Gastronomia Paraense

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2.500 espécies de árvores e 30 mil variedades de plantas compõem a floresta tropical mais extensa do horizonte conhecido pelos homens. Ela abriga em torno de 300 espécies comestíveis, frutas de sabor único e feitio exótico. Calcula-se, ainda, que existam 150 variedades de cogumelos, 200 de mel silvestre, 90 de pimenta nativa e 2.000 de ca-

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Amazônia é o maior quinhão de vida do

cau selvagem. Variedade não é café-pequeno na Amazônia. E ela se

planeta. No cardápio dessa biodiversidade,

põe à mesa, com simplicidade ou requinte, na culinária do Pará. Uma

há cerca de 30 milhões de espécies animais e vege-

arte que ganha cada vez mais visibilidade no mundo todo, atraindo

tais. É o equivalente a um quinto de toda a biodi-

paladares tão diversos quanto a sua própria infinidade de opções.

versidade do mundo. As espécies comestíveis incluem peixes (cerca de

E é dessa mistura que reina, soberana, uma cozinha inigualável, com

2 mil tipos que deslizam pelas veias da maior bacia hidrográfica da ter-

herança indígena, lusa e africana, hoje reconhecida pelos grandes

ra), frutas, tubérculos, amêndoas, verduras e uma infinidade de ervas. As

chefs de cozinha brasileiros e europeus. Venha conhecê-la. Está servido?

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e onde vem aquele gostinho atrevido, que transforma cada degustação em uma inesquecível experiência de vida? Para entender as origens da culinária paraense só há uma receita: juntar ingredientes do passado e do presente e acrescentar uma pitadinha de futuro nessa viagem repleta de surpresas agradáveis. A culinária é patrimônio cultural do Pará de todos os tempos. Relatos de 1618 já destacavam a diversidade de animais silvestres, peixes, frutas, plantas e as técnicas culinárias dos índios tupinambás. No século XVIII, o naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira registrou o consumo do pirarucu moqueado e do peixe-boi em salmoura. Nos idos de 1700, açaí, tacacá, maniçoba e mandioca caíram no gosto do jesuíta João Daniel e do cientista francês Charles de la Condamine. No século XIX, os cientistas ingleses Bates e Wallace descreveram o tucupi.
Tudo isso, junto e misturado, miscigenou o jeito paraense de comer e fazer comida. Com a chegada dos portugueses, vieram o sal, os legumes e as verduras. O peixe ao tucupi passou a ser cozinhado com tomate, ovo e batata, dando luz à caldeirada. A influência africana, trazida pelos escravos, se apresentou nas técnicas de preparo e conservação, assim como na introdução de novos temperos que enriqueceram a culinária local. No início do século XX, os migrantes nordestinos que vieram trabalhar nos seringais trouxeram a carne de sol e o jabá, também conhecidos como carne-seca e charque - carnes desidratadas e salgadas que se tornaram complemento do açaí com farinha de tapioca.
E de agora em diante, a culinária paraense está na ponta da língua dos melhores chefs de todo o mundo, provocando água na boca em paladares de todas as línguas.

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ngana-se quem pensa que a culinária do Pará é uma bomba calórica. Nessa cozinha ancestral, tudo faz bem se não houver concessão ao exagero. O carboidrato da mandioca está na farinha, tucupi e maniva. No acompanhamento de diversos pratos, a pimenta é fonte de vitaminas e fibras. As frutas se destacam pelo alto nível de proteínas. Um exemplo é a castanha-do-pará, conhecida como a “carne vegetal”. O uxi tem mais vitamina B do que muita frutinha badalada por aí. Na polpa de buriti reina a vitamina A (caroteno). O açaí é energético e

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tem efeito antioxidante, além de ser rico em proteínas, fibras, lipídios, vitaminas, fósforo, ferro e cálcio.
O pescado, nos rios sob influência do Atlântico, vem repleto de viço – e ômega 3. Caldeirada, maniçoba, pato no tucupi, tacacá, caruru, açaí com peixe frito... Só de ouvir o nome destas iguarias, muito paraense lambe os beiços. As receitas destes pratos atravessaram os tempos, passando de boca em boca, de tataravós para tataranetos.
Assim, ao longo dos séculos, os saberes culinários das populações amazônicas vêm formando um conjunto de conhecimentos tradicionais que garantem o exotismo e a singularidade da cozinha paraense. Uma culinária que apresenta grande herança indígena e vem carregada com um forte tempero luso-africano. Mas sobretudo, resguarda a nobreza da mistura, o caldo de cultura que é o molho tipicamente paraense.

