Francesco Felippe Micieli
RUÍDO: PROJETO DE UMA NARRATIVA GRÁFICA SEQUENCIAL LIVRO 2
Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo
Orientação: Clice de Toledo Sanjar Mazzilli Fabio Mariz Gonçalves
São Paulo, 2015
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Para meus pais.
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Agradecimentos a Clice Mazzilli pela orientação sempre atenciosa e pelo estímulo à realização deste trabalho. ao Fabio Mariz que me apoiou, acreditou em minhas capacidades e sem o qual eu não teria tido a coragem de levar adiante este tema. aos meus grandes amigos Fabio, Lidia, Didi e Letícia sem os quais eu não teria sido capaz de concluir este trabalho graças ao constante apoio, ajuda e paciência; a todos os outros que estiveram do meu lado oferecendo suporte e interesse por mim e pelo meu trabalho; aqueles que fazem ou fizeram parte desse processo e de minha vida de formas significativas. a minha família, por toda compreensão e carinho; a minha mãe, principalmente, pela minha educação e paciência.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO Breve explanação sobre o trabalho e a escolha do meio e do tema 6 Arquitetura e Narrativa Gráfica 10
ASTERIOS POLYP Arquiteto e arquitetura na narrativa gráfica - Asterios Polyp
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NARRATIVA GRÁFICA Ruído: concepção, método e processo de desenvolvimento: 30 DEPOIMENTO #1: 33 DEPOIMENTO #2: 36 DEPOIMENTO #3: 39
COMPONENTES DA NARRATIVA Criação de um mundo - a ambientação 50 Criação dos Personagens 52 Protagonista 53 Colega formada 58 Professor 60
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-Projeções ou fantasmas
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ROTEIRO "Ruído" 68 Parte 1 - Abertura 68 Parte2 - Revisitada 69 Parte3 - Morcego 71 Parte 4 - Exterior 72 Sobre o título 73
BIBLIOGRAFIA Livros 78 Artigos e vídeos online 78
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INTRODUÇÃO
Breve explanação sobre o trabalho e a escolha do meio e do tema Este trabalho de graduação consiste na concepção e desenvolvimento de uma narrativa gráfica (ou história em quadrinhos) que relata, através de texto e ilustrações o processo de formação de um aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, com caráter primordialmente subjetivo, intermediado pela relação entre o aluno e o espaço do edifício Vilanova Artigas e seus demais ocupantes: outros alunos, professores, sombras, animais. A pesquisa realizada ao longo do desenvolvimento deste trabalho trouxe à tona a problemática da inserção da arte sequencial das histórias em quadrinhos no cenário artístico e intelectual, e na sua relativamente recente e gradual transformação, de sub-literatura e sub-produto das artes visuais, em arte per se com valor e características próprios.1 O próprio termo graphic novel é cunhado para diferenciar uma nova modalidade das histórias em quadrinhos daquelas destinadas ao público infantil e dominadas por temas escapistas; os temas das graphic novels - ou narrativas gráficas - frequentemente abordam assuntos mais complexos e de interesse coletivo, alcançando leitores adultos e informados e apresentando ilustrações amadurecidas e cheias de intenção. É o caso de narrativas gráficas como Maus, de Art Siegelman, Persépolis, de Marjane Satrapi, Retalhos, de Craig Thompson e Asterios Polyp, de David
1 GARCÍA, Santiago, na introdução de "A Novela Gráfica".
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Mazzucchelli - que serviu de forte inspiração para este trabalho - apenas para citar alguns. Tendo sido, desde a infância, leitor assíduo de quadrinhos, tomei gosto pela ilustração a partir destas leituras. A decisão de cursar a graduação em arquitetura partiu principalmente do reconhecimento da minha aptidão para o desenho; porém, tanto o desenvolvimento da arte sequencial a partir de um roteiro quanto do projeto de arquitetura a partir de um programa de necessidades requerem muitas outras aptidões e podem ser fruto das mais variadas soluções e abordagens. Esta pluralidade, comum ao projeto arquitetônico e
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página ao lado, fachada da FAU USP. Foto:Fernando Stankuns, 2010
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à arte sequencial, incita a investigação e o conhecimento de diversas questões - sejam históricas, estéticas, filosóficas - conforme pude observar e aprender ao longo dos anos que passei na universidade. Acredito que o desenho seja o alicerce da transmissão de conceitos e intenções que ambos compartilham, mas é disposição destes desenhos, seus pontos de vista, sua combinação com o texto e a aproximação com o gosto "popular", neste dinamismo, que a narrativa gráfica pôde ser fonte de uma reinvenção na representação da arquitetura. Escolhi, assim, elaborar uma narrativa gráfica desde a concepção da história, roteiro e personagens até a montagem dos quadros e diálogos em formato para leitura, tendo o edifício da FAU como pano de fundo e um processo subjetivo e emotivo da formação em arquitetura como tema central. O objetivo não é simplesmente a representação arquitetônica, ao menos não com protagonismo, mas a arquitetura do edifício da FAU está em toda a parte, permeando ou impregnando a história a partir da percepção de um aluno e é trazida ao universo da novela gráfica para servir tanto de agente como de pano de fundo para uma narrativa que não poderia jamais se desenrolar em outro lugar. Ao longo deste texto, pretendo analisar brevemente o significado da narrativa gráfica para a arte sequencial e e algumas correspondências entre este meio e a arquitetura, passando pela investigação de referências para, finalmente, expor o processo que levou ao desenvolvimento da narrativa gráfica que é o objeto final deste trabalho.
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Na página ao lado, um zeppelin activando a vida de uma pequena vila, em Instant City, 1968 © Peter Cook. via “Comics and Architecture” por Koldo Lus Arana in
Mas Context
Arquitetura e Narrativa Gráfica "New representation modes have rapidly been absorbed within the mechanics of a discipline where, since the last decades of the last century, there’s been a growing tendency to understand projects as (inter) active processes rather than as objects. (...) along with the drift towards virtual scenarios and animation, today’s architecture, still primarily represented as lines and colors on printed paper, shows a renewed interest in, and a particular affinity toward the techniques, strategies and aesthetics of graphic narrative." (ARANA, Luis Miguel 'Koldo' Lus)
Pode-se afirmar que a arquitetura e a narrativa gráfica se interrelacionam desde meados do século passado, podendo ser encontrados exemplos disto na obra de Le Corbusier do início da década de 1920. Segundo Koldo L. Arana, porém, o renovado e contínuo fascínio dos arquitetos pela estética das narrativas gráficas, observado nas publicações do meio envolvendo este tema nos últimos 30 anos, pode ser atribuído ao que o autor chama de "contexto geral de redescoberta dos quadrinhos pelo cinema e demais mídias, paralelamente à crescente apropriação dos produtos da cultura visual de massas pela arquitetura, uma disciplina sempre faminta de novas imagens e conceitos"2. 2 Tradução livre do trecho "in the context of a general rediscovery of comics in cinema and other media, paralleled by the increasing appropriation of the products
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Embaixo, uma página da Graphic Novel “Yes Is More”, de BIG. Fonte: http:// www.editorialpencil. es, acesso em janeiro, 2015.
De fato temos visto cada vez mais adaptações de quadrinhos para as telas de cinema, desde clássicos superheróis até fantasias históricas ou urbanas, sempre com carregada influência na estética visual de cada of (mass) visual culture by architecture, a discipline always hungry for new images and concepts.", do artigo Comics and Architecture, Comics in Architecture: a [not so] short recount of the interactions between architecture and graphic narrative.
