convención, localizada no departamento de Cuzco.18 Fomos numa van margeando, durante algumas horas, as imponentes montanhas da selva alta cusquenha.
A Cooperativa Huadquiña No meu segundo dia em Santa Teresa, me encontrei com Juan e fomos até a sede da Cooperativa Huadquiña. Chegando às dependências da organização conheci alguns de seus produtores e dirigentes (que também eram seus sócios). Ela tinha 420 associados. Eles plantavam o café em suas propriedades ou chacras (um termo de origem quéchua), e que tinham um tamanho médio de três hectares, com dois as menores e cinco as maiores – desde a reforma agrária realizada em La Convención, no ano de 1963, os latifúndios deixaram de fazer parte da paisagem local. Através da COCLA, eles vendiam seus cafés para as companhias (estrangeiras) Café Direct e Twin Tradind. Essa primeira organização teria como seu papel principal “conquistar mercados”, cabendo aos agricultores, auxiliados pelas cooperativas, o cuidado com a produção. Na época da minha visita, três técnicos trabalhavam na Cooperativa Huadquiña e
17 Os cafés sostenibles eram identificados com base em critérios “sociais” e “ambientais”. 18 O distrito de Santa Teresa foi fundado em 1957. A Huadquiña foi criada no ano de 1963.
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tinham a obrigação, segundo meus interlocutores, de “monitorar” os seus associados19. Como exemplo desse monitoramento, citaram os chamados “cursos de capacitação”20. Quem não frequentava os cursos era punido financeiramente quando fosse receber o dinheiro da venda dos seus cafés, o mesmo acontecendo com aqueles que não participavam das assembleias da cooperativa. Mas os sócios não apresentariam muitos problemas em acatar as regras impostas pela cooperativa. Discutindo com eles o cronograma das atividades junto aos associados, falaram das “inspeções internas” que antecederiam as “inspeções externas” conduzidas pelos inspetores das agências certificadoras21. As primeiras eram feitas pelos técnicos de uma
“cooperativa base” da COCLA e 15 a 20 sócios “capacitados” dessa mesma cooperativa. Eles visitariam, em dois ou três dias, as chacras dos associados de outra cooperativa base. O mesmo se repetiria com as 23 cooperativas bases e, posteriormente, começariam as inspeções externas, que envolveriam em torno de 30% dos membros das cooperativas, escolhidos, ao acaso, pelos inspetores externos22. Entre estes últimos inspetores, os do comércio justo seriam os mais exigentes; “eles pedem para não discriminarmos os sócios que produzem pouco, apesar deles também usarem da mesma forma a assistência técnica”, exemplificou um dos agricultores presentes23. O cronograma da Huadquiña girava em torno das inspeções externas.24 Entretanto,
o ponto de vista dos inspetores externos deveria ser interiorizado pelos sócios, notadamente, por quem tinha plantação certificada como orgânica ou se encontrava em transição (de “convencional” para “orgânico”). Nesse caso, é preciso se perguntar pelas mediações sociais envolvidas nos processos de interiorização dessa perspectiva externa. O trabalho dos técnicos, retratado nas próximas páginas, se colocou como um lugar privilegiado para se observar essas mediações. Pude perceber as consequências desse trabalho logo que deixei a sede da cooperativa e segui com o sócio Pablo até sua chacra.
19 No total, a cooperativa dispunha de 20 funcionários. 20 Tais cursos eram divididos em duas partes: “teórica” e “prática”. Neles os cafeicultores aprendiam como produzir adubo orgânico, como podar os cafezais, como registrar suas tarefas num “diário” e o que era o sistema de comércio justo regulado pela FLO, entre outros assuntos. 21 Um cronograma organizado em torno das inspeções “internas” e “externas” era comum entre organizações peruanas de produtores de café ligadas ao comércio justo. A partir do ano de 2007, a própria FLO passou a exigir, das cooperativas, a presença de um sistema de controle interno. 22 Ser um inspetor externo não significava necessariamente ser estrangeiro ou vir de fora do país. Havia peruanos que trabalhavam para certificadoras e algumas tinham seus escritórios no Peru. 23 Os inspetores da FLO visitariam a parte “burocrática” das organizações de cafeicultores, para saber “se estavam usando corretamente” seus recursos, e somente abordariam os agricultores para lhes perguntar a respeito dos “critérios genéricos do comércio justo”. 24 Entre janeiro e fevereiro, meses de chuva, o grão é plantado. Entre abril e julho é a colheita. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Ela tinha dois hectares e estava há quinze anos em suas mãos25. Enquanto conversávamos, ao longo de uma estrada ao lado de sua propriedade, ele recolhia os lixos deixados por pessoas que passaram por ali. O local por onde andávamos era extremamente agradável. Ele se mostrava bastante orgulhoso de sua “chacra orgânica” e, por isso, acabei não economizando nos elogios referentes à beleza da mesma.
Enquanto Pablo me contava sobre a necessidade do “sócio orgânico” providenciar uma “barreira” - de oito metros de distância - em relação a um “vizinho não orgânico”, um vizinho seu, sócio e orgânico, passou e nos cumprimentou. Quando esse senhor se afastou, Pablo me disse que “apesar dele não compreender as normas das agências certificadoras, ele era capaz de praticá-las”. Meu interlocutor parecia ter interiorizado essas normas e demonstrava estar adaptado a uma realidade onde o ponto de vista dos compradores de alimentos deveria fazer parte do cotidiano dos produtores desses bens. Nos próximos dias me encontraria com outros agricultores que, assim como ele, aparentavam preocupar-se quase que obsessivamente com a qualidade dos seus grãos. Não à toa que sua organização conquistou o primeiro lugar no concurso “Café de Ouro”, realizado durante a feira da COCLA, pouco tempo antes26.
As “visitas de campo” No meu terceiro dia em Santa Teresa, acordei de madrugada para encontrar Juan Carlos na cooperativa. Meu intuito era acompanhá-lo em suas “visitas de campo”, ou seja, nas visitas que iria fazer junto aos sócios da Huadquiña. Juan dividia um escritório com outros dois técnicos: Raul (ou Russo, seu apelido) e Mario. O último era o único, dos três, que era casado e não havia frequentado uma universidade, além de ser o mais velho. Também só ele era filho de agricultores associados à cooperativa27. Em outra ocasião, conversando com Juan sobre seu trabalho nessa organização, ele me disse que ele e Raul eram “engenheiros” (agrônomos) e Mario “apenas um técnico” (florestal)28. Na realidade, Mário era formado em um “instituto”, uma instituição de Terceiro Grau, mas que não tinha
25 Em 2005, um hectare de terreno era vendido, em média, a 1.500 soles (US$ 500). 26 A preocupação com a “qualidade” dos cafés a serem vendidos era vista pelos cafeicultores como algo recente e fruto das demandas dos compradores estrangeiros. Os agricultores diziam que bebiam, em suas casas, “apenas café de baixa qualidade”. 27 Raul tinha 27 anos; Juan 22. Ambos eram filhos de cafeicultores de La Convención e moravam juntos em Santa Teresa. Sua casa era pequena, sem fogão e tanque, por exemplo. Ganhavam 1.200 soles mensais (em torno de USS 400), além do dinheiro para o transporte. 28 Escutaria de Raul que seu desejo era, no fundo, “se desenvolver” (profissionalmente) como cafeicultor, o que se colocava como mais um exemplo do fato de que ele e os demais técnicos eram atravessados por distintas identidades ou pontos de vista ligados ao trabalho. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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o mesmo prestígio que uma faculdade ou universidade perante não só entre eles como entre os peruanos de um modo geral. De qualquer modo, entre os produtores ligados à cooperativa, os três eram comumente chamados de “engenheiros”, e de uma maneira que se colocava como uma espécie de reverência29. A sede da Huadquiña contava com um armazém onde havia a seguinte classificação escrita na parede: café orgânico, café sustentável (sostenible) e café planta.30 Abaixo da
inscrição “café orgânico”, havia uma segunda classificação, só que com relação à localidade de origem do café ou sua cuenca (bacia hidrográfica, em espanhol). O armazém também funcionava como uma sala de reunião. No escritório dos técnicos, destacavam-se as pastas de “registro de dados do agricultor”, com documentos como as “fichas de recomendações”, “fichas de visita de campo”, “contratos de compra e venda” e “compromissos de produção de café orgânico”. Era um imenso “mecanismo integrado de controle” feito pela burocracia da Huadquiña e que a preparava, juntos aos seus associados, para as visitas dos inspetores externos.
Acompanhei Juan, Raul e Mario, em suas visitas de campo, ao longo de três dias – nessas visitas eles preenchiam muitos dos documentos que estavam no seu escritório. No primeiro dia, estive mais próximo de Raul, apesar do meu contato inicial com Juan. Junto de Raul, e em direção à chacra de um sócio, passamos em frente à propriedade de um agricultor que não era associado à Huadquiña. À sua volta, havia uma grande quantidade de lixo espalhado entre as árvores e arbustos, ao contrário da área que cercava a chacra do seu vizinho ligado à cooperativa, onde não havia praticamente nenhum lixo. Raul fez questão de observar que o café do produtor não associado era “heterogêneo demais”, decorrente de uma “colheita e beneficiamento tradicional” e não de uma “colheita seletiva e beneficiamento técnico”31. Além disso, o café do primeiro era secado numa lona preta de plástico próxima ao chão de terra e não numa laje de concreto, conforme a cooperativa exigia de seus sócios. De acordo com o que um produtor havia me dito no dia anterior: “o mercado quer homogeneidade”. Ele traduzia em palavras o que podia ser observado nas visitas às chacras da região.
29 De acordo com o censo nacional de 2007, entre os habitantes do distrito de Santa Teresa com 15 anos ou mais, 8,6 por cento tinha uma educação de nível superior. Já os analfabetos formavam 15,5 por cento da sua população com 15 anos ou mais. Ver www.inei.gob.pe. 30 Café planta era o café também chamado de convencional, tradicional ou comum. 31 A “colheita seletiva” envolvia os grãos maduros e, consequentemente, com características (como corpo, aroma, acidez, doçura e amargor) mais próximas do paladar dos consumidores dos mercados de cafés “especiais”. O “beneficiamento técnico” permitia um maior controle dessas distintas e economicamente valorizadas características desses cafés. Já a secagem dos grãos em lajes de concreto tinha como objetivo principal mantê-los afastados do solo (onde podiam entrar, mais facilmente, em contato com as chamadas “impurezas”, como gravetos e terra, por exemplo). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Chegando à propriedade de um sócio, Raul foi logo conversando, em quéchua, com a mulher do proprietário. Seu marido não se encontrava na chacra naquele momento – ele estava trabalhando no reparo da estrada logo abaixo, nos explicou a produtora. Seguindo adiante, entramos na área de outro “não sócio”; o lixo e o modo de secar não permitido pela cooperativa mais uma vez me chamaram a atenção. Nas chacras dos associados, pelas quais íamos passando, era possível perceber uma variedade impressionante de cultivos, incluindo árvores frutíferas, entre elas a da granadilla, uma fruta de sabor indescritível e que havia provado na feira da COCLA pelas mãos de Raul.32 Finalmente, chegamos à chacra do outro cafeicultor que planejáramos visitar nesse dia, mas que, em virtude do seu falecimento, estava sob a responsabilidade da sua viúva - Raul comentou comigo, logo no começou do seu diálogo, em quéchua, com a produtora: “primeiro as observações e conversas, depois as recomendações de acordo com as potencialidades da propriedade”. Essas recomendações, junto dos planos de produção e demais indicações, além de servirem para controlar as práticas dos agricultores (com base nas normas das certificadoras), podem ser pensados como elementos fundamentais para a criação e o reforço de um modo de se comportar adequado a uma nova realidade socioeconômica global em torno da produção de alimentos. Tais recomendações, indicações e conselhos dados pelos técnicos aos produtores, ao levarem em conta as “potencialidades da propriedade”, acabavam aproximando suas perspectivas do que seria a realidade vivida pelos agricultores. Os técnicos, levando em conta seu conhecimento sobre essas potencialidades, no que incluía uma noção sobre a forma como os cafeicultores percebem o mundo ao seu redor, os incentivava a adotar uma nova disposição em relação à agricultura, assim como um treinador de futebol incitaria seus jogadores a seguir um novo estilo de jogo, ao incutir neles os meios de superação. Não sem razão que a construção social da autoridade de muitos dos atuais treinadores de futebol (no Brasil e em outros países) se dê com base nos seus estudos superiores e nas suas experiências como ex-jogadores enquanto uma característica que lhes ajudaria a transmitir (melhor) seus ensinamentos aos seus atletas. A questão, portanto, é enxergar o trabalho de Raul e de seus colegas como um processo de longo prazo – realizado durante anos – cuja eficácia depende da autoridade que
32 Havia um discurso, dos funcionários das organizações de cafeicultores, que valorizava a “diversificação” das fontes de onde seus associados tiravam os seus recursos. Na Huadquiña, como deve ficar claro ao longo do texto, a ênfase no cultivo da granadilla era colocada pelos técnicos como algo que, antes do que contradizer seus discursos em torno da produção de café, servia para garantir essa produção entre os agricultores que apresentavam certas desvantagens produtivas em relação aos seus pares. Isso implicava num olhar mais global da perspectiva destes últimos antes do que apenas vê-los como produtores de café. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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constroem perante os produtores, da legitimidade de suas práticas e do compartilhamento das representações acionadas em suas falas. Tudo isso faz com que os cafeicultores interiorizem as novas regras do campo econômico - e pressupões um trabalho de mediação social e cultural, ao invés de um contato direto com as transformações nos mercados de café ou de outro produto.
O dia seguinte também foi dedicado às visitas de campo com os técnicos. Voltamos todos para Sahuayaco, o mesmo comitê em que havíamos estado anteriormente. O programado era encontrar os produtores de granadilla da região para uma reunião que, dado às suas ausências, não aconteceu. Os três técnicos então debateram quais sócios iriam visitar. Segui com Juan morro acima. A mais de dois mil metros de altura, medidos com o GPS da Huadquiña em suas mãos, deparamo-nos com as árvores de granadilla. Essa fruta era vendida aos comerciantes locais, mas a ideia da cooperativa era criar uma associação de produtores, tendo em vista “organizar um mercado do produto”, disse Juan. Esse projeto deveria começar no ano seguinte. Num terreno situado acima de dois mil e duzentos metros de altura, o cultivo de café não seria vantajoso, de acordo com o técnico, que iria nesse dia informar aos sócios que, apesar de, nessa altitude, a qualidade do grão ser excelente, a “produtividade dos cafezais era baixa”. O primeiro sócio que visitamos era um “produtor orgânico”. Chegamos em sua propriedade no momento em que ele colhia suas granadillhas, com a ajuda de quatro a cinco pessoas contratadas para realizar essa tarefa. Juan lhe repassou as informações sobre um “sistema de irrigação” - o sócio se interessou pela sugestão, mas o custo do empreendimento logo o desencorajou. Frente a isso, Juan o aconselhou a adquirir apenas uma parte do sistema, “a título de experiência”. Tratava-se de uma, dentre outras de suas propostas, que tinha como objetivo o aprimoramento da produção orgânica daquele agricultor, ao mesmo tempo em que o familiarizava com um conjunto de normas difícil de ser transmitido, na sua sistematicidade, e de maneira “abstrata”, “teórica” ou “escolar”. Durante o almoço, ao qual fomos gentilmente convidados a compartilhar com sua família, ficou evidente a simetria existente entre o sócio e o técnico; ambos se sentiam à vontade e se reconheciam em torno de uma perspectiva comum que parecia remeter a uma socialização anterior no universo de agricultores familiares33. 33 Na época da pesquisa, não estava predisposto a olhar com a atenção e o cuidado, que teria hoje, as dimensões sensíveis das falas e das ações desses sujeitos (um reflexo da falta de distanciamento do universo racionalizado no qual fui criado). Porém, guardo na memória a lembrança de que os técnicos e os cafeicultores compartilhavam um conjunto de afetos que os unia. Esses afetos permeavam seus olhares, movimentos, tom de voz e expressões faciais, por exemplo. Eles encarnavam – em seus corpos – um modo de vida que talvez tenha me atraído justamente por dar vasão a uma sensibilidade que não encontrava em mim. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Seguimos morro acima, em direção à chacra de um tio desse sócio. A conversa de Juan com esse senhor já de idade avançada, aconteceu quase inteiramente em quéchua, intercalada com os comentários que eu recebia desse técnico, em espanhol. Durante a visita ao cafezal, ele sugeriu ao agricultor que plantasse mais árvores de granadilla: “dá mais dinheiro”, conclui o técnico, ainda observando que “a qualidade do café é boa, mas a produção é pequena nessa altura”. No final da visita, Juan repassou ao sócio as suas recomendações, entre as quais incluíam: (1) “poda seletiva e poda total nas plantas prédeterminadas”, (2) “barreiras naturais”, (3) “composto orgânico no adubo” e (4) “melhor limpeza das instalações” (os sócios tinham que cumprir com sete tarefas indicadas pelos técnicos). Tratavam-se de tarefas que se mostravam ao alcance do produtor e que eram transmitidas com uma extrema delicadeza e respeito.
Pude conversar bastante com Jaime, um sujeito de 37 anos que se identificou como um técnico, mas que não era considerando como tal pelos outros três (eles o viam apenas como um sócio da Huadquiña). Ele realizava visitas de campo e administrava cursos para os associados, mas, apesar de trabalhar no local como os demais, não tinha mesa no escritório. Era como uma exceção que confirmava a regra, no que diz respeito às propriedades socialmente reconhecidas dos técnicos: como não cursou o Terceiro Grau, revelou ter aprendido o que sabia na prática, entre os produtores, e através de livros. Disse que gostava de ler e que desejava cursar, em breve, uma faculdade.
Visitei, ao lado de Jaime, a propriedade de um cafeicultor cujos grãos estavam expostos na feira da COCLA. O pai do agricultor começou a cultivar café nesse espaço em 1963, isto é, logo após receber seu terreno do governo no contexto da reforma agrária local (uma porção de terra que mais tarde seria dividida entre seus filhos). Em 2004, o sócio em questão havia “entregue” para a cooperativa 22 quintais do grão; em 2005 deveria entregar 11 quintais e no ano seguinte 25 quintais. Seu “caderno do produtor” não estava passado a limpo e isso deveria ser feito “até a próxima semana”, lhe avisou Jaime34.
Tal atitude seria recorrente: “eles não gostam de escrever”, comentou. Transcrevo parte da conversa entre Jaime e o sócio em torno do “plano de produção”. Seu tom afetuoso criava – ou reproduzia – um vínculo afetivo entre eles e fazia com que suas cobranças aparecessem como de alguém que se importava com o sócio. - O que vamos fazer Don Basílio? (Jaime) - Poda. (sócio)
34 Cada quintal corresponde a 46 quilos.
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Ricardo Cruz - Qual outra tarefa? (Jaime)
- Trabalhar entre setembro e dezembro em um hectare de milho. (sócio) - Tem que fazer o poço! (Jaime) - Em dezembro faço. (sócio)
Como dito aqui anteriormente, o número mínimo de tarefas que um sócio tinha que cumprir, enquanto “plano de produção”, eram sete. Jaime repreendeu mais uma vez o produtor por não passar a limpo, no “caderno de registro”, aquilo que diariamente anotava num outro caderno. “No curso ensinam como usar o caderno (de registro)”, comentou, em seguida, o sócio. Os cafeicultores tinham que anotar quase tudo o que faziam com relação à agricultura. Na “ficha de recomendação”, Jaime escreveu: (1) “teto para a planta de beneficiamento”, (2) “tem que colocar na lixeira inorgânica os lixos que estão espalhados pela propriedade”, (3) “construir o poço”, (4) “fazer placa de identificação do sócio de madeira e não de papel”, (5) “cumprir com o plano de produção”, além de outros dois itens que acabei não registrando.
A questão é que Jaime também vivenciava as misturas ou confluências de pontos de vista que atravessavam os técnicos da cooperativa, só que a perspectiva do produtor parecia assumir nele um peso ou dimensão maior. Ele era capaz de traduzir um saber especializado para os agricultores com desenvoltura e segurança, o que mostrava sua evidente familiaridade com o meio rural e a sua não tão explícita proximidade com o universo técnico. Ou seja, seu desempenho profissional (em campo) não o diferenciava tanto de Juan, Raul e Mario. Mas sua posição ou lugar aparentemente ambíguo, entre esses três, era um sinal de que as fronteiras entre as perspectivas dos produtores e as dos técnicos não eram estanques. Esses pontos de vista se aproximavam ou se separavam dependendo de suas interações35. Em alguns contextos, suas diferenças eram realçadas
como, por exemplo, durante o controle das práticas dos associados. Diante de outras situações, notadamente, ao longo dos aconselhamentos feitos aos sócios, os técnicos eram levados a olhar a realidade como produtores. O exemplo de Jaime mostrava que os agricultores também podiam assumir, pelo menos temporariamente, o prisma de quem ocupava os cargos mais escolarizados da cooperativa36.
35 É possível dizer que o trabalho dos técnicos envolvia uma alternância entre uma forma de relacionamento baseada no controle e outra assentada na pedagogia. Porém, suas fronteiras não eram estanques: o controle podia permear a interação de caráter pedagógico e vice-versa. 36 Outro exemplo era o dos sócios “capacitados” que auxiliavam os técnicos de sua cooperativa durante as “inspeções internas” às “cooperativas bases” da COCLA. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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A diluição das fronteiras entre os cafeicultores e os técnicos passava pelo corpo. Como assinala Tim Ingold (1993), “modos de perceber são a sedimentação de histórias passadas de envolvimento direto entre pessoas e seus ambientes” (idem: 221). Aprender a perceber, diz o autor, é “aprender a participar do mundo de certa maneira através do envolvimento com outros em contextos diários da ação prática” (idem: 222). A diferenciação que Ingold faz entre um olhar no mundo e um olhar sobre o mundo nos ajuda a atender a legitimidade que os agricultores conferem a quem encara a realidade a partir de seu prisma como um ponto de vista que se conhece na prática ou na experiência, pois tendem a confiar nos conselhos dos sujeitos cujos corpos se mostram socializados num ambiente parecido/igual ao onde vivem/trabalham. Essa “comunhão de experiência” ou a “consciência de se viver num mundo em comum”, para utilizar as palavras do autor, desfaz as fronteiras entre os produtores e os técnicos, ao criar um “fundamento relacional” onde ambos podem trocar de papéis ou perspectivas.
Para além das diferenças Em 2011, o café da Cooperativa Huadquiña se converteu no sétimo produto reconhecido, pelo governo do Peru, por sua “denominação de origem”. Tal feito foi amplamente divulgado pela imprensa do país. Numa dessas reportagens, por exemplo, afirma-se que esse rótulo fora concedido depois de três anos de “avaliação técnica das características diferenciadas” desse grão, um processo conduzido por um instituto estatal e através do qual foram levadas em conta suas “características especiais de qualidade, aroma, corpo e acidez derivadas de seu entorno” (Calderón, 2011). Segundo o jornalista, “sua alta qualidade e características especiais têm feito com que o café gourmet MachupicchuHuadquiña conseguisse se posicionar com muito êxito nos mercados internacionais” (idem). Para um dos dirigentes da Huadquiña com quem ele conversou, “essa certificação de denominação de origem será um valor agregado que beneficiará os 600 pequenos sócios” (idem). Contudo, para além das dimensões organolépticas e comerciais em torno do café da cooperativa, essa reportagem também chama a atenção para as mudanças das disposições dos seus sócios diante do trabalho. “Quem não se submete às regras de exigência máxima do mercado não pode estar na cooperativa”, afirmou seu gerente para depois completar seu raciocínio: “antes os sócios entregavam ‘qualquer coisa’, agora sabem que um produto melhor é um preço melhor” (idem). O autor da matéria também relata a transformação vivida por um sócio: Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Ricardo Cruz Odil Vivanco Candia é um agricultor do setor de Yanatile. Sem que pudesse imaginar, se tornou um exemplo a ser seguido. Há quatro anos ele tinha quatro hectares com pouca produção. Os técnicos o aconselharam a substituir seus cafezais. Depois de conversar com sua esposa, começou a praticar a poda seletiva, por meio da qual, suas plantas velhas, que estavam disformes, raquíticas, com crescimento horizontal, foram extirpadas. Hoje em dia esse cafeicultor renovou quase 50 por cento de seus cafezais. Se antes ele produzia 12 quintais por hectare – pouquíssimo – hoje seus índices ascendem a 25 quintais, com a meta de chegar a 50, uma vez que termine a renovação. A renovação deve ser feita aos poucos, e em três anos a chacra estará toda renovada, comenta. “As vantagens de renovar são muitas, produz mais grãos, as plantas não são mais tão altas, facilita a colheita, e a mão de obra não se afasta, pois prefere ir onde é mais fácil colher”, acrescentou. Antes precisava de doze pessoas para colher um quintal de 100 libras. Hoje em dia só necessita de oito e logo será menos (idem).
Quem lê essa reportagem, pode ser levado a acreditar que a racionalização das práticas agrícolas dos agricultores da Huadquiña é guiada somente pelos retornos econômicos que ela é capaz de proporcionar37. Porém, olhando de perto os procedimentos pedagógicos que envolvem esse processo, vemos que ele deve ser traduzido à realidade dos produtores e é por isso que os “conselhos” dos técnicos são evocados na matéria38. Tal mudança na forma do trabalho rural (sua “racionalização”) se apoia, portanto, numa mudança na perspectiva dos funcionários da cooperativa: a adoção da visão dos sócios39. Ou seja, para entender as transformações do trabalho desses cafeicultores é preciso vê-lo também como um ponto de vista sobre o mundo capaz de ser adotado por aqueles que não são classificados como agricultores ou trabalhadores rurais.