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acaxeira, mandioca mansa, mandioca brava, maniva, mandioca amarga são alguns termos do vocabulário “papa-chibé” para designar algumas das 250 variedades da raiz nativa do Estado. A mandioca serve de base para a gastronomia paraense e possui importância cultural e histórica que transcende os múltiplos usos alimentares.
O cultivo se iniciou, no mínimo, cerca de mil anos antes da era cristã. Versátil, da mandioca nada se perde. Da folha até a raiz, tudo é aproveitado. E ela vira goma e tucupi no tacacá, tapioca e beiju no café da manhã, bolo, mingau e até bebida alcoólica. Mas a farinha é soberana pela própria natureza da mandioca, um alimento para todos os gostos.

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farinha é cheia de história. Em livro publicado em 1578, o cronista francês Jean de Léry descreve a maneira peculiar da população nativa comer o produto: “Tomam-na com os quatro dedos na vasilha de barro ou em qualquer outro recipiente e a atiram, mesmo de longe, com tal destreza na boca que não perdem um só farelo. E se nós franceses os quiséssemos imitar, não estando como eles acostumados, sujaríamos todo o rosto, ventas, bochechas e barbas.” O jesuíta João Daniel destaca o produto na alimentação dos índios e dos colonos portugueses. Rica em carboidratos, ela complementava a dieta composta pelas proteínas

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animais obtidas na caça e na pesca. O plantio da mandioca era feito pelos homens. A colheita e o preparo, pelas índias. A farinha paraense tem várias texturas, cores e sabores. A farinha-d’água é feita com mandioca amarela e a raiz é deixada na água. Já a farinha-seca, preparada com a mandioca branca, não fica de molho. Atualmente, o Pará lidera a produção artesanal da farinha de mandioca. O IBGE indica que, em 2011, a produção atingiu 5 milhões de toneladas de raiz, gerando 200 mil empregos no meio rural. Mas é no dia a dia, alimentando e compondo pratos típicos, que a farinha se destaca como a indispensável companheira de todas as “boias”.

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aroma acre e o sabor ácido do tucupi, ambos inconfundíveis, ultrapassam as fronteiras da Amazônia. Com o tempero dele, chefs de cozinha estão criando uma variedade de pratos inéditos e sofisticados. De um simples “Risoto de camarão e jambu” ao portentoso “Nhoque de mandioca com tucupi, cogumelos e queijo de cabra”, há mil e um engenhos culinários em que prevalece o acordo entre o apetite e a imaginação promovido por esse molho inigualável. O tucupi é extraído da mandioca brava. A raiz é descascada, ralada e espremida no tradicional tipiti. O utensílio é um tipo de prensa cilíndrica cujo trançado de taquara o torna retrátil como uma mola. Depois de retirado, o sumo “descansa”, permitindo a separação da goma (amido) e do tucupi. Nesta fase inicial, ele é altamente venenoso. Para retirar o ácido cianídrico ainda existente, o líquido é fervido por várias horas. É um molho denso e amarelado, mais ácido ou menos ácido de acordo com a origem da mandioca. Seja qual for o gosto do freguês, as duas variedades de tucupi estão presentes na mesa do paraense. Ambas são utilizadas para temperar carnes de sabor acentuado, como peixe, leitão e paca. Mas é no prato mais famoso da culinária paraense, o pato no tucupi, que o tucupi vira estrela de primeira grandeza. A ave é assada, destrinchada e fervida levemente no molho do tucupi, tendo como ingredientes o alho, a pimenta-de-cheiro, chicória, cheiro-verde, alfavaca e jambu. Temperos semelhantes também são usados na preparação do tacacá. Neste caso, com o acréscimo da goma de mandioca e camarões, tudo servido em uma cuia para a degustação. Nos dois casos, a isca de todos os paladares é o tucupi. O soberano tucupi.