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produção. Na arquitetura, o uso da estética e da dinâmica dos quadrinhos encontra um exemplo recente interessante na publicação Yes is More, uma espécie de manifesto arquitetônico produzido pelo grupo BIG, do arquiteto dinamarquês Bjarke Ingels. A ideia surgiu, segundo Ingels, do que ele identificou como uma necessidade de contar a história por trás dos projetos do BIG, para que as pessoas pudessem ter contato com o processo, mais do que somente com o produto final de cada empreitada arquitetônica grande parte das intenções arquitetônicas se mostram mais claramente durante o processo do que o resultado plástico em si. Ingels percebeu que os quadrinhos eram a linguagem ideal para combinar imagens, desenhos e texto de forma sedutora e familiar, a fim de atingir um público maior, possivelmente leigo no campo da arquitetura e do urbanismo. A linguagem escolhida não impede a apresentação alguns conceitos bastante complexos em Yes is More; misturando Darwin e Nietzsche, BIG fala, por exemplo, de "sustentabilidade hedonista" e de "pragmatismo utópico" e, embora não seja propício tentar explicar neste trabalho o que esses conceitos significam, acredito que seja evidente que a sua compreensão exige o domínio de um repertório teórico significativamente abrangente. O próprio título do quadrinho-manifesto é uma combinação (ou, como Ingels prefere chamar, uma evolução) da expressão propagada por Mies Van der Rohe "Less is more", e suas derivações - "Less is Bore" de Robert Venturi - com a frase recentemente utilizada na campanha presidencial dos Estados Unidos que elegeu o presidente Barack Obama, a otimista "Yes we can". Eventualmente, estas referências
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podem escapar ao leigo minimamente interessado, e da mesma forma que um edifício por si só talvez não consiga revelar para o usuário todo o pensamento por trás de sua arquitetura, algumas narrativas gráficas apresentam muito mais do que simples desenhos acompanhando balões; não identifico isto necessariamente como uma falha, mas sou levado a acreditar que a fruição de uma obra ocorre em sua plenitude, tanto no caso da arquitetura quanto da narrativa gráfica, quando se dispõe do conhecimento e dos meios necessários para decodificar os signos, as intensões e os conceitos por ela apresentados. Para exemplificar, gostaria de partir para uma breve análise da obra Asterios Polyp, de David Mazzucchelli, que serviu de importante referência e inspiração para este trabalho, não só pela grande qualidade gráfica como também por ter como personagem central ninguém menos do que um arquiteto - e para tanto contém referências para este "público alvo"3, arquitetos e designers, em particular.
Na página ao lado, trecho da obra “Yes is More” de BIG. Fonte:www. designboom. com, acesso em janeiro/2015.
3 Coloco a expressão ente aspas por não acreditar que tenha sido intenção do autor direcionar a sua obra apenas para pessoas com este ou aquele tipo de formação. Conforme comentei durante o trabalho, há diversos outros elementos, além das sutilezas arquitetônicas e de design, que podem ser admirados nesta obra; ainda assim, a percepção destas sutilezas de texto e imagem leva a uma empatia maior.
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ASTERIOS POLYP
Na página ao lado, trecho da obra “Aterios Polyp”. Momento da narrativa que se passa no presente.
Arquiteto e arquitetura na narrativa gráfica "(...) se quisermos entender o caminho que os quadrinhos seguiram desde suas origens, não nos basta considerá-los uma linguagem formada por desenhos, palavras e requadros sobre papel impresso, (...) temos que entender os quadrinhos como meio integrado pela forma artística (...) mais do que nunca, é necessário ler nas entrelinhas, ou talvez devêssemos dizer 'entre quadros'." Santiago García
O enredo de Asterios Polyp, de David Mazzucchelli, é sobre um arquiteto, autor e professor que, tendo perdido todas as suas posses aos 50 anos, sai em uma jornada cheia de retrospectivas e sonhos para reencontrar sua ex-mulher. Embora o enredo seja de fácil compreensão e muitos leitores possam se identificar com as situações vividas pelos personagens, Mazzucchelli utiliza-se de recursos gráficos variadamente elaborados para contar a história além das palavras, além de inserir referências, tanto no texto quanto nas ilustrações, que necessitam de familiaridade com o tema da arquitetura, do design, da mitologia e da filosofia. Parto para uma breve análise dos recursos técnicos e gráficos desta obra, para em seguida observar as referências visuais e teóricas que me causaram profunda empatia com o personagem e a temática. O recurso gráfico cuja apreensão é mais imediata é o da combinação entre as cores da paleta usada pelo autor, que indica momentos diferentes da vida de Asterios, além de caracterizar personagens e situações diversas. Quando se trata de acontecimentos que ocorrem no presente,
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Abaixo, detalhe de Asterios, retirado da obra de Mazzucchelli. Na página ao lado, trecho da obra “Aterios Polyp: momento em que Asterios conhece Hana, sua futura mulher.
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Mazzucchelli utiliza matizes de amarelo e roxo; quando se trata de uma retrospectiva da vida do arquiteto, são usados tons de ciano; quando entra em cena a esposa do Arquiteto, Hana, o autor passa a utilizar o magenta, e assim por diante. À medida que em o personagem central se relaciona com os demais, a cor se transforma, resultando da combinação entre as cores características de cada um. (imagem) Também os grafismos e tipos de hachuras, além da tipografia e formato dos balões de texto são utilizados para caracterizar cada personagem; o arquiteto, a exemplo, tem balões de texto retangulares e sua figura é representada, quase que durante toda a obra, de perfil (vemos o rosto de Asterios de frente e uma quantidade maior de cores coabita as páginas somente nas últimas passagens da história), em
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tom ciano, chegando por vezes ao extremo de ser desenhado geometricamente, o que indica seu caráter formalista e sua rigidez intelectual e estética. Pode-se dizer que em quase todos os momentos da história em que algo emocionalmente genuíno é contado, a ilustração tem mais significado do que a palavra escrita. Muito pode ser apreendido de simples passagens entre os quadros, mesmo que não ocorra uma mudança tão evidente de tonalidade ou grafismo. (inserir imagem do pai doente / interpretação da Hana na visao do asterios). Às vezes não há nem mesmo texto presente. Quanto às referências visuais e teóricas que comentei anteriormente, acho pertinente comentar inicialmente sobre a inspiração de Mazzucchelli na mitologia grega. O enredo de Asterios Polyp, conforme apresentado simplificadamente neste trabalho, aparenta ser inspirado na Odisséia, se considerarmos apenas a jornada cheia de digressões de um homem para encontrar novamente a esposa. Esta referência depende de uma interpretação bastante despretensiosa, enquanto outras se apresentam muito claramente, como o mito de Orfeu, ao qual muitas páginas são dedicadas. Há ainda uma terceira referência que escapa ao leitor muito mais facilmente: em uma resenha para o jornal americano The New York Times, o escritor Douglas Wolk chama atenção para o sobrenome do personagem principal - Polyp; o narrador comenta que um escrivão cortou o nome do pai de Asterios pela metade quando este chegou aos Estados Unidos; segundo Wolk, a versão inteira do sobrenome teria de ser Polyphemus, o ciclope mitológico, e serviria de analogia à dificuldade de Asterios (que, desenhado quase
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sempre de perfil, mostra apenas um de seus olhos) de perceber profundidade emocional de qualquer tipo. Considero importante comentar também que Asterios é o arquétipo do arquiteto educado sob a influência do modernismo. O livro está cheio de ilustrações que fazem referência à arquitetura e ao design - vemos o Parthenon, o monumento aos veteranos da guerra do Vietnã em Washington, Ao lado, detalhe de Asterios e Hana, retirado da obra de Mazzucchelli: momento em que Asterios apresenta seu apartamento a Hana.
