“(...)que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós” Manoel de Barros
© Kennedy Ferreira Piau © Eduel, 2012 Coordenação Editorial FULANO DE TAL Conselho editorial Fulano de Tal, Sicrano e Beltrano Revisão Fulano de Tal Projeto Gráfico e capa Chico Maciel Fotos Equipe do projeto e acervos pessoais
Eduel Rua Tal, xxx CEP xxxxx-xxx Londrina PR
Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre as Interfaces dos Conteúdos Artísticos e Culturas Populares - 2009. Com o apoio do Programa AlBan - Programa de Bolsas de Alto nível da União Europeia para América Latina. Bolsa nº E07D400595BR – 2007/2010.
PATrocÍNio
APoio
Eles viajaram. E se encantaram. 25.000 quilômetros de puro
mergulho no Brasil, uma coluna Prestes, como a realizada pelo lendário Cavaleiro da Esperança, junto com centenas de combatentes, que não perderam uma só batalha e abalaram os alicerces da opressão, fincando raízes no imaginário do povo. Agora uma Caravana que faz da arte e da sensibilidade a sua arma. Anos de sonhos, meses de estrada, dias de magia. O desejo de um professor universitário que quis ir além. Estudou arte, estética, conceitos, teorias... deu aulas, estudou, deu aulas novamente, estudou... foi para fora do país e, a distância, olhou sua terra com mais proximidade. Voltou. Queria ir além. Foi para dentro. Depois de muito sonhar e economizar (mergulhar para dentro tem custo), junto com Bruna, sua companheira de jornada, e outros bons amigos, jogaram-se em nosso Brasilzão. Este é um livro que fala de povo e de suas habilidades, seus sentidos e sentimentos. Um povo que não faz separação entre trabalho e arte, razão e magia. Está tudo embolado. Neste livro está expresso um pouco deste sentimento de povo, desta fala que sai do fundo de nossa alma e diz para nós mesmos o que vem a ser povo. Um povo para além de estereótipos e folclorizações. Um povo que se mira no espelho e se reconhece como tal. Li este livro em uma tacada só e, de imediato, coloquei-me a escrever, isso para ser fiel à própria narrativa de Piau, uma narrativa ágil e honesta, que coloca o leitor no turbilhão
de suas necessidades e desejos, assim como suas reflexões filosóficas e descobertas reais. Descobertas de vidas vividas, vidas que vão além das subordinações dos sistemas, que se recusam a ser coisa e assim se fazem vivas. A cada página lida vamos descobrindo as aflições do autor, suas inquietações teóricas, trajetória de vida, compromissos políticos e, para além da política tal qual se pratica institucionalmente, compromissos de humanidade. E assim somos apresentados a pessoas extraordinárias, como em outro livro de Eric Hobsbawm, historiador que tanto nos inspira, desde quando desnuda a “invenção das tradições” até quando retrata a “vida de pessoas cujos nomes são usualmente desconhecidos de todos”, mas que são as pessoas que realizam, pensam e fazem a diferença. Diferença que se sente diretamente em suas comunidades, mas que vão além, como pequenas pedras jogadas em um lago. Foi em busca destas pedras que geram ondas que eles viajaram. E agora podemos ver neste livro um pequeno apanhado desses Pontos que se espalham por todo o Brasil. Pontos de Cultura, Pontos de Potência de um povo que se desesconde. Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas. Autor, entre outros livros, de Na Trilha de Macunaíma - ócio e trabalho na cidade (Ed. SENAC-2005) e de Ponto de Cultura - o Brasil de baixo para cima (Ed. Anita Garibaldi-2009).
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Uma viagem. Uma viagem que nos possibilitasse viajar. Redundante? Não necessariamente, nem toda viagem nos permite viajar e nem todo viajar se faz numa viagem. Mas... é tão bom viajar numa viagem. É o que nos propusemos fazer e fizemos: viajar, prosear, tocar, pensar, dançar, ruminar o pensamento, fotografar, chorar, cantar, fazer vídeos, aprender, suspirar, escrever, comer coisas gostosas, beber pinga das boas, abraçar, levar a sério, ensinar, trocar de lugar, dirigir e digerir, rir, poemar... Enfim, pesquisar encantando-se nos caminhos dos encantantes.
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Quem somos?
Tateio, tá? ... Um projeto coletivo em um percurso previsto para
ser de 14.000 quilômetros que se transformaram em mais de 25.000. Prosas, cantorias e dancerias. Diários de viagem. Viagens diárias. Uma vivência investigativa sobre manifestações artísticas de tradição oral. Bruna, Camila, Fiorela, Lucas, Maíra, Piau [...]. Seis curiosos - e um pouco atrevidos - sensibilizados pela arte tradicional. Doutorado, mestrados, investigações avulsas. Beijos e abraços virtuais nos amigos que lá(s) deixamos. Vontade de escambo. O desígnio do desejo que gerou um projeto de pesquisa que cresceu, cresceu, cresceu, virou borboleta, voou, pousou fecunda gerando outros casulos e outros causos. Uma abordagem a bordo de um Doblò. A saudade dos amigos que não pudemos levar. Um trajeto: Norte do Paraná, São Paulo (sul, norte e capital), Brasília, Chapada dos Veadeiros, GO, Tocantins, de sul a norte e de norte a sul, sul do Maranhão (Carolina), semiárido nordestino, Recife, Olinda, Belém, Lençóis Maranhenses... Ilhas: Itamaracá, Marajó, São Luiz. Oito meses. Fotos, vídeos, um blog, poemas, crônicas... Artigos acadêmicos sobre produção, circulação e uso das artes de tradição oral. Possibilidades de diálogos: Muitas, infinitas e enfeitadas de fitas. Vontades - mais que obrigação - de agradecer! À Funarte, ao Programa AlBan da Comunidade Europeia, à UEL, à UAB, às meninas Flavia Mielnik, pelos desenhos, e Adriana Lopes Vieira pela primeira revisão, ao povo simples do nosso país - com sua alegria e generosidade - aos novos e velhos amigos, dos novos e antigos caminhos, às famílias, aos mestres (com carinho especial), guardiões e difusores de um saber hoje tão necessário e, claro, aos Encantados que tanto nos encantaram. Eles existem. É, foi vida na veia.
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Pré-fácil A forma-conteúdo deste livro foi
se estruturando a partir de um projeto maior, chamado Tateio, tá? No Caminho dos Encantantes. Com a Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre as Interfaces dos Conteúdos Artísticos e Culturas Populares, conseguimos resgatar ideias que tínhamos antes mesmo da viagem: analisar como e por que jovens da classe média urbana de Londrina utilizam elementos das artes tradicionais nordestinas em seus processos de produção artística e estudar as percepções de mestres da cultura popular do Maranhão e de Pernambuco sobre o uso de sua cultura na criação artística de artistas de outras regiões e classes sociais. A Bolsa da Funarte forneceu as condições materiais para complementar as entrevistas, apurar os sentidos, perceber as contaminações estéticas de/pela cultura tradicional, articular as ideias, desenvolver raciocínios e tentar expressá-los melhor. Nos últimos 16 anos tenho dividido minha vida profissional entre o mundo acadêmico – como pro-
fessor do Departamento de Arte Visual da UEL (Universidade Estadual de Londrina) – e o trabalho como gestor em órgãos públicos de Cultura, primeiro na Secretaria de Cultura de Londrina e depois na Casa da Cultura da Universidade. Neste período também fui membro do Conselho Municipal de Cultura, compondo, por indicação deste conselho – e por vários anos – comissões de seleção de projetos culturais a serem implantados na cidade. A dupla experiência profissional colocou-me diante de um fenômeno cultural que me intrigava: o envolvimento crescente de jovens da classe média urbana com a arte tradicional. Com o tempo passei de intrigado a instigado. Refletir com um pouco mais de profundidade sobre tal fenômeno passou a me estimular. Na condição de membro das comissões de avaliação de projetos ouvi várias críticas em relação à aprovação de projetos apresentados por esses jovens. As críticas vinham no sentido de questionar o uso de recursos públicos com propostas, por exemplo, de organi-
Eric Hobsbawm, historiador inglês e organizador de A invenção das tradições.
zação de um grupo de bumba meu boi ou de maracatu. Causava-me estranheza a falta de fundamentação dos argumentos. Geralmente alegavam que estas manifestações não faziam parte da tradição cultural da cidade, que eram ações ingênuas, românticas e descontextualizadas. Enfatizavam que as manifestações da cultura nordestina não se encaixavam bem numa cidade do sul do país, e mais, que estavam (ou estávamos) impondo arbitrariamente uma cultura alienígena à população de Londrina. Diante destas afirmações, perguntava-me sobre o sentido da expressão “tradição cultural”, numa cidade de pouco mais de 60 anos, cuja formação incluía dezenas de etnias, vindas de várias partes do Brasil e do mundo. De uma maneira ainda pouco sistematizada (ainda não havia para mim Hobsbawm e “a sua mais completa tradução”) me indagava sobre o processo de formação das tradições, como se consolidam e ou desaparecem. Ainda há espaços no mundo atual para determinados graus de ingenuidade e romantismo? O que pensam tais críticos quando se referem ao pensamento e a uma postura de vida “romântica”? Num mundo globalizado, o que significa estar dentro ou fora do contexto? O movimento hip-hop, que mobilizava centenas de jovens da periferia da cidade, era afinado com a “tradição cultural” de uma cidade de sul do país? Por que um movimento cultural de matriz afro-norte-americana, difundido e impactado fortemente pela indústria cultural, era menos questionado como “alienígena” do que algumas manifestações oriundas do Nordeste do Brasil? Que concepções de arte, cultura e política 16 17
cultural norteavam tais argumentos? Quais possíveis desejos e interesses inconfessos impulsionavam este tipo de crítica? Estas questões se tornavam ainda mais instigantes em decorrência do meu trabalho como professor de estética e história da arte, que ministrava uma disciplina de História da Arte Contemporânea cujo conteúdo, entre outros, abordava os conceitos de modernidade, pós-modernidade, diversidade e globalização. O exercício de teorização, a prática administrativa, o trabalho no Conselho e nas comissões de avaliação de projetos exerceram um forte impacto na minha vida profissional, inclusive induzindo-me a fazer um mestrado focando as relações entre arte, sociedade e Estado. No entanto, as tarefas que assumi não ofereceram as condições para aprofundar e sistematizar tais questionamentos, naquele momento. O foco nos processos de apropriação, reinterpretação de elementos da arte tradicional não estava ainda em primeiro plano para mim. A produção artística a partir da apropriação reinterpretada dos elementos da arte tradicional por parte de segmentos sociais não pertencentes às comunidades tradicionais não havia se consolidado como um objeto prioritário de estudo. Isso ocorreria um pouco depois. Ao término do mestrado, centrado no estudo de políticas públicas para as artes no âmbito de administrações progressistas, retornei ao meu trabalho docente em sala de aula, ao Conselho de Cultura e à militância cultural em Londrina. No início de 2000, pude observar que o impulso inicial dos jo-
vens fascinados pela cultura tradicional se ampliava, agregando mais pessoas, diversificando-se. Estava em vias de se consolidar como parte efetiva e importante da cena artística da cidade. E meu envolvimento neste processo foi intenso. O presente estudo decorre, portanto, das preocupações relacionadas ao trabalho de professor do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina - UEL, aliadas às preocupações teórico/práticas vivenciadas no exercício da função de Diretor da Casa de Cultura da Universidade, de Assessor da Secretaria Municipal de Cultura de Londrina, de membro do Conselho Municipal da Cultura de Londrina e de delegado da Primeira Conferência Nacional de Cultura. Suas origens podem ser encontradas nos estudos desenvolvidos no mestrado e também nas reflexões surgidas em uma disciplina de Ecologia Humana oferecida pelo INPA – Instituto Nacional de Pesquisa Amazônica – em 2003. O contato com as culturas tradicionais amazônicas provocou muita inquietação e levou-me a uma dedicação mais atenta às manifestações artísticas de tradição oral. Cada passo vivenciado e reflexivo rumo ao universo das artes tradicionais foi – e é – um desvelar dos arbítrios que envolvem o campo restrito da arte chamada erudita. Tem sido também uma forma de reencontro com o encantamento das Folias de Reis, Congadas, Catiras e Causos que impregnaram meu imaginário no interior de Minas Gerais, onde nasci e cresci. Desde 2003, minha produção como artista, teórico e gestor público tem buscado uma articulação entre o campo restrito da arte (erudita),
as manifestações artísticas de tradição oral, a indústria cultural e as políticas públicas de cultura.