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e o pato no tucupi é o prato nobre da culinária paraense, a maniçoba é a iguaria mais popular. Ela também é encontrada no restaurante refinado, mas é nas barraquinhas de comida de rua e no panelão dos subúrbios que a maniçoba bate ponto. Em meio ao caldo verde-musgo das folhas moídas da mandioca, são cozidas carnes suínas e bovinas. Tem toucinho, chouriço, linguiça e charque. Servida

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fumegante com arroz branco, farinha e, para os que apreciam, pimenta, a iguaria paraense, com cheiro de mato, invade narizes e o reflexo palatal inunda de saliva a boca. O gosto selvagem, concedido pelas folhas de mandioca fervidas por sete dias e temperadas com alho, sal e louro, abre qualquer apetite. A maniçoba é uma rica fonte de cálcio, sódio, ferro, vitaminas C e A. É degustada com prazer por quem é tomado com surpresa ou tradição por esse caldeirão de sabores.

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Ilha do Combu, localizada nas franjas do Rio Guamá, é o berço de uma iguaria que está na berlinda da culinária paraense. O chocolate artesanal, que se tornou referência internacional de qualidade, é fabricado desde 2006 pela ribeirinha Izete Costa - a dona Nena - com a ajuda das filhas Patrícia e Viviane. Ele é vendido em forma de barras, que podem ser até 100% cacau, em pó, brigadeiro de colher e bombons regionais, como de bacuri e cupuaçu. Os doces ficaram tão famosos, que Nena recebe pedidos de diferentes estados brasileiros. Gigantes no mercado de chocolate, como a Harald/ Melken e a belga Callebaut, já incluíram as amêndoas amazônicas em seus portfólios. Na linha Unique, que aponta na embalagem até as coordenadas geográficas de onde vem o cacau, a Harald lançou o chocolate 70% cacau, produzido no Pará. Já a Calle-

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baut apostou em um blend que inclui as amêndoas amazônicas no chocolate 66,8% cacau de origem do Brasil. O chef paraense Thiago Castanho usa o chocolate de dona Nena em suas criações desde 2010 no restaurante Remanso do Bosque, 34º melhor da América Latina no ranking da revista britânica “Restaurant”. Mas o sucesso não afasta dona Nena das origens. Ela bota banca toda quarta-feira e aos sábados, a cada 15 dias, na Feira do Produtor Orgânico, em Belém (PA). Lá oferece a barra de chocolate artesanal e os quitutes feitos a partir dela. O cacau é plantado em uma agrofloresta, em um sistema que permite produzir alimentos sem derrubar a mata. Além do chocolate, oferece também açaí, pupunha e cupuaçu – tudo extraído da sua pequena propriedade no Combu. “Com sabor específico, elegante, com notas terrosas e rústicas, o cacau produzido nessa ilha é uma das maiores revelações de minhas recentes viagens à Amazônia”, elogia o chef Alex Atala. Agora, o produto e sua produtora já viraram atração turística e é mais quem quer conhecer a fantástica fábrica de chocolate encravada na Amazônia.

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mais popular fruta paraense é também um dos alimentos principais da população local, é um prato cotidiano por essas bandas, e muitas vezes substitui uma refeição. O açaí pode ser acompanhado por peixe frito, charque ou camarão salgado, farinha de mandioca ou de tapioca. Alguns ainda adicionam açúcar à mistura. A frutinha paraense também é ingrediente de sorvetes, picolés, geleias, bolos, mingaus, bombons, pudins, licores e até de cerveja premiada. Há cerca de 3.000 pontos de venda de açaí espalhados pela grande Belém. Os pontos são facilmente identificados por uma bandeirinha vermelha colocada na

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frente dos estabelecimentos. As máquinas de bater açaí derramam cerca de 470 mil litros do “vinho” por dia. Tem do “grosso”, do “médio” e do “ralo”. Fora do Pará, o açaí virou energético pós-academia, muito popular entre os atletas, essa forma de consumo parece muito pouco com o açaí que os paraenses tomam. A frutinha também frequenta restaurantes de luxo, faz ponto em pratos de porcelana e inscreve-se em “menus” sofisticados: “Creme de açaí com goiaba frapet”, “Salmão em crosta de castanha-do-pará e polenta de açaí”, “Mousset de açaí com queijo Roquefort”. Com altos níveis de vitamina B1, potássio, cálcio, fibras, ferro e fósforo, tem poder antioxidante, previne doenças cardiovasculares e retarda o envelhecimento. Por isso, hoje, pode-se falar de “boca cheia”: o açaí paraense virou uma iguaria mundial.