A Cooperativa Huadquiña representava não só um ideal comercial ou produtivo, mas também de relacionamento entre os cafeicultores e os agentes que intermediavam suas relações com os universos que iam além do plano local. Esses, não raro, “outros”, como os técnicos e gerentes das cooperativas, os comerciantes “privados” e os políticos, deveriam, em certos momentos, se posicionar como uma espécie de “nós” para que essa intermediação ganhasse uma maior legitimidade da perspectiva dos produtores de café. Essas metamorfoses, por meio das quais é possível ultrapassar certas fronteiras sociais, não estariam tão presentes no passado, quando os vínculos entre os cafeicultores e os
37 “A melhoria de seus cafezais nasceu quando os mercados de café orgânico e de comércio justo chegaram a pagar US$ 30 a mais por quintal” (Calderón, 2011). 38 “A busca por um grão mais uniforme e limpo passou por uma revolução de pensamento. Todos os sócios se submeteram aos conselhos dos técnicos” (Calderón, 2011). 39 Oferecer um conselho (ou um bom conselho) envolveria se colocar no lugar de um interlocutor. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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mediadores comerciais ou políticos eram quase inexistentes. Mas, a partir dos anos 1960, começaram a ser criadas as cooperativas de produtores de café, devido, de modo especial, à falta de confiança nos compradores do grão (Cruz, 2013). Estes últimos agentes eram vistos (e continuam sendo) pelos primeiros como seus “exploradores”, isto é, pessoas que gozariam a vida à custa dos seus trabalhos/esforços. Os comerciantes do grão estariam, portanto, na fronteira da moral - não à toa que quem era identificado enquanto comerciante privado, era, comumente, associado à figura do “ladrão”. De acordo com um (outrora) proeminente líder dos cafeicultores peruanos:
Quando, por iniciativa de agricultores visionários, dedicados à cafeicultura, se formaram as primeiras cooperativas em 1965, decididas a controlar os baixos preços que recebia o cafeicultor, o roubo no peso, a especulação e a exploração do colonizador da Selva Alta em benefício de atacadistas e exportadores intermediários inescrupulosos, cujos ganhos obtidos facilmente eram gastos em viagens ao estrangeiro, na aquisição de artigos suntuosos, no consumo de bebidas e produtos importados, residindo nas cidades, desfrutando do luxo e da abundância; enquanto a economia do campesinato era cada vez mais menosprezada, disseminando a desmoralização e o fatalismo no homem do campo, que morava em casas inadequadas e desconfortáveis, submetido a todo tipo de privações, sem serviços essenciais de nenhum tipo, esgotando-se lentamente como consequência de sua miséria, afundado pelo frequente consumo de tabaco e álcool; não se previam, nem se especulavam sobre, as perspectivas e alcances desse movimento cooperativo de transformação, redenção e mudança na Selva Alta. (Revista Café Peru, edição de janeirofevereiro de 1980)
A fundação e o controle de muitas das cooperativas teriam contado com pessoas com as quais os agricultores de origem andina pareciam não se identificar, como é o caso de uma organização da província de Satipo (na “selva central”) que o antropólogo Robin Shoemaker (1981) visitou entre 1973 e 1975. A experiência de um sócio dessa cooperativa, que havia se tornado um de seus “delegados”, mostra as diferenças ou descontinuidades que existiam no interior dessa entidade: Desde que se tornou delegado, ele aprendeu que o administrador chefe e os gerentes da cooperativa estavam roubando dinheiro da instituição. A maioria desses diretores, segundo ele, são os antigos patrões (latifundiários) de Satipo ou seus filhos. Eles são os que fundaram a cooperativa dez anos antes e tomaram seu controle apesar de todas as mudanças sociais que aconteceram. A ditadura corrupta continua no Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Ricardo Cruz poder porque poucos colonos entendem as leis ou têm alguma noção de seus direitos como membros da cooperativa. A maioria dos atuais colonos tem origem indígena, diz ele, e faltam a eles a “educação e cultura” necessárias para se oporem eficazmente aos gerentes de sua cooperativa (idem: 19-20).
Entretanto, com o passar dos anos, uma parte dos descendentes dos cafeicultores andinos se formou no Ensino Superior e passou a conduzir ou a liderar suas cooperativas. Por isso, a atual posição privilegiada de algumas dessas organizações no mercado de café acaba sendo um reflexo de uma espécie de mudança na identidade de seus funcionários. Não que as pessoas de fora do universo cafeicultor não pudessem se identificar com ele, apenas que os agricultores andinos tinham como referência um senso comum no qual o “outro”, enquanto o sujeito ligado ao comércio agrícola, tendia a assumir, num maior ou menor grau, o papel de explorador do trabalho dos proprietários rurais, como dito acima.40 Os filhos mais escolarizados dos produtores se mostravam mais abertos e confiantes do que eles para entrar em contato com a esfera mercantil. Através de suas experiências familiares e escolares eles acabaram incorporando uma disposição que os legitimava a traduzir, com certa propriedade, o mundo exterior para eles. Eram as segundas ou terceiras gerações das famílias desses agricultores que, aparentemente, se mostravam as principais responsáveis pela diminuição do “clima” de desconfiança dos produtores em relação ao comércio. Mas essa “atmosfera” ainda permeava as visões dos produtores a respeito dos mediadores comerciais e isso explicava a relutância de muitos em se associar às cooperativas ou ingressar nos “programas de cafés orgânicos”, apesar de todas as “vantagens econômicas” que poderiam obter partir da inserção ou participação nessas organizações ou programas41. Não à toa a preocupação
(explícita) dessas entidades em obter a confiança dos seus sócios.
Por fim, como explicar esse pano de fundo de “desconfiança generalizada”? Peter Luetchford (2008), num livro em que aborda a questão do comércio justo numa cooperativa de cafeicultores da Costa Rica, afirma que eles tenderiam a ver o valor do café como algo
40 Não sem razão que o tema do “colonialismo interno” é central na narrativa de Shoemaker (1981). Segundo ele, “o problema enfrentado pelos agricultores de Satipo pode ser definido de maneira simples: o produtor de alimentos é explorado pelas pessoas que controlam os canais mercantis” (idem: 205). Tal olhar se apoia tanto nas visões dos cafeicultores quanto no viés teórico desse autor: a “economia política”. 41 Em 2014, algumas cooperativas peruanas de cafeicultores, outrora situadas entre as que mais exportavam café no país, enfrentaram graves dificuldades financeiras e as quais acabaram alimentando um sentimento de desconfiança de seus sócios para com seus funcionários. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Atravessando as fronteiras de um mercado global
derivado das atividades envolvidas na sua produção e não do seu comércio, uma visão que teria uma raiz cristã.42 Trata-se, segundo esse autor, de uma “teoria do valor”, que pressupõe um arcabouço conceitual ou simbólico organizado ao redor de uma ideia de trabalho rural43. Guardadas as devidas diferenças, creio que essa visão de mundo também está presente entre os cafeicultores peruanos. No entanto, no caso deles, ela se associa à tradicional condenação andina do ócio, sendo a labuta diária no campo vista como a ocupação por excelência44. Nessa direção, a noção de trabalho rural pode ser pensada como uma matriz de significados, ou seja, como fonte de sentidos para interpretarem suas ações e de quem não é agricultor.
A deslegitimação das atividades ligadas ao comércio agrícola aparece entre os produtores de café do Peru como uma condição das suas integrações lógicas e sociais. Em outras palavras, a visão negativa que compartilham a respeito dos mediadores comerciais é naturalizada tendo em vista o reconhecimento de uma identidade comum. Porém, ela deve ser desconstruída a partir do momento em que esses “outros” queiram estabelecer uma relação de confiança com eles. Este artigo mostrou que essa desconstrução vem sendo feita através de uma metamorfose de pontos de vista protagonizada, notadamente, por filhos dos cafeicultores que conseguem incorporar o prisma dos agricultores em suas falas, gestos e olhares. A legitimação desses mediadores, isto é, a transformação dos “outros” em “nós”, se relacionava com o processo de racionalização das práticas agrícolas. Essa mudança do trabalho rural era o reflexo de uma interiorização, pelos produtores, da perspectiva da demanda externa através da confiança nos ensinamentos e conselhos dos técnicos. Novas hexis corporais caminhavam juntas com a diluição das fronteiras de um mercado global.
42 Os que apoiavam mais enfaticamente a cooperativa seriam os jovens e os produtores “tecnicamente mais informados”. Já seus críticos seriam os agricultores mais velhos. 43 De acordo com essa teoria: “aqueles que não trabalham duro”, isto é, que não transformam a natureza, “não têm direito de se apropriar (do trabalho) daqueles que agem dessa maneira” (Luetchford, 2008: 142). Os profissionais que trabalham no escritório da cooperativa, assim como outros tipos de agentes intermediários, seriam acusados, pelos produtores, de serem preguiçosos, uma crítica ou divergência que “está ancorada na crença de que o verdadeiro valor advém do trabalho na terra e da interação com a força que Deus colocou na natureza (idem). 44 “Os produtores parecem compartilhar alguma coisa com os consumidores e ativistas do comércio justo; a idealização do trabalho sobre a natureza como criador de valor e o direito de reter esse valor criado” (Luetchford, 2008: 138). Com base em Woortmann (1987), é possível dizer que se trata de uma visão de mundo ou ética cujas raízes perpassam o cristianismo e se estendem até as ideias do filósofo grego Aristóteles. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Ricardo Cruz
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Recebido em 30 de novembro de 2017.
Aceito em 14 de maio de 2018.
Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
R@U, 11 (1), jan./jun. 2019: 648-672.
Associar e cortar redes politizadas: gênero, raça e sexualidade na infiltração das relações universitárias Romário Vieira Nelvo Mestrando em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ nelvo.romario@gmail.com Fabrício Campos Longo da Silva Graduando em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro fabulongo@gmail.com
Resumo Cuspe, Boletim de Ocorrência, gestão de Centro Acadêmico, nota institucional e efeitos subjetivos são alguns dos repertórios políticos, performáticos e morais nos quais aqui centramos nossa análise. Todos esses elementos constituíram uma briga entre uma estudante feminista e um estudante negro homossexual, dentro do espaço universitário da UERJ. Ao tomarmos esse ocorrido como um evento crítico, objetivamos aponta-lo como ele “desde ao ordinário” com performances de gênero, raça e sexualidade. O evento, e sobretudo suas gramáticas identitárias, associam atores específicos e cortam redes politizadas, notoriamente a partir das carnaturas do gênero, da raça, da sexualidade. Ao invés de partirmos desses marcadores sociais como dados, privilegiamos tomá-los em seus atos, suas relações, isto é, na produção do cotidiano e de seus intervalos de sentido. O enfoque é, dentre outras coisas, postular como os atos performáticos de produção social da diferença constituem o cotidiano politizado das relações universitárias.
Palavras-Chave: Redes; Cortes de redes politizadas; Marcadores da diferença; Estudantes universitários; Gênero.
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Romário Vieira Nelvo, Fabrício Campos Longo da Silva
Abstract Spit, Bulletins of Occurrence, management of Academic Center, institutional note and subjective effects are some of the political, performance and moral repertoires on which we focus our analysis here. All these elements constituted a fight between a feminist student and a homosexual black student, inside the university space of UERJ. In taking this event as a critical event, we aim to point to him as “from the ordinary” with performances of gender, race and sexuality. The event, and especially its identity grammars, associate specific actors and cut politicized networks, notoriously based on gender, race and sexuality. Instead of starting from these social markers as given, we prefer to take them in their acts, their relations, that is, in the production of the quotidian and its intervals of meaning. The focus is, among other things, to postulate how the performatic acts of social production of difference constitute the politicized quotidian of university relations. Key-Words: Network; Cuts of politicized networks; Difference markers; University students.
Introdução “Vem, vem piranha!”1. Cantavam os alunos descamisados do curso de engenharia contra Cleusa2, uma aluna do curso de Ciências Sociais. Era o mês de março do ano de 2014 e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) fervilhava com a excitação de um novo semestre letivo, com a recepção dos/as calouros/as através de trotes, festas e ações beneficentes.
Esse não era um ano qualquer. Em 2014 iríamos sediar a Copa do Mundo e depois eleger um novo presidente – ou reeleger a então presidenta, Dilma Rousseff – depois de um 2013 marcado por manifestações políticas em todo o país, que começaram com o protesto contra o aumento das passagens de ônibus e acabaram lutando contra tudo o que estava posto à vida social e ameaçava nosso, até hoje em dia, nascente sentimento de “democracia”. Manifestações que parecem ter alargado o abismo entre a direita e a esquerda no país, dividindo opiniões sobre as bandeiras defendidas, a participação de partidos políticos e até sobre o uso da violência com o “quebra-quebra” promovido por uma parcela dos manifestantes tomando posição central no debate, já que a repressão
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Convenções: Aspas foram utilizadas para demarcar ironias, passagens êmicas e frases de interlocutores. Itálico para reforçar categorias e conceitos. Alguns termos, como “machista”, “menino” e “menina” foram mantidos quando nos referimos especificamente a colocações dos interlocutores, sendo então alterados por “mulheres” e “homens” quando partia de nossas análises. A alteração dessas categorias linguísticas, acionadas em momentos contextuais específicos, e sempre de modo estratégico, é apenas um dos modos pelos quais, portanto, o gênero aparece como performance (Butler, 2003) e relação (Strathern, 2006), e não como algo substancializado ao longo do artigo. Todos os nomes foram trocados para proteger as identidades dos envolvidos.
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Associar e cortar redes politizadas
policial era severa, e muitos discordavam do que entendiam como “vandalismo”.
É nesse contexto que os novos alunos do curso de Ciências Sociais recebem as boas-vindas. Com uma camiseta de tom rosa, munindo-se dos dizeres Vandalxs a CS faz em casa, e são inseridos no clima de agitação política que marca esse curso, tanto quanto o estigmatiza. É nesse cenário que questões como o racismo, o machismo e a LGBTfobia3 emergem como a espinha dorsal (Lima, 2018) do curso, praticamente dividindo os estudantes entre privilegiados/alienados que não enxergam ou não se importam com essas opressões e os politizados que se identificam mais com alguma das questões e se colocam como aliados em relação às outras. É na ocasião da entrada desses estudantes, também, que a aluna veterana Cleusa tira a camisa para enfrentar, de peito aberto, “os machistas da engenharia”, que desferiam sobre ela falas de “vem, vem piranha!”. No nono andar (que abriga os cursos de História, Filosofia, Ciências Sociais, Relações Internacionais, Educação Física e Arqueologia), a sala do primeiro ano era completamente pichada com palavras de ordem. Dentre muitas, destaca-se a frase “machistas não passarão”. E foi dessa sala que partiram os/as alunos/as, calouros e veteranos, cantando pelas rampas dos doze andares da UERJ, considerada a universidade mais popular do Rio de Janeiro. Por fim, o embate no salão térreo e posteriormente uma conversa informal nos portões da universidade, quando Cleusa falou sobre feminismo4 e aludiu que o embate
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Valemo-nos aqui da forma como o movimento social classificava os ataques constantes a pessoas que se auto denominam Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT). O momento no qual descrevemos os conflitos universitários foi propício para a alteração nos significados semânticos dos movimentos identitários, sobretudo, no que tange às identidades sexualizadas. Desse modo, trata-se de uma “sopa de letrinhas” um tanto alterada em relação, por exemplo, à análise ricamente desenvolvida sobre o movimento homossexual do final do século vinte por Regina Facchini (2005), referência obrigatória para um panorama de como esses movimentos se constroem como demandas sociais e identitárias. Naquele momento, o debate sobre o Poliamor ainda estava surgindo entre as pautas estudantis e identitárias, pelo menos na UERJ, de onde esses conflitos partem – consultar França (2016) para uma arguição sobre o Poliamor. As discussões sobre as políticas Queer já apareciam como parte dos repertórios políticos estudantis da UERJ, todavia, sem grande protagonismo nos conflitos de gênero, raça e classe que aqui analisamos – consultar Miskolci (2009). Para uma melhor análise sobre como têm sido pautadas as identidades politizadas de sujeitos LGBT´s no ambiente universitário, consultar Lima (2016). Destacamos, ainda, a importância que os espaços de sociabilidade têm assumido para as dinâmicas sociais desses grupos, sobretudo em suas diferenças internas, como a etnografia realizada por Isadora Lins França (2012), na interseção entre a homossexualidade e o consumo em São Paulo, demonstrou. E, mais recentemente, Longo (2018) dedicou especial atenção para as fronteiras nitidamente demarcadas de classe, consumo e bebida alcóolicas entre sujeitos Gays no Rio de Janeiro, que lhe permitiu sugerir a interrogação: “o que é ser Gay no século XXI?”. Para um panorama mais geral de como esses debates têm se dado entre os movimentos sociais e a academia, valemo-nos de algumas referências teóricas, as quais deixamos como citações (Ver, por exemplo, Vianna & Lacerda, 2004; Carrara, 2015; Carrara et al., 2017; Carrara, França & Simões, 2018). Para a escrita do artigo consultamos distintas/os autoras/es que pensaram os feminismos, o gênero, a raça, o sexo, a sexualidade e as formas contemporâneas de erotismo (Rubin, 1984; Brah, 1996 Butler, 2003; Strathern, 2006; Mahmood, 2005; Haraway, 2009; Abu-Lughod, 2012; Padovani, 2015; Davis, 2016, 2017; Gregori, 2016; Díaz-Benítez, 2010; Hooks, 2010; Mcclintock, 2010; Lima, 2018). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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com os “machistas da engenharia” não seria o último conflito na trajetória estudantil daqueles calouros. Essa era a UERJ.
Este primeiro dia ganharia ainda mais significado meses depois, quando uma briga envolvendo Cleusa, uma mulher feminista branca, e um homem negro e homossexual, aluno do curso de Artes também da UERJ, dentro do Centro Acadêmico de Ciências Sociais – CACIS –, acabaria revelando as tensões, os intervalos e as diferenças cotidianas de gênero, de raça e de sexualidade (Feltran, 2017) que persistem no andar, mesmo no curso supostamente mais politizado e que melhor discute essas questões. O artigo se constrói em torno desse conflito, visto aqui como um evento crítico (Das, 1995), e o modo como ele “desce ao ordinário” cortando redes politizadas, produzindo as diferenças e as associações identitárias internas aos estudantes universitários.
Munidos de categorias de acusações como machista, racista, transfóbico, misógino, classista, feminazi ou esquerdomacho, parece que não são apenas vândalos que a CS faz em casa5.
Quando o evento “desce ao ordinário”: Corte e associações de redes politizadas, breves exposições teóricas A cena introdutória nos é familiar. À ocasião éramos calouros. Um de nós encontravase presente tanto na integração no nono andar quanto no embate com os “machistas da engenharia”. O artigo se alicerça a partir destas reverberações de conflitos que marcam o cotidiano universitário. Se a rotina de um estudante é definida pelas aulas e filas para fotocopiar textos, das conversas animadas no restaurante universitário, que tecem nossas melhores memórias do período, brigas e gritos que terminam com todos fazendo Boletins de Ocorrência na Delegacia de Polícia são fatos que transitam entre o ordinário e o extraordinário das relações estudantis. Em todos os casos é o Centro Acadêmico que costuma mediar essas tensões através da publicação de notas, como um tipo de “posicionamento oficial” da comunidade discente, e, quando se faz necessário, do suporte burocrático, como registrar os fatos com a Polícia ou outras instâncias da universidade. 5
Não que os conflitos sejam incomuns; contudo, alguns episódios são considerados
É parte de nossos interesses sugerir que há uma tensão na universidade que opõe distintos cursos através do entendimento que têm sobre gênero, raça e classe. De um lado, estaria o trote das Ciências Sociais, que ensinava feminismos e as opressões sociais, e, do outro, os “machistas da engenharia”, que pareciam não se importar o quanto seus corpos descamisados construíam uma performance de gênero e masculinidade (Butler, 2003), o quanto o “vem, vem piranha” era opressivo aos cursos de Ciências Humanas, majoritariamente ocupados por mulheres, pessoas negras e LGBT´s. A questão é demonstrar como essa diversidade interna aos cursos reverbera nessas distinções mais amplas. Para uma discussão sobre a vivência universitária e sua relação entre política e esportes, consultar Costa (2007).
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mais graves. Funcionam como um evento crítico (Das, 1995). Isto é, causam rupturas, desordens e reordenamento das relações. A aposta é perceber como eles “descem ao ordinário” (Das, 2007), como as pessoas empreendem esforços contínuos para tornar seus mundos, suas vidas, novamente habitáveis; após as dores; após as guerras; após os conflitos. Certamente, Veena Das (1995, 2007) analisaria dessa maneira nosso problema de pesquisa.
Conduziremos esse artigo desde o conflito universitário em si, ou seja, de seu evento crítico, dando atenção ao modo como ele “desce ao ordinário”, com os repertórios e diferenças de gêneros, raças, classes e sexualidades, em pauta no movimento estudantil local. E como, ainda, esses episódios constroem Redes e Associações (Latour, 2005; Boissevain, 2010), nitidamente marcadas pelas performances dos marcadores sociais em questão (Mcclintock, 2010; Davis, 2016). Aqui, Redes é uma inspiração de Bruno Latour (2005) em sua formulação da Teoria Ator-Rede. Estamos interessados, como quis Latour, no modo como os atores produzem associações. Para o autor, o social é produzido nesses movimentos associativos. Cabe ao analista das relações sociais mostrar-se atento aos passos que os atores produzem, pois são os atores que constroem aquilo que a teoria social clássica quis um dia chamar “sociedade”. Assumimos: não estamos preocupados com os debates complexos acerca da existência ou não da “sociedade” na teoria social e antropológica clássicas (ver Strathern, 2014), mas, sim, na pista que Latour nos deixa, para que sigamos os atores em suas associações. Nessas associações e nos cortes de redes as performances da diferença se produzem quando o evento crítico “desce ao ordinário”. São tão potentes e materializadores da diferença esses marcadores que são capazes de cortar redes politizadas, de produzir a espinha dorsal da singularidade da diferença (Brah, 1996). Algo que se dá, portanto, nos intervalos do cotidiano, como bem sugeriu Gabriel Feltran (2017).
Fátima Lima (2018) se debruça na noção de espinha dorsal para trazer à tona sua perspectiva interseccional entre os marcadores da diferença. Contudo, para a autora, a raça, por exemplo, é uma espinha dorsal quando colocada no centro das discussões, pois os marcadores, apesar de intersecionados, são ora singulares entre si. Acreditamos que a noção da autora possa nos elucidar algumas questões sobre como redes são ora cortadas, ora produzidas, porque os marcadores, por vezes, singularizam os sujeitos e definem a carnatura da produção social da diferença. Expliquemos: as pessoas deixam de se falar; se dividem entre coligações políticas diferentes; passam a fazer oposições partidárias internas; deixam de lado seus projetos homogêneo-politizados e começam a pautar suas diferenças, nitidamente identitárias. Em nosso campo, um conflito universitário traz o Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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revés da separação entre “meninos” e “meninas” no Centro Acadêmico de Ciências Sociais, que cortam as redes políticas e passam a se associar por seus gêneros e suas orientações sexuais.
Desse modo, podemos nos filiar aos ensinamentos de Marilyn Strathern (2014) sobre como se cortam as redes, notoriamente um caminhar da autora pela Teoria Ator-Rede (Latour, 2005). Diz-nos Strathern (2014 :305) que as “redes que dependem das interações entre as pessoas acabam tendo uma temporalidade frágil. Elas não duram para sempre”. Por isso mesmo, “a questão passa a ser o modo como são sustentadas e se tornam duráveis. Elas parecem depender de continuidades de identidades (isto é, homogeneidade)”. Em nosso caso, as redes cortadas são as politizadas, as das ficções da homogeneidade entre os gêneros, as raças e as sexualidades no espaço universitário.
Um evento crítico (Das, 1995) “desce ao ordinário” cortando os grupos pelo gênero, pela raça, pela sexualidade, pela classe, pelos, então, marcadores sociais da diferença (Mcclintock, 2010; Mohanty, 2003; Davis, 2016; Feltran, 2017; Lima, 2018). Desfaz, no ambiente universitário, o projeto político harmônico de um Centro Acadêmico, as “continuidades de identidades”, segundo Strathern (2014); desfaz a junção das perspectivas políticas de jovens tomados pelo fervor das manifestações de junho de 2013; produz a diferença; as pessoas se filiam por suas performances identitárias de gênero, mostrando, entre outras coisas, que diversidade, associações e relações fazem parte dos espaços estudantis politizados. Selecionamos os eventos discutidos nesse artigo por terem movimentado atores generificados, racializados e sexualizados específicos. E, também, cortado e produzido associações politizadas de atores para a solução dos conflitos universitários em questão. Pensando no que diz Victor Turner (2005) sobre “rituais de aflição”, lembremos que a aflição faz parte da comunicação de unidade. Ela serve para apaziguar tensões ao funcionar como um estágio liminar, depois do qual as coisas voltam a ser como antes do evento extraordinário, e/ou mudam o rumo de vez após o Drama Social. Por isso, o modo como os conflitos no ambiente universitário são infiltrados nas relações sociais apresenta-se aqui como de suma importância. Quando, de fato, o drama, o evento crítico, “desce ao ordinário” ele produz repertórios sociais complexos de gênero, raça e sexualidade. É essa a nossa aposta analítica.
Para atender a esses objetivos aqui expostos centraremos nossa descrição etnográfica no que nossas interlocutoras identificavam ser a figura do esquerdomacho, homens filiados à esquerda política, mas que ainda assim produziam atitudes “tipicamente machistas” nos espaços universitários, como o silenciamento das mulheres. Desse ponto Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de vista, eles parecem não ser tão diferentes assim dos “machistas da engenharia”. O esquerdomacho divide espaço com uma crescente demanda por representações feministas dentro da universidade, embora outras questões sociais tenham sido reveladas durante nossas investidas etnográficas. Como sugeriu Efrem Filho (2017), narrativas sobre violências vão sempre nos conduzindo a outras narrativas sobre violências. No mesmo sentido, narrativas sobre os conflitos universitários nos conduziram a outras narrativas diversas, todavia, reciprocamente constituídas, como quis o autor citado. Aos cortes e associações de redes generificadas, apareciam reciprocamente constituídos não apenas o próprio gênero, mas, também, a raça, a sexualidade, a classe, os partidos políticos de esquerda, entre outras coisas, que constroem as diferenças entre os grupos sociais politizados.