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além de todo o mobiliário (assinado por Marcel Breuer, Le Corbusier e Mies Van Der Rohe, entre outros) que o arquiteto tem em seu apartamento - e que, por si só, são muito agradáveis de identificar; mas o personagem central, o arquiteto, tornou a obra verdadeiramente interessante e inspiradora para o desenvolvimento da minha própria narrativa gráfica. Durante a leitura da obra de Mazzucchelli, identifiquei no personagem central tanto estereótipos da profissão quanto situações vividas com colegas e professores da FAUUSP. De forma geral, há muitos livros sobre arquitetura e sobre arquitetos, mas há poucos livros de ficção sobre arquitetos e, mais do que isso, a profissão não parece ser incorporada de forma significativa ou filosófica nas histórias ficcionais. No caso de Asterios Polyp, no entanto, vemos que sua postura em relação à arquitetura e sua opinião sobre a existência da dicotomia em todos os aspectos da vida humana realmente dita a forma como enxerga o mundo e como se relaciona com as pessoas; seus referenciais adquiridos na profissão moldam seus sonhos. A vaidade e a arrogância de suas atitudes podem ser genericamente associadas às profissões que lidam com o processo artístico/criativo, cujas obras carregam o peso da autoria; porém acredito que, dada pluralidade de disciplinas associadas ao exercício e ensino da arquitetura na universidade pública, não raro o arquiteto tem a ilusão de poder debater sobre qualquer assunto com igual (ou maior) propriedade do que outras pessoas. Em relação ao paralelo que faço entre esta obra
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de Mazzuchelli e o processo de formação na faculdade de arquitetura, ressalto duas passagens em que Asterios aparece lecionando. Na imagem da página anterior, o professor se agiganta sobre os alunos com suas formas geométricas e fica evidente que consegue incutir sua visão de mundo em muitos de seus alunos - e, como sabemos que sua visão dicotômica é bastante limitadora, isto indica que ele é um professor intimidante. O fato se confirma nesta outra passagem (imagem tal), em que Asterios aparece num giro pelos estúdios, comentando trabalhos dos alunos sem esconder sua arrogância e escárnio: “Você só precisa corrigir duas coisas, o interior e o exterior”. Durante a formação na FAU passamos por situações similares, temos nossa visão aos poucos ou intimidadoramente moldadas, por vezes somos levados a crer que este ou aquele aspecto de uma teoria ou de um projeto é mais ou menos relevante para o nosso aprendizado e frequentemente estas diferenciações são fruto da opinião de professores que nos inspiram - ou amedrontam; quando ingressamos somos um papel em branco e, rapidamente, muitos conceitos perdem ou ganham força.
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Ruído: concepção, método e processo de desenvolvimento: A vontade de transformar o meu trabalho de graduação em uma narrativa gráfica passou por um longo processo em que ponderei qual o valor acadêmico deste tipo de produção. Procurei fazer uma pesquisa que aumentasse o meu conhecimento sobre este formato em particular e também me auxiliasse a entender quais aspectos da arquitetura e das artes visuais, estudados durante a graduação, me influenciaram de forma decisiva a partir para uma empreitada como esta. Ainda que tenha conseguido encontrar muitos pontos comuns entre a arquitetura e a narrativa gráfica e, ainda que tenha tomado conhecimento de autores que tratam das artes sequenciais no âmbito acadêmico, foi um processo bastante laborioso encontrar um tema para o roteiro que me parecesse realmente adequado - não apenas adequado academicamente, mas que de fato pudesse, indubitavelmente, testemunhar o meu aprendizado na faculdade de arquitetura. Inicialmente, não tinha a intenção de criar uma narrativa gráfica sobre a arquitetura em si ou mesmo sobre a FAUUSP, pelo menos não de forma tão franca quanto o resultado do trabalho evidencia. Gostaria, porém, que o tema estivesse de alguma forma ligado ao meu processo de formação e, ao longo das pesquisas e dos estudos gráficos que realizei, a ambientação do roteiro no próprio edifício Vilanova Artigas e a formação do arquiteto como tema central foram tomando características de legitimidade.
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Narrativa Gráfica
A primeira ideia que tive para a narrativa gráfica foi a de criar várias histórias curtas, separadas, mas que tivessem alguma correlação, a principal delas sendo o edifício da FAUUSP. O intuito era que cada uma destas histórias fosse inspirada em vivências reais do edifício, do curso, e colhi depoimentos de colegas para que me servissem de inspiração e para que as histórias não derivassem somente da minha percepção daquele espaço e daquele processo, resultando num trabalho autobiográfico. Seguem os depoimentos que melhor auxiliaram o trabalho:
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DEPOIMENTO #1:
"A primeira vez que vi o edifício da FAU, ainda era estudante do curso de regência do CMU/ECA. A Orquestra de Câmara da USP, a qual eu integrava como violinista, fora convidada para um concerto em homenagem ao Arq.to Paulo Mendes da Rocha, pela ocasião do recebimento do Prêmio Pritzker. Como tantas pessoas, "uspianas" ou não, eu desconhecia a origem do edifício da FAU, a autoria do projeto, ou qualquer conceito ou ideia por trás da construção... Então eu achei o prédio feio. Só. Feio e cinza. Como era possível permitirem vãos tão enormes sem a proteção de um guarda-corpo. As pessoas não se matam ali, não caem pelos buracos, pelas rampas? E esse banheiro rosa, acabado? Esse piso esquisito? Credo… O concerto foi realizado no auditório da FAU, no início de abril, e eram aviltantes tanto o calor quanto o mau desempenho acústico dentro daquele espaço. Músicos revoltados, maestro descontente, improvisos, confusão, massaroca sonora... eu nem mesmo sabia quem era o tal arquiteto na plateia. Será que ele gostou? Tanto fazia, na verdade. Acabei interessando-me pela arquitetura somente ao final daquele ano, quando me aproximei de uma colega de turma que era arquiteta formada pela FAU. Senti-me ignorante (eu que reclamava tanto do quanto as pessoas não conheciam música erudita ou folclórica e falavam asneiras a respeito) ao ouví-la comentar tantos aspectos daquele edifício que me haviam fugido aos sentidos. Na época eu andava em crise com a minha escolha profissional, sentindo que minhas capacidades artística e criativa estavam submetidas à mera performance instrumental e eu tinha dificuldade de enxergar um futuro feliz - em termos intelectuais, já que nem músicos nem arquitetos são grandes figurões da alta renda. Eu achava que precisava de desafios. Conversando com a colega arq.ta, musicista, mambembe desenhista, e enxergando nela habilidades semelhantes às minhas,
