DA PEDRA ÀS PALAVRAS FELIPE AGUIAR
Jorge Amado e o Candomblé Afro-Brasileiro
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Luiz Felipe de Queiroga Aguiar Leite
DA PEDRA ÀS PALAVRAS Jorge Amado e o candomblé afro-brasileiro
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________________________________________________________ LEITE, Luiz Felipe de Queiroga Aguiar Leite. Da pedra às palavras: Jorge Amado e o candomblé afro-brasileiro. Recife, 2018. 54p. E-book: ISBN: 1. Jorge Amado. Candomblé. 2. Tenda dos milagres. ________________________________________________________
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Ao Obรก Arolu, Jorge Amado
4 Sumário 1. Introdução..........................................................................5 2. Parte um: Os principais fundamentos e valores da religião africana e afro-brasileiro.....................................................9 3. Parte dois: A atuação das forças no homem: o bem e o mal....................................................................................25 4. Parte Três: As aproximações da obra de Jorge Amado com o mito e a literatura oral: o universo sensível...........42 5. Considerações finais.........................................................50 6. Referências........................................................................52
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A lenda de Quisra é semelhante a certa narrativa sobre a introdução da monarquia entre os iorubas. Odudua, filho e príncipe herdeiro de um dos reis de Meca, Lamurundu (ou Nimrod?), apostatara do islamismo e tentara impor o culto dos ídolos como religião do estado. A inconformidade dos muçulmanos rebentou numa guerra civil, durante a qual Lamurundu foi morto e seus filhos e aderentes expulsos da cidade. Odudua, perseguido pelos inimigos, veio dar, com dois de seus ídolos e sua gente, em Ilê Ifé, nas florestas do Iorubo, onde fundou um reino. Alberto da Costa e Silva
Karingana wa karingana
6 Introdução O que motivou a realização deste trabalho monográfico foi a falta de bibliografia acerca da obra de Jorge Amado que estudasse o universo afro-brasileiro não apenas como constituinte folclórico da ficção, mas também como participante estrutural da mesma. Este enfoque nos levou à hipótese de que os valores e fundamentos das religiões africanas e afro-brasileiras do candomblé baiano, participam na formação dos valores e fundamentos da obra amadiana. Partindo desta, objetivamos traçar um panorama de correspondências que identifiquem a presença desses elementos. Essa abordagem nos possibilitou estudar a obra do autor como parte do universo mítico afro-brasileiro, pois que possuidora de uma função –neste universoque a aproxima da função dos mitos em sociedades primitivas. Para tanto, houve necessidade de um recorte essencial. Apesar de podermos encontrar os elementos de nossa pesquisa nas duas fases da obra de Jorge Amado, a exemplo do autor Komoe Gastón Yao, no seu estudo Brasil e África em Textos de Jorge Amado (trabalho que usaremos exaustivamente, tendo em vista ser único no gênero esse coadunar com as ideias que trabalharemos na obra de Jorge Amado); restringir-nos-emos à segunda fase, mais especificamente ao livro Tenda dos Milagres, por ser ele o que melhor representa esta fase e os anseios de liberdade do autor, não só das diretrizes que o Partido Comunista dava a sua obra (a segunda fase se inicia com Gabriela, Cravo e Canela e acontece logo após o desvinculamento de Jorge Amado do Partido Comunista), mas também dos parâmetros literários da época. Esse anseio de liberdade, exposta na epígrafe do livro deste estudo, direciona esteticamente a segunda fase da obra do autor. O projeto político é abandonado e a linguagem se aproxima cada vez mais da literatura oral. As obras ganham um painel “colorido”, pitoresco, onde prevalece a estereotipia Nas obras populares posteriores, Jorge Amado abandona a ficção engajada e adentra cidades baianas, carregadas de lirismo, que mostram acasos pitorescos e característicos. Verifica-se também substancial mudança na linguagem, que descobre suas raízes
7 populares, recebendo influências da literatura de cordel e tornando-se mais viva e sensual. A obra de Jorge Amado passa a refletir, portanto, de modo mais exato, a realidade colorida e saborosa da mística e lendária Bahia (GOMES, 1981, p. 121). Assim é o livro deste estudo. Pedro Arcanjo, personagem principal, é estereótipo de força, coragem, inteligência, sabedoria; típico dos heróis mitológicos africanos. O Ojuobá, os olhos do rei Xangô, título que lhe dá o direito a tudo saber e ver dos segredos da religião, é um bedel da Faculdade de Medicina da Bahia que, autodidata, escreve sobre a mestiçagem cultural, em defesa desta e da contribuição da cultura popular à construção da cultura do povo. Em contrapartida, o professor Nilo Argolo, representante do saber construído academicamente, partidário das ideias de Gobineau. Nas palavras de José Maurício Gomes de Almeida (1986, p. 84): Este personagem constitui, na verdade, um duplo Satírico de Nina Rodrigues que, no fim do século passado e início deste, também professor da Faculdade da Bahia, sustentava em seus escritos a tese da superioridade da raça branca e da degenerescência do mestiço. Os dois personagens formam núcleos representativos de dois mundos que se opõem: “Tenda dos Milagres vem a ser uma ampla reflexão sobre a sociedade brasileira, baseada na oposição central e fundamental: mundo dos brancos/mundo dos negros (ou talvez nãobrancos, por abranger todos os matizes da mestiçagem)” (RUTCHI, 1994, p. 411). O “arranque do mecanismo narrativo”, para usar as palavras da autora acima citada, é acionado por James D. Levenson, cientista norte-americano que vem ao Brasil para obter mais informações sobre a obra de Arcanjo, considerando-o um grande estudioso da mestiçagem e da vida popular. Um afã toma conta do povo e da imprensa baiana, quando começa a oposição centrada pelas duas personagens principais: Nilo Argolo e Pedro Arcanjo. O desfecho da narrativa se dá com Arcanjo provando em estudo de árvores genealógicas que não há um só branco no estado da Bahia, inclusive o próprio Argolo, primo de Pedro Arcanjo; os dois com um tataravô em comum, o africano Ubiticô Ojuobá.
8 Para melhor explanação de nossa proposta, dividiremos o trabalho em três partes. A primeira tratará da força vital, do conceito africano de pessoa e a importância do nome como elemento de socialização; da importância da palavra como externalizadora de forças e transmissora de conhecimentos; e de como vivem a ideia de tempo e sua relação mítica. Esta primeira parte tem como base fundamental o trabalho, já citado, do autor Komoe Gastón Yao, que trata os assuntos acima referidos, com exceção da ideia de tempo para o universo religioso e social africano. A segunda parte tratará da ideia que os africanos fazem da atuação das forças no homem e que os estudiosos chamam de bem e mel; qual a diferença da visão católica-ocidental para a africana e como se apresentam na obra do autor. Essa segunda parte poderia estar incluída na primeira, mas a separamos por acreditar ser ela, de vital importância a nossa explanação, sendo retomada na parte seguinte, como veremos no decorrer do trabalho. Na terceira parte, faremos as aproximações da obra com o mito e a literatura oral. Apresenta-se como ideias, propostas a serem desenvolvidas em estudos posteriores. Seu próprio fundamento se baseia nas duas primeiras partes deste trabalho, pois acreditamos não poder fazer tais aproximações sem primeiro traçar as correspondências necessárias entre a obra e o universo africano e afro-brasileiro. Para finalizar esta introdução ao presente trabalho, faz-se necessário uma explicação do título: Da pedra às palavras. Diz Eliade (1992, p. 18): “Uma rocha revela-se como objeto sagrado porque sua própria existência se torna incompreensível, invulnerável, ela é aquilo que o homem não é. Ela resiste ao tempo. Sua realidade combina-se com a perenidade”. Completando: “O assento, àjobo, contém, em primeiro lugar, uma pedra – òta. O òta é, por assim dizer, o núcleo central do assento” (SANTOS, 2001, p. 202). No candomblé cada orixá tem uma pedra que lhe corresponde em natureza. Esta pedra encontra-se no “assento” ou “assentamento” da divindade. Lugar para onde convergem as energias naturais e de onde elas são disseminadas. A pedra compartilha os segredos da religião, por isso, incompreensível, como diz Eliade;
9 compartilha os segredos que lhe fundam. A pedra é o fundamento do orixá e da religião dos orixás. Por isso, o òta “resiste ao tempo”, “combinando-se com a perenidade”. É desse reservatório dos valores do universo religioso africano e afro-brasileiro que esse trabalho começa. Das pedras da obra a sua forma estética ou palavras, ou seu produto final, ou a forma como ela se apresenta e influi no mundo afro-brasileiro.
10 Parte um: Os principais fundamentos e valores da religião africana e afro-brasileira. Força vital; conceito africano de pessoa; o nome: elemento de socialização; a palavra: externalizadora de forças e transmissoras de conhecimentos; o tempo africano. As sociedades do golfo do Benin produziram categorias de pensamento e de modelos estruturais em função dos quais organizaram suas representações, sua cosmologia, sua concepção da pessoa humana, da sociedade, assim como valores que orientam o comportamento dos homens. Esta lógica e estas formas do pensamento tradicional se mantiveram com certeza nos escravos do Brasil durante muito tempo; ainda estruturam o universo do candomblé (LÉPINE, 2002).
O candomblé baiano do qual participou Jorge Amado tem origem em tradições do Golfo de Benin, dos povos iorubas ou nagôs e com influências de costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados jejes. Daí, a tradição do estudos afro-brasileiros chamálos de candomblé de modelo jeje-nagô, da tradição religiosa nagô, vindos do Benin e da Nigéria. A religião se apresenta como princípio ordenador: A finalidade geral da religião é a transformação simbólica da percepção que a humanidade tem do universo, criando assim uma convicção de ordem e finalidade para a sociedade e para os indivíduos (FROST; HOEBEL, 1976, p. 364).
O primeiro princípio ordenador que parte da estrutura e permeia todo universo religioso africano e afro-brasileiro a ser estudado é o conceito de força vital. Este, retiraremos, principalmente, do autor Komoe Gaston Yao (1996, p. 27-28), em sua Dissertação, o autor entende força vital como:
11 (...) um princípio de vida, uma concepção de mundo (...) resultante ela própria, da concepção de ser existente – que ontologicamente as populações negro-africanas definem como força, uma potência ou uma energia vital (...) esse princípio fundamental manifesta-se na sociedade brasileira no conceito de “axé”, força vital.