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a semana que antecede o Círio de Nazaré, Belém fica envolta pelo fervor da fé e da maniçoba a borbulhar nos panelões. Das ruelas da Cidade Velha à ilha das Onças, paira uma névoa do mais suave e selvagem perfume. Na mistura de cheiros que toma conta da cidade, também se faz presente o aroma do tucupi. Na romaria do tempo, os paladares consagraram o pato no tucupi como peça da resistência desse fervor. Quando o Círio bate à porta, os patarrões (patos grandes) vivos são trazidos da região das Ilhas de Belém, Abaetetuba, Castanhal, Igarapé-Açu, Acará e Bragança. Cerca de 150 toneladas da ave são consumidas em cada Círio. O belenense, para não pagar a carestia do pato e abater os custos do “almoço do Círio”, passou a cometer um sacrilégio, inventando o “pato no tucupi genérico”, preparado com frango ou peru. As sobremesas, feitas de frutas regionais, refrescam e adocicam o paladar na forma de cremes, pudins, bolos e sorvetes. Após o final da procissão, não há devoção que resista aos pecados da gula apresentados na mesa farta do Círio. O banquete papa-chibé teve sua anunciação em 1700, quando o caboclo Plácido José de Souza saiu para caçar e garantir o “baco-baco” do meio-dia e encontrou a imagem da futura padroeira do estado. De lá pra cá, o almoço tornou-se “sagrado” com direito a maniçoba, jambu, pato no tucupi e outras tantas delícias desse manjar.

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les são companheiros inseparáveis, seja no tacacá, no pato no tucupi, caruru, vatapá, arroz paraense, caldeirada ou em outras delícias da culinária paraense. Curiosamente, a sensação tátil e olfativa provocada por eles é percebida de forma bem mais acentuada do que o sabor peculiar que possuem. O jambu, ou jamburana, faz entorpecer e formigar a língua, lábios e gengivas. A sensação inconfundível da erva refresca o palato, trazendo ao paladar uma mistura ácida, picante e salgada. O tremelicar tem como causa o espilantol, substância conhecida pelos povos indígenas amazônicos para auxiliar no combate de males como estomatites, tuberculose, malária, dor de dente, resfriado e até gagueira.

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O jambu já virou até cachaça e seu extrato é usado como aromatizante. Ao lado do jambu, a nossa pimenta-de-cheiro, frutinha oval de aroma inebriante e cor amarela, é presença constante na mesa do paraense. Ela está entre as dez pimentas mais picantes do mundo, conforme a escala Scoville. Um detalhe importante, a pimenta-de-cheiro faz o organismo liberar endorfina, substância que causa a sensação de bem-estar e estimula o bom humor. A pimenta-de-cheiro marca presença nas caldeiradas, moquecas, cozidos e até nos rituais de passagem para a idade adulta entre os jovens indígenas.

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m se tratando de frutas, a biodiversidade amazônica pode ser encontrada nas feiras e mercados públicos paraenses, já que o estado abriga uma grande multiplicidade de espécies. A aquarela de cores e o leque de aromas vindos da floresta embriagam o olfato e a visão, numa viagem dos sentidos que antecipa o sabor exótico guardado na polpa de cada semente, amêndoa ou casca de fruta. Existem cerca de 300 espécies comestíveis, incluindo o cupuaçu, açaí, biribá, abricó, inajá, mangaba, ingá, pupunha, castanha-do-pará, mucajá, bacaba, taperebá, buriti... Algumas têm gosto incomparável, como o cupuaçu, bacuri, açaí, taperebá e a pupunha. Bacuri e açaí emprestam riqueza à fabricação de cervejas artesanais premiadas no “International Beer Challenge” da Inglaterra. No conjunto, as frutas paraenses compõem um cardápio requintado de sucos, bolos, bombons, sorvetes, pudins, licores, compotas, geleias, tortas, mousses e cremes. As frutas nativas são facilmente encontradas nas várzeas e nas margens dos rios, furos e igarapés. As terras firmes também são generosas na produção frutífera. Os frutos ainda servem como alimento para as cutias, araras, antas e capivaras, que retribuem a dádiva oferecida pelas florestas, disseminando as sementes, na recíproca verdadeira da natureza.

