Discurso Lacan aos AE e AME

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DISCURSO

DE JACQUES LACAN AOS

FREUDIENNE

DE PARIS,

EM

6 DE

AE E AME

DEZEMBRO

DE

DA ECOLE

1967

(VERSÃO ORAL)I

Tradução: Analucia Teixeira Ribeiro.

A imisção, operada no ano passado, da função do ato no que eu teria chamado de nossa rede, se o termo não parecesse agora reservado a um outro emprego: digamos no texto de que é tramado meu discurso, essa imisção do ato era pois necessária para que fosse publicada minha Proposição de 9 de outubro, que só será um ato a partir de suas conseqüências. As primeiras a serem produzidas são de natureza a esclarecê-Ia, se se proceder por ordem. Eu o enderecei a um círculo, o dos presentes, não escolhidos ad hoc, mas já constituído segundo aquilo que preside a qualquer agregação social: toda classe caracteriza-se aí pelo fato de que nela se é mais igual do que em outros lugares. O humor que se encontra nessa maneira de se exprimir, deveria eliminar uma desvantagem prática. Qualquer que seja a aproximação da triagem da qual saíram as duas classes dos AE e AME, é preciso aceitá-Ia, para que elas funcionem como tais. Tanto mais que essa triagem, ou seja, o anuário de 1965, é o primeiro produto da Escola tomada como tal, aquele sobre o qual cabe a pergunta se deve permanecer o único a trazer sua marca. Essa triagem supõe uma referência à experiência de cada um, enquanto avaliada pelos outros. Uma vez operada essa triagem, qualquer uso dessas classes implica a igualdade suposta e a equivalência eventual, qualquer uso cortês, bem entendido. É inútil pois nos enchermos os ouvidos com os direitos adquiridos na "escuta", como se diz, com as virtudes do controle e com o respeito pela clínica. Qualquer um que pretenda representá-Ios, não pode se vangloriar disso, pelo menos aqui, mais do que qualquer outro do seu nível. Em que (que as pessoas me desculpem por associar a isso iniciais fáceis de serem preenchidas), em que a Sra. A. e a Sra. D. seriam desiguais do Sr. P. e do Sr. V, no que se refere à escuta, aos controles e à experiência clínica que têm em seu ativo? Se isso, penso eu, que ninguém sonharia em contestar aos outros, admite que prevaleça em alguns uma estruturação mais analítica, é preciso saber dizer de onde parte essa estruturação que ninguém poderia pretender que seja um dado - primeiro ponto; e segundo ponto: fazer com que essas classes sirvam, elas próprias, para pôr à prova essa repartição - de modo que seu efeito prevaleça para o que virá no futuro. Que a distinção desses tempos não tenha sido respeitada até agora, é precisamente o que prova que se possa levantar a questão de uma experiência qualificada. E dizer que isso é privilégio de nossa Escola é, evidentemente, falso.