Portanto, axé, força vital, propulsora do ser no mundo que se identifica com sua cosmovisão. O axé é a força, princípio vital que se externaliza, promovendo realização. “Axé é a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir. Sem axé, a existência estaria paralizada, desprovida de toda possibilidade de realização” (SANTOS, 2001, p. 39). O axé, princípio vital, também pode ser reconhecido simplesmente como força, como diz Fábio Leite (apud YAO, 1996, p. 37): A palavra força se utiliza para referir a possibilidade de auto-domínio e exteriorização de energias vitais intrínsecas ao ser, com interferências ou não de entes sobrenaturais e utilizados em relação à própria pessoa ou terceiros. Essa alusão é freqüente entre africanos, nos mais variados contextos. Assim é comum ouvir-se, a propósito de um homem de posses, ou que possua várias esposas e filhos, ou que seja excelente agricultor, contador de lendas e fatos históricos, músico, médico, etc..., que “ele é forte”.
O autor Komoe Gastón Yao utiliza uma passagem do livro que é objeto de nosso estudo Tenda dos Milagres; como ele diz (1996, p. 37): “Uma ilustração das mais expressivas relativa à manifestação de força vital”; este, refere-se à passagem acontecida quando no terreiro de Procópio Xavier de Souza, conhecido Pai de Santo do meio afro-brasileiro baiano, é atacado pela polícia. Zé de Ogun, antigo frequentador do terreiro, entra com a polícia para fazer sua investida. Zé se defronta com Pedro Arcanjo, Ojuobá, que possuído por Exú joga-lhe um encantamento que o faz receber Ogun,
12 orixá guerreiro, que se volta contra os policiais matando e expulsando os outros dois. Reproduziremos aqui, parte do episódio: Contam que, nessa hora exata, Exu, de volta do horizonte penetrou na sala. Ojuobá disse: Laroiê, Exú! Foi muito rápido. Quando Zé Alma Grande deu mais um passo em direção a Oxóssi, encontrou pela frente Pedro Arcanjo, Ojuobá, o próprio Exú conforme opinião de muitos. A voz se abriu imperativamente no anátema terrível, na objurgatória fatal! - Ogun kapê Dan meji, Dan pelú oniban! Do tamanho de um sobrado, os olhos de assassino, o braço de guindastre, as mãos de morte, estarrecido, o negro Zé Alma Grande parou ao ouvir o sortilégio. Zé de Ogum deu um salto e um berro, atirou longe os sapatos, rodopiou na sala, virou orixá, no santo sua força duplicava. Ogunhê! Griotu, e todos os presentes responderam: Ogunhê, meu pai Ogum! - Ogun kapê dam meji, Dan pelú oniban! – Repetiu Arcanjo: Ogun chamou as duas cobras e elas se ergueram para os soldados! Ergueram-se os braços do orixá, as mãos de tenazes eram duas cobras: Zé Alma Grande, Ogun em fúria, partiu para Pedrito. - Está maluco, Zé? Samuel Cobra Coral e Zacarias da Goméia não tiveram escolha, puseram-se no caminho entre o Demônio e o Delegado. Com a mão direita Zé Alma Grande segurou Samuel Cobra Coral, o matador de Manuel de Praxedes, o bom gigante das alvarengas e navios. Suspendeu-os no ar, girou com ele como se fosse um brinquedo de menino. Depois, com toda força atirou no chão, de cabeça para baixo. A cabeça enterrou-se no pescoço, rotos os ossos da espinha, fratura a base do crânio, defunto aos pés do delegado. Zacarias da Goméia ia atirar, não teve tempo, levou um pontapé nos quimbas, no meio do urro desmaiou, não serviu para briga nunca mais (AMADO, 1969, p. 195-196).
13 O episódio escolhido por Yao, acima reproduzido, revela a externalização da força vital de uma forma bruta e enérgica. Um outro episódio que escolhemos para esse trabalho revela um aspecto mais sutil da força, do axé. Esta, externaliza através do auto-domínio de que fala Fábio Leite, citado por Yao. O episódio acontece quando Arcanjo é para na faculdade pelo professor Nilo Argolo que promove considerações acerca de sua obra envolto em um tom de superioridade e depreciação. Essa passagem é uma das, ou talvez a mais representativa dos dois universos opostos que se confrontam no livro. A consideramos síntese das tensões e problemáticas de Tenda dos Milagres. Por esse motivo, apesar de extensa, reproduzimos na íntegra: Pedro Arcanjo vinha pelo corredor em direção à porta de saída, alegre do dia lavado de sol, e gingava ao som da melodia de um samba de roda, assoviando baixinho em respeito ao recinto da faculdade. A voz imperativa o reteve perto da porta, quando já deixava crescer o volume do assovio, pois a praça era livre para algazarra e canto: - Ouça, bedel. Abandonando a contragosto a melodia, Arcanjo voltouse e reconheceu o professor. Alto, erecto, todo em negro, seco de corpo, voz e comportamento implacáveis o professor. Nilo Argolo, catedrático de Medicina Legal, glória da faculdade, parecia fanático inquisidor da Idade Média. Luz crua e fulva nos olhos miúdos revelava o místico e o sectário: - Aproxime-se. Arcanjo adiantou-se lentamente em seu passo gingado de capoeirista. Por que o detivera o catedrático? Teria lido o livro? (...) - Foi você quem escreveu uma brochura intitulada “A vida... - ... Popular da Bahia”... – Arcanjo superava a humilhação inicial, dispunha-se ao diálogo. – Deixei um exemplar para o senhor na secretaria.
14 - Diga “senhor professor”- corrigiu áspero, o lente ilustre. – Senhor professor, não senhor apenas, não se esqueça. Conquistei o título em concurso, tenho direito a ele e o exijo. Compreendeu? - Sim, senhor professor – a voz distante e álgida, o único desejo de Pedro Arcanjo era ir-se embora. - Diga-me: as diversas anotações sobre costume, festas tradicionais e cerimônias fetichistas que você classifica de obrigações, são realmente exatas? - Sim, senhor professor. - Sobre cucumis, por exemplo, são verídicas? - Sim, senhor professor. - Não foram inventadas por você? - Não, senhor professor. - Li sua brochura, tendo em conta quem a escreveu – novamente o examinou com os olhos fulvos e hostis-, não lhe nego certo mérito, limitado a algumas observações, bem entendido. Carece de qualquer seriedade científica e as conclusões sobre mestiçagem são necedades delirantes e perigosas. Mas, nem por isso deixa de ser repositório de fatos dignos de atenção. Vale leitura. Pedro Arcanjo, em novo esforço, transpôs a muralha a separá-lo do professor, reatou o diálogo: - O senhor não acredita que tais fatos falam a favor de minhas conclusões? De sorriso escasso, pouco freqüente na linha fina dos lábios, para o professor Argolo o riso solto era rareza quase sempre provocada pela tolice, pela imbecilidade dos indivíduos: - Faz-me rir. Seu alfarrábio não contém uma única citação de tese, memória ou livro; não se apóia na opinião de nenhuma sumidade nacional ou estrangeira, como ousa dar-lhe categoria científica? Em que se baseia para defender a mestiçagem e apresentá-la como solução ideal para o problema de raças no Brasil? Para atrever-se a classificar de mulata nossa cultura latina? Afirmação mnstruosa, corruptora. - Baseio-me nos fatos, senhor professor.
15 - Asnice. O que significa os fatos, de que valem, se não os examinamos à luz da filosofia, à luz da ciência? Já lhe aconteceu ler algo sobre o assunto em pauta? – mantinha se riso de zombaria: - Recomendo-lhe Gobineau. Um diplomata e sábio francês; viveu no Barsil e é autoridade definitiva sobre o problema de raças. Seus trabalhos estão na biblioteca da escola. - LI apenas alguns trabalhos do senhor professor e do professor Fontes. - E não o convenceram? Você confunde batuque e samba, hórridos sons com música; abomináveis calungas, esculpidos sem o menor respeito às leis da estética, são apontados como exemplos de arte; ritos de cafre têm, a seu ver, categoria cultural. Desgraçado deste país se assimilarmos semelhantes barbarismos, senão reagirmos contra este aluvião de horrores. Ouça:isso tudo, toda essa borra, proveniente da África, que nos enlameia, nós a varreremos da vida e da cultura da Pátria, nem que para isso seja necessário empregar a violência. - Já foi empregada, senhor professor. - talvez não tivesse sido na forma e na mediada necessária – sua voz, habitualmente seca, tomou um timbre mais duro; nos olhos hostis de impiedosa condenação, acendeu-se a luz amarela do fanatismo: - Trata-se de um cancro, há que estirpá-lo. A cirurgia aparenta ser forma cruel de exercer-se a medicina, mas em realidade é benéfica e indispensável. - Quem sabe, matando-nos a todos... um a um, senhor professor. Atrevia-se à ironia, o bigorrilha? A glória da faculdade fixou o bedel com olhos de suspeita e ameaça, mas só lhe viu a face composta, a postura correta, nenhum sinal de desrespeito. Tranqüilizado, seu olhar fez-se sonhador e num riso quase jovial considerou a proposição de Arcanjo: - Eliminar a todos, um mundo somente de árias? Mundo perfeito! Grandioso, irrealizável sonho! Onde o temerário gênio capaz de tomar da atrevida idéia e levá-la à prática? Quem sabe, um dia, invicto deus da guerra
16 cumprirá a missão suprema? Visionário, o professor Argolo perscrutou o futuro e pressentiu o herói a frente das cortes arianas. Fulgurante imagem, instante glorioso, um segundo apenas: desceu à mísera realidade: - Não creio necessário chegar a tanto. Basta que se promulguem leis proibindo a miscigenação, regulando os casamentos: branco com branca, negro com negra e com mulata, e cadeia para quem não cumprir a lei. - Difícil separar e classificar, senhor professor. Novamente o professor buscou acento de motejo na voz mansa do bedel e nas palavras bem pronunciadas. Ah! Se o descobrisse! - Difícil, por que? Não vejo dificuldade – decidiu considerar a conversa terminada, mandou: - Vá à suas obrigações, não tenho mais tempo a perder. De qualquer maneira, em meio aos despautérios, alguma coisa se aproveita em seu livro, rapaz, - se não chegava a ser Amável, fazia-se ao menos condescendente: estendeu a ponta dos dedos ao mestiço. Coube a Pedro Arcanjo desconhecer a mão ossuda, limitando-se a um aceno de cabeça, idêntico à saudação com que o recebera o professor Nilo Argolo de Araújo no início da conversa, apenas um pouco, um quase nada menor. “Canalha!”, rosnou, lívido, o catedrático (AMADO, 1969, p. 104-109).
A parte em destaque revela o momento exato em que a força, o axé, se externaliza em forma de autodomínio. Através de Arcanjo se vê a força, tanto bruta, como na passagem em que encarna Exú, quanto sutil, diante da situação adversa a que tentou submetê-lo o professor Argolo. Esse estereótipo da personagem Arcanjo entra em coadunação com o que diz o antropólogo J. Vansina (1983, p. 171): “Todo estereótipo se origina de um sistema de valores e de interesses”; revelando, assim, a forma como a força vital é entendida e vivida no meio afro-brasileiro.