O que chamo de sistema se parece muito à definição de Bourdieu para o campo restrito da arte ou campo da arte erudita. Entendo o sistema das artes como “conjunto de indivíduos e instituições responsáveis pela produção, difusão e consumo de objetos e eventos por eles mesmos rotulados como artísticos e responsáveis também pela definição dos padrões e limites da ‘arte’ de toda uma sociedade, ao longo de um período histórico” (GARCIA, 1991, p. 29).
A partir de tais interesses e direcionamentos me propus a montar uma equipe de trabalho formada por jovens talentosos, interessados e despojados, amigos/profissionais para uma expedição, ou melhor, um mochilão acadêmico pelas entranhas do Brasil. A proposta de realização do presente estudo, assim, se insere em um contexto mais amplo de investigação, voltado ao estudo das políticas públicas para as artes. Penso que o desenvolvimento de políticas públicas para as artes tradicionais e para os grupos sociais urbanos que dialogam com tais tradições passa pelo entendimento das especificidades artísticas destes dois grupos e de suas atuais relações, como também pela compreensão do impacto destas relações no desenvolvimento de seus processos e produtos artísticos. De um modo geral, a ideia foi fazer uma abordagem das relações entre os processos de produção artística e o consumo/fruição de manifestações artísticas de tradição oral em grupos urbanos que não pertencem às comunidades tradicionais. Buscou-se analisar a influência de Pontos de Cultura na produção artística de mestres da arte tradicional e como estes mestres se relacionam com jovens artistas de classe media urbana do sul Brasil. Para isso, analisa-se o processo de trabalho de quatro mestres diretamente vinculados a Pontos de Cultura do nordeste e de quatro grupos de jovens artistas da cidade de Londrina (vinculados ao Promic), que recebem a influência dos tra-
balhos destes mestres. Nesta perspectiva, são trabalhados os seguintes temas: concepções sobre o papel do Estado, processos de legitimação, ideias de autenticidade, parâmetros de qualidade, relação entre fé e prazer (sagrado e profano), relação dos mestres com outros campos (jovens artistas de classe média urbana). A abordagem destes temas se dá a partir das perspectivas dos mestres e dos jovens artistas. Assim espero contribuir teoricamente com a elaboração de políticas públicas de cultura para as manifestações artísticas de tradição oral e para os grupos urbanos que dialogam com esta tradição. Como professor e pesquisador (sei que dizer professor e pesquisador é redundante), penso que é importante buscar atingir os objetivos expostos. No mestrado dediquei-me ao estudo das políticas públicas e o sistema das artes, analisando os limites e as possibilidades de uma ação institucional orientada para o desenvolvimento da arte como crítica da cultura. Abordei as dificuldades de realização de uma ação administrativa que funcionasse como elemento perturbador ou problematizador do sistema das artes (FERREIRA, 2005). Posteriormente, as várias atividades que desenvolvi como professor e gestor cultural indicaram que as manifestações artísticas de tradição oral podem contribuir como elemento perturbador ou problematizador do sistema das artes. Mas não só isso, também podem contribuir para a construção (e/ou manutenção) de outra lógica sociocultural que não necessita ser balizada pela lógica de estruturação e 18 19
funcionamento dos sistemas das artes atuais. O foco nas relações entre arte erudita, indústria cultural e manifestações artísticas de tradição oral apoia-se também em algumas tendências mais atuais do ensino da arte que trabalham com enfoques multiculturais, ampliando o olhar sobre o fenômeno artístico para além daquilo que tradicionalmente denominamos como arte (RICHITER, 1999). Em relação à delimitação do objeto de estudo, entendo, a priori, que a complexidade da relação entre os campos da arte e a sociedade pode ser analisada sob vários aspectos. O interesse desta proposta, porém, é investigar as relações e entender as interações que ocorrem entre campos distintos das artes. Pois, como afirma Canclini, “o objeto de estudo da estética e da história da arte (e também da crítica de arte) não pode ser a obra em si, mas o processo de circulação social em que os seus significados se constituem e variam” (CANCLINI, 1979). Neste sentido, este trabalho centra foco nas relações, em uma análise sistêmica. É um estudo interdisciplinar com fortes vínculos com a sociologia e a antropologia da arte. Procura investigar o processo artístico, entendido como interações entre artista-obra-intermediário-público, em campos distintos, mas relacionados. A aproximação das artes tradicionais por artistas de outros campos não configura nenhuma novidade. Artistas como Picasso, Villa-Lobos, Guimarães Rosa, passando por Goguin, Stravinsky, Hélio
Há uma controvérsia em relação ao nome do movimento. Alguns afirmam que é beach de praia, outros que é uma referência ao movimento beatnik americano (ou simplesmente beat) e outros que está relacionado ao bit, termo usado no campo da informática. As evidências maiores são as que se referem a bit – abreviação para dígito binário, “BInary digiT”, termo usado na Computação e na Teoria da Informação. Uma junção da realidade cru do mangue com a tecnologia digital.
Oiticica, Jorge Amado dialogaram com a cultura popular. O modernismo brasileiro identificou-se com a questão nacional, ressignificando a cultura popular na busca da construção de uma identidade brasileira. No mesmo modernismo ganha vulto a ideia de antropofagia cultural. Na década de 1960, a tropicália coloca alguns temperos e remexe o caldo cultural. Mais recentemente, na década de 1990, o movimento manguebit, como uma nova grande onda, impulsiona este diálogo. Talvez a novidade agora seja a forma como esse diálogo está acontecendo, atingindo amplos setores de jovens da classe média urbana. Hipoteticamente, a forma e o conteúdo do atual diálogo passam pela necessidade pessoal e coletiva de garantir uma identidade num mundo globalizado, pela apropriação massiva das novas tecnologias digitais – que barateiam os custos de produção e difusão cultural – e pelo desejo de um prazer mais espontâneo. E esse fenômeno parece não ser localizado, manifesta-se em várias cidades onde esse segmento jovem aprende a tocar rabeca, choro, samba de roda e fandango ou cantam e dançam carimbó. Mesmo fora do Brasil, como em Barcelona, por exemplo, é visível o fascínio de jovens brasileiras e brasileiros e de outras nacionalidades não só pela capoeira, mas também pelo samba, pelos ritmos baianos, pelo maracatu, pelo candombe uruguaio, pelos ritmos africanos e outras manifestações culturais oriundas das comunidades tradicionais. Este trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica de caráter interdisciplinar, trabalho de campo, produção de registros fotográ-
ficos e videográficos, análise de dados e redação. As fontes documentais foram jornais, sites e outros materiais disponíveis nos arquivos dos grupos. Na pesquisa de campo foram adotadas metodologias de pesquisa qualitativa, por meio de observação participante e entrevistas semiestruturadas gravados em vídeo, concedidas pelos artistas escolhidos e mestres com relevância em manifestações artísticas de tradição oral em Pernambuco e Maranhão. Nesse sentido, busca compreender o processo de produção da perspectiva do artista, mas também procura suas referências, tenta seguir passos, dá voz aos mestres da cultura popular que os influenciam. Busca, ao mesmo tempo, tornar audível e visível este diálogo, para compreendê-lo criticamente. Entendo que, para uma melhor análise das relações entre diferentes campos artísticos e as manifestações artísticas de tradição oral, é importante estudá-las a partir da observação do contexto em que se manifestam. Esta estratégia permite perceber a intrincada rede de significações que correlacionam tais manifestações e a organização social das comunidades a que pertencem. Nesse sentido é que definimos na pesquisa de campo vistas a São Luis do Maranhão e Pernambuco. A escolha de jovens artistas de Londrina foi orientada por vários motivos. A cidade tem pouco mais de 70 anos, mais de 500.000 habitantes e se insere em um processo histórico de formação muito particular, devido às especificidades do processo de colonização, aos fluxos migratórios e ao rápi20 21
do crescimento. Apontada como umas das quatro maiores cidades do sul do país, a cidade é considerada um polo cultural efervescente, com marcante acento na diversidade cultural. Possui várias instituições culturais, públicas e privadas, e realiza anualmente eventos artísticos, reconhecidos nacional e internacionalmente. Suas universidades e faculdades mantêm diversos cursos nas áreas das artes, aglutinando estudantes de diferentes estados brasileiros. Anualmente promove a feira nordestina, grande festa popular que é uma referência para quem aprecia a cultura popular e principalmente para os milhares de nordestinos que vivem no município e região. Já há alguns anos o município mantém uma política cultural de grande expressão, sendo inclusive indicado como referência para outras cidades. O processo histórico de colonização, que mesclou no mesmo espaço/tempo etnias tão distintas, foi capaz de gerar uma base “oswaldiana” na qual comer o outro é um tipo de desejo latente e muitas vezes uma necessidade. Para várias pessoas envolvidas com a ação cultural na cidade, a identidade londrinense é a diversidade, uma mestiçagem cultural na qual o gosto por nutrir-se daquilo que ainda não é seu é relevante. Existe, para muitos o desejo e um impulso de construir uma representação da cidade como lugar no qual a mestiçagem é um valor a ser preservado e ressaltado. O desejo impulsivo de apropriação cultural voluntária e prazerosa da cultura dos outros se expressa atualmente em várias propostas de ação cultural desenvolvidas na cidade, dentre elas várias referenciadas na
FILO - Festival Internacional de Teatro de Londrina, Festival de Música, Semana de Arte, Festival Demo Sul, Mostra Londrina de Cinema, Londrix, entre outros. O Promic - Programa Municipal de Incentivo à Cultura - é um reconhecido exemplo de política cultural desenvolvido na cidade de Londrina. Em 2003 o Programa foi considerado modelo mundial pelo Observatório Cultural de Montevidéu, parceiro da UNESCO.
arte tradicional, inclusive nordestina. O maracatu no distrito de Lerroville, as Vilas Culturais Alma Brasil e Vila Brasil, os projetos Baques e Batuques, Viola de Coité, Chá de Chocalho, Quizomba, o Boi de Mamulengo e o Grupo L.A.T.A. são exemplos de ações que expressam o fenômeno de revalorização da arte e da cultura tradicional, mobilizando um grande e crescente número de pessoas.
