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«A língua portuguesa é uma ferramenta que me dá prazer explorar»
Samuel Mira, mais conhecido por Sam The Kid no mundo artístico, tem uma das espadas mais afiadas naquela que é a esgrima da língua portuguesa. Nela, encontra o seu ofício e uma das suas paixões, a par da música. A FORUM foi falar com o MC de Chelas para saber mais sobre o Assim ou Assado – o seu podcast que virou livro, onde, na companhia do professor Marco Neves, esmiúça a nossa língua em todas as suas vertentes.
Quando é que surgiu este teu interesse por descobrir a fundo a língua portuguesa?
O interesse surgiu de forma gradual, devido à minha função de artista. Enquanto rapper que escreve letras, sempre tive essa “fome” de descobrir palavras novas e o seu significado. Com a evolução da tecnologia e com o Google à mão, se eu questionar o significado de uma palavra, já nem preciso de ir procurar ao dicionário, consigo fazê-lo de forma muito mais imediata. Agora com o meu colega, o professor Marco Neves, co-autor deste livro, tenho uma excelente ajuda extra (risos). A língua portuguesa é uma ferramenta que me dá verdadeiramente prazer explorar. As palavras, fazê-las rimar, desdobrá-las, tentar fazer com que transmitam a mensagem que tu queres… Para fazer isso, preciso de um vocabulário vasto. Quantas mais palavras ou hipóteses de sinónimos eu tiver, melhor. Então estou sempre atento, em modo esponja, e vou apontando palavras que ache interessante para pesquisar mais sobre elas e, quem sabe, utilizá-las no futuro.
E quando é que surgiu o desejo de transformar este teu interesse num podcast e posteriormente num livro? O podcast foi uma ideia muito gradual. Já tinha a ideia há um par de anos até que falei com o Sensi, que me ajuda em muitos aspetos, e começámos a procurar alguém que tivesse “moral” na língua portuguesa e a estudasse a fundo. Acabámos por encontrar um artigo que falava da defesa da expressão “o comer está na mesa” como algo tão válido como “o jantar está na mesa”. Aí, soube que o professor Marco Neves, autor desse artigo, seria a pessoa ideal para o projeto. Ele aceitou de imediato e tem sido espetacular. Em relação a transformarmos o podcast num livro, era também um desejo muito grande, mas surgiu de uma forma que eu diria que foi até precoce. Ao quarto episódio, já tínhamos um convite da editora Leya para fazermos um livro baseado no podcast. Estar ao lado de uma editora como a LeYa permite-me ganhar mais credibilidade neste meio da linguagem, para poder defender a minha visão. A minha missão é ganhar voz nesta matéria, mesmo ao lado das pessoas que são mais preconceituosas e têm mais pudor em relação à língua.
A nível da comunicação, dirias então que o mais importante é que o recetor perceba a mensagem que lhe querem transmitir?
Exatamente! A meu ver, o importante será sempre eu perceber o que a pessoa quer transmitir. Mesmo que eu sinta que a pessoa disse uma palavra mal, eu não vou fazer esse reparo. Até a nível da escrita, muitas vezes vemos pessoas, no seu Facebook pessoal, a darem alguns erros. Se eu perceber aquilo que quiseste dizer, eu não vou lá comentar a corrigir, não faz sentido. Agora, se estiveres a responder em nome do teu negócio, já é diferente. Já não é só a tua individualidade que está ali. Mesmo no meu caso pessoal, em posts da Associação Chelas é o Sítio, se alguém da nossa equipa der algum erro a fazer uma publicação nas nossas redes eu vou chamar a atenção para que corrija. Mas a nível individual, não. Só me interessa mesmo perceber o que querias transmitir.
És um leitor assíduo? Tens algum autor de quem gostes em particular? É daquelas coisas das quais não tenho orgulho, mas não tenho o hábito de ler livros. Costumo dar uma desculpa para isso, que é uma desculpa horrível, mas que não deixa de ser verdade, que é esta minha obsessão por palavras. Se estiver a ler um livro e me aparecer uma palavra que eu não conheça e ache interessante, eu vou bloquear ali. Vou ter que parar e ir pesquisar e depois perco um pouco o entusiasmo. Geralmente leio livros “fáceis” de ler, que não têm uma narrativa para acompanhar do princípio ao fim, como um romance, por exemplo. Também gosto bastante de livros mais em estilo de artigo jornalístico, acho bastante interessante.
Ao longo de todo este processo de exploração da nossa língua, qual foi a descoberta linguística que te surpreendeu mais ou achaste mais interessante?
Houve um episódio em que o professor Marco Neves me fez ver uma coisa que eu, de facto, não sabia. Foi a palavra cônjuge, que eu sempre pensei que se dissesse “cônjugue” na oralidade. E o tema nem era esse, aconteceu de forma genuína mesmo! No episódio eu disse mal e ele corrigiu-me. Até ele concorda que não é uma palavra bonita (risos). Como na família de palavras de cônjuge mais nenhuma tem essa sonoridade, pensei que seria igual. Houve mais descobertas, mas assim de cabeça lembro-me particularmente desta.