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comentei que queria estudar muitos assuntos diferentes, até mesmo aqueles que não me pareciam fáceis. A música na USP tinha um universo todo entrópico e por mais maravilhosas que tivessem sido minhas experiências no campo, algo me faltava. 'Eu sinto falta do desenho, da cor; sinto falta da discussão, da história, das relações, da política... eu sinto falta da matemática. Quero meter o bedelho em todos os assuntos, até nos que eu não entendo, até entender o que eu quero e do que eu gosto.' E ela me perguntou por que eu não experimentava a arquitetura. O pouco (olhando pra trás, hoje, percebo que foi pouco mesmo) que eu me propus a conhecer da arquitetura até entrar na faculdade - como tantos outros aspirantes a FAUanos, eu era muito ignorante no assunto quando entrei - já me serviu de embasamento para entender um pouco melhor o edifício de Artigas (ha! muito antes de conhecer o próprio Artigas...). Aos poucos fui reparando o quanto, de verdade, eu ignorava em arquitetura e como isso era incômodo e também desafiador. Aos poucos também fui reparando em como a FAU não me dava diretamente a escolha - nem forçada - de pesquisar sobre o assunto e compreender mais, querer mais, amar mais a arquitetura. E me diziam que a FAU era fácil e que tudo era possível driblar naquele lugar. De um momento ao outro foi alterada a minha rotina, de 6 horas diárias de prática instrumental e dedicação absoluta, para um desinteressado caminhar preguiçoso pelo salão caramelo após as aulas da manhã, uma soneca sobre as mesas no estúdio antes das aulas da tarde e uma profunda desconcentração em tudo o mais da vida durante toda a semana. E ainda me diziam que a culpa era do edifício 'É esse prédio que faz a gente ficar disperso, andando à toa, sem noção de tempo. O espaço engole o tempo no edifício da FAU.' Durante o tempo que passei nesse espaço aprendi que, assim como acontece com a música ou as artes visuais, a arquitetura é capaz de emocionar em níveis diversos, seja na forma, no gesto, na intenção... mas a arquitetura ainda tem o tangível, tem o tato, tem o
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olfato, tem o etéreo, tem o corpo... tem tudo, pode englobar todas as coisas e pessoas e comunicar em todas as frequências. E por um tempo fiquei numa paixonite aguda com a arquitetura. E, com o edifício da FAU, eu me emocionava com a intenção, mas percebia que o espaço não necessariamente servia corretamente ao propósito. Ficava imaginando se é possível culpar o arquiteto pela forma como espaço é apropriado… Foi uma batalha íntima, travada entre a liberdade de não fazer nada, caso eu assim desejasse, e a certeza de que o não fazer nada não me levaria a lugar nenhum. Parecia que, a certa altura do curso, o aprendizado da arquitetura passava por uma luta contra as delícias perigosas do espaço da FAU. Hoje eu sinto como se a formação nessa escola passasse por um encantamento inicial que deve seguir sendo rechaçado até que o indivíduo consiga finalmente se livrar dele, se livrar do lugar. Cheguei à conclusão - toda minha, sem dúvida - de que o edifício ensina mais sobre a falha do que sobre o sucesso do projeto de arquitetura. Apesar de, em uma certa altura, sentir-me parte daquele espaço, sentir-me emocionada com aquela arquitetura, nunca me senti dona do espaço; mas não falo de posse, falo de responsabilidade. Não sentia que o edifício era um pouquinho meu para tomar conta, para me preocupar com o seu uso, com a sua conservação, com a maneira como se dava a sua apropriação. Percebo hoje que ele sofre da síndrome do "lugar de ninguém", que acomete tantos espaços públicos no Brasil, que confundem a abertura com o abandono. Sempre me impressionou que os mesmos alunos que tanto debatiam a importância histórica do edifício da FAU fossem capazes de jogar as bitucas dos seus cigarros, sem cerimônia, no tão amado piso cor caramelo. O sentimento, em fins de curso, de que fui acometida, especialmente enquanto observava a degradação física do edifício, era o de pressa maluca de sair de lá o mais rápido possível; e hoje, arquiteta formada, exercendo a profissão, sempre que visito o edifício Vilanova Artigas, sinto tristeza e alívio."
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DEPOIMENTO #2: "O melhor transporte da minha casa até a FAU, na época em que estudava lá, era o ônibus. Quando entrei em 2007 ainda não existia o metrô Butantã, que só veio alguns anos depois, mas mesmo assim o ônibus ainda era a melhor opção, em todos os anos. Nos primeiros anos de FAU, quando morava perto da Consolação, havia duas linhas disponíveis, e meu pensamento era tomado por elas assim que pisava no ponto de ônibus. A primeira linha entrava pelo portão 1 direto para a Av. Luciano Gualberto, enquanto a outra dava a volta inteira pelo campus até chegar na FAU. Sempre desejava que a primeira aparecesse logo, pois esta era melhor, mais rápida. Mas, obviamente, eu subia no primeiro ônibus que passava. A segunda linha me fazia ansiar pela minha chegada, principalmente porque, durante o percurso, ficava sempre preocupada se chegaria atrasada ou não. Na FAU as aulas costumam começar atrasadas, e isso não muda ao longos dos anos. Mas era difícil saber ao certo se eu estava atrasada demais ou apenas 5 minutos, era tudo meio inconstante. Assim que descia no ponto de ônibus, atrás do prédio da FAU, só conseguia pensar em como odiava aquela escada. Por todos os anos a rotina não mudou: a minha preocupação em chegar no horário sumia assim que pisava no primeiro degrau, mas o pensamento retornava imediatamente assim que deixava o último. A partir dali, o meu deslocamento passava a ser exclusivamente vertical. Tinha algumas opções diferentes na cabeça. No primeiro ano de FAU eu subia pelas rampas, mas rapidamente aprendi que aquela não era a melhor opção quando se quer chegar rapidamente ao último andar. No segundo ano de FAU aprendi a usar as escadas. Perdi o prazer de circular pelas rampas, mas ganhava ao cruzar o caramelo (o que era ruim se eu estava realmente atrasada, o caramelo é grande). No terceiro ano de FAU, perdi a vergonha de usar o elevador. Não usava todo o dia, mas confesso que pegava uma carona de vez
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em quando. Já no quarto ano de FAU, pegava um atalho bem mais ousado: pulava do estacionamento dos professores para a rampa dos laboratórios, e cruzava o corredor até as escadas/elevador. O corredor era ótimo porque era silencioso, e era uma linha reta, sem distrações matinais. Eu gostava de pegar aquele atalho, porque passava ao lado das lixeiras reciclável do prédio, aquelas amarelas. Sentia um estranho orgulho ser um dos poucos alunos que sabiam que aquelas lixeiras eram o destino de todo o lixo reciclável do prédio. No quinto e sexto ano de FAU, já não fazia mais aulas pela manhã, e a jornada diária não existia mais. No período da tarde, o ritmo era diferente, e toda a conduta de deslocar-se instantaneamente mudava. Talvez porque as aulas eram de projeto, mais práticas, e não era necessário ficar tanto tempo exclusivamente sentada. Constantemente precisava percorrer a FAU por diversos motivos: comprar papel no Mário, entregar alguma coisa em algum departamento, tomar um café. Por isso, minha opção era única e sagrada: as rampas. Acredito que o fato de a biblioteca estar no meio do percurso influenciava muito. Nos primeiros anos de FAU gostava de correr pelas rampas, para ir mais rápido. Às vezes comentava com meus amigos que sonhava em ter um patinete para circular pela FAU, mas nunca faria isso, porque parecia muito desrespeitoso. Porém, confesso que nos dias mais quentes eu andava descalça pelo prédio. Não me importava que o chão era sujo, também não me importava com as poças. Gostava da textura do piso antiderrapante das rampas. Andar descalça me fazia sentir mais confortável e segura. Hoje, quando retorno à FAU, tenho certeza absoluta que não andaria mais descalça por lá. Não só porque ela aparenta estar bem mais suja do que na época em que eu estudava lá, mas também porque não faria mais sentido, ela já não é mais minha segunda casa. Quando retorno à FAU, tudo parece mais sereno. Não há pressa, já não estou mais atrasada."
