Vol. 06 num. 12 -2020- Imagens da religião: paisagens e territórios do sagrado

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Núcleo de Antropologia Visual - Banco de Imagens e Efeitos Visuais

Editoras Ana Luiza Carvalho da Rocha, UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil  Cornelia Eckert, UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Comissão Editorial Camila Braz, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — caamilabraaz@gmail.com Fabricio Barreto, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — fabriciobarreto@gmail.com Felipe da Silva Rodrigues, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — felipe.editoracao@gmail.com Guillermo Gómez, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — guillermorosagomez@gmail.com Joanna Sevaio, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — jmsevaio@gmail.com José Luis Abalos Junior, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — abalosjunior@gmail.com Leonardo Palhano Cabreira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — leo.csociais@outlook.com Manoela Laitano Chaves, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — manoelalaitano@gmail.com Marcelo Fraga, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — mrsfraga@gmail.com Matheus Cervo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — cervomatheus@gmail.com Thiago Batista Rocha, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — thiago.batista@ufrgs.br

Conselho Editorial Angela de Souza Torresan, University of Manchester, Inglaterra Carlos Masotta, UBA, Argentina  Carmen Sílvia de Moraes Rial, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Christine Louveau de la Guigneraye, Centre Pierre Neville, Université d’Évry-Val-d’Essonne, Maître de conférences en communication, França  Daniel Daza Prado, IDES, Argentina  Daniel S Fernandes , UFPA, Universidade Federal do Pará — Campus Bragança  Fernando de Tacca, Unicamp, Brasil  Flávio Leonel da Silveira, Universidade Federal do Pará, Brasil  Gisela Canepá Koch, Departamento de Ciencias Sociales de la Pontificia Universidad Católica del Perú, Perú  Jesus Marmanillo, Universidade Federal do Maranhão, Brasil  João Braga de Mendonça, Universidade Federal da Paraíba, Brasil Luciano Magnus de Araújo, Universidade Federal do Amapá, Brasil Luiz Eduardo Achutti, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil  Milton Guran  Paula Guerra, Universidade do Porto, Portugal  Renato Athias, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil  Rumi Kubo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil  Sarah Pink Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, Austrália  Sylvaine Conord, Université Nanterre, França www.ufrgs.br/biev/ medium.com/fotocronografias fotocronografia@gmail.com +55 (51) 3308 6647


num. 12

Organização José Luís Abalos Júnior - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), Brasil  Hermes de Sousa Veras - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), Brasil  Fotos da Capa e Contracapa Daniel Meirinho, Leandro Barbosa dos Santos, Diego Omar da Silveira, Helon da Silva Coelho, Renan Jorge Souza da Mota, Yandrei Souza Farias e Fábio Gama Soares Evangelista Diagramação e Editoração Felipe da Silva Rodrigues - Pesquisador associado Biev - UFRGS, Brasil

foto crono Imagens da religião: pa isagens e terr itór ios do sagrado

2020

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vol. 06


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Sumário vol.06 num.12

Imagens da Religião: Pa isagens e Terr itór ios do Sagrado

Apresentação

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Religião em imagem e movimento

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Na função” - fotoetnografia de um dia no terreiro de candomblé

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Divino: A Festa do Divino em São João del-Rei

34

Dia de São Jorge Ogum do Mundo

48

Penedo te abraça, Penedo te quer bem: O festejo a Santo Antônio no antigo Barro Vermelho

70

Una estrella resplandece: danza, trabajo y servicio en la peregrinación al Señor de Qoyllurit’i

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José Luís Abalos Júnior Hermes de Sousa Veras

Aisha - A. L. Diéne

Thiago de Andrade Morandi

Fábio Gama Soares Evangelista

Paula Louise Fernandes Silva

Mirrah Iañez Gonçalves Da Silva Sofía Silva

La realización de “El Divino Rostro”: Un documental de la danza de Santiagos

102

Peregrinos em Sodo, Haiti

122

José Manuel Moreno Carvallo David Robichaux Haydel Jorge Martínez Galván Nadège Mézié


142

Laroyê, Exu Mulher! A Festa da Rainha

144

A dança dos orixás: quando o sagrado é arte do corpo

160

O jabá de Ogum

178

Corpo-Nanã: uma experiência de encantamento no manguezal

194

Os encantos da encantaria: imagéticas do encantar-se

206

A sombra da Jurema

208

Um Toque para os Encantados

226

Territórios encantados: etnografias visuais das religiões populares em Parintins (Amazonas)

240

O universo ritualístico do povo indígena Jiripankó: espaços, personagens e paisagens

256

A performance ritualística no Toré Pankará — Fotoetnografia do encantamento

276

Conclusão

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Ritual e(é) imagem: gestos, corpos e materialidades

Jean Souza dos Anjos

Leandro Barbosa dos Santos Lucas Marques

Cleyce Silva Colins Larissa Colins Micenas

Clédisson Junior

Kauã Vasconcelos

Diego Omar da Silveira Helon da Silva Coelho Renan Jorge Souza da Mota Yandrei Souza Farias

José Adelson Lopes Peixoto Yuri Franklin dos Santos Rodrigues

Daniel Meirinho


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2020

Apresentação José Luís Abalos Júnior ¹ Hermes de Sousa Veras ²

vol. 06 num. 12 Imagens da religião: pa isagens e terr itór ios do sagrado

Quando tiro uma fotografia, não sou eu que fotografo, mas alguma coisa dentro de mim que aperta o clic sem o meu próprio domínio… (Veger, P. 1991)

Religião e fotografia. Imagem e Sagrado. De um lado, a Antropologia Visual e da Imagem. De outro, a Antropologia da Religião. Quais os desafios no debate sobre as fronteiras, aproximações e distanciamentos entre essas duas áreas? A gênese deste dossiê parte da própria trajetória de pesquisa dos organizadores, que têm formação no Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL/PPGAS/UFRGS), no Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/ PPGAS/UFRGS) e no Núcleo de Antropologia da Religião (NER/PPGAS/UFRGS). Ao perceber a Revista Fotocronografias como um espaço interessante para publicações textuais e imagético/fotográficas, que articulem o tema da religião com o da imagem, propomos esse dossiê que, desde a construção da sua chamada, se mostrou, para nós pelo menos, como um horizonte muito interessante de composição.

1 - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS) tem vínculo com o Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL/PPGAS/UFRGS) e com o Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/PPGAS/UFRGS) realizando pesquisas que envolvem o tema da imagem, arte, cidade e memória. abalosjunior@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2821-0969 http://lattes.cnpq.br/2132831693109488 2 - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), participa como membro doutorando do Núcleo de Antropologia da Religião (NER/PPGAS/UFRGS), e do MARES — Religião, arte, materialidade, espaço público: grupo de antropologia (UFRGS/CNPq). Também atua como pesquisador do LEBARA — Religião e Sociedade (UNIFESSPA/CNPq). Realiza pesquisas junto a povos de terreiro e encantaria na Amazônia paraense. hermesociais@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-5740-4028 http://lattes.cnpq.br/0623441518771115


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A relação entre religião e fotografia é historicamente marcada pela constituição de grandes imagens que se tornaram ícones das descobertas de novos modos de crer e estar no mundo. Também passou por significativas contradições éticas, quando pesquisadores/fotógrafos se aventuraram com suas lentes no território religioso³. Contudo, mais que construir uma produção visual sobre o assunto, as análises antropológicas se detinham, e muitas ainda se detêm, em uma reflexão sobre o material visual produzido por diversas matrizes religiosas. O que é muito importante para o acompanhamento do processo de difusão, crescimento e embate entre distintas matrizes religiosas⁴. Por outro lado, Birgit Meyer (2018) e outras pessoas têm mostrado que a influência da análise de Max Weber do protestantismo nos estudos de religiões néo e pentecostais, mas também outras religiões cristãs, acaba por fazer com que esses estudos deixem de lado as estéticas e materialidades. Há o esforço para que isso seja revisto. Contudo, devemos mencionar que nas religiões de matrizes africanas esses aspectos sempre estiveram presentes, justamente pela própria epistemologia e corporalidade dessas religiões. Se as pesquisas nem sempre estiveram atentas a isso, as lideranças de religiões de matrizes africanas e seus coletivos mostram que corpo, espírito, ritmo e estética sempre caminham com certa materialidade e re-existência. Pierre Verger parece ser um marco na união entre religião e imagem. O fotógrafo franco-brasileiro territorializou-se em Salvador, na Bahia, em 1946, constituindo uma relação profunda com as religiões de matrizes africanas. Através da fotografia produziu imagens que marcam a história desse casamento entre fotografia e religião⁵. Também influência metodologicamente o campo através do “método instintivo” no qual o fotógrafo e etnógrafo privilegia a espontaneidade das expressões e das cenas, buscando imagens não marcadas por uma composição estudada. Todavia, não se pode deixar de colocar um contraponto à sua visão relativamente idealizada do candomblé e da harmonia racial na Bahia. (Sauty, 2011. p 421). Umas das preocupações que nos acompanhou nesse processo de edição, montagem e curadoria deste dossiê foi a da vinculação dos ensaios com 3 - No Brasil, as primeiras imagens do Candomblé, como escreve Fernando De Tacca (2004), dizem respeito a uma reportagem do jornal O Cruzeiro com o título sensacionalista “As noivas dos deuses sanguinários”. O ensaio do fotojornalista José Medeiros, que depois veio a virar um livro chamado “Candomblé” em 1957, teve grande repercussão nacional. 4 - Na sétima edição do “Cadernos de Antropologia e Imagem” que traz o tema “Imagens da Religião” (1998) percebemos esse perfil mais reflexivo, por parte dos antropólogos e antropólogas, referentes às imagens produzidas por setores do campo religioso. 5 - Fundação Pierre Verger https://www.pierreverger.org/br/


9 la inha editorial da Revista Fotocronografias. A revista é construída pela equipe do Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/PPGAS/UFRGS) que há mais de 20 anos é um espaço acolhedor de pesquisadores e pesquisadoras com trajetória de pesquisa etnográfica envolvendo os temas da imagem, da cidade e da memória. Quais a conexões entre as imagens advindas do campo religioso com essa linha editorial? Para responder tal questão incluímos na chamada a ideia de “paisagem” e “território” como elementos identificadores dessa tradição de pesquisa. Assim, foram selecionados ensaios que, em maior ou menor medida, se relacionam com essas temáticas dentro da pesquisa com matrizes religiosas. Ao trazer um panorama geral das contribuições que aqui se encontram, nos deparamos com a realidade de que esta publicação não representa um “raio x” do campo religioso brasileiro, mas sim um esforço de apresentação de alguns trabalhos levando em consideração a pluralidade religiosa do país. Por uma diversidade de motivos a chamada acessou mais umas redes do que outras⁶.Nesse sentido tivemos quatro matrizes religiosas, nas suas heterogeneidades internas, que aqui aparecem: catolicismo (25%), religiões de matrizes africanas (38%), religiões que estão no cruzamento entre matrizes afros e indígenas (18,5%) e religiões ligadas aos povos indígenas (18,5%)⁷. Outro elemento a ser apresentado é a distribuição geográfica de onde as pesquisas foram realizadas. Dos 16 trabalhos aqui expostos, vemos uma preponderância da região nordeste, com sete trabalhos produzidos, seguidos do eixo sul/sudeste com quatro e da região norte com duas pesquisas. Complementam esse quadro três pesquisa realizadas fora do Brasil, no Peru, México e Haiti. As produções atravessam vários temas ora relacionados ao campo da Antropologia Visual, como o debate sobre representação imagética e restituição, ora mais ligadas ao campo da Antropologia da Religião, como as relações inter-religiosas e a encantaria. Interessante perceber as multiplicidades de conexões possíveis entre áreas e conceitos distintos que fazem um movimento de aproximação e distanciamento nos trabalhos aqui expostos. O sincretismo é uma noção que aparece em alguns trabalhos aqui apresentados. Esse controverso conceito é geralmente utilizado para descrever 6 - Desde de o início do processo de divulgação da chamada encaminhamos para vários núcleos e pesquisa em religião e em imagem, assim como para associações como ABA, ANPOCS, SBS, e la Asociación de Cientistas Sociales de la Religión do Mercosul (https://www.acsrm.org/nosotros/) 7 - Uma questão interessante a se colocar é a falta de trabalhos recebidos no campo evangélico (em todas as suas complexidades e diferenças). Apesar de várias pesquisas já terem apontado para os interditos da fotografia dentro do culto, o templo como local sagrado, além de outros empecilhos, isso não necessariamente impede que pesquisas sejam feitas em igrejas de menor escala, distribuídas pelos bairros. De qualquer maneira, nesse campo religioso, parece permanecer o estudo de produção e recepção das imagens, ao contrário da sua produção pela pesquisadora ou pesquisador.


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processos envolvidos nas religiosidades de matrizes africanas e indígena. A sua utilização acaba por congelar o colonialismo e racismo que engendrou o catolicismo enquanto religião central no Brasil. Sérgio Ferretti (2013), em sua síntese do conceito, relembra que se observamos bem, todas as religiões são sincréticas, no sentido em que recebem influências e se relacionam com as demais. Também reforça que várias lideranças dos movimentos negros e de terreiros repudiaram o sincretismo enquanto possibilidade de descrever as suas religiões. Diante disso, os ensaios apresentados neste dossiê, embora alguns mesmos façam uso do termo, apresentam em suas imagens a potência do encontro entre religiões de matrizes indígenas e africanas: a Jurema, a encantaria afro-brasileira dos terreiros na Amazônia, e as encantarias indígenas apresentadas no toré mobilizado pela nação Pankará, no sertão Pernambucano e pelos rituais praticados pela nação Jiripankó, no sertão alagoano. De maneiras diferentes, tanto em forma quanto em intensidade, talvez com exceção do caso Jiripankó que mostra um modo bem específico e particular de encantamento e religiosidade, essas imagens trazem aquilo que Abdias Nascimento denominou de único encontro que mereceu o nome de sincretismo, isto é, aquele entre as próprias culturas africanas entre si, e destas com as culturas e religiões indígenas (2016). Na relação afro-católica, que veremos em um ensaio apresentando neste dossiê, perpassa um movimento de resistência negra para a preservação de parte de sua religiosidade, assim como também um movimento de criação, esse aspecto envolvendo a criatividade e a resistência para pensarmos as relações afro-católicas que foram bem trabalhadas por José Carlos dos Anjos e Ari Oro (2009), Maria da Consolação Lucinda (2016), Talita Neves (2018), dentre outras e outros. Com os ensaios apresentados, acreditamos que eles evidenciam, a partir de suas narrativas visuais, muito mais a criação, a resistência e o movimento a partir do encontro de religiosidades, do que a simples imagem de um conceito congelado. Abordando questões diretamente ligadas ao perfil de quem produziu as imagens desta edição podemos perceber que recebemos trabalhos de pesquisadores e pesquisadoras que tem como temática principal o campo religioso, e usam a câmera fotográfica como aporte a suas pesquisas. Por outro lado, também temos submissões de antropólogas e antropólogos visuais que se aventuram em produzir fotografias do campo religioso. Estes dois perfis são complementados por pesquisas desenvolvidas em outras áreas, principalmente artes, arquitetura e fotojornalismo. Tal gênese da trajetória de quem produziu as pesquisas nos leva a debater


11 questões importantes na antropologia visual como a ideia de representação (Gonçalves, 2009; Novaes, 2008). Aqui muito trabalhos assumem o desafio de exporem imagens que dialoguem com as palavras, num fluxo contínuo que não se associa somente uma descrição textual e visual. Cabe ressaltar a importância das imagens não como mera ilustração, mas como elementos que revelam aspectos, por vezes ocultos quando somente analisados numa perspectiva textual, das situações religiosas e ritualísticas observadas. Isso significa que levar as imagens a sério (Samain, 2012) nos dá um duplo trabalho: um relacionado ao objeto de pesquisa, outro que diz respeito ao trabalho das imagens. Ao escrever sobre e fotografar religião, este duplo trabalho, parece ser mais significativo levando em conta os imponderáveis estéticos e éticos provenientes da fotografia no campo religioso. O conceito de “fotoetnografia” também parece ser bastante mobilizado por pesquisadoras e pesquisadores que trabalham com imagem no campo religioso. Construído no fim dos anos noventa pelo antropólogo Luiz Eduardo Robinson Achutti o conceito se disseminou por inúmeras redes de pesquisas que relacionam a fotografia com diversas áreas. E quando falamos no campo religioso a disseminação da fotoetnografia é notável. Isso demonstra o quanto o uso etnográfico de narrativas fotográficas que, na sua potência visual, passem uma mensagem que vá além do texto escrito, que “falem por si só” (Achutti, 1997), se difundiu enquanto conceito e enquanto prática na Antropologia Visual no Brasil. Outro elemento a ser mencionado ao falarmos das produções visuais contidas neste dossiê, é o da técnica fotográfica associada a questões de pesquisa em campo. Em muito trabalhos, após o conhecimento dos pesquisadores e pesquisadoras das questões culturais apresentadas por seus grupos de interlocutores e interlocutoras, a etnógrafa e o etnógrafo, equipado com câmeras, procura uma fórmula técnica adequada para deixar esteticamente exposta as dimensões êmicas do campo de pesquisa. Quando opções feitas como a velocidade de obturador, uso do preto e branco e enquadramentos dialogam com as expressividades religiosas aqui apresentadas, percebemos um quadro criativo de descrições. Por exemplo, captar movimentos através de uma baixa velocidade de exposição pode ser um diálogo interessante com uma religiosidade que vê algo de sagrado na ideia de movimentos. O uso do preto e branco, que aparece em 5 ensaios, também parece ser um imperativo estético conectado com as cosmologias dos grupos fotografados. Então, vimos aqui bons exemplos de como a técnica se associa ao êmico e de como o click fotográfico pode ser pensando de inúmeras maneiras, principalmente quando falamos de religião.