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A invocação maciça de não sei qual garantia superficial (não me chegou o eco de que venham a fazer a ameaça de algum incidente próprio a repercutir na imprensa? Saibam pois que se a coisa ocorrer, ela não terá surpreendido todo o mundo), essa invocação só tem alcance como intimidação, não como ordem. O que é impróprio não é que se atribua a si mesmo, em particular, uma superioridade de escuta, nem que se entenda as costas aos ataques a que toda terapêutica está exposta, por suas margens legais, é que essas pretensões e esses temores sirvam de argumentos. Quando aquilo de que se trata é da experiência, pela qual temos de responder, como também pelo estatuto legal, com o qual entendemos nos cobrir. Denunciarei, nesse desvio, essa maneira de embromar desse "ser o único" que é a enfatuação mais comum em qualquer experiência e familiar ao médico, cobrindo-o com o estar só, que para o analista constitui propriamente o despojamento que ele renova a cada vez que começa seu ofício, ou melhor, fazendo como se ser o único não fosse senão a casula digna de revestir sua solidão oficiante. Ora, não é nada disso, o que quer dizer que ele não é mais do que o i(a), que funda o eu e toda relação narcísica, capa desse objeto a, onde o sujeito descobre sua miséria essencial. Isso, mesmo que o a se precipite aí por Ocasião do desalojamento, fonte de angústia, como faria o bernardo-eremita, procurando qualquer concha que lhe sirva de camuflagem e abrigo. Esta é uma função que não é orgânica, e pergunto-me que distração, ou mesmo que astúcia pode animar uma homilia que joga com o apelo ad hominem, tão pouco digno de nosso contexto. Talvez a intenção de me proteger, a mim mesmo, quem sabe? Contra mim mesmo ou contra a comunidade, afetando-me com o mal de todos. Porque eu me proclamei só numa ocasião, nomeadamente no ato de fundação desta escola: só, escrevi, como sempre estive em minha relação à causa psicanalítica. E então? A partir do instante em que um só outro se juntou a mim, como por acaso aquele cujo discurso interrogo hoje, eu não estava mais só: aqueles que estão aqui ainda me dão testemunho disso. O que esse único de um ato decisivo tem a ver com o único que se crê estar para valer na experiência? Eu não utilizaria a dos outros? Quem pode crer até mesmo que eu me julgue o único a saber o que é a psicanálise? Justamente, o fato de eu me explicar prova o contrário. Habitualmente, é por ter a boca cheia da escuta que se é O único a apreciar corretamente, que não se pode mais dizer nada além disso. Não há nem mesmo homossemia entre le seul (o único), e seul (só). Quanto à solidão, à qual justamente eu renunciava, ao fundar a Escola, o que tem ela a ver com a solidão com a qual se purifica sempre, de novo, o ato psicanalítico, senão por encontrar aí exemplo para se dispensar do exame de sua relação a esse ato. Pois esse ato do qual, na semana passada, no local público onde tem lugar meu discurso, sem mais delongas eu tracei o que entendo comunicar, interrogandoo por seu fim, nos três sentidos que dá a esse termo: visada ideal, conclusão e aporia de seu relato, não é um fato notável - ter sido notado pelo mais ínfimo dos interessados, que os mais eminentes a terem criado um hábito, entendo aí um hábito para os outros, de sua presença nesse discurso, se tenham ausentado em conjunto?


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Enquanto ao menos aqueles a quem minha proposição apaixona, ao ponto de fazêlos apelar para recursos que chegam até ao indistinto que acabo de desenhar, teriam interesse em entender o que de uma articulação patente poderia constituir a fraqueza ou o ponto de refutação. Desta vez, é por eu não ser o único a me inquietar com esse ato, que me recusam o que é devido, ao único que corre o risco falar sobre isso. Só perguntei as razões na proporção de uma sondagem. Que me poupem de falar dos resultados: é realmente de um ato que se trata, de um ato tão psicanalítico quanto pode ser um ato falho, se eu abrir a questão de saber se a recusa de prestar contas dele lhe é ou não inerente. Questão que eu deixo aberta em meu discurso até à conclusão, que também é prova. Pois não creio que se possa me retorquir dizendo que por estar aqui presente se consagraria um ato, aquele do fato de eu articulá-lo aqui. Um ensinamento não é um ato, como o é minha Proposição. Isso porque ele só se dirige a vocês por ser uma tese publicamente aberta. O ato começa com aqueles que se esquivam de poderem apresentar aí a antítese. Minha Proposição de 9 de outubro foi ato, por requerer de vocês uma resposta, e sem demora. Pode-se lamentar essa pressa e ver nisso um vício de forma, se for esquecido o que eu disse da função da pressa em lógica. Ela revela a necessidade de um certo número de efetuações para que uma conclusão seja válida. E demonstra até mesmo que a própria legitimidade dessa conclusão não pode ser abstraída dos fracassos que lhe oferecem de fato os tempos de sua efetuação. Será fácil aplicar, quando vocês quiserem, sobre a situação presente, meu sofisma dito da asserção da certeza antecipada - sustentado pela fábula de meus' três prisioneiros submetidos à prova de justificar de qual referência trazem a marca (disco branco: disco negro? um dos três, um dos dois), depois de terem feito a aposta sobre o que trazem os outros. Isso não tem nada de sadiano, pois não respondendo ao desfio, não se expõe a nenhum dano maior do que o do personagem distraído da história, que depois de ter contado as barras da grade que o separavam do Obelisco, numa noite, na praça da Concorde, e de ter encontrado aquela que ele tinha marcado no início, exclamou: "Aqueles sacanas me trancaram aqui". Onde está o dentro e onde está o fora? os prisioneiros, quando saem, fazem a mesma pergunta, vocês sabem disso. Eu a proponho a alguém que, numa distração análoga (bem antes de minha Proposição) me fez a confidência da vantagem que ele teria no mundo apenas por informar por que ele se teria separado de mim, caso esse seu desejo prevalecesse. Que ele saiba, nessa sua dificuldade, que eu gosto o bastante de sua pessoa para pensar nele quando deploro, como me aconteceu recentemente, ter tão pouca gente com quem compartilhar minhas alegrias, quando me acontecem algumas novas. Isso não é nenhuma digressão. Mas sim uma maneira de reduzir minha Proposição à sua medida, que não é fina, pode-se dizer, mas tratando-a como tal, deixa-se escapar justamente Sua finura, que faz toda a diferença.