Isso, não obstante, construía a nós mesmos naquele espaço, como estudantes LGBT que fomos: nos interiorizamos entre agremiações específicas até que um dia “deixamos” de ser Vandalxs da CS. Saíamos da universidade no momento de maior crise política de sua história. Defendemos nossas monografias em meio às greves infindáveis, aos desmontes estatais, com os temas que de algum modo aqui nos são caros. Nós mesmos somos sujeito/ objeto do quanto as demandas universitárias orientam as escolhas políticas, acadêmicas e epistemológicas6.
O artigo daqui em diante se divide em três momentos. No primeiro, fazemos uma comparação entre o cenário político e as demandas estudantis – tanto ideológicas como acadêmicas – do curso de Ciências Sociais da UERJ, em uma geração anterior à implementação do Sistema de Cotas7. Em seguida, enfocamos no ano de 2014, a fim de
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Durante os anos 2015, 2016 e início de 2017 a UERJ, considerada uma das melhores universidades do país, passou pela pior crise política de sua história. Esse artigo é uma resposta política contra o desmonte da ciência e universidade públicas. Mesmo com todo o desmonte da universidade, no ano de 2017 a UERJ ocupava a oitava posição do ranking nacional, sendo, ainda, uma das vinte melhores da América Latina. Consultar: https://odia.ig.com.br/_conteudo/2017/11/rio-de-janeiro/26059uerj-e-a-8-melhor-universidade-do-pais.html, acessado em 10 de dezembro de 2018. A UERJ ainda se recupera de seu sucateamento provocado por partidos políticos específicos e falta de interesse público da classe política estatal. Nossos temas de pesquisas produzidos pelo Departamento de Ciências Sociais giravam em torno ora das discussões de sexualidade, maternidade, políticas, emoções, laços conjugais, dor, sofrimento e gênero, a partir de histórias de mulheres mães jovens soropositivas (Nelvo, 2017); ora das fronteiras identitárias produzidas entre festas Gays cariocas, em sua intersecção com o tema do consumo, práticas sexuais, produção midiática da diferença e, sobretudo, bebidas alcóolicas, que traz à baila as dinâmicas de classe e raça (Longo, 2018). A UERJ é conhecida por ser a Universidade mais popular do Rio de Janeiro, senão do Brasil. O Sistema de Cotas tem proporcionado o ingresso e permanência dos e das estudantes nesta universidade desde os primeiros anos do atual século. Segundo o site oficial da universidade: “A universidade do Estado do Rio de Janeiro foi pioneira no sistema de cotas, garantindo 50% das vagas do vestibular de 2003 para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas da Rede Pública. Com a regulamentação que garante o corte sócio-econômico, a reserva de vagas ficou em 45%, sendo distribuída 20% para Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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compreender como os estudantes de hoje constroem a perspectiva sobre o “seu” momento na universidade. Sobre o que foi, portanto, a “nossa”, autores do texto, estadia na UERJ.
Esse material foi levantado através de entrevistas e achados na internet sobre o assunto. Além do relato de uma antiga aluna, hoje professora do curso, contamos com os depoimentos de estudantes que participaram ativamente dos eventos narrados e que à ocasião da pesquisa frequentavam à UERJ. Assim, chegamos ao segundo momento, que consiste na reconstituição narrativa da briga entre Cleusa – uma das interlocutoras, até então nossa veterana, que à época fazia parte da gestão do Centro Acadêmico – e Patrick, estudante do curso de Artes, que não aceitou dar-nos uma entrevista formalizada sobre o ocorrido, nos cedendo apenas breves frases de efeito que a ele remetia, em um episódio que teria envolvido “atitudes machistas”. Por fim, afirmaremos que o evento crítico, quando “desce ao ordinário”, produz uma série de efeitos idiossincráticos aos envolvidos, produz fixação de categorias, como, de um lado, uma feminista “louca” e “descontrolada” e, do outro, um esquerdomacho “opressor”, que, fatalmente, é apagado de suas multiplicidades de modos vida, como a racialização ou sua sexualidade. Intentamos, portanto, trazer à baila os efeitos sociais e idiossincráticos que ficam de fora da narrativa politizada da briga em questão, sugerindo que ela é muito mais violenta do que os enquadramentos que nos são apresentados Utilizamos os relatos das entrevistadas e nossas próprias memórias para discutir as implicações do evento crítico no contexto político do curso de Ciências Sociais, da gestão do Centro Acadêmico, das dinâmicas subjetivas entre os atores envolvidos, e nos dias de hoje, quando a pauta feminista é forte e urgente no ambiente da UERJ – mesmo que diversos casos de machismo ainda assombrem esse espaço, que apesar do pioneirismo no Sistema de Cotas, ainda é muito privilegiado. Como a condução dessas narrativas nos conduzem a outras narrativas reciprocamente constituídas (Efrem Filho, 2017), foi possível captar nuances de raça, de classe, de sexualidade e de coligações partidárias.
Ontem e hoje, mulheres! A questão de gênero em duas gerações A Universidade do Estado do Rio de Janeiro é famosa em todo o país não apenas por sua excelência no ensino, mas, também, pela sua diversidade. O mais conhecido de seus campi fica ao lado do Estádio Jornalista Mário Filho, internacionalmente conhecido estudantes de rede pública de ensino, 20% para negros e 5% pessoas com deficiência e integrantes de minorias étnicas, além de filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e de inspetores de segurança e administração penitenciárias, mortos ou incapacitados em razão do serviço. Em dezembro de 2008, foi estabelecido que o sistema durasse outros 10 anos”. (SITE DA UERJ: http://www.uerj.br/, consultado em 29 de maio de 2017).
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como Maracanã, às margens do Rio que é o “verdadeiro” dono do nome8. Com uma estação de metrô ligada por uma passarela a um de seus portões, e com inúmeras linhas de ônibus atravessando seu entorno, o campus – que abriga o curso de Ciências Sociais – é um dos pontos de fluxo da cidade. Localizada de maneira tão “carioca” entre um estádio de futebol, os prédios de classe média de Vila Isabel e a favela (e a quadra de Escola de Samba) da Mangueira, a UERJ foi a primeira universidade brasileira a implementar o Sistema de Cotas em seu processo seletivo, confirmando sua vocação como riquíssimo caldeirão político. Um caldeirão que ferve de acordo com os sabores do governo que o sustenta. Assim, apesar de os ditos “movimentos e espaços” desse cenário serem movimentados, por vezes, por tendências macro-políticas, é com o Governo do Estado que a UERJ precisa articular repasses econômicos, pautas estudantis e greves trabalhistas.
Rogéria conhece bem esse cenário. Ela ingressou na UERJ no ano de 2000, como estudante do curso de Ciências Sociais, e hoje leciona nas mesmas salas em que antes estudava. Era o fim da chamada “Era FHC” – o mandato presidencial do sociólogo Fernando Henrique Cardoso – e, no âmbito do Governo do Estado, o início da polêmica administração de Anthony Garotinho – hoje investigado por uma série de acusações de corrupção. O país ainda vivia um longo processo de redemocratização após o período da Ditadura Militar, à procura de uma identidade nacional de liderança em uma América Latina que vinha de um processo civilizatório (Elias, 2011) “tardio” em relação aos Estados Unidos e às potências europeias – as aspas demarcam nossa ironia. Notoriamente, um país marcado pelas ruínas coloniais e escravocratas. Nesse contexto, Rogéria, em entrevista, contou que: “a universidade estava até mais sucateada do que hoje em dia”9, já que o processo de terceirização que afetava principalmente as universidades federais no governo FHC também esbarrava nos blocos cinzas da UERJ.
Assim, o movimento estudantil concentrava suas críticas contra o governo e a
dependência do FMI (Fundo Monetário Internacional). Uma pauta mais “universal” entre os distintos cursos era a do restaurante universitário (que foi conquistado somente em 2011), mas esse tipo de política “externa” acabava por afastar estudantes, como a própria Rogéria, que se interessava mais pelos problemas da universidade e da formação
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Além do referido campus, a UERJ conta com o da FFP (São Gonçalo) e a FBF (Duque de Caxias). Os outros campi estão em Petrópolis, Ilha Grande, Nova Friburgo, Resende e Teresópolis, além de representações específicas nos bairros de Botafogo, Lapa, São Cristóvão, Rio Comprido, São Francisco Xavier e Vila Isabel (todos na capital). Na entrevista com a hoje professora do Instituto de Ciências Sociais, ela não nega o fato de que os dois últimos anos têm trazido grandes dificuldades e sucateamento para a UERJ, muito em função da crise do governo PMDB, que segundo ela tem transformado cada vez mais essa comparação sobre “investimento” e “sucateamento”, quando visto a sua geração e seu momento atual como professora, em um verdadeiro “porém”, que deve ser levado em consideração. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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acadêmica.
Ela nos contou que um tema bastante comum às Ciências Sociais no período era o da “cultura de massa”, com estudos sobre comunicação, telenovelas e internet, sob a ótica da construção da subjetividade e a ideia de subalternidade como produto da exclusão social em um contexto de estudos pós-coloniais. Acho que nós estávamos muito interessados em tentar entender, por exemplo, o lugar da novela na formação da subjetividade. Não era comum, por exemplo, cursos sobre nenhum tema social dos direitos humanos, entendem? Mesmo assim, cursos sobre violência que tinham eram nessa perspectiva mais da violência como índice, da violência como um problema social. Eu cheguei a fazer vários desses cursos, mas não era nessa interface, por exemplo, em tema com direitos humanos (Rogéria, 2016).
Nesse sentido, temas discutidos hoje, como racismo, machismo, LGBTfobia, feminismos e afins não eram pauta hegemônica nem do movimento estudantil, nem da grade curricular, já que não existia demanda por parte dos alunos. Logo, os estudantes interessados em questões relativas aos Direitos Humanos precisavam migrar para outros institutos a fim de direcionar suas carreiras:
Naquele momento, quem queria se aprofundar em estudos de gênero saía. Então naquele momento eu saí. Marcela, João Pedro que é de uma geração posterior à minha, da primeira turma de cotas, e muitos outros colegas também. A ideia era de que o curso de Ciências Sociais dava uma base ótima pra gente, eu sempre reconheci isso, mas com especializações que para a gente também eram muito claras. Então eu diria que eram bastante fortes naquele momento os estudos sobre religião ou sobre cidade, que ainda são hoje em dia (Rogéria, 2016, grifos nossos).
É um contexto figuracional diferente do que ela observa hoje, como professora, depois de mais de uma década de Sistema de Cotas e do impacto das redes sociais na formação política e nos interesses acadêmicos dos jovens, particularmente em torno de bandeiras como a do feminismo: Eu não recordo de haver uma pressão no sentido de oferecer curso sobre gênero, que é uma demanda que vocês fazem hoje, ou curso sobre relações raciais e racismo. Eu acho que nosso interesse estava mais no sentido de tentar compreender esse processo, que era um processo
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Associar e cortar redes politizadas macro de exclusão, como que isso era atravessado por essa questão que eu já falei dos meios de comunicação. (Rogéria, 2016, grifos nossos).
Fazendo um contraste a este contexto no qual Rogéria era discente de graduação, o quadro político nos permite ser analisado através do relato de Vitória, que entrou no curso em 2013, aos 19 anos. A estudante é da mesma turma de Cleusa – as duas são amigas – e também participou dos eventos narrados nesse artigo. Em sua fala, assim como na de Cleusa, é frequente a menção às chamadas “Jornadas de Junho” – a onda de protestos que ocupou as ruas do país em 2013 –, como uma experiência produtora de um engajamento político (ou do desejo dele) anterior ao ingresso à faculdade: O curso, as pessoas são mais politizadas do que outros; alguns outros cursos. Por que é um curso que se propõe a discutir essas coisas. A gente que entrou em 2013 viveu um ano de muita efervescência política. Debatia muito a conjuntura dentro de sala de aula, porque era uma conjuntura bem acelerada, né? Muitas coisas aconteceram, teve as Jornadas de Junho, muita gente se organizava, o centro acadêmico organizava concentração pra ir pro ato. Muita gente foi. Na minha turma, cara, foi a turma que mais, que eu considero, que mais teve gente se organizando na militância. Em diferentes organizações. Foi a que mais saiu militante. Depois veio a turma da Rebeca, depois a outra turma, agora essa turma, as pessoas se organizaram, mas uma organização mais tímida. Assim, participa de algumas coisas, mas não é algo que elas fazem o tempo inteiro. Na minha turma não, saiu uma galera que virou militante mesmo. Orgânico, né? E, uma coisa que eu observei muito foi que esse debate sobre opressões foi crescendo muito no nono andar a partir de 2013. Quando eu entrei não era assim. Hoje em dia, qualquer coisa que acontece, todo mundo já denuncia, todo mundo já entende o que é ou pode ser uma opressão. Quando a gente entrou em 2013, tinha algumas pessoas que tinham esses debates, mas elas sofriam um pouco. A gente fazia as denúncias, mas a galera não legitimava aquela denúncia prontamente, tinha certa resistência. E aí tanto na macropolítica esse debate foi ganhando espaço e se refletiu no nono andar. Hoje em dia eu considero o nono andar muito mais alinhado a essas questões do que quando eu entrei (Vitória, 2016, grifos nossos).
Destacamos que essa “efervescência política”, à qual Vitória se refere, é de suma importância para se pensar em como a conjuntura política influencia os debates dentro de sala de aula, dos temas a serem discutidos, das orientações pessoais – como, por exemplo, tornar-se militante nas “Jornadas de Junho” de 2013. No mesmo sentido, na geração de Rogéria os debates que fervilhavam eram a recém Ditadura Militar e os significados Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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subjetivos da construção de uma nação brasileira, de uma subjetividade, por meio das culturas de massas.
As demandas sociais mais amplas, isto é, o contexto figuracional (Elias, 2011), trazem à baila os temas que merecem atenção por serem então urgentes, necessários. Por despertarem o interesse de cientistas sociais. As identidades de gênero, sexuais e feminismos emergem como pautas acadêmicas em estreita relação com a produção de demandas sociais e políticas de direitos sexuais no Brasil (Vianna & Lacerda, 2004; Facchini, 2005). No mesmo sentido, raça, racismo e experiência de classe social acompanham as políticas de cota e de reparação racial e social dos grupos colonizados, bem como a impossibilidade de se discutir opressões sem colocar a raça como a espinha dorsal de um país cuja colonização e escravidão lhes dão origem (Lima, 2018). É nesse processo de crescimento do debate sobre gênero e feminismo no curso de Ciências Sociais da UERJ que os eventos narrados na introdução projetam a figura de Cleusa como uma liderança feminista para os calouros de 2014. Algo que repercutiu na eleição da nova gestão do Centro Acadêmico naquele ano e, também, na forma como a briga entre ela e Patrick terminou por cortar redes politizadas de associações, e infiltrar nas relações ordinárias diferenças de gênero, raça e sexualidade no nono andar.
Associar e cortar redes politizadas: Gênero, raça e sexualidade na infiltração das relações Quarta-feira. Setembro do ano de 2014. Um conflito ordinário entre os cursos de Ciências Sociais e História transformou o CACIS em um “cenário de guerra”. Há apenas uma parede fina separando os espaços de convivência dos dois cursos, o que estabelece certa comunicação quando batidas mais ou menos veementes pedem silêncio ou demarcam posições, provocações. Uma dinâmica que nesse dia saiu do comum, fazendo com que o “bate de lá que a gente bate de cá” evoluísse para a agressão.
Cleusa acabara de sair de uma prova como outra qualquer, em mais um semestre tenso que viria a ser paralisado dali algumas semanas. No caminho para o CACIS, já era possível escutar a discussão entre as mulheres do núcleo de História e Patrick, estudante do curso de Artes. Cleusa entra na confusão sabendo que poderia ser um caso de “opressão”, com o fim de apaziguar a situação. Ela teve essa suspeita porque não seria a primeira vez que esse mesmo rapaz estaria causando rebuliço no nono andar, já que recentemente ele tinha insultado a religião de um estudante de Ciências Sociais que estava fazendo uma “limpeza espiritual” no espaço. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Patrick é negro, assumidamente homossexual e morador da baixada fluminense, região que concentra grande número de pessoas periféricas e pobres. Nesse dia, as mulheres do núcleo de História estavam em reunião, com bastante barulho, até que ele chegou e despojou diversas revistas G Magazine no chão – publicação destinada ao público gay, que contém ensaios fotográficos de nu masculino –, dizendo que era “disso” que elas estavam precisando para “se acalmar”. Atitude que gerou revolta entre as mulheres e fez com que Cleusa, ao saber do ocorrido, partisse para cima de Patrick e começasse o embate que ecoou por todo o andar, já que os dois passaram a gritar. A discussão durou alguns minutos, com trocas de ofensa dos dois lados. Patrick afirmava que Cleusa era uma “mulherzinha que não sabe se defender”, e que ela também precisava “de um macho para se acalmar”. Justificava, ainda, que por ser homossexual, ele poderia dizer esse tipo de coisa sem o peso ofensivo que existiria caso ele fosse heterossexual. Tipicamente um esquerdomacho.
A briga terminou quando Cleusa, que durante todo o tempo gesticulava muito e falava alto, cuspiu no rosto de Patrick. Mesmo sem entender nada, muitas pessoas foram atraídas pelos gritos até o local.
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Parece-nos que o ocorrido funciona como um evento crítico (Das, 1995), que expõe relações performadas de conflitos generificados, racializados e sexualizados. Isso se partirmos das sugestões de Butler (2003), para quem o gênero aparece como performance. O que não significa dizer que o gênero não exista como representação cultural pré-dada, mas sim que é no ato que ele é feito, nas relações (Strathern, 2006) O que é o gênero? O que é a sexualidade? No evento crítico trazido, são as performances que dali vazam. Identifiquemos. Uma reunião de um coletivo de mulheres; uma revista voltada para o público homossexual; “mulherzinha que não sabe se defender”; os gritos; os gestos corporais; o enfrentamento; a negritude do rapaz; a branquitude da moça; o cuspe. Gênero, raça, sexualidade são todas essas carnaturas separadas, performadas, relacionadas, reciprocamente constituídas (Efrem Filho, 2017). (De)substancializadas. Portanto, “performances da diferença” – notoriamente uma inspiração do que Butler (2003) chamou de “performances de gênero”. Carnaturas produzidas a partir e nas relações (Strathern, 2006). Depois da briga Cleusa tomou um “chá de cadeira” enquanto tentava abrir um Boletim de Ocorrência na Delegacia (B.O.). Como o caso não se enquadraria nas agressões Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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previstas pela Lei Maria da Penha10, ela não procurou a Delegacia de Atendimento à Mulher. Mas se nas instâncias legais o ocorrido não passou disso, entre os estudantes diversos atores foram mobilizados, associados e cortados das redes politizadas. Alguns dos homens que presenciaram o evento, alunos do curso de Ciências Socais, eram amigos de Patrick. A princípio não se configurou uma dinâmica associativa que colocasse, de um lado, “meninos”, e, do outro, “meninas”, mas em pouco tempo essa parecia ser a tônica das filiações pós evento. Alguns dos amigos de Patrick eram membros da gestão do Centro Acadêmico, de que Cleusa fazia parte, e que tinha sido eleita há pouco menos de três meses, com uma campanha fortemente apoiada no respeito à diversidade e às bandeiras políticas “do momento”, que Vitória identificou anteriormente como inspirações das “Jornadas de Junho”, dentre estas a feminista. A gestão do Centro Acadêmico representa os estudantes no diálogo com a universidade em questões burocráticas, como a solicitação de ônibus para viagens, dispensa de aulas, reserva de espaços do campus para eventos acadêmicos e sociais, e divulga o “posicionamento oficial” da comunidade estudantil diante dos fatos negativos e positivos que ocorrem dentro da UERJ.
Se no contexto de Rogéria a gestão panfletava “contra” os governos corruptos, no de Cleusa a demanda “contra” o governo parece engajar-se na política por uma “vida sem catracas”, como Leila Saraiva (2018) identificou junto ao movimento do Passe Livre – leiase, que as “Jornadas de Junho” começaram pela demanda na diminuição dos vinte centavos das passagens de ônibus. “Contra” o governo, portanto, visando o fim das desigualdades sociais, liberdades de gênero e sexualidade, e reparação racial, da colonização e da escravidão. “Contra” as situações sociais que Vitória denominou como “opressões”. São “contra” por demandarem, entre outras questões, o reconhecimento identitário-político das existências de mulheres, negros e LGBT´s. Nesse sentido, muito rapidamente surgiu a demanda – e a expectativa – pelo pronunciamento do CACIS sobre o evento entre Cleusa e Patrick, através de uma nota oficial postada em suas redes sociais. A gestão tinha sido eleita justamente por ter representantes de diversos destes grupos, o que parecia significar maior mobilidade e abrangência quando fosse necessário lidar com diferentes pautas políticas. Entretanto, como fica explícito no depoimento de Vitória, não foi o que ocorreu:
A gente formou uma chapa bem ampla pro centro acadêmico e nessa chapa
10 Lei em âmbito nacional, instaurada em 2006, que visa coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Sua resolução pode ser melhor acessada em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm, acessado em 14 de outubro de 2017. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Associar e cortar redes politizadas tinha muita gente: eu, Cleusa, Fernanda (que saiu do curso), Roberto, João, Marcelo, Rogério, a maior galera. Uma chapa ampla no sentido de concepção de política. A gente era novo em política, então não sabia quem era quem, quem acreditava em quê e aí acabamos formando essa chapa muito, muito ampla. E dessa chapa muito ampla surgiu muita divergência política. Principalmente no debate sobre opressões. Eu e a Cleusa, a gente sofreu muito com o machismo dentro da gestão e a galera não conseguia entender. Por exemplo, ocorreu um caso de machismo e a gente queria escrever uma nota auto-organizada. No caso, só as mulheres escrevendo e a nota já estaria legitimada para ser publicada e eles não, eles queriam que a nota de alguma forma passasse pelo crivo deles. Sendo que a gente falava “cara, mas a gente não precisa do crivo de vocês pra escrever nota sobre feminismo, sobre machismo”. Isso deu muita treta na época. A gente se desentendeu bastante e aí ocasionou um racha na gestão; a gestão ficou completamente rachada e quando isso acontece é muito difícil de tocar qualquer coisa no centro acadêmico (Vitória, 2016, grifos nossos).
De fato, o grupo eleito para a gestão do Centro Acadêmico era muito jovem, com uma grande quantidade de alunos do terceiro período e seus calouros diretos, do primeiro ano de curso. De nossa turma, portanto. Assim, a intenção de “renovar as coisas” veio sem um planejamento de ações para a gestão, o que fez com que a campanha fosse muito fortemente baseada nessas bandeiras que eram mais populares no curso: o combate às opressões do machismo, do racismo e da LGBTfobia. Na prática, as decisões ficavam engessadas pela dificuldade de conseguir consenso em um grupo tão grande e tão diverso, o que foi gerando tensões que ganharam materializações generificadas através da infiltração de eventos conflitivos nas relações sociais. Uma vez que a briga tinha ocorrido no espaço do Centro Acadêmico, em um horário de grande circulação, e envolvia alunos de pelo menos três cursos diferentes, a repercussão foi rápida. No mesmo dia a cobrança por uma “posição oficial” do CACIS começou a ser elaborada através das redes sociais, sempre acionando a gravidade de um ato de gênero “tipicamente machista” ter ocorrido dentro de um espaço das Ciências Sociais. Assim, associaram-se redes de aliados. De um lado, as “meninas” da gestão se associavam na defesa de que o evento tinha sido um ataque machista. A publicação de uma nota das mulheres do núcleo de História11 ajudou a pressionar o CACIS a fazer o mesmo
tipo de exposição. De outro, os “meninos” procuravam ora relativizar a situação – por serem amigos de Patrick e não por causa de questões legítimas como a vulnerabilidade social dele enquanto negro e LGBT, vale ressaltar –, ora discutir a viabilidade de uma 11 Segundo a entrevista que fizemos com Cleusa, o centro acadêmico de História se posicionou muito antes e lhe ofereceu mais apoio do que o próprio centro acadêmico que ela integrava.
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nota assinada pelo CACIS, argumentando que ela precisaria ser construída coletivamente. “Cara, mas a gente não precisa do crivo de vocês pra escrever nota sobre feminismo, sobre machismo”, era uma das inquietações de Vitória.
A publicação de notas sobre assuntos diversos era combinada entre os membros da gestão e após a elaboração de um texto pelos alunos do setorial de comunicação, que incluía Vitória e dois homens gays, um dos quais assina este artigo, ocorria uma leitura prévia, e caso ninguém tivesse algo a editar, seguia tranquilamente. O problema nesse evento que envolveu revistas pornográficas e cuspe foi que pela primeira vez uma das bandeiras políticas da própria gestão estava na pauta. Ter homens decidindo se e como o CACIS se posicionaria em uma questão que afetava as mulheres gerou conflito interno. Afinal, não se sabia “quem era quem, quem acreditava em quê”.
Assim é que se cortam as redes politizadas, pois a integração entre as pessoas acaba tendo uma temporalidade frágil. As redes, conforme Strathern (2014 :305), “não duram para sempre”, são sustentáveis e duráveis quando dependem de continuidades de identidades. Cortam-se, portanto, quando as associações já não fazem mais sentido. Quando a politização não mais se sustenta, e, então, sua temporalidade frágil emerge. Cortam-se as redes politizadas, agora não mais entre os estudantes que performaram gênero, raça e sexualidade e se enfrentaram, num evento crítico que envolveu performances dessas diferenças, revistas pornográficas e cuspe. Essas performances generificadas, racializadas e sexualizadas que compunham o evento, “desciam ao ordinário”, se infiltravam nas relações cotidianas, nos posicionamentos políticos a serem adotados, nas associações e cortes promovidos pelos atores. Os envolvidos são, agora, aqueles e aquelas que eram aparentemente “amigos de curso” e associados numa gestão de Centro Acadêmico.