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Agregamos os ensaios em três eixos temáticos que dialogam, de certa maneira, entre si. O primeiro traz referência a uma interessante relação entre religião em movimento, referenciando festas, festejos e peregrinações que parecem ser o foco de muitas produções fotográficas no campo religioso. O segundo eixo é composto por ensaios nos quais os pesquisadores e pesquisadoras, através de uma prerrogativa ética, acessam momentos rituais das religiões pesquisadas, trazendo elementos como gestos, corpos e materialidades. Por fim, no último eixo, expomos as imagens da “encantaria” na qual as estéticas do encanto e do encantar-se são parte sensível, principalmente das imbricações entre religiões de matrizes africanas e indígenas. Referências ACHUTTI, L. E. R. Fotoetnografia : um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. 1a ed. Porto Alegre, RS : Livraria Palmarinca : Tomo Editorial, 1997 ABALOS JUNIOR, J. L; KUBO, R. Entrevista com Luiz Eduardo Robinson Achutti. Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 40, p. 393–410, ago/dez, 2015. CAMARGO, D. C. Imagética do Candomblé. Uma criação no espaço mítico-ritual. 2020. 161 f. Tese (Doutorado em Artes). Universidade Estadual de Campinas — Campinas, 2010. DE TACCA, F. Imagens do Sagrado — Entre Paris Match e O Cruzeiro, de Fernando de Tacca. Campinas: Unicamp, 2009. DOS SANTOS, A. B. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília: INCT, 2015. FERRETTI, Sérgio. Repensando o sincretismo. 2. ed. Edusp; Arché Editora, São Paulo, 2013, 280p. GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (Org.). Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. 308 p. LUCINDA, Maria da Consolação. Territórios Religiosos. Conexões entre passado e presente. 1ª edição. Curitiba: Appris, 2016, 285 p. MALYSSE, S. Um olho na mão: imagens e representações de Salvador nas fotografias de Pierre Verger. Revista Afro-Ásia n°24, p 325- 366, Salvador, 2000. MEYER, Bergit. A estética da persuasão: as formas sensoriais do cristianismo global e do pentecostalismo. Debates do NER, n. 34, p. 47–54, Porto Alegre, 2018. MORGAN, D. The Embodied Eye. Religious visual culture and the social life of feeling. Berkeley: University of California Press, 2012, Part I, p. 3–108. NASCIMENTO, Abdias do.O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016, 150p. NEVES, Talita Viana. O Moçambique de Tonho e Lena: um eixo na tradição afro-brasileira do reinado de Nossa Senhora do Rosário. 2018. 259f. Tese (Doutorado em Antropologia) — Universidade de Brasília, Brasília, 2018. NOVAES, Sylvia Caiuby (org.). Imagem, Magia e Imaginação: desafios ao texto antropológico. MANA 14(2): 455–475, 2008 ORO, Ari Pedro e ANJOS, José Carlos Gomes dos. A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre, SMC, 2009. 140 p. SAMAIN, Etienne.(org.). Como pensam as imagens. São Paulo. Editora da Unicamp, 2012. SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. Tradução Michel Colin. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. VERGER,, P. Entretien avec Emmanuel Garrigues. L’Ethnographie, numéro especial. Ethnographie et Photographie, CXXXIII, 1 (1991), pp. 45–178


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Religião em imagem e movimento Neste primeiro eixo, “Religião em Imagem e Movimento”, os trabalhos lançam mão de diversos conceitos para construírem suas narrativas. Estão presentes, principalmente, as noções de festa/festejo, peregrinação e a dança. Veremos surgir nos diversos ensaios apresentados o movimento enquanto experiência no território, mas também enquanto ação dele. Neste eixo também visualizamos as correspondências possíveis entre imagem, religião e patrimônio. A importância do registro imagético de celebrações históricas expondo a relevância de tais acontecimentos na memória e na história do Brasil. Aisha Diéne, com “Na função: fotoetnografia de um dia no terreiro de Candomblé” traz os engajamentos, cuidados e convivência mobilizados em um dia no terreiro, e embora uma festa seja iminente, a sua narrativa foca nos preparativos para que tudo ocorra bem e que a festa comungue humanos com Nkisses/Orixás, no terreiro de raíz quilombola Manzo Ngunzo Kaiango, localizado na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Uns dos aspectos interessantes no ensaio de Aisha é a demonstração dos processos cotidianos que envolvem a preparação de uma festa, e não necessariamente a festa em si. Ainda no estado de Minas Gerais, Thiago Morandy apresenta “Divino: A Festa do Divino em São João Del-Rei”, lançando mão de técnicas de congelamento das imagens, os movimentos das congadas são narrados em movimentos, cores e ritmos de uma manifestação que tem raiz na resistência de africanos que foram escravizados em solo brasileiro. Ogum e São Jorge se encontram no ensaio de Fábio Evangelista, “Dia de São Jorge Ogum do Mundo”, trazendo a celebração do santo orixá na cidade do Rio De Janeiro. Na zona norte carioca, temos a entidade na igreja e no terreiro, além de ser apresentada em um bar na região central da capital do estado. Em sua narrativa Fábio põe em movimento a devoção a um santo múltiplo, amado em sua possibilidade de proteção e ação a partir de suas armas, escudos e armaduras. Já Santo Antônio surge neste dossiê na cidade alagoana de Penedo, pelas lentes de Paula Fernandes. Ao correr pelas fotos, vemos pessoas se movimentando para o santo, e dessa maneira, a cidade e o território são modificados e atravessados pela festa: cavalgadas, peregrinações e diversas maneiras de se engajar materialmente com esse santo são apresentadas em “Penedo te quer bem: o festejo a Santo Antônio no antigo Barro Vermelho”. A seguir temos três contribuições de pesquisas realizadas por pesquisadoras e pesquisadores estrangeiros que se concentraram nas dimensões das festas e peregrinações do dossiê. Mirrah da Silva e Sofía Silva nos levam para a cidade peruana de Cusco em “Una estrella resplandece. Danza, trabajo y servicio en la peregrinación del Qoyllurit´y”. A paisagem andina compõe junto com as fotografias, as personagens que celebram e dançam a Qoyllurit´y, conjugando uma espiritualidade andina revestida de catolicismo. Já Manuel Moreno, junto a uma equipe, nos leva para o México, a 30 quilômetros da cidade do México,


15 para acompanhar as danças ofertadas para os santos. No caso, os santos aqui são as próprias máscaras produzidas pelos dançantes. No ensaio podemos acompanhar a fabricação dos santos, a sua utilização e a união entre santo e dançante: o santo dança. Por fim, Nadège Mézié encerra o primeiro núcleo temático com ““Peregrinos em Sodo, Haiti”. Em suas fotos, o vodu haitiano é vivenciado por mulheres e homens, quando há uma peregrinação anual à Sodó, vilarejo que fica na região central do Haiti. Nesse momento são celebradas a entidade do vodu haitiano, Ezili Dantò, junto com Nossa Senhora do Carmo (ou Nossa Senhora do Monte Carmelo) além de outras entidades do vodu haitiano. Na narrativa, a vida se engaja na natureza territorializada e celebrada junto aos espíritos do vodu.


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Aisha Angéle Diéne ¹

“Na função” — Fotoetnografia de um dia no terreiro de candomblé

Resumo: Acompanhar a intensa rotina de um dia no terreiro de candomblé perpassa por compreender algumas das várias atividades que ocorrem até se chegar ao momento da festa pública, circunstância pela qual o público externo à comunidade interage e celebra em conjunto com os membros e Nkisses/Orixás da casa. Palavras chave: Na função; Rotina; Terreiro de candomblé;

“In Function” — Photoethnography of a day in the yard of candomblé Abstract: To follow the intense routine of a day in the candomblé yard involves understanding some of the various activities that occur until the moment of the public party, circumstance by

which the public outside the community interacts and celebrates together with the members and Nkisses /Orixás of the house. Key words: In function; Routine; Terreiro de Candomblé;

1 - Arquiteta e Urbanista (CAU n° A153871–3); Mestranda em Antropologia Social — PPGAS/DAN/UnB (Bolsista CNPQ); Membra do corpo editorial da Revista Calundu (http://periodicos.unb.br/index.php/revistacalundu/index); aisha.diene@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-6297-5386; http://lattes.cnpq.br/4688462694996135.


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19 Os registros fotográficos a aqui expostos deriva de um trabalho de campo ocorrido entre os anos 2019 e 2020, onde uma das metodologias etnográficas utilizadas para a narrativa foi a Fotoetnografia (ACHUTTI, 2003), ambientado na comunidade Remanescente de Quilombo e terreiro de can-

domblé Manzo Ngunzo Kaiango, localizado no município de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte/MG.

Durante o período de vivência, acompanhei um dia sobressalente no cro-

nograma das atividades para os membros do terreiro, não era somente um dia de “função²”, mas um dia festivo em que o Nkisse³ da casa se-

ria celebrada. Era a festa do Nkisse da matriarca e Mãe de santo Mametu Muiandê- a sacerdotisa da casa. No candomblé costuma-se convidar a

comunidade externa para ir ao terreiro através das festas que costumam acontecer em datas previamente agendadas; são momentos de interação

e de celebração (SILVA, 2015), onde os Nkisses/Orixás e os membros da casa se relacionam no espaço limítrofe dessa interação: o Barracão.

“O barracão é uma espécie de salão onde a maioria dos ritos abertos acontecem e por onde a maioria dos ritos fechados perpassam. É a própria composição da comunidade, a sala de estar em uma casa onde somente os mais íntimos e familiares conhecem os demais cômodos. Todos transitavam por esse espaço, mas nem todos transitavam por todas as partes internas que o compõe. No centro do barracão, tanto no chão quanto no teto, estava uma espécie de representação de umbigo do terreiro, que o liga a todas as casas, pessoas e inquices que lhe antecederam. Assim, o barracão é também um espaço público que abriga não somente a comunidade do terreiro, como também a comunidade não adepta daquela liturgia; é um espaço ritualístico aberto a quem pertence à lógica do candomblé e a quem não transita por ele. Também é um espaço político, posto que simbolicamente é o espaço [dentro do espaço] da resistência do candomblé por excelência.” (DIÉNE, AHUALLI, 2019; p.6)

2 - Expressão usualmente utilizada pelos membros do terreiro para se referir ao momento que estão no ambiente religioso, limpando, brincando, orientando e realizando outras atividades litúrgicas. 3 - Palavra que remete à divindade para os povos de origem Bantu, comum nos candomblés de Nação Angola no contexto brasileiro.


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27 A intensa rotina de um terreiro durante os dias de atividade, rito e fes-

ta, incluem diversas funções para o preparo do espaço até o momento da grande festa. Lavar, passar, engomar roupas para usar na roda⁴, varrer, lavar, limpar os bancos que receberão os convidados, barracão e demais es-

paços internos que serão de uso comum; cozinhar e preparar o jantar que será servido após o momento festivo para os convidados; aquecer o couro

dos atabaques; todas essas atividades acontecem entre brincadeiras e o corre-corre das crianças, no horizonte onde o tempo cronológico vai de encontro a hora de receber os convidados e sempre o parece contrariar (FABIAN, 2013). A casa se prepara para festejar!

4 - Momento que antecede a festa, chamado pelos membros dos candomblés de Nação Angola de Jumberesu ou pelos de Nação Ketu: Xirê.


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É chegado o momento da grande festa e o Barracão logo se enche, tornado

pelos membros do terreiro e os convidados que se acomodam na plateia,

entre as cadeiras e esquadrias das janelas que compõem a arquitetura desse espaço político e intermediário que conecta a casa à comunidade externa (DA MOTTA LODY, 1987).

Referências ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotos e palavras, do campo aos livros. Studium, n. 12, p. 5–16, 2003. DA MOTTA LODY, Raul Giovanni. Candomblé: religião e resistência cultural. Editora Atica, 1987. DIÉNE, A. A. L.; AHUALLI, I. F. LUGAR DE MAIS VELHXS? Uma observação fenomenológica dos limites espaciais no terreiro de candomblé Tumba Nzo Jimona dia Nzambi. 2019. FABIAN, Johannes. 2013 [1983]. “O tempo e o outro emergente”. In O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes. Pp. 39- 70. SILVA, Vagner Gonçalves da; O Antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e Texto Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-brasileiras/ Vagner Gonçalves da Silva. — 1° ed., 2ª reimp. — São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.


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Thiago de Andrade Morandi ¹

Divino: A Festa do Divino em São João del-Rei Resumo: Ensaio fotográfico realizado no principal dia da festa de Pentecostes em um dos bairros mais populosos de São João del-Rei, cidade histórica em Minas Gerais. Divino busca retratar o festejo e emoções de grupos de congado que participam da Festa, para isso as fotos foram captadas em baixa velocidade e com um flash externo para congelar determinados movimentos. Palavras chave: festa do divino, congado, sincretismo, fotografia documental

Divino: The Festa do Divino in São João del-Rei Abstract: Photo shoot held on the main day of the Pentecost feast in one of the most populous neighborhoods in São João del-Rei, a historic city in Minas Gerais. Divino seeks to portray

the celebration and emotions of groups from Congo that participate in the Party, for this the photos were captured at low speed and with an external flash to freeze certain movements. Key words: feast of the divine, congado, syncretism, documentary photography

1 - Doutorando em Ciências Sociais (PUC Minas) — Bolsista da FAPEMIG — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais morandi.pesquisa@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-7265-7288 http://lattes.cnpq.br/4605268133887821


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Este ensaio fotográfico registra o principal dia da Festa do Divino no bairro de Matosinhos, em São João del-Rei, cidade histórica em Minas Gerais. A festa é uma das principais no calendário cristão e celebra a descida do Espirito San-

to sobre os apóstolos, Nossa Senhora e outros seguidores de Jesus Cristo. O

dia de Pentecostes é móvel e acontece 50 dias após o Domingo de Páscoa, quando é celebrada a Ressureição de Cristo.

Em São João del-Rei essa festa acontece desde 1774 e é chamada de Festa do Divino, historicamente ela tem três momentos principais: 1. 1774 a 1924,

considerada a festa mais popular da cidade, reunindo todo tipo de público e eram realizadas cavalhadas, simbolizando as disputas de cristãos e mouros em torneios medievais. 2. 1924 a 1997 com celebrações internas e sem cava-

lhadas. Em 1924 houve sua suspensão, segundo Adão (2011) o frei Cândido e

padre Gustavo, responsáveis pela Igreja de Matosinhos na época, solicitaram a suspensão da festa, “o pedido feito ao arcebispo de Mariana, Dom Helvécio Gomes de Oliveira, alega dentre outros motivos o excesso de jogatina e o ca-

ráter profano da mesma” (ADÃO, 2011, p. 196). 3. Em 1998 a Festa do Divino

é resgatada por uma comissão de pessoas ligadas à igreja, pesquisadores e leigos, que inseriram a participação de grupos de congados, substituído as cavalhadas.

A Festa manteve outras características de seu primeiro momento, como a figura do Imperador do Divino e diversos elementos simbólicos² ligados às fes-

tividades antigas de influência ibérica. A inserção dos congados possibilitou ainda outro resgate, que foi o das influências de raízes africanas presentes na cidade desde seu período colonial.

Os grupos de congados surgiram em Minas Gerais no Século XVIII e ao ce-

lebrar santos católicos como Santa Efigênia, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, as pessoas escravizadas encontravam uma forma de cultuar em

forma de sincretismo os Deuses africanos, conhecidos como Orixás. Para Ferreira (2017) alguns elementos como guias, pimentas e objetos naturais diversos são alguns dos diversos símbolos de sincretismo presentes no Congado, sobretudo nas vestimentas e instrumentos de seus integrantes.

2 - Mais detalhes sobre a festa e seus símbolos podem ser acessados no Portal da Comissão do Divino, que é responsável pela organização das fes2tividades na Igreja Bom Jesus de Matosinhos, em São João del-Rei. Disponível em: http://www.portaldodivino.com/Brasil/jubileu.htm. Acesso em 28 mai. 2020.


37 O ensaio fotográfico Divino busca retratar em formato de uma fotoetnografia (ACHUTTI, 2004) um pouco das devoções presentes na Festa do Divino, com um recorte de enquadramento (BUTLER, 2018) intencional com propósito de destacar movimentos e ações temporais da prática religiosa. Para trazer as-

pectos de transição de tempo a exposição da captação fotográfica foi de um

segundo, utilizando um flash externo na mão afim de congelar determinados acontecimentos.

Ao utilizar a baixa velocidade na captação das imagens buscou-se revelar o não revelado, “a fotografia, no que supostamente revela e no caráter indi-

cial, revela também o ausente, dá-lhe visibilidade, propõe-se antes de tudo

como realismo da incerteza” (MARTINS, 2019). As imagens do ensaio trazem rastros de luzes, movimentos fantasmas e outras características que carre-

gam no seu ato intuitivo (OSTROWER, 1997) o desejo de retratar o festejo e

as emoções na manifestação dos congados durante a procissão da Festa do Divino.

Os registros foram captados originalmente em RAW com uma câmera Nikon 5100, com objetiva Sigma 18–50 mm (f.2.8–4). A maior parte das fotos utilizou a seguinte configuração técnica: abertura f.8 ou f.10, com 1s de velo-

cidade e ISO 100 ou 200. Um flash externo Nikon SB 600 era disparado de

forma manual, enquanto os cliques eram realizados. Na prática com a mão esquerda o flash era disparado e com a mão direita o registro era feito. Os ajustes finais das imagens foram feitos no software Adobe Photoshop Ligh-

troom e finalizados em formato JPEG, com tamanho médio de 12 megapixel (3500X 2318 pixels). Referências ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS: Tomo Editorial, 2004. ADÃO, Kleber do Sacramento. Diversões e devoções em São João del-Rei: um estudo sobre as festas do Bom Jesus de Matosinhos, 1884– 1924. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP: [s.n.], 2001. BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? 4. ed. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. FERREIRA, Talita Ariane da Silva. Sincretismo, cultura e tradição: diálogos. CSOnline — Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, n. 24. 2017. MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. 2 ed., 5º reimpressão.- São Paulo: Contexto, 2019 OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 6 ed.- Petrópolis: Editora Vozes, 1997


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Fábio Gama Soares Evangelista ¹

Dia de São Jorge Ogum do Mundo Resumo: O presente ensaio é uma homenagem a devoção das pessoas no dia de São Jorge Ogum. Desde 2007 fotografo as festividades deste santo. A maior parte destes registros fotográficos foram realizados no bairro de Quintino, Rio de Janeiro. São Jorge é múltiplo. Por onde passa a imagem de São Jorge acontecem transformações nos espaços. Seus devotos formam um conjunto heterogêneo de pessoas. Por meio desta festividade é possível refletir sobre várias questões que atravessam o Brasil contemporâneo. Palavras chave: São Jorge, Ogum, festa, santo, devoção. Religiosidade

World St. George Ogum Day Abstract: This essay is a tribute to people’s devotion on the day of São Jorge Ogum. Since 2007

I photographed the festivities of this saint. Most of these photographic records were made in the neighborhood of Quintino, Rio de Janeiro. São Jorge is multiple. Wherever the image of São Jorge passes, transformations take place in spaces. Its devotees form a heterogeneous group of people. Through this festivity it is possible to reflect on several issues that cross contemporary Brazil. Key words: São Jorge, Ogum, party, saint, devotion. religiosity

1 - Mestrando em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas — FEBF /UERJ — Bolsista CAPES e-mail: fabiofotocaffe@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-4829-4672 http://lattes.cnpq.br/4624194152881661


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O presente ensaio é uma homenagem a devoção das pessoas no dia de São Jorge Ogum. Desde 2007 fotografo as festividades deste santo. O guerreiro me acompanha desde a infância, pois na casa de minha avó em Vila Valquei-

re (Rio de Janeiro) tem um quadro de São Jorge, essa imagem ficou gravada na minha história de afetos que trago comigo. Outra lembrança que trago no peito é que sempre ao ir para o colégio eu passava pela igreja Matriz de São

Jorge em Quintino, essa imagem também passou a morar no meu coração. Imagem potente que traz sentimento de garra, de companheirismo como diz a música domingo 23 composta por Jorge Benjor, devoto de São Jorge, e

na minha memória afetiva cantada por Rita Beneditto: “Nunca neste mundo se está sozinho”.

A maior parte destes registros fotográficos foram realizadas no bairro de Quintino, Rio de Janeiro: na Igreja Matriz de São Jorge e nos arredores (incluindo o caminho que a procissão percorre). Outras fotos deste ensaio foram

realizadas na gira para Ogum no centro espírita CEUIM em Irajá , no Morro da

Providência e em um bar em Ramos. Estas fotografias² em sua maioria foram

publicadas no facebook do projeto Folia de Imagens que realizamos desde 2013.

O projeto Folia de Imagens foi criado por nós do coletivo Favela em Foco inicialmente para fotografar o carnaval em favelas e subúrbios do Rio de Janei-

ro. Com o passar do tempo fomos estendendo a documentação fotográfica

para outras festas populares no Rio de Janeiro dentre elas a festa de São Jorge.

Ao ver esse conjunto de fotos pode — se perceber como os devotos fazem circular a imagem deste santo. São Jorge está presente na igreja, nos terrei-

ros, centros espíritas, nas ruas, nas casas. O guerreiro está presente de dia e durante a noite protegendo os nossos caminhos.

A imagem de São Jorge provoca transformações nos espaços. Estamos dia-

logando com o conceito de terreiro elaborado por Simas e Rufino (2018).

Segundo eles um espaço pode ser transformado num terreiro se forem 2 -Algumas destas fotografias participaram de exposições fotográficas como por exemplo As Muitas Faces de Jorge no Museu de Folclore Edison Carneiro (RJ) em 2011.