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DEPOIMENTO #3:
"Foram muitos horários de almoço para ocupar, e a FAU sempre foi o nosso cenário. Na maioria deles saíamos para comer, voltávamos com tempo de sobra e sentávamos nos bancos de madeira do Caramelo para fofocar e fazer o tempo passar - ou simplesmente cochilávamos ali. Em outros, comíamos na FAU mesmo, passando as duas horas que tínhamos na cantina, olhando pela janela e jogando conversa fora. Mas havia dias em que as saídas eram longas e chegávamos atrasadas na aula, mal olhando ao redor. O bom mesmo era quando, naqueles mesmo bancos, deitávamos desconfortavelmente e de cabeça para baixo, olhando para as rampas. Todo aquele edifício que conhecemos de cor, que tanto já estudamos, se transformava. Estava às avessas, de ponta-cabeça. Mas o que chamava mais atenção não era o concreto, e sim as pessoas. Elas se tornavam o novo foco: seus movimentos se modificavam de uma maneira que não imaginávamos. Não andavam, saltitavam! Seu caminhar parecia menos fluído, mas mais animado. E se passava um correndo! Altas risadas. Eram longos momentos assim - até que o sangue parava de circular e era preciso levantar. Depois de uma breve tontura, a FAU voltava ao normal. Horas e horas passadas na FAU. Era preciso inventar maneiras diferentes e divertidas de vivenciá-la para não ficar entendiado. Pena que hoje em dia não fiquemos tanto lá. É lugar de compromisso e de passagem."
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Piso do Museu, FAU USP. Foto: http://www. giramundocavafundo. wordpress.com. Acesso em janeiro/2015
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Apesar de os depoimentos acrescentarem muitas possibilidades à narrativa, ainda pareceu-me faltar algo; muitos trechos eram visões bastante pessoais e senti dificuldade em me apropriar delas. Incontestavelmente, estes depoimentos traziam elementos com os quais eu me identificava, mas faltava algo mais familiar, que falasse pela minha vivência no curso e no edifício. Percebi que transmitir ideias através da história seria mais natural se estas pudessem falar por mim também. Então decidi amalgamar estas experiências alheias com as minhas próprias, criando uma única história, o que acredito ter sido muito mais proveitoso. Também cheguei à conclusão de que gostaria de incluir uma analogia forte, que servisse para conciliar elementos dos depoimentos com as minhas próprias impressões e guiar a narrativa, além de permitir que a história encontrasse um denominador comum com o leitor que desconhecesse a FAU. Durante as orientações para o TFG, foi sendo construída uma analogia entre o edifício Vilanova Artigas e a caverna da alegoria de Platão. Conjuntamente com meus orientadores, percebi que poderia relacionar a minha narrativa gráfica ao mito em diversos níveis. No aspecto físico, o edifício apresenta diversos elementos presentes em uma caverna: estalactites, goteiras, morcegos, aranhas; os sons ecoam de variadas maneiras dependendo de onde são produzidos, não há janelas nas salas de aula, onde os domus da cobertura foram escurecidos propositadamente. Tal qual acontece quando se sai de um ambiente cavernoso, um dia ensolarado do lado de fora ofusca os olhos de quem sai da FAU, ou passa
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algum tempo pesquisando um livro na biblioteca e depois vai folheá-lo no terraço. Além disso durante a maior parte do tempo que passei neste lugar, ele esteve em obras: toldos, andaimes, poeira… mais e mais goteiras, interdições, cantos escuros, os domus pouco servindo para iluminar coisa alguma, contribuíram para transformar o edifício em um lugar soturno; de templo em caverna. A alegoria da caverna também serviu de inspiração para desenvolver a dimensão emocional dos personagens, características imateriais do edifício e devaneios no espaço da FAU. O personagem central é semelhante a um dos prisioneiros que passaram toda a vida interpretando as sombras projetadas na parede da caverna, sujeito a uma compreensão de mundo dependente do meio onde estava; tem dificuldade para aceitar o mundo lá fora (a vida profissional do arquiteto, neste caso) conforme é relatado por uma colega já formada. Acredito que muitos ingressantes no curso de arquitetura sofrem com a própria ingenuidade em relação ao exercício da profissão; ao contrário de repudiar as ideias da colega - assim como os prisioneiros que hipoteticamente se enfureceriam com as ideias do prisioneiro egresso - o personagem se limita a sentir angústia pela passagem do tempo, pelas mudanças que se operaram até então em relação ao período em que ingressou na universidade, e passa a desejar intensamente sair também daquele ambiente. Identifico-me particularmente com a passagem da alegoria em que Sócrates diz a Glauco, sobre a hipótese da saída de um dos prisioneiros da caverna: "(...) o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes,
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ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?" Considero a passagem bastante representativa; em inúmeras aulas em que tivemos contato com trabalhos realizados ou práticas de profissionais do ramo, frequentemente éramos levados a acreditar que faríamos tudo de forma diversa, que seríamos capazes de tomar outras decisões, mais adequadas, mais humanas e mais eficazes. Alguns colegas chamavam outros, já formados, de vendidos, por atuarem, no mercado de trabalho, em alguma empresa ou atividade anteriormente considerada terrível, opressora, de propósito menor. Acredito que a atuação como profissionais no mercado de trabalho é algo que preocupa e assusta alunos de qualquer curso, e a arquitetura, em particular, é impregnada de uma carga ideológica a qual nem sempre parece ser possível levar adiante. “Quanto às honras e louvores que eles se atribuím mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede (...), acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale viver como escravo de um lavrador’ e suportar qualquer provação do que voltar
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à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá?”4 Entendo que compreensão do espaço e das relações que nele se situam seja um processo subjetivo, dominado pela percepção única de cada indivíduo; porém, depois de conversar com colegas de turma e, baseando-me também na minha experiência, percebi que tínhamos em comum duas sensações: a impressão de que o tempo passava de forma diferente dentro e fora da FAU e a noção de que tudo seria diferente (sempre pensando em exercício da profissão) uma vez que saíssemos de lá. Estas duas ideias inspiraram, na minha narrativa, algumas passagens de devaneio e encontro com o passado. O personagem experimenta um sonho em que se vê como Ícaro, em pleno vôo, simbolizando sua vontade de ver-se formado e pronto para enfrentar o mundo; e, tal como Ícaro, ele eventualmente vai de encontro ao chão. Em outras passagens ele se encontra com "sombras" de sua passagem pela FAU, personagens que fizeram parte de sua vida em momentos anteriores e representam tempos mais tranquilos da sua vida estudantil - que evoluíram em direção a frustrações - e a necessidade de se desapegar e seguir adiante. Procurei, enfim, dramatizar gráfica e textualmente peculiaridades e características do processo de formação de um aluno da FAU, conforme tanto a observação reservada quanto a vivência direta destas características. Conforme comentei, a história surge a partir de um amálgama de experiências reais, minhas e de colegas de faculdade, 4 In: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré-socráticos a Wittgenstein.
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além de algumas doses de devaneio e invenção que buscam a reflexão ampla sobre o tema e uma produção congregadora de disciplinas teóricas e práticas que compuseram minha formação. O método torna evidente o caráter autoral deste trabalho, mas não há pretensão autobiográfica. Passo então à apresentação dos personagens e à construção do roteiro que compõem o produto final.