A nota viria a ser publicada três dias depois do evento. Antes disso houve uma conversa entre Patrick e representantes da gestão que buscavam a conciliação mediante um reconhecimento de culpa da parte dele, como um pedido de desculpas e o compromisso de não repetir esse tipo de comportamento no espaço do Centro Acadêmico. A transformação do evento crítico em situação pública foi fundamental para o “racha” da gestão, produzindo um corte de redes politizadas, e para a politização da briga, já que a acusação de machismo era considerada altamente grave naquele contexto. Abaixo, a nota do Centro Acadêmico12:
No dia 24/09/2014, novamente ocorreu mais um caso de machismo dentro do nosso centro acadêmico protagonizado pelo mesmo aluno de
12 Capturada na página do CACIS no Facebook (www.facebook.com/csuerj) em 24 de dezembro de 2016. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Associar e cortar redes politizadas Artes, que já demonstrou estar ao lado opressor outras três vezes. Tendo em vista a recorrência desse comportamento, a gestão do CACIS (que não admite nenhuma forma de opressão) abriu o diálogo com o estudante. Durante a conversa entre ele e mais três representantes da gestão (sendo desses três, uma mulher) nenhuma trégua foi decidida, mesmo após estes representantes terem explicado e pedido a desconstrução desses comportamentos ou, pelo menos, a não reprodução desses atos em nosso C.A (...) O aluno em questão em nenhum momento se demonstrou disposto a mudar sua conduta e durante o diálogo retomou às atitudes machistas. Sua expressão corporal era completamente opressora, o alto tom da voz, o corpo se colocando acima das mulheres, o deboche constante sobre nossas críticas e argumentos, além de ataques verbais (...) Xs outrxs alunxs de CS (incluindo alguns membros da gestão) presentes no C.A acompanharam a discussão. Alguns interviram no sentido de conter a ação do aluno machista. Outrxs não se posicionaram e ainda tiveram aquelxs que se posicionaram a favor do opressor (...) após muitas provocações, uma das mulheres reagiu e cuspiu no rosto de seu opressor. Em seguida, ela passou a ser considera opressora, e aquele homem, que desde o início foi agressivo, passou a ser vítima (...) O machista transformado em vítima apenas se retirou do C.A quando os seguranças da UERJ foram chamados a fim de evitar maiores conflitos (...) Repudiamos todas as atitudes machistas, misóginas e toda a tentativa de culpabilizar as vítimas. Machistas não passarão!
Com a nota do CACIS os desdobramentos da situação do evento começaram a associar e cortar as redes politizadas entre as pessoas do andar. Na gestão, as mulheres e os homens homossexuais ficaram do lado de Cleusa, enxergando com desconfiança qualquer coisa que viesse dos homens considerados “machistas” em potencial, enquanto esses homens pensavam que tudo que vinha de Cleusa pendia exageradamente para o viés feminista. Esses posicionamentos se reproduziram com maior e menor intensidade entre os/as alunos/as do andar, de acordo com a proximidade ou afinidade política com cada uma das partes. Os/as estudantes de Ciências Sociais eram ainda partes associadas por uma gestão de Centro Acadêmico, todavia cortadas pelos seus ideais e posicionamentos politizados. Um evento que envolveu gritos, revistas pornográficas, falas ofensivas e cuspe exigia das pessoas posicionamentos pessoais. As relações de gênero, raça e sexualidade se infiltrava nas relações cotidianas, indo muito além do dia da briga em si. Afinal, Patrick poderia ser impedido de frequentar um espaço público? O cuspe que Cleusa lançou em seu rosto teria tirado a razão dela, tornando-a agressora e Patrick vítima? Não existe alguma violência performática de gênero e sexualidade em exibir imagens de homens pelados para mulheres, e dizer que elas precisam disso para se acalmar? E como fica a relação de poder entre as partes associativas, já que Patrick é um homem negro e homossexual, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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que estava sendo cobrado a se calar diante de uma mulher feminista, porém branca? Essas eram algumas das perguntas que movimentavam as discussões nas Assembleias estudantis após o ocorrido. O evento crítico “desce ao ordinário” nas tessituras justamente do gênero, da raça e da sexualidade.
A promoção de Assembleias regulares é mais uma das obrigações do CACIS, já que é nesses encontros que a comunidade estudantil fica a par das ações da gestão e pode informar suas demandas. É também um ambiente de disputa política, já que quem faz oposição à gestão tem a oportunidade de apontar falhas ou de instigar a revolta contra alguma pauta polêmica. O corte da rede politizada entre os membros da gestão e a divergência em relação a uma pauta considerada tão séria, além da ausência de um posicionamento que levasse em conta a questão racial e de identidade LGBT, que em nenhum momento constou na nota emitida pelo CACIS, fez parecer que Patrick somente poderia ser “machista” e “opressor”, nada além disso .
Todas essas questões fizeram com que a própria associação política dentro do andar fosse rearranjada, o que viria a colocar alguns dos membros da gestão em chapas opostas na eleição do ano seguinte. Como disse Vitória, não se “sabia quem era quem, quem acreditava em quê”. É assim que as redes politizadas se cortam, quando suas continuidades de identidades não mais se sustentam. Suas temporalidades são frágeis, não duram para sempre (Strathern, 2014).
Das narrativas que conduzem a outras narrativas Então, o núcleo de mulheres da História e o centro acadêmico de História não só se posicionaram como assim fizeram antes da gente até. Porque, é isso, como teve essa divisão com diferentes percepções do ocorrido dentro da gestão do CACIS, a gente teve muita dificuldade de fazer as coisas dar certo. Os homens tentaram a todo instante embarreirar a nota; na prática, burocraticamente não tem muito que se falar, assim. Mas com relação a publicizar o debate, denunciar, tinham pessoas dentro do centro acadêmico que não queriam que isso fosse feito e que ele continuasse frequentando o espaço [o centro acadêmico] como se nada tivesse acontecido, sem falar nada, né, “a Cleusa é louca” e...tinha parte que achava, e incluindo eu, que achava que a gente tinha que se posicionar politicamente mesmo, fazer uma nota de repúdio, propor um debate com os alunos, explicar o que aconteceu e publicizar isso como uma forma de liderança. Foi o que a gente tentou fazer e até certo ponto fomos bem, mas a gente teve muita dificuldade de fazer isso na prática porque esses grupos eram muito contra, né, e ofendiam a gente tentando embarreirar, ofendiam e não respeitavam e juntava com as pessoas que ficavam meio
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Associar e cortar redes politizadas lá e meio cá e não sabiam o que fazer e acabava que eles, entre aspas eram “maioria” e politicamente isso pesava muito (Cleusa, 2016, grifos nossos). Então, as pessoas ainda lembram né? Depois desse tempo todo, como tenho dito. Não dá pra esquecer. Muita gente me achava louca, “ah, Cleusa é descontrolada”. Mas assim, muitas pessoas me achavam até corajosa e vinham me cumprimentar. Eu acho que essas pessoas até hoje acham isso, e também acho que os que pensavam o contrário, que eu era louca, continuam pensando [risos] (Cleusa, 2016, grifos nossos).
Cleusa nos contava esses detalhes internos da gestão numa entrevista que nos cedeu. Ela, melhor do que nós, que se articulava com as mulheres do CACIS na tentativa de elaborar uma nota sobre o evento, tem muito mais propriedade para dizer algo acerca dos embates que participou. Em suas narrativas, percebe-se o quanto as performances de gênero, sobretudo, operam como a espinha dorsal da diferença para publicizar ou não uma nota. As “meninas” buscavam “explicar o que aconteceu e publicizar isso como uma forma de liderança”. Os “meninos”, ao contrário, as embarreiravam. Havia, de fato, uma “divisão com diferentes percepções do ocorrido dentro da gestão do CACIS”. Cleusa foi feliz em nos lembrar disso. Nos lembrava, entre outras coisas, que o evento crítico “desce ao ordinário” associando e cortando redes politizadas, de atores sociais que se movimentam de modo generificados. Aqui, desta forma, o gênero se substancializa na nota de repúdio. O que escapa da nota? Esse, agora, é o nosso interesse.
Quando procuramos Patrick para levantar os dados etnográficos para este artigo, o adicionamos em nossas mídias digitais e tentamos entradas por demais conhecidos de UERJ, que seriam mais próximos dele. Conhecíamos Patrick pessoalmente, muito em função da interiorização das pautas LBGT no espaço universitário; uma das pautas, por exemplo, que jamais constou nas “opressões” elencadas pela nota do CACIS. Todavia, Patrick tinha certeza que éramos “amigos” de Cleusa e que, quando o procuramos, nossa associação de redes politizadas já estava posta. De fato, conhecíamos muito mais a Cleusa do que ele. A gestão do CACIS, o nono andar, os “meninos” que embarreiravam a nota, que mais pareciam estar preocupados com as performances de gênero de esquerdomacho, termo que a eles facilmente poderia se aplicar, ou seja, todos esses atores envolvidos não quiseram saber quem era o Patrick. Nem mesmo nós, autores deste texto . Demoramos para procurá-lo. “Vocês terão a visão dela no fim”. Patrick estava certo, somente tínhamos essa visão. Foi o que nos respondeu. Em outro lugar do artigo, falávamos sobre como narrativas sobre violências
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conduzem a outras narrativas sobre violência que, por sua vez, são reciprocamente constituídas (Efrem Filho, 2017). Quando Patrick foi acionado pela primeira vez para falar conosco sobre o evento ele estava “batendo uma laje”. Não sabemos se ele participava de uma obra para uso próprio ou se era uma forma de trabalho que ele estava exercendo. Ele estava em umas das cidades que compõem a baixada fluminense, região do estado que concentra pessoas periféricas, negras e pobres. O que sabíamos, e podíamos captar, ou seja, o que estava a nosso alcance, é que desejavam fazer com que Patrick deixasse de circular pelo nono andar, que por ali ele não mais frequentasse. Se frases curtas não podem substituir uma entrevista, “bater uma laje” comunica muita coisa. Apagamentos produzidos. Patrick é negro. Patrick é homossexual. Imaginemos de quantos espaços ele não é excluído? Quantas vezes, imaginemos, sua corporalidade não borra as fronteiras simbólicas da ficção da homogeneidade racial, que mais produzem a abjeção? Patrick poderia ser tudo dentro de um determinado enquadramento político na nota do CACIS, isto é, esquerdomacho, “tipicamente machista”, “opressor”. Todavia, nada de si é produzido. Nada dele é levado em conta. O que, assumimos, não relativiza o fato de suas atitudes serem um caso “tipicamente machista”, “opressivo”, como aprendemos ao longo dos anos de nono andar.
De todo modo, Patrick passou a não mais frequentar o andar. Para pessoas negras, que são socialmente excluídas dos espaços públicos, isso carrega um peso político-moral nevrálgico. Faz parte das rasuras coloniais e escravocratas. É nessa “não circulação” pelo nono andar que a raça, e o racismo, operam como a espinha dorsal da diferença (Lima, 2018), dos marcadores sociais, que a apesar de interseccionados, se singularizam a depender de seus efeitos situacionais produzidos. As narrativas sobre associações e cortes de redes politizadas nos conduzem aos modos pelos quais as performances do evento crítico, e sua infiltração nas relações universitárias, reciprocamente constituem repertórios raciais, sexuais, de classe. Para Patrick, a raça aparecia enquanto uma “ficção materializada em corpos e processos de subjetivação entendidos(as) enquanto negros(as), a multiplicidade de modos de vida e os enfrentamentos vivenciados” (Lima, 2018 :141). Expliquemos: “Batendo uma laje”; não circulação pelo nono andar; cuspe. A diferença é produzida nesses intervalos do cotidiano (Feltran, 2017). Enquanto Patrick é um sujeito com gênero, socialmente produzido naquele espaço por seus “deboches”, seus ataques verbais, sua encenação sexual, como consta a nota do CACIS, ele jamais foi visto como um sujeito com raça, com sexualidade. Isto é, como negro, como homossexual. Insistimos: isso não relativiza nada, muito menos justifica suas atitudes. Elas podem ser facilmente enquadradas como atitudes “tipicamente machistas”.
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A repudiamos. À época, ficamos do lado de Cleusa e pressionamos o CACIS para que a nota fosse divulgada o quanto antes, e sem o crivo dos “meninos”, potenciais esquerdomachos. O que estamos querendo colocar como questão é que esses eventos críticos produzem relações também raciais, sexuais e de classe. Produzem, desta forma, o apagamento subjetivo de modos de vida. Dentro de um determinado enquadramento político estudantil Patrick poderia ser tudo, menos uma pessoa também vulnerável, também infiltrável, também inscrita por espinhas dorsais da diferença e desigualdades (Lima, 2018). É no corpo negro e homossexual que se cospe no rosto. No evento crítico em questão, somente Patrick poderia ser aquele sobre o qual se desferem substâncias corporais, e não nos “meninos” da gestão, em sua maioria no local, brancos, que desde o início da briga, permaneceram do lado do estudante de Artes. Com estes últimos as brigas são para publicização ou não da nota pelo CACIS. A infiltração desse ato performático, o cuspe, é uma performance de gênero, como quis Butler (2003), mas, também, de raça, de sexualidade, de classe. O que está em questão é a ideia da “colonialidade e de que elementos coloniais continuam moldando as relações saber-poder; retroalimentando uma cultura do racismo” (Lima, 2018 :141). Cultura esta que, segundo a autora citada, não passa mais “tão silenciosa nos enfrentamentos na agenda atual”. Em 2016, ano no qual começamos a reunir os dados para essa pesquisa, os/as estudantes autodeclarados negros/as de Ciências Socais da UERJ deram início à Frente Negra de Ciências Sociais. Foi a partir dessa Frente, e sobretudo em conversas com colegas que a integram, que inicialmente haviam somente se colocado ao lado de Cleusa, que passamos a olhar para o evento crítico com novos olhares. Como nos disse uma amiga: “não acho que ele estava certo, é um caso sério de machismo, mas ele foi completamente apagado de tudo que ele é, ninguém nunca se importou com os efeitos”. Que efeitos? Nos perguntávamos. “Ninguém falou de raça, de classe, de sexualidade, do Patrick, somente queriam tirá-lo do local, era urgente isso”, completava nossa colega.
Aqui, acreditamos que nossos objetivos ficam ainda mais evidentes. As atitudes de Patrick não podem ser toleradas. O silenciamento de mulheres, a encenação sexual, “mulherzinha que não sabe se defender”, que precisa de um “macho para se acalmar” e muitas outras performances de gênero são, como nossa colega dizia, um “caso muito sério de machismo”. Contudo, fixar a discussão na figura do esquerdomacho, procurar resolver as coisas de modo a impedi-lo de seus trânsitos pelo andar é, a um só tempo, perder uma oportunidade mestra de se discutir raça, racismo, LGBTfobia, machismo, feminismos, colonialismo e escravidão; tanto quanto, são soluções que produzem apagamentos subjetivos e multiplicidade de modos de vida. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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O evento crítico “desce ao ordinário” com muitas reciprocidades constitutivas. Produz associações e cortes de redes politizadas. Produz, também, o pesar do silêncio, da não circulação pelo andar, do abandono do curso, das figuras envolvidas que apenas são vistas de modo fixados. Cleusa somente poderia ser uma “louca”, que aumenta as coisas, “descontrolada”. Patrick um “opressor”, típico esquerdomacho. O evento crítico se infiltra em suas subjetividades produzindo ainda mais carnaturas de violências de gênero, raça, classe, sexualidade. Os/as envolvidos/as são “loucos”, “opressores”. Corpos que se podem despojar discursos do tipo “mulherzinha que não sabe se defender”, que precisam de um “macho para se acalmar”. Jamais relativizamos os atos de Patrick. São corpos, também, nos quais se cospe, corpos que são impedidos não institucional, mas figuracionalmente, de circular pelo andarCleusa abandonou o curso, não seguiu com sua carreira universitária na UERJ. Ela não é “qualquer” pessoa branca, enquadrada a priori como classe média ou alta, ao contrário do que pode parecer. Era ingressante por cotas sociais, por ter estudado todo o ensino médio em escolas públicas. O que, portanto, somente nos enriquece ainda mais as discussões aqui tecidas. Cleusa foi apagada de tudo o que fez como liderança feminista e passou a ser somente vista ora como corajosa, ora louca, descontrolada, pelo enfrentamento e cuspe desferidos contra Patrick. Este que, por sua vez, não pode ser mais nada que não opressor, esquerdomacho.
Não se pode falar sobre Cleusa sem cair em reproduções violentas de performances de gênero complexas, como a loucura por parte de feministas, que enfrentam situações demasiado opressivas, como os discursos de “mulherzinha que não sabe se defender”. Não se pode falar sobre Patrick sem cair em reproduções de que se trata de um opressor, sem que se apague suas relações raciais e sexuais. Esses enquadramentos políticos são pesados aos dois, de algum modo. A nota e todas as associações da gestão não dão conta das idiossincrasias subjetivas. Cleusa abandonou o curso de vez, passou a ser vista como louca. Patrick deixou de circular pelo nono andar, foi apagado de suas espinhas dorsais de raça e sexualidade.
Quando o evento crítico “desce ao ordinário”, ele produz associações, cortes de redes politizadas e, nesse momento da discussão, conduz a outras narrativas sobre violências. Não obstante, violências generificadas, racializadas, sexualizadas. A discussão é muito mais complexa do que as iniciais associações entre “meninos” e “meninas” da gestão. As pessoas que do evento são protagonistas carregam dele marcas incicatrizáveis: registros semânticos de mulher louca, de homem opressor, esquerdomacho; registros de abandono do curso universitário, de apagamentos de modos de vida, de suas relações raciais e sexuais. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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O artigo já se encerra por aqui. Não podemos oferecer muito mais do que essas explicações parciais. O que sugerimos, por agora, é que um trote, um evento crítico, uma nota, os efeitos idiossincráticos subjetivos, as categorias sociais que circulam, como esquerdomacho, “opressor”, os apagamentos que são produzidos nos modos de vida dos sujeitos envolvidos, entre outras questões que estão nas tessituras das associações e cortes de redes politizadas do ambiente universitário, “descem ao ordinário” com performances de gênero, raça e sexualidade.
Com mais interrogações do que respostas a priori é que encerramos este estudo inicial com sentimento não de incompletude, mas, sim, de estímulo para pensar como os debates que ocorrem no espaço universitário, suas dinâmicas conflitivas e os repertórios ali acionados são uma fecunda ocasião para a produção de uma reflexão antropológica; sempre parcial, posicionada (Haraway, 2009), passível de reinterpretações e enquadramentos éticos outros. Avante UERJ. #UERJResiste. #MuseuNacionalVive13.
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Caderno de imagens
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A Morada da Paz, uma entidade feminina e kilombola Luiza Dias Flores Doutora em Antropologia Social pelo PPGAS do Museu Nacional/UFRJ ldiasf@gmail.com
Foi em 2013 meu primeiro encontro com a Comunidade Kilombola1 Morada da Paz, também conhecida como Território de Mãe Preta. Afirma-se kilombola com k para contrapor-se ao quilombola com q. Dizem ser sobreviventes, no sentido de resistentes, de um passado escravagista e não remanescentes, que seriam, na concepção dos sujeitos que fazem a comunidade, aqueles que “restam”. Recuperam o que afirmam ser o sentido bantu do termo, onde o kilombo alude à fortaleza, à união, às relações de uma comum unidade. Diferenciam kilombo de quilombo, percebendo esse último como a “língua do colonizador”, a linguagem pela qual o Estado identifica e reconhece os sujeitos. Parecem nos dizer que há elementos constituintes do que são que fogem às inscrições estatais – ainda que se utilizem delas quando julgam necessárias. O kilombo, contudo, é externo ao Estado. *
Foi em um mutirão de bioconstrução organizado por um coletivo parceiro da comunidade, minha primeira aproximação com o território. Nesse mutirão, revestimos com barro os fardos de palha que formavam as paredes da Casa Bio, uma das construções que participam da área central da Comunidade. Formada majoritariamente por mulheres negras e suas filhas e filhos, as integrantes identificaram-se como uma comunidade espiritual, e, desde o início de nossa estadia, que durou quatro dias, fomos convidadas a 1
Entendo o kilombo como uma modulação daquilo de Abdias do Nascimento chamou de quilombismo: “ideia-força, energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV” (NASCIMENTO, 1980, p. 256). O quilombismo, para o autor, é um movimento de inúmeras práticas associativas, ilegais ou toleradas pelo poder colonial e estatal, que sustentavam e sustentam a necessidade de assegurar a “existência do ser” da população negra, resgatando a dignidade e liberdade através da organização de uma sociedade livre”.
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Luiza Dias Flores
muitos ritos de chegança. Não basta cruzar o colorido portão que demarca a entrada da comunidade. É preciso saber chegar.
Recepcionaram-nos ao redor de uma fogueira, cuja entrada conta com inúmeros adornos referenciando-nos que aquele espaço conta com a presença de diversos Orixás. Ensinaram-nos que ao redor daquele fogo, que tudo é capaz de transmutar, era preciso inspirar profundamente e, acompanhado por gestos com as mãos em direção às chamas, expirar com intensidade. O chamado “fazer o ru!”, dizem as crianças. Depois, conduziramnos por um caminho, por onde passamos pelo cantinho da sabedoria. Uma imensa figueira apresentava-se adornada. As mais velhas nos contaram que aquela árvore é uma das velhas centenárias que informaram qual seria o território em que a comunidade se estabeleceria. Logo, convidaram-nos a percorrer uma trilha, chamada trilha da Paz, em silêncio, para saudar todos os seres que habitam as matas. A cada passo que dávamos, um ensinamento nos era transmitido através de provérbios escritos em pequenas plaquinhas de tecido. Em meio à trilha, havia um espaço que nos foi apresentado como o cantinho do Seu Sete. Seu Sete, também conhecido como Exu-Rei, é o pai da comunidade e de todas aquelas e aqueles que ali vivem. É ele quem guia os caminhos, abre as possibilidades de percursos, e resguarda a Comunidade Morada da Paz de todo o mal. Seguimos a trilha e, mais adiante, encontramos o canto dos pretos-velhos, com algumas estatuetas e sementes de lágrimas de nossa senhora postas ao centro. A mãe da comunidade e daquelas e daqueles que ali residem é uma preta velha conhecida como Mãe Preta, a chamada Yaba ancestral. É sobretudo ela quem orienta os rumos da comunidade, trazendo orientações valiosas do que fazer, de como lidar com as adversidades que a vida apresenta, de como desenvolver um olhar aguçado e doce às magias da vida. Mãe Preta é conhecida pelos seus colos reconfortantes a todos que buscam a comunidade e por suas cachimbadas e desejos constantes, às suas filhas e filhos, de forças e proteção. Após cruzar um pequeno córrego, saímos da mata e fomos convidadas a circundar um olho de Hórus2 desenhado com tijolos na grama à beira de um calmo açude. A trilha já
estava por acabar. Percorremos o caminho dos mestres, que liga a área central da fogueira e das casas ao açude, e voltamos ao ponto inicial. No meio do caminho, cruzamos pela horta de todos nós e encontramos um santuário a céu aberto, com uma pequena estatueta de Buda. Seguimos, cruzamos a entrada do Templo, espaço onde acontece a maior parte dos rituais, e, enfim, chegamos novamente à fogueira. 2
Esse primeiro contato com a Morada da Paz produziu em mim uma espécie de
Trata-se de um símbolo muito popular que dizem ser oriundo do Egito Antigo e que significa proteção, restabelecimento da saúde, intuição e visão.
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A Morada da Paz, uma entidade feminina e kilombola
encantamento. Mulheres negras, moradoras de uma comunidade espiritual rural, onde todas as integrantes são filhas de um Exu e de uma Preta-velha. Mulheres negras que definiram suas práticas espirituais como afrobudíǵenas, a partir da relação estabelecida entre três matrizes: budismo tibetano mahayana, práticas afro-brasileiras – incluindo Umbanda, Candomblé e Batuque – e xamanismo indígena mbyá-guarani. Tal como narravam a si próprias, uma comunidade espiritual feminina kilombola, altamente preocupada com a consciência ecológica. Uma comunidade espiritual feminina kilombola sustentável, que desenvolve projetos sociais e culturais sobre educação ambiental e afrobrasileira e possibilita uma série de eventos, as chamadas datas sagradas, de encontros e partilhas de saberes entre povos negros e indígenas.
Situada na BR-386, entre os municípios de Triunfo e Montenegro no Rio Grande do Sul, a Comunidade participa da região metropolitana de Porto Alegre e encontra-se na divisa entre duas regiões: a microrregião São Jerônimo, conhecida como região carbonífera, cuja base da economia é o Polo Petroquímico; e a microrregião de Montenegro, cuja economia predominante está nas produções agrícolas, com principal destaque às monoculturas de acácia e eucalipto. De Porto Alegre, encontra-se a 60 km de distância, trajeto comumente feito pelas integrantes da comunidade e por seus visitantes. Afinal, muitas delas trabalham e estudam em Porto Alegre.
Foi fundada nesse local em 2002, por um grupo de amigos que desde 1998 constituía o grupo Cosmos, grupo de estudos sobre mediunidade e paranormalidade que se encontrava periodicamente em Porto Alegre. O deslocamento dessas pessoas do meio urbano para o meio rural foi resultado de uma orientação recebida de Mãe Preta. Hoje, moram no local 25 pessoas, com principal destaque 5 pessoas fundadoras, reconhecidas como Yas (as mães) e o Baba (o pai) da comunidade. Atualmente, desenvolvem seus atendimentos espirituais mensais, denominados Muzunguês. Também realizam trabalhos sociais com jovens e crianças, que levou à criação, em 2013, do Ponto de Cultura Omorodê – Ponto de Cultura da Infância.