51 realizadas ali certas atividades rituais. Ou seja, uma rua pode ser um local funcional de passagem de pessoas e carros, mas se forem realizados rituais este mesmo local pode se transformar numa passarela sagrada por onde

desfila a imagem do santo guerreiro. Todo o espaço por onde a imagem passa se transforma num espaço sagrado. Um profundo encantamento toma o

bairro de Quintino principalmente no caminho da procissão. Pessoas ficam nas ruas, calçadas, janelas de suas casas, cada uma aguardando da sua ma-

neira, orando, agradecendo. Um aguardado momento é quando a imagem

passa pela estação de trem de Quintino. Ali são jogadas flores em cima do santo.

Outro diálogo também se dá com o texto de Magnani (2003) uma vez que a

calçada no subúrbio é um espaço muito importante onde as pessoas reúnem para jogar futebol, fazer churrasco. Aqui temos modulações do espaço para

além da dicotomia entre casa x rua. A calçada é um espaço intermediário

onde temos a proximidade do lar e os imprevistos da rua. Em uma das fotos deste ensaio podemos ver um bolo e em cima a imagem de São Jorge. Isto

estava na calçada em frente a uma casa. O bolo foi feito por dona Vanda em homenagem a São Jorge, sendo (2019) o quarto ano que ela faz isso.

Outra transformação no espaço durante a festa de São Jorge: parte da rua Clarimundo de Melo é fechada para facilitar o caminhar da multidão que fre-

quenta a igreja e os arredores neste dia ³. Este trecho até a igreja é ocupado por vendedores dos mais variados produtos: roupas, bijuterias, flores, comi-

das. A medida que vamos caminhando rumo a igreja vemos do lado esquerdo alguns bares que ficam lotados neste dia, em frente a um deles um grupo de pessoas se reúne tocando sambas e uma roda de capoeira em homenagem ao santo guerreiro. Profano e sagrado juntos.

A partir de nossas vivências nos dias de festa podemos perceber a variedade de pessoas que costumam frequentá- la. Assim nos diz a pesquisadora Ana Paula Alves Ribeiro.

3 - Vale frisar que esta ação é feita pela prefeitura que desde 2017 é comandada por Marcelo Crivella que é evangélico e é sobrinho de Edir Macedo líder da Igreja Universal do Reino de Deus. A cidade está em permanente disputa por diversos grupos sociais. É importante lembrar também que o conceito de religião também não é fixo, estando em constante disputa.


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O grupo de devotos está longe de ser homogêneo, podem ser identificados em sua multiplicidade e se intercruzam. Pessoas que afluem de todas as partes da cidade para estar nas missas e comemorações no dia de Santo. Pessoas pagando, renovando e fazendo promessas. Católicos e umbandistas. Músicos e integrantes de várias escolas de samba. (RIBEIRO. 2016, p. 170)

Em matéria do Jornal O Globo escrita por Jéssica Lauritzen podemos ver his-

tórias de devotos como a de Waltecir Marques, de 40 anos, educador físico.

Ele conta que o parto do seu filho seria de risco e coincidiu com o dia de São Jorge: “Pedi muito pelo meu filho, e deu tudo certo. Eu não peço para conquistar bens materiais; quero saúde para trabalhar.”

Como conclusão gostaríamos de falar sobre a importância de São Jorge

Ogum nestes tempos de Coronavírus onde muitas pessoas morreram ou fo-

ram diagnosticadas com covid-19 no Brasil. Isso sem falar nos casos que não

são registrados. O santo guerreiro pode nos transmitir confiança, coragem

para vencermos tal cenário. Mas aliado a isso se faz urgente e necessário constantemente lutarmos pela construção de uma sociedade antirracista,

mais justa e cobrarmos as autoridades para a tomada de medidas que visem reduzir os impactos do Coronavírus no Brasil.

Referências LAURITZEN, Jéssica. Devotos contam suas histórias de amor e gratidão a São Jorge. (Matéria publicada no jornal O Globo no dia 23 de abril de 2016) https://oglobo.globo.com/rio/bairros/devotos-contam-suas-historias-de-amor-gratidao-sao-jorge-19137354 (Consultado no dia 31 de maio de 2019) MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no Pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. São Paulo. ucitec/UNESP, 2003 RIBEIRO, Ana Paula Alves. Caminhos de Ogum: Florindo as ruas, festejando São Jorge e Ocupando a Cidade. Dossiê Capitalismo Cultura. Arquivos do CMD, Volume 4, N.2 Jul/Dez, 2016 https://periodicos.unb.br/index.php/CMD/article/view/9152/8155 SIMAS, Luiz Antonio & RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro. Editora Mórula, 2018.


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Paula Louise Fernandes Silva ¹

Penedo te abraça, Penedo te quer bem: O festejo a Santo Antônio no antigo Barro Vermelho Resumo: O ensaio resulta do trabalho final do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, intitulado por “Patrimônios Coexistentes: o entrelaçar do Padroeiro com o Bairro Santo Antônio, na cidade de Penedo”, sob orientação da Profª Drª Juliana Michaello Macedo Dias. Tem como objetivo apresentar uma experiência etnográfica durante o trezenário de Santo Antônio, onde busco entender as relações entre homem, religiosidade e transformações do espaço urbano, por meio da fotografia. Palavras chave: festa do divino, congado, sincretismo, fotografia documental

Penedo embraces you, Penedo holds you dear: Saint Anthony’s festivities in the old Barro Vermelho neighbourhood Abstract: This paper derives from the Architecture and Urban Planning Bachelor Degree’s final

thesis named “Coexisting heritage: the connection between the patron saint and the Santo Antonio neighbourhood in the city of Penedo”, under the Professor Ph.D Juliana Michaello Macedo Dias mentorship. The work aims to present an ethnographic experience during the 13-day Saint Anthony’s festivities, where I seek to understand the relations between men, religiousness and urban space transformations through photography. Key words: Ethno-photography. Heritage. Celebration. Penedo-AL.

1 - Bacharela em Arquitetura e Urbanismo-Universidade Federal de Alagoas. paulalouise93@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-6199-2088 http: //lattes.cnpq.br/6306700650722941


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Para integrar a necessidade de imaginar o sagrado, a fotografia no universo da fé é uma tentativa de materializar os símbolos intangíveis. A imagem não

é vista aqui como congelamento, e sim um instante que apresenta camadas

de significados codificados, registros das relações mais íntimas de mundos invisíveis.

Localizada ao sul do estado de Alagoas, às margens do Rio São Francisco, Penedo tem origens que remontam ao período colonial. A então Vila do São

Francisco teve seu primeiro orago Santo Antônio, por volta de 1614, permanecendo padroeiro durante anos, até a mudança para Nossa Senhora do Ro-

sário. Segundo Vainfas (2003), a devoção à Santo Antônio se popularizou no Brasil ao longo da colonização portuguesa, sendo este o santo com maior número de freguesias, vilas e cidades dedicadas, tamanha sua popularidade.

Permanências dessa devoção podem ser notadas no bairro Santo Antônio,

o qual o santo é patrono, popularmente conhecido como Barro Vermelho. Próximo ao centro histórico da cidade, ruas estreitas são testemunhas do

processo de povoamento do Penedo. Margeia o rio, que mantém o ofício da pesca e preserva na arquitetura a memória de um bairro industrial.

Durante o Trezenário de seu santo protetor o bairro passa por um processo

de transformação efêmera, novos equipamentos urbanos são associados aos

existentes: gambiarras, bandeirolas, parque, além das barracas de comidas e bebidas. Tais características são oriundas de tradições portuguesas, em decorar as ruas com ornatos temporários, principalmente durante as procissões.

A festa é composta por diferentes camadas, e estabelecendo um vínculo de confiança adentrei no espaço sagrado e profano do Trezenário de Santo Antônio dos Pobres. Nesse ensaio fotográfico, retrato uma miscelânea de devoção, pessoas e espaço de diversão (SERRA, 1999), caracterizada pelo en-

contro e peregrinação ao santuário, ultrapassando os limites físicos da igreja e ocupando a rua, através de conexões e interações entre pessoas e lugar.


73 O bairro vive dias de euforia e o marco inicial da trezena é a “Cavalgada de Santo Antônio”. Nas ruas, carroças são decoradas e pessoas circulam, outras permanecem nas calçadas, sentadas, ou por trás das portas. Os animais são direcionados à frente da igreja para receber a benção do pároco. As toadas

se misturam ao ronco dos motores de carros e motos, que acompanham o trajeto.

Ao entardecer do dia seguinte uma escada é colocada na rua, em meio a de-

sordem e gritos, tem-se início a decoração. Subir aqueles degraus é um ato de coragem e porque não devoção? Um leque de bandeirolas se entrelaça

às gambiarras e demarca o espaço da festa. O interior da igreja mantém-se em silêncio profundo, contrastando com a rua, parece aguardar os fiéis para celebrar as treze noites de orações, agradecimentos, promessas; são dias

de encontros, abraços e cânticos. A festividade ultrapassa os limites físicos da igreja e se estende para as ruas, a frente do templo se comporta como

um lugar de apresentações, janelas tornam-se arquibancadas e mesmo com chuva um público diverso se acomoda na rua. O parque parece estar no rit-

mo da música, as luzes encantam os olhos e divide o espaço com bancas de guloseimas.

No dia que antecede a peregrinação a imagem de Santo Antônio é retirada do altar e levada ao andor, como num ritual. O fiel designado para a função

tem a imagem na altura dos olhos, sendo um momento único de cuidados ao seu padroeiro.

A procissão é o momento mais aguardado, a ansiedade é vista nas ruas. As

casas estão decoradas, na janela o tecido vincado parece mostrar que foi guardado para a ocasião. Oratórios, bandeiras, anjos, plantas e toalhas es-

tampadas, o que têm de mais belo nas casas é utilizado para receber o santo

padroeiro. As pessoas aguardam nas calçadas, sozinhas ou acompanhadas, independente das crenças que às movem. Naquele chão, que brilha em papéis coloridos se dá o serpentear.


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Salvas de fogos, cantos, e palmas marcam o trajeto. Com o anoitecer, a peregrinação retorna ao bairro, uma névoa provocada pelos rojões toma o es-

paço, entre velas, flores e olhares. Mais adiante, na porta da igreja, a noite escura emoldura o mastro da bandeira do padroeiro, prestes a ser recolhido. Os fiéis contemplam, acenam e se despedem, ao som das ladainhas, chega ao fim a trezena de Santo Antônio.

Após treze dias imersa na celebração, me fiz distante do bairro por um perío-

do, essa ruptura é aqui destacada com a quebra da narrativa fotográfica. Ao observar as imagens percebi que as mesmas poderiam ser utilizadas como

um recurso de reaproximação, utilizei os registros capturados durante a tre-

zena para presentear alguns moradores. Os cartões feitos a mão, continham a ladainha de Santo Antônio e registros espontâneos dos fiéis, sendo este um gesto de agradecimento e mote introdutório para as memórias da festa.

Ponto crucial para a narrativa, as imagens passaram a ser vistas como recor-

tes do tempo no espaço que apontam para o invisível, representam instantes

do momento presente que podem ser usados no futuro para a construção de novas realidades (KOSSOY, 1999).

Embora sendo efêmera, pois só acontece uma vez a cada ano, a festa de Santo Antônio confere ao bairro um significado próprio e através da fotografia foi possível acompanhar o processo de transformação do lugar. Utiliza-

da inicialmente para descobrir, em seguida reaproximar, e posteriormente contar, a captura da imagem passou a ser uma ferramenta singular na construção da pesquisa.

Referências KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999. SERRA, Ordep. Rumores de Festa. Salvador; Edufba, 1999b. VAINFAS, Ronaldo. Catolização e poder no tempo do tráfico. Rio de Janeiro; Tempo, 1998.


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Una estrella resplandece: danza, trabajo y servicio en la peregrinación al Señor de Qoyllurit’i Resumo: El ensayo acontece entre imágenes y narrativas etnográficas que procuran captar un microcosmos de religiosidad popular. Qoyllurit´i es una peregrinación a 5.200 mts. de altura que conjuga espiritualidad andina y catolicismo. Las imágenes blanco y negro invitan a un lúdico recorrido entre pasado y presente. En la expresión de los danzantes se transmite la fuerza y el esfuerzo de estar allí que, salvando las distancias, para las autoras contó con dos viajes (2018–2019), profundas bocanadas de aire y abundante abrigo. Palavras chave: Lo andino; Movilidades; Peregrinación; Qoyllurit´i.

A star shine: dance, work and service in pilgrimage to the sir of qoyllurit’y Abstract: The essay takes place between images and ethnographic narratives that seek to capture a microcosm of popular religiosity. Qoyllurit´i is a pilgrimage to 5,200 meters. of

height that combines andean spirituality and catholicism. The white and black images invite us to a playful temporality between past and present. In the expression of the dancers it is transmitted the strength and the effort to be there that, despite the distances for the authors, included two travels (2018–2019), abundant coat and shortened breath. Key words: The Andean; Mobilities; Pilgrimage; Qoyllurit´i.

1 - documentalista, fotógrafa y educadora en Universidade Livre dos Saberes Amotara Zabelê offilmes@gmail.com |www.mirrahianez.com https://orcid.org/0000-0001-7562-0296 2 -Antropóloga de la Universidad Nacional de La Plata (Buenos Aires, Argentina). Profesora de escuelas medias sofiasilva1986@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-9369-722X

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Mirrah Iañez Gonçalves Da Silva ¹ Sofía Silva ²


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Mujer trabajando. (F


Foto: Mirrah da Silva)

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En esta peregrinación, muchos/as rememoran el hielo que antes lo cubría todo. Las laderas montañosas del Ausangate, en los andes centrales del Perú, sin duda han mermado sus hielos, pero continúan recibiendo cami-

nantes, y cada vez más. Son cientos/as de miles que atraviesan un camino

de altura durante la luna llena de junio. Las fotografías de hoy y de ayer han demorado sus focos en los varones, por cierto, porque la conmemoración al taytacha Qoyllurit´i³ tiene su centro en la masculinidad, es esencialmente la celebración del hombre andino⁴.

Ellas, las mujeres, trabajan de cocineras los días y noches en que todo ocur-

re. Me han hurk´awan⁵ y cocino por devoción a toda la comparsa, alguna dice. La mujer, allí, alimenta a multitudes. Es la vendedora de velas, de abrigos y de objetos a ofrendar. Sólo unas pocas danzan. Si la ocasión se presenta a lo mejor jueguen a “comprarse un carro” o sueñen con ser dueñas de sus comercios, en las alasitas⁶ de más altura.

La noche en que están por subir al nevado se las oye conversar, y juntar los billetes “sencillos” que sacan de sus delantales para contarlos. Mientras

regatean al hombre de los caballos, ya gélido por el viento y el frío, las más jóvenes se animan a cargar los enseres pesados y las niñeces sobre sus cuer-

pos. Para subir ligeras, las más adultas acomodan minuciosamente garrafas, mercadería y cruces en el lomo oblicuo del animal. Quizás, la pose de quie-

tud de la mujer pelando papas, sea un espejismo captado por la cámara, un hallazgo inusual. No ha de vérselas tan detenidas en las orillas de la peregrinación.

2 - taytacha: padre o padrecito, expresado con afecto y deferencia. Qoyllurit´y: estrella resplandeciente. 3 - Declarada Patrimonio Cultural Inmaterial de la Humanidad por la UNESCO en 2004. 4 - hurk´awan: acción de invitar a uno/a a cumplir con un compromiso. Suele hacerse con un pan de sabor dulce que prepara especialmente la familia encargada de realizar una fiesta o patrocinar a una comparsa. 5 - Alasitas: espacio de juego a través de objetos y rocas (lajas y esquistos) de la superficie montañosa.


91 La danza ch´unchu. (Foto: Mirrah da Silva)


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El qhapaq qolla enmascara

Las plumas, y la virtud de las aves de comunicarse con otros mundos, traslada al público hacia el corazón de la amazonía. Desde la selva y en otro tiem-

po, partieron las ofrendas al inca. El danzante (re) presenta al poderoso inca, al oneroso anfitrión, con brillos y joyas. Es el qhapaq ch´unchu ⁷ que danza por los siglos, el privilegiado por las deidades (Aguayo Figueroa, 2009). Poder, dinero y capa, cabello largo azabache y bastón de chonta incluye la danza ch’unchu, de pasos y brincos al compás de la melodía del chákiri. 7 - qhapaq ch´unchu: el gran nativo de la selva.


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ado. (Foto: Mirrah da Silva)

Pese a ello, debajo del traje costoso, no existe más que la simpleza del traba-

jador de la chacra, preocupado por el alimento de una familia numerosa; el minero que clama por cinco días libres a su empleador, o el constructor de casas que se ha salvado de otra caída mortal días atrás. La música de vientos

y bombos resuena incansable durante la celebración, de sol a sol, noche tras

noche. Son los guerreros de la peregrinación, obstinados en que la injusticia del presente les deje al menos la memoria.


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Antiguamente los qhapaq qolla⁸ llegaban desde Puno a danzar luego de un

extenuante viaje a pie. Eran comerciantes, foráneos, los recién llegados de la fiesta. Con una montera en la espalda, el látigo rodeándole el cuello y la alpaca diminuta vistiendo su cintura comenzaban a danzar al ritmo del acordeón, y a rivalizar.

En la actualidad es posible ver cómo ciertas prácticas escapan al pasado.

Los hombres todavía contienden entre hermanos y suben las alpacas de sus criaderos, para que la gente compre un plato de comida caliente a mejor precio.

A cara descubierta. (Foto: Mirrah da Silva)

8 - qhapaqqolla: gran habitante de la región altiplánica del Qollasuyu.


95 El gesto de sacarse la capucha al paralizarse la danza da lugar a una mez-

cla de confesión, compromiso y nerviosismo. La escena tiene sentido en las inmediaciones de la iglesia con la presencia del público. El gesto del rostro

descubierto, ¿es la acción de encontrarse con uno mismo? ¿Cuánto importa ser reconocido?

El ukuku⁹ celador, del cual sólo se ven sus pies, observa y se funde entre el tumulto. Ya sin máscara, en silencio y de rodillas, el cristiano murmura pe-

cados, arrepentimiento, perdón. El hombre quechua, sin culpa, murmura

rogativas y agradecimientos. En ese instante de inmovilidad, breve porque Qoyllurit´i es sinónimo de movimiento, reside el gesto de lealtad. Además, como dice Theidon en su trabajo Entre prójimos (2004) la máscara es la am-

bigüedad, la doble cara; permite al portador del látigo distanciarse de sus

propias acciones y delegarlas a un doble, ¿permitirá al resto, o sea al público, algún grado de negación de esta violencia física que hay detrás de la fe?

9 - ukuku: hombre-oso.


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Toda comparsa carga con una cruz, y en cada posta se la deja reposar. Ata-

viada de plumas, tal vez sahumada con q´oa¹⁰ a escondidas, le ofrecen una

melodía de alabado y se la echa en andas. Las hay de madera de árbol de tayanka¹¹ como de metal, y de tamaños más pequeños hasta colosales. Las cruces se cargan de poder con el movimiento, y cuando escuchan la misa en el templo junto con los Apu Yaya¹², ciriones o “lágrimas del cristo”. El resto del tiempo, acompañan la movilidad de los grupos. En el film La cruz del sur (1991) de Patricio Guzmán son las imágenes que escuchan misa, y aquí su-

cede de forma similar. Ya en el santuario, son dejados los objetos sagrados

para que escuchen misa en quechua mientras todos bailan. El templo tiene una singularidad, que es la de no tener bancos para sentarse. Que no haya

bancos, pautando el orden y los cuerpos de los fieles, a la manera tradicional del catolicismo, configura de nuevo y de forma única la celebración.