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café da manhã cheio de pães ou o “breakfast” com ovos mexidos e bacon não se cria na mesa matinal paraense. Aqui, há iguarias doces e salgadas servidas em cuias, cestos de fibras ou pratos feitos em cerâmica de barro. Tem tapioquinha, canjica, beiju, pamonha, cuscuz, rosca de tapioca, macaxeira frita ou cozida. Mingaus há para todos os gostos: milho branco, tapioca, açaí, crueira, bacaba e banana verde. O café, preto ou com leite de búfala, deve vir junto com a pupunha untada com manteiga ou queijo coalho do Marajó. As paçocas podem ser de castanha-do-pará, castanha de caju, amendoim ou de “carne-seca”; para acompanhar, bananas. Entre os cuscuzes, há dois tipos: com farinha de milho e cozido no vapor e o de tapioca, este com recheio de coco ralado. As tapioquinhas podem ser apenas untadas na manteiga ou recheadas com queijo, presunto, canela, chocolate, goiabada, doce de cupuaçu. A tapioca ainda pode ser molhada e coberta com coco e embalada na folha da bananeira. A macaxeira cozida é de suma importância e se abre feito um creme, para ser untada com manteiga ou pitadas de açúcar. As frutas podem ser consumidas ao natural e na forma de doces, geleias e sucos. Para completar o “café almoçarado”, pão de milho, chouriço, presunto, ovos de galinha caipira, coalhada, queijo de búfala e, por fim, um bom apetite!

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turu, molusco afrodisíaco típico dos manguezais, é vendido aos litros nas regiões do Marajó e do Salgado. Ele é comido cru, refogado, no leite de coco, assado ou à milanesa. Há quem o considere mais saboroso do que a ostra. O aviú é um microcamarão encontrado no estuário do Tapajós e do Tocantins e serve para dar sustância a risotos, farofas, omeletes e sopas. O piracuí é uma farinha de peixe usada no preparo de farofas e tortas. Um dos pratos mais conhecidos feito com essa farinha é um clássico da cozinha tapajônica: o bolinho de piracuí. Além do “toc-toc” e da “casquinha”, o caranguejo é servido em um salgado conhecido como “unha”. A unha de caranguejo é provavelmente o prato mais paraense elaborado com essa matéria-prima, trata-se das patas grandes do caranguejo envolvidas em massa de batata e fritas. Algumas “unhas” são feitas

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somente com a carne do caranguejo envolta na massa. Geralmente, é degustada com molho de pimenta. Os camarões, salgados ou de água doce, também possuem cadeira cativa no mundo culinário paraense e nacional. O sabor e a variedade dos peixes apaixonam os visitantes. A diversidade possibilita ao paraense “dar-se ao luxo de escolher” (palavras do francês Paul Le Cointe), e causa surpresa aos que vêm de fora. São mais de duas mil espécies na grande bacia amazônica, que podem ser encontradas não apenas nos rios – para os que se aventuram a pescá-los, mas também nos mercados e feiras. Entre os de maior status está a dourada, que é preparada cozida, assada ou frita. Pesando até 200 kg, o pirarucu é o rei dos rios amazônicos, um dos maiores peixes de água doce fluvial e lacustre e o maior peixe de escamas do Brasil. É muito consumido em sua versão seca e salgada, com tratamento semelhante ao do bacalhau e tradicionalmente vendido em mantas nas feiras e mercados paraenses. O seu sabor é inigualável, sendo um dos ingredientes mais admirados da cozinha paraense. Peixe de águas amazônicas, o filhote pode chegar até a 50 quilos. É um dos preferidos pela consistência de sua carne de fibras firmes, branca, de sabor exclusivo e que permite o preparo de uma boa variedade de pratos, que vai da popular caldeirada até postas grelhadas. Em protesto ao desprezo aos peixes menos populares, o chef Rafhael Varela inventou “O renegado”, prato feito com tamuatá no azeite de alfavaca. A gurijuba defumada e a gó frita também fazem parte do prato “Corridinho”, receita da paraense e chef de cozinha Daniela Martins. Ninguém resiste ao sabor desses tesouros.