3) Grupo LATA: formado a partir de um projeto de
extensão do Departamento de Arte da UEL, este grupo de percussão com mais de 40 membros, dedica-se ao estudo e à difusão de ritmos tradicionais brasileiros como baião, coco e maculelê. Atualmente vem se dedicando ao maracatu de Baque Virado. 4) Oficina ARUBATÁ: é uma oficina onde também
O projeto Vilas Culturais é uma iniciativa da Secretaria de Cultura de Londrina e consiste em disponibilizar recursos públicos para que grupos de artistas e produtores culturais desenvolvam um plano de ação cultural. É como um pequeno centro cultural que recebe dinheiro do município, mas é gerenciado por segmentos da sociedade civil. Os recursos são destinados ao pagamento de aluguel, à reforma e adequação dos imóveis e ao financiamento de um conjunto de atividades culturais previamente aprovadas. Os proponentes se comprometem a desenvolver um trabalho com a população do entorno. Todas as vilas são selecionadas a partir de edital público.
Devido às especificidades de Londrina, trabalhamos com quatro grupos de artistas que residem há algum tempo na cidade e que usam elementos da cultura popular em seus trabalhos artísticos. São eles: 1) Vila Cultural ALMA BRASIL: realiza trabalhos de comunicação comunitária e memória dos moradores do bairro e atividades de ação cultural, com uma biblioteca viva e atividades de vídeo. Mantém um núcleo fixo de cultura popular, organiza o Bloco da Burrinha, com foco no carnaval tradicional, organiza vários cursos e oficinas relacionadas às artes tradicionais, como jongo, coco, cacuriá, bumba meu boi, ciranda entre outros. Parte de seus membros participa de espetáculos com marcadas referências no teatro, na música e na dança popular. 2) Vila Cultural VILA BRASIL: além de desen-
volver várias atividades relacionadas à capoeira Angola, mantém um grupo de teatro, um sarau mensal e atualmente desenvolve o projeto Boi da União, com um vínculo direto com o bumba meu boi do Maranhão.
se ministram cursos de construção de instrumentos tradicionais como alfaias, pandeiros, caixas de guerra, zabumbas, caixas de cacuriá e pandeirões. Seu coordenador é uma referência do movimento de valorização e difusão das artes tradicionais do nordeste em Londrina. Foi fundador do grupo Retalhos de Cultura Popular, participou do projeto Baques e Batuques e participa de espetáculos montados a partir de elementos da cultura popular. Sua oficina virou um espaço de aglutinação para jovens interessados nas artes tradicionais. Tais grupos são bem representativos deste campo na cena artística Londrinense, estão envolvidos neste processo há quase dez anos, trabalham coletivamente, buscam vínculos mais intensos com a cultura tradicional e possuem um reconhecimento público em relação ao trabalho que realizam. Todos têm projetos aprovados pelo Promic. Os grupos escolhidos se referenciam fortemente em algumas manifestações emblemáticas do Maranhão (bumba meu boi e cacuriá) e de Pernambuco (maracatu, coco e ciranda). Tais referências justificam a escolha de mestres da cultura popular destes dois estados. 22 23
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" ... incita a um abandono do individualismo, quando pede proteção mágica contra um mundo que, ao contrário do que assegura o credo burguês, não é nem linear, nem racional [...] porque as festas negam o poder do mercado, do dinheiro, e da racionalidade capitalista que constrói os preços e o mundo." Da Matta
...Pois as experiências
que pudemos vivenciar estes meses, acompanhando um cortejo de Folia de Reis, em Carolina, participando da Festa da Batata com os Krahô, na sambada do Coco de Umbigada em Olinda ou acompanhando o Bumba meu Boi do Maracanã na véspera de São João, em São Luis, confirmam esta citação de Da Matta. O que vivenciamos ali era algo que ia muito, muito além da lógica comercial a que estamos acostumados. Além desta relação com o encantado, o que observamos é que os valores de troca, da solidariedade, do respeito à natureza e aos ancestrais são, definitivamente, os valores predominantes. Criar e fortalecer políticas públicas de produção, valorização e de conservação da cultura tradicional do nosso país significa, portanto, fortalecer também os valores que essas manifestações carregam e que são antagônicos à lógica do individualismo, do consumo e da depredação ecológica, predominantes na lógica racional capitalista hegemônica. Célio Turino, Secretário de Cidadania Cultural do Minc, respondeu a Piau, quando este perguntou qual teria sido sua maior alegria com relação à implantação dos pontos: “[...] então essa abertura eu acho que foi... entender, as-
sim, que tem outras formas de sensibilidade, inteligência, não só puramente racionais...”. E é isso mesmo. As mudanças vão acontecendo, aos poucos, mas vão acontecendo. Quebrando paradigmas, preconceitos... Quando uma mãe evangélica, da comunidade ao redor do ponto, para de ter medo do “batuque” e deixa “até” a filha ir participar das atividades, há uma transformação. E quando um rapaz da classe média paulistana, acostumado a raves e discotecas, vai batucar um coco ao lado do mais velho ogãm de Olinda, também. Ou um diplomata do Itamaraty batendo matracas madrugada adentro junto a senhores do bumba meu boi, compartilhando com eles um vinho São Tomás... E também quando um professor universitário, um pesquisador, cheio de títulos vai num terreiro e quase morre de susto quando sente que tá “incorporando”! E quando, literalmente, nos despimos “pra banhá” no rio com os “kraré”, as crianças krahô... Pequenos, pequenininhos exemplos que pudemos ver e viver, mas que com certeza estão se multiplicando por aí, gerando um fluxo contínuo de transformações, um ciclo sem fim, intercâmbio de valores e ideias onde a abertura para este que é “outro” e que também somos nós, nos engrandece, emociona, modifica...
arteS tradicionaiS... vale a pena? Este texto busca analisar
as razões e explicitar parâmetros para o apoio público de manifestações artísticas da tradição oral no Brasil. Alguns leitores poderão se incomodar pela opção de manter alguns textos, digamos, mais áridos. Poderão questioná-lo, alegando ser desencantador adotar um viés sociológico na abordagem da temática política em um livro que se propõe ir ao encontro do encantamento. Concordamos, em parte. É importante pensar e ruminar o pensamento sobre o tema, na medida em que nos propusemos também ajudar a construir políticas públicas para as culturas tradicionais, adequadas ao contexto brasileiro. As relações de poder, as leis, a formação de valores e a economia vinculadas às decisões do Estado têm impacto nas formas de produzir arte nas comunidades tradicionais. Precisamos entendê-las. É difícil falar de apoio público às artes tradicionais sem ter claro que modelo de Estado – e sua respectiva política cultural – viabiliza tal apoio. Por isso optamos por pensar tais assuntos desta forma. Sempre na perspectiva de contribuir de uma maneira efetiva para uma boa política cultural. Ficaremos encantados se vocês continuarem a ler também os raciocínios desencantantes. Com o texto, esperamos que mesmo em face do maior desencanto dele se encante mais seu pensamento. Portanto, mãos à obra! Discutamos as possíveis relações entre os campos eruditos das artes (que passaremos a chamar somente de campo da arte), a arte de tradição oral e o Estado. Considerando a posição ideológica dos autores e que nos últimos anos o Brasil foi administrado por um governo reconhe30
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cido como de esquerda, nossa análise quase sempre terá os paradigmas da esquerda como referência. Esquerda aqui se refere ao conceito desenvolvido por Norberto Bobbio (2001), quando diz que, em política, a ideia de esquerda está ligada à ideia de direita, ainda que seja uma ligação de contraposição. Elas, direita e esquerda, são polos opostos. Para o autor, tanto a extrema esquerda como a extrema direita recusam liberdade. A direita defende a liberdade, mas não defende a igualdade. Já a esquerda defende tanto a liberdade quanto a igualdade. Segundo esta perspectiva, a esquerda pode e deve sempre unir liberdade e igualdade. Geralmente, a direita pensa a desigualdade social como uma coisa natural, ao contrário da esquerda, que vê a desigualdade como fenômeno socialmente construído e que deve ser erradicado. Assim, procuraremos neste contexto uma abordagem crítica dos próprios discursos adotados pelos setores da esquerda brasileira que governam o país. Buscaremos agora definir com maior precisão alguns dos conceitos utilizados neste livro. A proposta é abordar separadamente alguns tópicos e depois relacioná-los de maneira gradativa.
Sobre a arte e o campo da arte Como se define se uma coisa é ou não arte? A delimitação do campo da arte é sempre difícil de se estabelecer devido principalmente à sua imensa abrangência. É difícil delimitar o campo de arte levando-se em conta os aspectos temporais, ge-
ográficos, dimensionais ou conceituais. Uma infinidade de obras muito diferentes entre si, seja em relação às dimensões técnicas, categorias materiais ou aos conceitos, pode ser definida como arte. Referindo-se às artes visuais (e podendo-se estender a outras manifestações artísticas), Argan afirma que “uma obra é uma obra de arte somente na medida em que a consciência que a percebe a julga como tal” (ARGAN, 1994, p. 14). A obra de arte é uma coisa, um produto do trabalho humano que se pode perceber por meio de sua forma; a arte é um sistema de ideias que cria as condições para a formulação dos juízos de valor sobre as obras. Os critérios que tornam possíveis estes juízos são historicamente condicionados. Em outras palavras, os gostos estéticos são subjetivos, cada experiência estética é única, pois cada pessoa (consciência que percebe) é única. Cada pessoa possui uma maneira peculiar de perceber e simbolizar essa percepção. Porém, esta subjetividade é construída socialmente nas relações que as pessoas estabelecem com seu contexto histórico. Assim sendo, para um determinado grupo de pessoas um artesanato indígena pode ser arte e uma escultura do Rodin não. Uma obra sinfônica do Stravinsky pode não ser considerada arte e a gravação de ruídos da rua pode ser considerada arte. Não há nada, a princípio, que emane de uma obra e garanta a ela o status de obra de arte. A definição se uma determinada obra é obra de arte não está baseada em leis naturais e universais, é uma definição arbitrária. Cada sociedade
em cada época estabelece os valores/critérios que possibilitam julgar se uma obra é ou não arte. Pois bem, de um modo geral quando falamos em arte pensamos em museus, salas de espetáculos, teatros, obras literárias... Por quê? Grande parte da cultura brasileira está alicerçada na cultura europeia ou, se preferirmos, na cultura ocidental. Para entender melhor como essa herança nos afeta, vamos trafegar um pouco pela história da formação da arte moderna no Ocidente. Os fatores sociais que influenciam a produção, circulação e consumo de arte nas sociedades ocidentais modernas estão relacionados com o contexto histórico do desenvolvimento do capitalismo. A partir do Renascimento, observa-se um gradativo processo de autonomização de campos do pensamento em relação à religião. O desencantamento do mundo está relacionado à ascensão da burguesia como classe dominante. Ao instaurar outra maneira de compreender o mundo que não era baseada em dogmas religiosos o pensamento burguês da época fez ruir alguns dos principais pilares de sustentação do poder da igreja e dos senhores feudais. Assim, no princípio da modernidade, o desenvolvimento do conhecimento científico e a estruturação de campos jurídicos e filosóficos independentes cumprem um papel político de transformação. Ver Pierre Bourdieu (1987) e Maria Amélia Bulhões Garcia (1997).