17 A essa ideia de força vital, unem-se duas noções caras ao universo africano e afro-brasileiro do candomblé baiano: a noção de pessoa e a importância do nome. “Como o pessoal é indissociável do grupal, estudar a concepção de pessoa constitui um recurso para compreender as instituições e as representações a ela associadas” (RIBEIRO, 1996, p. 45). Da mesma forma que o universo é todo interligado para o africano: “De Deus a um grão de areia, o universo africano é sem costura” (Erny apud RIBEIRO, 1996, p. 39); a pessoa, indivíduo, inexiste sem um meio social que o defina como ser, que do seu contato forme sua identidade: “A identidade é descoberta dentro da pessoa e implica identidade com os outros. O eu interior descobre seu lugar no mundo ao participar de uma identidade de uma coletividade” (KUPER, 1999, p. 298). Essa identidade, essa noção de si mesmo e de ser ‘’e construída num processo dinâmico, nunca extático: “A noção africana de pessoa propõe a coexistência dinâmica de vários elementos vitais e sociais, para sua formulação, originando uma série de práticas específicas ligadas a sua configuração plena no interior da sociedade” (YAO, 1996, p. 66). Um bom exemplo de como esse valor se dissemina socialmente se vê no personagem do major, advogado defensor dos pobres: Às vésperas de completar os setenta e cinco anos, o major não tinha rival em popularidade, sem dúvida a figura mais pitoresca da Bahia. Rábula do povo, procurador dos pobres, providência dos infelizes, provisionado do fórum, batera todos os recordes de defesa e absolvição no júri onde atuava a cerca de cinqüenta anos; inumerável clientela de réus paupérrimos, desamparados, na maioria gratuitos (AMADO, 1969, p. 44).
A natureza socializadora do major que o faz atender a todos os necessitados sem distinção, se corresponde à natureza do seu orixá: “sendo de Oxalá, não veste senão branco” (id. 44). Oxalá é o mais velho e importante orixá do panteão africano e afro-brasileiro.
18 De natureza serena, atende a todos, pois é considerado pai de todos os orixás. A simbologia que envolve a natureza dos orixás promove a identidade e socialização do indivíduo no grupo. Oxalá é o pai, por isso a todos atende sem distinção: Ali, em torno à porta, desde cedo se acumula a espantosa clientela; mulheres de presos, por vezes com toda filharada, mães com crianças em idade escolar e sem escola, desempregados, prostitutas, vagabundos, enfermos necessitados de médico, hospital e remédios, gatunos com processos em liberdade provisória, parentes de mortos sem dinheiro para o enterro, mulheres abandonadas pelos maridos, donzelas recém descabaçadas, grávidas de sedutores indefesas ao matrimônio, tipos os mais diversos, todos sob a ameaça da justiça, da polícia, dos grandes; bêbados e simplesmente bêbados, na esperança de um gole matinal pra lavar a boca – população aflita, esfomeada e sedenta. Um a um, o major os atende (id. 45).
À noção de pessoa une-se a importância do nome com elemento socializador. A cerimônia do orunkó, popularmente conhecida como a cerimônia de “dar o nome”, introduz o ser na sociedade. Pode ser comparado com o ato do batismo cristão: O ato do batismo que cumula com a revelação do nome do novo ser, dá-lhe não só identificação pessoal com também existência social. Pois a partir do conhecimento do seu nome, é reconhecido na sociedade da qual tornase de fato verdadeiramente um membro (YAO, 1996, p. 101).
O nome representa o ser profundo da pessoa e traz consigo os seus segredos. “O nome representa para as sociedades negroafricanas, um princípio vital de importância. Pois além de dar existência à pessoa, é reveladora de sua personalidade mais profunda” (YAO, 1996, p. 64). O exemplo mais fecundo do livro se encontra na
19 personagem principal, Pedro Arcanjo. Seu nome o socializa na sociedade do candomblé, dando-lhe, inclusive, uma função. O Ojuobá, Oju = olhos; Obá = rei, é “Os olhos do rei Xangô”, título recebido do Próprio orixá Xangô e que lhe dá o direito de tudo ver e tudo saber: Nem as mães de santo mais ciosas e estritas, Tia Maci, Dona Menininha do Gantois, Mãe Senhora do Opô Afonjá, as respeitáveis matronas, nem elas guardavam segredos para o velho, tudo lhe revelando de mão beijada – aliás os orixás assim tinham ordenado, “para Ojuobá não há porta fechada (AMADO, 1969, p. 24).
Pedro Arcanjo concentra em si os ideais de força vital para os filhos de santo. Ele mesmo torna-se elemento de socialização, na medida em que é citado e adorado por todos, tomado como exemplo: “para o povaréu do tabuão e Pelourinho, do pastoril à gafieira, para a cantiga e a dança, para a capoeira e o candomblé, permanecia o mesmo Pedro cercado de estima e de respeito: com ele não há quem se compare” (id. 159). E ainda de sua morte, o lamento: “- Ai Arcanjo, meu santo, por que não disse que estava doente? Como eu ia saber? Agora Ojuobá, como vai ser? Tu era a luz da gente, nossos olhos de ver, nossa boca de falar. Tu era a coragem da gente e nosso entendimento” (id. 26, grifo nosso). Desse último trecho retiramos a afirmação em destaque, para introduzir o estudo da importância da palavra para o universo religioso do candomblé. “A tradição africana concebe a fala como um dom de Deus: divina do sentido descendente e sagrada num sentido ascendente, materializa ou externaliza as vibrações das forças” (RIBEIRO, 1996, p. 97). A palavra está intimamente ligada à noção de força vital. Como se afirmou acima, ela exterioriza a “força”, entendida no sentido desse estudo e como elemento comunicativo é o principal socializador do universo afro-brasileiro. Hampatê Bá, em estudo patrocinado pela UNESCO, disserta sobre a importância da palavra para o indivíduo e sua coesão social: “(...) ele é a palavra, e a palavra encerra um
20 testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e respeito pela palavra” (BÂ, 1993, p. 182). A palavra é agente de uma cadeia de transmissão que perpetua valores. Palavra, força vital e pessoa/indivíduo, estão intimamente ligados, formando uma cadeia dinâmica de inter-relações: “Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como meio de comunicação diária, mas também como meio de preservação da sabedoria dos ancestrais” (VANSINA, 198, p. 157). Isto nos leva a abordar o que estudiosos como Reginaldo Prandi, professor da USP, chama de “Princípio de senioridade”, ou seja, o papel dominante que exercem os mais velhos. Estes, são detentores do maior axé, força vital e do conhecimento. São eles os principais transmissores do saber mítico que em sua essência permanece africana, como afirma Wilson do Nascimento (BARBOSA, 2002: 111): “A mitologia afro-brasileira é uma adaptação direta da mitologia africana às condições brasileiras de vida. Como tal, ela manteve-se essencialmente africana”. Sobre a importância dos velhos na manutenção da tradição, diz Claude Lépine (2002): Os africanos, de um modo geral, pensam que os mais velhos possuem uma longa experiência das relações humanas e profunda sabedoria. Os mais velhos são responsáveis pelo culto dos antepassados da família, pela reprodução dos costumes e da tradição; é sua obrigação fazer observar as normas estabelecidas pelos antepassados, assegurar a continuidade e a prosperidade da linhagem. São árbitros por excelência; atribuem-lhes discernimento, abnegação, equidade, sangue-frio. Os africanos têm em relação a seus pais e aos mais velhos em geral o mais absoluto respeito. Acreditam que eles possuem uma força poderosa e que a felicidade e prosperidade das gerações mais novas dependem de sua proteção.
Em passagem do livro de nosso estudo, Arcanjo é chamado às pressas pelas feitas, nome usado para denominar as filhas de santo do terreiro, no momento de morte da mãe de santo Majé Bassan,
21 para esta, passar-lhe a última lição. Este trecho já foi usado pelo autor Komoe Gaston Yao com o mesmo objetivo, mas como se faz necessário para esclarecimento da importância do uso da palavra na transmissão de conhecimento e para fazer a ligação com o estudo do tempo africano, reproduzimos o trecho completo: Quando, finalmente, Pedro Arcanjo chegou, as filhas de santo correram a seu encontro em choro e aflição: - Depressa, depressa que ela está lhe chamando sem parar, só faz dizer: - Ojuobá, cadê Ojuobá? Abrem-se os olhos de Majé Bassan ao ressoar os passos: - É você, meu filho? A mão, folha seca e frágil, aponta a cadeira, num aceno. Senta-se Arcanjo, toma da mão e a beija. A anciã concentra toda a energia que lhe resta no corpo agonizante e num sopro de voz inicia a narrativa. Mistura as línguas, usa palavras e frases iorubas, é a última lição, o ensinamento derradeiro: “Umbé oxirê fun ipakô Ijenan, houve uma festa no terreiro de Ijenan. Era festa grande, de Ogun, e veio um mundão de gente ver Ogun dançar. Ogun Aiaká dançou bonito para alegrar os olhos do povo cansado de sofrer tanto padecimento. Quando estava no melhor de sua dança, chegou sarapebé, o homem do recado, e contou que os soldados vinham com as armas embaladas para acabar com a festa de Ogun e arrasar o Terreiro de Ijenan. Vinham galopando nos cavalos, na pressa de chegar e bater. Ogun escutou a falação do homem do recado, o aviso que Oxóssi lhe mandava, foi ao mato ali pertinho, assoviou chamando duas cobras, cada qual mai comprida e perigosa. Botou as duas no meio da sala, dois novelos de veneno, enrodilhadas, a cabeça para cima, de fora as línguas pençonhentas, os olhos assuntando a porta da rua. Em frente à porta, bem do seu, Ogun dançava à espera dos soldados. Não tardou eles chegarem, pulavam dos cavalos, e sem dizer aqui-del-rei iam puxando as armas de bater e criar bicho. Da porta, Ogun falou assim para os soldados: Quem for de paz entre no Terreiro, venha dançar em minha festa. Para os
22 amigos, meu coração é mel de flores, mas ai dos inimigos: para eles meu coração é poço de veneno. Apontou as duas cobras em seu veneno enrodilhas, os soldados sentiram medo, mas ordem é ordem e ordem de quartel e de polícia é sem pena, sem apelo, sem revogação. Avançaram os soldados contra Ogun, as armas levantadas. Ogun Kapê Dan meji, Dan pelú oniban. Ogun chamaou as cobras e as cobras se ergueram diante dos soldados. Ogun avisou: quem quiser brigar, terá briga, quem quiser guerra terá guerra, as cobras morderão e matarão, não vai ficar nem um soldado vivo. As cobras avançaram as línguas venenosas e aos gritos de socorro os soldados saltaram nos cavalos e fugiram, depressa foram embora, porque em sua dança sem parar Ogun chamou as duas cobras, Ogun Dan meji, Dan pelú oniban”. Pedro Arcanjo repetiu: Ogun Kapê Dan meji, Dan pelú oniban, a praga imemorial, a terrível ameaça dos males do mundo, das desgraças sem conta, sortilégio e imprecação, a derradeira dádiva da Iyá. Na cidade, o delegado Pedrito Gordo soltara a malta do terror com a carta branca: invadir terreiros, destruir pejis, surrar babalaôs e pais de santo, prender feitas e iaôs, iyakêkerês e iyalorixás. Vou limpar a Bahia dessa imundice! Deu ordens aos soldados da polícia, organizou a escolta de bandidos, apartiu para a guerra santa. Majá Bassan,a doce e temível, a prudente e sábia, fechou os olhos. Ouviu-se ao longe o grito de Yansan à frente dos eguns, Xangô saiu dançando no terreiro, Pedro Arcanjo prendeu a dor no peio e disse: nossa Mãe morreu (AMADO, 1969, p. 167-168).