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Considerando-a como ato, ela não tem nenhuma pretensão a ser psicanalítica em segundo grau ... Não é inútil usar aqui essas fórmulas que, como balizas em meu discurso, encontram seu fio em sua seqüência - colocando-se de tal modo que no limiar deste ano lembrei que se não há Outro do Outro ( Outro, com maiúscula, entenda-se), como não há verdadeiro sobre o verdadeiro, também não poderia haver ato do ato. Minha Proposição reside na articulação de um ato cuja dimensão, não nos esqueçamos disso, revelou-se por ele nunca ter tanto êxito como quando fracassa, o que não implica que todo fracasso assinale essa dimensão num ato. Minha Proposição não ignora que o discernimento a que faz apelo essa nãoreversibilidade, só pode operar-se submetendo-se a essa própria dimensão, e bem se vê, pela acolhida que ela recebe, que ela não escapa à sua questão de base. Que ela a leve para o ato psicanalítico, tomado no sentido de que é o ato instituidor do psicanalista, pouco muda, se vocês me seguirem nessa observação de que esse ato não difere do primeiro senão por manter sua falta, justamente por ter tido êxito. Pois não é o caso de ter tido êxito como psicanalisante que é suposto levar ao desejo do psicanalista, com os paradoxos que ele demonstra. Esses paradoxos são os que meu falso desvio acima perfilou como um lugar do qual se está fora, sem pensar, mas onde se reencontrar é ter saído de vez, isto é, essa saída, não tê-Ia tomado senão como entrada, e ainda não qualquer uma: esse lugar que traça bem a via do ato psicanalítico. E ainda, sua descrição no infinitivo indica que ele deixa em suspenso o desejo, desejo que no entanto se define pelo sentido desses infinitivos, pelo menos tão longe quanto eu pude dizê-lo. É aí que um controle não é demais: não controle de caso, mas do sujeito (eu sublinho) único em causa no ato, enquanto o desejo (do psicanalista) se deve inteiramente ao suporte da demanda que o assedia, a fim de nela se encontrar. Desse desejo, só podemos teorizar a necessidade. Ele deve ser tomado na prática para satisfazer a essa necessidade. Sua correção permanece à vontade do sujeito, que pode submeter-se de novo ao fazer do psicanalisante. O controle que eu evoco não poderia pôr quem quer que seja de novo na berlinda, onde obteve seus galões. No entanto, aparentemente, é o fantasma contra o qual parecem ter-se edificado os primeiros impulsos de instituição, de onde se cristalizaram aquelas geralmente aceitas. Apenas isso pode explicar que nossa Escola, que se julga liberada disso, do consentimento afirmado no que alguns só consideram como aforismos, conserve uma posição de se fechar, que parece ser a regra tão característica das manifestações de uma opinião sobre um produto analítico em nossos círculos, sendo isso altamente notável em qualquer debate, ainda que se qualificasse de científico ou fosse até mesmo probatório. Daí esse estilo de invectiva, no sentido menos regulado, que tomam aí as intervenções, e o alvo aberto que aí se tornam aqueles que ainda não têm território reconhecido. Costumes tão incômodos para o trabalho quanto repreensíveis, diante da idéia de uma escola, por mais simplória que ela se pretenda. Se aderir a uma Escola quer dizer alguma coisa, ela se acrescenta à cortesia que eu disse ser o laço mais estrito das classes, a confraternidade que faz sua reunião.


