Transmissão finita e infinita

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Transmissão finita e infinita Conrado Ramos* A fantasia nos serve de anteparo ao real do mesmo modo que a teoria nos serve de anteparo à nossa experiência com o real. A teoria psicanalítica, assim, tem parentesco com a fantasia. Se uma análise pode terminar com a travessia da fantasia, o mesmo não acontece com a teoria, cujo atravessamento é interminável e não nos permite sair da posição de analisantes (JORGE, s.d.). Um saber que se mostre finito e terminado exclui o real e só serve como signo de garantia da autorização de seu portador. Um saber que inclui o real, por sua vez, só pode ser um saber furado, saber que não serve de representante da garantia, mas que põe cada analista, desde o lugar de analisante, a construir a fantasia teórica de sua experiência com o real. A verdade da teoria não é menos mentirosa que a do neurótico. Acreditar na verdade da teoria é fazer dela um discours courant que só serve como fiador imaginário da autorização do analista. Buscar, porém, a verdade que se pode transmitir pela mentira da teoria, verdade que se situa “por supor o que do real faz função no saber” (LACAN, 1970/2003, p.443), faz do autorizar-se a reta infinita da construção teórica. O trabalho de analisante que advém analista termina no divã para continuar interminável na transmissão. De um lugar ao outro, o autorizar-se não é uma conquista do real, mas um deixar-se causar por ele. Há, portanto, duas posições: aquela pela qual a teorização autoriza alguém e aquela pela qual alguém se autoriza à teorização. Se a primeira pressupõe uma volta final, a segunda posição é aquela que implica o “mais uma volta”... Em suma, a autorização está, antes, na debilidade mental que o real implica, do que no douto saber que o tampona dogmaticamente. E o cartel? Pois bem, juntar quatro a seis pessoas, dispostas a interrogar a experiência do real, colocá-las a debater, a furar seus saberes, a furar a teoria construída, a tentar reconstruí-la, a tentar atravessá-la, a buscar tampões ou respostas últimas, a tentar fazer signos de garantia, a produzir saber que possa servir de qualificação ou de fiador, a procurar onde está o conhecimento final e garantido, a desfilar os “não entendo mais nada” ou os “isso não faz mais sentido”, a dizer besteira como quem se acha sábio ou a produzir um achado inesperadamente, a julgar numa semana que se concluiu tudo para sentir que se está começando do zero na semana seguinte, a achar sempre que a resposta está no próximo encontro, a se perguntar “o que é psicanálise?” ou “o que faz um psicanalista?”... Não é por essas vias tortas que a debilidade mental que o real implica vem colocar em questão os saberes doutos que transformam a psicanálise em religião? *

Membro da IF-­‐EPFCL-­‐ Fórum SP


Se um cartel pode ser um dispositivo furado, furo em torno do qual se pode dar sempre uma volta a mais, então ele se articula com a transmissão infinita. Mas se ele não puder ser um dispositivo furado, se dele se fizer transmissão finita, então ele vira colação de grau, ou melhor: colagem de grau. Vira garantia de qualificação. É somente quando um cartel descola o grau de seus participantes que ele atinge o grau de Escola. Não se trata, de modo algum, da apologia da ignorância. Não se trata, em nenhuma hipótese, da negação do conhecimento. Trata-se de não deixar de lidar com os limites da teoria possível a uma clínica que se apresenta como um “real enquanto ele é impossível de suportar” (LACAN, 1977/1992, p. 7) e para o qual, a bem dizer, alguns se autorizam, mas ninguém se qualifica. Enfim, o real que, numa análise, nos vem de modo rébus-cado no sonho, fora dela é o re-buscado da teoria, um artifício que não cessa de dar voltas em torno do que não se sutura. A “mais uma volta” que um cartel produz é, portanto, o que sustenta o antidogmatismo em uma Escola e o que coloca o autorizar-se como um ato que não se conclui e que faz da transmissão infinita o toro pelo qual se tenta cingir o real da experiência com o inconsciente. Cuidado: não estou a dizer que quem faz cartel é analista e quem não faz, não é. Estou a dizer que o cartel é um dispositivo que permite romper com esta lógica da qualificação/desqualificação, tão pouco apropriada ao princípio de que o psicanalista se autoriza de si mesmo. Junho de 2013. REFERÊNCIAS JORGE, M.A.C. A travessia da teoria: como ensinar aquilo que a psicanálise nos ensina? S.d. Disponível

em:

<

http://www.fundamentalpsychopathology.org/uploads/files/ii_congresso_internacional/mesas_redo ndas/ii_con._a_travessia_da_teoria.pdf >. Acesso em: 05 de jul. de 2013. LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 400-447. LACAN, J. (1977). Abertura da sessão clínica. Traço. Recife: Traço Freudiano Veredas Lacanianas Escola

de

Psicanálise.

Ano

1,

n.

0,

set./out.

1992,

p.

1-11.

Disponível

em:

<

http://www.campopsicanalitico.com.br/biblioteca/lacan%20abertura%20da%20se%C3%A7%C3% A3o%20clinica.pdf >. Acesso em: 05 de jul. de 2013.


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