Com a revolução francesa, a burguesia se consolida como poder dominante, acentuando-se a autonomia de várias áreas do conhecimento. Os pro-
cessos de autonomização ou especialização dos campos científicos, jurídicos e estéticos são umas das principais características da modernidade. Há dois aspectos em relação à autonomia da arte que estão interligados: a maior liberdade no processo de criação da obra e a maior independência financeira do artista. O artista passa a ter uma ampla escolha de temas, de formas de composição e de uso de técnicas. Ele também assume maior responsabilidade e maior controle do seu próprio trabalho, passando a produzir, de maneira mais acentuada, a partir de parâmetros inerentes ao campo específico da arte. Esse fenômeno só é possível porque, em consequência da flexibilização do mercado de arte, o artista passa a ter uma maior independência financeira. Com o aumento do poder econômico da burguesia, há uma maior diversificação do público consumidor, que busca na arte, além de um investimento, uma forma de conquistar prestígio social. A flexibilização do mercado, o aumento e diversificação dos consumidores possibilita aos artistas uma maior autonomia em seu processo de criação. Esse processo acelera-se com a revolução industrial, consolidando-se de maneira efetiva com a estruturação da sociedade urbano-industrial a partir da segunda metade do século XIX. Assim, a arte moderna ou a tradição moderna na arte busca a constituição de um campo próprio. O modernismo transformou a autonomia da arte em bandeira de luta. Essa autonomia passa a ser um objetivo a ser alcançado, como forma de ga32 33
rantir um espaço próprio num mundo marcado pelas especializações. É exatamente neste processo histórico de especialização e autonomia que se estruturam os critérios (ou parâmetros/valores) norteadores da definição do que significa obra de arte para a grande maioria de nós. Para compreender melhor este assunto é importante abordar a ideia de campo da arte. Aqui, quando nos referimos ao campo da arte, não estamos nos referindo a toda a produção artística, de todas as sociedades, em todos os tempos. A referência é aos campos restritos das artes ou campos das artes eruditas ou simplesmente ao que se convencionou chamar de arte erudita. Estamos no referindo sim ao que hoje a maioria reconhece como arte, às formas de sua produção, circulação e consumo, bem como ao estabelecimento de critérios para sua valoração. O que é denominado arte representa uma parcela da produção artística que o campo da arte, a partir de critérios por ele estabelecidos, define como arte, recebendo o consentimento, como tal, da maioria da sociedade. Ou seja, o campo da arte funciona como um circuito restrito (artista, promotores, críticos, editores, instituições culturais, mídia etc.) que define suas formas de produção e os critérios de avaliação destas produções. No interior deste campo se desenvolve uma luta em que cada membro, indivíduo e/ou instituição busca o reconhecimento dos demais participantes, estabelecendo-se uma hierarquia na qual, quanto mais reconhecido ou legitimado, mais alto é o posto ocupado pelo referido membro e maior é seu poder.
O conceito de campo da arte é similar ao conceito de sistema das artes, citado na introdução deste livro.
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Como vimos, o processo de diferenciação da produção e a constituição de campos restritos das artes iniciam-se no Renascimento, com a valorização do trabalho intelectual em detrimento do trabalho manual, com a separação entre arte e artesanato e com a constituição, por meio das relações entre artistas, mecenas e filósofos, de mecanismos de legitimação de determinados artistas. Esse sistema de relações se aprimorou, exigindo daqueles que dele participam um determinado capital cultural que não está à disposição de todos. Desta forma, um grupo bastante reduzido de pessoas elabora os parâmetros do que deve ser considerado arte e impõe tais parâmetros para o restante da sociedade. Se o pensamento dominante de uma época tende a ser o pensamento da classe dominante desta época, a ideia de arte tende a ser a ideia que a classe dominante quer que se tenha de arte. Desse modo, as exigências impostas para se produzir e consumir/fruir adequadamente a arte promovem exclusão social. Aqueles que têm acesso ao campo da arte impõem uma [...] dominação simbólica sobre os demais, excluídos desta participação. Marginaliza-se, assim, a elaboração simbólica dos estratos sociais não integrados no sistema, estabelecendo-se mecanismos de distinção que legitimavam a dominação social pré-existente, da qual
o sistema era também resultante. Esta distinção passou a funcionar, [...] como estratégia de poder político dentro da sociedade: uma estratégia que se torna mais eficiente, na medida em que é mais mascarada, aparecendo como legítima (GARCIA, 1991, p. 29).
Como a arte tradicional é produzida pelos grupos marginalizados e não pela classe dominante, tende a ser menosprezada, subvalorizada, entendida com algo exótico e estático. Mas antes de entrar nas especificidades da arte tradicional, vamos analisar o conceito de Estado numa perspectiva de esquerda e depois as relações entre três tipos de Estado implantados no Brasil e suas respectivas políticas culturais.
Conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu, capital cultural é o conjunto de recursos que uma pessoa dispõe para a apropriação de obras culturais, como também os produtos, instrumentos e equipamentos necessários para a produção de uma obra, neste caso uma obra de arte. Ver Coelho (1997) e Bourdieu (1983;1987).
Mais de 15 horas de uma jorna-
da que começa em um arraial e depois vai passando por diferentes praças e bairros de São Luis. Tem benzedura do boi na igreja, no meio da madrugada, e já pela manha o Exército distribuindo água e caldo de feijão pros brincantes, que finalizam a “brincadeira - promessa - religiosidade” no bairro do João Paulo, onde todos os bois (que também fizeram seus percursos) se apresentam. Um contínuo desfilar de matracas, índias e caboclos, uma “rave” da cultura tradicional onde os mais animados são senhores e senhoras para além dos seus 80 anos, que, “incorporados” à maneira do candomblé, como afirmam alguns, ou não, seguem firmes e fortes tocando e dançando madrugada adentro, sob roupas que pesam quilos e sob um sol que, pelas 11 horas da manhã do dia seguinte, beira os 40 graus.
O Estado Pode-se dizer que o Estado Moderno
(poder legislativo, judiciário e executivo) é condição e expressão das relações e contradições fundamentais do mundo em que vivemos. Para a esquerda, o Estado é entendido como instrumento dominação política. Entretanto, não pode ser apresentado assim, pelo contrário, deve aparecer aos olhos das pessoas como uma instituição neutra que se coloca acima dos conflitos sociais e representa o desejo geral da sociedade. O Estado é a forma fundamental da defesa dos interesses de uma classe que domina e seu poder é poder político organizado da classe privilegiada para dominar as classes subordinadas.
Ver Otávio Ianni (1998).
No entanto, a classe dominante não precisa necessariamente ocupar todos os espaços do Estado para defender seus interesses. Ele, o Estado, pode continuar sendo um órgão a serviço da classe dominante ainda que alguns de seus dirigentes pertençam a outras classes.
Os meios necessários para produzir as coisas da vida tal qual vivemos: donos das fábricas, fazendas, bancos...
Esta abertura de espaços no Estado a outras classes é necessária, uma vez que as formas de dominação precisam destes espaços de participação para sub-
jugar, sem no entanto destruir totalmente as outras classes. Assim, o Estado como uma expressão desses conflitos não pode ignorar totalmente os interesses da classe trabalhadora, por exemplo, sob o risco de perder uma das ferramentas mais importantes para a construção da hegemonia política. A conciliação de interesses divergentes funciona, portanto, como um meio de subjugar outras classes aos interesses dominantes, ao mesmo tempo que permite amenizar os efeitos dos conflitos, enquadrando-os aos limites convenientes para a manutenção do sistema. Desse modo, é compreensível que em uma democracia formal seja possível a partidos de esquerda assumirem posições no Estado, como é o caso do Brasil nos últimos anos. Devemos lembrar, no entanto, que o executivo é uma pequena parte da estrutura do poder do Estado. Conquistar o governo não é conquistar o poder, e sim conquistar uma parcela do poder. Além de existirem outros poderes no Estado, como o legislativo e o judiciário, é importante ressaltar que o verdadeiro poder sempre está nas mãos dos donos dos meios de produção. 38 39
Essa percepção crítica do Estado brasileiro por parte de setores da esquerda que o veem como uma instituição que defende os interesses de uma elite minoritária em detrimento da maioria da população tem vinculação, por um lado, com o pensamento marxista e, por outro, com as especificidades da formação histórica do Estado brasileiro e com suas críticas mais contundentes, incluindo as críticas elaboradas por Raimundo Faoro que veremos adiante.
Patrimonialismo no Brasil A partir das formulações de Max Weber, Faoro (2001) afirma que o atraso do desenvolvimento econômico e social do Brasil está relacionado a algumas características da sua estrutura burocrática, herdeira da administração colonial portuguesa. Em seu trabalho Os donos do poder faz uma análise do processo político do país, desde o período absolutista português até a era Vargas (1930-1945). De D. João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo. O capitalismo politicamente orientado – o capitalismo político, ou o pré-capitalismo –, centro da aventura, da conquista e da colonização moldou a realidade estatal, sobrevivendo e incorporando na sobrevivência, o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo – liberdade de negociar, de contratar, de gerir a propriedade sob
a garantia das instituições. A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo – assim é, porque sempre foi (FAORO, 2001, p. 819).
O Estado absolutista estava condicionado aos interesses pessoais do Rei. Esta forma de ação político-administrativa se manteve ao longo da história do Brasil, sempre favorecendo uma relação promíscua entre o campo público, controlado pela burocracia, e o campo privado, que não é mais que um estamento que controla a burocracia. Nesse caso, haveria uma apropriação do Estado por um grupo de altos funcionários públicos que dominariam a administração e teriam como aliados um patronato político. A partir de interesses comuns, ambos os grupos construíram um sistema de relações, com ramificações em todo o país, que tem como lógica o acúmulo privado de riqueza da nação e a manutenção da estrutura de poder. Ao longo de toda a história do nosso país, os representantes desses grupos buscaram consolidar a expansão da riqueza do grupo. Eles entendem o Estado como um patrimônio pessoal, eliminando as fronteiras entre o público e o privado. Estes setores se colocam longe do controle geral da sociedade, garantindo assim a manutenção e a ampliação dos seus privilégios, em detrimento do bem social.
Grupo de pessoas que desempenham a mesma função ou exercem influência em um determinado campo da vida social.
Para Faoro, apesar das alterações sofridas ao longo da história – de um território colonizado para uma monarquia independente, de uma monarquia para uma República – uma coisa não muda muito até metade do século XX no Brasil: o exercício político e administrativo patrimonialista sob controle do estamento burocrático. A prática patrimonialista instaurou um Estado excludente, que garante os privilégios de alguns 40 41
e priva os direitos de uma maioria. Este tipo de Estado possui uma política cultural também excludente, que Teixeira Coelho denomina “políticas de dirigismo cultural”, geralmente praticada por Estados fortes e partidos políticos com pouca tolerância aos questionamentos. Teixeira Coelho explica que o dirigismo cultural se divide em dois subtipos: a política cultural Tradicionalista Patrimonialista e a Estatismo Populista. A primeira promove de “[...] modo particular, a promoção do folclore como núcleo da identidade nacional a ser defendida e difundida de modo preferencial. Neste caso, a cultura derivada desse patrimônio dito autóctone é usada como espaço não conflitante onde todas as classes sociais se identificam”. A segunda afirma “[...] o papel central da cultura dita popular na manutenção de um Estado de tipo Nacional-Popular” (COELHO, 1997, p. 299). Nos dois casos não se privilegia a arte de vanguarda e outras manifestações da arte erudita. Um olhar apressado pode enxergar neste tipo de política cultural um apoio incontestável à arte tradicional, porém é um apoio questionável. Primeiro porque a produção artística, seja erudita, de vanguarda ou tradicional, deve ser entendida como patrimônio da humanidade e como tal merecem seu espaço. Segundo, porque pode levar a uma idealização da cultura tradicional como algo cristalizado, inerte, como um fóssil a ser preservado em um museu. O não entendimento da cultura tradicional como algo dinâmico e contraditório pode reuduzi-la a algo exótico a ser apreciado esporadicamente e com certo distanciamento. Algo
Aquilo que é natural da região que se encontra.