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É perfeitamente sensível, a partir do momento em que se está advertido, que não só o ato psicanalítico se traduza aí em nota de hostilidade, mas que o tom se eleve, à medida de qualquer abordagem onde se pressinta, se ouso dizer, a retirada ... O que minha proposição introduz nesse ato, é que se é notório que sair dele é entrar de novo, poderíamos certamente avançar mais, se nos fiássemos em sua estrutura. Para isso bastaria, penso eu, prendê-I o numa rede mais séria. Vocês vêem em suma o quanto eu estou de acordo com essas palavras que pensam ser más para mim. Eu sustento a aposta desse uso - possível de desarmar. Pois não é a mim que ele fere. Não falo do retomo do que chamam de meus aforismos, senão para assinalar que o autor da operação desperdiça aí uma palavra que eu julgava prometida por ele a levar mais longe seu gênio. Enquanto isso, é realmente em nome da garantia que ela acredita dever à sua rede, no segundo sentido aqui em causa, isto é, àqueles cujo encargo didático ela assumiu, que num primeiro impulso, uma pessoa a quem devemos homenagem pelo lugar que ela soube ocupar no meio psiquiátrico em nome da Escola, declarou dever considerar as seqüências que ela poderia dar à minha proposição. A argumentação que se seguiu não passa de um parti pris: ela considera como certo que a didática será afetada com isso, mas por que no mau sentido? Ainda não sabemos. Não vejo nenhum inconveniente em que a coisa (a coisa da rede) seja clara, tanto mais que ela é reconhecida por toda parte como a praga da didática: consultem sua corajosa denúncia na literatura internacional, é uma coragem que não deve temer ter conseqüências. Precisamente, parecia-me que minha proposição, em suas mais minuciosas disposições, fazia obstáculo a isso. De modo que não me espanto com seu resultado nesse plano. O que deveria ser motivo de espanto é que não seja minha rede que me estrangule. A "transferência plena", uma das palavras-chaves desse alarido, deve ser tratada com um sorriso. Pois ela dá margem a tudo, e na verdade de negativo, e já deu provas nesse campo onde o interesse não é de brincadeira. Quando se está de fora, percebe-se só de ler tal libelo, que a rede, a minha, tem um sentido bem diferente e é o que me ajuda a retomar alegremente esse termo. Porque essa rede é armada, é escrita, preto no branco, da rue de Lil1e à rue d'Ulm. E então? Não acredito no mau gosto de uma alusão a minha rede familiar. Falemos então do meu bout d'Oulm' (pronunciado assim, faz pensar em Lewis Carroll). Será que estou propondo instalar meu bout d'Oulm no seio dos AE? E por que não? Se por acaso um bout d'Oulm se fizesse analisar? Nesse sentido, posso afirmar-Ihes que nenhum faz parte ainda da minha rede, nem está em instância. Mas, evidentemente, a rede que existe aqui é de uma outra trama, e não depende nada menos de minha Proposição a expansão a ser obtida do ato psicanalítico. Que meu discurso tenha retido sujeitos que não preparam nenhuma experiência analítica, mostra que ele sustenta a prova de exigências lógicas, pelas