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maior arquipélago fluviomarítimo do mundo possui quase 3 mil ilhotas e ilhas. Estão lá os peixes, búfalos, camarão, ervas, plantas e frutas que compõem a mesa marajoara. Aromático e saboroso, o banquete começa no desjejum, com leite de búfala em forma de queijo, manteiga e coalho. As frutas desabam aos montes e podem ser utilizadas no preparo de doces, sucos e geleias. Sem menosprezo ao trigo, os beijus, mingaus e tapioquinhas de mandioca não se encabulam frente aos mais refinados pães. Com a hora do almoço, chegam também algumas delícias como o “filé de búfalo com cupuaçu”, “abafadinho de arraia” e a inexplicável “caldeirada marajoara”, com peixe, tucupi e jambu. A mesa não fica completa sem o “frito

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do vaqueiro”, feito com carne de búfalo, frita e cozida na gordura do bubalino, e acompanhada só de farinha. A sobremesa tipicamente marajoara é a união entre o queijo de búfala e o doce de cupuaçu, além de cremes de frutas regionais e outras doçuras. Após a “boca da noite”, o cheiro da pratiqueira assada na folha da bananeira e do camarão grelhado atordoa os sentidos. Não tem jeito de resistir ao aroma do avuado: peixe fresquinho saído da maré, assado na brasa da fogueira. Além de afrodisíaca, a culinária do Marajó deixa um gosto de “quero mais”.

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gastronomia revela o perfil de um povo. A miscigenação só acentuou a riqueza das iguarias. Centenas de migrantes adotaram ingredientes do Pará na preparação de seus pratos e sobremesas. Os judeus marroquinos apreciaram os peixes escamados, adequados à alimentação kosher. Libaneses e sírios substituíram o pistache pela castanha-do-pará em seus doces folhados. Famílias japonesas incorporaram peixes locais no preparo do tradicional sashimi. E na sericaia, antiga sobremesa portuguesa, o leite de búfala substituiu o de vaca. O caldeirão étnico e gastronômico explodiu a partir de 1980, quando o “restaurateur” Paulo Martins passou a entornar os sabores e ingredientes paraenses nas terrinas da culinária brasileira e internacional. O movimento culminou no

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“Ver-o-Peso da Cozinha Paraense”, o maior festival gastronômico da Amazônia, que em 2015 completou a 15ª edição. Vários chefs engrossaram a causa, como o francês Paul Bocuse, que liderou a geração da “nouvelle cuisine”; os paulistas Alex Atala e André Boccato; e o espanhol Juan Mari Arzak. Ao retornar de uma destas expedições, o catalão Ferran Adrià desabafou extasiado: “este é o paraíso e o território do futuro”. Chefs paraenses também se tornaram nomes de peso no cenário gastronômico nacional. Um deles é Thiago Castanho, autor da “Cozinha de Origem”, editado pela Publifolha. Por ocasião do lançamento, Castanho revelou ao jornal carioca “O Dia”, que o livro traduz a sua “perspectiva amazônico-paraense da culinária brasileira”. “A gente está numa geração que não é de receitas escondidas, elas não são o segredo do chef. Brinco que estamos na onda do Facebook, tudo é compartilhado”, afirmou o “restaurateur”. E acrescentou: “quero disseminar o modo de cozinhar paraense, apesar de termos ingredientes fantásticos. (...) A minha ideia é que um cara de São Paulo, por exemplo, consiga fazer uma receita em casa.” A chef Daniela Martins vem dando continuidade ao legado recebido da avó, Anna Maria Martins, e do pai, Paulo Martins. Ela comanda as panelas e fogões

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da cozinha do restaurante Lá em Casa, onde funde os segredos culinários herdados da família, aos ensinamentos apreendidos na Escola da Arte Culinária Laurent, de São Paulo, e Escola de Gastronomia de Aires Scavone, de Porto Alegre. Como um prato tipicamente paraense, nossos melhores homens e mulheres de cozinha sabem o valor da mistura que já uniu homem e natureza e hoje aproxima os mais distantes lugares do mundo no mesmo e delicioso paladar.

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