para ser visto numa redoma de vidro, exaltado e pouco vivenciado nas suas múltiplas dimensões. Se por um lado o discurso é de apoio e valorização, por outro a prática tende ao isolamento e empobrecimento dos diversos sentidos destas manifestações. Se, por um lado, tais críticas ao Estado patrimonialista brasileiro serviram à esquerda como reforço na denúncia de um tipo de Estado elitista, dominador
e excludente, por outro também foram usadas por setores que tinham interesse em continuar se apropriando da riqueza gerada pelo país. Tais setores afirmavam que era preciso romper com a tutela exercida pelo poder burocrático do Estado para desmontar o modelo de Estado Patrimolialista e as políticas de dirigismo cultural. 42 43
O neoliberalismo como uma alternativa ao Patrimonialismo Em meados da década de 1980 e na década de 1990, esse discurso reformulado é ressaltado. A argumentação de Faoro passa a ser usada como justificativa para a implantação de políticas neoliberais. A crítica do autor ao estamento burocrático e às práticas patrimonialistas foi publicada em um momento histórico (1958), quando se acreditava que o Estado deveria desempenhar um papel importante no desenvolvimento econômico e social. Sua crítica é retomada quando o Estado passa a ser entendido não como uma solução, mas como um problema. Isso a partir da metade da década de 1980. [...] a situação político-intelectual teria se invertido, pois as mutações ideológicas na cultura capitalista mundial, o fracasso do socialismo como alternativa de modo de vida, a perda de capacidade hegemônica da cultura de esquerda, o esgotamento do nacional-desenvolvimentismo, a memória do comprometimento de boa parte do conservantismo com
o estatismo e com o autoritarismo, a consolidação de uma sociedade de consumo de massas e a internalização dos valores individualistas possessivos na condução da vida cotidiana, abriram a possibilidade de que o liberalismo [...] se torne finalmente uma ideia dominante na formação social brasileira (BRANDÃO, 2007, p 66).
O discurso de Raymundo Faoro é valorizado de forma enfática num contexto internacional de expansão do neoliberalismo como modelo de desenvolvimento e ideologia. Tal modelo é adotado no Brasil no início de 1990, bem como em grande parte da América Latina, por meio da pressão de organismos financeiros como o FMI e o Banco Mundial. No entanto, a adoção deste modelo, longe de garantir a inclusão social, marginalizou grande parte da população, mantendo a desigualdade social. O neoliberalismo não foi capaz de resolver problemas sociais, entre outras coisas porque no Brasil sua implantação foi feita em aliança com os setores sociais que historicamente se beneficiaram das práticas patrimonialistas.
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Durante os anos 1990, a doutrina neoliberal se impõe como concepção orientadora do governo federal por três mandatos, entre 1988 e 2002, sem no entanto resolver grande parte dos problemas sociais. Pelo contrário, com o neoliberalismo veio: privatização com transferência das riquezas nacionais para grandes empresas privadas, precarização dos serviços públicos, redução dos direitos trabalhistas, desigualdade social, ajuste fiscal e desemprego. Voltando a Teixeira Coelho, podemos afirmar que o modelo neoliberal adota, no âmbito das políticas públicas de cultura, o que o autor denomina políticas de liberalismo cultural. Estas não defendem modelos únicos de produção artística e não entendem que seja dever do Estado garantir o direito de acesso da população à produção e à fruição artística. Entre seus subtipos estão as políticas culturais adeptas do mecenato cultural: o apoio à cultura fica na dependência maior da iniciativa privada ou das fundações privadas ou semiprivadas das quais o poder público pouco participa. A implantação desta política pode ser precedida de uma vasta operação de liquidação dos órgãos públicos voltados para a cultura, como ocorreu no Brasil sob o governo Collor, e de privatização da iniciativa cultural. O objetivo é um só: enquadrar a cultura nas leis de mercado. Entende-se, neste caso, que a cultura deve ser uma atividade
lucrativa a ponto de poder, pelo menos, sustentar-se a si mesma. Em geral, este mecenato tende a apoiar as formas de alta cultura e aquelas veiculadas pelos meios de comunicação de massa. Não tem preocupações nacionalistas (pelo contrário, seus princípios são, em geral, os da globalização) e apoia, também em princípio, não grupos comunitários mas indivíduos e empresas culturais. Não raro, a promoção da cultura é feita aqui, como suporte para a divulgação de produtos ou da imagem institucional dos patrocinadores (COELHO, 1997, p. 299).
Como podemos observar, a política de liberalismo cultural tem impacto negativo na arte tradicional, pois além de privilegiar a arte erudita e a cultura de massa (vinculada à indústria cultural), este tipo de política reduz as obras
de arte à mercadoria, a um produto para ser vendido e dar lucro. As manifestações da arte tradicional estão relacionadas a uma série de dimensões da vida das comunidades: religiosas, sociais, políticas, de lazer e não podem ser reduzidas aos aspectos mercadológicos. Voltaremos a este tema em outros textos do livro. Até aqui abordamos duas concepções de Estado, suas correspondentes políticas culturais e fizemos uma primeira aproximação com as relações entre políticas públicas e artes tradicionais. Cabe abordar também o modelo atual.
Começando com a eleição de Hugo Chávez, Venezuela, em 1998, seguida pela de Lula, Brasil, em 2002, de Tabaré Vazquez e José Mujica, Uruguai, em 2003 e 2009, de Nestor e Cristina Kirchner, Argentina, em 2003 e 2007, de Evo Morales, Bolívia, em 2005, de Rafael Correa, Equador, em 2006, de Daniel Ortega, Nicarágua, também em 2006, de Mauricio Funes, El Salvador, em 2009 e Fernando Lugo, Paraguai em 2008.
Como uma reação ao modelo neoliberal, vários países do continente escolheram partidos de esquerda a partir de 1990. No caso brasileiro, setores de esquerda orientados pelo Partido dos Trabalhadores, criticam o Estado Patrimonialista tradicional e o modelo neoliberal. Para eles, se o Estado funciona numa lógica de dominação política, como reverter esta situação? Para tais setores, o desafio deve se dar na perspectiva de democratização do Estado mediante a participação popular: a partir de uma ação no interior do Estado, seria possível questioná-lo e alterá-lo. Percebemos, portanto, que uma concepção de Estado que prevê a democratização dos processos decisórios, busca justiça social e atua efetivamente no crescimento econômico, por meio da distribuição de renda, deve adotar como modelo de política cultural o que Teixeira Coelho chama de “políticas de democratização cultural”. Segundo o autor, esse 46 47
modelo ideológico busca, por um lado, difundir todas as formas de cultura e, por outro, por influência das classes que geralmente estão no poder “acabam forçando o privilégio às formas da cultura superior.” A democracia participativa é considerada como um subtipo deste modo de política cultural, [...] cujo objetivo é a promoção das formas culturais de todos os grupos sociais segundo as necessidades e desejos de cada um. Procura incentivar a participação popular no processo de criação cultural e os modos de autogestão das
iniciativas culturais. Tem metas claramente políticas a alcançar e apoia-se fundamentalmente em partidos ditos progressistas e em movimentos populares chamados de independentes (COELHO, 1997, p. 298-300).
A ideia de relação entre arte, Estado e sociedade civil colocada em prática em 2001 na cidade de Londrina (2001-2008), e a partir de 2002 no governo federal, parece próxima da ideia de democracia participativa definida por Teixeira Coelho, pois, além de entender a arte como força social de interesse coletivo que não deve ser balizada pelo mercado, mas democratizada sem privilegiar modelos predeterminados, o modelo vigente aposta na participação popular e na autogestão dos processos artísticos. No entanto, parece-nos que nem o conceito de políticas de democratização cultural nem o de democracia participativa são adequados para situar a política cultural em Londrina e no governo federal. Há especificidades que não cabem nesses conceitos. Segundo Teixeira Coelho, [...] inevitavelmente, diz-se desta [política da democracia participativa] que, também ao contrário do que prega, acaba privilegiando determinados modos e versões culturais – no caso os de origem popular... É tênue, como se pode depreender, a separação que
se estabelece entre este último tipo de política cultural [da democracia participativa] e o primeiro aqui abordado, o dirigismo cultural (COELHO, 1997, p. 300).
Para compreender melhor essa afirmação é importante retomarmos o conceito de dirigismo cultural. Praticada por “Estados fortes e partidos políticos que exercem o poder de modo incontestado”, esse tipo de política promove “uma ação cultural em moldes previamente definidos como de interesse do desenvolvimento ou da segurança nacionais.” Como vimos anteriormente, o dirigismo cultural possui duas subdivisões: a política cultural tradicionalista patrimonialista que promove especialmente “a preservação do folclore como núcleo da identidade nacional, a ser defendida e difundida de modo preferencial. Neste caso, a cultura derivada deste patrimônio dito autóctone é usada como espaço não conflitante onde todas as classes sociais se identificam”; e a política cultural do estatismo populista que afirma “o papel central da cultura dita popular na definição de um Estado de tipo nacional-popular. Os modos culturais ditos de elite (arte de vanguarda, habitualmente contestatória, e outras versões da cultura erudita) são, neste caso, confinados quando não eliminados” (COELHO, 1997, p. 299). Vejamos. Se, por um lado, o conceito de política cultural da democracia participativa, ao apostar na democratização da arte por meio da participação popular e da autogestão nos processos artísticos, aproxima-se da ideia de relação entre arte e Estado preconizada pelo atual governo, a sua separação tênue ou aproximação com a denominada política de dirigismo cultural, proposta pelo autor, acaba por distanciá-la das posições dos setores de esquerda que hoje governam. Isso porque a política de dirigismo cultural é semelhante ao que esses
setores definem como relação ditatorial entre arte e Estado, e à qual eles se opõem. Ou seja, tais setores de esquerda não defendem um Estado forte que promova arte a partir de “moldes previamente definidos como de interesse do desenvolvimento ou da segurança nacionais”, nem defendem “a preservação do folclore como núcleo da identidade nacional” e, sobretudo, não afirmam “o papel central da cultura dita popular na definição de um Estado de tipo nacional-popular.” Pelo contrário, buscam substituir a oposição entre cultura elitista e popular pela oposição “entre o experimental-inovador-transformador e o repetitivo-conservador-imobilizado” (BITTAR, 1992, p. 206). Nas formulações destes setores da esquerda parece ficar clara a intenção de não se privilegiar a chamada arte popular em detrimento da arte erudita. Desse modo, a concepção de relação entre arte e Estado adotada em Londrina e no Brasil possui uma característica híbrida: mescla aspectos do que Teixeira Coelho denomina “política de democratização cultural” com elementos do seu subtipo, chamado por ele de “política da democracia participativa”. A atual concepção de relação entre arte e Estado no Brasil poderia ser elaborada da seguinte maneira: a arte é uma produção social de interesse coletivo que não deve ficar à mercê da lógica de mercado. Por ser de interesse coletivo, o acesso à arte (produção e consumo) deve ser democratizado sem privilegiar modelos predeterminados, sendo a participação popular e a autogestão dos processos artísticos elementos centrais para a democratização da arte. 48 49
Cabe ao Estado criar condições, estimular, enfim, garantir a participação popular e a autogestão dos processos artísticos. Nas viagens que fizemos pelos quatro cantos do país durante o trabalho de campo tivemos a oportunidade de vivenciar estimulantes experiências de implantação desta política de ação cultural no campo das artes tradicionais. Era evidente a força, o dinamismo, as contradições, a riqueza e a complexidade das manifestações artísticas tradicionais apoiadas nesta ideia de política cultural.
