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Noxaí

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O projeto Noxaí documenta aspectos da vida de uma comunidade fictícia e desenvolveu-se a partir da criação de uma narrativa imaginada e encenada, que serve de metáfora da sociedade patriarcal em que vivemos.

Em um pequeno município no interior do Rio Grande do Sul, há um costume passado de geração a geração: por crença e superstição, as mulheres aprendem, desde pequenas, a coletar pedras em seus caminhos, as quais deverão ser guardadas numa bolsa carregada por elas ao longo da vida. Acredita-se que o ato de manter essas pedras na bolsa, junto ao corpo, traz sorte e garante a passagem para o paraíso quando a vida na Terra acabar. O nome do trabalho e do município, Noxaí, origina-se da palavra noxa- -ae, do latim, que pode significar culpa, desgraça, prejuízo ou punição.

Para dar início à problemática apresentada, urge citar Simone de Beauvoir (1970, p.9): “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Essa assertiva chama a atenção para as inúmeras construções sociais que o fato de ser mulher carrega, ou seja, não se trata de um determinismo biológico, mas das experiências e lugares na sociedade que já são predeterminados no começo da vida de cada uma. Consideremos: nascer homem ou nascer mulher predispõe muitas das vivências pelas quais o sujeito passará. A contar do início, estamos todos marcados por significados culturais. No entanto, tratando-se especificamente do tornar-se mulher, do assumir o papel dito feminino, isso significa carregar alguns fardos que os homens desconhecem. É a este fardo que o trabalho faz alusão.

Em uma entrevista à TRIP, a filósofa Djamila Ribeiro defende que, apesar dos inúmeros avanços já conquistados, a desigualdade de gênero continua sendo uma realidade. Como reflexo de uma educação machista, a figura da mulher ainda é associada a um papel estereotipado, ligado à futilidade e à vida doméstica. Reparemos: às meninas dá-se bonecas e maquiagens, enquanto aos meninos, lego, quebra-cabeça, xadrez, carrinhos. É comum apenas as garotas serem ensinadas a dividirem as tarefas da casa com a mãe. Nos contos de fada, as mulheres esperam por príncipes encantados; nas novelas e filmes, mulheres disputam pelo amor de um homem. Meninos não choram, pois são os fortes; meninas são as sensíveis e frágeis.

Constrói-se assim adultas que se percebem como as únicas responsáveis pela vida doméstica, que entendem como principal missão de vida constituir uma família, que enxergam umas às outras como rivais e que aceitam ser o pilar mais sensível e empático em um relacionamento heteroafetivo.

Nesse sentido é que a vida de uma mulher se torna muito mais difícil que a de um homem. As pedras presentes em Noxaí representam esse peso que alguém carrega pelo simples fato de nascer mulher e por isso crescem numericamente à medida que as mulheres amadurecem e vão sendo educadas e condicionadas de acordo com os valores de uma sociedade patriarcal. A partir de uma abordagem artística para a elaboração dessa temática, ganha corpo esse projeto em forma de documentário fictício, no qual o lúdico abre espaço para reflexões.

Durante a produção fotográfica, convidei nove mulheres de diferentes gerações e de distintas realidades socioeconômicas e raciais a atuarem como habitantes de Noxaí, sendo que nenhuma delas já tinha atuado ou performado antes. Assim, propus que carregassem e lidassem com as pedras, o que provocou naturalmente uma conversa sobre a simbologia presente na narrativa. Para transmitir a ideia de comunidade pequena e distante, as locações foram nas cidades Barra do Ouro e Santo Antônio, lugares onde se fez possível imergir na temática e nas personagens, e também explorar o bucólico e a presença da natureza abundante.

Nos diálogos que surgiram em nossas imersões, diversos relatos pessoais relacionados à temática do trabalho espontaneamente surgiram, o que contribuiu para o estreitamento de laços entre a equipe e para a aproximação de cada uma com as personagens que assumiriam. Essas conversas também permitiram uma melhor compreensão das semelhanças e diferenças entre as experiências vividas por cada uma das participantes, ficou muito claro para todas o quanto raça e classe são determinantes na forma como o machismo afeta a vida cotidiana. Duas falas em especial me chamaram atenção: “Na verdade eu não era obrigada a fazer isso”, a partir de um relato sobre tarefas domésticas, e “Acho que entendi porque eu participei das vídeo-conferências e minha gerente não”, dentro de

um diálogo sobre interseccionalidade de gênero e raça. Acredito que essas duas colocações, conclusões alcançadas dentro de nossos encontros, ilustram bem o aprendizado possibilitado pelos nossos diálogos. Enquanto propositora do projeto, esse compartilhamento e aprendizagem entre mulheres já me satisfez muito, antes mesmo do trabalho ser finalizado.

Ao entrar em contato com o espectador, Noxaí quer instigar o pensamento. Que comunidade é essa? Quem são essas mulheres? Isso existe mesmo? Se não existe, o que significa? Noxaí justapõe o real e o imaginário de forma complementar, com o propósito de aprofundar reflexões a respeito da construção do papel desempenhado pela mulher e as dificuldades que ela encontra vivendo nessa sociedade que a sobrecarrega. A ideia é que o observador ou observadora indague-se sobre sua responsabilidade nessa construção social e sobre suas atitudes a fim de tornar a sociedade mais igualitária. Que o olhar provoque uma reflexão individual perante as imagens apresentadas. E assim, seja esse projeto um fomento à discussão do tema abordado.

Referências

BEAUVIOR, Simone de. O segundo sexo 2 — A experiência vivida. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1949.

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