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quais esses sujeitos são formados. Isso sugere que aqueles que têm essa experiência não perderiam talvez nada em se formar pelas mesmas exigências, para com elas armar sua "escuta", ou mesmo seu olhar clínico. A experiência, sobretudo, que sai tão assegurada de seu eixo, estaria com isso talvez reforçada, mas ao mesmo tempo mais manejável, mesmo que fosse apenas para a transmissão, ou quem sabe para a modificação, mas em todo caso para a discussão. Não Ihes farei a injúria de acreditar que aqui possa ser evocado o interesse que meu discurso recebe de um público mais vasto ainda, em nome do benefício que a Escola poderia tirar disso. Não é diante de vocês que vou me vangloriar de um sucesso cuja impureza eu fiz tudo para afastar de meu trabalho e que agora não pode afetá-lo em nada. Mas esse interesse poderia inspirar-lhes a idéia de que a expansão do ato analítico poderia, um dia, se fosse dissimulada a herança freudiana, tomar um efeito de rejeição numa região imprevista, onde os direitos de prioridade de nossa experiência não seriam automaticamente preservados. E de que é ainda isso que minha proposição previne mais depressa. Pois a palavra não-analista volta à superfície para um ofício que eu conheço. Ela aponta aqueles que me ouvem, cada vez que meu discurso, numa encruzilhada da prática, precisa ter efeito sobre o ato psicanalítico. O "bando-de-Moebius", para chamá-Io pelo nome, é por enquanto um amontoado de não-analistas. Isso não é grave. Assim que a questão tiver sido resolvida pelo afastamento da ameaça, ele não terá mais do que um pequeno prêmio a pagar: não tentar dizer mais nada sobre o que quer que seja de analítico. De agora em diante, ele será formado de analistas. Se ele se separar de mim, poderá entrar para a IPA e continuar a usar meus termos, doravante desprovidos de qualquer conseqüência. Um pequeno voto, que digo eu, uma abstenção, uma desculpa dada no momento certo e ele entrará ali com todas as velas desfraldadas. Nem mesmo é necessário um chefe. Poderiam todos já estar lá. Mas que eles me desculpem. Eu Ihes darei daqui a pouco um meio bastante seguro de voltarem a ser analistas e que terá a vantagem de ser inédito. Ele não será reservado a eles: só penso neles por causa de seu infortúnio atual. Quanto aos "não-analistas", aos quais minha Proposição teria por objetivo entregar o controle da Escola - escreveram isso - farei o mesmo que em relação à rede: aceitarei o desafio. Na verdade, é bem esse o sentido de minha Proposição: quero colocar nãoanalistas no controle do que resulta do ato analítico, isso para detectar como, qualquer que seja seu talento, os "analistas" se arranjam para que não saia de sua experiência nada além de uma produção estagnante, incomestível do lado de fora, uma teoria sempre mais regressiva, ou mesmo involutiva, no sentido de que ela evoca a menopausa de ambos os sexos, a mais perfeita fuga de todos os problemas do ato: na medida em que aí reside a chave de seu término e o fim a ser dado à psicanálise didática, e que fora dessa abordagem é inútil esperar que ela estabeleça sua epistemologia. Já disse o bastante nestas linhas para que se saiba que não se trata de modo algum de analisar o desejo do analista, mas de registrar os efeitos de sua condição profissional sobre o ato fundamental onde esse desejo se manifesta, que é de aí entrar. Daí decorre que a primeira condição é decisiva, por ela interferir, desde a


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demanda inicial, de onde esse desejo tem de proceder, em sua procedência mesma: é o ideal representado pelo estatuto presente do analista. A primeira análise didática que se apresentar sob esses auspícios de crítica, se encontrará abreviada da desvantagem que constitui sua atual demanda, pois aquele que a empreender não terá como fim senão entender, no final, o que pode levar alguém até o ato psicanalítico, certo que estará de que por não estar ali, ele s6 terá, para cumprir sua tarefa, os pressupostos de ficção que o reduzirão à inoperância do psicossociólogo e ao nível do estudo de mercado. Aquela demanda, o analista não tinha de preocupar-se de frustrá-Ia. Ele terá muito a fazer gratificando-a em seu fim, que é antes mítico. . Mas a maneira pela qual, de acordo com essa tarefa, ele acumular experiência, escutar, clinicar, tomará para ele um outro valor. Vocês vêem que não é para amanhã que se deve esperar a aproximação desse ponto absoluto. Mas só o fato de colocá-lo introduz uma dimensão onde o desejo do analista, por suspender seu ato - pois é somente a falácia de sua satisfação que ele tomará como referência - fará do não-analista o garante da psicanálise. Como ele deve sê-lo, nesse sentido. Eu espero dos não-analistas, na verdade, pelo menos que distingam o que são os psicanalistas hoje, isto é, que não usem o recurso de serem analistas ao preço que mencionei acima. Será impossível responder a uma tal demanda? que o digam, isso esclarecerá o alcance das outras demandas, para elas mesmas. E isso remete a outros a criação de seu emprego. No entanto, só o fato de que uma tal demanda possa ser fundada no exercício de tal emprego bastaria para que todas as demandas de psicanálise didática sofressem uma correção inicial, pois se saberia que é em função de uma psicanálise em instância de exame, e também ávida de renovação, que o psicanalista, mesmo considerado como entravado por um desejo desigual à prova do analisante, seria distinguido por juízes advertidos sobre o estilo de sua prática e o horizonte que ele sabe reconhecer ali, ao demonstrar seus limites: é o que eu chamo de AME. Contudo, meu bando guarda um recurso aberto, do qual, espero, tirará proveito: dar seqüência a meu discurso, isto é, ultrapassá-lo, ao ponto de torná-Io obsoleto. Eu saberei enfim que o que fiz não foi em vão. Enquanto isso, tenho de aturar estranhas músicas. É o caso da fábula que corre por aí, do candidato que passa um contrato com seu psicanalista: "Você me aceita como me convier e eu o ajudo a subir. Tão forte quanto matreiro (quem sabe um desses normalistas? que "desnormalizariam" toda uma sociedade com seus truques clichês que têm todo o tempo de cozinhar em fogo brando, durante seus anos de indolência), ninguém viu nada, eu os embromo e você passa sem problemas". Mirabolante! minha proposição não teria engendrado apenas esse camundongo, eu espero, em seu trabalho de roedor. Eu pergunto: esses cúmplices que poderão eles fazer, a partir de então, a não ser uma psicanálise onde nem uma palavra poderá se furtar ao toque do verídico, pois qualquer enganação por ser gratuita não dura muito? Em resumo, uma psicanálise sem meandros. Sem os meandros que constituem o curso de toda psicanálise, pelo fato de que nenhuma mentira escapa à vertente da verdade.