Sentes que há algo que poderia ser mudado no ensino da nossa língua nas escolas?
Como eu já não ando na escola há muito tempo, é injusto eu falar sobre isso. Eu sinto que ao longo destes anos, desde que deixei a escola, tem havido um esforço para cativar os jovens, por exemplo, usando letras de rap. Vemos muitas vezes aqueles comentários de que “um dia vamos estudar isto (o rap) na escola”. Mas já se estuda! Isso já acontece! As letras de rap já são postas na mesa nas aulas de português como forma de cativar os jovens. Devemos dar mérito aos professores que o fazem. E acho que estão a fazê-lo de uma forma digna e que nos mantém cool Quando vemos um comentário a dizer “um dia, em vez de estudar Camões, vamos estudar Valete ou Sam The Kid”, estão a fazer um paralelo onde se estão a esquecer de uma coisa: Camões é obrigatório! E, quando é obrigatório, deixa de ser cool. Quando é por imposição, as pessoas começam a ficar aborrecidas. De repente já és trabalho de casa! E acho que desta forma há mais equilíbrio. Traz a cena para a mesa, cria o interesse, mas não faz dela uma obrigação.
Qual é o papel que sentes que a música, em particular o rap, tem na evolução da linguagem?
A forma como a língua portuguesa é explorada no rap tem um grande impacto. Eu acredito que, sendo uma linguagem tão popular e sendo uma música pop, haverá poucos jovens que nunca tenham experimentado fazer um rap na vida. Isso faz com que as pessoas estejam a abrir a mente, sejam incentivadas a explorar a língua portuguesa e a fazer um texto poético. Depois, para uma grande percentagem de pessoas, será apenas uma fase da vida em que experimentaram e acabou. Mas só o facto de terem experimentado já faz uma grande diferença. Logo aí, é uma mudança gigante e um grande impacto que o rap tem na vida das pessoas e na sua vontade de se expressarem e experimentarem algo artístico. E aí entra a língua portuguesa. Sinto que tem tido um impacto gigante. Até ao nível do léxico! Eu já ouvi comentadores de reality shows utilizarem a expressão beefar. Eu associo essa expressão ao hip-hop. São palavras com as quais as pessoas já estão familiarizadas. É uma cultura completamente pop e é inevitável que exista essa influência.
Sentes que os rappers, por serem utilizadores tão frequentes da nossa língua, são também dos seus maiores disseminadores?
Sim, sim. É uma excelente maneira de passarmos vocabulário às pessoas, seja ele mais erudito ou calão. E eu considero os dois válidos de igual forma. Por exemplo, às vezes vemos a reação a alguns rappers ser do género “cada vez que eu ouço a tua música tu fazes-me ir ao dicionário”. Isso é excelente, mas lá está, há coisas do calão que não tens sítio para ir consultar (risos). Porque é um rapper te fez ir ao dicionário? Porque disse algo cujo significado não sabes. Mas e se fosse uma letra de calão? Dirias com a mesma emoção positiva? Parece que só é dito de forma positiva quando é erudito. E se ele tiver só a dar um calão que tu não apanhas? Qual é a tua reação? Mesmo uma música que não te faça pensar tanto e seja mais de festa é importante. Tudo isso é essencial para tornar esta cultura mais rica e suscitar interesse na nossa língua em diferentes tipos de pessoas.
Para terminar, diz-nos algo que achas que toda a gente devia saber sobre a língua portuguesa, mas que se calhar não sabem.
Aquilo que vou dizer eu sinto que as pessoas até sabem, mas por vezes esquecem-se. Vemos muitas vezes um discurso de que a nossa língua está a ser maltratada e temos que a defender porque existem, por exemplo, muitos anglicismos. Mas se calhar muitas palavras que temos hoje, como chiclete, já foram anglicismos que acabaram por ficar parte da língua. Até que ponto é que o português é uma língua original na medida em que se construiu por si mesma? É uma língua que vem do latim, o mesmo latim que deu origem a muitas outras línguas. A língua portuguesa, como quase todas as línguas, deriva de outras línguas. E depois vamos construindo a nossa identidade a partir daí. Se olharmos a história da língua portuguesa, temos influência africana, muçulmana… e é isso que faz a nossa identidade! Somos uma esponja de várias línguas que torna a nossa única. E se foi isso que fez da nossa língua única, porque é que iremos ter um discurso “anti-esponja”? Se, de forma natural, há palavras arcaicas que deixam de ser utilizadas e acabam por morrer porque o povo deixou de as usar, quando esse mesmo povo acrescenta palavras novas, venham elas de onde elas vierem, temos de as aceitar. Depois vamos moldá-las à nossa maneira. No fundo, gostava que as pessoas não tivessem medo da evolução natural da nossa língua e que percebessem que, por ser um organismo vivo, vai sempre ser assim.