Quando falamos de força vital, exemplificamos com a passagem em que Arcanjo encarna Exú e chama Ogun-orixá guerreiro, ao corpo de Zé de Ogun. Este, mata e expulsa os soldados que com ele vieram dar batida no terreiro. Note-se que a passagem, agora reproduzida, se refere a uma história mítica, passada na cidade de Ijenan, África; que Mãe Majé
23 Bassan transmite a Arcanjo para lhe avisar como proceder no acontecimento futuro. O mito – acontecimento passado - torna a realizar-se no presente. O mito é modelo exemplar, pois relata as gestas dos entes sobrenaturais (...) os atos humanos – aqueles, naturalmente, que não têm origem no mero automatismo, seu significado, seu valor, não estão vinculados a seus rudes dados físicos, mas sim a sua propriedade de reproduzir um ato primordial, de repetição de um modelo mítico (ELIADE, 1992, p. 18).
O acontecimento passado se repete no presente e o futuro não existe. O tempo mítico africano é cíclico: O tempo cíclico é o tempo da natureza, o tempo reversível, e também o tempo da memória, que não se perde, mas se repõe (...) se o futuro é aquilo que não foi experimentado ele não faz sentido nem pode ser controlado, pois o tempo é o tempo vivido, o tempo acumulado, o tempo acontecido. Mais que isso, o futuro é o simples retorno do passado ao presente, logo, não existe (PRANDI, 2001).
A autora Ronilda Iyakemi Ribeiro reafirma em seus estudos a inexistência de um futuro entendido como as sociedades ocidentais o compreendem. O passado e o presente tornam-se o tempo vivido e a experenciação factual do mesmo. Enquanto o futuro torna-se acréscimo destes, não algo indefinido, como a concepção ocidental de tempo: Na concepção africana de tempo, as ocorrências do presente constituem sem dúvida, base para o futuro, mas o evento atual é tido como pertencente ao presente, integrando-se ao passado. O tempo atual é constituído, portanto de eventos presentes e passados. A esteira do tempo move-se para trás mais do que para frente (...) Ao ser pessoalmente experenciado, o tempo torna-se real,
24 incluindo tal experiência a percepção de ser a sociedade anterior ao indivíduo e de serem muitas as gerações passadas. (RIBEIRO, 1996, p. 50)
A experenciação do tempo inclui a experenciação anteriormente vivida pelos ancestrais, como exemplifica o final do trecho acima. Isto nos faz recorrer a uma estrofe da invocação mágica dos Songhai, citada por Boubou Hama e Ki-Zerbo em estudo intitulado “Lugar da história na sociedade africana”, de 1983, patrocinado pela UNESCO. Não é da minha boca É da boca de A Que o deu a B Que o deu a C Que o deu a D Que o deu a E Que o deu a F Que o deu a mim Que esteja melhor na minha boca Que na dos ancestrais.
Boubou Hama e J. Ki-Zerbo, no trabalho referido, entendem o tempo africano, não apenas como o tempo cíclico do mito, mas também como um tempo cíclico e dinâmico: “A consciência do tempo passado era muita viva entre os africanos. No entanto, esse tempo que tem um grande peso sobre o presente não anula oi dinamismo deste” (HAMA; KI-ZERBO, 1983: 70). Este dinamismo do tempo faz com que algo se some à palavra dos ancestrais; ou seja, não é apenas repetição, mas soma condensada de sentidos e força vital, por isso, os últimos versos da invocação: “Que esteja melhor na minha boca que na dos ancestrais”. Juana Elbein dos Santos (1986, p. 130), diz sobre Exú: De fato, Exú não só está relacionado com os ancestrais femininos e masculinos e com suas representações coletivas, mas ele também é um elemento constitutivo,
25 na realidade o elemento dinâmico, não só de todos os seres sobrenaturais, como também de tudo o que existe.
Exu é o elemento dinâmico, pois que princípio de movimento no espaço e no tempo. Seu símbolo é o caracol, símbolo de crescimento. O que também nos remete ao livro Avalovara do escritor pernambucano Osman Lins, onde uma espiral é exposta por cima de um conjunto de quadrados imóveis. Estas duas estruturas representam, respectivamente, o movimento e a imobilidade, estruturando o livro e o universo fictício de sua história. No entanto, ao passar pelos quadrados a espiral os impulsiona promovendo o movimento constante do sistema, constante e crescente. Da mesma forma, Exú é o movimento, transportador, mensageiro, sem o qual nada se faz. Na sua simbologia, o caracol, algo se soma ao retorno cíclico do tempo e este “algo” se encontra na “boca” de quem o pronuncia no momento presente. Por isso, Mãe Majé Bassan passa seu “axé através da palavra para Ojuobá; através do mito, acontecimento arquetípico, passado que se repete no presente, acrescido, somado, da força do axé dos ancestrais. Ojuobá, ao invocar Exú na batida policial ou a passar seus conhecimentos de vida para amigos e filhos de santo, torna-se o ponto de convergência de força do seus ancestrais, força acrescida de sua própria força, de sua própria palavra.
26 Parte dois: A atuação das forças no homem: o bem e o mal. A má utilização da palavra; o conceito de “mal” africano; a concepção de Ser de acordo com Roger Bastide; o orixá: depósitos simbólicos; os orixás e os homens: personalidades identificadas; a escrita amadiana e a cisão do mundo crístico; o bem e o mal. Foram analisados na primeira parte do trabalho conceitos de palavra, tempo, pessoa, nome, socialização e força vital que participam da estrutura da obra em estudo. Agora, analisaremos com os africanos entendem o que chamamos de “bem e mal”, partindo da importância da palavra para o africano e afro-brasileiro. A palavra é a maior força do homem, pois que “divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente” (BÂ, 1983, p. 185). Ela é o dom divino presente no homem e faz mover os seres mais rígidos como na metáfora bíblica da “fé que move montanhas”. Maa Ngala, o Ser Supremo, criador de todas as coisas, dá uma parte de si mesmo a sua criação Maa, o homem. Assim diz um trecho do mito da criação ensinado pelo mestre iniciador do Komo, citado por Hampaté Bâ (1983, p. 184): “Então, insuflando seu próprio hálito ígneo, criou o novo ser, o homem, a quem deu uma parte de seu próprio nome e da centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio Maa Ngala”. O homem, investido do poder do criador pode dar continuidade a sua obra. Assim, concede à palavra, a tradição africana, a força maior, força de transformação, seja construindo ou destruindo: “O poder da palavra é terrível. Ela nos une, e a revelação do segredo nos destrói” (In: VANSINA, 1983, p. 157). A palavra, com todo esse poder, é, então, o agente ativo da magia e, ao contrário da conotação negativa que nos vem do mundo europeu, (...) a ação mágica, ou seja, a manipulação das forças, geralmente almejava restaurar o equilíbrio perturbado e restabelecer a harmonia (...) designa unicamente o controle das forças, em si uma coisa neutra que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direção que se
27 lhe dê: como se diz: ‘nem a magia nem o destino são maus em si. A utilização que deles fazemos os torna bons ou maus (BÂ, 1983, p. 186).
Paulina Chiziane, escritora moçambicana contemporaneidade, em seu romance O sétimo juramento, diz:
da
Não há lógica nenhuma naquilo que ouve. Feiticeiro defendendo o sagrado. Diabo defendendo os anjos no lugar de convertê-los. Mal servindo ao bem. Mas faz sentido, de alguma maneira. É o cão bravo que defende a tranqüilidade do lar. São as armas de fogo que desarmam e matam o assaltante, o inimigo. O bem e o mal unem-se na mesma luta para a tranqüilidade da terra. (CHIZIANE, 2000, p. 98)
A passagem do romance da autora revelam não só como funciona a noção do bem e do mal para o africano, mas a distância que existe desta, para a visão dicotômica construída do judaísmo cristão: “a existência de pólos antagônicos que presidem todas as as ações humanas: o bem e o mal; de um lado a virtude, do outro o pecado. Essa concepção é judaico-cristã, não existe na África” (PRANDI, 2002). José Niraldo de Farias, em estudo sobre Mia Couto, corrobora o que diz Prandi: Na cultura africana, o homem não é visto de uma forma dualística em que o bem e o mal se debatem numa luta interminável entre corpo e espírito. O conceito de mal como algo oposto ao bem inexiste na concepção religiosa da maioria dos países africanos (...) Enquanto o homem ocidental se acha dividido pela idéia de duas forças antagônicas atuando em seu destino, para o homem africano corpo e alma não estão em combate, eles encontram-se em perfeita harmonia, formando uma só unidade. (FARIAS, 1994, p. 215)
28 Essas últimas citações confirmam o trecho do livro de Paulina Chiziane e reafirmam a ideia dessas duas forças como complementares; forças atuando em conjunto para a evolução do homem. Mas o africano também tem seu conceito de mal, este, advém da má prática da magia, da palavra, dos ofós (encantamentos mágicos); e são realizados por bruxas e feiticeiros: Do ponto de vista do código moral ioruba, a magia pode ser boa ou má, lícita ou ilícita, bruxaria e feitiçaria são em via de regra, expressões de magia ilícita porque visam a destruição de um indivíduo ou grupo (...) Feiticeiros, bruxas e pessoas inclinadas ao mal incluem-se nos chamados “Aye”, o mundo. Outros agentes de destruição mencionados no corpos de Ifá são os Ajogun, entre eles incluem-se: Morte, Desordem. Perda e Enfermidade. Os Aye, podem servir-se dos ajogun, com o apoio de Exú, para destruírem a vida e a prosperidade humanas ou para causarem infelicidades (RIBEIRO, 1996, p. 179-180).