Há também o Instituto CoMPaz, criado em 2015, outra ferramenta da Comunidade Morada da Paz que tem por intuito garantir a autonomia financeira daqueles que dela participam de modo a não compactuar, o máximo possível, com a lógica capitalista. Cria-se, no interior das práticas do Instituto o que chamam de Ekonomia do Afeto. Uma forma de economia que muito dialoga com a Economia Solidária, mas com uma atenção especial às trocas de afeto e a proposição de uma economia não individualista ou meritocrática. Desde 2016, encontra-se também no processo de criação e formalização a Escola ComKola Kilombola Epê L’ayiê, escola comunitária de educação infantil cujo Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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nome, em iorubá, significa Terra Viva e que vem desenvolvendo uma pedagogia singular, denominada Pedagogia do Encantamento. Essa pedagogia tem como princípio norteador a compreensão de que tudo o que habita o mundo é vivo e sagrado e que é fundamental para todo processo educativo manter a cola das relações, por isso Mãe Preta trouxe à comunidade o termo ComKola, e a percepção encantada do mundo. Também em 2016 recebeu a certificação de autorreconhecimento enquanto comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares.
A Morada é um território de intensa criação e experimentação. Justificam a existência de tantas ações e proposições afirmando que o território é um espaço que serve à defesa da vida, à cura, ao cuidado, ao serviço a todos os seres. “A Morada é uma mulher vaidosa”, disse uma das Yas, “tem a força do feminino”, ouvi de outra iaô3. A primeira dizia-
nos, ainda, que a Morada era uma mulher vaidosa porque gostava de ser enfeitada para receber seus visitantes e ter suas matas e animais zelados. Gostava de ser cuidada pelas suas filhas e filhos, na exata medida em que cuida delas, dando-as a sustentação espiritual e física, através das chamadas de entidades4, Muzunguês5, da alimentação agroecológica e da farmacinha viva. Mas, acima de tudo, permitindo-as que sonhem – aliem-se às forças criativas de um porvir – para a construção de outro mundo possível. “A Morada”, disse-me outra Ya, “é uma curandeira” e “está grávida de outro mundo”...
Objetivo, através desse breve ensaio fotográfico, fruto de minha pesquisa de doutorado (FLORES, 2018) e da relação que estabeleço com a comunidade, apresentar em imagens essa entidade não-humana feminina e kilombola, que é a Morada da Paz – Território de Mãe Preta, através de suas composições heterogêneas e seus desejos de outro mundo possível.
Referências FLORES, Luiza Dias. 2018. Ocupar: composições e resistências kilombolas. Tese de doutorado. PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. NASCIMENTO, Abdias do. 1980. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes.
Recebido em 22 de dezembro de 2018.
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Aceito em 10 de abril de 2019.
Iaô é como são denominadas aquelas que se iniciam ao culto do Orixás. Momento semanal em que os médiuns da corrente aprendem a lidar com as entidades e onde estas apresentam-se para desenvolver seus trabalhos espirituais. Atendimento espiritual mensal, aberto ao público externo.
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A Morada da Paz, uma entidade feminina e kilombola
Figura 1: Área central da comunidade, a fogueira em que todos são recepcionados. Essa foto em questão ocorreu durante uma das datas sagradas da Comunidade, que contou com a participação de povos indígenas e quilombolas do Pará, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Sul.
Figura 2: Quando procuravam um lugar para construir a comunidade, Mãe Preta orientou a elas de que duas velhas centenárias “mostrariam o caminho”. Assim que chegaram ao terreno para visita, foram recepcionadas por duas grandes e velhas figueiras que, enfim, indicaram o local. Uma delas tombou com uma forte tempestade. Já esta, marca e zela pelo cantinho da sabedoria.
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Figura 3: O caminho dos mestres, que liga a área central da comunidade ao açude.
Figura 4: Durante o caminho dos mestres, cruzamos com o canto do Buda, que fica próximo à Horta de todos nós. Atrás, podemos ver a produção de legumes, verduras e hortaliças.
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A Morada da Paz, uma entidade feminina e kilombola
Figura 5: As ervas são consideradas sagradas. Elas servem para curar males que se apresentam nos corpos físicos e espirituais, através de chás, defumação, benzeduras e banhos.
Figura 6: A defumação é um dos elementos centrais em todos os momentos vividos no território, assim como o fogo. Nessa foto da área central, podemos ver a Casa Bio ao fundo.
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Luiza Dias Flores
Figura 7: A xanduca, ou cachimbo, também é utilizada como instrumento de cura. Mãe Preta utiliza sua xanduca para esfumaçar aqueles que com ela vão consultar como uma forma de distribuir axé. A xanduca é um instrumento que, para a Morada, celebra a união dos povos negros e indígenas. Essa foto específica apresenta uma representante Kariri-Xocó e Fulniô, amiga da comunidade, com sua xanduca.
Figura 8: Os tambores são centrais na comunidade. São os meios através dos quais as entidades manifestam-se nos médiuns rodantes. Na comunidade são tocados, pelos alabês, os atabaques Rum, Rumpi e Lé.
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A Morada da Paz, uma entidade feminina e kilombola
Figura 9: A saia é outro elemento importante na comunidade. Todas e todos que participam dela possuem uma "saia de trabalho", utilizada de diversas formas para limpar e harmonizar os ambientes e os corpos. Essa foto específica apresenta uma das datas sagradas da comunidade, o Labirinto dos Sete Caminhos.
Figura 10: As crianças da comunidade participam de todos os ritos e atividades que ali acontecem. A educação é percebida como central para a criação de novas formas de relações, para a produção de outro mundo possível. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Rabida bô: retratos das práticas comerciais em Mindelo, Cabo Verde Vinícius Venancio1 Mestrando em Antropologia Social pela Universidade de Brasília vini.venancio2@gmail.com
Resumo O comércio em Cabo Verde é uma atividade que movimenta o país – não só o seu PIB, mas também as suas ruas, mercados, praças e lojas. Da força de trabalho nas zonas portuárias a sandálias havaianas brasileiras, todas as pessoas têm algo a vender. Todavia, o comércio no arquipélago apresenta uma característica que o singulariza: a sua forte feminização. Partindo desse ponto, o presente trabalho tem por objetivo apresentar as nuances que as diferentes formas de fazer comércio em Mindelo, São Vicente, tomam, assim como o papel das mulheres para o desenvolvimento dessa atividade tão crucial na vida urbana. Palavras-chave: comércio; mulheres; Cabo Verde. Abstract The trade in Cape Verde is an activity that moves the country - not only its GDP, but also its streets, markets, squares and shops. From the workforce in the port areas to brazilian havaianas, everyone has something to sell. However, trade in the archipelago has a characteristic that makes it special: its strong feminization. The present work aims to present the aspects of the different ways of trading in Mindelo take, as well as the role of women in the development of this activity so crucial in urban life. Keywords: trade; women; Cape Verde. 1
A realização da presente pesquisa não poderia ter ocorrido sem o apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal, no âmbito do projeto “Formas familiares em um mundo de mobilidades: gênero, infância, juventude e identidades em contextos migratórios”. No momento de publicação deste artigo o autor era bolsita do CNPq. Ainda, agradeço a leitura atenta e sugestões da professora Iracema Dulley e das colegas Barbara Marques e Júlia de Capdeville.
Rabida bô: retratos das práticas comerciais em Mindelo, Cabo Verde
Em Cabo Verde, país-arquipélago localizado na costa noroeste do continente africano, diz-se que todo mundo comercia, da vendedora de peixe das ruas às pessoas de classe alta que vão frequentemente para a Europa e trazem as malas recheadas de produtos. Para além da transversalidade de classe, o comércio no arquipélago é dotado de outra especificidade: a sua alta feminização, que perpassa as diferentes atividades comerciais desenvolvidas no país.
Em Mindelo, principal cidade da ilha de São Vicente e local de realização da presente pesquisa etnográfica, a dinâmica da vida comercial é dotada de várias nuances. Além das mulheres vendendo alimentos como bananas, tomate, mamão, entre outros, é rotineiro encontrar senhoras mais idosas com cestos de palha a vender dropes e cigarros pelas ruas, assim como mandjacos, como são chamados os africanos do continente, que costumam vender óculos, capinhas para celulares e outros artigos industrializados (Rocha 2009). Essas práticas comerciais são frequentes no arquipélago porque o comércio é visto como uma das escapatórias encontradas pela população local, especialmente pelas mulheres, para reduzir as altas taxas de desemprego e pobreza do país, garantindo, assim, o sustento de suas famílias, como mostram Grassi (2003), Lobo (2012) e Silva (2012).
A forte presença de mulheres no comércio cabo-verdiano é perceptível, para além do olhar para as lojas, quiosques e ambulantes, também nos dados estatísticos: em uma lista que conta com 473 profissões, apresentada no documento “Cabo Verde em Números”, cinco correspondiam aos trabalhos realizados dentro do âmbito das práticas comerciais - vendedor em quiosque e em mercado; vendedor ambulante de produtos alimentares; comerciante de loja (estabelecimentos); encarregado de lojas (estabelecimentos); e vendedor em loja (estabelecimentos). Dentro dessas cinco profissões, o número de pessoas envolvidas com comércio em todo o país era de 6822, sendo o número de mulheres 4 vezes maior que o de homens. É válido ressaltar que, dado à informalidade que caracteriza parte das práticas comerciais no arquipélago, este número pode ser ainda maior. Mesmo assim, a disparidade na proporção entre mulheres e homens nas práticas comerciais torna-se relevante de ser analisada uma vez que, dentre os 491875 habitantes do país, o número de mulheres é superior ao de homens por menos que cinco mil pessoas2.
A centralidade da mulher no mundo do comércio acaba sendo reflexo do que acontece no âmbito doméstico, espaço onde as mulheres cabo-verdianas acabam por ser as figuras centrais do agregado familiar (cf. Lobo 2014; Rodrigues 2007). Esse espelhamento estrutural entre os dois mundos acaba por torná-los a extensão do outro, uma vez que
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Informações extraídas do documento Cabo Verde em números (INE, s.d.), que se baseou nos dados coletados no Censo de 2010, o último realizado no país. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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a centralidade feminina na vida doméstica significa, no contexto cabo verdiano, que à mulher cabe “a responsabilidade para o sustento e reprodução do agregado” familiar (Grazi & Évora 2007: 18).
Todavia, não é apenas pela via da centralidade feminina que os mundos do comércio e da casa estão interligados. O apoio da família é necessário para a sobrevivência das práticas comerciais: seja na venda de peixes frescos, como a kavala, búzios ou mariscos, cuja pesca é feita pelos irmãos, companheiros, filhos e demais agregados familiares das vendedoras – conhecidas como peixeiras –, seja no âmbito dos gêneros alimentícios, cujas roças são cultivadas não apenas em família, mas também em comunidade, sendo os moradores da ilha vizinha, Santo Antão, os principais fornecedores desses produtos para os moradores de São Vicente, uma vez que a aridez e escassez de fontes de água doce em São Vicente dificultam o desenvolvimento agrícola da ilha. Ainda, com a ausência de uma produção em massa de bens industrializados, os fluxos das mercadorias acabam por se emaranhar com as redes tecidas pela emigração3.
Por isso, a grande maioria dos artigos vendidos nas boutiques e quiosques são trazidos por comerciantes transnacionais que vão buscá-los em países como Portugal, EUA, Itália e Brasil, ou enviados por parentes, emigrados, delas por meio de bidões4. Essas mulheres possibilitam a circulação de itens como roupas, chinelos, tênis, maquiagem, eletrônicos, entre outros. Fechando esse circuito transnacional, que é uma das marcas do comércio cabo-
verdiano, há também os produtos chineses, que são importados por integrantes da diáspora comercial sínica e vêm ganhando cada vez mais espaço no mercado mindelense, dado o baixo valor destes em comparação com os demais produtos vendidos pelas caboverdianas.
Dado o desenvolvimento de tantas formas distintas de comércio, não há “tempo ruim” para realizar vendas. Se as butiques e mercados fecham as portas aos domingos, esse é um dia especial para tirar os produtos do bidão e vende-los na porta de casa. Situação semelhante ocorre nos dias de festa, quando as senhoras a vender dropes e cigarros tendem a se proliferar pelas ruas da Morada, bairro central do Mindelo, fenômeno que pode ser visto especialmente no Carnaval, festividade que atua como carro-chefe dentre
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A diáspora cabo-verdiana permeia vários âmbitos da vida cotidiana e marca intensamente a vida do arquipélago, seja por meio do envio de remessas ou de produtos, ou pelo desejo eminente de emigrar. Sobre a questão, cf. Trajano Filho (2009) e Lobo e Venancio (2017). Os bidões, tambores que são cheios com produtos, tanto presentes quanto artigos para revenda, são enviados por parentes que estão em situação de emigração para seus entes queridos que permaneceram em Cabo Verde (Defrayne 2016).
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os eventos culturais da ilha.
Dentre as pesquisas já realizadas sobre comércio nas ilhas de Cabo Verde, esse conjunto de mulheres, protagonistas desse trabalho, que, como apresentado, podem ser
1. vendedoras eventuais que, a depender do contexto e da necessidade, expõe produtos na calçada de suas casas para dali obterem um dinheiro extra; 2. comerciantes que vendem em feiras, mercados, ou mesmo em um ponto fixo na rua, mas que não viajam para adquirir os produtos da venda; 3. mulheres que realizam viagens regulares para outros países e que vendem no mercado local, em estabelecimentos próprios ou para terceiros (Lobo 2012: 321),
pode ser alcunhado o termo rabidantes. Essa palavra faz referência a
mulheres e homens que fazem negócios no espaço de mercado a que a ciência econômica chama setor informal. Informações recolhidas no terreno esclareceram que o nome significa, em crioulo de Cabo Verde, “dar a volta”, “desenrascar-se”, e é utilizado para indicar alguém que é muito hábil a convencer os outros (rabida bô, o que “engana” o outro) (Grassi 2003: 23-4).
Devido a essa complexa e variada gama de atividades comerciais, as atividades que elas desenvolvem variam consideravelmente em graus de formalidade e informalidade,5 isso devido à fluidez com que as mercadorias industrializadas transitam entre as categorias de lícito e ilícito ao longo da cadeia comercial (Ribeiro 2010) através de sombras de legalidade, como apontam Nordstrom (2007). De forma semelhante, os gêneros alimentícios podem ser alvo de criminalização, como aponta Pólvora (2013). Assim, as comerciantes cabo-verdianas estão inseridas, no caso das que realizam viagens transnacionais, em um contexto de globalização popular,6 no qual as camadas populares tiram proveito dos fluxos de riqueza e “democratizam” o acesso aos bens. Na fluidez entre a formalidade e a informalidade – e para burlar a fiscalização e as altas taxações – as comerciantes que realizam fluxos transnacionais, costumam “mascarar” os bidões que elas recebem/enviam, colocando os produtos mais caros, e que as fariam pagar taxas alfandegárias mais altas, no fundo do bidão para que os fiscais não os vejam, 5 6
As noções de formal, informal lícito e ilícito que aplico no que tange o comércio em Cabo Verde seguem as percepções apresentadas por Gustavo Lins Ribeiro (2010). Aqui, faço uso da compreensão de Pinheiro-Machado, na qual a globalização é entendida enquanto um sistema de “fluxo intenso e veloz no qual circulam mercadorias, informações, imagens e pessoas em níveis transnacionais” (2005: 127). Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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dada a profundidade do barril e a quantidade deles que chegam mensamente no Porto Grande do Mindelo.
Todavia, apesar de praticamente todas as comerciantes estarem transitando por entre essas sombras de legalidade, esse fator não define uma coesão de classe entre elas. Um exemplo disso é a empregabilidade do termo rabidante, que é visto de forma negativa por parte das mulheres que realizam comércio transnacional. Estas preferem ser chamadas de importadoras ou mesmo comerciantes, como forma de gerar uma distinção entre elas e as mulheres que vendem de porta em porta ou nas ruas da cidade, também conhecidas pelo termo vendedeiras (Fortes 2015).
Esse fato mostra a construção de hierarquias entre as vendedoras, que são marcadas por questões como classe, dado a diferenciação entre donas de butiques e vendedoras ambulantes, e região, visto que parte das vendedeiras são provenientes de outras ilhas, como Santo Antão e Santiago. A questão da classe se reflete nos produtos vendidos: quanto mais pobres as vendedoras, maiores as chances de elas exporem seus produtos – geralmente alimentos e/ou roupas de segunda-mão – nas ruas, enquanto as que possuem melhores condições financeiras podem alugar espaços para realização do comércio. A falta de um espaço próprio para vender os produtos acaba pro precarizar a situação das vendedeiras. Embora não tenha presenciado tentativas de expulsão dessas mulheres dos espaços centrais do Mindelo, outras pesquisadoras do tema apontam que a tentativa de higienização e gentrificação dos grandes centros urbanos africanos aparecem enquanto uma prática cada vez mais rotineira (Fortes 2015: 8), já tendo ocorrido, como nos mostra Pólvora (2013), na cidade da Praia, capital de Cabo Verde.
Dado o panorama inicial sobre as práticas comerciais no arquipélago, é importante ressaltar que o presente ensaio fotográfico que segue é parte de uma pesquisa etnográfica realizada em Mindelo, ilha de São Vicente, em Cabo Verde, sobre o papel do comércio transnacional nas vidas das mulheres que tecem as redes que dão vida a ele, cujo interesse principal era o de refletir sobre o contexto social em que a mulher é figura central tanto no âmbito doméstico – enquanto mulher-mãe – quanto no domínio do público – como comerciante com papel central nas ruas, mercados e lojas, o que rompe, de certa forma, com a dicotomia de que a mulher estaria (exclusivamente) para casa da forma que o homem estaria para a rua. Tendo em vista os pontos apresentados, o presente caderno de imagens visa apresentar as dinâmicas de alocação espacial que constituem essas práticas comerciais marcadas pela feminização, além de tentar complementar as discussões sobre a relação entre gênero, relações familiares e comércio informal, que vem sendo realizada por uma
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gama de pesquisadoras que possuem como locus de pesquisa a região da costa noroeste da África subsaariana.7 Além de mostrar a feminização desse ramo, o presente trabalho pretende mostrar os principais produtos por elas vendidos.
As fotos foram realizadas com uma câmera digital Nikon D40, entre janeiro e março de 2017, em diferentes pontos da cidade de Mindelo, na ilha de São Vicente, Cabo Verde.
Referências BROOKS JR., G. E. 1976. “The Signares of Saint-Louis and Gorée: Women Entrepreneurs in Eighteenth-Century Senegal” In: Hafkin and Bay (ed.) Women in Africa: Studies in Social and Economic Change. Stanford: Stanford University Press.
DEFRAYNE, Elisabeth. 2016. Au rythme des tambor. Ethnographie des mobilités des “gens de Santo Antão” (Cap-Vert, Belgique, Luxembourg). Thèse présentée en vue de l’obtention du grade de Docteure en Sciences Politiques et Sociales: Anthropologie. DOMINGUES, Maria Manuela Abreu Borges. 2000. Estratégias femininas entre as bideiras de Bissau. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Cultural e Social. Universidade Nova de Lisboa.
FORTES, Celeste. 2015. “As vendedeiras de Cabo Verde: circulação de produtos, informalidade e mulheres no espaço público de Cabo Verde”. In José Rogério Lopes (ed.). Visagens de Cabo Verde: Ensaios de Antropologia Visual e outros ensaios. Brasil. Editora Cirkula, pp.101-121. INE. s.d. “RGPH 2010 – Cabo Verde em Números”. Disponível em: http://ine.cv/quadros/ rgph-2010-cabo-verde-em-numeros. Acesso em 25.05.2018.
GRASSI, Marzia. 2003. Rabidantes: comércio espontâneo transnacional em Cabo Verde. Instituto de Ciências Sociais e Spleen Edições.
LOBO, Andréa de Souza. 2012. “Negociando pelo mundo: as rabidantes cabo-verdianas e suas rotas comerciais”. In: Wilson Trajano Filho (ed.). Travessias Antropológicas: estudos em contextos africanos. 1ed.Brasília: ABA Publicações, v. 1, pp. 317-338.
LOBO, Andréa de Souza. 2014. Tão Longe Tão Perto. Famílias e “movimentos” na ilha da Boa Vista de Cabo Verde. Revised ed. E-Book. Brasília: ABA Publicações.
LOBO, Andréa de Souza; VENANCIO, Vinícius. 2017. “Com parente se negocia? Redes migratórias e o comércio transnacional em Cabo Verde”. Cadernos de Campo: Revista de Ciências Sociais, v. 23, p. 25-44. NORDSTROM, Carolyn. 2007. Global outlaws. Crime, Money and Power in the contemporary world. London: University of California Press.
PÓLVORA, Jacqueline Britto. 2013. “Cidades informais: o caso da cidade de Praia”. Revista Ciências Sociais Unisinos, v. 49, pp. 97-103. 7
São alguns exemplos de trabalhos sobre a temática, para além dos supracitados, Brooks Jr, 1976; Domingues, 2000. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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ROCHA, Eufémia Vicente. Mandjacus na Praia: etnografando trajectórias de imigrantes da costa ocidental de África. In LUCAS, Maria Elizabeth, SILVA, Sérgio Baptista da (orgs). 2009. Ensaios etnográficos da Ilha de Santiago de Cabo Verde. Praia, Edições Uni-CV: Porto Alegre: Editora da UFRGS. RODRIGUES, I. F. 2007. “As mães e os seus filhos dentro da plasticidade parental: reconsiderando o patriarcado na teoria e na prática”. In: GRASSI, M. & ÉVORA, I. (Org.). Género e Migrações Cabo-verdianas. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, pp. 123-146. RIBEIRO, Gustavo Lins. 2010. “A Globalização Popular e o Sistema Mundial Nãohegemônico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, pp. 21-38.
SILVA, Tatiana. 2012. A arte de comerciar: gênero, identidades e emancipação feminina no comércio transatlântico das rabidantes em cabo-verdianas. Tese de Doutorado. Centro de Estudos Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia. TRAJANO FILHO, Wilson. 2009. “The conservative aspects of a centripetal diaspora: the case of the Cape Verdean tabancas”. Africa, v. 79, pp. 520-542.
Recebido em 01 de janeiro de 2019. Aceito em 13 de abril de 2019.
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Imagem 1.1
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Imagens 1.1 e 1.2: Na imagem 1.1, temos uma visão do andar superior do Mercado Municipal de Mindelo, prédio do período colonial localizando na Morada. Nele são comercializados produtos orgânicos como vegetais e queijos, além do grogue (cachaça) cabo-verdiano. Na imagem 1.2 vemos o corredor principal do mercado, onde duas vendedoras se cumprimentam. Nos espaços dos mercados é comum a construção, entre as comerciantes, de redes de apoio, seja para cuidar das bancas uma das outras em momentos de breves ausências ou para fornecimento de troco. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Imagem 2: O mercado dos Peixes, ponto ao extremo sul da Avenida Marginal, avenida beira-mar que conecta a parte sul da Morada ao bairro Chã de Alecrim, ocupa uma função bem parecida a do Mercado Municipal, embora a comercialização de peixes esteja restrita a este. Nele, um número considerável de mulheres aguarda os produtos trazidos pelos pescadores, geralmente cônjuges, irmãos ou filhos delas, para que elas possam limpar e revender os pescados. No mercado, é grande a demanda por atum e pela cavala, peixes com grande saída no arquipélago.
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Imagem 3.1
Imagem 3.2
Imagens 3.1 e 3.2: Nem todo mundo consegue custear as taxas de aluguel de estandes no Mercado Municipal e no Mercado de Peixes. Por esse motivo, é comum que encontremos mulheres, especialmente provenientes de outras ilhas, como Santiago e Santo Antão, ou do interior da própria São Vicente, expondo suas hortaliças e pescados na rua, dividindo, sem o menor problema, o espaço com outros “habitantes” da cidade. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Imagem 4: Como apontado, a forte presença de mulheres não se restringe à venda de gêneros alimentícios. Nos bairros mais afastados do centro da cidade é comum encontrar roupas e calçados expostos na porta das casas à venda, como um grande bazar a céu aberto. Geralmente, as roupas vendidas nessas condições costumam ser de segunda-mão. Grande parte desses produtos chegam por meio de bidões, os barris em que as roupas estão penduradas, que são enviados por emigrantes cabo-verdianos para parentes e amigos que permaneceram no arquipélago.
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Imagem 5: Devido à escassez de indústrias, não apenas vestimentas chegam por meio dos bidões, assim como não é apenas esse tipo de produto que costuma ser exposto nas calçadas pela cidade. Na Praça Estrela, o casal que vende os mais diversos artigos, expressa uma forma comum da divisão sexual do trabalho em famílias nas quais o homem contribui para a vida comercial: o esposo, que reside em Boston, nos Estados Unidos, envia os mais diversos produtos através de bidões enquanto a mulher, que permaneceu na ilha e cuida dos filhos do casal, é comerciante em tempo integral. A bandeira estadunidense hasteada serve para indicar a procedência dos produtos, que adquirem valores simbólicos diferentes a depender do local de onde eles vêm.