Una cruz en movimiento. (Foto: Mirrah da Silva)

10 - q´oa: planta o arbusto aromático que al quemarse sirve para sahumar, a modo de limpieza espiritual. 11 - tayanka (baccharis odorata): arbusto de la región, tiene importancia agrícola por ser un indicador de terrenos fértiles para el cultivo de papa en el ande. 12 -Apu Yaya: imagen portátil de carácter religioso.


97 El joven ukuku. (Foto: Mirrah da Silva)


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El protagonista que mira desde la fotografía logró subir a una festividad que ansiaba de niño, empujado por el taytawayra¹³. Una festividad que mucho

antes se limitó a una foto enmarcada en la pared de su casa, hasta que su

madre le dio permiso para ir y fue. Se lo ve fumando un cigarro, así lo hacen los ukuku cuando descansan de sus obligaciones, porque son ellos los que

imparten la ley. Motivadores de los danzantes, de voz afinada y máscara, al tiempo que ejercen la dura disciplina.

Más cerca del sol, hacia las alturas de Tayankani, por un nuevo camino de 24 horas cuesta arriba, el protagonista ha dicho: cuando estás por danzar,

algo está dentro de ti, algo impronunciable. Cuando te pones la vestimenta te ponés la vida de esa vestimenta, ya no eres Qosqo sino el oso, el ukuku de Quispicanchis, que está en vínculo con las deidades, con el universo, con el corazón.

13 - taytawayra: padre viento.


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100 link01.Chakiri I. https://youtu.be/hTrD8glZVnc link02.Chakiri II. https://youtu.be/Z4GMlhhmiY4 [Vídeo: Mirrah da Silva]

Agradecimientos: a Luiggi Peralta Mora que compartió su sensibilidad y uno de los relatos. A Teresa Rayme Molina, por presentarnos y abrirnos las puertas de su hogar en Cusco (Perú). Al yachachiq Mario Aucca Rayme por su voz quechua. A nuestras/os interlocutoras/es. A Marco Giovannetti por la gran ayuda con las entrevistas, y a Darwin Flores que respondió a una duda urgente. A Carolina Oliveira, por sus magias técnicas.


101 Referências AGUAYO FIGUEROA, Armando. “El intialabado”. In: OCHOA, Jorge. A Flores (Ed.). Celebrando la fe: Fiesta y devoción en el Cuzco. Cusco: UNSAAC y CBC, 2009, pp: 213–237. LA CRUZ DEL SUR. Direção: Patricio Guzmán. Venezuela/Espanha: Quasar Filmes/RTVE, 1991. THEIDON, Kimberly. Entre prójimos: El conflicto armado interno y la política de la reconciliación en el Perú. Lima: lnstituto de Estudios Peruanos, 2004.


102

José Manuel Moreno Carvallo ¹ David Robichaux Haydel ² Jorge Martínez Galván ³

La realización de “El Divino Rostro”: Un documental de la danza de Santiagos Resumo: Con fotografías y un video este artículo resume el documental, “El Divino Rostro”, realizado en la Región Texcocana, en el México central. El título se refiere a un objeto “milagroso” utilizado en la danza de “Santiagos” que cualquiera identificaría como una máscara. Sin embargo, para la gente local se trata de un santo o “imagen” como las de las iglesias. Al crear una unión danzante-santo, quién lo porta debe cumplir ciertas “requisitos”, o sufrir graves consecuencias. Palavras chave: Divino Rostro, Texcoco, Santiagos, danza, México central.

The realization of “El Divino Rostro”: a documentary of the dance of Santiagos Abstract: This article presents photographs and videos highlighting the documentary, “The

Divine Visage”, shot in the Texcoco Region in central Mexico. The title refers to a “miraculous” object, used in the “Santiagos” dance, that an observer could readily identify as a mask. Local inhabitants, however, view it as a saint or religious image like those found in churches. Since saint and dancer become fused into one, whoever wears it must comply with certain “requirements” or suffer grave consequences. Key words: Divine Face, Texcoco, Santiagos, dance, central Mexico.

1 - Université de Picardie Jules Verne, Amiens, Francia manuelmoreno_8212@yahoo.com.mx 2 - Universidad Iberoamericana, Ciudad de México davidrobichaux@hotmail.com 3 - Universidad Iberoamericana, Ciudad de México tlalocman2@hotmail.com


103 Ubicación de la región de Texcoco y la Ciudad de México. Fuente Google Earth, elaboración propia (2019).


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En 2011, David Robichaux, Jorge Martínez y Manuel Moreno comenzaron un

estudio sobre las danzas ofrendadas a los santos en la Región Texcocana, ubicada a 30 km de la Ciudad de México (ver mapa 1). En más de veinte comunidades hemos registrado danzas llamadas de: “Santiagos”, “Santia-

gos locos”, “Carlomagno y los 12 pares de Francia”, “Chareos”, “Arrieros”, “Vaqueros”, “Serranos”, “Segadores”, “Sembradores” y “Dancitas”. Con ex-

cepción de los trabajos de Fernando Horcasitas (1975; 1985), Jesús Jáuregui

(1996), y Elva Vianney Maya (2008), el estudio de las danzas en la región ha sido poco explorado.

Con el uso de herramientas audiovisuales en la investigación hemos registrado de cerca la preparación de la danza, así como su ejecución y las actividades que realizan las cuadrillas –grupos de danza- durante las festivida-

des. Hemos conformado un archivo audiovisual sobre ensayos, vestimentas,

máscaras, música, danzas, cuadernos de diálogos, banquetes, procesiones, peregrinaciones y entrevistas a danzantes, maestros de baile y músicos.

“El Divino Rostro” (2017) es el producto de la documentación de “Los Santiagos”, una danza de “Moros y Cristianos” (ver imagen 1). Nuestro interés comenzó en 2011, cuando en la fiesta de San Jerónimo Doctor (30 de septiem-

bre) de la comunidad de San Jerónimo Amanalco, municipio de Texcoco,

observamos el uso de un Divino Rostro que se manejaba con gran cuidado. Se trata de un objeto sagrado que representa a Santiago Apóstol a la vez que

Jesucristo, y es considerado como un “santito” muy milagroso, pero también “muy castigador” (ver Robichaux y Moreno, 2019 y imagen 2).

La única mención del Divino Rostro en una danza de “Moros y Cristianos” es en el trabajo de Jesús Jáuregui (1996) sobre la localidad de San Pablo Ixayotl, municipio de Texcoco. Esto sorprende, dada la importancia que tie-

ne en la vida ritual de las comunidades, pues se cree que la persona que lo porta “le presta su cuerpo al santo” (ver imágenes de 3 a 6). En la regi-

ón existen –con diferentes variantes- determinados “requisitos” que deben ser cubiertos por el danzante que encarna a Santiago y porta la imagen, entre ellos, la abstinencia sexual, la confesión ante un cura, el estar casa-

do por la Iglesia, la abstinencia de bebidas alcohólicas y ciertos alimentos


105 (mole, picante y carne de cerdo), así como el mantener una buena relación

con los habitantes de su casa los miembros de la cuadrilla de danzantes. Además, se debe colocar la imagen en un altar con sus flores y veladoras,

darle de comer y beber (ver imágenes 7 y 8), llevarla a misa (ver imágenes 9 y 10), no dejarla sola en casa y tener un buen comportamiento frente a ella.

Imagen 1: Danza de Santiagos, San Jerónimo Amanalco, Texcoco. (Fotografía de David Robichaux, 2011)


106 ImĂĄgenes 2 y 3: Dos Divinos Rostros y la entrada al atrio de la iglesia, Tequexquinahuac, Texcoco (FotografĂ­as de Manuel Moreno, 2015)


107 La única mención del Divino Rostro en una danza de “Moros y Cristianos” es en el trabajo de Jesús Jáuregui (1996) sobre la localidad de San Pablo Ixayotl, municipio de Texcoco. Esto sorprende, dada la importancia que tiene en la

vida ritual de las comunidades, pues se cree que la persona que lo porta “le presta su cuerpo al santo” (ver imágenes de 3 a 6). En la región existen –con diferentes variantes- determinados “requisitos” que deben ser cubiertos por el danzante que encarna a Santiago y porta la imagen, entre ellos, la abs-

tinencia sexual, la confesión ante un cura, el estar casado por la Iglesia, la abstinencia de bebidas alcohólicas y ciertos alimentos (mole, picante y car-

ne de cerdo), así como el mantener una buena relación con los habitantes de su casa los miembros de la cuadrilla de danzantes. Además, se debe colocar

la imagen en un altar con sus flores y veladoras, darle de comer y beber (ver

imágenes 7 y 8), llevarla a misa (ver imágenes 9 y 10), no dejarla sola en casa y tener un buen comportamiento frente a ella.

Imagen 1: Danza de Santiagos, San Jerónimo Amanalco, Texcoco. (Fotografía de David Robichaux, 2011)


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109 Imágenes 5 y 6: Danzantes y Divinos Rostros bailando la “marcha” de los Santiagos, Tequexquinahuac, Texcoco. (Fotografías de Manuel Moreno, 2015)


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Imagen 7 y e 8: Altar para Divinos Rostros reciĂŠn bendecidos, compuesto por arreglos florales, velas, alimentos y bebidas, Tulantongo, Texcoco. (FotografĂ­a d


de Jorge Martínez, 2017) y la ofrenda de alimentos y bebidas para el “santito” y su caballo, Tequexquinahuac, Texcoco. (Fotografía de Manuel Moreno, 2015)

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113 Imagen 9: Rumbo a la iglesia para bendecir a los Divinos Rostros, Tulantongo, Texcoco. (FotografĂ­a de Jorge MartĂ­nez, 2017)


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Imagen 10: Escuchando misa, Tulantongo, Texcoco. (Fotografía de Jorge Martínez, 2017)


115 Imagen 11: Fuente: Libro II, Códice Florentino (1577)

El desconocimiento sobre la devoción al Divino Rostro y la riqueza del mate-

rial recolectado nos llevaron a elaborar el documental, un proceso que duró varios años e implicó el desarrollo de un eje conceptual, la colaboración con algunos pobladores y la presentación en eventos académicos. Las ideas de

la realeza sagrada (Dehouve, 2016; Hocart, 1970), el concepto de ixiptla que tenían los antiguos mexicanos del siglo XVI para referirse a la persona u ob-

jeto que encarnaba a los dioses en rituales (ver Lopez Austin, 1973; Dehouve,

2016b e imagen 11), y la acción de jugar a ser otro (Huizinga, 2007; Caillois, 1994) nos dieron las bases para un cuerpo conceptual propio. Por otro lado,

el caso de un ebanista del pueblo de Papalotla, a quien le realizamos un video sobre su oficio en gratitud por permitirnos grabar la elaboración de

Divinos Rostros (ver imágenes de 12 a 18, y link video colaborativo) y por habernos presentado con clientes suyos, es un ejemplo de la colaboraci-

ón estrecha que tuvimos con algunos pobladores. Finalmente, la edición de

pequeños clips para eventos académicos abrió la posibilidad de trabajar de forma continua el material. Estos procesos permitieron hilar una narrativa

sobre la hechura del Divino Rostro, la forma en que adquiere su poder, la

unión danzante-santo, los requisitos que debe cumplir la persona que lo porta, y los milagros y castigos que realiza la imagen. Tales temas tocados a

lo largo del documental intentan llevar al espectador a preguntarse si acaso estamos frente a una serie de prácticas que se asemejan a la idea de ixiptla, la personificación de los dioses en el México antiguo.


116 Imagen 13: Elaboración Divino Rostro: lijando el mascarón de fibra de vidrio. Barrio de Belén, Papalotla. Fotografía Jorge Martínez, 2015.

Imagen 10: Escuchando misa, Tulantongo, Texcoco. (Fotografía de Jorge Martínez, 2017)


117 Links videos: Trailer “Divino Rostro” https://vimeo.com/418785865 Video colaborativo https://www.youtube.com/watch?v=yrpowoMibHg&t=17s Referências Caillois, Roger, 1994 Los juegos y los hombres. La máscara y el vértigo, Fondo de Cultura Económica, México. Dehouve, Danièle, 2016a, La realeza sagrada, Secretaria de Cultura-INAH, Colegio de Michoacán-CEMCA, México. 2016b, “El papel de la vestimenta en los rituales mexicas de ‘personificación’ ”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [en línea], Coloquios, disponible en: https://journals.openedition.org/nuevomundo/69305#quotation. Hocart, Maurice, 1970, Kings and councilors, Universidad de Chicago, Chicago. Horcasitas, Fernando, 1975, “El teatro popular en náhuatl y una danza de Santiago”, Revista de la Universidad de México, no. 5, enero, 1975. Horcasitas. Fernando, 1985, “Los santiagueros de Tepetlaoztoc: dialogo de una danza”, en De la historia. Homenaje a Jorge Gurría Lacroix, UNAM, México, pp. 445–478. Huizinga, Johan, 2007 Homo ludens, Alianza Editorial –Emecé Editores, Buenos Aires. Jáuregui, Jesús, 1996, “Santiago contra Pilatos: ¿la reconquista de España?” en Jesús Jáuregui y Carlo Bonfiglioli (coords.) Las danzas de conquista. I México contemporáneo. CONACULTA/FCE, México, pp. 165–204. López Austin, Alfredo, 1973, Hombre-dios. Religión y Política en el Mundo Náhuatl, México, Unam-IIH. Maya González, Elva Vianney, 2018, “Hay que ir a la vanguardia”: la danza de las Sembradoras. Cambio, continuidad y género en Santa Inés Hueyotlipan Titicályatl (Municipio de Texcoco). Tesis de maestría en Antropología Social, Universidad Iberoamericana. Robichaux, David y José Manuel Moreno Carvallo, 2019, “El Divino Rostro y la danza de Santiagos en el Acolhuacan Septentrional: ¿ixiptla en el siglo XXI?”, Trace, 76, 21–47. Robichaux, David, Manuel Moreno y Jorge Martínez, 2017, documental “El Divino Rostro”, Universidad Iberoamericana. 39 min. Sahagún, fray Bernardino, 1577, Códice Florentino. Libro II, Florencia, Biblioteca Laurenciana. https://www.wdl.org/es/item/10613/


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Imágenes 14 y 15: Documentando la elaboración de un Divino Rostro. Barrio de Belén, Papalotla. (Fotografía de Jorg prueba que realiza el danzante para afinar detalles y continuar con su elab

Imagen 16: La mirada del mascarón. Barrio de Belé


ge Martínez, 2015) (Ebanista Martín Nava). Y na imagen 15 el reflejo en el espejo del mascarón del Divino Rostro en la boración. Barrio de Belén, Papalotla. (Fotografía de Jorge Martínez, 2015)

én, Papalotla, (Fotografía de Jorge Martínez, 2015)

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120 Imágenes 17 y 18: Ebanista Martín Nava tallado del resplandor de la imagen, Barrio de Belén. Y, en la imagen 18, preparando la imagen para iniciar con la encarrnación, Papalotla. (Fotografía de Jorge Martínez, 2016)


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Nadège Mézié ¹

Peregrinos em Sodo, Haiti Resumo: Este ensaio fotográfico trata da peregrinação anual à Sodo, vilarejo no centro do Haiti, e a sua cachoeira sagrada. Desde 1849, todo 15 de julho milhares de pessoas do país e de fora chegam ali para homenagear e fazer pedidos à Virgem do Monte Carmel, à Ezili Dantò e outros espíritos do vodu. A relações dinâmicas entre peregrinos, a Virgem, espíritos e a natureza ganham corpo nas imagens. As fotografias foram tiradas durante a peregrinação de 2006, na qual participei com um amigo haitiano. A máquina fotográfica utilizada foi uma Nikon D70. Abrem o ensaio duas fotografias de Pierre Verger, que registrou a peregrinação em 1948 (reproduzidas aqui com autorização da Fundação Pierre Verger). Palavras chave: Haiti, peregrinação, vodu, catolicismo

Pilgrims at Sodo, Haiti Abstract: This is a visual essay on the annual pilgrimage to Sodo, a village in central Haiti,

and to its sacred waterfall. Since 1849, every 15th of July thousands of people from the country and abroad come to honor and ask help of the Virgin of Mount Carmel, Ezili Dantò and other voodoo spirits. The dynamic relationships between pilgrims, the Virgin, spirits and nature appear in the images. The photographs were taken during the 2006 pilgrimage, in which I participated with a Haitian friend. The camera used was a Nikon D70. Since Pierre Verger also registered the pilgrimage, in 1948, two of his pictures open the essay (reproduced here with the authorization from the Pierre Verger Foundation). Key words: Haiti, pilgrimage, vodou, catholicism

1 - Pós-doutoranda, programa Capes-Print Unicamp. nagmezie@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0850-8020 http://lattes.cnpq.br/4679531188554549


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Todo ano, entre junho e setembro, diversas peregrinações acontecem em

todo o Haiti, sobretudo em homenagem à Virgem Maria (Rey, 2005a). Elas incarnam de maneira exemplar o agenciamento criativo, que nasce nas

plantations da colônia francesa, de elementos de origem católica (culto aos santos) e de tradições religiosas africanas (da antiga Costa dos Escravos,

mas também dos Bantou da África central — e é importante lembrar que muitos Bantou que foram enviados à Santo Domingo haviam convertido-se ao catolicismo já na África). Nas peregrinações contemporâneas, rituais católicos e vodu coexistem e os peregrinos passam de um a outro. Em 15 de ju-

lho, e nos dias precedentes e seguintes, a festa da Virgem do Monte Carmel reúne no vilarejo de Saut d’Eau (“Salto d’água”), Sodo em crioulo haitiano (termo que também significa “cachoeira” nesta língua), milhares de pere-

grinos vindos das várias regiões do país e também membros da diáspora, em

grande parte jovens. Sodo fica a 50 km de Porto Príncipe, no departamento Centro, e a uma hora de caminhada do vilarejo encontra-se uma cachoeira

de 15 metros de altura, formada durante o grande terremoto de 1842. Ela é

desde então considerada um lugar sagrado, associado à Virgem Maria e à Ezili Dantò (espírito vodu correspondente à Virgem católica) e é também

a morada de Danbala-Wedo, a “serpente arco-íris” vodu. Conta-se que em 1849 a Virgem Maria apareceu ali para um jovem, embaixo de uma árvore

próxima à cachoeira. Sodo tornou-se então destino de peregrinação sob o incentivo do imperador Soulouque (presidente de 1847 a 1849, data em que se autoproclamou imperador, ocupando essa posição por dez anos) (Laguer-

re, 1989). Em 1948, Pierre Verger esteve em Sodo e nos deixou fotografias da peregrinação naquele ano. Apresentamos duas delas na abertura do ensaio,

com a devida autorização da Fundação Pierre Verger (termo de licença ref. às fotografias 44991 e 44993 do inventário da Fundação).