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para uma Escola /li - um percurso de vinte anos

Mas o que isso quer dizer, quanto ao contrato imaginado, se ele não muda nada? Que ele é fútil, ou então que mesmo quando ninguém fica sabendo, é tácito. Pois o psicanalista não está sempre, afinal de contas, à mercê do analisante, tanto mais que o analisante não pode lhe poupar nada se ele tropeçar como psicanalista, e se ele não tropeçar, menos ainda. Pelo menos, é o que nos ensina a experiência. O que ele não pode poupar-lhe é esse "des-ser" que o afeta ao término de cada análise, e que me espanta reencontrá-lo em tantas bocas desde a minha Proposição, como atribuído ao que conotei no passe com o termo "destituição subjetiva". No entanto somos muito mais duros no ser, ninguém aqui sabe disso portanto, quando se abdica de ser sujeito. Vê-se que vocês nunca estiveram na guerra, vocês são todos, num certo grau, filhos de Pétain, não tinham ainda nascido em 1914. Para vocês, isso é imemorial: resta porém um testemunho à altura, por não ser nem de um futurista que leu sua poesia, nem de um publicitário safado, reunindo uma grande tiragem: é Le guerrier appliqué, de Jean Paulhan. Leiam isso para saber qual o acordo do ser com a destituição do sujeito. Eu perdi isso por muito pouco, mas tive vocês comigo do ano 60 a 63. A gente se sente bastante bem em nosso ser, quando alguém chamado peru (em inglês)" destaca do nosso discurso de dez anos, como se fosse a música de flauta destinada a induzir nossos alunos à marca de identificação que sua perspicácia não deixou escapar: ou seja, o uso da gravata borboleta (sic, tenho testemunhas disso). Para uma destituição subjetiva, esta é uma que suscita o ser, podem crer. Provavelmente, também o ser daqueles que assistiam a isso, impávidos. As referências que eu evoco não têm nada a ver com o desejo de ser analista. Eu não dou aqui o segredo da lábia a ser usada com os passadores. Mas a segunda talvez exija um exame sobre a natureza do "des-ser" que se apresenta na ocasião. Pois não penso em extraí-lo do desejo do analista, mesmo que seja uma falsa dobra. Vimos psicanalistas trempésí , como se exprimia esse psico-sociólogo - pois não fui eu quem fez um tal ser funcionar em nosso meio - trempés no caldo de Kapo, provavelmente. Mas evocar os campos de concentração é grave, disseram-me. Isso devolve ao seu lugar o discurso de Nacht sobre o ser e minha razão de objetar a ele. Fora isso, minha proposição é fascista, pelo menos a metáfora de alguém que tem essa experiência, ela trazia isso escrúpulos. Acabemos com essas ninharias e com a admissão de Fliess, que minha idéia implicaria. O raciocínio ad absurdum tem seu preço. Que Freud tenha feito o passe, este é um caso fora de controle sem inconveniente, ser posto em dúvida. Ele não podia ser seu próprio Embora eu acredite nas lembranças tão precisas que a Sra Blanche Jouve às vezes me dá a honra de me confiar, tenho o sentimento de que, se