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“Em uma de suas histórias, muito ilustrati-
va de como as atividades cotidianas do interior assumem outras características além da função em si, Dorothy Marques nos contou uma história que era mais ou menos assim: quando morava numa cidadezinha lá no interiorzão do Mato Grosso, todas as mulheres, inclusive as pertencentes ao “alto escalão” da cidade, lavavam suas roupas no rio. Todos os dias lá ia a mulherada com as trouxas de roupa na cabeça... Cansada de lavar e torcer, uma senhora, autoridade do governo municipal da cidade comprou uma máquina de lavar. Durante certo tempo ela abandonou o cotidiano do rio e aproveitou a praticidade do novo brinquedo. Pouco tempo depois, Dorothy vê, entre tantas outras mulheres, novamente a senhora, autoridade, rumando ao rio com sua trouxinha de roupa a tiracolo. Perguntou:
– Ô, mulher, porque você não usa a máquina novinha que comprou? Quebrô, é? A senhora responde: – Ah, Dorothy... pro inferno aquela máquina... Num cunversa com a gente, num fofoca, num sei mais da vida do povo, tá loco! Como é que eu vô podê fazê meu trabaio assim? Eu não, tô vortando é pro rio memo...”
Sobre o apoio público
às artes tradicionais Antes de discutir o apoio do Estado
às artes tradicionais, cabe perguntar por que os governos devem fazer investimentos em arte. Vejamos adiante como distintos autores justificam a necessidade de políticas públicas para as artes. Robert J. Saunders (1997) ressalta a importância da arte para o desenvolvimento da percepção, da imaginação criativa, da flexibilidade na resolução criativa de problemas de todo tipo, como também para a formação de valores estéticos que se refletem tanto no entorno humano e urbano como nas obras de arte. Bales e Pinnavaia (2001) alegam que o financiamento público das artes é qualitativamente diferente do financiamento privado, pois apoia várias atividades críticas que provavelmente nunca atrairão a filantropia privada. DiMaggio (1986) aponta como objetivos da política cultural para as artes a conservação, o acesso, a inovação (com pluralismo e diversidade) e a participação. Propõe dois princípios para a política cultural: a incerteza e a limitação. A partir destes princípios
e objetivos, propõe um modelo compartilhado de financiamento como uma divisão natural de trabalho em que cada setor de apoio faça o que estiver mais está inclinado a fazer. Neste modelo, o governo deveria identificar valores que nenhum dos outros setores quer financiar, animar o apoio dos fundos e, quando possível, financiar os programas vinculados a esses valores. Segundo DiMaggio, os recursos privados não podem apoiar todos os campos, daí a necessidade de combinar diferentes maneiras de financiamento. Referindo-se ao contexto norte americano, DiMaggio ressalta que a cultura erudita é somente uma parte da cultura nacional e deve ser vista no marco de uma visão global da cultura. Afirma que não devemos nos preocupar pela sobrevivência da cultura, pois a cultura sempre sobrevive, o que deve nos preocupar é que tipo de cultura é a que vai sobreviver. Aí perguntamos, as manifestações artísticas de tradição oral no Brasil merecem sobreviver? Os governos, principalmente de 56 57
esquerda, devem se preocupar com esse tipo de arte? Por quê? O próprio DiMaggio oferece uma pista ao falar de determinados valores que a política para as artes deve maximizar: excelência, conservação, inovação e participação. Apesar de saber que muitas artes de tradição oral estão relacionadas com os quatro valores, vamos nos centrar nos dois últimos. Parece que as ações de pessoas e grupos que trabalham com as manifestações artísticas de tradição oral são portadores dos valores de inovação e participação. No caso das artes tradicionais brasileiras, estes valores aparecem de maneira bastante particular. Darcy Ribeiro (1995), em seu livro O povo brasileiro, afirma que o processo de mestiçagem no Brasil criou um homem novo e diferente de qualquer outro já existente no mundo. Por este processo de transfiguração étnica – por meio do qual um povo, entidade cultural, nasce se transforma e morre – passaram, em território brasileiro, as três etnias básicas formadoras de nosso povo: a indígena, a portuguesa e a negra africana. Ao longo do tempo, tais etnias serviram para a formação desse novo homem, esse outro que já não é mais o índio autóctone, o negro africano, o colonizador português, o que gera a necessidade de afirmação de uma nova identidade, que Ribeiro define como brasilidade. Essa brasilidade está relacionada às manifestações artísticas de tradição oral. As comunidades tradicionais, formadas principalmente pelas classes marginalizadas, produzem o que comumente chamamos
de arte tradicional, caracterizada por ser uma manifestação popular dinâmica, que exerce uma função no contexto em que está inserida e que se transmite por meio das gerações pela oralidade. Várias manifestações culturais destas comunidades – que geralmente não são entendidas como arte – relacionam-se com modelos de produção econômica de caráter pré-industrial, predominantemente artesanal, que agregam e difundem valores como a solidariedade, a humildade, o espírito coletivo e o respeito à natureza, próprios deste tipo de economia. Esta arte não se especializou, não adotou a forma pela forma, não se transformou em algo cujo único sentido é o de ser produzido para o desfrute estético ou para o mercado, como acontece nos campos das artes eruditas (FERREIRA, 2005). É importante ressaltar que a tradição moderna no campo da arte erudita tem certa tendência formalista. Com o processo que relatamos anteriormente – de especialização das atividades artísticas, que por sua vez está relacionado à ampliação e diversificação dos artistas e consumidores de arte – criaram-se as condiciones favoráveis para a autonomização da arte, o que favoreceu o desenvolvimento da teoria pura da arte. Essa teoria, segundo Merquior, está relacionada ao desenraizamento social da arte: [...] voltando as costas à verdade do vínculo entre arte e cultura, o formalismo quer especializar a arte. No entanto é precisamente com isso que trai a falsidade de sua pretensão de fugir a todo nexo com a cultura: pois o mito da especialização não é “acultural”; ao contrário, é uma das marcas mais problemáticas da civilização contemporânea. O ideal de
Ver Brandão (1982).
especialização absoluta da arte pura e das teorias estéticas isolacionistas reproduz de modo deploravelmente mecânico e acrítico, as tendências mais cegas da cultura vigente. Longe de livrar-se do cultural, o formalismo se rende ao automatismo da cultura; imita servilmente aquilo mesmo que se nega a reconhecer e a enfrentar (MERQUIOR, 1974, p. 216).
Assim, a autonomia criou as condições para o desenvolvimento da arte pela arte, para a constituição de um formalismo exacerbado, da forma pela forma, que ten58 59
de ao isolamento de outras dimensiones da vida social. Isolada do mundo, a arte fragiliza-se como agente crítico da cultura, contribuindo de certo modo para a manutenção da ordem social vigente. Com a arte tradicional é diferente. Ela satisfaz uma função social, compõe o imaginário popular, relaciona-se com os demais aspectos da vida social das comunidades. Nesse tipo de manifestação artística, a forte relação entre a natureza e cultura cria uma lógica própria diferente da lógica racionalista, na qual predominam os interesses do capital (DA MATTA, 1998). A relação com as lendas e os mitos seria uma das maiores características da cultura e da arte popular. Segundo Roberto da Matta, a presença forte dos elementos não míticos neste tipo de manifestação demonstra a visão “holística” (mais global e integrada) do mundo, no qual a natureza e a cultura, os mortos e os vivos, o mundo do real e o mundo do imaginário se relacionam de forma intensa. As festas e as manifestações folclóricas reafirmam um mundo mágico, opondo-se, desta forma, à lógica racionalista da sociedade capitalista na qual predomina o interesse do mercado e a busca pelo lucro, evidentes, por exemplo, nas festas oficiais e nos grandes acontecimentos criados pela indústria cultural. Segundo o autor, o popular reintroduz, no mundo individualizado capitalista, a “velha generosidade da troca”, na qual os seres humanos, como pessoas, filhos, amigos e parentes, têm a obrigação de dar e receber. “Eis uma tradição que resiste tanto em se transformar em cultura de
massa, quanto protesta contra a visão aristocrática que vem de cima [...] (DA MATTA, 1998, p. 77). No entanto, a imposição do modelo tradicional de desenvolvimento baseado nos valores dominantes da cultura ocidental, na ideologia do progresso, na busca de lucros imediatos e na imposição da indústria cultural tem alterado, radicalmente, a produção material e simbólica destas comunidades e suas manifestações artísticas. Cada vez mais, as leis do capital que ditam a construção dos preços e do mundo se intensificam com o processo de globalização. Esta globalização, falsamente apresentada como um intercâmbio econômico e cultural equilibrado entre todos os países do mundo, seria, em realidade, uma tentativa de mundialização da cultura do consumo. Como afirma Renato Ortiz (1996), esta cultura do consumo, ao tornar-se impositiva, levaria a um desmantelamento dos modos de vida que ainda trazem em si elementos que não formam parte da lógica capitalista. Este desmantelamento se daria principalmente por meio da indústria cultural e dos meios de comunicação de massas. Segundo a investigadora Maria Nazareth Ferreira, os meios de comunicação de massas atuariam, por um lado, na desintegração dos “valores culturais, históricos, morais, éticos e estéticos dos povos latino-americanos e, por outro, globalizam, homogeneizando gostos e costumes (FERREIRA, 1995b, p. 6-7). Em outras palavras, a cultura hegemônica se impõe cada dia mais, “mundializando” a cultu-
ra do consumo e do modo de vistas capitalista. Há, neste sentido, um desmantelamento dos modos de vida tradicionais e a desintegração de valores culturais que trazem em si formas de explicação, compreensão e vivência diferentes daquelas defendidas pela cultura hegemônica. Enquanto nesta última está presente o individualismo, a concorrência e a depredação da natureza, nas culturas tradicionais encontramos valores como a reciprocidade, o respeito ao outro e a biodiversidade, que podem nos ajudar na busca por um novo parâmetro de construção social. 60 61
Fernando Goes Alma Brasil
“[...] Agora, ninguém pensou
como essa grana vai interferir no dia a dia deste mestre, o que ele vai fazer com isso. Porque muita coisa da cultura popular vem em função de suprir necessidades que o dinheiro também supre. Então, a partir do momento em que ele tem a grana ele deixa de fazer, de elaborar, o tiozinho do fandango faz a viola lá no mato, com a caxeta que ele colhe. Não é porque ele gosta, é porque ele não tem acesso a um instrumento de qualidade. E não foi ensinado pra ele. Ele aprendeu daquele jeito e não tem a grana pra ir lá em São Paulo buscar. E sabe fazer. Agora... a partir do momento que ele receber a grana pra comprar, uma coisa que ele sempre admirou, não sei. Que nem o pessoal do boi de sobradinho em Brasília,e a pilha da galera de sobradinho, que faz um boi tradicional, típico do Maranhão, a pira deles era o boi de Parintins. Que pra gente, pseudointelectuais, é um boi que já está... não é mais a tradição, é um boi que virou um megaevento, um boi bumbódromo, super atração, pra trazer turista, gringo. Mas pra galera que tem essa tradição, tem ...vê e admira, aquelas luzes, encanta. Então, será que a chegada da grana não vai destruir os princípios mais básicos da tradição? Ao mesmo tempo é justo deixar o cara sem ter acesso? Não, pelo contrário, né? Então, tudo isso é uma grande... ninguém sabe o que vai dar, a gente tem que tocar o barco e fazer, procurando as referências”.