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COMPONENTES DA NARRATIVA
Para compor a narrativa, procurei desenvolver primeiro os personagens e a ambientação e, uma vez decididas as linhas gerais da história, deixei a construção do roteiro fluir conforme os desenhos que fazia. Este método é chamado de “plot first”, e foi muito utilizado por Stan Lee na década de 1960; quando roteirista e ilustrador são duas pessoas diferentes, o plot first é um esquema vantajoso para quem escreve o roteiro, pois o trabalho inicial é bastante reduzido e é dada muita liberdade para quem desenha. No caso do trabalho que realizei, achei conveniente seguir este método por acreditar que possuía mais habilidade como ilustrador do que como roteirista, podendo alterar o texto ou as sequências (para melhor) conforme os desenhos eram feitos. Um dos meus objetivos com a produção desta narrativa gráfica foi justamente buscar linguagem própria e traços característicos, o que acaba submetendo o roteiro às ilustrações - não que haja qualquer tipo de desvalorização da história em decorrência destas escolhas. O desenvolvimento acaba sendo mais lento, mas no meu caso considero que foi mais proveitoso. A ambientação e os personagens são descritos a seguir e o roteiro é apresentado subsequentemente.
Criação de um mundo - a ambientação A história se passa no edifício da FAUUSP. O ambiente não procura ser objetivamente o da faculdade de arquitetura, mas a fusão das diferentes interpretações obtidas com os depoimentos e a minha própria. Ainda que sejam visões subjetivas, precisam ser críveis e compreensíveis. A
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“FAU-caverna” retratada é a representação de um momento e sentimento muito específicos da experiência de viver as dinâmicas deste espaço. Os alunos ingressam com uma sede de transformação e crescimento, mas com o passar do tempo esta relação sofre decisivas alterações. Nos primeiros anos, experimenta-se a sensação de morar no edifício, de tanto tempo passado debaixo dos domus, a FAU passa a preencher mente e espaço. Após os 5 anos mínimos de curso até a formação, já existe um desconforto latente, e a necessidade de se formar e ver-se em outra fase da vida é premente; mas o momento não chega, talvez já devesse ter chegado; por
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Acima, estudo de ambientação: corredor das salas de aula da FAUUSP
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diversos fatores, o processo se arrasta por mais anos do que se idealizara. Pessoas novas ingressam a cada ano e, eventualmente, os rostos passam a ser aqueles de estranhos. O que era visto como um segundo lar torna-se um lugar que agora pertence a desconhecidos, e a empreitada final da graduação vira um “monstro” a se enfrentar sozinho.
Criação dos Personagens Para criar os personagens, achei importante atribuir a cada um deles uma razão propulsora, relativa à sua importância na narrativa e também com intenção de tornálos tangíveis. Tive como inspiração a frase “Be kind, for everyone you meet is fighting a hard battle”5 do autor e teólogo escocês Ian Maclaren, pois esta reflete a característica humana de priorizar somente os próprios problemas e deixar que estes afetem o modo de lidar com o outro; podemos nos fechar e ignorar as batalhas alheias tanto quanto podemos mostrar empatia e compreensão com o outro. Muitas vezes mesmo não conhecendo motivos ou não compreendendo atitudes de certos personagens de nossas vidas, sabemos que a complexidade das relações está presente, e ela emerge nas entrelinhas, nos semblantes, na linguagem corporal, em pequenas atitudes, etc. Partindo deste princípio procurei, mesmo que brevemente, dar a sensação
5 Em tradução livre: “Sê gentil, pois cada pessoa que conheces está travando uma árdua batalha.”
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de que todos os personagens, por mais bidimensionais na forma como se apresentam, tenham motivações apreensíveis. Não dei nome a nenhum personagem por não sentir agregaria algum valor à narrativa; são poucos e, por este motivo, é possível aludir a eles conforme seu papel na história.
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PROTAGONISTA O protagonista representa a minha vontade e as minhas impressões na história. Não procurei necessariamente relacioná-lo diretamente com a minha figura, minha personalidade ou a minha própria experiência, mas transformá-lo em um meio através do qual eu pudesse fazer certas ideias convergirem. Ele descreve um aluno mediano comum da FAU, branco, 20 e poucos anos, vindo de uma classe com poder aquisitivo razoável, o que permitiu que sua vida escolar passasse somente por estudos particulares. Como um típico indivíduo da geração Y, existe uma sensação de que ele é especial de alguma forma, o que deveria ser refletido na forma como os outros o vêem e no seu sucesso no mundo real. Consequentemente, há uma busca pela perfeição e obtenção de reconhecimento ao qual ele acha ter qualquer direito. No entanto, este sentimento acaba por oprimi-lo e o impede de se arriscar ao ponto de cometer erros e ver-se julgado pelas outras pessoas. É sob este estigma que ele ingressa na FAU. Um local que, a princípio, parece acolhedor, que lhe traz diversas experiências sociais e de aprendizado. Com a passagem do tempo e com as experiências obtidas neste lugar, sua natureza observadora causa uma gradual retração, fazendo com que o protagonista se sinta preso e sempre à sombra dos outros. O arco temporal mais importante na jornada deste personagem são os seus últimos passos: justamente o trabalho final de graduação, quando, sem poder depender de mais ninguém além de si mesmo, começa a sentir a
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Estudo de express천es do protagonista
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consequência dos próprios erros e a enfrentar os problemas em sua formação. Ele percebe, através de si mesmo, que há algo profundamente falho neste processo; mas a necessidade de se desvencilhar da “caverna” e ver o mundo com os próprios olhos, uma vez transformado, é sua força motriz. Fisicamente, o protagonista se transforma: inicialmente é um calouro careca no início do curso de arquitetura; em seguida passa por um período em que seu cabelo cresce e termina o período com uma barba densa - a barba é tanto uma alusão à sua condição de "prisioneiro da caverna" quanto a representação de um código de vestimenta velado, produto de uma transformação que se impõe a grande parte dos alunos da FAU.
Ao lado, estudo das mudanças de aparência do protagonista
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componentes da narrativa
Ao lado, estudo das mudanças de vestimenta e postura do protagonista
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Estudos para o desenvolvimento do protagonista
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Concept final do protagonista
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Concept final do protagonista: parte 3 da narrativa
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componentes da narrativa
Concept final do protagonista: parte 4 da narrativa
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COLEGA FORMADA Esta personagem passou por alguns conflitos semelhantes ao do protagonista, mas está agora em outro momento da vida pessoal e profissional. Ela já vivencia o "mundo real", tal como entendido pelo protagonista. Sua batalha não é mais com a caverna, mas com a vida que leva do lado de fora, trabalhando como arquiteta, embora infeliz com o tipo de trabalho que realiza - tarefas mecânicas e repetitivas, em um escritório onde não vê chances de avançar hierarquicamente - e com o fato de considerar-se injustamente recompensada. Esta situação faz a personagem entrar em crise: embora tenha buscado o conhecimento e o auto-aperfeiçoamento e tenha conseguido lidar com os conflitos da graduação até terminar o curso, agora se encontra novamente numa situação indesejável. Poderia procurar outras áreas de pesquisa ou criação e arriscar a estabilidade frágil que possui, ou continuar infeliz num trabalho subalterno no qual não são reconhecidas todas suas habilidades. O protagonista admira esta solera ao mesmo tempo em que é capaz de identificar-se com os medos e dilemas dela; percebe que tem aspirações semelhantes, embora tenham meios muito diferentes de lidar com elas: esta colega, durante a graduação, arriscou-se e perseguiu novas experiências, sanando certas curiosidades acadêmicas, enquanto o protagonista assumia uma posição mais passiva e conformista, dando passos mais comedidos e esperando que algumas mudanças se operassem naturalmente. O fato
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Ao lado, estudo das express천es da personagem
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de ela já ter passado a outra etapa da vida e ainda estar descontente é, para o protagonista, uma prova de que a vida profissional fora da FAU nem sempre é o resultado dos méritos da graduação, e sinal de que as expectativas podem facilmente não ser correspondidas. A situação em que colega formada se encontra representa mais um motivo para o protagonista recear sair daquele ambiente e topar com um mundo que não sente estar pronto para enfrentar.