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Imagem 6.1
Imagem 6.2 Imagens 6.1 e 6.2: “Os clientes adoram o perfume da Victoria e tudo que é da América”, afirmou a Simone, dona de uma das boutiques visitadas, cuja loja era especializada em produtos estadunidenses. Ela é uma das diversas comerciantes que residem em Mindelo que viajam rotineiramente para outro países com a finalidade de adquirir produtos, que podem ir de roupas a utensílios domésticos. Essa postura de supervalorizar a procedência dos produtos é comum no comércio mindelense, uma vez que quase todos eles vêm de fora, além de que eles competem diretamente com os produtos chineses, tidos como de qualidade inferior. Entre os destinos mais comuns estão Portugal, Estados Unidos e o Brasil, que faz sucesso com as sandálias havaianas, como mostram as imagens acima. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Resenhas
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BIONDI, Karina. 2018. Proibido Roubar na Quebrada: Território, Hierarquia e Lei no PCC. São Paulo: Terceiro Nome. Michel Cícero Magalhães de Melo
Mestrando em Antropologia na Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF) michelciceromelo@hotmail.com
O livro de Karina Biondi, atualmente professora na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, foi premiado como melhor tese de doutorado na seção brasileira do Latin American Studies Association (LASA) em 2015. É fruto de uma pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS/UFSCar) acerca das dinâmicas de funcionamento do PCC nas ruas, além de procurar examinar suas continuidades e descontinuidades em relação ao espaço prisional. Com prefácio de Ana Claudia Marques e apresentação de Jorge Mattar Villela, o livro se divide em três partes, a primeira tratando de Movimento (e território), a segunda das Ideias (e hierarquia) e a terceira das Situações (e lei). O trabalho de campo para a realização deste livro apresentou-se como um desafio. Para dar conta de um movimento que não se restringe aos irmãos1 (: 33), que são os atores
que compõem o PCC, é necessário pensar como essa força, o PCC-transcendência, é dotado de certa autonomia e capacidade de gestão de um coletivo independente de vínculos territoriais e interpessoais instáveis. Para tal, buscou seguir o curso do movimento e daqueles que o compõem, estando interessada nas práticas de conhecimento que estes atores produzem e refletem, além do resultado dessa singular produção e concepção de mundo. Outra forma de lidar com a problemática do movimento foi a adoção de duas estratégias (: 49): a primeira, a nomeação dos capítulos com noções vividas pela 1
Conforme advertido por Karina Biondi (: 29) as palavras gravadas em itálico se referem a termos e expressões que não só são utilizados por aqueles que compõem o Movimento, como também fazem parte dessa composição.
Resenha: Proibido roubar na Quebrada
malandragem; a segunda, o bloqueio de alguns termos que ficavam orbitando para que se tornasse mais nítido o que se procurava descrever e, na medida em que eram descritos, se conectassem uns aos outros, formando uma rede. Sendo assim, o livro não apresenta o Comando em contraste com algo exterior a ele e não aborda vários aspectos do PCC, e sim, os elementos que se articulam em seu interior. Portanto, ao invés de apresentar um livro sobre violência, crime (no sentido jurídico da palavra), segurança pública ou apresentar uma radiografia ou essência do PCC, Karina Biondi está interessada nas diferenças que operam em seu interior, buscando percorrer os diversos ritmos que o compõem a partir do ponto de vista de um dos comandos que ela observa (: 54-55).
No percurso dos ritmos, a primeira parte do livro se detém na dinâmica dos ladrões entre a quebrada e a cadeia (: 70), numa atuação não isolada entre os dois polos, mas em sintonia (: 93). Ao invés de delimitar localidades estáticas, demonstra como o PCC é dinâmico e foge de versões totalizantes de sua composição, não existindo apenas um movimento, mas uma composição de diversos movimentos que se entrelaçam. A questão está na diferença que se apresenta no interior do Comando, e como as ideias, os movimentos e as situações moldam a sua composição e as suas relações, não existindo predefinições dadas, mas uma eterna busca pelo debate do que é o certo (: 329) e do que é estar correndo pelo certo, sendo o certo apenas um só. As ideias, que são abordadas na parte 2 do livro, têm um debate central na forma como o PCC se compõe e se produz, ou seja, no fazer-PCC. Nessa rede de movimentos que comportam múltiplos atores e tecnologias em fluxos contínuos, as brechas, em um primeiro momento, geram um incômodo por parecerem lacunas e incompletudes do trabalho etnográfico que impossibilitariam a antropóloga uma visão da totalidade (: 133). No entanto, Biondi descreve a enorme preocupação dos ladrões em não deixar brechas (: 141), e como essas brechas podem ser deixadas no gelo, se fortalecerem, repercutirem ou morrerem em decorrência das situações. A importância da oralidade se apresenta como um fator fundamental dessa dinâmica, sendo o cuidado com as palavras um ponto chave das ideias, pois os ladrões ganham força fazendo suas ideias repercutirem e serem abraçadas por outros ladrões (: 203). A força justamente consiste na capacidade do ladrão de convencer os outros a seguirem suas ideias e abraçá-las sem que isso pareça uma imposição. Estes ladrões geralmente ocupam posições de responsa no Comando justamente por serem tidos como indivíduos com visão (: 231) e conhecimento (: 226). Um ladrão que possua tais habilidades consegue mais facilmente fazer suas ideias repercutirem ou serem abraçadas pela malandragem. Compreender a complexidade do PCC é entender que não há uma rede de mando,
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os lemas estabelecidos no papel e os salve ou avais, não operam da mesma forma em todos os lugares como uma espécie de hierarquia de mando e obediência, mas conectamse às especificidades locais e são levados ao debate para saber a melhor forma de se adaptarem naquele contexto específico (: 285). O movimento é aberto a infinitas variações que dependem dessa rede de ideias, conhecimentos, visões e sintonias que estabelecem um fluxo. Dentro dessa complexidade, a noção de brecha dos ladrões, que nada tem a ver com vazio ou incompletude, evidencia uma rede de cálculos complexos acerca de consequências e das formas que eles trabalham na brecha. Uma brecha não tem existência natural, ela surge no momento em que é pega ou encontrada, ou seja, as brechas são produzidas no interior das situações em movimento, dependendo da habilidade e destreza dos que as associaram para que possam ser abraçadas e levadas adiante (: 160-161).
Karina Biondi demonstra ser totalmente inadequado associar os debates aos tribunais (: 325), pois a dinâmica das ideias que neles fluem entre os ladrões é totalmente diversa e imprevisível (: 319-320). Quando, por exemplo, atores de quebradas diferentes são convocados para comparecer ao debate, os mecanismos acionados e a rede que se estabelece para ver quem está correndo pelo certo são amplos, não se restringindo a aspectos territoriais. A configuração não é previamente estabelecida como nos tribunais (: 322) e, muito menos, há alguma espécie de código. Além disso, não há um lugar fixo ou uma duração estabelecida para a defesa e a para a acusação, como é comum nos tribunais (: 320-321). Há possibilidades de debates marcados nunca chegarem a acontecer, ou aqueles que se encerram antes do fim para que algum ladrão possa resolver uma fita mais urgente. Há outros ainda que depois de um tempo suspensos voltam a acontecer. As ideias no debate podem morrer, serem deixadas no gelo ou voltarem a repercutir a depender da situação. Com isso, não há um vencedor ou ganhador do debate, mas a busca por um consenso e o uso de diversas estratégias pelos malandros a fim de repercutirem e fazerem prevalecer suas ideias, como entrar na mente do outro (: 296). Portanto, em sua forma, objeto e nos procedimentos além da valorização do indivíduo pelo coletivo, os debates se mostram totalmente diferente dos tribunais.
Nessa dinâmica, o certo surge como categoria fundamental para compreender toda a cadeia de movimentos e situações apresentadas pelos ladrões. Correr pelo certo é “estar na ética” ou “na disciplina” do Comando que junto com as noções de justiça e lei são as bases que sustentam e giram em torno do certo. Entrelaçados, esses conceitos são como um código de conduta da malandragem que conduz suas ações sempre pautadas no certo. Nesse contexto, a malandragem afirma que o certo é um só, sendo este não definido ou Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Resenha: Proibido roubar na Quebrada
presidido por leis, códigos ou regulamentos exteriores, mas por situações que o definem (: 358) e que estão em constante movimento e debate.
Descrevendo como as ideias e os ritmos compõem o movimento, sem abordar as aparentes incompletudes como conjuntos de contradições, fragmentos, faltas de controle ou de informação, o livro permitiu um novo olhar acerca da singularidade do Comando e os seus movimentos, além das suas múltiplas formas de ação e existência. Deixandose trabalhar nas brechas e na variação de ritmos, Karina Biondi buscou entender a dinâmica dos fluxos que se apresentavam em seu trabalho etnográfico, não colocando seus interlocutores em contraposição às leis, códigos ou organizações estatais e levando-os a sério, como produtores e operacionalizadores do seu próprio conhecimento, de seus conceitos e de seus modos de vida. Recebida em 22 de dezembro de 2018. Aceita em 15 de março de 2019.
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MARQUES, Adalton. 2018. Humanizar e expandir: Uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo: IBCCRIM. Evandro Cruz Silva1 Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas cruzsilvaevandro@gmail.com
A obra Humanizar e Expandir: uma genealogia da segurança pública de São Paulo, defendida em tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (PPGAS-UFSCar) e agora publicada em livro pela coleção “Monografias” do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM, 2018) é uma contribuição original aos estudos sobre violência e democracia no Brasil. Sua originalidade pode ser resumida na primeira frase escrita por Adalton Marques na introdução do texto e que resume o objetivo de sua pesquisa: “este trabalho examina o aparecimento de uma razão democrática e humanista no seio da segurança pública pensada e elaborada em São Paulo nos estertores do Regime Militar” (Marques 2018: 13, grifos meus).
Ao colocar sob a luz de sua análise as razões democráticas e humanistas da composição da segurança pública do estado paulista, Marques opera uma inversão argumentativa no que se refere ao campo de estudos que pretende acessar (e confrontar) com sua obra. Se num certo cânone das discussões sobre violência e democracia os problemas das desigualdades, das opressões e violências privadas são empecilhos para a construção de uma democracia baseada em direitos humanos, sendo constantemente identificados como legados da ditadura militar ou evidências de um autoritarismo socialmente implantado, no livro de Adalton são as próprias tentativas de humanização e democratização da segurança que dão emergência ao atual estado das coisas no sistema penal paulista que hoje comporta a maior massa carcerária do país e uma das polícias
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Pesquisador Junior do Centro de Estudos da Metrópole, processo Fapesp número 2013/07616-7.
Resenha: Humanizar e expandir
estaduais com os maiores índices de letalidade.
Os materiais utilizados na pesquisa empreendida por Marques são em sua totalidade oriundas de fontes documentais. A organização dos materiais utilizados na análise se dá pela possibilidade de produzir uma narrativa coerente que contraponha os saberes sujeitados e os saberes hegemônicos no que diz respeito a construção da segurança pública em São Paulo. Ainda sobre as questões metodológicas do trabalho, Marques adota uma forma específica de descrição no que diz respeito às vozes presentes nos momentos de descrição e análise.
Etnógrafo com farta experiência em temas sobre crime e periferias urbanas, e que em trabalhos anteriores utiliza da primeira pessoa do singular e de sua experiência particular como parte dos argumentos de suas pesquisas (Marques 2014), nesta obra o autor usa majoritariamente a terceira pessoa em suas descrições, tomando apenas o uso da voz em primeira pessoa em comentários rápidos. Soma-se a isso o fato de que o autor se utiliza explicitamente de sua biografia em apenas um ponto, sobre as diferentes abordagens entre polícia civil e militar (: 96). Ao tentar acionar vozes tão distintas: documentos oficiais, peças acadêmicas e memórias biográficas, fica evidente como as duas primeiras se sobressaem à última e não fica claro o que a biografia do autor compõe no argumento como um todo, parecendo destoante ao argumento principal do texto, que em sua maioria é costurado com evidente coerência e precisão. Voltando à questão central do trabalho, é ao tratar da aliança entre a operação das “políticas de controle dos pobres, preponderantemente pretos” (Marques 2018: 73) e a razão humanitária e democrática que surge como opção de governo ao fim da ditadura militar que o autor lança mão do conceito de “tríptico segurança pública – democracia – direitos humanos” (: 13). A imagem do tríptico, que não é contextualizada na obra, remete a pinturas feitas sobre três placas articuladas, comumente associadas às obras de referência cristã medieval. A imagem aponta assim para um objeto que visto individualmente em suas partes parece seguir direções distintas, mas que, com as articulações certas, formam uma construção coerente.
A organização dos capítulos da obra busca então deslindar e compreender as formas de emergências deste tríptico na formação da segurança pública paulista no período da redemocratização brasileira, a composição de suas partes e as articulações produzidas entre elas. Assim, o capítulo 1 se encarrega da emergência das raízes discursivas do tríptico e seus debates: a “opção pelos pobres” como leitura católica da Declaração Universal dos Direitos Humanos no bojo da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, os debates da Ordem dos Advogados do Brasil sobre os problemas jurídicos da formação de um direito Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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penal coerente à democracia a ser construída e a militância da Comissão Teotônio Villela em relação à condição carcerária dos “presos comuns”. O mesmo capítulo também se reserva à apresentação de Paulo Sérgio Pinheiro e seus textos críticos ao sistema de segurança produzido durante a ditadura. Figura de suma importância para a obra de Marques, a trajetória de Pinheiro durante o período estudado é um dos fios condutores da transformação do trio opção pelos pobres, debate jurídico estrutural e militância pelos presos comuns em um sistema penal democrático, humanizado e em plena expansão.
O capítulo 2 é dedicado à análise da gestão de André Franco Montoro (PMDB 19831987) no governo paulista. Neste capítulo Marques aponta para o estranho silenciamento da bibliografia especializada frente ao governo Montoro, sendo abordado majoritariamente como um breve período de experimento democrático na área paulista de segurança, mas logo abortada por forças conservadoras (Marques 2018: 90-93). O autor retorna assim aos feitos da gestão do Emedebista e constrói sobre ela a transformação das discussões apontadas no capítulo anterior em uma forma de governo que inaugurará o “tríptico segurança-democracia-direitos humanos”. A transformação se dará a partir da apropriação dos debates e a subsequente desativação de partes fundamentais da sua formação discursiva, assim, vemos a adoção de uma noção de direitos humanos sem a “opção pelos pobres” (: 104), uma reforma do judiciário que se eximirá da sua transformação estrutural (: 106) e uma reforma penal e carcerária que não ignorará tanto o paradoxo infernal do caráter irreformável da prisão quanto da tentativa de colocar a perspectiva da população carcerária como fio condutor de uma reforma possível (: 108). A construção desta lógica discursiva e institucional da expansão da segurança pública nos estertores da ditadura militar poderia se abrir à conversa, a meu ver, para outros dois pontos em que o discurso do progressismo também deu vazão à expansão penal. O primeiro diz respeito a separação entre crime comum e crime político, tratado de maneira resumida na obra de Marques (: 59-63). Trata-se de uma separação fundamental e que atravessa a constituição de diversas esquerdas internacionais. Como argumenta Foucault (2006: 140-146), a separação entre os tipos de crime abriu uma avenida para a constituição de uma expansão de tipos penais que poderiam ser executados sem que se fosse reivindicada a bandeira da invalidade política de tais aprisionamentos. O segundo ponto, mais referente à constituição nacional, diz respeito a produção da Lei dos Crimes Hediondos. Como aponta a tese de Luiz Guilherme Paiva (Paiva 2014) os constituintes de 1988, tanto de esquerda quanto de direita, estavam em concordância quanto ao papel do sistema penal como resolutor de problemas sociais complexos como a tortura, o estupro e o homicídio qualificado. É desta forma que se produziu, segundo Paiva, a Lei de Crimes Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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Hediondos, que visava enquadrar casos considerados de grande gravidade e excepcionais, e que agora é responsável por cerca de 30% da composição da população carcerária uma vez que outro problema social complexo também foi tipificado sobre seu aparato penal: o tráfico de drogas2.
Se no capítulo 2 vemos a inauguração de uma nova razão de governo que unirá um sistema penal punitivo e um discurso humanista e democrático, vemos no terceiro capítulo da obra de que maneira tal forma de governar é encampado por um discurso científico através da formação de uma vertente específica da Sociologia da Violência. A transformação da sociologia da violência em um operador da “expansão securitária via ciência” (: 127) se daria em um primeiro momento pela invenção de um inimigo retórico representado pelas supostas teorias da associação entre marginalidade e criminalidade. A invenção deste inimigo ocorreria, por sua vez, através de duas vias simultâneas: a primeira se encarregaria do esquecimento de quaisquer discussões que tentem relacionar produções de marginalidade à produções de circuitos criminais, rotulando-as de ideológicas e frutos de marxismos vulgares (: 142-150) e a segunda pela produção de pesquisas que criará uma perspectiva alternativa às oferecidas pelos estudos anteriores. Tais pesquisas focarão no caráter autoritário dos pobres urbanos e no aspecto autônomo e específico das instituições penais, em especial as policiais e os ambientes prisionais. Estas transformações são responsáveis por deslocar em relação a bibliografia anterior o caráter eminentemente revolucionário dos espoliados urbanos e o aspecto de operador final das opressões estatais que carregavam as instituições penais. É com base nestas três transformações: a invenção do inimigo retórico encarnado pela associação entre crime e pobreza, a dessencialização do caráter revolucionário dos pobres e a apresentação do caráter autônomo das instituições penais que, segundo Marques, a Sociologia da Violência se torna uma “espécie de fala terminante acerca da melhor maneira de governar o problema da criminalidade violenta” (: 164, grifos originais) tornando-se assim uma ciência de Estado do governo erigido sobre as bases da expansão securitária através do discurso democrático e humanista.
O argumento sobre a Sociologia da Violência como ciência de Estado para a expansão securitária é potente e original e, por estas mesmas características, instiga comentários que animem debates sobre sua capacidade analítica. Um ponto a se enxergar é o de que o afastamento das teorias marxistas em relação a outros campos de discussão não é uma exclusividade da Sociologia da Violência produzida no Brasil na década de
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Ver: “Um terço dos presos brasileiros cometeu crimes hediondos” em Agência Brasil/EBC http:// memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-05-19/um-terco-dos-presos-brasileiros-cometeucrimes-hediondos. Último acesso em 28/11/2018.
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1980. Período de profunda crise dos marxismos e do colapso da União Soviética, a década de 1980 marca também um certo afastamento da teoria marxista do centro do debate sobre desigualdades sociais, de modo que seria interessante entender de que maneira esta antagonização feita pela Sociologia da Violência em relação a teorias de inspiração marxista se relacionam com um movimento mais geral da época de crítica aos teóricos inspirados na obra de Marx.
O quarto capítulo do livro tomará como evento principal o Massacre do Carandiru e suas reverberações enquanto ponto de partida para construção de um programa paulista e nacional de direitos humanos que abordará a condição carcerária. Aporte mais extensivo da obra no que diz respeito aos eventos e contextos tratados, o capítulo trata objetos variados entre si: Massacre do Carandiru, emergência do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) da Segurança Pública inaugurado pelo primeiro governo do Partido dos Trabalhadores (PT) como formas de demonstração de que o discurso de humanização das condições carcerárias ganhou seu mais potente vetor na proposta de ampliação de vagas como solução possível para a superlotação. Vemos, contudo, que o argumento do “tríptico segurança – democracia – direitos humanos” que ao começo da obra ambiciona abarcar todo o sistema penal (judiciário, polícia e prisão) chega ao final da sua demonstração privilegiando as reverberações na expansão das malhas carcerárias paulista e nacional. O autor conclui o livro propondo um retorno aos debates que relacionam as desigualdades sociais como parte da equação entre violência e democracia. Reativando assim os aportes teóricos de autores como Lucio Kowarick, Clara Ant, Dilson Motta e Michel Misse, Marques as contrapõe com a trajetória de Paulo Sérgio Pinheiro para apontar o caráter esquizofrênico (p. 220) do atual campo de estudos e gestão da segurança pública que atua parecendo sempre saber do pouco alcance de suas formulações frente aos problemas das opressões estatais que integram a recente democracia brasileira (: 213223).
Ao final da leitura fica a impressão de que Humanizar e Expandir se caracteriza como um convite à necessária revisão das premissas e aportes metodológicos usados para a discussão sobre violência e democracia no Brasil. Convite este que o próprio autor parece sinalizar em alguns momentos ao tentar abordar os significados de violência e democracia na experiência brasileira, tentativas estas presentes tanto na própria obra (: 129-130) quanto em artigos recentes (Marques 2017: 207-219). O convite vem acompanhado de algumas sugestões pontuadas no decorrer do livro e mais acentuada na sua fase final. Trata-se, nas palavras do próprio autor de que Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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o eventual sucesso de sua tese “anunciará que o obsceno abismo socioeconômico que divide nossas cidades, das menores à maior, atravessando cada um de nossos estados […] será reconduzido ao primeiro plano da questão da violência[...]” (: 221, grifos no original). Assim, ao colocar sob o foco da análise os discursos democráticos e humanistas como raiz de emergência das mazelas da segurança pública em São Paulo e propor a volta da discussão sobre marginalidade como primeiro plano para debates sobre violência urbana, a obra Humanizar e Expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo se firma como uma grande contribuição para as discussões sobre violência e democracia no Brasil.
Referências FOUCAULT, Michel. 2006. Ditos e Escritos IV: Estratégia, poder-saber (Organização e Seleção de textos: Manoel de Barros). Rio de Janeiro: Forense Universitária. MARQUES, Adalton. 2014. Crime e proceder: um experimento antropológico. São Paulo: Alameda.
______. 2017. “O que fazer com os nômades do norte? Notas sobre imagísticas sociológicas da violência e da democracia”. In COMEFORD, BEZZERRA & PALMEIRA (Orgs.) Questões e Dimensões da Política. Rio de Janeiro: Papeis Selvagens. PAIVA, Luiz Guilherme De. 2014. Populismo penal no Brasil: do modernismo ao antimodernismo penal, 1984 -1990. Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Recebida em 28 de novembro de 2018.
Aceita em 06 de janeiro de 2019.
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SANTANA, José Valdir Jesus de (org). 2017. Relações etnicorraciais e educação escolar indígena: relatos de pesquisa. Vitória da Conquista: Edições UESB. Raimundo Nonato Ferreira do Nascimento Professor adjunto I, área de Antropologia da Universidade Federal do Piauí – UFPI nonatorr.33@gmail.com
Já faz alguns anos que as questões relacionadas à diversidade cultural no campo da educação têm ganhado visibilidade mundo afora. Aqui no Brasil, por exemplo, os debates sobre as relações etnicorraciais têm estado cada vez mais presentes nos espaços acadêmicos e políticos, principalmente, na elaboração de políticas públicas destinadas às minorias étnicas e sociais. Tais políticas, às vezes, são controversas e têm suscitado polêmicas diversas, principalmente, quando se trata de políticas educativas. Mesmo sendo uma temática constante nas reflexões antropológicas, houve uma intensificação dos debates a partir da publicação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatório o estudo da História e cultura afro-brasileira e indígena no sistema de ensino. Tal obrigatoriedade tem despertado a atenção de antropólogos e educadores, servindo inclusive para estreitar o diálogo entre os dois campos do conhecimento – Antropologia e Educação. É, portanto, nessa perspectiva do diálogo, que o livro “Relações etnicorraciais e educação escolar indígena: relatos de pesquisa” se apresenta. Esta coletânea, organizada por José Valdir de Jesus Santana, docente/pesquisador da Universidade Estadual do Sul da Bahia, apresenta a produção de pesquisadores/as vinculados/as a diferentes instituições de pesquisa que vem se dedicando aos estudos das relações etnicorraciais e da educação escolar indígena e coloca em evidência debates teórico-metodológicos que sublinham os desafios, mas também as possibilidades concernentes às relações etnicorraciais e à educação escolar indígena. Cada autor e autora dos textos nela reunidos trazem, a partir de suas experiências, importantes contribuições demonstrando os desafios que se impõem a pesquisadores/as e educadores/as para pensar
Resenha: Relações etnicorraciais e a educação escola indígena
a diversidade cultural brasileira no espaço educativo em um contexto de desigualdades raciais e sociais.
A obra está organizada em uma apresentação e mais nove capítulos, que podem ser classificados em duas partes. A primeira é composta por seis capítulos, que apresentam resultados de pesquisas sobre as relações etnicorraciais na sociedade brasileira, articulando temas como racismo, segregação, práticas religiosas de cura, ensino de história e cultura afro-brasileira e processos de formação de identidade. A segunda parte, com três capítulos, traz reflexões relacionadas aos modos de ser e fazer educação dos e pelos povos indígenas. Em seu conjunto, esta coletânea nos ajuda a refletir sobre a diversidade etnicorracial na sociedade brasileira, principalmente no âmbito das instituições de ensino.
No primeiro capítulo, Reinaldo José de Oliveira, ao analisar a segregação urbana no Brasil, procura demonstrar como práticas racistas institucionalizadas estão diretamente relacionadas com o aumento da segregação urbana e racial no país. Para tanto, parte do pressuposto de que os processos de segregação reúnem instrumentos de separação que não são apenas sociais, mas também econômicos, políticos e ideológicos. Segundo o autor, apesar da temática da segregação socioeconômica ter sido constantemente debatida nos espaços acadêmicos, a questão racial vinculada ao espaço urbano ainda merece observações e reflexões, seja das ciências que lidam e trabalham com o espaço urbano, como daquelas que estudam o racismo e as desigualdades sociais. Ainda segundo o autor, a produção acadêmica nacional, ao deslocar a questão das desigualdades raciais vinculadas ao espaço urbano para o universo das desigualdades socioeconômicas, tenta invisibilizar e mascarar a questão do racismo em nossa sociedade, pois, para o autor, não é possível entender ou interpretar a segregação na sociedade brasileira sem colocar em pauta o racismo e as desigualdades raciais, presentes em nossa sociedade há mais de um século.Racismo e discriminação são os temas centrais do capítulo dois, escrito por Aline Ramos, José Valdir Jesus de Santana e Marise de Santana. Os autores, ao apresentarem os resultados de uma pesquisa realizada em uma escola pública de Ensino Fundamental do Sul da Bahia, situam a escola e ação do professor no centro do debate, pois partem do pressuposto de que a postura racista e preconceituosa do educador tem como consequência o fracasso escolar. Orientados por este princípio, procuram “identificar e analisar as manifestações preconceituosas e racistas, por parte de alunos e professores no ambiente escolar”, além de “identificar e analisar a necessidade de uma educação pluricultural que combata práticas racistas e discriminatórias que recaem sobre as crianças negras e afrodescendentes” (: 46). Tendo a etnografia como estratégia metodológica, apresentam a escola como uma instituição social responsável pelo processo de socialização dos sujeitos, Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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demonstrando que é na escola e por meio dela, que as crianças estabelecem relações com o diferente, sendo, portanto, nestas relações com sujeitos de diferentes matrizes culturais que experimentam também as primeiras tensões raciais. Ao observar e analisar as práticas e discursos dos professores, os autores constatam que a prática do racismo na escola investigada parece ser naturalizada, pois segundo os autores, o que se percebe na prática docente é “a reprodução de preconceitos, a naturalização de práticas racistas, discriminação social e racial, bem como a sua legitimação através da ação ou omissão docente no espaço escolar” (: 64).