Na manhã de 15 de julho de 2006 chego de ônibus à Sodo acompanhada de David, um amigo haitiano. Desde Porto-Príncipe, os peregrinos vieram

cantando: Sodo m prale, an verite Sodo m prale / Limen limyè-a pou mwen

m prale/Sonen ason-an pou mwen m’prale / Sesil-O, Vyèj Mirak-O, ban m

demann mwen, m prale (“Eu vou a Sodo, é verdade bom Deus, eu vou a Sodo/ Acenda-me a luz, estou chegando / Balance a maraca, estou chegando /

Santa Cecília, oh Virgem milagreira, atenda meus votos que estou chegando,


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estou chegando”). Uma multidão de fieis já ocupava as poucas ruas do vila-

rejo. Fotografo e filmo sem que ninguém dê sinais de me notar, muitos outros fazem o mesmo com seus celulares, sobretudo peregrinos-diáspora, “pere-

grinos-turistas” (Steil, 2003) e alguns outros blan (estrangeiros) presentes. A igreja católica, dedicada à Virgem do Monte Carmel, e o calvário transbordam de gente. Na rua, grupos dançam e alguns seguem pequenas ban-

das de músicos “a pé” (bann a pye). O vilarejo ecoa sonoridades religiosas: escuta-se uma multitude de clamores, encantações, objurgações, preces inflamadas, murmúrios, cantos. Volumes e estilos diferentes se misturam numa cacofonia de sons em fervor. Em 1974 e 1976, Jean Dominique, grande jornalista haitiano, acompanhou a peregrinação em Sodo e também ficou

marcado pelo “furor de seus clamores”. Pode-se ouvir a emissão radiofônica

que realizou para rádio Haiti-Inter nos arquivos criados pela Universidade de Duke, na coleção “Radio Haiti” (arquivo disponível em: https://repository. duke.edu/dc/radiohaiti/RL10059-RR-0077_01).

Grupos de peregrinos se reúnem em volta das árvores que ficam na beira da estrada e nas praças. Dispõem velas e oferendas em seus galhos e raízes. Em alto e bom som ou, ao contrário, bem baixinho, eles pedem que o espíri-

to que ocupa aquela árvore atenda suas preces. No vodu haitiano, espíritos e ancestrais gostam de se assentar em elementos da natureza, sobretudo em árvores, como Loko por exemplo, espírito da vegetação e da força vital das plantas. Ele fornece aos especialistas rituais o poder da cura pelas plan-

tas (Rey, 2005b). Algumas essências de árvores são consideradas sagradas e elas são cultivadas nas proximidades dos ounfò (templos vodu). Entre os

peregrinos, pequenos grupos de ougan, mambo e ounsi (respectivamente: sacerdotes vodu homens, mulheres e seus iniciados) se distinguem por suas roupas coloridas, sobretudo em azul e vermelho, e por trazerem cordas e

tecidos amarrados nos quadris, ao redor do peito e dos chapéus de palha. Amarrar (mare) — uma corda ou tecido — é amarrar-se ao poder de um espírito ou da Virgem Maria (Rey e Richman, 2010).


127 Domingo de manhã partimos para a cachoeira. A maior parte dos peregrinos

passou a noite em claro, participando de rituais ou dançando mizik rasin (música raiz). No caminho, mulheres vendem o que comer, velas, plantas medicinais. Chegamos à cachoeira por cima, e o barulho da queda d’água se soma aos clamores renovados pela comemoração da chegada. Na beira do

poço, adultos e crianças tiram parte da roupa, entram na água e esfregam plantas medicinais em seus corpos. Dentro da água ou nas margens, vê-se

corpos que se ativam em manipulações rituais e técnicas de cura (rituais de possessão, consultas com um médecin-feuille — conhecedor de remédios naturais — ou com um mambo, banhos, danças, oferendas…). Buscam se

conectar às divindades e se livrar, assim, dos males que os atormentam. Em Sodo, água, flamas, plantas, espíritos e a Virgem Maria formam um universo sensível que constitui, envolve, possui e enche de poderes os corpos peregrinos.

Referências LAGUERRE, Michel S. 1989. Vodou and Politics in Haiti. Nova York: Palgrave Macmillan. REY, Terry. 2005a. Toward an ethnohistory of Haitian pilgrimage. Journal de la société des américanistes. v.91, n.1, p.161–183. REY, Terry. 2005b. Trees in Haitian Vodou. In: B. R. Taylor; J. Kaplan (coord.), The Encyclopedia of Religion and Nature. Vol. 2. Londres/Nova York: Thoemmes Continuum. p.1658–1659. REY, Terry; RICHMAN, Karen. 2010. The Somatics of Syncretism: Tying Body and Soul in Haitian Religion. Studies in Religion / Sciences Religieuses. v. 39, n. 3, p.379–403. STEIL, Carlos. 2003. Romeiros e Turistas no santuário de Bom Jesus da Lapa. Horizontes Antropológicos. Ano 9, n. 20, p.249–261.


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Ritual e(é) imagem: gestos, corpos e materialidades Como se sabe, ritual é um conceito basilar na antropologia. Tanto se tem dito a respeito dele que pouco podemos acrescentar. Isso quando a pretensão é apenas teorizar. Contudo, junto com as imagens apresentadas neste eixo, acreditamos que as narrativas em questão trazem potências mais criativas do que as noções clássicas e modernas de ritual. Nesse sentido, ritual é imagem na medida em que, a partir de uma operação esteticamente mobilizada e apresentada, tem efeito no mundo. O ritual/ a imagem apresenta um conhecimento corpóreo e vivo desse mundo. Mesmo quando as imagens estão opacas e nebulosas, elas estão dizendo, assim como o ritual. Algo que Denise Camargo (2010) nos mostra tão bem, tanto pela sua escrita, quanto pela sua narrativa fotográfica. Abrindo os trabalhos em “Laroyê, Exu Mulher! A Festa da Rainha”, Jean dos Anjos apresenta a festa para a Maria Padilha das Sete Encruzilhadas, exu feminino que subverte a ordem patriarcal e os desejos e anseios esperados para a mulher em nossa sociedade. Ela transgride também a relação não corpórea que muitos têm com o alimento. Em sua festa, há a sacralização animal, inserindo a carne e o sangue em um circuito vital onde as pessoas e as entidades se ligam, criam paisagem e território de festa. Leandro Barbosa, com o trabalho “A dança dos Orixás: quando o sagrado é a arte do corpo”, apresenta como uma performance negra, que dialoga com a imagética e os símbolos das religiões dos orixás, re-significa um espaço na cidade de Pelotas, RS. Esse espaço tem a marca histórica da escravidão. A partir da dança e dos corpos negros, esse espaço é territorializado enquanto lugar de resistência negra, na medida em que desfaz a tese de que a cidade de Pelotas não tem marca e raízes negras. Já em “O Jabá de Ogum”, Lucas Marques apresenta o pai de santo e artífice de ferramentas de orixás, Zé Diabo. Com uma câmera intimista, acompanhamos o processo de feitura de uma ferramenta que após diversos ritos, será transformada no próprio orixá. A oficina é apresentada enquanto território que é atravessado e compõe forças, forças estas que estarão nos objetos fabricados. O jabá é o ato técnico e ritual que transforma o ferro em algo que ele não é por si só. Cleyce Colins e Larissa Micenas encerram esse núcleo com um experimento de encantamento e arte, fazendo uma ponte para o eixo que termina o dossiê, pois se apropria da noção de encantamento, tanto para tangenciar as religiões de matrizes africanas, quanto para conceber a arte produzida. Mobilizando o conceito afro-brasileiro e indígena de encantamento, as duas autoras em “Corpo-Nanã: uma experiência de encantamento no manguezal”, fazem do território, corpo, e do corpo, expressão, território e casa de Nanã, orixá que além de muitas características, é também associada aos manguezais. Para tal experimentação, o ifá e o pai de santo de Cleyce Colins foram consultados, aprovando as fotografias de Larissa Micenas que vocês encontram neste dossiê.


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Jean Souza dos Anjos ¹

Laroyê, Exu Mulher! A Festa da Rainha Resumo: Ensaio fotográfico da Festa da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas na Cabana do Preto Velho da Mata Escura, em Fortaleza, Ceará. Este é um trabalho de macumba que, com imagens, gira com a Rainha Pombagira em sua festa anual. Com uma estética de beleza, a Festa da Rainha afeta todos e todas que presenciam sua encarnação no mundo material. Pombagira sara e cura, protege suas filhas e filhos e anima sua comunidade para o amor e a caridade. A Pombagira vence guerra. Laroyê, Exu Mulher! Palavras chave: Pombagira; Umbanda; Festa.

Laroyê, Exu Woman! Queen’s Party Abstract: Photographic essay of the Queen Pombagira Sete Encruzilhadas Party in the Cabana

of Preto Velho da Mata Escura, in Fortaleza, Ceará. This is a macumba work that, with images, revolves with Queen Pombagira at her annual party. With a beauty aesthetic, the Queen’s party affects everyone who witnesses her incarnation in the material world. Pombagira heals, protects her sons and animates her community for love and charity. Pombagira wins the war. Laroyê, Exu Woman! Key words: Pombagira; Umbanda: Party.

1 -Mestre em Antropologia pelo PPGA associado da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Especialista em Ciências da Religião pela Faculdade Católica de Fortaleza (FCF). Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI/UFC). jeanjos09@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7216-4747 http://lattes.cnpq.br/1948207778073696


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“Foi numa noite de lua que eu vi duas mulheres bebendo cachaça e girando

na rua. Mas uma era a Pombagira, a outra era Maria Padilha”. Laroyê, Maria Padilha da Estrada! É ela quem abre este ensaio fotográfico e é ela quem abre os caminhos para este trabalho. Mas é a Rainha Pombagira Sete Encru-

zilhadas e sua festa na Cabana do Preto Velho da Mata Escura, em Fortaleza, Ceará, que brilha nesta edição².

2 - Esta pesquisa teve o apoio da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).


147 A Pombagira é uma mulher (ANJOS, 2019). Ela é um Exu Mulher, ou seja, é dona das encruzilhadas, das porteiras e dos caminhos. Silva (2015) indica que a Pombagira seria um trickster feminino que desafia a ordem patriarcal da sociedade brasileira porque não aceita a subordinação da mulher aos pa-

péis domésticos tradicionais de esposa e mãe. Sua iconografia umbandista é representada na figura de uma diaba, cujo corpo exibe uma plástica exuberante (AUGRAS, 2009).

A experiência etnográfica (CLIFFORD, 2014) realizada na Cabana do Preto

Velho da Mata Escura revela que a Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas

encarna no Pai Valdo de Iansã. “Não incorpora. Encarna”, diz Mãe Aparecida, Ekedi da casa. No mesmo local funciona o Ilé Asé Ojú Oyá, Candomblé da Na-

ção Ketu, com calendário litúrgico próprio. José Lopes de Maria, o Babalorixá Valdo de Oyá, é o zelador da casa, tanto na Umbanda como no Candomblé.

A Festa da Rainha Pombagira é realizada por ele desde o final da década de 1980.

Este trabalho me afeta do ponto de vista metodológico (FAVRET-SAADA, 2005) quando a presença da Pombagira age sobre o meu corpo, muitas vezes, fazendo-me tremer e arrepiar. Afeta, também, quando faço uso da câ-

mera fotográfica produzindo imagens que, por vezes, ganham espaço nos estatutos da arte. As imagens que compõem este ensaio foram autorizadas pela própria Pombagira e pelo Pai Valdo de Iansã. Existe entre nós uma relação de respeito e confiança construída em mais de dez anos de pesquisa.

A Festa da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas acontece, geralmente, no segundo sábado de novembro. Para a celebração acontecer são reali-

zadas sete giras, o cortejo e a matança. As giras, que são rituais de cura e

de afirmação, começam a acontecer no mês de outubro e obedecem a um calendário organizado pela própria Pombagira. Giras são trabalhos onde a

entidade exerce a sua força para ajudar aqueles e aquelas que nela creem.

A Pombagira canta, dança, fuma, bebe e dá sua gargalhada. Girando e can-

tando seus pontos, ela pede que todos e todas se concentrem naquilo que desejam. Ela será a intercessora para a realização dos desejos de seu povo.


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O cortejo acontece quando os assentamentos da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas e do Exu Duas Cabeças são levados para alguns pontos da cida-

de. Os assentamentos saem do terreiro por volta das 21 h, são levados para

um cemitério, uma praia, um banco, uma igreja, um cabaré e um mercado.

Passa, ainda, por sete encruzilhadas no Centro da cidade. Em todos esses locais, os assentamentos são alimentados com padês preparados especialmente para a ocasião. O cortejo evidencia que Exus e Pombagiras são celebrados nas ruas e nas encruzilhadas, suas moradas.


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A matança é o ritual do sacrifício. Uma vaca é dada para a Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas. Ela é preparada para a imolação com rituais de limpeza

ficando pura para o sacrifício. Além da vaca, filhos e filhas da casa oferecem bodes e galinhas para os seus Exus e Pombagiras. A celebração do rito sacrifi-

cial abre passagem para a festa. É um retorno à ordem íntima (BATAILLE, 2015).


157 A Pombagira recebe a carne e o sangue sacrificial em um dos momentos mais divinos da celebração: ela se banha com o sangue. Há quem diga que o momento da matança é mais emocionante do que a própria festa. A aceitação do sacrifício é o ápice da organização da grande festa.


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A festa é o evento, o lugar onde estamos junto com os deuses (HAN, 2017). Na festa tudo se torna divino. Nela, a Rainha Pombagira confir-

ma todos os desejos de seus súditos. Ela recebe pessoas de toda a cidade,

Referências ANJOS, Jean Souza dos. Amor, festa, devoção: a rainha Pombagira Sete Encruzilhadas. 2019. 158f. — Dissertação (Mestrado) — Universidade Federal do Ceará, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Centro de Humanidades, Programa Associado de Pós-graduação em Antropologia Social, Fortaleza (CE), 2019. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/50245 Acesso em: 26 Mai. 2020. AUGRAS, Monique. Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2009. BATAILLE, Georges. Teoria da religião: seguida de Esquema de uma história das religiões. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.


159 ganha flores, perfumes, joias, champanhe, entre outros regalos. Seus com-

padres, Exu Tranca Rua e Exu Marabô, ficam sempre ao lado dela. A mulher encarnada vibra na terra celebrando o amor e a vida. Laroyê, Exu Mulher!

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2014. FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos de campo n. 13: 155–161, 2005. Disponível em: <http://www. revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/50263/54376> Acesso em: 27 Mai. 2020. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. SILVA, Vagner Gonçalves da. Exu: o guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2015


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Leandro Barbosa dos Santos ¹

A dança dos orixás: quando o sagrado é arte do corpo Resumo: O ensaio foi desenvolvido a partir das performances evocativas do espetáculo Dança dos Orixás, buscando conduzir o espectador a observar o jogo de símbolos e atuações que se articulam no decorrer da apresentação. Podemos perceber como os artistas lançam mão (ou não) de sua herança afro-brasileira em experiências individuais e coletivas, permitindo que os espectadores sejam conduzidos por uma percepção que projeta a duração da memória sobre o espaço, acendendo fervores da fé e etnicidade. Palavras chave: Orixá, Batuque, Performance, Corpo.

The Orixas’ Dance: when the sacred is art of the body Abstract: The photo essay was developed from the evocative performances of the spectacle Orixas’ Dance, long to lead the viewer to observe the play of symbols and acting that articulated

during the presentation. We realize how artists use (or not) their Afro-Brazilian heritage in individual and collective experiences, allowing viewers to be guided by a perception that projects the duration of memory over space, igniting fervors of faith and ethnicity. Key words: Orixá, Batuque, Performance, Body.

1 - PPGANT — Universidade Federal de Pelotas Bolsista CAPES profleandrobarbosa@hotmail.com https://orcid.org/0000-0003-1236-9457 http://lattes.cnpq.br/7419628324692362


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Pelotas, RS, Brasil é uma das cidades que surge no contexto da exploração

do trabalho escravo nas charqueadas, principalmente na região do Arroio

Pelotas. A cidade tornou-se um polo que demandava constante aquisição de cativos, muitos que eram trazidos a fins de serem punidos no trabalho dos

saladeiros². Atualmente na cidade, as ruas e prédios denunciam o passado escravagista impresso nas grades e paredes dos antigos casarões. Ao mes-

mo tempo em que se nega a história, se reforça a narrativa da criação de uma cidade aos moldes europeus, que resiste a memória da escravização.

Como símbolo de resistência, após mais de um século, os descendentes des-

tes escravizados retornam para estes espaços de sofrimento, não mais para

serem vítimas, e sim para reivindicar o direito da ressignificação, da criação de sentidos, de tomar para si as lágrimas dos seus antepassados, protagonizando a narrativa da história da região.

É neste contexto que surge o espetáculo Dança dos Orixás, que desde 2017 utiliza o espaço da Charqueada São João para criar este ambiente de ressig-

nificação, embalados por seus Orixás e ritos. Professor, coreógrafo, e diretor artístico Daniel Amaro que é o idealizador do espetáculo Dança dos Orixás, joga com diferentes imaginários, permitindo que o espetáculo transite entre os limites da arte e religiosidades afro-brasileiras.

Em entrevista, Amaro destaca a força do efeito que o contexto em conjun-

to com os ritos produz nos expectadores, os conduzindo a transitar entre o imaginário e experiências individuais com os Orixás. Tal situação faz emergir

sentimentos que suscitam contradições que apontam para a flexibilidade dos limites entre o espetáculo e as religiosidades presentes. Ele enfatiza três

elementos como fundamentais para constituição do espetáculo, que são: “Espaço, performance e religião, é o que fazem a beleza do espetáculo”.

Embora inicialmente a realização da Dança dos Orixás tenha gerado polê-

mica, em principal pela divergência sobre uso de um espaço de sofrimento como palco, ele destaca que o propósito foi “construir uma narrativa negra, estabelecida por negros que narram a sua própria história”. Oferecendo uma

2 - Casa onde se salgava o charque.


165 proposta de ressignificação para estes espaços de sofrimento, afirmando que “é na ressignificação que o espetáculo encontra a sua força”.

É importante destacar que a cidade apresenta uma narrativa conflitante com o passado escravagista da região, elemento que traz a tona o conflito

manifesto no presente. Não se resume apenas a uma narrativa histórica, mas a uma disputa de narrativas que tem como ponto principal a constitui-

ção destes corpos e o direito de apropriação dos espaços de sofrimento. “As pessoas se confundem quando a gente comenta dança dos orixás (…). Eu

entendo que o papel da arte é sintonizar as pessoas a uma herança de um povo que veio escravizado para o Brasil.”.

Neste sentido o espetáculo traz o tema para debate, o inserindo dentro do contexto cultural/turístico de Pelotas, RS, Brasil. Através de diferentes es-

tratégias, Daniel busca viabilizar a realização fixando as datas em diálogo

com as festividades afro-brasileiras, no intuito de valorizar as religiosidades neste contexto e mostrando que a presença negra é fundamental na cons-

tituição da cidade. “Quando você evoca a memória, você meche com uma

coisa muito louca. Você meche com o passado, e ninguém quer mexer com o passado”.

Dumas (2019) enfatiza que é importante entender que o processo de violên-

cia no período das charqueadas foi uma “mudança de curso nestes corpos”, mas não uma ruptura com estas histórias ou apagamento destas culturas.

Embora tenha ocorrido um processo castrador instituído no Brasil, ele não foi capaz de apagar as marcas africanas presentes no passado. Todo um adquirido de gestos, práticas, comidas, rituais, crenças, fazem parte da cons-

tituição deste corpo negro, atrelado a percepção de si e do corpo. Os corpos

negros são corpos africanos e carregam suas marcas identitárias, estas que são ressignificadas na diáspora brasileira.

Embora o espaço da charqueada seja carregado de significados e símbolos, o campo onde está apropriação acontece é o corpo, em especial o cor-

po negro. No espetáculo o corpo é o que dinamiza ressaltando a trajetória, aguçando as sensibilidades e despertando para aquilo que aconteceu na


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história. O corpo é o espaço reservado para manifestação desta ambiguida-

de. No decorrer da performance os sentidos se constroem, os símbolos estão presentes como tinta para escrita do corpo, que gradualmente produz reflexos nas percepções dos ali presentes.