Perceba-se que essas práticas e entidades (Ajogun, pois que com letras maiúsculas, a exemplo de Morte = Iku, entidade masculina); são pelos feiticeiros, ou seja, o mal para o africano não vem do mundo espiritual, mas utilização de um homem contra outro, desse mundo espiritual. É uma atuação do mundo real, viva, entre seres humanos. Roger Bastide, em Estudos afro-brasileiros, realiza trabalho interessante sobre o ritual de “lavagem de contas” e a aquisição de força, axé, ou existência –como ele denomina- através do que ele chama de “elevação do grau do ser”, para esta, explica a distinção da concepção medieval de ser e a ocidental estabelecida a partir de Kant: Contra a concepção do Ser, Kant estabelece a idéia que, até hoje, permanece como centro da filosofia ocidental: é impossível identificar os julgamentos. O ser existe ou não existe. Entre a existência e o nada, não existem intermediários possíveis, seja de graus ou de transição.
29 Ora a concepção africana aproxima-se antes da medieval, que admitia uma escala de existências de graus do Ser. Existe-se mais ou menos. O status social do candomblé não traz uma simples hierarquia de direito costumeiro, não tem apenas um valor sociológico, não se define unicamente por simples posses de cargos, de poderes estabelecidos e admitidos pelos subordinados, por normas, etc..., mas sim, por um grau mais elevado do Ser. Existe-se mais ou existe-se menos, de acordo com a participação que se tem com o deus. O status marca-se, certamente, pelo poder; mas o poder não é senão a irradiação exterior da existência que possui, ou melhor, da existência que o deus tem dentro da pessoa. (BASTIDE, 1973, p. 371)
O autor finaliza seu raciocínio retornando ao “colar de contas” e sua função de denotadora do grau do Ser. E, daí, advém o que interessa ao nosso estudo: A lavagem de contas faz indivíduo adquirir um aumento de força, isto é, de existência. Este aumento está assinalado pela felicidade ou segurança obtida com o uso do colar devidamente preparado. Pois o que é o mal senão uma diminuição da existência? O mal morde o Ser para lhe arrancar pedaços de vida; o pesadelo deixa opressões; a loucura enegrece o eu ou dele arranca bocados; a doença enfraquece física e moralmente; o insucesso deprime. Tudo isto consiste em enfraquecimento do Ser (id. 372).
Chegando, finalmente, onde queríamos, fica claro que o mal, na concepção negro-africana, não vive em instâncias dicotômicas e totalmente espirituais; não se simplifica a existência de dois pares opostos verticalmente disposto: deus no céu, o diabo na terra. O mal advém da própria inclinação do homem para utilizar os meios ou forças espirituais contra outro homem. É em uma instância humana que o mal reside para o africano. Esse mal, direcionado contra um alguém retira-lhe pedaços da existência, como diz Bastide,
30 impedindo, ou atrasando, o processo que as forças espirituais que trabalham com e no interior do indivíduo, que lhe fazem parte, se desenvolvam. Assim, trabalham os feiticeiros e bruxas com os ajogun e Exú, orixá neutro e não mal, como comumente é visto: (...) simbolizado por um grande falo, uma vez que sua representação está associada à libido como energia motriz dos instintos e da vida, i. e., de toda a conduta ativa e criadora do indivíduo. Essa configuração material, associada ao seu caráter astucioso e turbulento, terminou por confundir Exú com o demônio e sua imagem cristã, de capa preta e tridente, sobretudo a partir da tradução da Bíblia em várias línguas negro-africanas. Era a única entidade negra em que se podia transpor a contraface de Deus, ou seja, a tentação dos pecados da carne em oposição à pureza do espírito cristão. Seus traços míticos se aproximavam da figura do demônio idealizada pela visão do mundo europeu, cartesiana e maniqueísta, isto é, dominada por princípios absolutos e opostos, bem e mal, bonito e feio, tudo ou nada, corpo e alma, que se encontra enfaticamente na expressão popular brasileira ‘é oito ou oitenta” (CASTRO, 2001, p. 85).
Mia Couto define de forma bela a participação múltipla das forças formadoras dos estágios do Ser, de sua existência, no livro de contos Vozes anoitecidas: Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós somos tristes. Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses muitos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências. (COUTO, 1987, p. 85)
Sendo, então, mostrada a visão africana dessas forças complementares a que se chama, no ocidente, de bem e mal, direcionamos o estudo à pergunta: - Como esses valores foram
31 passados e de que forma sobrevivem no meio afro-brasileiro? E, ainda: - Como se apresenta essa visão na obra de Jorge Amado, mais especificamente no livro Tenda dos Milagres? A resposta parece se encontrar nos orixás, nas suas personalidades e mitos conhecidos, cujos significados passam simbolicamente pêra seus filhos. Na revista Simbologia, da Fundação Joaquim Nabuco, Levínia Coutinho Cardoso e Suely Bispo dos Santos, afirmam sobre a herança cultural africana repassada para os indivíduos do candomblé afro-brasileiro: Os deuses africanos (orixás, voduns, inquices), cultuados nos terreiros que se implantaram no Brasil, não são meras entidades religiosas, mas principalmente suporte simbólicos –isto é, condutores de regras, de trocas sociais- para a continuidade de um grupo determinado que permitiu de alguma maneira a perpetuação desses valores africanos entre nós (...) Sendo a religião o elemento central na vida dos africanos, reposta aqui, ela acaba, então, tendo um papel fundamental na perpetuação da tradição africana na diáspora e verificamos, assim, que com a fundação dos terreiros se dá, automaticamente, uma “reterritorialização condensada”, que permite a preservação do patrimônio simbólico, que transpõe para além do continente africano os dispositivos de sua cultura, permitindo assim a continuação de suas formas de organização e de sua visão de mundo. (CARDOSO; SANTOS, 1994, p. 4245)
Outro autor que também entende os símbolos e a religião como ordenadores, transmissores de valores, é o antropólogo Clifford Geetz, que no livro A interpretação das culturas, diz: “Se os símbolos sagrados não formulassem ideias de ordem, por mais oblíquas, inarticuladas ou não sistemáticas que fossem, então não existiria a diferenciação empírica da atividade religiosa ou da experiência religiosa” (GEETZ, 1989, p. 113).
32 Portanto, os deuses, sendo depósitos ou suporte simbólicos, transferem todo um sistema de valores, sistema complexo como se vê neste estudo – para o indivíduo e para a comunidade. O homem assume, então, os estereótipos divinos. Roger Bastide, no livro O candomblé da Bahia, dedica um capítulo a compreender a relação de transferência simbólica dos orixás para os homens e a comunidade. O capítulo se chama “O homem, reflexo dos deuses” e começa assim: Não apenas é a dança extática das filhas de santo que vai refletir o mundo dos mitos, nas suas estruturas psíquicas, o homem todo inteiro simboliza o divino (...) eles mesmos são símbolos vivos dos seus orixás. Suas existências e suas aventuras cotidianas são, em larga medida, o reflexo da vida e das aventuras míticas dos deuses africanos. (BASTIDE, 1978, p. 244)
Continuando o estudo, explica esse reflexo através do que já abordamos do autor em outro estudo seu, dizendo que a participação do home com o orixá, tem a ver com o grau do ser em que ele se encontra, ou seja, quanto mais elevado o grau do ser, mais o orixá e o homem se identificam: O reflexo de que estamos falando não é simples jogo de espelhos, pressupõe realidade mais profunda, participação. O homem só repete os deuses porque participa do caráter deles, porque um pouco do que eles são penetrou-lhe na cabeça (...) os diversos rituais de que falamos, lavagem de contas, “dar de comer a cabeça”, iniciação fazem o ser humano participar de maneira cada vez mais profunda da natureza e da força do orixá, permitindo-lhe alargar cada vez mais o ser (id. 244-245).
Mais adiante, Bastide dá um exemplo vivo da atuação simbólica que os orixás promovem nos indivíduos, ao encontrar na rua uma filha de santo:
33 Lembro-me ainda da alegria com que abraçou uma vendedora ambulante da Bahia, que encontrei oferecendo seus acarajés, quando soube que eu era filho de Xangô e portanto, seu irmão: “Xangô é macho e forte! Nada poderá acontecer ao senhor daqui por diante!” (id. 245)
Pelo exposto, resta então, identificar a relação das personalidades dos orixás com o tema em trabalho: o bem e o mal na visão africana. Os orixás são seres identificados com os humanos, em seu caráter, em sua personalidade. Não são seres perfeitos como entende-se que sejam os anjos e santos do catolicismo. Os orixás erram, sofrem, têm desejos como qualquer humano; amam e matam: “Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam” (PRANDI, 2003, p. 24). Tomemos como exemplo um mito registrado pelo mesmo autor acima citado, Reginaldo Prandi, onde Odé, Oxóssi, mata sua mãe com uma flecha: Oxóssi mata sua mãe com uma flechada Olodumaré chamou Orunmilá E o incubiu de trazer-lhe uma codorna. Orunmilá exolicou-lhe as dificuldades de se caçar codorna E rogou-lhe que lhe desse outra missão. Contrariado, Olodumaré foi reticente na resposta E Orunmilá embrenhou-se em todos os cantos da terra. Passou por muitas dificuldades, andou por povos distantes Muitas vezes foi motivo de deboche e negativas Acerca do que pretendia conseguir. Já desistindo do intento e resignado a receber De Olodumaré o castigo que por certo mereceria, Orunmilá se pôs no caminho de volta. Estava cansado e decepcionado consigo mesmo. Entrou por um atalho e ouviu o som de cânticos. A cada passo, Orunmilá sentia suas forças se renovando.