Aline Garcia e Benedito Eugênio nos apresentam, no capítulo três, os resultados de uma pesquisa realizada com professores de três escolas do Ensino Fundamental do município de Jequié-Bahia. O intuito é analisar o processo de implantação da disciplina “História e Cultura Africana”, introduzida no sistema de ensino, a partir da publicação da lei 10.639/03. Para tanto, partem do seguinte pressuposto: as disciplinas são construídas social e politicamente e os atores envolvidos nesse processo empregam uma gama de recursos ideológicos para levarem a cabo suas missões, sejam individuais e/ou coletivas. Seguindo esse princípio analítico, mostram as dificuldades, tensões, desafios e conquistas durante o processo de criação na Secretaria Municipal de Educação, de um núcleo voltado para o estudo da África, bem como demonstram os desafios que se apresentam ao trabalhar as relações etnicorraciais no ambiente escolar com alunos das séries finais do Ensino Fundamental. Saindo do debate sobre racismo, preconceito e discriminação, somos levados por Silene Arcanjo Franco a conhecer uma experiência de vivências religiosas e práticas de cura empregadas por parteiras, entendendo-as como exemplos de reconhecimento e valorização de africanidades que são atualizadas cotidianamente nos bairros da cidade de Salvador e Lauro de Freitas (: 84). A autora, ao se utilizar da técnica da história oral, registra as trajetórias de vida de mulheres parteiras; trajetórias estas que testemunham a permanência de um legado cultural, adquirido no seio da família junto às mulheres mais idosas, (mães, tias e avós), por meio da vivência, da observação, dos sentidos, da intuição, ou seja, do fazer cotidiano. Este aprendizado, segundo a autora, faz destas parteiras continuadoras de um saber ancestral que se atualiza através de suas mãos e de cada criança que nasce nos bairros em que elas vivem. Já no quinto capítulo, escrito por Idalia Lino Santos e Marcos Lopes de Souza, as situações de preconceito, discriminação e racismo são analisadas nas relações que se estabelecem entre os praticantes de religiões de matriz africana, notadamente de Umbanda e Candomblé e os praticantes do Espiritismo. Segundo os autores, mesmo com os avanços no reconhecimento das diferenças, as religiões de matriz africana ainda se deparam Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
Resenha: Relações etnicorraciais e a educação escola indígena
com situações de marginalização e, por esta razão, procuram compreender porque os praticantes da Umbanda e Candomblé sofrem preconceito e discriminação por parte dos participantes do Espiritismo. Ancorados numa abordagem qualitativa, realizaram visitas a Centros Espíritas e a Terreiros de Umbanda e Candomblé na cidade de Jequié, onde, por meio da observação direta e da realização de entrevistas, buscaram compreender como se estabeleciam as relações de preconceito e/ou discriminação entre os adeptos destas religiões. A análise das práticas e discursos dos participantes da pesquisa demonstrou, segundo os autores, que há entre os adeptos do Espiritismo alguns que se colocam em um patamar superior aos membros da Umbanda e do Candomblé, acusando-os de serem praticantes de religiões arcaicas e de “trabalharem com espíritos considerados inferiores” (: 102). Guardadas as devidas proporções, esta constatação é relevante por demonstrar como as religiões de matriz africana ainda são inferiorizadas, quando não relacionadas a “manifestações demoníacas”. Regina Marques de Souza Oliveira, por seu turno, apresenta uma reflexão sobre educação e saúde, em que procura relacionar práticas racistas institucionalizadas, saúde mental e processos subjetivos de construção da identidade da população negra. Tendo como base duas pesquisas, uma realizada com crianças e outra com jovens e adolescentes, ambas em espaços educativos, procura demonstrar como as manifestações de racismo, preconceito e discriminação são determinantes nas condições de vulnerabilidades da saúde mental da população negra. Mesmo estabelecendo metodologias específicas para cada grupo estudado, o fio condutor de sua análise foi a noção de identidade. Amparada por uma abordagem psicossocial materialista histórica, mediada pela psicanálise, a autora procura compreender como a saúde mental da população negra é atravessada por diferentes formas de violência psíquica e emocional. Tais formas de violência, segundo a autora, trazem inúmeros prejuízos, tanto afetivo como emocional, no processo de formação da identidade da criança, do adolescente e do jovem negro.
O capítulo sete, portanto já na segunda parte do livro, se volta para a análise da educação escolar indígena. De autoria de José Valdir de Jesus Santana, Ana Elisa Santiago e Clarice Cohn, o texto tem como objetivo analisar as relações que se estabelecem entre cultura, currículo e educação escolar em contexto indígena. Para tanto, os autores partem do princípio de que o currículo, no campo da educação escolar indígena, “precisa ser interrogado, colocado sob escrutínio, produzido e atualizado, sobretudo porque a escola, em contexto indígena, deve ser pensada e produzida no sentido de atender as demandas e desejos de cada povo de acordo com o que entendem ser educação diferenciada” (: 148). Ao refletir sobre a valorização da cultura em uma situação de relações interétnicas, os Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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autores indagam-se sobre a relação entre cultura, conhecimento e currículo. Interessalhes compreender como o currículo escolar é produzido nas escolas indígenas, a partir de determinados contextos etnográficos, em especial, naqueles onde a escola é acionada como um lugar de resgate e valorização da cultura. Ancorados numa bibliografia sobre educação escolar indígena, os autores apontam que o currículo nas escolas indígenas é mais que um instrumento burocrático, pois visa atender às especificidades da escola, bem como ao que os povos indígenas apontam como imprescindível no contexto escolar. A escola, a educação escolar e as formas de apropriação destas pelos Tupinambá de Olivença são analisadas no capítulo oito por José Valdir Jesus de Santana e Clarice Cohn. Os autores, ao analisar o contexto histórico de mobilização e organização do povo indígena Tupinambá de Olivença, percebem que a escola e a educação escolar ganham lugar de destaque, tanto na luta pelo reconhecimento étnico quanto pela retomada de seus territórios ancestrais, sendo, portanto, produzida por e para os Tupinambá como um local de cultura. Diante dessa característica específica, os autores procuram “compreender como a escola tupinambá tem produzido Tupinambá ‘forte na cultura’, [...] como são construídas ‘pessoa tupinambá’ a partir da escola e dos discursos relacionados ao ‘está na cultura’” (: 163). Através da etnografia, procuram demonstrar como os Tupinambá de Olivença, a partir de seus projetos de educação escolar e das formas de socialidades que são produzidas na e pela escola, produzem um tipo de pessoa tupinambá que é denominado por eles mesmos de ‘Tupinambá forte na cultura’. O último capítulo, de autoria de Paulo de Tássio Borges da Silva e José Valdir Jesus de Santana, aborda a relação trabalho/agenciamento entre crianças Pataxó. Os autores se orientam pelos seguintes questionamentos: qual a relação das crianças Pataxó com as atividades de trabalho desenvolvidas nas aldeias? O trabalho realizado pelas crianças pode ser caracterizado como uma atividade de exploração? Qual o lócus de agência das crianças Pataxó? Como e em que circunstâncias essa agência é acionada? Partindo de uma concepção de infância como uma construção histórica, cultural e social, e ancorados nos estudos da Antropologia da Criança e da Sociologia da Infância, refletem acerca das possibilidades investigativas e dos diversos fenômenos que permeiam o universo da criança. O resultado desta análise nos auxilia a produzir rupturas com as concepções padronizantes e eurocêntricas, demonstrando uma dimensão plural de infância. O trabalho entre os Pataxó, longe ser considerado uma atividade de exploração da criança, é antes de tudo, parte de sua construção como pessoa. Pois, é com o trabalho e por meio dele que os Pataxó se constroem. É inegável a contribuição que os artigos reunidos nesta coletânea nos apresentam
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Resenha: Relações etnicorraciais e a educação escola indígena
sobre a temática das relações etnicorraciais, bem como sobre educação escolar indígena, pois trazem para o centro do debate temas que, por muito tempo, têm sido invisibilizados e ou mascarados nas reflexões acadêmicas. Conforme afirma Reinaldo Oliveira, o discurso da “democracia racial” no Brasil tem prejudicado e até mascarado os debates sobre segregação urbana e racial em nosso país. Outra questão que merece destaque é aquela apontada por Aline Garcia e Benedito Eugenio, quando analisam a implementação da lei 10.639/03. O que se percebe da análise empreendida pelos autores é que somente a garantia da lei não é suficiente para que determinadas políticas sejam cumpridas, sendo portanto, necessário, além da garantia legal, um processo de formação para os professores, para que estes coloquem em prática os preceitos legais.
A necessidade de formação para a diversidade apontada nesta coletânea, já vem sendo discutida em outras coletâneas como “Dez anos da lei nº 10.639/03: memórias e perspectiva de Regina de Jesus, Mairce Araujo e Henrique Júnior (Jesus, Regina et. Al. 2013, 296 p.) e “Experiencias étnico-culturais para a formação de professores” de Nilma Gomes Petronila Sila (Gomes & Silva 2011). Nestas, os debates sobre a formação docente para a diversidade têm sido colocados, por um lado, como uma questão fundamental para vencer os desafios que se impõem à compreensão e ao respeito à diversidade presentes no espaço educativo e, por outro, como uma possibilidade de construção de possíveis diálogos entre dois campos do conhecimento; como já apontamos.
Com relação ao debate sobre a escola e povos indígenas, os autores atualizam e continuam um debate já iniciado nos anos de 1970, quando o movimento indígena organizado passou a se apropriar da escola e da educação escolar, como uma forma de promover sua autodeterminação. A escola, que antes era vista como um espaço de dominação e imposição cultural ao ser apropriada pelos povos indígenas, passou a representar um espaço de valorização e produção da cultura e consequentemente, de pessoas fortes na cultura, como nos mostram os autores do oitavo capítulo. Por tudo isso, é possível afirmar que esta obra organizada por José Valdir Jesus de Santana, além de trazer importantes subsídios para o entendimento e reflexão das relações etnicorraciais e educação escolar indígena, atualiza um debate já iniciado por outros pesquisadores. Além disso, nos faz refletir sobre os desafios teóricos, metodológicos e políticos da pesquisa educacional, principalmente quando o tema central é a diversidade. Diante da atual realidade cultural da educação brasileira e dos quadros de desigualdade social e racial no Brasil, não podemos mais aceitar que a diversidade continue sendo vista como um problema. Isto exige de nós, como educadores e educadoras, uma tomada de posição diante dos sujeitos da educação, no sentido de reconhecer e valorizar tanto Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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as semelhanças quanto as diferenças como fatores indispensáveis a qualquer projeto educativo que se quer democrático. Os desafios são muitos, mas há possibilidades e isso revela sua importância e certamente as contribuições presentes nesta coletânea estão à disposição para serem conhecidas e analisadas com a profundidade que merecem. Recebido em 20 de junho de 2018. Aceito em 29 de julho de 2018.
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BEVILAQUA, Ciméa B.; VANDER VELDEN, Felipe (org.). 2016. Parentes, vítimas, sujeitos: perspectivas antropológicas sobre relações entre humanos e animais. Curitiba: Ed. UFPR; São Carlos, SP: EdUFSCar. José Cândido Lopes Ferreira Doutorando pela Universidade Estadual de Campinas josecandido02@gmail.com
Resultado de um encontro interespecífico, intraespecífico, interdisciplinar, multitemático, o livro Parentes, vítimas, sujeitos: perspectivas antropológicas sobre relações entre humanos e animais conjuga trabalhos apresentados no Grupo de Trabalho 5 – Animais e humanos em contextos urbanos e rurais: novas perspectivas sobre relações interespecíficas, na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em São Paulo no ano de 2012. Ciméa Barbato Bevilaqua e Felipe Vander Velden, antropóloga e antropólogo empenhados em investigações sobre o tema, são os responsáveis pela organização da publicação.
Na história da antropologia, os animais figuraram como parte do cenário da humanidade, como signos e objetos que ajudavam a pensar as relações humanas. Eles estão presentes com maior recorrência nos estudos etnológicos, junto a povos indígenas amazônicos. Não por acaso, a etnologia ameríndia é o campo de onde emergiram duas das mais impactantes referências teóricas acerca das interações entre humanos e não humanos, o animismo de Philippe Descola e o perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. O interesse de antropólogos por pesquisas sobre relações humano-animal, em ambientes urbanos e rurais como um tema particular, começou a ganhar espaço recentemente. É importante lembrar das contribuições da professora Nádia Farage, na constituição de uma linha de investigação acerca de relações interespecíficas e suas
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implicações políticas. Em países europeus e da América do Norte, há um campo de pesquisas interdisciplinares já consolidado denominado animal studies (estudos animais). Na antropologia brasileira, de outra forma, os animais vêm sendo mobilizados como tema de pesquisa no interior de subáreas, como antropologia da ciência, antropologia ambiental, antropologia urbana. Os capítulos desta coletânea refletem essa variedade. A convivência de humanos e animais é o tema que perpassa o livro, a começar pela capa, que não é trivial. Uma fotografia, de autoria de Pedro Stoeckli, mostra búfalos, cavalos e homens, que interagem na paisagem alagada das várzeas do rio Araguari (Amapá). Em seu trabalho, Stoeckli aborda os modos de engajamento entre búfalos e vaqueiros1.
A domesticação, no âmbito dessa pecuária, é um processo contínuo de amansamento e familiarização de búfalos e humanos.
O tema da domesticação tem notável influência sobre os estudos que compõem Parentes, vítimas e sujeitos. Jean-Pierre Digard, citado por Ivana Teixeira, argumenta que a domesticação é o modo de relação entre humanos e animais não humanos no Ocidente (: 104), que não acontece de forma unívoca. Sistemas de domesticação (: 104) se desenvolvem de diferentes maneiras em diferentes contextos. As espécies envolvidas, os ambientes em que os engajamentos têm lugar, as configurações culturais humanas (e não humanas) resultam em vínculos peculiares. As colaboradoras e colaboradores da coletânea apresentam variações desses sistemas, por mais que suas motivações etnográficas visem esse tema. Pretendo pensar, junto com os autores, sobre essas relações.
O livro está dividido em cinco partes, agrupando os capítulos por afinidades temáticas. A primeira parte, intitulada “Domesticidades, parentescos, genealogias”, reúne textos que descrevem situações nas quais as vinculações entre humanos e animais não humanos segue uma lógica de parentesco. Andréa Osório escreve sobre gatos resgatados das ruas do Rio de Janeiro por um grupo de proteção a felinos. Esses animais de estimação abandonados são vulneráveis e, segundo seus protetores, eles precisam de uma família. São bebês a serem adotados por mães e pais. A autora fala em parentesco metafórico (: 71), uma condição especial de inclusão dos gatos no ambiente doméstico, caracterizada por tratos e expressões de afeto e infantilização. Os gatos-crianças ganham nome próprio, têm gosto e personalidade. São agregados à família e requerem atenção de seus parentes.
Famílias humanas e zebuínas compartilham de prestígio no contexto da pecuária de gado de elite. O pedigree de um touro reprodutor é atestado por sua genealogia. O renome de um pecuarista também é legitimado por seus ascendentes. Natacha Leal acompanha o circuito do gado zebu, centralizado no Triângulo Mineiro, e analisa como os vínculos 1
Conferir Pedro Stoeckli (2017).
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entre criadores e bovinos produzem valor. Zebuzeiros têm vocação para planejar cruzas e obter reses com boas qualidades. Touros e vacas são valorizados em campeonatos, diante de investidores e outros pecuaristas. O valor monetário e moral compartilhado por boi e pecuarista é alimentado pelo desempenho conjunto no mercado de elite. A linguagem da genealogia orienta a perpetuação genética e moral de famílias humanas e bovinas.
O pedigree é enaltecido também nos concursos de beleza canina. Ivana Teixeira entrou no universo da cinofilia (criação de cães de raça pura), em Porto Alegre. Mostra que criadores não medem esforços para defender a beleza de seus cães nas competições. A cinofilia envolve grande investimento financeiro (: 113). Também é marcada por sentimentos de afeto e intimidade entre cães e seus donos. Criadores reconhecem nos cães verdadeiros companheiros, carinhosos e inteligentes (: 115). Laços pessoais e econômicos coexistem e se sustentam, sem contradições. A predação é outra forma de relação entre humanos e animais. “Produzir a vida e administrar a morte” é a seção que agrupa estudos sobre sistemas de produção que transformam “corpos animais em comida” (: 136). Mecanismos atenuantes do sofrimento humano diante da morte do animal não humano são empregados, em alguns casos. Mais que uma grande forma de violência, há nuances que particularizam relações nesses processos.
A produção industrial de carne atende às demandas de mercados nacional e internacional. Caetano Sordi reflete sobre mudanças técnicas no sistema-carne brasileiro visando o bem-estar do gado. Um boi oscila de sujeito que sente a carcaça que se come. O manejo racional é o conjunto de técnicas que garantem ao boi condições adequadas de vida e morte, segundo as modernas ciências animais. Nesse processo, o bem-estar é medido em níveis bioquímicos e comportamentais. Os mecanismos atenuantes do sofrimento animal operam também como mitigadores do incômodo humano na esfera política da morte. Annelise Fernandez, Dean Berck e Rogério de Oliveira descrevem a caça praticada por moradores dos arredores da floresta da Pedra Branca, no Rio de Janeiro. Hoje regulada por uma unidade de conservação, essa paisagem já foi o terreno de caçadores e agricultores. Técnicas e habilidades apropriadas às presas e ao território são parte do persistente repertório de conhecimentos dos caçadores. Atitudes de respeito aos animais e ao Capitão da mata, entidade sobrenatural que protege a floresta e seus habitantes, são características da relação entre esses caçadores e os seres da floresta. A caça não é simplesmente uma forma de apresamento de animais silvestres. É parte de um conjunto de concepções sociais próprias de um sistema moral, que reconhece agência nos seres não humanos. Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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No Seridó potiguar, a criação de porcos em chiqueiros domésticos enseja laços afetivos entre humanos e suínos. Maria Isabel Dantas descreve o processo de despersonificação necessária para um porco virar chouriço. O abate é realizado fora do espaço doméstico, por pessoas que não são parentes dos criadores. A insensibilização e sangria do porco são etapas que tornam a morte indolor para o porco e minimizam os sentimentos adversos dos humanos. Esse processo permite que a carne e o sangue do suíno sejam feitos alimento para as pessoas que o criaram. Há aí dois movimentos: cuidado-personificação/despersonificação-predação.
Fabíola Pereira, Flávia Rieth e Marília Kosby explicitam aspectos da vida de peões e gado nos Pampas gaúchos. A lida campeira é o conjunto de atividades relacionadas ao pastoreio de rebanhos. Esse modo de vida típico dessa paisagem passa por modificações. A lida tradicional, caracterizada como bruta e difícil, é substituída por modelos racionais, voltados para o controle e dinamização da produção, de acordo com exigências de mercado. As técnicas de doma de cavalos expressam essa dicotomia: a doma gaúcha, tradicional, emprega a força para sujeitar o animal, já a doma racional emprega técnicas de “gentileza”. O mercado amansa a lida campeira.
Os textos da terceira parte, “Modos de comer, formas de existir”, abordam éticas e dietéticas humanas e animais. O mercado de alimentos é hegemônico e dita as escolhas alimentares. Animais de estimação (pets) têm problemas de saúde por comerem rações de baixa qualidade (: 254). Movimentos opositores propõem o abandono de alimentos ultraprocessados. A alimentação é uma questão política transespecífica (: 239). Mayra Ferrigno é etnógrafa de manifestações em defesa de direitos animais. Os protestos que acompanhou tiveram como objetivo defender a condição dos animais não humanos como sujeitos de direito. Essa reivindicação é pautada na ideia de igualdade: humanos e animais são feitos de carne e sangue, e ambos são passíveis de sofrimento. A crítica maior dos movimentos é dirigida ao modo de produção capitalista (humano), que explora vidas animais (não humanos), lhes causando sofrimento. Eles reivindicam que os humanos abandonem hábitos carnívoros e adotem dietas veganas. Esse seria o caminho para libertar os animais (: 213). Da alimentação humana para a alimentação animal. Bernardo Lewgoy analisa dietas alternativas para animais de estimação. Opositores à indústria de rações defendem alimentação natural para cães e gatos. Decorrem daí discussões nutricionais e morais, entre defensores de dietas onívoras, carnívoras e veganas. As escolhas alimentares estão associadas a diferentes entendimentos sobre a evolução dessas espécies e também a perspectivas morais, estendidas aos animais de estimação. Os debates sobre escolhas
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alimentares colocam questões que transpõem os limites das espécies e criticam a hegemonia da grande indústria de alimentos.
Jean Segata faz etnografia em uma clínica veterinária e pergunta pelos custos da humanização de animais de estimação. Donos de pets investem em um estilo de vida com roupas, cosméticos e novos hábitos alimentares para cães e gatos. Os animais de estimação, por sua vez, sofrem os efeitos perversos desse estilo de vida. Compartilham dos problemas de saúde próprios dos humanos: depressão, doenças renais, gástricas. Diante disto, alguns donos não hesitam em descartá-los, quando deixam de ser estimados e tornamse incômodos. A relação entre humanos e animais não humanos tem custos diferentes para cada um. Porém, nesse caso, os humanos ainda têm o poder de transformar animais em coisas e desprezá-los. O abandono de humanos, a princípio, só existe nos limites das relações intraespecíficas. Na seção quatro (“Entre espécies”) as etnografias cobrem eventos e espaços em que os encontros entre humanos e outros animais produzem efeitos inesperados. Zoológicos são lugares privilegiados para esses encontros. Guilherme Sá recupera uma disputa eleitoral entre chimpanzés, promovida pelo Zoológico do Rio de Janeiro. O pleito era para decidir quem seria o novo mascote do zoológico. Forte aparato midiático e eleitoral foi mobilizado para a disputa. A situação desestabilizou as posições esperadas para humanos e chimpanzés. Os não humanos ensinaram os humanos a votar (: 273). O que está em jogo aqui são os chimpanzés no centro do sistema eleitoral e a mobilização de não chimpanzés para elegê-los. A política, uma qualidade dos animais humanos, é estendida aos outros animais.
Pelos caminhos do Jardim Botânico de Belém, Flávio Silveira relata o convívio de humanos e outros animais em meio à cidade. Encontros ecológicos interespecíficos criam nichos no ambiente urbano amazônico. Marcos Carvalho observa a convivência de humanos e animais não humanos em outro ambiente: o laboratório. Segue trajetórias de cientistas e suas cobaias, para mostrar que a experimentação animal não é uma prática uniforme. Há pesquisadores que abandonaram experimentos por reconhecerem nas cobaias seres que sentem dor. Outros as utilizam em seus experimentos, mas têm dificuldades para sacrificálas, como manda o protocolo bioético. Ratos interferem nos resultados dos experimentos quando fogem, mordem, ou estão estressados. O dia a dia nos laboratórios são repletos de subjetivações e sentimentos. Cobaias não humanas criam questões não previstas, com as quais os cientistas humanos devem lidar em suas pesquisas.
“Carisma e inimizade” são os temas da última parte do livro. Sujeitos não humanos oscilam entre carismáticos e inimigos para os humanos. Instituições, que operam segundo Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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pressupostos e categorias próprias, regulam as interações entre espécies.
Eliana Creado, Clara Torres e Pedro Freitas justapõem contextos brasileiro e sulafricano de conservação da natureza. Duas espécies bandeiras, tartarugas e elefantes, são alvo dessas políticas. As tartarugas são tomadas por biólogos como parte de um ecossistema marinho-costeiro e sua conservação se desdobra na proteção da biodiversidade local. As estratégias de conservação de elefantes sul-africanos estão voltadas para a espécie. Esses grandes animais ora são espécies carismáticas, ora destruidores de propriedades rurais. Diferentes contextos nacionais e científicos geraram instituições com perspectivas diversas sobre a conservação de espécies animais.
Ciméa Bevilaqua traz outro cenário internacional ao estudar como dois sistemas judiciários lidam com cães acusados de agredir seres humanos. Em termos jurídicos, cães são coisas pertencentes a pessoas. A antropóloga analisa os arranjos práticos feitos pelos juízes para elaborar os julgamentos. Nos casos brasileiros, os cães têm existência secundária em relação às pessoas envolvidas. No caso inglês, humano e cão têm suas ações analisadas, sendo que o cão ganha mais atenção no momento de definir as razões de seu ataque. Sistemas jurídicos operam mundos próprios. As mordidas de cães têm efeitos diferentes em mundos diferentes.
Encerrando a coletânea, Felipe Vander Velden escreve sobre a indesejada companhia que mosquitos fazem aos humanos. Diferentes teorias sobre a transmissão da malária são ouvidas nas aldeias karitiana. Segundo eles, a doença é transmitida pelo ar, especialmente pelas fumaças pestilentas dos brancos. Já para a epidemiologia, os carapanãs são os vetores da malária. Ações de combate aos mosquitos intervêm nas aldeias pelos órgãos de saúde. O antropólogo chama atenção para a “homologia nas formas de vigilância” (: 424) empregadas sobre comunidades humanas e não humanas. As ações de controle sobre essas comunidades têm lugar após a desestruturação das relações ecológicas. Os mosquitos, feitos inimigos, transmissores de doença, foram trazidos pelos brancos. Os Karitiana, ao contrário, já os tinham como seus inimigos (Ndakyryjda) (: 415). É equivocado pensar que comunidades interespecíficas sejam organizadas por uma única política. A convivência entre Karitianas e carapanãs se dá por outras formas, diferentes do modelo sanitarista de erradicação de pragas. Os capítulos apresentam sistemas de relações entre humanos e animais não humanos bastante particulares, que operam por laços familiares, que se transformam em formas de predação, valores morais e monetários, sentimentos de afeto e inimizade. As espécies companheiras (Haraway, 2003) participam intencionalmente das questões humanas e humanos colaboram com os interesses de animais não humanos. Os sistemas Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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de domesticação têm contornos contextuais, são moldados pela maior ou menor distância entre os animais humanos e não humanos. A importância da coletânea está na diversidade de contextos etnográficos, no aporte de vasta referência bibliográfica sobre relações interespecíficas. Soma-se aos vários dossiês temáticos publicados desde 2012 em revistas brasileiras de antropologia. É notável a participação de pesquisadores de diversas regiões e instituições. Essas experiências etnográficas têm muito a contribuir com as percepções e sensibilidades de pesquisadores humanos sobre animais não humanos, não se restringindo às reflexões antropológicas. Relações interespecíficas são formas que se multiplicam. Precisamos descrevê-las e compreendê-las.
