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Angelo dos Santos, o Saci Trilheiro

Por Vin Cius Neves

Angelo dos Santos, mais conhecido nas redes sociais como ‘Saci Trilheiro’, é um morador de Águas Claras que não é avesso a desafios. Geógrafo, ele coleciona aparições na imprensa por fazer sucesso nas redes com seu perfil que une o famoso personagem do folclore brasileiro com a prática de trilhas nas mais belas paisagens da natureza. Nas postagens ele registra, para os seus mais de 24 mil seguidores no Instagram, as trilhas que encara pelo Brasil e mundo, mesmo enfrentando e superando as dificuldades de percorrer as diferentes distâncias com apenas uma perna. No fim de cada desafio, ele mostra a vista do topo para quem acompanha suas jornadas pela Internet. O esportista sempre se sentiu confortável quando cercado pela natureza, mesmo antes da doença que o tirou a perna. Cresceu em um sítio no interior do Paraná, no município de Ponta Grossa. Concluiu os estudos na cidade grande, já que o ensino médio não era ofertado na pequena cidade interiorana em que cursara o básico. Jogava como goleiro nas partidas de futebol entre amigos, frequentava cachoeiras e subia colinas. Um estilo de vida bem ‘menino de sítio’, provavelmente bem diferente daquela vivida por muitos jovens moradores de Águas Claras. Essa era a rotina até os 17 anos, quando Ângelo começou

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Folha De Guas Claras

ISSN 2357-8823

Editor: Alcir Alves de Souza (DRT 767/80)

Reportagem: Rafael Souza (DRT 10260/13)

Endereço: SM IAPI ch. 27 lotes 8 e 9 71070-300 • Guará • DF

Comercial: Vanessa Castro - (61) 986191821 a sentir dores generalizadas no meio da perna, uma dor que não era apenas muscular. Após o inchaço da perna e do lado esquerdo da virilha, médicos investigaram os sintomas, o que resultou na família procurar atendimento em Curitiba, a capital do Paraná. Após um encaminhamento para um médico oncologista, as suspeitas em volta da doença misteriosa começaram a despertar alerta em Angelo, família, amigos e médicos.

Foi retirado um tumor em uma cirurgia complexa. A tentativa de retirar o tumor causou danos irreversíveis, danificando artérias e vasos. Foram quarenta e cinco dias de cama, dor e febre. Na capital paranaense, ficou internado operado, em junho de 1994, para retirar o volumoso tumor. A complexidade da doença fez com o que médico pedisse autorização à mãe para remover a perna. No entanto, quando o diagnóstico de câncer agressivo veio, a opinião de Angelo e família sobre a amputação mudou. “Como naquela época não tinha Internet, a gente nem tinha como pesquisar esses nomes esquisitos de doenças no Google”, brinca. “Não havia referências para sabermos como é a vida de uma pessoa amputada ou como vive um amputado. Que tipo de prótese usa? Quem pode usar a prótese? Como vai ser para arrumar uma namorada? Foram dúvidas que vieram à minha cabeça com 17 anos”, conta o geógrafo trilheiro.

Em agosto de 1994 a cirurgia foi. “Foi um momento bem complicado”, diz. “Mesmo eu tendo concordado, foi difícil acordar e não ver a própria perna”. A cirurgia solucionou o problema das dores. “O que me fez superar a perda da perna foi a possibilidade de usar uma prótese”, uma expectativa que acabou sendo frustrada quando ele descobriu que as próteses não serviam para quem perdeu 100% da perna (a perna inteira e um pedaço da pelve). “Não sobrou nenhum pedaço da perna para servir de apoio para a prótese”, explicou. A solução foi usar um modelo de prótese que se prende na cintura, que chegou a usar no começo de 1995, mas que se provou decepcionante. “Nesse

Circulação

momento eu comecei a sentir um certo arrependimento [de ter aceitado a amputação], mas eu sabia que tinha que seguir” disse e emendou que continuou estudando para vestibular e conheceu sua primeira esposa. Pouco tempo depois começou a trabalhar na então empresa de telecomunicações do Paraná. Sempre se mantendo em movimento.

Em 1997, começou a sentir novos e preocupantes sintomas: suor, febre e dor e inchaço na perna direita. “Tudo da cintura para baixo”. Uma nova bateria de exames foi feita e o diagnóstico foi que o câncer tinha voltado, na mesma região onde tinha a cicatriz da retirada da perna. “Não deu metástase, foi apenas que ficou alguma célula cancerígena sem ser tirada e que cresceu de novo”, relembrou o trilheiro. Foi difícil suportar a notícia, ainda mais pela segunda vez. “Pensei que ia morrer”. O médico disse a ele que se tratava de uma doença muito agressiva e a radioterapia ia amenizar seus efeitos, mas as mais de quarenta sessões trouxeram complicações renais – o obrigando a usar uma bolsa de colostomia e nefrostomia, um cateter para facilitar a saída da urina. O câncer também afetou o intestino e a bexiga.