34 Sentia que algo de novo ocorreria. Chegou ao povoado de onde os tambores Tocavam louvores a Xangô, Iemanjá, Oxum e Obatalá. No meio da roda, bailava um alinda rainha. Era Oxum, que acompanhava com sua dança aquela celebração. Bailando a seu lado estava um jovem corpulento e viril. Era Oxóssi, o grande caçador. Orunmilá apresentou-se e disse da sua vontade De falar com aquele caçador. Todos se curvaram perante sua autoridade E trataram de trazer Oxóssi a sua presença. O velho adivinho dirigiu-se a Oxóssi e disse Que Olodumaré o havia encarregado de conseguir uma codorna. Seria esta, agora, a missão de Oxóssi. Oxossi ficou lisonjeado com a honrosa tarefa E prometeu trazer a caça na manhã seguinte. Assim ficou combinado. Na manhã seguinte, Orunmilá se dirigiu à casa de Oxóssi. Para sua surpresa, o caçador apareceu na porta irado E assustado, dizendo que lhe haviam roubado a caça. Oxossi, desorientado, perguntou a sua mãe sobre a codorna, E ela respondeu com ares de desprezo, Dizendo que não estava interessada naquilo. Orunmilá exigiu que Oxóssi lhe trouxesse outra codorna, Senão não receberia o axé de Olodumaré. Oxóssi caçou outra codorna, guardando-a no embornal. Procurou Orunmilá E ambos dirigiram-se ao palácio de Olodumaré no orun. Entregaram a codorna ao Senhor do Mundo. De soslaio Olodumaré olhou para Oxóssi E, estendendo seu braço direito, fez dele o Rei dos caçadores. Agradecido a Olodumaré e agarrado ao seu arco,
35 Oxóssi disparou uma flecha ao azar e disse que aquela deveria Ser cravada no coração de quem havia roubado a primeira codorna. Oxossi desceu à terra. Ao chegar em casa encontrou a mãe morta Com uma flecha cravada no peito. Desesperado, pôs-se a gritar e por um bom tempo Ficou de joelhos inconformado com seu ato. Negou, dali em diante, o título que recebera de Olodumaré. (id. 116-117)
O que se pode ver, não apenas em Oxóssi, mas também em Orunmilá –orixá da adivinhação- e no próprio Olodumaré, deus, são as características humanas. Orunmilá pedindo a Olodumaré para darlhe outra tarefa tendo em vista as dificuldades; Olodumaré, se contrariando com Orunmilá e sendo rígido em sua ordem. As dificuldades pelas quais Orunmilá passa sendo motivo de “deboche e nagativa”; sua quase desistência, seu cansaço e decepção consigo mesmo. Já Oxóssi tem raiva e se assusta ao ver que lhe roubaram a caça. E depois de estar diante de Olodumaré, ainda quer se vingar de quem o roubou a codorna, lançando uma “flecha ao azar” que mata a sua mãe. No final, a revolta de Oxóssi, negando o título que o próprio Olodumaré lhe concedeu. Outro mito registrado por Prandi, relata a história em que Oxóssi desrespeita as proibições rituais e morre. No entanto, Orunmilá traz Odé de volta à vida e ele, Oxóssi, ganha o cargo de protetor dos caçadores e é transformado em orixá. Odé desrespeita proibição ritual e morre Naquele dia a caça era proibida. Ninguém podia trabalhar. Era dia de ir à casa de Ifá levar as oferendas. Mas Odé queria caçar, Como fazia todo o dia. Odé não se importou com o interdito.
36 Odé não foi consultar o adivinho. Odé tranquilamente foi caçar, Seguiu o caminho da floresta. Oxum, sua esposa, cansada de ver o marido Quebrar os tabus, Abandonou a casa e o esposo. Caminhando pela mata, Odé escutou um canto que dizia: “Eu não sou passarinho para ser morta por ti...”. Era o canto de uma serpente, era Oxumaré. Odé não se importou com o canto E atravessou a cobra com a lança, Partindo-a em vários pedaços. Ode tomou o caminho de sua casa E, no percurso, continuou escutando o mesmo canto: “Eu não sou passarinho para ser morta por ti...”. Ao chegar em casa, Odé foi para a cozinha, Preparou uma iguaria com o fruto de sua caça E comeu a saborosa comida imediatamente. Pela manhã Oxum retornou a casa Para ver como estava o marido. Para seu espanto, encontrou morto o seu Odé. Odé estava morto, o corpo caído no chão. Ao lado de Odé, Oxum viu um rastro de serpente Que se alongava até a entrada da floresta. Desesperada, Oxum foi procurar Orunmilá. E ofereceu sacrifícios. Orunmilá deixou Odé viver de novo. Deu a Odé o cargo de protetor dos caçadores. E Odé foi transformado em Orixá. (id. 114-115)
O fim do mito e a transformação de Oxóssi em orixá, depois de ter desrespeitado os tabus, revela que a divisão dicotômica crística do ocidente entre bem e mal, não dá conta da complexidade em que se reveste a temática. Estes, são apenas dois entre vários exemplos da mitologia africana em que se mostram evidentes as proximidades entre a
37 personalidade dos orixás e a personalidade dos homens: “O próprio comportamento dos deuses africanos está impregnado de profanidade, não há muita diferença entre o comportamento dos deuses e dos humanos, na cosmologia nagô, jêje ou bantu” (CARDOSO; SANTOS, 1996, p. 42). O mal, como já se disse, é um dado do mundo que impossibilita ou retarda a ação das forças, por vezes conflituosas, que trabalham para o crescimento do indivíduo. Nos mitos apresentados não há influências maléficas, atos de feitiçaria ou bruxaria que retirem de um indivíduo/orixá seus “pedaços de existência”. O que há são seres que se põem no mundo através de sua força vital, de seu axé, no sentido que foi visto neste estudo. O comportamento dos deuses é rico em humanidade. Eles desrespeitam autoridades, matam, odeiam, perdem, ganham, destroem, constroem e é desta forma que são adorados pelos seus fiéis. Mesmo matando e desrespeitando tabus Odé é divinizado, transformado em orixá e adorado pelos seus “filhos”. Esse comportamento carregado de profanidade, como já foi dito, passa para os fiéis e está presente nas personagens de Jorge Amado. Nas suas relações, nos espaços que circulam, nas suas atitudes e gostos pessoais. Veja-se, por exemplo, a personagem do major, que já falamos anteriormente. Este, mesmo envolvido em atos de profanação; e adorado por todos que não veem nos seus vícios motivo para depreciação: Vale a pena ouvir um de seus discursos_ah! O infalível discurso do 2 de julho, na Praça da Sé, ante as figuras do Caboclo e da Cabocla, com Labatut, Maria Quitéria, Joana Angélica, monumento de oratória cívica e barroca. A massa, em delírio, quantas vezes não o carregou nos ombros! A voz roufenha de cachaça e do fumo, Própria para os tropos e os chavões a arrancar aplausos, as citações dos grandes homens nacionais e estrangeiros – Cristo, Ruy Barbosa e Clemenceau eram seus preferidos (AMADO, 1969, p. 44).
38 Veja-se ainda a descrição que se faz do major com características depreciativas que, para o “seu povo”, não o depreciam, mas apenas o identificam, como parece acontecer com todas as personagens do povo. Vista excelente, nunca usou óculos. Numa idade em que a maioria está com o pé na cova, nas aposentadorias da espera da morte, mantinha-se rijo e espigado, “conservado em cachaça”, comendo sarapatel à meia noite em São Joaquim, nas Sete Portas, na Rampa do Mercado, derrubando mulheres na cama, “se for dormir sem pitocar não concilio o sono”, o charuto barato na boca de maus dentes, as mãos grandes e nodosas, o colarinho alto, o terno branco_sendo de Oxalá, veste só branco_, por vezes de gola e punhos encardidos (id. 45).
Há uma ligação estreita no conceito de identidade que tratamos no trabalho com esta temática de agora. Como o grupal e o individual são indissociáveis, ou como melhor se pode dizer, o indivíduo é identificado a partir de sua relação com o grupo, pode-se inferir que essas relações se paralelizam com os orixás e seu comportamento onde a divisão entre profano e sagrado é tão sutil quanto a de bem e de mal. Ouso dizer que parece haver na escrita de Jorge Amado uma certa ausência de julgamento para com suas personagens, descrevendo-as apenas e identificando-as no grupo. Encontra-se paralelo disso, na visão que os fiéis fazem dos seus orixás, já discutida nesse estudo. Essa interpretação possível se vê também na epígrafe do livro, expondo ao leitor uma escolha e deixando implícito a desnecessidade da mesma, desfazendo assim os opostos: “Esta imagem é aqui reproduzida em toda a sua pureza ou impureza, se assim o preferis” (id. 5). Essa “ausência de julgamento” parece desfazer a dicotomia básica criada a partir da cisão crística entre bem e mal e refazer o elo do homem com um universo sensitivo que foi deixado para trás a favor da razão. O mundo do julgo, imposto pela noção de pecado, é substituído pelo mundo do tabu, em um retorno às origens anímicas.
39 Como explicita Prandi (2002): “No catolicismo o sacrifício foi substituído pela oração e o tabu, pelo pecado, regrado por um código de ética universalizado que opera o tempo todo com as noções de bem e de mal como dois campos em luta”. Tomo como exemplo, agora, duas breves passagens em que a dicotomia bem/mal parece ser desfeita. A primeira passagem é uma rápida descrição de Lídio Corró, riscador de milagres da Tenda dos milagres, que dá nome ao livro; e a segunda, o encontro de Arcanjo com a filha de Rosa de Oxalá, amor do Ojuobá. O professor Azevedo, em seu depoimento, dera conta do imenso sacrifício feito pelo bedel, de ordenado parco e cachaça longa, para imprimir seus livros. Seu amigo e compadre, Lídio Corró, riscador de milagres, flautista e festeiro, montara diminuta tipografia na Ladeira do tabuão (AMADO, 1969, p. 40). - Adeus, minha filha. Foi mesmo que ver Rosa, novamente. Num ímpeto, impelida na sabe porque estranha força ou sentimento, a moça tomou da mão escura e pobre e a beijou. Depois, saiu correndo para o álacre grupo de colegas, a cantar desceram a rua em sombras. Devagar o velho atravessou o Terreiro de Jesus no rumo do Maciel da Gima, era hora da janta no castelo de Ester. Poderia alguém, por mais poderoso senhor de exércitos, terminar com o povo todo na morte e na escravatura, terminar com Rosa e sua neta, com perfeição? - A benção, meu pai_pede a rapariga, menina quase, em busca do primeiro freguês daquela noite (id. 230).
Além desses e dos exemplos citados do major, podemos ver outros que envolvem Arcanjo e que se tornam os mais fecundos do livro. Primeiro um que envolve um momento solene –a morte de Arcanjo- misturado com sexualidade. Note-se, neste trecho, a
40 indignação do major sobre “proibição” e a resposta de Arcanjo lembrada por ele. Ester sentou-se ao lado do santeiro, tomou da cabeça de Arcanjo. Com a ponta do quimono limpou-lhe o sangue entre os lábios. O major dirigiu-lhe a palavra, desviando os olhos para não ver seus seios soltos, não sendo a hora apropriada_será que para isso há hora proibida, Arcanjo? Você dizia que não, “qualquer hora é boa pra distrair o corpo” (id. 26).