Estudo da personagem
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componentes da narrativa
Concept final da personagem
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PROFESSOR A figura do professor não ganha muito espaço diretamente na narrativa, mas é inegável sua influência. Ele representa a falta de sintonia entre os professores e os alunos; na FAU, muitos professores são ex-alunos, mas depois de diversos anos exercendo a profissão e retroalimentando a própria reputação, acabam se distanciando do diálogo necessário à relação didática entre professor e aluno. Para compor este personagem, tive como inspiração o arquiteto Asterios Polyp, protagonista do livro homônimo de David Mazzucchelli. Assim como no livro, a condição de professor é mais uma questão de status e de excelência no papel do que uma vocação, ou mesmo simples interesse em lecionar. Em um primeiro momento, o professor não dá a devida atenção ao aluno e suas questões, talvez com a intenção de impor-se como figura hierarquicamente superior, mas eventualmente demonstra uma preocupação e comprometimento com o destino do protagonista na reta final da graduação. Esta transformação fez parte, de certa forma, de algumas experiências minhas como aluno; não como via de regra, embora as exceções não sejam tão poucas: passei por professores extremamente desinteressados pela minha produção e pelo aprendizado dos alunos em geral; felizmente, porém, e especialmente em fins de curso, tive a chance de conhecer e lidar com professores muito mais acolhedores, dedicados ao seu papel como educadores com a mesma diligência despendida à profissão de arquitetos.
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componentes da narrativa
Estudos iniciais do professor: estas ideias foram descartadas, substituĂdas por um traço que buscasse mais semelhança com o personagem Asterior Polyp.
componentes da narrativa
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Estudos para o personagem “professor�
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componentes da narrativa
Concept final do personagem
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PROJEÇÕES OU FANTASMAS Mostradas como a imagem de uma mulher com a qual o protagonista teve algum tipo de relacionamento, as projeções aparecem em cada capítulo para confrontar o personagem, arancá-lo de seu conforto e lembrá-lo das dificuldades que enfrentou - e ainda tem que enfrentar. São também "fastasmas" dos erros cometidos e trazem de volta situações em que o portagonista sentiu ter falhado com os outros e consigo mesmo. Embora tenham aparência diversa, são reflexos do próprio protagonista; a inclusão das projeções na narrativa foi uma maneira que encontrei de desenvolver emocionalmente o personagem central, mostrando um pouco do seu pano de fundo interpessoal, quais medos e alegrias teve, quais foram suas motivações. Por esta razão, as projeções não funcionam como personagens separadas, são facetas do próprio protagonista, e o expõem de forma subjetiva. As projeções aparecem em cada capítulo de uma forma ligeiramente diferente, em função do contexto e do período em que o protagonista se encontra ou revisita; estes fantasmas pontuam suas memórias e seus conflitos internos. Na primeira vez, a projeção usa um cabelo longo, com uma franja reta e roupas em estilo rock’n'roll. Uma das características na imagem da personagem - refletida pela projeção - que atraía o protagonista, era a aparência de uma mulher com atitude e estilo, talvez uma exteriorização do que ela representava para ele. É possível relacionar o gosto do protagonista com o padrão
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Estudos para a personagem “projeção 1”
de figura feminina definido como "Manic Pixie Dream Girl", ou seja, uma personagem que existe com o propósito de tirar o protagonista de sua vida medíocre6. O fato de algo ter dado e agora ela não passar de uma assombração serve para reforçar a noção de que o protagonista a via mais 6 Termo cunhado pelo crítico de cinema Nathan Rabin, Manic Pixie Dream Girl (MPDG) define um tipo de personagem de uso corrente em filmes: nas palavras de Rabin, trata-se "daquela animada e superficial criatura cinemática que existe somente nas febris imaginações de diretores-roteiristas sensíveis, e tem a função de ensinar melancólicos rapazes a abraçar a vida e seus infinitos mistérios e aventuras".
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do que como uma utilidade para si mesmo do que como uma pessoa. Na segunda aparição, as roupas da projeção mudam para denotar um estilo mais "FAUano", com um penteado em trança e franjas mais desgrenhadas. A intenção é fazer o leitor questionar-se em relação ao tempo transcorrido entre as lembranças e se as duas projeções representam a mesma pessoa para o protagonista. Na terceira aparição, durante o sonho, a aparência da projeção muda de maneira mais clara. Usa vestimentas gregas clássicas e possui asas e um cabelo mais claro, curto e espetado, e olhos claros. A escolha de representá-la como uma figura oriunda de um mito grego serve para aproximar o protagonista, em sonho, de Ícaro, frustrado em seu vôo. No último capítulo, as três imagens-fantasma aparecem juntas para confrontá-lo e então é possível perceber mais claramente as semelhanças entre elas. Apesar de estilos de roupa e cabelos diferentes, o rosto delas é muito semelhante, resta a dúvida se elas são a mesma pessoa em períodos diferentes ou se ele mistura situações e características de pessoas diferentes, criando memórias confusas.
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componentes da narrativa
Concept final da projeção nº1
componentes da narrativa
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Concept final da projeção nº2
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componentes da narrativa
Concept final da projeção nº3
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ROTEIRO
"RUÍDO" Parte 1 - Abertura A primeira parte constitui o ato inicial, uma introdução ao "mundo" que abriga a narrativa e e a apresentação de seus personagens. Os quadrinhos estruturam um "travelling", como se o leitor passeasse pelo edifício da FAU através da percepção do tempo e do espaço, mais do que apenas a visão do personagem central. O caminho passa pela entrada do edifício, pelas rampas, pela lanchonete; contempla-se o salão caramelo, visita-se a biblioteca, AI, salas e estúdios; é então que aparece o elo com a segunda parte da narrativa: ao final deste traveling, no corredor de circulação ao lado do estúdio 5, o protagonista se depara pela primeira vez com uma reminiscência de seu passado, a sombra de um relacionamento fracassado; trata-se de outra personagem da narrativa, uma projeção, e não fica evidente se o encontro é real ou se o que ocorre é apenas uma retrospectiva momentânea. Este primeiro confronto com uma projeção ocorre sem diálogos; o personagem a encara e ela o encara de volta, com olhos de quem analisa e julga. O encontro propicia uma transformação algo surreal pois, no momento em que o personagem encontra este "fantasma", o setor da FAU onde eles se encontram fica interditado, como se repentinamente estivessem em um local “proibido”. O personagem vira-se de costas e, ao ver que estava preso naquele local, cria uma passagem através do chão para fugir da situação e desconforto, mas cai de cara com a seção de TFG, onde o vemos olhando para a ficha de inscrição sem saber como preenchê-la.
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Thumbnails para organização da parte 1 da narrativa
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Esta primeira parte tem duas características importantes: a primeira é a justaposição entre a narração, que é a voz do protagonista, e aquilo que é mostrado. O texto fala sobre como ele tinha certas expectativas quanto às experiências vindouras e como houve afinal um falimento destas expectativas e uma sensação de se estar preso ou em inércia. Concomitantemente, os quadros mostram, neste rápido passeio pela FAU, uma passagem de tempo surreal, como se a cada passo transcorressem semanas, até mesmo meses, o que é retratado através da visualização de eventos sazonais abrigados pelo edifício da FAU - no início aparece uma faixa “ seu filho vai virar gay!” , mostrando que estamos em período de matrícula e, mais pra frente, aparecem cartazes sobre o Interfau, indicando que já passa do mês de agosto). Também a gradual deterioração física da FAU sinaliza a passagem do tempo.