e que pode, passador. Reverchonos primeiros

discípulos tivessem submetido a algum passador escolhido dentre eles, digamos, não seu desejo de serem analistas - noção que nem mesmo era perceptível então - se é que alguém a percebe ainda, mas somente seu projeto de sê-lo, o protótipo dado por Rank em sua pessoa do "eu não penso" poderia ter sido situado muito mais cedo em seu lugar, na lógica do fantasma. E a função do analista da Escola teria vindo à luz desde o início.


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Pois, afinal, é preciso que uma porta esteja aberta ou fechada, assim nos encontramos na via psicanalisante ou no ato psicanalítico. Pode-se fazer com que se alternem como uma porta bate, mas a via psicanalisante não se aplica ao ato psicanalítico, que é julgado em sua lógica por suas conseqüências. Estou demonstrando que, cada vez que o psicanalista se interessa por um objeto que lhe parece prevalente, ele é levado a declarar que esse objeto escapa à via da análise (cf. Winnicott). Isso só é pensável, por causa do único ponto em que é legítimo: o psicanalista, enquanto tal, o ato psicanalítico. A função, por exemplo, do narcisismo da pequena diferença, que Freud articula como sendo por sua experiência irredutível, é perfeitamente analisável se for relacionada com a função do objeto (a). O psicanalista, como se diz, aceita ser merda, mas não sempre a mesma. Isso é interpretável, com a condição de que ele perceba que ser merda é realmente o que ele quer, a partir do momento em que se faz testa de ferro do sujeito-suposto-saber. O que importa, portanto, não é esta ou aquela merda. Também não é qualquer uma. É que ele entenda que essa merda não vem dele, como também não vem da árvore que ela recobre no país abençoado dos pássaros. É o Peru" , dizem. O pássaro de Vênus é cagão, isso é sabido. A verdade porém nos vem das patas da pomba? , idéia engraçada. Não é razão para que o psicanalista se tome pela estátua do Marechal Ney. Não, diz a árvore. Ela diz não, para ser menos rígida, e fazer com que o pássaro descubra que ela continua sendo sujeito de uma economia animada pela idéia da Providência. Vocês vêem que sou capaz de adotar o tom em uso numa assembléia de analistas, quando se trata de assunto vital. Tomei um pouco de cada um daqueles que manifestaram sua opinião, com exceção da raiva, se ouso dizer - vocês verão com o tempo: é o que permite ver se, como o lobo, ela está ali ou não está. E concluindo, minha proposição adotada não teria mudado mais do que um fio de cabelo o eixo da formação do psicanalista. Ela teria sido suficiente, bastaria que fosse publicada. E permitiria um controle absoluto de seus resultados. Ela respeitava absolutamente os direitos da experiência. Opõem-se a ela, não posso impô-Ia. Fina como um fio de cabelo, ela não terá de medir-se com a amplidão da aurora. Bastaria que a anunciasse. Pois ela comporta, de suas dezessete páginas, quatorze (não sei por que esses números pareceram a alguém terem um sentido místico), quatorze, eu dizia, de teoria da psicanálise didática, sobre as quais eu não peço outra opinião que não seja para uma réplica eventual, equivalente ou não. Eu abro prioritariamente as cartas da Escola para a publicação desses enunciados - que constituirão, não a abertura, ela está feita, mas a entrada em funcionamento do cartel sobre o qual puderam ironizar. Entretanto, eu asseguro que aqueles que fazem seus os fins que minha Proposição visava, podem contar com meu apoio. Ouvi dizer que ela não tinha outro alcance além do político, e que era uma questão de força entre alguns e eu. Não poderia ser questão de força para mim, como analista. Cabe àqueles que caem sob o golpe dessa força, se ela se persiste, saber se a aceitam ou se a recusam. Não estou aqui senão para manter a primazia dos fins de minha Proposição, e opor-me ao que lhes fechasse qualquer acesso.