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Resumindo... A falta de compreensão sobre a existência de similaridades entre os campos restritos das artes e o campo político (Estado) pode dificultar a elaboração e a implantação de políticas culturais mais progressistas. A esquerda que governa o Brasil hoje percebe teoricamente o Estado como poder político organizado da classe dominante, expressão das relações e contradições capitalistas. Nesse sentido, o Estado cumpriria um papel excludente e opressivo. A crença de que o Estado é neutro, representando harmonicamente os interesses de toda sociedade, é uma construção ideológica que ajuda em sua manutenção como instrumento de classe. O Estado é um espaço de conflito, de disputas políticas entre as classes e as frações de classes. Quando se afirma que os campos restritos das artes são homólogos ao Estado é porque esse conjunto de pessoas e instituições que controlam a produção, a circulação e o consumo daquilo que eles mesmos definem (com o consentimento do restante da sociedade) como arte, possui um funcionamento e uma lógica de dominação e exclusão muito parecidas ao Estado. Tal qual o Estado, os campos das artes são espaços de conflito, de disputas políticas dos grupos pela manutenção ou alteração dos mecanismos de poder no interior de cada campo específico, de luta pela preservação ou substituição de valores artísticos. Para determinados setores da esquerda há, em relação ao Estado, uma estratégia de, a partir de uma
ação em seu interior, explicitar seu caráter segregacionista e seus limites institucionais (seja no modelo de Estado patrimonial ou neoliberal). Há claramente uma perspectiva de democratização que aponta para o controle social do Estado como forma de sua superação como instrumento de poder político dominante. Se tivermos em conta que as políticas públicas de cultura são, de modo geral, um espaço constitutivo da relação entre campos com lógicas de distinção – campo político/Estado e campos da arte – chegamos à conclusão de que as políticas públicas tradicionais para as artes tendem a manter a distinção. Para garantir a coerência, dever-se-ia adotar estratégias semelhantes às propostas para o Estado: uma estratégia de, a partir de uma ação no interior dos campos (via políticas culturais), explicitar seu caráter segregacionista, seus limites, usando o poder que o governo tem para a democratização, tendo como objetivo também sua superação como forma de poder excludente e elitista. Nesse sentido é importante a incorporação das artes tradicionais como objeto de políticas públicas. Elas possibilitam uma oxigenação dos campos restritos das artes e ao mesmo tempo provocam perturbações. Como pudemos ver anteriormente, as artes tradicionais não estão sujeitas ao formalismo, dialogam com o mundo, com outras dimensões simbólicas, ao mesmo tempo são uma forma de relação estética que inclui e não opera somente pela lógica do mercado.
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Sobre o Ponto de Cultura do Coco de Umbigada Nem bem havíamos assimilado a incrível experiência vivida na aldeia Krahô e já estávamos comendo tapioca e dançando o coco e o afoxé em Recife e Olinda! Ainda com os corpos pintados de jenipapo, cruzamos o Maranhão e o Piauí e chegamos no estado de Pernambuco, onde está o Ponto de Cultura Coco de Umbigada, coordenado por Mãe Bete de Oxum e próximo objeto de estudo desta pesquisa itinerante. Aqui, o “Ponto” é constituído por uma Rádio Livre,
um Centro Digital e o trabalho com a tradição do coco. Com uma programação diária bem diversificada, mas que prima pelas músicas de tradição afro (cocos, sambas, rumbas) a Rádio Livre Amnésia - 88.5 surgiu há um ano e meio atrás, quando um grupo de amigos da área da Comunicação se uniram pra gravar os mestres de coco do entorno. A experiência deu certo, a verba pública entrou e hoje a rádio está se expandindo.Também se expandem as atividades do Centro Digital, onde o pessoal da co-
munidade aprende desde o básico da computação e da internet mas também se aprofundam em discussões mais ousadas como o uso do software livre. Quanto às atividades relacionadas ao coco, oficinas de percussão, de música e dança, assim como encontros de mestres e “brincantes” acontecem semanalmente. Delicioso foi participar de um dos batuques da terça onde, além da Mãe Bete, tivemos o privilégio de ouvir cantar Mestre Pombo Roxo, um dos ogãs (os tocadores de tambores das casas de candomblé) mais velhos de Olinda. Segundo Mãe Bete, o coco tem sua origem na tradição religiosa afroindígena chamada Jurema, onde entidades africanas como Iemanjá e Oxalá se misturam a caboclos. O coco, conhecido também na Jurema pelo nome de “mazuca”, seria o lado mais cultural, mais profano da Jurema sagrada. Inclusive uma das entidades da Jurema, o Mané Quebra Pedra, quando “desce”, pede que toquem um coco pra ele dançar. Já aquela pisada forte que caracteriza a dança do coco, teria surgido do movimento de pisar o barro, numa época em que toda a comunidade era convidada a pisar o barro que serviria de base para a morada de algum casal Historicamente criminalizado pelas autoridades brasileiras, como tantos outros elementos das tradições afroindígenas, o coco é considerado uma brincadeira de velhos, adultos, e crianças, que Mãe Bete, e outros tantos “brincantes”, vêm tentando fortalecer. O termo “brincante”, explica ela, é a denominação para aquela pessoa que resolve levar uma tradição popular como missão de vida. É o mestre, é o cantador... 66 67
como
Além das informações so-
bre as origens deste trabalho fornecidas no “Préfácil”, gostaria de relatar um pouco do processo da pesquisa. Falar das idas e vindas, das angústias, das felicidades, das surpresas, dos vários encontros com o acaso, das muitas encruzilhadas que apareceram e dos caminhos escolhidos. No mundo acadêmico este tópico poderia ser chamado de metodologia. Mas, como a ideia é ampliar abrangência, seduzindo leitores de fora dos muros das universidades arrisco chamá-lo de “Como fizemos”.
fiZemoS
A forma de um depoimento pessoal pode ajudar a estilhaçar a imagem que possivelmente se tem do pesquisador como um ser neutro, distante, dotado de uma racionalidade fria e de uma capacidade de planejamento que não dá margem ao improviso. Se todos os bons pesquisadores possuem este perfil, creio que não devo ser um bom pesquisador, pois me comprometi e me envolvi muito com meu objeto de estudo. Em alguns momentos fui passional, deixei-me levar também pelas emoções e me deparei com situações inusitadas que solicitavam improvisações. O inusitado e o improviso também geraram ótimos resultados. Entendo que a vida é um fluxo constante e o tempo todo você se defronta com bifurcações tendo que optar para onde seguir. É importante saber por que optamos por um caminho ou outro, avaliar e assumir responsabilidades pelas opções. No meu caso, nas decisões que tomei – e tomo – procuro uma convergência de um saber-sentido e de um sentimento-sabido (nem sempre encontro). 68
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O desejo de mostrar quanto é humano o trabalho de pesquisa é um convite ao mundo da curiosidade desejada (pesquisa) que no âmbito acadêmico pode ser rigorosa, cativante, séria, divertida, difícil e prazerosa. Como a vida.
O coração, minha companheira naquela época fazia um mestrado em Manaus.
oS primeiroS acaSoS e aS primeiraS alteraÇÕeS de planoS
Fiquei encantado com aquele mundo e com a cultura indígena e cabocla. O INPA pretendia criar um doutorado em humanidades para estudar a relação entre homem e natureza. Fui instigado por um professor a tentar este doutorado. Voltei para o sul pensando em comprar um barco e ficar um ano viajando pelas águas da Amazônia. Que Europa que nada, para mim, naquele momento, as possibilidades de algo novo, criativo, instigante estavam na América Latina, especialmente na região amazônica. A sensação era de que tínhamos mais a oferecer à Europa do que receber dela. No entanto, amigos da universidade me aconselharam manter o foco na Europa, diziam-me que eu ainda teria muito tempo para minhas aventuras na selva.
Quando terminei o mestrado na UFRS, em Porto Alegre/1999, tinha a convicção de que iria fazer o doutorado em estética dois anos depois, em Paris. Retornando ao meu trabalho docente na Universidade Estadual de Londrina (UEL), tudo mudou. A participação no movimento sindical e nos conselhos superiores da universidade, as atividades na Coordenação do Curso de Arte Visual e na direção da Casa de Cultura adiaram meus planos por vários anos. Em 2003 fiz um curso de ecologia humana no INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) em Manaus e depois um curso sobre metodologia de campo para estudos de quelônios (tartarugas) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. O que me levou à Amazônia?
Apesar da vontade de mergulhar naquelas águas culturais, priorizei a razão e em 2004 fiz uma viagem com uma grande amiga ao velho continente. Ela sugeriu um roteiro: França, Itália com uma passada rápida por Barcelona. Mais uma vez meus planos mudaram. Conhecer Barcelona e depois Paris foi determinante. Poucos dias em Barcelona foram suficientes para eu ser seduzido e desistir da cidade luz. Queria ter a experiência de viver na cidade de Antoni Gaudí. Encontrei um doutorado em escultura bem interessante, que priorizava intervenções no espaço público. Como sou professor de escultura e trabalho com intervenções, achei que a fome tinha encontrado a vontade de comer: um doutorado em escultura em Barcelona! Tudo certo. Mais ou menos...
No papel de professor de artes sempre afirmo que criar é resolver problemas com limites de recursos. Quanto menos recursos, mais criatividade. Na metodologia de investigação creio que é um pouco assim: queremos entender alguma coisa e inúmeras vezes os meios para se construir tal entendimento são escassos, o que nos leva a buscar ou criar os meios adequados para essa construção.
Em 2006 tive que ir a Brasília legalizar meus diplomas no Ministério das Relações Exteriores e aproveitei a oportunidade para visitar outra vez São Jorge (Alto Paraíso - GO) e conhecer o Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros. Uma nova crise! Quinze dias no meio do cerrado vivendo com grupos de artes tradicionais de todo o país, pesquisadores e mestres da cultura tradicional, membros do Ministério da Cultura e gente dos Pontos de Cultura recém-implantados me desestruturaram. Fazia tempo que não sentia a arte tão forte, tão viva, tão presente, tão inserida no mundo. De novo a pergunta: o que vou fazer na Europa? As coisas estão acontecendo aqui. Voltei determinado a estudar as artes tradicionais em alguma universidade brasileira, especificamente Pontos de Cultura que trabalham com arte tradicional. Já pesquiso políticas de cultura há vários anos, o Programa Cultura Viva/Pontos de Cultura me pareceu um ótimo objeto de estudo, pois se constitui em uma política cultural muito inovadora. Porém, mais uma vez recebi vários conselhos de amigos professores para que eu não deixasse de fazer o doutorado na Europa. Um dia, velejando pela internet, entro no site da Universidade Autônoma de Barcelona e vejo um link – Doutorado em Humanidades. Que será? Entro e leio que o curso se propunha “estudar as relações entre arte, sociedade e indústria cultural, visando subsidiar a elaboração de políticas culturais”. Pronto, criava-se a possibilidade-síntese, viver em Barcelona e fazer o trabalho de campo no Brasil estudando Pontos de Cultura.
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O que estou querendo dizer é que muitas vezes as coisas não são totalmente claras desde o início. A construção do objeto de estudo é um jogo constante entre aquilo que sabemos, queremos saber e as condições de que dispomos para saber. É um processo de amadurecimento, às vezes angustiante e muito prazeroso quando conseguimos juntar prazer, necessidade e vontade. Quando fui para Barcelona estava impregnado de prazer, necessidade e vontade. Já tinha um projeto de pesquisa bem definido, mas as leituras, as disciplinas cursadas e as discussões enriqueceram muito a base teórica para o estudo das artes tradicionais. Junto com as disciplinas realizei a primeira etapa do levantamento dos dados secundários, via internet, sobre arte tradicional e políticas públicas de cultura. A web hoje é um importante instrumento de pesquisa e deve ser bem usada, tanto para obtenção de dados como para buscar artigos acadêmicos.