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Parte 2 - Revisitada Na segunda parte, o foco está no “diálogo” entre o protagonista e sua colega já formada, que retorna à FAU para pegar seu diploma. Nesta conversa, a personagem observa como não sente falta de seu tempo na faculdade e como acha peculiar o modo como os alunos se sentem pertencentes àquele espaço mas não parecem cuidar dele com empenho. É como se o espaço transformasse as pessoas mais do que estas conseguissem ou se sentissem impelidas a transformá-lo. O protagonista questiona sua própria identidade em relação à sua existência naquele espaço. Sente que definitivamente não se encaixa, de acordo com as observações da colega, como alguém que protege aquele lugar algum modo, mas ao mesmo tempo se sente dividido quanto ao sentimento de pertencer ou não pertencer a ele. Quando questionado pela colega sobre as perspectivas de sua saída do curso, o protagonista diz não estar seguro da sua capacidade de lidar com o mundo lá fora, e por este mesmo, reluta inconscientemente em tentar sair. O modo como o protagonista expressa essas preocupações é através de lembranças. Ele não responde diretamente à outra personagem, pois se encontra de certa forma “sem voz”. Absorve tudo aquilo que vê e ouve, sem conseguir exteriorizar o que sente. Aqui nós vemos como os dois personagens são essencialmente iguais e diferentes. As preocupações, aflições, dificuldades, necessidades e desejos são semelhantes, mas eles lidam de maneiras muito distintas, em função das experiências vividas na FAU. Ela teve professores com quem se identificou mais, teve mais sorte com atividades extracurriculares e relações sociais
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surgidas daí; fez intercâmbio e até encontrou alguém com quem vai se casar. Ele teve quase os mesmos amigos, mas tendia a uma falta de sociabilidade. Não era exatamente bom em esportes, não teve sorte com professores, acabou desenvolvendo desgosto por certas disciplinas; teve alguns relacionamentos malsucedidos e sente culpa pelos fracassos. O resultado desta segunda parte, para o protagonista, é a opressora percepção de que nada mais resta para ele naquele lugar ao mesmo tempo em que a perspectiva do que o aguarda do lado de fora é assutadora. No final das suas lembranças, aparece a projeção pela segunda vez para reforçar sua sensação de inadequação que o aflige. Seu devaneio é interrompido quando sua colega reitera que não importa o quanto talvez seja mais confortável sobreviver ali dentro, a vida real não é aquela, e ela realmente deseja vê-lo sair de lá.
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Thumbnails para organização da parte 2 da narrativa
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Parte 3 - Morcego Na terceira parte da narrativa, o protagonista se encontra com um professor que rejeita sua ideia, ou simplesmente não parece satisfeito e usa frases que fazem referência ao personagem Asterios Polyp, do livro homônimo de David Mazzucchelli. O protagonista, desanimado, avista um morcego pendurado no toldo da cobertura e passa a observálo e a rascunhar desenhos. Aos poucos ele (protagonista) adormece e começa a sonhar; no sonho ele se vê voando sobre o campus da Cidade Universitária e experimenta uma nova sensação de liberdade. Ao avistar o sol (alegoricamente representado pelo símbolo da FAU), o protagonista tenta usar sua habilidade de vôo para se aproximar dele, como se isto pudesse lhe trazer algum tipo de realização pessoal. Neste instante, uma sombra aparece na frente do sol e antes que o protagonista possa discernir seus contornos, ela se revela como a terceira projeção que o ataca com uma espada. Ao atingi-lo, fere-o e o faz cair de volta para o edifício da FAU. Em queda, ele atravessa um domus e em seguida atinge o chão, causando seu despertar na vida real. O protagonista volta a si e percebe que o morcego está no chão, imóvel. O professor novamente o encontra e recomenda que não durma naquele espaço, levando o protagonista a aceitar que precisa sair de sua inércia e enfrentar sua tarefa: concluir seu TFG e voltar para o mundo real.
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Thumbnails para organização da parte 3 da narrativa
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Parte 4 - Exterior
Na página ao lado, thumbnails para organização da parte 4 da narrativa
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A parte final da narrativa é a apresentação do trabalho final de graduação do protagonista, e confirma sua resolução de buscar a próxima etapa de sua vida. Sua aparência, calculadamente arrumada para a exposição à banca avaliadora e sua postura aparentemente confiante em relação ao conteúdo do trabalho evidenciam o quanto está em jogo para o protagonista, na sua arrancada final para a saída da caverna. O trabalho em si consiste em uma analogia entre dois sistemas aparentemente desligados, uma tentativa de provar que existe um nível de conectividade cuja percepção ultrapassa nossa visão cotidiana. Ele associa a cidade e seu intrincado funcionamento aos sistemas orgânicos e vitais do corpo humano, expondo ideias que podem até ser interessantes para o leitor, mesmo que não possam ser material para um trabalho acadêmico real. Durante a apresentação, o protagonista tenta manter certo humor e parecer auto-confiante. Vê-se escrutinado pelos membros da banca e sente a tranquilidade faltar, sente que há muito em jogo; aquele professor exigente e arrogante está lá e, surpreendentemente, parede ter críticas construtivas a fazer, parece ter realmente se interessado pelo conteúdo. O protagonista escuta os comentários, compreende pontos de vista, aos poucos fica mais sereno. E então aparecem novamente as projeções, desta vez as três de uma vez. Estão lá para lembrá-lo do caminho até aqui e do fato de que, independentemente do peso com que carrega seu trabalho e seus esforços, tudo aquilo é apenas o fim de um antigo começo. Talvez, a partir dali, nada tenha sentido.
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Ele faz um último esforço para não fugir e aceitar as críticas recebidas pelos outros, reconhecer seus próprios erros ao longo do processo. Pensa então ter conseguido decifrar a si mesmo, compreendendo também as atitudes daqueles que, em algum momento, acreditou terem lhe feito mal. O professor então chama sua atenção, tirando-o do transe causado pelas projeções, e comenta como, dentro das possibilidades, o aluno foi bem sucedido e que poderia relaxar e parar de levar a si mesmo tão a sério. A história termina com o personagem deixando a faculdade e olhando pra trás uma ultima vez.
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Sobre o título A escolha do título foi singelamente inspirada em alguns conceitos apresentados pelo filósofo francês Jacques Derrida: "Não há nada fora do texto", pois "tudo é texto". Isto não significa que, ao interpretar uma obra, não seja possível recorrer a informações fora dela para decifrá-la, e sim que estas informações também são "texto", já são interpretações: recorrem a símbolos e sons como substitutos para as ideias de fato; não contêm significado em si, apenas sugerem algum, estando, portanto, sujeitas à interpretação. Esta ideia, entre outros aspectos, pode sugerir que o autor é roubado do domínio sobre o significado de sua obra. Afinal, embora haja uma noção de inescapabilidade ao contexto, que norteia a minha produção em muitos níveis - a própria história e todo o processo do seu desenvolvimento, incluindo este caderno, as minhas ideias explanadas perante a banca avaliadora -, tudo é parte do texto; e a questão aqui, tendo Derrida como inspiração, é que esta narrativa que criei, ainda que tenha sido um produto do meu contexto, não deixa de estar sujeita a percepções que podem diferir completamente da minha própria. É apenas uma porção de ruídos, símbolos e ideias que sempre estarão temperados por certa ambiguidade.
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RUテ好O: PROJETO DE UMA NARRATIVA GRテ:ICA SEQUENCIAL
Sテ」o Paulo, 2015