Se recuperando da segunda notícia do câncer, Ângelo se casou em 1998, o que o deu novas forças para continuar forte durante o tratamento agressivo. Após essa etapa, a solução encontrada pelos médicos foi optar por um procedimento de ostomia em Ângelo – cirurgia realizada para construir um novo caminho para eliminar a urina ou as fezes. Nesse período de adaptação, Angelo disse ter se motivado a cursar o nível superior após presenciar a formatura de uma colega. “Foi a partir daquele dia que comecei a estudar para fazer o vestibular para Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Foi um ponto de vira- da na minha vida”, diz o hoje geógrafo e funcionário público.

A Folha de Águas é um produto da Editora Jornal do Guará, há 34 anos no mercado de comunicação comunitária. A edição impressa semanal da Folha de Águas Claras e distribuída aos sábados gratuitamente no comércio da cidade, em padarias, prédios comercias, agências bancárias e grandes condomínios residenciais. Editada por jornalistas profissionais compromissados com o desenvolvimento da cidade, a Folha de Águas Claras acredita no protagonismo do jornalismo comunitário.

Ele disse que sofreu muito para aceitar a própria imagem e se sentia desconfortável até em olhar o próprio reflexo em uma vitrine de loja, por exemplo. “Eu tinha dificuldade de me ver como os outros me viam”, declarou.

Recome O

Assim como muitos, Ângelo foi atraído à capital federal devido à oferta de concursos públicos. Uma amiga o alertou que, no início de 2006, estava ocorrendo uma seleção para o Departamento Nacional de Produção Mineral, com uma vaga para pessoas com deficiência física (PcD). Ele relembra ter recebido a notícia da aprovação no certame com surpresa – e um certo ‘arrependimento’ de ter feito a prova e agora ter que se mudar para a desconhecida capital federal. “Eu tinha um Ford KA adaptado na época e coloquei tudo que eu tinha dentro e vim para Brasília”.

Se adaptando na cidade, conheceu a esposa no emprego e começou a praticar canoagem e remo no Lago Paranoá, preservando suas tradições de se manter conectado à natureza e ao esporte.

‘SACI TRILHEIRO’ E AS PAZES COM O APELIDO

Por volta do início dos anos 2000, a TV Globo começou a exibir a série Sítio do Pica-pau Amarelo, a quinta adaptação televisiva da obra de Monteiro Lobato. Com a popularidade do programa, foi inevitável que algumas crianças fizessem a associação e comparassem Angelo com o personagem folclórico Saci Pererê – que prega peças nos moradores do sítio enquanto pula em sua única perna e fuma seu cachimbo. “No começo eu não gostava, achava que era preconceito”, relatou. “Aquilo não me fazia muito bem” e recorda: “Geralmente eram os pais que ficavam bravos com os filhos devido às brincadeiras”.

Foi quando, por volta de 2017, que as redes sociais começaram a chamar a atenção do geógrafo e ele renomeou o perfil como ‘Saci Trilheiro', para registrar as fotos e vídeos de suas aventuras em trilhas e mensagens positivas. “Isso ajudou minha autoaceitação, aquilo que antes me machucava agora me ajuda”, relatou. O retorno positivo dos seguidores aos conteúdos de desafio, motivação e informação sobre as condições de saúde que o trilheiro já enfrentou foram rapidamente aceitos pelo público.

Agora está em seus planos superar a marca dos 23 km percorrido em trilha em uma aventura ainda mais desafiadora para testar o próprio limite. “Às vezes as pessoas olhavam para mim e duvidavam da minha capacidade, eu percebia que as pessoas achavam que eu não conseguia”. E acrescentou: “Só tem um jeito de saber: indo e testando. Saber meu limite, chegar perto dele”. Foi quando surgiu a ideia de fazer o rapel na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, e o pico da Bandeira, o ponto mais alto dos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais.

Palestras Motivacionais

“Eu faço um paralelo entre as trilhas e a felicidade. As pessoas acham que ser feliz é quando elas têm o emprego dos sonhos, quando compram uma casa ou quando adquirem um carro, daí a pessoa vai ser feliz. Eu penso que não, pois como eu gosto muito de trilha, o próprio ato de caminhar faz parte do processo, eu tô curtindo a trilha! A gente tem que curtir o caminho, chegar no topo é só o destino”.

“As tristezas que a gente passa, quando a gente olha para o passado, é meio que ressignificar o passado, porque eu lembro quando perdi a perna e quando eu vejo que estou aqui hoje – e tudo que aconteceu depois disso – me faz querer poder voltar no tempo e falar ao meu eu do passado para ficar tranquilo, que eu consigo superar tudo aquilo”. Com essa mentalidade, Angelo dos Santos se prepara para ministrar palestras motivacionais.

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