Documenros para uma Escola 111 - um percurso

de vinte anos

Há outros meios de prevenir isso. Anuncio a vocês a publicação de uma revista aberta a todos aqueles da Escola que quiserem participar dela, nas condições que lhes serão apresentadas em seu primeiro número. Essas condições, novas em nossa comunidade, parecem-me de natureza a eliminar o obstáculo grave à produção científica, cuja origem tento circunscrever em meu discurso deste ano sobre o ato psicanalítico. Desde já, aqueles. em cujo trabalho tenho confiança - e nenhuma manifestação de opinião constitui para mim objeção - terão ai seu Jugar, se o õcseiercm. O que é da ordem da informação que eu esperava dos passadores, não é impossível de ser recolhido ao lado do funcionamento estatutário dos júris. Estes começarão a funcionar segundo o procedimento anterior, com a diferença que, provisoriamente, a conjuntura presente torna o sorteio o modo de escolha menos discutível, e que minha presença, que eu havia proposto reduzida à consulta, terá direito a voz. O júri de aceitação (agrément) será composto de cinco membros. Eu sempre fui parcimonioso em apelos pessoais, deixando aqui o campo livre às mais diversas iniciativas, a bem dizer, esperando antes que elas se manifestassem. É preciso acreditar que o apelo é necessário, pois parece ter causado espanto que no ano passado, quanto aos seminários de textos, ele não tenha sido vão. Dirijo-me hoje a todos, em prol de uma reflexão amadurecida e de uma competição proveitosa. Este texto, tal como está, escrito para vocês esta semana, e onde vocês só devem ver todo o meu empenho, será distribuído a todos. É o sinal de minha confiança. A data, a ser fixada, de nossa próxima reunião, depende de suas respostas. Tenham a bondade de adiá-Ias para que as coisas voltem aos seus devidos lugares.

* Este discurso durou quarenta e cinco minutos. O presidente da sessão, Xavier Audouard anuncia: "A sessão está encerrada". NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. Lacan publicou, em 1970, no número 2-3 de Scilicet, p. 7-29, Paris, Le Seuil, uma versão aumentada e mais "escrita" de seu discurso de 1967, com o título "Discurso à E.F.P.", traduzida e publicada naRevista da Escola Letra Freudiana, Documentos para uma escola lI, Ano XIV, n° O:, publicação interna. O texto que aqui apresentamos corresponde à transcrição da versão oral desse discurso, pronunciado por Lacan em Paris, no dia 6 de dezembro de 1967, em resposta aos comentários recebidos sobre sua Proposição de 9 de outubro do mesmo ano. Ele testemunha um momento histórico, no qual Lacan precisa a direção a ser tomada para a formação dos analistas e seu


Discurso de Lacan aos AE e AME da École Freudienne

de Paris ...

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laço social. Será muito interessante para o leitor comparar as duas versões, a escrita e esta, transcrita sob os cuidados de Solange Faladé, publicada na França com sua autorização por Analyse freudienne presse I, e aqui por nós traduzida (N.T). 2. Segundo nota da tradutora de ROUDINESCO, E., Hist. da Psicanálise na França, A Batalha dos 100 anos, Vol 11, 1925-1985, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1988, p. 484, esta seria uma resposta velada a Valabrega, onde a assonância obtida entre bout = pedaço e Ulm, nome da rua onde se reunia o grupo, evocaria o verbo bouder = ficar amuado (N.T.). 3. Em francês: "normalien", aluno da Ecole Normale Supérieure, uma das grandes escolas de prestígio na França, aqui tratada ironicamente (N.T.). 4. Alusão a Pierre Turquet, ex-major do exército inglês, e na época negociador da IPA, no caso da expulsão de Lacan. Turquet soa como Turkey, "peru" em inglês, ave que é lembrada para ilustrar o enfatuamento, a presunção (N.T.). 5. Trempés tem duplo sentido: "temperados" (aço) e "molhados" (N.T.). 6. Alusão ao guano, adubo rico em fosfato e nitrogênio, proveniente dos excrementos de aves marinhas, uma das riquezas do Peru (N.T.). 7. Segundo a mitologia, a pomba é o pássaro que puxa o carro de Afrodite, nome grego de Vênus (N.T.).


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