Não somente o corpo dos dançarinos e atores é alvo desta trama, mas tam-

bém o corpo imaginado e sentido dos escravizados que assume forma no ritmo e dança de seus Orixás. É no corpo que acontece o jogo da memória, o corpo enquanto espaço, onde no presente está o dançarino, e no passado o

escravizado. Ambos dançam juntos, conduzidos pelo Orixá, através de uma religiosidade imanente, seguindo os ritos em um espaço que obedece aos requisitos do cerimonial, realizando a junção de corpo, espaço e tempo.

Referências DUMAS, Alexandre Gouvêa. Corpo Negro: Uma conveniente construção conceitual. In: XV Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2019, Salvador. Anais XV Enecult. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2019, v.01. Disponível em: https://www.cult.ufba.br/enecult/anais/ edicao-2019-xv-enecult/ GUTIERREZ, E. J. B.; SANTOS, C. A. A. Narrativas Macabras: Viajantes e Artistas no sul da América. In: XVII Seminário de História da Arte — Anacronias do Tempo, n.03, 2013, Pelotas. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/arte/article/view/3078 LATOUR, B. How to Talk About the Body? The Normative Dimension of Science Studies. Body & Society, Califórnia: Sage, v. 10, n. 2–3, p. 205–229, 2004.


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Lucas Marques ¹

O jabá de Ogum Resumo: O ensaio é centrado na oficina de José Adário dos Santos, mais conhecido como “Zé Diabo”, um ferreiro e pai-de-santo que há mais de 50 anos produz as chamadas ferramentas de orixás, artefatos pertencentes às religiões de matriz africana que, após uma série de gestos técnicos e rituais, se tornam as próprias entidades materializadas. Através de imagens de movimentos e gestos técnicos, busco captar o processo criativo agenciado por Zé Diabo: o processo de criação de uma nova força, um Orixá. Palavras chave: candomblé; ferramenta de orixá; foto-transe; cosmotécnica.

The work of Ogum Abstract: The essay focuses on the workshop of José Adário dos Santos, best known as Zé

Diabo, a traditional blacksmith and father-of-saint that has been making ferramentas de orixás (orisha tools) for more than 50 years. These artifacts belong to the Afro-Brazilian religions, and after a series of technical gestures and rituals, they materialize the entities. Throughout images and technical gestures, the essay seeks to capture the creative process assembled by Zé Diabo: a process of creation of a new force, an Orixá. Key words: candomblé; afro-brazilian religions; photo-trance; cosmotechnics.

1 -Filiação Institucional: Doutorando em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ) https://orcid.org/0000-0001-8145-8301 http://lattes.cnpq.br/9811620783172902


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Este ensaio fotográfico² é uma tentativa de capturar as linhas de interação e movimento acionadas na oficina de José Adário, localizada na Ladeira da Conceição da Praia, em Salvador, Bahia. José, mais conhecido como “Zé Diabo”, é um ferreiro e pai-de-santo que há mais de 50 anos produz as chamadas ferramentas de orixás, artefatos pertencentes às religiões de matriz africana que, após uma série de gestos técnicos e rituais, se tornam as próprias entidades materializadas. No ensaio, busco explorar a oficina de Zé Diabo como um território atravessado por forças, ritmos e materiais distintos, percorrendo as diversas formas de relação estabelecidas com os materiais e as forças que os habitam. Através das imagens, tento captar o processo criativo agenciado por Zé Diabo: um processo vital de criação de uma nova força que passa a vir ao mundo, um Orixá. “No terreiro é que se faz o Orixá, aqui é o jabá de Ogum” — me alertava Zé Diabo, sempre que buscava me explicar a sua atividade na oficina. “O jabá é o trabalho com o ferro”, costumava complementar, “mas o ferro já sai daqui uma outra coisa”. A palavra que ele utilizava para descrever seu ofício sempre foi algo que me intrigou muito. Em geral, ao descrevê-lo como um jabá, ele se referia não apenas ao processo técnico-material da construção das ferramentas de orixás, mas também a todo o processo energético que envolvia essa atividade. Jabá, para Zé, é o trabalho de Ogum, mas também pode ser visto como uma espécie de “dom”, ou melhor, de caminho para se trabalhar com o ferro. É o caminho de Ogum: o poder de transformar o mineral em uma ferramenta, em “algo mais”. Ogum, no candomblé, é o orixá do ferro, dos conhecimentos técnicos e da guerra. Toda a produção deve passar pelo caminho de Ogum — por isso ele é também o senhor dos caminhos. Segundo Zé Diabo, “Ogum é tudo o que há. Tudo tem que ter Ogum. Toda ferramenta carrega Ogum, o jabá de Ogum. Não se pode fazer nada sem ele”. Todo ferro, assim, carrega a energia desse orixá — e o ferreiro, através do caminho de Ogum, é o maestro dessa orquestra de ritmos, gestos e forças. O processo de transformação desse ferro em uma ferramenta de orixá, mais que meramente técnico, é um proces-

so de canalização de forças (de axé) naquele material, através de gestos técnicos,

materiais e movimentos ritmados: no martelar do ferro na bigorna, na serra, na fu-

maça presente na forja, na solda ou nas baforadas de charuto (cf. Marques, 2018). Mais que forma e conteúdo, matéria e energia, ser e devir, o que parece estar em jogo nesse processo de criação são as forças e suas composições. É por isso que, na África 2 - arte desse ensaio foi exibido, com algumas modificações, na exposição principal do Prêmio Pierre Verger da 29º Reunião Brasileira de Antropologia, em 2014, ocorrida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Nata-RN.


mente relacionado à figura do feiticeiro, e sua atividade, a forja, é sagrada, análoga ao nascimento (cf. Childs & Killick, 1993). Trata-se , para utilizarmos um termo proposto pelo filósofo chinês Yuk Hui (2017), de uma outra cosmotécnica: outro modo de se relacionar com aquilo que chamamos de “técnica” — de natureza, de matéria ou de transformação. É essa, creio, a verdadeira arte praticada por Zé Diabo: uma arte da criação de vida, de “algo mais” — algo que escapa à concepção ocidental de arte, e que, na maioria das vezes, escapa às tentativas de incorporação de sua arte no espaço público, em mostras de arte ou exposições³. É essa arte, o jabá de Ogum, que busco “captar” nesse ensaio fotográfico. Por isso, meu foco aqui não são nem os “objetos” (as ferramentas de orixás) nem o “sujeito” da ação (o ferreiro), mas sobretudo os processos, os movimentos e interações: cortar, martelar, soldar, desenhar, montar. Entre materiais e gestos, busco analisar o modo como as forças preenchem a oficina e são ali transformadas. Me inspiro naquilo que Claudine de France (1983) chamou de “análise praxeológica”, um método de investigação das formas de ação (das técnicas) onde o dispositivo de captação de imagens (a câmera) é articulado à própria ação técnica, permitindo, a partir da interação rítmica, perceber os encadeamentos gestuais da ação. Mas para capturar esses processos cosmotécnicos é preciso algo mais: deixar que a fotografia possa ser afetada por essa “outra coisa” que permeia a oficina de Zé Diabo. Jean Rouch (1975), inspirado nos fenômenos de possessão que ele tanto filmou, propôs o conceito de “cine-transe” para lidar com esses processos de interação entre a câmera e o que está sendo filmado. É esse mesmo tipo de inspiração que permeia esse ensaio: tornar a câmera partícipe desse processo de interação e movimento e, através das imagens, do enquadramento, das cores, da textura e do movimento, evocar a força que atravessa os materiais, os gestos, o ferreiro e a própria oficina. O jabá de Ogum. 3 - A obra de Zé Diabo já participou de diferentes mostras fotográficas e exposições artísticas, apesar de nunca ter recebido o devido e merecido reconhecimento (financeiro e artístico). Suas peças estão espalhadas por museus como o Museu Afro Brasil, em São Paulo e o Museu Fowler, na Califórnia. É interessante pensar como essas obras são apropriadas e agenciadas nesses locais, mas isso já é papo para outra conversa. Referências CHILDS, Terry; KILLICK, David. “Indigenous African Metallurgy: Nature and Culture”. Annu. Rev. Anthropol. N.22, pp.317–337, 1993 FRANCE, Claudine de. “L’analyse praxéologique: composition, ordre et articulation d’un procès”. Techniques & Culture. 54–55 v. 1, pp. 223–241, 2010 [1983]. HUI, Yuk. “Cosmotechnics as Cosmopolitics”. e-flux jornal. n.86, 2017 MARQUES, Lucas. “Na oficina do Diabo: ritmos, sinergias e transformações na ferramentaria de orixás na Bahia”. In: Carlos Sautchuk. (Org.). Técnica e transformação: perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA Publicações, p. 350–375, 2018 ROUCH, Jean. “The Camera and Man”. In: Paul Hockings (org). Principles of Visual Anthropology. Nova York: Mouton de Gruyer, pp. 79–98, 2003 [1975]

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Ocidental — de onde esse conhecimento certamente veio –, o ferreiro é intrinseca-


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Cleyce Silva Colins ¹ Larissa Colins Micenas ²

Corpo-Nanã: uma experiência de encantamento no manguezal³ Resumo: Este ensaio traz o registro do experimento Corpo-Nanã desenvolvido no manguezal em Alcântara — MA no ano de 2020. Fruto de uma parceria entre a adepta e pesquisadora da religião de umbanda Cleyce Colins com a artista e fotógrafa Larissa Micenas, o experimento se propõe a elaborar uma relação entre ancestralidade, orixalidade e manguezal, investigando a partir desta relação práticas artístico-educacionais que estejam firmadas na ética e saberes do terreiro de umbanda. Palavras chave: Encantamento. Umbanda. Fotografia. Nanã. Dança educação.

Corpo-Nanã: enchantment experience in the mangrove ⁴ Abstract: This essay the record of the Corpo-Nanã experiment developed in the mangrove in

Alcântara — MA year 2020. Result of partnership between adept and researcher of the religion of Umbanda Cleyce Colins with artist and photographer Larissa Micenas, the experiment proposes to elaborate a relationship between ancestry, orixality and mangrove, investigating from this relationship educational artistic practices that is established in the ethics and knowledge of the umbanda terreiro (space of rituals). Key words: Enchantment. Umbanda. Nanã. Picture. Body. Dance Education.

1 - Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). cleycesc@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-8460-7920 http://lattes.cnpq.br/8723467714178720 2 - Graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). larissamicenas96@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-6939-4843 http://lattes.cnpq.br/660970877584735 3 - O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001 4 - This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Finance Code 001


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Os registros fotográficos deste ensaio emergem como desdobramento do trabalho de mestrado da adepta a umbanda e pesquisadora Cleyce Colins, que em janeiro de 2020 desenvolveu em parceria com a artista e fotógra-

fa Larissa Micenas um experimento artístico que teve seu acontecimento no manguezal⁵ da cidade de Alcântara — MA. Localizada a 1h20min de São Luís, por meio do mar, à cidade histórica foi o ponto escolhido, por apresen-

tar em sua faixa litorânea abundância de manguezais, aspecto importante

para a constituição desta vivência. O experimento em questão foi inspirado e tecido com base na experiência com a orixá Nanã dentro da religião de

Umbanda. Nanã é considerada pela cosmovisão Iorubá um dos orixás mais

velhos, sendo conhecida por ceder a lama que cria os corpos humanos, por isso é considerada a senhora da lama e dos manguezais. Desta forma a es-

colha pelo espaço do mangue se deu pelo desejo de estarmos próximas ao local físico desta Orixá. A investigação neste espaço teve como objetivo a experimentação em dança pautada na relação corpo, mangue e orixalidade. Com o objetivo de desenvolver práticas artístico-educacionais que estejam perspectivadas por saberes do terreiro.

Vale ressaltar que esta pesquisa por se tratar de um atravessamento com

a religiosidade de umbanda, envolve-se em questões éticas acerca do de-

senvolvimento da própria. Para melhor desenvolver esta pesquisa o Ifá⁶ foi consultado, assim como o pai de santo da pesquisadora Cleyce Colins, recebendo autorização de ambos. Deste modo os saberes e ética do terreiro

são levados como parte da constituição deste experimento e não buscam infringir o segredo e o mistério contido nesta religiosidade. Aqui as vivências

dentro da umbanda são dispostas como experiências de encantamento. A partir desta perspectiva, a pesquisadora Colins (2019) forja o entendimento de encantamento na umbanda com base nas considerações do autor Oli-

veira (2012), onde as experiências de encantamento não são estados que impõe suas maravilhas, mas uma experiência de ancestralidade⁷. A partir deste ponto de vista o encantamento converge-se enquanto manifes-

tação de ancestralidade, permitindo acessar um corpo que integraliza em si saberes negro-africanos contidos no terreiro. O encantamento a partir

do prisma vivenciado na Umbanda é formulado por (COLINS, 2019), como


197 “um modo de ser, estar no mundo onde não há cisões, divisões, mas nem por isso um uno. Trata-se quiçá de algum tipo de conhecimento que parece transcorrer por vias das quais o entendimento não está fundamentado numa racionalidade instrumental, mas antes, tem o corpo como lócus de múltiplas visões de mundo e onde os humanos não são os únicos agentes significantes”. (COLINS, 2019, p. 2011)

Com base nesta compreensão o encantamento e ancestralidade forjados no

chão do terreiro são alicerce para pensar práticas artístico-educacionais

que estejam assentadas na criação em dança como eixo norteador. Nesta experiência a orixalidade não é exclusivamente seu objeto de fé, mas potên-

cia para refletir sobre a dimensão do corpo que dança, canta, encanta-se e faz pujar sua ancestralidade. O movimento corporal manifestado pela pesquisadora Colins em relação aos elementos água do mar, terra, pedra, crus-

táceos, lama, musgos, plantas e uma infinidade de outros seres presentes no

mangue, confere a possibilidade de tecer um pensamento e prática acerca

de um possível caminho à construção de uma decolonialidade do corpo, ou seja, é a lama do manguezal como simbologia de Nanã, sua textura, cor e todos os aspectos ali presentes que se condensam e convergem em dire-

ção ao corpo conferindo-lhe densidade e revelando outras possibilidades de movimento corporal. As pernas pesam, a cabeça vai em direção ao chão, e o movimento torna-se mais lento. O corpo metamorfoseia-se em mangue, forjando para si um outro espaço-tempo de criação de movimento.

A fotografia e o audiovisual⁸ foram os meios encontrados para efetuarmos o

registro deste experimento e conduzir as memórias e os trajetos elaborados pelo corpo em meio ao mangue. Tais registros fotográficos nos levam a cria-

ção de novas narrativas visuais e pontuam novos signos acerca do corpo, do território, da dança, do espaço, etc. Entendemos este meio de registro visual como o momento onde tecemos uma conversa entre diferentes linguagens

artísticas, as artes visuais e as artes cênicas, produzindo mútuos olhares para diferentes percepções de um mesmo território.

5 - Manguezal é um ecossistema costeiro que localiza-se em faixas de encontro entre os biomas aquáticos e terrestres, apresenta elevada biodiversidade, sendo considerado um espaço de berçário e local de reprodução para várias espécies. 6 - Ifá é considerado pela cosmovisão iorubá como a divindade da sabedoria. Ele é consultado por meio de um complexo sistema divinatório. 7 - Este conceito é utilizado no sentido da teoria do Corpo e Ancestralidade da pesquisadora Inaicyra Falcão (2006), a ancestralidade é por ela entendida não apenas como hereditariedade, mas como passado histórico mítico e cultural que se inscreve no corpo. 8 - Para a documentação do presente trabalho também foram realizadas filmagens.


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Seguem as imagens do experimento “Corpo-Nanã”, realizado na cidade de Alcântara, estado do Maranhão.

Referências COLINS, Cleyce Silva. O corpo como lócus de encantamento na criação em dança. Anais do VI Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança-ANDA.Salvador: ANDA, 2019.p.2005–2013. OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade como filosofia africana: Educação e cultura afro-brasileira. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 18: maio-out/2012, p. 28–47. SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma Proposta Pluricultural de dança-arteeducação. 2. ed. São Paulo: Terceira Margem, 2006.


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Os encantos da encantaria: imagéticas do encantar-se A encantaria é território infinito de possibilidades. Lugar de vários territórios místicos, que podem fazer parte do nosso mundo a partir da interseção com rios, igarapés, cachoeiras, beira-mares e diversos outros lugares. Os encantados são os seres que transitam pelas encantarias e alcançam a nossa realidade, geralmente tendo cooperação de pajés, mestres, pais e mães de santo. Em várias mitologias, os seres encantados são descritos como sujeitos que não passaram pela experiência da morte, sofrendo outro processo antes disso, o do encantamento. Essa mitologia perpassa tanto territórios de matrizes africanas, quanto indígenas, em muitos momentos, sendo tangenciado pelas duas matrizes ao mesmo tempo. Uma noção interessante para pensar a encantaria é a de confluência, pensada pelo mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos: nesse aspecto, as diferenças dos coletivos negros e as diversas matrizes indígenas confluem, articulando-se como experiência contra-colonial (Santos, 2015). Clédisson Junior abre a sessão com “A sombra da Jurema”. Jurema é uma religião de raiz indígena, que perpassa várias nações indígenas do nordeste brasileiro. Ela se aproximou da umbanda de uma maneira muito peculiar, criando praticamente uma nova religião. No ensaio, nos aproximamos da Casa das Matas dos Reis Malunguinho, um terreiro de Jurema que fica em Olinda, Pernambuco. As velas, bengalas, fumaças, tambores em relação com os corpos das pessoas praticantes da Jurema, mostram territórios da encantaria incrustada no urbano pernambucano, construindo territorialidades negras e indígenas que confluem no terreiro. Kauã Vasconcelos, em “Um Toque para os Encantados”, traz uma articulação semelhante apresentada por Clédisson. Aqui, a pajelança e a linha do fundo, religião de matriz tupi, se cruzou com a umbanda e o tambor de mina. Nesse sentido, Kauã apresenta um ritual (o toque) que aconteceu na cidade de Soure, na ilha do Marajó (a maior ilha fluviomarítima do mundo), onde encantados descem em seus filhos e filhas para dançar, festejar, beber e curar. Em um cenário ainda amazônico, mas agora no estado do Amazonas, Diego Omar apresenta “Territórios encantados: etnografias visuais das religiões populares em Parintins (Amazonas)”, junto com Helon Coelho, Renan Mota e Yandrei Farias. Na narrativa, diversos territórios sagrados são articulados pelas pessoas para com que eles sejam morada — desde o corpo — de encantados, entidades, bichos do fundo e orixás. Nesse aspecto, a própria composição afroindígena das expressividades apresentadas, evidenciam a importância e força das coletividades negras na Amazônia. Finalmente, temos dois trabalhos que narram universos de nações indígenas do nordeste brasileiro, mais especificamente do sertão alagoano e pernambucano. José Peixoto e Yuri Rodrigues em “O universo ritualístico do povo indígena Jiripankó: espaços, personagens e paisagens”, apresentam a nação Jiripankó, que se territorializou


207 no sertão alagoano, no município de Pariconha. Na narrativa, acompanhamos a utilização do Praiá, utensílio vestual que modifica o corpo e possibilita que ele, em ritual, entre em contato com os encantados, pois o Praiá materializa esses seres, que para os Jiripankó, foram indígenas que não passaram pela experiência da morte, e sim do encantamento. Os rituais da composição apresentada aqui são dois: Menino do Rancho e Corrida do Umbu. Essas manifestações rituais estão associadas ao rompimento da seca pelas fortes chuvas que atingiram a região durante a pesquisa de campo dos autores, modificando a paisagem e possibilitando a agricultura. Encerramos o dossiê e esse núcleo temático com Daniel Meirinho, em seu ensaio “A performance ritualística do Toré Pankará”. Nessa narrativa vamos para a Serra do Arapuá, visitar a nação Pankará. Aqui podemos acompanhar o Toré, uns dos principais rituais realizados pelas mais diversas nações indígenas que estão territorializadas no nordeste brasileiro. Temos uma composição, nesse ritual, que faz jus ao que se apresenta durante todo esse dossiê. No Toré, o maracá faz acontecer o contato com o mundo dos encantados e espíritos, onde são mobilizados santos católicos e entidades do universo afro-brasileiro, além do mais, há a ingestão da Jurema, compondo um ritual de forte afirmação e resistência. A paisagem se encanta com o Toré Pankará.