Referências HARAWAY, Donna. 2003. The companion species manifesto: dogs, people, and significant otherness. Chicago: Prickly Paradigm Press.
STOECKLI, Pedro. 2017. “A brutidade entre vaqueiros e búfalos no baixo Araguari – Amapá”. Horizontes Antropológicos, volume 23, pp. 171-196. Recebido em 10 de junho de 2018.
Aceito em 03 de setembro de 2018.
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BRITES, Jurema; MOTTA, Flávia de M; (Org.). 2017. Etnografia, o espírito da antropologia: tecendo linhagens – Homenagem a Claudia Fonseca. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. Luísa Maria Silva Dantas Pós-Doutoranda Jr. em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul luisadantas1@gmail.com
Esta obra, como o próprio nome expressa, materializa densa homenagem à trajetória de pesquisa e ensino da professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Claudia Fonseca; e inaugura uma série de publicações, intitulada “Trajetórias e Histórias da Antropologia no Brasil”1. Sua publicação conjuga um antigo propósito, iniciado em 2009, de reunir em uma coletânea as etnografias sobre grupos populares urbanos produzidos por seus orientandos/as, no âmbito do Núcleo de Antropologia e Cidadania – NACi (1995), com a intenção de homenagear Claudia2 na ocasião dos 35 anos do PPGAS, em 2015. A homenagem à Claudia Fonseca se inicia com o prefácio de Ruben Oliven, professor também homenageado nos 35 anos do PPGAS e um de seus fundadores, em que ele rememora a chegada da jovem americana na universidade, por meio de uma carta de interesse em que ela relatava sua formação em Letras, mestrado em Estudos Orientais pela Universidade do Kansas e uma intensa experiência em pesquisa de campo. Essa ênfase no campo e na etnografia está presente não somente nessa primeira carta de apresentação, mas também nas práticas e discursos da própria professora, dos seus colegas e de seus discípulos, como uma de suas marcas, que também nomeia este livro, isto é, a etnografia, o espírito da antropologia. No prefácio, Ruben também destaca a capacidade de trabalhar 1 2
Com apoio do Programa de Editoração e Publicação de Obras Científicas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul, acordo CAPES/FAPERGS 2014, e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Claudia Fonseca é professora da UFRGS desde 1978, portanto em 2018 está completando 40 anos de docência nesta universidade.
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em equipe e liderar grupos, com respeito e generosidade, característica repetidamente afirmada pelos/as pupilos/as de Claudia no decorrer da obra. A introdução é escrita pelas duas organizadoras e ex-orientandas de Claudia, Jurema Brites e Flávia de Mattos Motta, momento em que apresentam o contexto de surgimento do livro e sua estrutura. Neste ponto, podemos identificar o sentido da palavra linhagem também presente no título da obra, posto que as organizadoras, para além de exorientandas, defendem a coletividade de suas formações, através do NACi, em que temas, objetos de pesquisa e metodologias foram apresentados, debatidos e criticados.
A primeira parte do livro é uma coletânea de doze etnografias realizadas por orientandas (apenas um homem) de Claudia desde o final dos anos 1980 até 2012, incluindo diversos momentos de formação: desde a graduação, passando por dissertações de mestrado até teses de doutorado. Os cinco primeiros textos podem ser considerados etnografias do cotidiano, envolvendo grupos populares, geração, estética, família, parentesco, conjugalidades, sexualidades, vizinhança e sociabilidades. Neste grupo estão presentes textos datados do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, de Carmen Rial, “Da casa açoriana à casa decorada”, Flávia de Mattos Mota, “Bem mulherzinha: o sexo, o corpo e a relação homem/ mulher”, Miriam de Fátima Chagas, “Aproximação etnográfica: o (re)encontro com a moral da dádiva na rádio Farroupilha”, Heloísa Paim, “Amantes e esposas: alianças e conflitos em família” e de Jurema Brites, “Uma patroa fora de lugar: etnografia da vida íntima e familiar da empregada doméstica”.
A diversidade de temáticas tratadas pelos cinco textos reflete a versatilidade dos empreendimentos de Claudia juntamente aos seus orientandos. Também chama atenção para algumas semelhanças presentes nas vivências e narrativas de grupos populares, mas também na postura ética e pedagógica exercida e incentivada pela antropóloga, buscando sempre provocar seus orientandos para a desconstrução de sensos comuns e estereótipos, a desconfiar de suas análises e identificar a jocosidade dos grupos populares urbanos brasileiros, junto à criatividade em relação às normas morais, que podem ser sempre burladas, travestidas e/ou reinterpretadas de acordo com o contexto vivenciado pelos sujeitos.
Os três textos seguintes estão em conformidade com outro momento da trajetória de Claudia, quando a partir das práticas cotidianas de grupos populares urbanos ela percebe a atuação de agentes estatais e passa a interessar-se pelas políticas, leis, programas e equipamentos sociais. Com esta centralidade de preocupações, temos os trabalhos de Alinne Bonetti, “Cidadania mediada: reveses da reinvenção da cidadania (ou Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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“novas configurações” alguns anos depois...)”, Martina Ahlert, “Notas etnográficas sobre mulheres, política e repasses de alimentos na gestão de um núcleo do Fome Zero em Porto Alegre” e Elisiane Pasini, “Práticas de valentias: uma pesquisa etnográfica na Vila Mimosa”.
Os últimos quatro textos fazem parte de teses de doutorado produzidas entre os anos 2005 a 2012, e dizem respeito a campos up, ou seja, quando a centralidade da pesquisa abarca não apenas sujeitos populares, mas atores, artefatos e práticas das ciências (jurídicas, médicas, informáticas). Neste grupo, temos Patrice Schuch, “Confronto de sentidos e constituição de autoridades num espaço judicial: etnografia de alguns dispositivos de gestão da infância e da juventude”, Soraya Fleischer, “Parteiras, parto domiciliar e reciprocidade numa pequena cidade amazônica”, Pedro Nascimento, “Comigo está tudo bem”: desejo de filhos, negociação e acusação em grupos populares no Sul do Brasil”, e Lucia Scalco, “A inclusão digital sob a perspectiva do educador social: contestando a escassez com criatividade”.
Essa possível classificação dos textos visando corresponder a distintas etapas da trajetória de pesquisa e docência de Claudia é apenas uma tentativa de organizar as diferentes temáticas em que ela e seus alunos se debruçaram, mas não podemos tomála como definitiva ou, menos ainda, como uma linha evolutiva, pois não representa a totalidade dos trabalhos realizados e orientados e nem pode delimitar sua atuação em outros campos e espaços, como no diálogo, formação e capacitação com os grupos, programas e instituições estudadas. A Parte II do livro é uma coletânea de homenagens proferidas por colegas de trabalho e estudantes à Claudia e é composta por sete textos. O primeiro deles é de Denise Jardim, que compartilha a coordenação do NACi com Claudia e ressalta a dinâmica coletiva de pesquisas e debates nesse espaço. Seguindo, o texto de Miriam Grossi, que discorre sobre parentescos afetivos e teóricos, posto que não foi uma pupila de Claudia, mas esteve com ela em diferentes momentos e diálogos na prática profissional das duas.
Posteriormente, temos textos de Patrice Schuch, Jurema Brites e Carmen Rial novamente. Nesta segunda parte, Patrice, hoje colega de departamento de Claudia, descreve a importância do aprendizado em realizar etnografia “corpo a corpo”, ensinada por Claudia, quando teve o privilégio de sua companhia em pesquisa nos fóruns e varas da infância e da juventude. Também Jurema chama atenção ao afeto e generosidade presentes na orientação de Claudia, com o exemplo de escritas conjuntas. Já Carmen rememora as primeiras aulas de Claudia na UFRGS, suas dificuldades com o português e o chamado que fez aos alunos para realizarem pesquisas etnográficas no entorno da universidade, bem como sua capacidade de retirar os alunos de suas zonas de conforto, com inteligência e Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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sagacidade.
A parte II também contempla os textos de Claudia Turra, que opta por uma escrita polifônica, conjugando respostas de vários ex-orientandos à seguinte pergunta: quais as marcas da Claudia Fonseca na tua formação e vida profissional? Juntamente a uma narrativa visual em que podemos passear e imaginar os espaços, as relações e aventuras que Claudia vem percorrendo em suas caminhadas. Também o texto de Vitor Simonis Richter, orientando de doutorado de Claudia, que nos presenteia com uma narrativa emocionante acerca da imersão ao estilo fonsequiano de ser e fazer pesquisa.
A terceira e última parte da obra inicia com uma versão bricolada de entrevista realizada por Thierry Paquot com Colette Pétonnet, orientadora e indicada por Claudia como uma de suas maiores inspirações. Colette foi precursora da antropologia urbana na França e bastante influenciada por seus mestres André Leroi-Gourhan e Roger Bastide do Instituto de Etnologia do Musée de l´Homme. Desenvolveu o método de “observação flutuante”, que consiste em deixar-se levar, seguir o que o campo apresenta, até que suas regras subjacentes sejam descobertas. O livro termina com um artigo recente de Claudia, relativo ao seu último “campo” em uma ex-colônia de hanseníase na cidade de São Luis do Maranhão. Instigada por provocações em relação à produção do conhecimento antropológico (Gupta e Ferguson 1997: 39) e o desafio de esboçar linhas possíveis de aliança, Claudia propõe uma etnografia responsiva, provocadora e que multiplique diferenças.
Ao lermos a obra em questão, temos a certeza de estar conhecendo uma das trajetórias e histórias da antropologia no Brasil. É uma homenagem aos quarenta anos de pesquisa e docência desta norte-americana radicada em nosso país, mas também a apresentação de uma linhagem que tem na etnografia seu mais forte pilar; juntamente, ao propósito de levantar mais perguntas que respostas, suspeitar de nossas teorias e categorias, e não subjugar a força criativa que permeia o mundo e as práticas de nossos interlocutores.
Referências BRITES, Jurema; MOTTA, Flávia de M; (Orgs). 2017. Etnografia, o espírito da antropologia: tecendo linhagens – homenagem a Claudia Fonseca. 1 ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC. GUPTA, Akhil; FERGUSON, James. 1997. "‘The field’ as site, method, and location in anthropology". In: ______; ______. Anthropological locations: Boundaries and grounds of a field science. Berkeley: University of California Press.
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Recebida em 20 de maio de 2018.
Aceita em 26 de setembro de 2018.
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LUCIANI, José Antonio Kelly. 2016. Sobre a antimestiçagem. Florianópolis: Cultura e Barbárie. Larissa Moreira Portugal Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) lari_mportugal@hotmail.com
“Sobre a antimestiçagem” do antropólogo José Antonio Kelly é um ensaio que nasce das reflexões desenvolvidas ao longo de sua experiência com os Yanomami do Alto Orinoco, no estado do Amazonas, Venezuela. De antemão chama-se atenção para os Yanomami das comunidades de Ocano e para o fato de que mesmo havendo muitos anos de contato com a sociedade nacional e mesmo se percebendo como “virando napë”, isto é, criollo, esse processo não se contrapõe e não implica deixar de ser Yanomami.
É esta a logicidade central que forma o ensaio sobre a noção de antimestiçagem, valendo-se do aglomerado das comunidades de Ocano, bem como de comparações com outros exemplos etnográficos de povos como os Piro, Wari, Karajá e Kisedjê. O autor valese extensamente da etnografia produzida por Gow (1991) com os Piro como inspiração para sua análise sobre os Yanomami. Ao sustentar a proposta teórico-metodológica e ao evidenciar características organizacionais semelhantes, desenvolvidas por povos que estiveram em contato com missionários desde o século XVI e XVII, demonstra-se como se configuram as relações de alteridade a partir de uma dinâmica análoga à teoria do perspectivismo ameríndio, formulada por Viveiros de Castro (1998). Neste contexto, o ponto de vista intercambiável diz respeito a possibilidade Yanomami de ora ocupar uma posição índigena, ora mestiça (criolla), em uma posição relacional com os “índios
selvagens” e os brancos-mestiços “civilizados”, sem jamais fundir essas duas posições em alguma coisa intermediária. Sua proposição também remete à ideia de que os Yanomami fazem com as categorias de eu/outro aquilo que os modernos fazem com as de natureza/ sociedade, desde Latour (1993). Uma mediação análoga, porém inversa, produzindo uma
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torção diante dessas categorias substanciais, ao evocar composições de cultura/natureza em termos de eu/outro – humano/não-humano.
Estas comparações nos permitem visualizar o campo conceitual das noções de mudança e transformação nas sociedades ameríndias em meio ao cenário das relações com as sociedades nacionais. Por esse motivo o trabalho de Luciani se insere em um campo teórico que atravessa tanto as teorias amazônicas clássicas como aquelas que se propõem a analisar as relações entre povos indígenas e Estados Nacionais. Contudo, sem perder de vista as noções Yanomami e seus próprios termos para tratar das relações interétnicas.
Como base em sua narrativa sobre a cultura criolla, Luciani se apoia nas reflexões do historiador venezuelano Carrera Damas (1988) que pensa a elite criolla por vias de uma dinâmica de negação e aceitação tanto das culturas indígenas quanto das europeias em determinados momentos. Um “duplo forcejo de contrários” (Luciani 2016: 17), movimento de dois lados, que aceita e rejeita ora a cultura espanhola metropolitana, ora a indígena. Esse movimento, de fato, tinha uma maior identificação com a cultura da metrópole. Todavia, a guerra de independência surgiu como uma força que inclinou os criollos a “negar a própria origem de sua posição dominante na estrutura interna do poder” (: 18). Havia uma identificação com a população indígena, enquanto vítimas da opressão europeia, o que não necessariamente implicava que os criollos não os identificavam enquanto “selvagens, pagãos e libidinosos” (: 18) e contrários a tudo aquilo que o pensamento positivista importado da Europa considerava como sendo um caminho a se “fazer sociedade” (: 20) com suas já demarcadas convenções e regras. Nesse percurso, o autor se propõe a explorar o processo em que se estabelecem dois operadores lógicos que articulam a mestiçagem criolla com a noção de antimestiçagem Yanomami. O seu foco está principalmente na Venezuela, mas, por meio da análise comparativa, articula um paralelo com outras sociedades ameríndias inseridas em espaços de contato interétnico com a sociedade nacional e onde se produziram as correlações entre criollo-indígena e Estado-indígena.
Acerca da “ideologia da mestiçagem” o autor traz a noção da miscigenação tal como formulada por pensadores políticos influentes da região, que abordam uma teoria científica tanto da mistura biológica quanto sociocultural. Isto é o que tornaria possível o surgimento de uma nova noção de “pessoa” e de uma nova nação. As ideias de europeizar e embranquecer as populações andavam muito próximas à ideia de “desindianizar”. O que, nesse sentido, engendraria a unidade nacional que estava sendo posta, uma organização majoritariamente branca de moralidade cristã e portadora da cultura moderna. O indígena estava dado como um instrumento para compor a mestiçagem e desapareceria Revista de @ntropologia da UFSCar, 11 (1), jan./jun. 2019
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a partir da total integração com o desenvolvimento nacional. Nesse processo, a cultura criolla se situava em um “entre-lugar” onde a sua relação com as culturas metropolitanas e “dominadas” estava formulada por um “operador-lógico [...] nem isto, nem aquilo” (: 31).
Portanto, sendo o criollo-centrismo (produto da mestiçagem) a cultura da elite política, sua perspectiva se identificava com o Estado e logo se apresentaria como a cultura nacional, confirmando “a teoria da fusão histórica do múltiplo ao Um” (Luciani 2016: 32) na qual as relações de alteridade seriam sobrepostas pela identidade da nação em um processo consumptivo. A partir desse delineamento para explicar a construção criolla, o autor se dedica a refletir sobre a revolução bolivariana e a constituição multiculturalista, implementada em 1999 na Venezuela, cujo objetivo primordial era a renovação do discurso oficial sobre a identidade e a cultura nacionais, resgatando assim as culturas indígenas e afrovenezuelanas do esquecimento.
Identificados e incluídos como cidadãos, estes povos passaram a fazer parte dos programas governamentais. E, em relação a isso, o autor pondera não haver dúvida de que muitas comunidades se beneficiaram dos programas, embora seja importante destacar a forma como tais ações foram implementadas, levando-se em conta principalmente o caso Yanomami do Alto Orinoco. O que conduziu as políticas públicas do Estado foi a pressão pela “inclusão social”, movimento que, na tentativa de incluir, acabou por deslegitimar as organizações sociais e os modos de vida desses povos. Além disso, quantidades irrisórias de terras indígenas foram reconhecidas, o que demonstra o conflito dado entre interesses econômicos e a demarcação dessas terras. Isto é, pode-se conceder “cultura” aos indígenas, mas nunca “sociedade”.
A fim de contrastar a mestiçagem criolla com a noção de antimestiçagem dos Yanomami, o autor apresenta características da organização social destes últimos, assim como suas transformações históricas e a forma como a hibridação se constituiu no contexto em que estão inseridos. É desde o trabalho de Bruce Albert (1985) sobre a organização social Yanomami que se compreende o “espaço convencional sociopolítico Yanomami” por meio de categorias como amizade e inimizade, trocas matrimoniais, relações com comunidades inimigas ou potencialmente inimigas, xamanismo, noções de doença e morte causada por seres humanos e não-humanos. Um ponto importante a ser mencionado é o princípio da natureza cambiante dessas relações referidas, em que aliados podem vir a ser inimigos e inimigos podem vir a ser aliados. Os processos transformacionais Yanomami, analisados por Kelly Luciani, referem-se a dois aspectos principais: “seu corpo e habitus cambiante e a aquisição do
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conhecimento criollo” (Luciani, 2016: 48). Por um lado, os Yanomami mencionam o uso de roupas, alimentação e obtenção de bens manufaturados da cultura criolla. Por outro, remetem-se a leitura, escrita do espanhol e uso do dinheiro para demonstrar como aprenderam a lidar com os criollos em trocas econômicas e políticas. Ambos os aspectos são sobre as adições de elementos e relações sobre as quais uma socialidade criolla pode ser realizada. Desse modo, os Yanomami referem-se pelo termo de napëprou, “virar napë”, virar “criollo”, evocando uma dinâmica que se estrutura naquilo que o autor designa como o eixo transformacional napë, organizada não pelos operadores aliado-inimigo, mas por meio de “diferentes graus de transformação em napë” (: 49) No que tange à semântica do termo, o autor traz registros de relações em que este pode ser aplicado. Por exemplo, as comunidades que vivem dentro da floresta, podem ser consideradas Yanomami “de verdade” em contraste com as comunidades do Orinoco que vivem mais próximas da cidade, rio abaixo. Em relação aos próprios Yanomami, os vizinhos Yekuana podem ser vistos como napë. Quando o contexto envolve pessoas nãoindígenas, todos os índios podem ser ditos Yanomami. Sendo assim, podemos entender napë enquanto uma posição relacionalmente constituída, “um conceito estritamente relacional, que se refere a como uma pessoa ou grupo se posiciona em relação a outro(a).” (: 49). Em seu campo semântico estão ainda contidas as mudanças históricas nas relações com os não-indígenas, de inimigos a fontes de corpos e conhecimentos criollos. Para o autor, essa condição possibilita um tipo de dualidade yanomami/napë ao performar (não no sentido teatral) e assumir uma posição, destacando um “lado” da dualidade e ao mesmo tempo eclipsando outro. Nesse processo, o autor propõe o paralelo que o dispositivo possui com a cultura criolla que, por sua vez, também é relacional. Mas nesse caso, do ponto de vista Yanomami, a natureza posicional de categorias como “indígena” e “branco” que é evidenciada. Diferentemente do modo criollo de ocidentalizar o Outro, fazendo-se uso da ideologia da mestiçagem e transformando o Outro em um Eu, a relação Yanomami envolve uma incorporação da diferença e de uma outra socialidade ao transformar o Eu em um Outro, sem consumir as diferenças ou fundi-las em uma coisa só. Essa ideia está relacionada com a concepção de personitude fractal, como já foi elaborado anteriormente pelo autor em outros trabalhos, indicando a noção de fractalidade para pensar a pessoa ameríndia em diferentes níveis (intrapessoal, interpessoal e intergrupal). Nesse sentido, a “antimestiçagem” Yanomami pode ser entendida como uma forma de organização social e também política produzida pelos povos indígenas no contexto de relação com o Estado e a sociedade nacional. Demonstra-se assim o seu caráter contra
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a fusão centrípeta do Estado, que transforma as alteridades em relações estritamente unilaterais, de forma similar à proposição de Pierre Clastres (1988) em sua antropologia política de um dispositivo indígena contra-Estado. Portanto, em uma leitura clastreana, a cultura criolla e a mestiçagem seriam “a favor do Estado” e “contra a sociedade primitiva”, enquanto a antimestiçagem dos Yanomami seria um dispositivo “contra o Estado” e “a favor da sociedade primitiva”. Nas reflexões finais, o autor pondera sobre as características contraditórias da revolução bolivariana, as suas raízes e os problemas do multiculturalismo e das políticas “a favor” das identidades culturais disseminadas pela América Latina. Essas que acabam por negligenciar e negar o plurisocietalismo (outras formas de experienciar o pensamento e o território) e as demandas dos povos indígenas que continuadamente esbarram nos projetos desenvolvimentistas propostos pelo Estado-nação, através de uma história que proclama a consumpção de muitos (povos indígenas e afro-americanos) em Um. A partir disso evidencia-se a problemática histórica que a política do multiculturalismo impõe ao se propor como solução para questões como a valorização de identidades tradicionais, mas de modo a ignorar formas de organização que não se ajustam às finalidades do Estado, enquanto dirigente de um projeto de nação unificada a caminho do “desenvolvimento”.
Em favor de uma reorientação ética frente a essas problemáticas, ou um ajuste de contas da cultura criolla com seu “dominante-cativo”, Luciani sugere um imperativo necessário em meio às relações criollo-indígena e Estado-indígena. Que as elites criollas visualizem, de fato, a impossibilidade de mobilizar, preservar ou promover a cultura indígena sem que permitam a estas fazer sociedade ou as pluralidades de manifestação organizacional/territorial no seio de suas nações. E ainda, tomar a consciência do desequilíbrio de poder no qual o Estado leva vantagem, de forma que se abra o campo de possibilidades para que os povos indígenas organizem a partir de suas próprias concepções, o projeto de futuro que lhes pareça mais adequado. Posto que, diante dessa dinâmica colocada no fundo de “revoluções e ações culturalistas”, as formas indígenas de transformação e hibridação apontam para uma instigante contraproposta diante das narrativas neutralizantes e históricas da cultura criolla. Os Yanomami do alto Orinoco nos trazem um outro tipo de socialidade ao lidar com as trocas e com o Outro: enquanto o Estado faz um movimento que engloba para anular, os Yanomami, em suas “relações cambiantes”, produzem diferenças.
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Referências LUCIANI, José Antonio Kelly. 2016. Sobre a antimestiçagem. Florianópolis: Cultura e Barbárie.
ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps de cendres: Représentation de la maladie, système rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Amazonie brésilienne). PhD dissertation, Université de Paris X. CLASTRES, Pierre. 1974. La société contre l’état: recherches d’anthropologie politique. Paris: Éditions de Minuit. CARRERA, Damas German. 1988. El dominador cautivo. Caracas: Grijalbo.
GOW, Peter. 1991. Of mixed blood: Kinship and history in Peruvian Amazon. Oxford: Oxford University Press.
LATOUR, Bruno. 1993. We have never been modern. Catherine Porter (trans.) Cambridge MA: Harvard University Press.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1998. Cosmological deixis and Amerindian perspectivism. Journal of the Royal Anthropological Institute, 4, pp. 469–488.
Recebida em 18 de abril de 2018.
Aceita em 30 de setembro de 2018.
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Nominata de Pareceristas deste número Camila Mainardi (UFG)
Luis Eduardo de Vasconcelos Figueira (UFRJ)
Celia Gouveia (UFF)
Mariana Kawall Leal (San Francisco State University)
Carlos Cesar Leal Xavier (UFRJ) Carlos Eduardo Costa (UFSCar)
Christiana Cabicieri Profice (UESC) Dayana Zdebski (UFSCar)
Edgar Teodoro da Cunha (UNESP)
Maria Aparecida Bergamaschi (UFRGS)
Maria Rosário Gonçalves de Carvalho (UFBA) Marianna Lahr (UFSCar)
Marina Cardoso (UFSCar)
Noelia Enriz (Universidad de Buenos Aires / CONICET)
Edmundo Peggion (UNESP / UFSCar)
Patrícia Begnami (FHO-Uniararas)
Guilherme Passamani (UFMS)
Rogério do Pateo (UFMG)
Elisabeth Pissolato (UFJF)
Fernanda Bittencourt Ribeiro (PUCRS) Igor Machado (UFSCar)
Iracema Dulley (UFSCar)
Izadora Acypreste (UFSCar)
Jacqueline Ferraz de Lima (UFSCar) José Miguel Nieto Olivar (USP)
José Valdir Jesus de Santana (UESB) Karina Kuschnir (UFRJ)
Lígia Rodrigues de Almeida (Funai) Lindomar Albuquerque (Unifesp) Lucas Lima (Unicamp)
Pedro Lolli (UFSCar)
Renan Pereira (UFSCar)
Silvana Nascimento (USP)
Talita Lazarin Dal Bó (USP) Tatiane Klein (USP)
Valéria Macedo (Unifesp)