O segundo exemplo que destacamos, mostra o Arcanjo das várias mulheres e cachaceiro: “Oito anos mais moço, Pedro Arcanjo não se queixa da saúde. Rijo e bem posto, amigo de comer e de beber sempre de rapariga nova a mais uma” (id. 214). O próximo, Arcanjo acompanhado pelos “bêbados, notívagos e putas”: Mestre Arcanjo ia contente da vida, contente da morte: aquela viagem de defunto em carroça aberta, puxada por burro de guizos no pescoço, com acompanhamentos de bêbados, notívagos e putas e amigos, na frente do cortejo o guarda Everaldo trinando seu apito atrás do soldado batendo continência, ah! Essa curta viagem parecia invenção sua, pagoderia para registro na caderneta, para relato na mesa do amalá, na quarta feira de Xangô (id. 28).
Os dois próximos exemplos mostram Arcanjo em ambientes sagrados e profanos indistintamente. Note-se a narração feita por Jorge Amado e a ausência de julgamento de que estamos falando: Uma vez por semana, às quartas-feiras, invariável, com sol ou chuva, Arcanjo vinha buscá-lo em sua tenda de imagens, primeiro para as cervejotas geladíssimas no bar de Osmário, depois para o amalá no candomblé da Casa Branca (id. 24).
41 Quem dera ver a neta de Rosa outra vez, o riso, a graça, o requebro da avó_e os olhos azuis de quem seriam? Ver também alguns amigos, ir ao terreiro e saudar o santo, um passo de dança, uma cantiga, comer xinxim de galinha, moqueca de peixe na mesa do castelo de Ester e as raparigas. Não, não queria morrer (id. 22).
Para finalizar, a descrição do próprio Arcanjo no final do livro: Pedro Arcanjo, Ojuobá, não é um só, é vário, numeroso, múltiplo, velho, quarentão, rapazola, andarilho, dançador, boa prosa, bom no trago, rebelde, sedicioso, grevista, arruaceiro, tocador de violão e cavaquinho, namorado, terno amante, pai-dégua, escritor, sábio, um feiticeiro. Todos pobres, pardos e paisanos (id. 238).
Ainda Prandi (2002), diz: A relação dos seres humanos e os deuses, como ocorre em outras religiões politeístas, eram orientadas pelos preceitos sacrificiais e pelo tabu, e cada orixá tinha suas normas prescritivas e restritivas próprias aplicáveis aos seus devotos particulares, como ainda se observa no candomblé, não havendo um código de comportamento aplicável a toda sociedade indistintamente, como no cristianismo, uma lei única que é a chave para o estabelecimento universal de um sistema que tudo classifica como sendo do bem e do mal, em categorias mutuamente exclusivas.
O bem e o mal não se excluem, mas são forças que trabalham para o crescimento do homem. O mal para o africano é aquilo que impede o trabalho dessas forças, um fator externo causado por um ser humano a outro, retirando-lhe, como vimos, “pedaços de sua existência”. Os tabus, substitutos do pecado cristão, são regras de alinhamento na natureza do indivíduo com o orixá. A quebra de um
42 tabu, não significa, necessariamente, algo que lhe afasta do divino, mas que, apenas, o desalinha com as forças que deviam estar em equilíbrio: “(...) a ação mágica, ou seja, a manipulação das forças, geralmente, almejava, restaurar o equilíbrio perturbado e restabelecer a harmonia (BÂ, 1983, p. 186). A multiplicidade das forças que habitam o interior do indivíduo podem condensar-se na palavra “natureza”, onde cada um tem a sua, diferentemente. Não há, esta, boa ou má, apenas há. Por isso a impossibilidade de se aplicar códigos de comportamento e valores únicos para toda a sociedade, como diz Prandi. Por isso, retomando a discussão, a ausência de julgamento na escrita de Jorge Amado, parece desfazer a cisão crística de que já falamos, refazendo o elo com o mundo dos sentidos.
43 Parte três: Aproximações da obra de Jorge Amado com o mito e a literatura oral: o universo sensível. A crítica à obra de Jorge Amado; a construção do imaginário e a função mítica da obra; proximidades com a literatura oral; relação com a escrita de Mia Couto e com o projeto de Adonias Filho; a “literatura menor” e seu valor coletivo; o trato do autor com sua escrita: trabalho de transmissor; a aquisição/transmissão de conhecimentos; o envolvimento de Jorge Amado com o candomblé; a obra: voz do mundo dos sentidos. No seu estudo “A Bahia no fundamental” sobre os guias de baianidade, estudo sobre a idéia estereotípica de Bahia, o autor Osmundo Araújo Pinho (1998), diz sobre Jorge Amado: Obviamente entendido como função-autor, realiza uma obra que porta todas as contradições e incoerências do inconsciente político que as informa. Sendo, assim, efetivamente carrega uma séria de preconceitos e estereótipos, construindo um tipo de discurso que prima pelo exotismo e superficialidade no tratamento das personagens.
A afirmação do mestre de filosofia contém críticas negativas que se coadunam com a crítica literária acerca da obra do autor. Walnice Nogueira Galvão, expõe em seu estudo crítico Amado: respeitoso, respeitável, suas opiniões sobre a “obra-mercado” do escritor: Se o escritor é comandado pelo gosto do mercado, sua obra não pode ir contra o gosto do mercado, nem como forma, nem como idéias. Não pode ser nova, já nasce velha (...) a ficção ao gosto do mercado tem que patinar no velho discurso realista tão característico dos “Bestsellers”, onde a narrativa flui sem anzóis que enredam a atenção do leitor no próprio discurso, ou na matéria narrada que não pode ser perigosa. Que não
44 problematizem nem os temas, nem a escritura, ao contrário do que faz a melhor literatura em toda a parte. Dicção fluente e enredo com armadilhas de suspense, essa é a fórmula do sucesso. (GALVÃO, 1976, p. 13-14)
De maneira mais imparcial a autora Ivia Alves, da Universidade Federal da Bahia, analisa a crítica a Jorge Amado relacionada aos anos 60/70: São apontadas a falha, o descuido e o desleixo, e acrescentam-se as repetições que chegam à saturação para as inovações e recursos de linguagem que aparecem a partir de “Gabriela, cravo e canela”. Também se pode acrescentar em certo preconceito quando o julgamento da produção desliza do território do estético para imergir no imaginário sobre a Bahia. (ALVES, 2001, p. 200)
Essas três declarações contem, concisamente, a avaliação negativa da obra de Jorge Amado: falta de trabalho estético e conteudístico; construção de um imaginário preconceituoso e estereotípico. Ivia Alves continua seu trabalho revelando sobre que valores era criticada a literatura nas décadas do seu estudo: (...) o valor, o julgamento positivo estabelece-se pelo refinamento dos materiais – linguagem, a reflexão sobre a mesma, a metalinguagem, a paródia. O fazer literário e sua representação tomam como vetor a maior ou menor aproximação com o tripé europeu Joyce-Proust-Kafka. O paradigma do literário, tomado como universal para a produção do ocidente, deixa de lado o quadro de referências que pudesse identificar a literatura com seu momento histórico-cultural. (id. 199)
Dissemos, na introdução deste trabalho, que sua motivação era estudar o candomblé como participante estrutural da ficção, não como constituinte folclórico da mesma. Usamos este trabalho para discutir a existência de fundamentos e valores do candomblé na formação da obra, em contrapartida aos valores e fundamentos
45 ocidentais presentes na mesma. A exemplo da afirmação acima citada, afastando-se de “tripés” ocidentais que acreditamos, serem de presença menos significativa que os fundamentos e valores do mundo africano e afro-brasileiro. Esta terceira parte aparece como complemento a esse pensamento, como também se expõe como proposta de estudos mais aprofundados sobre o tema em questão. Portanto, a partir de agora, iniciamos as aproximações do universo amadiano com a literatura oral primitiva e mítica, do africano e afrobrasileiro e o universo dos sentidos. Quando Jorge Amado se volta à construção de um imaginário baiano, predomina em sua obra a estereotipia, a linguagem aproximada às formas populares e à construção de um padrão de comportamento para o universo afro-brasileiro baiano. A exemplo de Adonias Filho, citado por Vera Lúcia R. de Araújo (2000, p. 162), “Seu projeto de autoria é de um sujeito étnico que se desobriga de representar grandes dramas pessoais para ser entendida com uma coletividade. Mircea Eliade (1973, p. 130), diz: “A principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significantes”. Ora, não são as personagens – heróis e heroínas – modelos de comportamento para uma coletividade, como vimos a exemplo do Ojuobá? Não são eles perpetuadores de um imaginário construído pelo autor e aceito pela sociedade afro-brasileira do candomblé baiano, pois que correspondente aos seus valores? Não é todo colorido, toda paisagem descrita, padrão estético para uma coletividade, o “povo de santo”? Não são as personagens míticas heróis idealizados? Diz Vansina (1983, p. 168): “A tradição sempre idealiza. Ela cria estereótipos populares. Toda história tende a ser paradigmática e, consequentemente, mítica seja o seu conteúdo “verdadeiro” ou não! Assim, encontramos modelos de comportamento ideais e valores”. A literatura de Jorge Amado, assim, tornando-se padrão para uma coletividade, conforma-se a uma determinada forma que também – ou principalmente – vem dos fundamentos e valores afrobrasileiros do candomblé baiano: “Y La forma, La naturaleza de sua conformación, depende de um consenso, distinto em cada uma de lãs sociedades em que se desarrola” (JAHN, 1971: 102). E acrescenta
46 Vansina (1983, p. 163): “Toda instituição social, e também todo grupo social, tem uma tradição que o explica e o justifica”. Daí, advém a proximidade com a oralidade, com a literatura escrita atualmente. José Niraldo de farias examina o entrecruzamento do pensamento mítico com o pensamento literário na obra Vozes anoitecidas de Mia Couto, autor africano, e diz sobre sua linguagem: Em Couto há uma preferência pelo discurso mais simples, frouxo, acessível, quase como que veículo transparente, cujo objetivo é fazer saltar aos olhos do leitor toda pujança da substância mítica que permeia os contos. Nesse sentido, há uma tentativa de se aproximar da aparente simplicidade das narrativas orais. A oralidade é um componente que está valorizado na estrutura dos contos na medida em que o autor dá uma grande importância ao diálogo, às vozes das personagens. Em alguns momentos temos a impressão de que toda a história nos vai ser contada pelo fluxo dialógico e pela ação, quase que sem interferência do narrador. (FARIAS, 1994, p. 209)