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Clédisson Junior ¹

A sombra da Jurema Resumo: O ensaio é fruto de um estudo etnografico realizado na Casa das Matas do Reis Malunguinho, terreiro de Jurema na cidade de Olinda no ano de 2018. Aprendi com os juremeiros que o Catimbó — Jurema liga-se a espécies de árvores encontradas no sertão nordestino. A jurema preta é utilizada na fabricação da bebida que dá nome a esse universo religioso, sua origem remonta a pajelança e ao toré, ambos regimes religiosos que fundamentam a estrutura indígena do sagrado. Palavras chave: catimbó, tradição, confluência, Jurema-Sagrada.

The shadow of Jurema Abstract: The essay result of an ethnographic study carried out at Casa das Matas do Reis

Malunguinho, a Jurema terreiro in the city of Olinda in 2018. I learned from the jurmeiros that Catimbó — Jurema is linked to species of trees found in the northeastern hinterland. The black jurema is used in the manufacture of the drink that gives name to this religious universe. Its origin goes back to pajelança and toré, both religious regimes that underlie the indigenous structure of the sacred. Key words: catimbó, tradition, confluence, Jurema-Sagrada.

1 -Doutorando em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade — CPDA/UFRRJ Bolsista Capes cledissonjunior@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-2324-1646 http://lattes.cnpq.br/9566512449043417


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Na “Casa Das Matas do Reis Malunguinho”, terreiro de Jurema Sagrada lo-

calizado em meio aos casarões seculares da cidade de Olinda (PE), busquei apreender a partir da convivência com o seu zelador, afilhados e demais pra-

ticantes do Catimbó — Jurema, seus modos de experimentar os processos

de reinvenção da vida a partir do Sagrado, a resiliência dos seus praticantes frente às transformações impetradas pela contemporaneidade, os agenciamentos humanos e não humanos frente às disputas ontológicas capitanea-

das pelo racismo religioso e pela modernidade capitalista e em especial sua relação com o território.

Walter Benjamin nos ensina que o limiar é uma zona, uma área relacionada à mudança, à transição e aos fluxos, diferenciando-se rigorosamente da no-

ção de fronteira. Podemos compreendê-lo como uma zona conectora, uma zona do “entre”, um local tanto impreciso quanto reservado à imprecisão. Ele não se inscreve dentro de uma lógica binária, do isso ou aquilo, mas refere-

-se a algo que é, ao mesmo tempo, isso e aquilo, caracterizando-se por um tipo de tensão próxima à figura do paradoxo. É um espaço de deslocamento, de flutuações. Território destinado à dúvida, à incerteza, assim como às desterritorializações (BARRETTO, 2018).

A confluência da tradição religiosa africana e indígena se deu quando os negros fugidos dos engenhos onde se encontravam escravizados foram abri-

gados nas aldeias indígenas, e/ou no encontro dos indígenas com os negros

nos quilombos onde através desse contato, ambos trocavam o que detinham

de conhecimento Os africanos contribuíram com o seu conhecimento sobre os eguns e sobre as divindades da natureza, os orixás. Já os indígenas contri-

buíram com o conhecimento sobre invocações dos espíritos de antigos pajés e dos trabalhos de cura realizados com os encantados das matas e dos rios.

A jurema sagrada hoje da continuidade ao que, anteriormente, era chamado de catimbó por intelectuais e pelas forças repressoras. Uma religião de ori-

gem indígena, mas que abrigou desde cedo os negros que traziam, em suas origens africanas, o culto aos antepassados (AYALA, 1987).


211 Os juremeiros instauram o devir como o regime político do religioso por meio

de um processo antropofágico em busca da complementariedade. É essa

ontologia que permitiu a permanência de uma religião indígena desde a chegada dos europeus no século XVI, aos dias de hoje. A Jurema não é mais encontrada somente entre as etnias indígenas ou no sertão nordestino, mas

está também nos centros urbanos, ela foi e é constantemente ressignificada por aqueles que a vivenciam.

A Jurema Sagrada é um projeto societário em construção, um projeto que articula em seu interior e para fora dele à luta por território e garantia de direitos, um projeto societário refratário à modernidade/colonialidade. A Jure-

ma Sagrada é insurgência politica e desobediência epistêmica (MENDONÇA, 2013).

A tradição negra e a indígena são culturas de encruzilhadas, culturas de sincopes, rebeldes e insubmissas. A encruzilhada, locus tangencial, é o lu-

gar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação.

A potência da Jurema Sagrada se encontra no desvio, na dobra, sua ciência

é resultado de séculos de conhecimentos produzidos nas frestas do mundo, sua manutenção e sobrevivência se dão na reinvenção do viver, em sua ca-

pacidade de adaptação, de remontagem, sua batalha não se dá em campo aberto, sua tática é a guerrilha.

Referências BARRETTO, Isadora de Vilhena. Voares de incerteza, voares pela incerteza — um estudo sobre a relação entre memória e limiar. Dissertação de mestrado — Programa de Pós-Graduação em Memória Social — Centro de Ciências Humanas e Sociais — Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018. AYALA, Marcos e AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil. (perspectivas de análise). São Paulo: Ática. (Princípios: 122), 1987. MENDONÇA, Caroline Farias Leal. Insurgência política e desobediência epistêmica: movimento descolonial de indígenas e quilombolas na Serra do Arapuá. (Tese de Doutorado — UFPE) Recife, 2013. SANTOS JUNIOR, Clédisson. Território Encantado: O Devir Quilombola e a Cosmopolítica Afro-Indígena brasileira. Dissertação de Mestrado — Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.


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Kauã Vasconcelos ¹

Um Toque para os Encantados Resumo: Esse ensaio busca apresentar um festejo realizado para os caboclos no município de Soure, Ilha de Marajó (PA). O toque é realizado em dos muitos terreiros dedicados as práticas da Mina ou Umbanda, expressão religiosa que envolve a relação entre seus praticantes e espíritos também conhecidos como encantados. Palavras chave: Religiões de matriz africana; encantaria amazônica; Ilha de Marajó.

A Beat for the Encantados Abstract: This essay seeks to present a celebration held for the caboclos in the municipality of Soure, Ilha de Marajó (PA). The beat is performed in one of the many terreiros dedicated

to the practices of Mina or Umbanda, a religious expression that involves the relationship between its practitioners and spirits also known as encantados. Key words: Anthropology of African-based religions; Amazonian encantaria; Ilha de Marajó.

1 - Doutorando pelo PPGAS do Museu Nacional UFRJ kauamonde@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-2741-1689 http://lattes.cnpq.br/6492648278321862


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Este ensaio foi realizado em Soure, município da Ilha de Marajó (PA), em julho de 2019. Ele acompanha um dos muitos festejos organizados pelos umbandistas e afroreligiosos da região durante esse período. As fotos foram tiradas na casa da mãe Ângela durante a festividade para sua cabocla Maria

Mineira, realizada todo ano nessa mesma data, 19 de julho. A Mina paraense realizada na Ilha de Marajó tem forte conexão com as práticas rituais do Ma-

ranhão, principalmente com o interior do estado, sendo de origem codoense

muitos dos caboclos que baixam para dançar, beber e festejar nos terreiros marajoaras. Muitos pais e mães de santo da região, iniciados primeiramen-

te para a Linha do Fundo, o que se convencionou chamar de “pajelança”, viraram, cruzaram e se desenvolveram na Linha da Umbanda e da Mina, re-

cebendo espíritos mais festeiros que os que participavam dos trabalhos de cura na Linha de Pena e Maracá (como também é conhecida a Linha do Fun-

do). Nesse ensaio apresento treze fotos que ilustram, brevemente, um toque para esses espíritos.

Ao contrário de outras experiências religiosas, onde o ato de fotografar pode ser visto não apenas como incômodo, mas proibido (na Linha do Fundo, por exemplo, a maioria dos caruanas² não permite que sejam fotografados ou filmados, com poucas exceções; além disso, os trabalhos são realizados no

escuro ou à luz de velas, o que dificulta o registro), os caboclos costumam não apenas permitir, mas pedem para serem registrados. Os praticantes dos terreiros costumam guardar, impressas ou em forma de arquivo em seus

celulares, fotos com os caboclos e vídeos dos festejos onde eles aparecem dançando e cantando.

Nesse sentido, o presente ensaio fotográfico se deu dentro de um contexto em que o ato de fotografar é parte do processo ritualístico dos festejos. As fo-

tos aqui, contudo, só foram registradas meses depois da minha chegada ao campo e após participar de muitos outros festejos. O efeito desse tempo so-

bre a produção dessas imagens foi importante tanto no sentido de criar um tipo de relação anterior a do registro, quanto — e principalmente, pela apre-

ciação prévia dos atos ritualísticos que colaborou para uma reflexão sobre 2 - Caruanas é como são conhecidos os guias do Fundo, que trabalham no corpo do pajé durante os trabalhos de cura; eles são forças, energias, que “é causa da dinâmica da vida, o que permite o acontecer e o devir” (Lima 2002: 272).


229 o próprio ato de criação das imagens. O observador (fotógrafo) produz um

tipo de imagem enquanto interpretação, no sentido musical, do processo ritual. As fotos são pontos de vista, mas esses pontos de vista devem produzir

um diálogo, que reverbere a potência desse encontro. É nesse sentido que a produção imagética e a produção etnográfica podem se co-fertilizar pela

força da experiência ritual religiosa: há dimensões criativas, ético-estéticas que perpassam essas práticas[3].

As fotos aqui buscam apresentar elementos presentes em um festejo para caboclos. Os abatazeiros, como são conhecidos os tocadores de atabaque

em Soure, iniciam os toques nos festejos para que as primeiras doutrinas

para os caboclos sejam cantadas. A chegada dos caboclos é geralmente anunciada por uma tontura, desequilíbrio, com o médium levando a mão até a têmpora. Expressões e gestos permitem identificar o encantado que chegou.

Os caboclos possuem muitas famílias, como a dos marinheiros. Geralmente, nos festejos, caboclos de uma mesma família, ou que possuem afinidade

entre si, cantam e dançam juntos. O povo do mar, povo da mata, boiadeiros, turcos, são algumas dessas famílias de encantados.

Nos festejos, os caboclos consomem muito tabaco e cerveja (que costumam chamar de espumosa). Gostam de mostrar sua força ao anunciar que deixa-

rão o corpo de seus cavalos sóbrio assim que forem, como se não tivessem dado nem um trago e nem um gole. Durante o festejo, quando não estão cantando e dançando, os caboclos gostam muito de conversar com a au-

diência e entre si. É nesse momento que são consultados pelos visitantes e membros do terreiro que buscam seu auxílio.

Ao chegar em terra, o caboclo anuncia quem é e de onde vem, e o faz por

meio de sua doutrina. Durante o festejo muitas doutrinas são puxadas pelos caboclos, e são elas, junto com as danças, que conduzem o toque.

Ao fim, os caboclos se despedem com doutrinas anunciando sua partida. 3 - Sobre as reflexões entre a produção imagística e a prática etnográfica, ver o interessante trabalho de Marco Antonio Gonçalves sobre o cineasta francês Jean Rouche, “O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch” (2008). Sobre o observador-fotógrafo no contexto do registro das religiões de matriz africana ver a dissertação de Iara Cecília Pimentel Rolim sobre o etnógrafo e fotógrafo Pierre Verger, “O Olho do Rei: imagens de Pierre Verger” (2002).


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Quando a noite já avança, os abatazeiros estão cansados e o público, em sua maioria, já se foi. Contudo, muitos encantados adiam sua partida, perma-

necendo em terra para mais uma espumosa, uma conversa, uma doutrina entoada sem o toque do tambor.

Esse ensaio é parte de uma pesquisa ainda em andamento (cuja as primei-

ras impressões resultaram no meu trabalho de mestrado), que requer mais

investigações sobre as linhas de trabalho com os encantados — caboclos e caruanas -, suas práticas, suas variações e singularidades em territórios marajoaras. Os toques para os encantados aqui retratados são a experiência viva de uma relação muito profunda, cheia de música, ritmo, dança e ale-

gria, matéria-prima da arte desenvolvida nos terreiros do Marajó. Sua força está na forma muito singular pela qual seus praticantes devolvem ao mundo

seu estilo enquanto um modo de existência que valha a pena ser vivido. Aqui podemos apenas sondá-lo.

Referências GONÇALVES, Marco Antonio. O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch. Sollus Distribuidora, 2008. LIMA, Zeneida. O mundo místico dos caruanas da Ilha do Marajó. Edições CEJUP, 2002. ROLIM, Iara Cecilia Pimentel et al. O olho do rei: imagens de Pierre Verger. 2002.


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Territórios encantados: etnografias visuais das religiões populares em Parintins (Amazonas) Resumo: Para além da sua importância acadêmica, os estudos sobre a diversificação do campo religioso na Amazônia, têm contribuído, nos últimos anos, para revelar as narrativas provenientes do universo afro-indígena. Na medida em que mergulham nas estéticas dos terreiros e de outros lugares encantados, as pesquisas (em especial as etnografias) têm revelado um rico repertório imagético, que ao mesmo tempo descortina outras/novas epistemologias e contribui para visibilizar grupos historicamente marginalizados. As fotografias aqui reunidas, foram produzidas em diferentes momentos e integram variadas pesquisas monográficas. Têm em comum, no entanto, um mesmo esforço de compreensão dos sujeitos e práticas que habitam esses territórios sagrados de Parintins, no Amazonas. Palavras chave: Diversidade religiosa; Etnografias visuais; Parintins; Amazonas.

Enchanted Territories: visual ethnographies of popular religions in Parintins (Amazonas) Abstract: Beside their academic importance, studies on the diversification of the religious field in the Amazon over the last few years have contributed to reveal narratives originated from the afro-indigenous universe. While diving into the aesthetics of the terreiros and other enchanted places, these studies (especially the ethnographies) have uncovered a rich imagetic repertoire that both unravels different/new epistemologies and at the same time contributes to making historically marginalized groups visible. The photographs gathered here were produced in different moments and are part of several undergraduate thesis research studies. However, they share a commonality: a common effort to the understanding of subjects and practices that inhabit these sacred territories in Parintins, Amazonas. Key words: Religious Diversity; Visual Ethnographies; Parintins; Amazonas. 1 - Doutorando emAntropologia Social pela Universidade Federal doAmazonas (UFAM) e mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Trabalha atualmente como professor assistente no Centro de Estudos Superiores de Parintins da Universidade do Estado doAmazonas (UEA). Coordenou a Regional Norte daAssociação Brasileira de História das Religiões (ABHR). É membro da Rede de Pesquisa: História e Catolicismo no mundo contemporâneo e do Centro de Estudos Políticos, Religião e Sociedade (CEPRES). diegomarhistoria@yahoo.com.br https://orcid.org/0000-0001-6835-3417 http://lattes.cnpq.br/2646291847306206 2 - Bacharel em Comunicação Social — Jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: heloncoelho@hotmail.com htto://orcid.org/0000–0001–6187–2847 3 - Bacharel em Comunicação Social — Jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Produtor audiovisual e fotógrafo. Tem se dedicado à pesquisa em sociologia da religião e folkcomunicação carismática no Amazonas. renanjorge1771@gmail.com htto://orcid.org/0000–0003–4902–2051 http://lattes.cnpq.br/1346111777603151 4 - Bacharel em Comunicação Social — Jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). yandreifarias@gmail.com htto://orcid.org/0000–0001–9944–8291 http://lattes.cnpq.br/9066012063626263

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Diego Omar da Silveira ¹ Helon da Silva Coelho ² Renan Jorge Souza da Mota ³ Yandrei Souza Farias ⁴


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Os estudos sobre o campo religioso amazonense, tomado como um todo, são recentes e ainda carecem de maior sistematização. Duas fortes tradições foram importantes ao longo do século XX e deixaram suas marcas muito evi-

dentes: no campo da antropologia e da sociologia prevaleceu uma leitura

de que a Amazônia era iminentemente católica, muito embora as tradições

indígenas e afrorreligiosas existissem, ora se misturando ora se colocando como uma força paralela, de resistência, às sucessivas levas de colonização do imaginário religioso; o campo da história foi marcado pelo enfoque sobre

a entrada dos europeus e de sua fé, uma espécie de “conquista espiritual” narrada de forma apologética pelos seus próprios agentes eclesiásticos e

mais tarde, criticamente, pelos estudiosos, igualmente enredados nos processos que levaram à construção dessa hegemonia religiosa.

De qualquer forma, outras vozes — que não as do Cristianismo (católico ou protestante/ evangélico) — raramente encontraram lugares de enunciação

muito prestigiados. Hoje, porém, felizmente isso tem mudado (Sampaio, 2011). Não apenas porque os números apontam um cenário de transforma-

ção religiosa ou porque as religiões indígenas ou os povos de terreiro estejam reivindicando seus lugares nessa história. Mas também porque as ciências sociais, mais sensíveis, redescobrem, a partir de diferentes pontos de vista teóricos e metodológicos, a riqueza das narrativas, das estéticas, das episte-

mologias presentes nas muitas tradições afroindígenas amazônicas (Maués; Villacorta, 2008; Pacheco, 2013).


243 Narrar e permitir que diferentes sujeitos (re)construam suas próprias histórias são, assim, esforços fundamentais para reverter estigmas e preconcei-

tos que, não raro, reforçaram os silenciamentos. Do ponto de vista visual, o que buscamos apresentar aqui são fotografias provenientes de nossos es-

forços etnográficos, de nossos encontros com os territórios encantados na cidade de Parintins, interior do Amazonas, já na divisa desse estado com o Pará. Elas foram produzidas em diferentes momentos, no contexto de va-

riadas pesquisas monográficas e se juntaram pela primeira vez durante o I Simpósio Norte da Associação Brasileira de História das Religiões, realizado em 2017. Dois anos mais tarde (2019) voltamos a produzir, juntos, uma exposição durante a II Jornada de Folkcomunicação do Amazonas.


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Temos partido da ideia de que “a fotografia faz falar” (Barbosa, 2016, p. 194)

e de que é possível mobilizar esse “imenso potencial narrativo” em prol dos grupos subalternos (Carvalho, 2001), contra-hegemônicos (Silveira, 2019), marginalizados nas histórias oficiais e quase sempre atacados pelos defen-

sores das novas e velhas ortodoxias (Gaspar, 2006). Por isso privilegiamos as benzedeiras, os rezadores, os encomendadores de almas, as cerimônias da pajelança e do Santo Daime, as festas e celebrações dos terreiros. Ao lado deles, produzimos “imagens que provocam ao tornar o significativo [para esses grupos e pessoas] visível” (Barbosa, 2016, p. 196).

Para além dos registros orais, já bastante utilizados nas pesquisas (Silva;

Pacheco, 2012), as imagens têm aqui a tarefa de presentificar a importância das corporeidades das tradições afroindígenas para as formas locais de viver e de se relacionar com sagrado. Delas emergem os sons dos atabaques e

dos cantos, a força das danças ritmadas dos terreiros e a fumaça das ervas

que convoca e acolhe entidades e encantados durante as festas e momentos rituais.


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As fotografias também privilegiam a possessão e o transe religioso como

momentos fundamentais nas tradições mediúnicas, pondo em evidência as

linguagens não-verbais que atravessam “as identidades e as cosmovisões amazônicas”, nas quais o mundo natural e o cultural estão permanentemen-

te entrelaçados. Nos territórios em que homens e mulheres se assentam também baixam Orixás, pretos-velhos, caboclos e pombagiras. Ou sobem os bichos do fundo, para ajudar na cura dos males do corpo e do espírito.


251 Referências BARBOSA, Andrea. Fotografia, narrativa, experiência. In: BARBOSA, Andrea et. al. (org.). A experiência da imagem etnográfica. São Paulo: Terceiro Nome: FAPESP, 2016. pp. 191–204. CARVALHO, José Jorge. O olhar etnográfico e a voz subalterna. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: UFRGS, ano 7, n. 15, julho de 2001. pp. 107–147. GASPAR, Eneida Duarte. Guia de Religiões Populares do Brasil. São Paulo: Pallas, 2006. MAUÉS, Raymundo Heraldo; VILLACORTA, Gisela Macambira (org.). Pajelanças e Religiões Africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008. PACHECO, Agenor Sarraf. Religiosidade afroindígena e natureza na Amazônia. In: Horizonte. Belo Horizonte: PUC-Minas, v. 11, n. 30, abr./jun. de 2013. pp. 476–508. SAMPAIO, Patrícia Melo (org.). O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Editora Açaí; CNPq, 2011. SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de possessões afroindígenas. In: História Oral. São Paulo: ABHO, v. 15, n. 2, jul.-dez. de 2012. pp. 167–192. SILVEIRA, Diego Omar da. Religiões contra-hegemônicas na Amazônia: desafios de um campo de pesquisas. In: Senso. Belo Horizonte: Grupo Senso, ed. 13, nov-dez. de 2019.


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José Adelson Lopes Peixoto ¹ Yuri Franklin dos Santos Rodrigues ²

O universo ritualístico do povo indígena Jiripankó: espaços, personagens e paisagens Resumo: Objetivamos, a partir deste ensaio, apresentar alguns espaços e personagens que compõem os rituais do povo indígena Jiripankó, localizado territorialmente no município de Pariconha, Sertão de Alagoas, além de evidenciar as múltiplas paisagens presentes no território. Seguindo a perspectiva da Antropologia Visual, buscamos produzir fotografias que nos auxiliassem na compreensão de um riquíssimo universo religioso. Palavras chave: Jiripankó. Fotografias. Identidade. Ritual.

The ritualistic universe of the Jiripankó indigenous people: spaces, characters and landscapes Abstract: From this essay, we aim to present some spaces and characters that make up the

rituals of the Jiripankó indigenous people, located territorially in the municipality of Pariconha, outback of Alagoas, in addition to highlighting the multiple landscapes present in the territory. Following the perspective of Visual Anthropology, we seek to produce photographs that would help us understand a very rich religious universe. Key words: Jiripankó. Photographs. Identity. Ritual.

1 - Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco — UNICAP. Professor Adjunto na Universidade Estadual de Alagoas — UNEAL, Campus III — Palmeira dos Índios. Coordenador do Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas — GPHIAL. adelsonlopes@uneal.edu.br http://orcid.org/0000-0002-5179-108X http://lattes.cnpq.br/0073629440988196 2 - Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas — UNEAL, Campus III — Palmeira dos Índios. Bolsista na Secretaria do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena — CLIND/AL. Membro do Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas. yurirodrigueshis@gmail.com http://orcid.org/0000-0003-3390-0462 http://lattes.cnpq.br/6578151720637552


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Habitantes da zona rural do município de Pariconha, no Sertão de Alagoas, o povo indígena Jiripankó reafirma suas identidades e fortifica os laços de

comunhão com seus protetores a partir dos rituais sagrados, que contam com a participação de diversos indivíduos, com atribuições específicas, em diferentes espaços, com múltiplas paisagens.

A distância percorrida do centro da cidade de Pariconha até a aldeia Ouri-

curi — lócus da pesquisa — é de 6 km, se dar por uma estrada com o solo predominantemente pedregoso e arenoso, em alguns locais. Seu entorno é

recortado por serras, recobertas pela vegetação típica da Caatinga. No início

da pesquisa que resultou na produção das fotografias que compõem este ensaio, em janeiro de 2017, a região passava por uma longa temporada de seca, mas nos meses seguintes ocorreram acentuadas chuvas que muda-

ram a paisagem da região e o território indígena ganhou formas diferentes, com grandes extensões de matas verdes, barragens e açudes ficaram acima do nível, assegurando o plantio de vários gêneros alimentícios.

É nesse contexto que se desenvolvem os rituais denominados de Menino do Rancho e Corridas do Umbu; o último dividido em três etapas: Flechada do

Umbu, Puxada do Cipó, realizados em um mesmo dia, e a Festa ou Queima do

Cansanção, desenvolvido em quatro fins de semana. Através desses eventos ritualísticos, os Jiripankó se relacionam com seus seres Encantados³, que

têm sua força transfigurada e materializada para a roupa ou farda do Praiá⁴. Os rituais Jiripankó também estão associados à continuidade da Tradição⁵, através da inserção de crianças e adolescentes nos eventos, tendo os anci-

ãos e/ou os adultos a missão de compartilhar memórias, aprendizagens e valores morais, além de discutirem a importância de alguns espaços, como

as serras. Nesse ambiente, constroem-se sociabilidades e transmissões de

3 - De acordo com os Jiripankó, são indígenas que não passaram pela experiência da morte, se encantando vivos e como tal são cultuados em diversos espaços pelo povo (PEIXOTO, 2018; AMORIM, 2017). 4 - Indumentária confeccionada artesanalmente com fibra de caroá, representa a materialização dos Encantados na aldeia (PEIXOTO, 2018; AMORIM, 2017). 5 - Refere-se ao conjunto de práticas religiosas e culturais, permeadas por segredos e interdições.


259 memórias coletivas, compostas de algumas experiências individuais, apesar de serem socializadas e interligadas com as memórias individuais (HALBWACHS, 1990).

Ademais, os rituais adquirem uma função importante para o universo cosmológico, político e identitário dos Jiripankó, primeiro, por seu caráter comunicativo e sagrado, sendo o fio condutor da intermediação entre o mate-

rial e o imaterial (terra e reino dos Encantados); segundo, pela capacidade de agregação, aglutinação e troca de informações, sendo capazes de de-

limitar suas fronteiras e instituir alianças com outros grupos étnicos; por último, a posição de construção das identidades, ambiente de fluidez da

tradição indígena, de sociabilidades e do florescimento do sentimento de pertencimento entre as novas gerações, além de possibilitar aos indígenas uma conexão estreita com a natureza, representada em múltiplos espaços e de diversificadas formas.

A produção de fotografias perpassa pela intencionalidade de criar um supor-

te que auxilie na compreensão daquele riquíssimo universo religioso; assim, através de documentos visuais conseguimos apresentar a riqueza sociocultural e paisagística do povo indígena Jiripankó. Segundo Peixoto, “As foto-

grafias, como registro visual, trazem consigo certo grau de interpretação do fato representado, pois são recortes dessa realidade e permitem, ao espectador, múltiplas idas e retornos temporais […]” (PEIXOTO, 2013, p. 19).

Trabalhamos com a perspectiva das fotografias como fontes de pesquisa e de conhecimento, procuramos pensar que os rituais, seus espaços, perso-

nagens e paisagens são heranças atemporais, e as fotos são transmissoras e guardiãs das suas particularidades, intencionalidades, potencialidade e multiplicidades estéticas (MENDONÇA, 2000).

Ao lidarmos com essa fonte de pesquisa procuramos, inicialmente, reconhe-

cer suas possibilidades e limites para o propósito do estudo, verificando as narrativas que poderiam ser desenvolvidas e sistematizadas, os fatos silenciados ou invisibilizados e as cargas de sentimento, crença, respeito e afe-

to construídos nos rituais, que se tornam impossíveis de serem capturados


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pela lente da câmara. Com isso, inferimos que as fotografias provocam com-

preensões, formas e ideias diferentes, dependendo do lugar sociocultural de

quem as observa. As fotografias utilizadas neste trabalho oferecem ao leitor

algo para pensar “[…] um pedaço do real para roer, uma faísca do imaginário para sonhar” (SAMAIN, 2012, p. 22) e, ambicionam suscitar um passeio pela cultura e espaços ritualísticos dos indígenas Jiripankó..

Referências AMORIM, Siloé Soares de. Resistência e ressurgência indígena no Alto Sertão alagoano. Maceió: IPHAN/AL, 2017. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. MENDONÇA, João Martinho de. Os movimentos da imagem da etnografia à reflexão antropológica: experimentos a partir do acervo fotográfico do professor Roberto Cardoso de Oliveira. 2000. Dissertação (Mestrado em Multimeios) — Instituto de Artes — Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. PEIXOTO, José Adelson Lopes. Minha identidade é meu costume: religião e pertencimento entre os indígenas Jiripankó — Alagoas. 2018. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2018. PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e imagens em confronto: Os Xucuru-Kariri nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia) — Centro de Ciências Humanas, Letras e Arte, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013. SAMAIN, Etienne. As imagens não são bolas de sinuca. Como pensam as imagens. In: SAMAIN, Etienne. (org.). Como pensam as imagens. São Paulo. Editora da Unicamp, 2012. Cap. 1, p. 21.


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Daniel Meirinho ¹

A performance ritualística no Toré Pankará — Fotoetnografia do encantamento Resumo: Este trabalho visa apresentar uma fotoetonografia da relação performática do Toré do povo Pankará, no Sertão de Pernambuco, com foco nos atravessamentos entre identidade, cultura e religião. A prática ritual envolve a composição de símbolos e movimentações corporais que transcendem a materialidade dos objetos e personagens envolvidos e expande a compreensão entre espiritualidade, corpo e espaço que passam a ocupar no terreiro sagrado. Palavras chave: Fotoetnografia; Toré, Performance, Ritual, Pankará

The ritualistic performance of the Pankará Toré — Photography of the enchantment Abstract: This work aims to present a photoetonography of the performatic relations of the

Toré of the Pankará people, in the hinterland of Pernambuco, focusing on the crossings between identity, culture and religion. The ritual practice involves the composition of symbols and body movements that transcend the materiality of the objects and characters involved and expands the understanding between spirituality, body and space that they occupy in the sacred terreiro. Key words: Photoetnography; Toré, Performance, Ritual, Pankará

1 -Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia (PPGEM — UFRN). É mestre em Comunicação e Artes e doutor em Comunicação e Ciências Sociais Universidade Nova de Lisboa (UNL). Foi pesquisador do Laboratório de Antropologia Visual do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais (CEMRI), da Universidade Aberta de Lisboa (UAb). É fotografo e autor de vários artigos científicos e capítulos de livros sobre pesquisas visuais. danielmeirinho@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-4658-5556 http://lattes.cnpq.br/9921846039591174


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As imagens fotográficas têm vindo a ser inestimáveis aliadas nas pesquisas

etnográficas, não apenas como documento ou suporte, mas como um aporte visual que amplia a compreensão do universo simbólico e a expressão do comportamento cultural (ANDRADE, 2002). A subjetividade da imagem, que durante muito tempo foi um obstáculo relativista, torna a fotografia na contempora-

neidade uma linguagem altamente flexível e polissémica que auxilia na análise

de como os significados são construídos, incutidos e disseminados, bem como

uma potente ferramenta científica e artística (NOVAES, 2008). Concordamos com Sontag (1986), quando diz que apesar da presunção de veracidade e au-

toridade conferida à fotografia, “o trabalho do fotógrafo não é uma exceção genérica às relações habitualmente equívocas entre arte e verdade” (p. 16).

Pesquisar fotograficamente permite ampliar minha narrativa a partir de uma linguagem que ultrapassa a função simplista dos blocos de anotações, possibilitando disparar nas análises percepções subjetivas e sensíveis. Fotografar um ritual de Toré do povo Pankará ² revela um momento singular no qual

seus mistérios passam a ser partilhados em um exercício de reconfiguração de autoria com o espectador de forma descritiva e conotativa (NOVAES, 2008). O povo Pankará habita o sertão pernambucano, em um território originaria-

mente localizado na Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha. Com aproximadamente cinco mil indígenas (IBGE, 2010), muitos deles residentes nas 58 aldeias, a etnia foi reconhecida apenas na década de 40 e as pri-

meiras demarcações de terras em meados de 2003 (SILVA, SOUZA e RUFINO, 2018). A aldeia Serrote dos Campos é constituída por um grupo de familiares que desceram a serra e migraram até as margens do Rio São Francisco. Desde

então lutam para a sua regularização fundiária junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), sendo esse processo impossibilitado pela proposta de imple-

mentação de duas usinas nucleares do Plano Nacional de Energia (PNE) para serem construídas até 2030 dentro da reserva Pankará. Pernambuco é quarto estado brasileiro com maior população autodeclarada de indígenas no país, somando 53.280 índios (IBGE, 2010) e apenas uma etnia não está localizada no semiárido sertanejo.

2 - Esta pesquisa realizou-se graças ao consentimento da cacica Lucélia, dos pajés e das demais lideranças Pankará como representantes legais do povo para as tomadas de decisão sobre a garantia de direitos. Assim, foi possível fotografar a atividade religiosa do Toré, realizada na Aldeia Serrote dos Campos, localizada no município de Itacuruba, em Pernambuco.


279 O trabalho fotoetonográfico busca corresponder a relação sincrética entre corpo, espiritualidade, identidade e território, a partir do “encantamento” proporcionado pelo Toré Pankará, principal ícone da indianidade nordestina (GRU-

NEWALD, 2005). O ritual de dança e cânticos religiosos incorporam em um

mesmo altar imagens de santos católicos, de pretos velhos e caboclos em uma atmosfera religiosa que revela o sincretismo de elementos entre sistemas de

crenças brasileiros. Enquanto o Maracá ³ dá o tom das pisadas, em círculo um

grupo de participantes do ritual ingere a Jurema, bebida elaborada a partir de

diversas plantas com componentes psicoativos utilizada em rituais sagrados

por alguns povos indígenas do Nordeste. Seu preparo é guardado em segredo pelos pajés e representa uma personificação espiritual das matas nativas brasileiras.

Os encantados ⁴, entidades sagradas manifestadas do mundo espiritual através dos toantes ⁵, passam a ocupar os lugares religiosos dos terreiros, em uma se-

quência de movimentos do corpo em um espaço coletivo de culto (GRUNEWALD, 2018). As incorporações das entidades da natureza denotam uma complexida-

de religiosa afroindígena, cuja linguagem ritual guarda a herança colonialista católica e as alianças territoriais e simbólicas entre os povos indígenas e as

comunidades quilombolas que formam a região Nordeste do Brasil. Traços da Umbanda, do Candomblé, do Catolicismo e da Jurema compõem um conjunto

possível de rearranjos que possibilitam a incorporação de novos elementos e a

formação de uma “colagem ritualística” com características sincréticas muito marcantes.

O Toré, realizado em outubro de 2019 na aldeia Serrote dos Campos, se revela a intersecção de uma coletividade representada através da performance de difusão ritualística simbólica, identitária, ao mesmo tempo que um espaço de expressão política de resistência e de resgate de ancestralidade do povo Pankará.

Sua performance revela o conjunto harmônico de corpos em movimentos con-

duzidos pelas toadas, ritmos e vibrações sonoras das pisadas em uma conexão 3 - Espécie de chocalho feito da cabaça utilizado para demarcar o compasso e o ritmo do ritual do tore. 4 - Para Arruti (1995), os encantados são ‘índios que se encantaram’, voluntária ou involuntariamente e por isso nem sempre pode ser confundido com o culto aos mortos. 5 - Cânticos compostos tanto de uma língua ancestral Pankará, como também por vocábulos em português.


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espiritual, ao mesmo tempo lúdica, com os seus ancestrais. O espaço do terrei-

ro tem um papel aglutinador, em que o indivíduo Pankará é reconhecido a ter direitos a uma cobertura, sendo ela espiritual, comunitária e territorial.

Do lado de fora do barracão uma fogueira inicia o ritual que vai iluminar o altar

num canto do chão do terreiro em noite de lua cheia. Ao som dos maracás os

encantados eram evocados através dos toantes e incorporados nos participantes médiuns em uma longa performance do ritual. Essa observação foi retratada nas imagens do ensaio fotográfico do Toré Pankará, através da sua compre-

ensão performática ritualista marcadores que indicam, afirmam e delimitam a presença cultural e espiritual na constituição da indianidade nordestina (AR-

RUTI, 1995). A afirmação contemporânea da etnicidade Pankará funda-se ou

justifica-se, em termos culturais e religiosos, a partir da relação ritualística com a prática do Toré e suas ambivalências em um corpo que performa um conjunto de crenças e resistências.

Referências ANDRADE, R. Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. ARRUTI, J. M. Morte e Vida no Nordeste Indígena: a emergência étnica como fenômeno histórico regional. Revista Estudos Históricos, v. 8, n. 15, p. 57–94, 1995. GRUNEWALD, R. A. Toré: regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Massangana, 2005. GRUNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Nas Trilhas da Jurema. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 38, n. 1, p. 110–135, 2018. NOVAES, S. C.. “Corpo, Imagem e Memória”. In: MAMMI, Lorenzo e SCHWARCZ, Lilia. 8 X Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 113- 131. SILVA, J., SOUZA, E., RUFINO, M. O ritual do toré como organizador prévio para o conceito de círculo. Zetetike, v. 26, n. 1, p. 75–93, 2018. SONTAG, S. Ensaios sobre Fotografia. Lisboa: Dom Quixote, 1986.


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Conclusão Em resumo, um elemento vinculante entre todos os trabalhos são as articulações criativas entre território, corpo e religião. Ao território expomos uma diversidade de ambiências que constituem paisagens religiosas que, seja no urbano, no rural, seja em suas interseções, no privado e público, dizem muito sobre as práticas que nele ocorrem. No que se refere aos corpos aqui expostos percebemos uma multiplicidade de formas estéticas e performáticas de ser e estar no mundo, seja das pessoas e grupos que dão um consentimento ético para serem fotografadas em suas práticas religiosas, seja pela corporeidade da própria fotógrafa e fotógrafo que “entra” em um campo de pesquisa acompanhado por um instrumento técnico que produz imagens. Por fim, no que diz respeito a religião, em relação esse território e esse corpo, contamos histórias com imagens de diversas matrizes religiosas que, na sua pluralidade de inspirações e formas de vivenciar o sagrado, se fizeram aqui presente através dos olhares de pesquisa das autoras e autores. Percebemos que o fazer etnográfico realizado no campo da religião pode ser importante exemplo do potencial de utilização dos recursos fotográficos, bem como dos seus limites. Até onde, como antropólogas e antropólogos, podemos produzir imagens do campo religioso? As políticas da produção de imagem no campo religioso nos trazem mais atentamente uma necessidade de uma descrição dos processos de consentimento e restituição. Mesmo que tal imperativo não se restrinja somente ao campo religioso, e sim a toda boa etnografia, percebemos nos ensaios aqui expostos uma preocupação significativa relacionadas a estética e suas derivações éticas. Por fim, seguindo a metáfora da cruz e da encruzilhada aqui, podemos apontar para as controvérsias entre o texto e a fotografia e seus impetuosos atravessamentos. Nesse cruzamento de palavras e imagens, letras e JPGs, há um duelo de potências narrativas, mas também engajamentos e composições. Se o arcabouço teórico-prático da Antropologia Visual tem como prerrogativa um mantra anti representativo, nos quais imagens têm sua autonomia potencializada, sem passar por uma relação funcional-utilitarista de descrição/ilustração, o saber fazer da etnografia visual, mesmo crítico, não execrou a produção textual. A linguagem escrita foi, é e continuará sendo, dentro de uma diversidade de modelos possíveis e reinventados, parte importante e constitutiva de pesquisas com imagem.


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