Outra observação interessante do artigo de Farias é a leitura que faz através de Giles Deleuze e seu conceito de “literatura menor”, onde o discurso literário é valorizado a partir de seu grau de desterritorialização, ou seja, o discurso que se faz dentro de um meio que lhe nega. Entramos numa questão política, onde a literatura é usada como instrumento de resistência e afirmação cultural. O nosso livro de estudo Tenda dos milagres é exemplo disto. Como já foi explícito na divisão proposta por Elizabeth Ruchti, da Universidade de Génova, entre o ‘mundo dos brancos/mundo dos negros”; Nilo Argolo, de um alado; Pedro Arcanjo, de outro. Assim, se configurando através da resistência e afirmação, a cultura afrobrasileira. Portanto, é característica da “literatura menor”, neste sentido: (...) que tudo nela toma um valor coletivo. Talvez seja por esse motivo que esta não é uma literatura de grandes
47 mestres, no sentido tradicional do termo. A ausência de mestres é, neste sentido, benéfica, uma vez que o que cada autor anuncia passa a ser de domínio coletivo. (FARIAS, 1994, p. 210)
Face ao explicitado, fica reiterada não só a função mítica da literatura de Jorge Amado como mantenedora de um modelo que se dirige a uma coletividade, mas também a necessidade de que assim, ela o seja para ser instrumento de manutenção dos valores do universo que representa. Retomamos, agora, a discussão sobre o trato do autor com sua escrita. Parece haver em Jorge Amado um trabalho de transmissor – a exemplo dos griots africanos – (animadores públicos que percorrem o país ou que são ligados a uma determinada família, são guardiões de grande parte da história oral africana, seus contadores de história), e não de criador, como entendemos a palavra no ocidente; criador do novo, da forma ainda não usada. Ao contrário, a forma, e isto por necessidade de tornar-se padrão para uma coletividade, deve se repetir, deve ser fácil e acessível e falar sempre as mesmas coisas, numa atitude constante de reafirmação de valores: “À maneira dos primitivos, o Sr. Jorge Amado é concreto. Seus personagens se apoiam sempre no dado externo e fazem um só coro com as coisas” (Candido apud GOLDSTEIN, 2003, p. 242). Parece, ainda, haver entre Jorge Amado e os africanos uma semelhança na maneira como se processa a aquisição de conhecimentos e sua transmissão. Diz o autor (Amado apud GOLDSTEIN, 2003, p. 220): “Eu nunca tomo notas. Como escrevo sobre aquilo que vivi, aquilo que conheço, uso muito minha memória”. Da mesma forma “a memória africana registra toda a cena. O cenário, os personagens, suas palavras, até mesmo os mínimos detalhes das roupas (...) todos esses detalhes animam a narrativa, contribuindo para dar vida à cena” (BÂ, 1983, p. 215). Completando a proposição, sabe-se que o envolvimento de Jorge Amado com o candomblé não foi de mero estudioso, mas de participante. Jorge Amado frequentou os terreiros de candomblé desde os quatorze anos de idade; casou no candomblé, foi ogã no
48 terreiro do pai de santo Procópio; foi Obá no terreiro de São Gonçalo, o Ilê Opô Afonjá; entre outros títulos que recebeu. Diz o autor sobre sua vivência entre o povo de santo: Pálida seria a descrição de uma festa de candomblé se o conhecimento do artista fosse só de observação, mesmo que de larga e aguda observação, se não houvesse entre o criador e a criação um anel de sangue, aliança de noivado e casamento, esse bater de coração em uníssono (...) se posso falar de tudo isso sem mentir, nem degradar, é porque tudo isso é parte da minha vida, de meu ser, de minha própria verdade (Amado apud SANTOS, 1993, p. 86).
Essa forma de aquisição/transmissão de conhecimento em que a vivência é elemento primordial, se afasta da forma ocidental que se assegura no escrito: O conhecimento e a tradição não são armazenados, congelados nas escritas e nos arquivos, mas revividos e realimentados permanentemente. Os arquivos são vivos, são cadeias cujos elos são os indivíduos mais sábios de cada geração (SANTOS, 2001, p. 51).
Portanto, é possível dizer que a apreensão do autor do universo de que participou se processa de forma também sensitiva, arriscando dizer mais este que científica e racional, dando-nos a liberdade para citar Hampaté Bâ (1983, p. 216) mais uma vez: “O cartesianismo é um modo particular de pensar o mundo, o animismo é um modo particular de vivê-lo e experimentá-lo na totalidade do ser”. Desta forma, aproximando-se tais meios de aquisição de conhecimentos, pode-se ter uma outra visão do universo sensitivo que percorre a obra de Jorge Amado: “A escrita de Jorge Amado é como um aponte entre a antropologia e a literatura via elementos sensíveis. Consegue captar algo profundo do modo particular baiano de
49 apreensão estética e sensível do mundo” (GOLDSTEIN, 2003, p. 243). O colorido, o pitoresco, o trato com a sexualidade, a descrição constante de lugares, de comidas que suscitam gostos, cheiros; a estereotipia constante, enfim, todo esse universo sensitivo também se torna revelador do universo afro-brasileiro, ou do mundo anímico: Estamos acostumados, no ocidente, a pensar percepção com algo físico, muito mais que cultural, como se os cinco sentidos simplesmente coletassem informações sobre o mundo. Desconsidera-se que a percepção sensorial é ordenada pela cultura e expressa valores culturais (...) os odores, as cores, os sabores são simbolicamente empregados por muitas culturas como marcas de identificação das várias categorias de seres. Os sentidos – valorizados, reprimidos, hierarquizados – dizem muito sobre a maneira de apreender o mundo de uma sociedade e de uma época (...) destacam-se os sentidos como suportes para construções simbólicas, capazes de demarcar fronteiras e categorias e reforçar identidades (id. 242).
Enfim, mais um elemento une-se a este estudo para traçar as aproximações a que nos propomos realizar. Mais este elemento: os sentidos, reafirmam a relação que o autor-função tem com os mitos: “Jorge Amado aproxima-se da construção mítica ao compor com elementos sensíveis e concretos, que se recombinam ao longo dos romances” (id. 243). Tentemos, então, realizar uma breve união para finalizar nosso trabalho. Dissemos anteriormente que a ausência de julgo do autor para com seus personagens tinham ligação com a inexistência de divisão dicotômica entre bem e mal do mundo ocidental e que essa ausência de julgo colabora para desfazer essa cisão. A pergunta é: seria esta característica a única que colabora para desfazer esta cisão? Considerando os elementos que foram estudados nesta terceira parte, não poderíamos dizer que a obra do autor (o livro do nosso estudo,
50 podendo ser estendida à segunda fase de sua obra) com suas proximidades coma literatura oral e mítica africana e afro-brasileira colabora para desfazer esta cisão? Não parece ser a obra de Jorge Amado uma voz do mundo dos sentidos perturbada pelo mundo da razão? Retomo palavras usadas pelo autor e já citadas neste trabalho: “Esta imagem é aqui reproduzida em toda a sua pureza ou impureza, se assim o preferis” (AMADO, 1969, p. 5). A imagem adquirida e reproduzida, transmitida em toda sua pureza ou impureza, ou para usarmos uma palavra que tente desfazer esta dicotomia: em toda a sua “natureza”.
51 Considerações finais Para concluir este trabalho, resta-nos realizar uma breve reiteração dos fatos apresentados. Vimos a força vital em duas faces que se completam e revelam sentidos na expressão “Axé”: cosmovisão e, no seu uso mais comum, a vitalidade. Vitalidade que se externaliza trazendo à tona uma forma de se pôr no mundo. A noção de pessoa vinculada estritamente à importância do nome e sua identidade. Esta, formada a partir do contato com o grupo e neste contato definida. O indivíduo adquire existência ao compartilhar sua identidade com a coletividade. Daí, a partir deste contato, entende-se a noção de pessoa que ganha não só individualidade, mas identificação pelo seu nome, que o introduz na sociedade, a exemplo do batismo e da cerimônia do orunkó; e que, ainda, lhe dá significação dentro da sociedade a qual representa e da qual participa. A exemplo: o Ojuobá. A fala, agente do divino, externalizadora das forças, do axé. Meio de socialização e elo da cadeia de transmissão dos conhecimentos, onde os seres mais representativos são os mais velhos a exemplo do episódio em que Mãe Majé Bassan relata um mito a Ojuobá. O tempo cíclico, histórico, dinâmico; tempo de retorno, mas retorno acrescentado, crescido, a exemplo de Exú, de sua simbologia: o caracol e a espiral de Osman Lins Avalovara. A palavra que carrega a condensa forças ancestrais, fazendo convergirem tais forças e transmiti-las somadas, a exemplo, o Ojuobá, quando o passado mítico retorna ao presente e Ogun ergue suas cobras em defesa de seu reino. Na segunda parte, estudamos a atuação das forças dualisticamente conhecidas como bem e mal. Passamos pela má utilização da palavra, da magia; por estudos de Roger Bastide à literatura de Paulina Chiziane e Mia Couto, entendendo o mal e o bem como forças complementares e não em oposição. Daí, pudemos encontrar em Jorge Amado uma possível ausência de caráter judicativo que o aproxima de um universo sensitivo e anímico e o afasta de outro dicotômico e dualista.
52 Na terceira parte, tratada como propostas de futuros estudos, trabalhamos as proximidades da obra do autor com o mito e a literatura oral e, mais uma vez, deixando transparecer o universo sensitivo da obra de Jorge Amado. Tratou-se das avaliações negativas e sua obra vista sobre outro prisma. Trabalhamos imaginário, estereótipo, realizando paralelos com outras literaturas distanciadas dos valores ocidentais, como Mia Couto e Adonias Filho, mesmo sendo autor brasileiro, além de encontrarmos justificativa para a forma e escrita de sua obra. Todos os fatores discutidos, trazem à tona um universo pouco estudado da literatura de Jorge Amado, no meio literário e que, na medida deste, participam na formação estrutural de sua obra, como dissemos anteriormente. Pouco mais pode-se acrescentar à finalização deste trabalho. Tudo o que foi exposto veio de inquietações, e toda inquietude deve ser posta em ordem, como este trabalho, como qualquer obra, como um poema. Esta inquietude aquém, pois que fundamental, toma passos firmes, tateando com calma e respeito o desconhecido. O reino foi fundado. Este trabalho – e a obra do Obá Arolu – é uma das várias ramificações da árvore África. Quando uma árvore sagrada cai, nada se faz, pois dizem que seus galhos semearão a terra para o crescimento de novas árvores. Assim, diferente, mutável, nova, a África se dissemina, renova e renasce em cada morte-queda de suas árvores. Mas em suas mortes-renascimentos o processo é o mesmo. A terra, mãe, ventre sagrado, gesta o segredo e o guarda. O novo, em um diálogo de muitos, daí advém e para aí, retornará. Essa ordem imemorial funda o homem. Força vital, palavra, nome, tempo, axé, bem e mal: conceitos, delimitadores de espaços e sentidos que vivem plenos, em segredo, no ventre terra, na pedra terra fundante.
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