Outros causos de acasos que levaram a ser como foi. Iniciei o doutorado com uma ideia fixa: fazer uma viagem de carro durante vários meses visitando Pontos de Cultura em todas as regiões do Brasil. Lugares que gostaria de conhecer e ainda não havia tido oportunidade, outros que conhecia e onde desejava voltar. Um grande desejo de me embrenhar pelo interior e descobrir o país. Os recursos eram escassos para a empreitada, meu salário da UEL e uma Bolsa do Programa AlBan da Comunidade
Europeia, que não cobria o trabalho de campo. Se saísse da Europa, a bolsa seria suspensa. O jeito foi economizar bastante. Um ano e três meses vivendo em Barcelona em uma república precária, num quarto de 1,40 por 3 m e lavando roupa na mão em uma banheira. Além disso, meus companheiros de piso não eram exemplos de limpeza e organização – levando-se em conta o padrão brasileiro – mas eram muito queridos e o preço do quarto era bem em conta para Barcelona (250,00 euros – 675 reais na época). Precisava de dinheiro, sobretudo para comprar um carro e equipamentos para registrar a viagem. Apesar da necessidade de fazer economia, no geral, foi um período produtivo e em vários momentos divertido. Mas também tivemos muitos momentos de solidão, de angústia, principalmente no inverno. Várias vezes fiquei deprimido, chorava e me perguntava: o que estou fazendo aqui? Faz sentido? Compensa? Como posso estar deprimido com uma bolsa, fazendo o doutorado que escolhi e vivendo em uma das cidades mais cobiçadas do mundo? Mesmo em tais circunstâncias, fiquei em alguns momentos bem deprimido, como qualquer pessoa longe da sua terra natal, da família, dos amigos, dos seus costumes e da sua cultura. Triste como qualquer imigrante. Esse tipo de relato pode parecer irrelevante no contexto, ou não. Lembro-me de quando dava aula de metodologia de pesquisa e de meus orientandos. A angústia de ter que montar e desenvolver um projeto de pesquisa pela primeira vez, o desespero chegando à beira da desistência, a vontade de abandonar tudo e querer ir plantar tomates na chácara dos
Metodologia de Pesquisa Qualitativa, Direito da Cultura, Política Cultural, Consumo da Cultura, Produção e Gerenciamento da Cultura na Era Digital e Produção da Cultura.
pais. Eu sempre dizia: “Calma, com o andar da carroça ajeitam-se as abóboras!” Quando nos sentimos angustiados, achando que o trabalho não vai dar certo, que somos incompetentes e burros, que não vale à pena tanto sacrifício, que não damos pra essa coisa (mundo acadêmico), às vezes cremos que seria melhor ser jogador de futebol, cantor pop ou padeiro, podemos estar cobertos de razão. Ser jogador, cantor ou padeiro pode ser uma boa opção, ou não. Temos uma tendência a achar que somente nós passamos por esses momentos. E não é verdade, creio que quase todos investigadores passam por isso em algum momento. O mais difícil é a primeira vez. Depois que se descobre que há luz no fim do túnel, que aquele momento de desespero é só um simples momento, uma fase, o fardo torna-se mais leve. O frio e a escuridão tornam-se mais suportáveis. O importante é não se desesperar além do limite e ter bons amigos. Mesmo porque, depois do inverno vem a primavera! Com ela, os parques, os tambores, as aves e as ávidas pessoas em busca de amizade. Foi quase sempre em clima de primavera que montei a equipe de trabalho. A ideia inicial era viajar com mais uma pessoa. Comecei a procurar alguém conhecido, competente, divertido, solidário e sensível. A primeira pessoa definida era formada em ciências sociais, envolvida com a relação entre o mundo da arte e da sociologia. O segundo membro do grupo eu conheci num parque em Barcelona, trabalhava com foto, design e tinha produzido um documentário sobre arte tradicional.
Parecia que a equipe estava de bom tamanho, mas ficamos pensando: se iríamos investir tanto recurso, seria bom fazer um melhor investimento em registro, principalmente na compra de equipamentos de vídeo. Por outro lado, aplicar em bons equipamentos justificava agregar mais uma pessoa, capacitada tecnicamente para operá-los, principalmente na captação de imagem e som. O projeto começava a adquirir outra dimensão. Procurar uma pessoa com conhecimento técnico em vídeo, com disponibilidade de tempo, que trabalhasse só pelo prazer da viagem (pois não havia recursos para salário) e que, além disso, fosse conhecida, competente, divertida, solidária e sensível passou a ser nossa tarefa coletiva. Não encontramos. Simultaneamente, naquela época fizemos a seleção e os contatos com os Pontos de Cultura que pretendíamos visitar. Decidimos que um membro da equipe assumiria as tarefas videográficas e que iria ser formado pra isso. Fechamos a equipe, pensei. No entanto, uma pessoa bem amiga, da área de história, que estudava gestão do patrimônio imaterial acabou sendo incorporada ao grupo. Com a equipe formada, passamos a primeira etapa do trabalho de campo em Londrina, no final de 2008, que envolveu a pré-produção, cursos de vídeo e nivelamento teórico da equipe, como também testes de formas de trabalhar entrevistas, já que tínhamos um bom equipamento de vídeo digital de alta definição, mas não havia nenhum especialista da área de vídeo. A fase de pré-produção foi bem problemática do ponto de vista financeiro. Parte de minhas economias ficou indisponível por motivos 72 73
alheios a minha vontade, no momento em que eu tinha planejado dar um lance definitivo no consórcio para pegar o carro. Para garantir o transporte tive que fazer um empréstimo bancário e dar um lance muita acima do previsto. Não era possível arriscar ficar sem o veículo. Além disso, gastei mais do que o previsto na compra de equipamentos, no restante da estrutura para a viagem e tive que aumentar os recursos para a manutenção da equipe que passou de duas para quatro pessoas. No total foram investidos mais de oitenta mil reais de recursos próprios. Neste sentido, a bolsa da Funarte foi fundamental para custear as viagens que faltavam para complementar a coleta dos dados, pagar novos técnicos de vídeo e garantir as condições de dedicação para novas leituras, análise dos dados e redação dos textos. Aliás, a ideia do projeto aprovado pela Funarte surgiu na fase de pré-produção do projeto Tateio, tá?. Na época, estava aberto um edital no Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura de Londrina) e elaboramos uma proposta que foi o embrião do estudo de que agora apresentamos os resultados. Apesar de não sabermos o resultado da avaliação e sem ter certeza se o projeto seria aprovado no Promic, resolvemos iniciar a coleta dos dados. Além do tema (envolvimento de jovens artistas urbanos com a cultura tradicional) despertar meu interesse já há algum tempo, fazer as entrevistas era uma forma de capacitar a equipe, pois exigia trabalho de produção, elaboração do roteiro de entrevistas, domínio do conteúdo, capacidade de envolver o entrevistado e questões técnicas como configura-
ção do equipamento de vídeo, verificação da luminosidade, enquadramento, captação de som. Mas, sobretudo, a capacidade de trabalhar em equipe e viver juntos 24 horas por dia. Uma boa equipe é fundamental para esse tipo de trabalho. Como a arte tradicional é um objeto de estudo complexo – na medida em que se articula com outras dimensões da vida social das comunidades – é fundamental um olhar interdisciplinar. Aspectos sociais, políticos, econômicos, religiosos estão intimamente vinculados aos aspectos estéticos. É tudo junto ao mesmo tempo. Uma equipe com pessoas de várias áreas do conhecimento, desde que envolvidas e comprometidas, enriquece a investigação. Possibilita uma reflexão mais abrangente e complementar. Porém, não é nada fácil trabalhar com tanta gente durante tanto tempo. Isso exige de cada um muito desprendimento, sensibilidade para perceber o companheiro e, além disso, respeito ao outro. Exige certa habilidade de ceder, de lidar com saudades, de perdoar, de fazer autocrítica, de despender energia no que é essencial e de manter o foco. Ao mesmo tempo, é necessária a capacidade de rir das situações, dos outros e de si mesmo, de chorar para poder voltar a rir, de se encantar com o alvorecer, as prosas, os cheiros, os sons da noite e os sabores de cada refeição. Capacidade de celebrar e ter prazer. Aprendi que neste tipo de projeto faz bem cativar e deixar ser cativado por um olhar, um sorriso e um cafuné. No entanto, lamento dizer: é muito difícil manter todas essas capacidades e ha-
O projeto não foi aprovado pelo Promic, mas conseguimos produzir uma quantidade razoável de material de pesquisa.
bilidades o tempo todo, durante tanto tempo e em tanta gente. Em alguns momentos perdi todas essas capacidade e habilidades. Somos incompletos com nossas virtudes e defeitos: humanos. Sim, tivemos desfalques. O primeiro antes mesmo de iniciarmos a viagem. A pessoa responsável pela parte do vídeo desistiu um pouco antes da saída. A solução foi chamar outra pessoa, amiga e especialista em vídeo, que já havia entrado em contato antes perguntando se ainda precisávamos de alguém da área de vídeo e afirmando que gostaria de participar do projeto. Aos quatro meses de viagem uma nova desistência. A área de história foi substituída por mais uma pessoa de ciências sociais. O último desfalque ocorreu faltando três meses para terminarmos a viagem. O campo das ciências sociais ficou com um só representante. Completamos a viagem com três mosqueteiros tateando territórios do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. No início, pensei mesmo que seria difícil um Big Brother a bordo de uma Doblò. Previ uma parada estratégica no meio da viagem, em Belém. Descanso, férias de dez dias. Cinco meses vivendo quase 24 horas juntos cansa qualquer ser humano. Achei que seria necessário um tempo para não esgarçar as relações. E era necessário sim. Alguns de nós estávamos cansados e estressados. Mas a chuva impediu. Não havia como ir do Tocantins para o Pará. Estava tudo inundado. Mudamos o rumo, resolvemos ir para Recife. Dois mil km pela frente. Esta não foi a primeira grande mudança de roteiro, já havíamos desistido de ir para Itajaí, em Santa 74
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Catarina, também devido às inundações, a maior dos últimos anos. Não controlamos muita coisa, muito menos o clima, assim é sempre bom ter um plano B. Folgas no calendário e roteiros alternativos são bem-vindos. Apesar de a falta de recurso criar dificuldades de infraestrutura para a pesquisa, a carência possui pontos positivos. O primeiro é a autonomia, que nos permitiu mudar rotas, objetivos, cronogramas, sem ter que dar satisfação a ninguém. Como quase a totalidade da viagem (antes do projeto ser aprovado pela Funarte) foi autofinanciada, não existia um cronograma aprovado externamente e muito menos a obrigação de cumprir metas a ferro e fogo. Isso nos deu liberdade de mudar de rumo sempre que entendemos que era conveniente. Podíamos assumir os riscos que levassem a desfrutar melhor da viagem. A liberdade nos levou, por exemplo, a trocar um Ponto de Cultura indígena por outro que não estava nos planos. E foi talvez a experiência mais extraordinária que tivemos: passar vários dias na Aldeia Nova, em plena festa da batata. O acaso nos doou vários causos. A falta de recursos nos induziu também a algumas opções metodológicas. Aquilo que na academia chamamos de fontes secundárias (relatórios, entrevistas, reportagens e outros documentos já existentes) são referências limitadas, uma vez que na maioria das vezes não contemplavam questões pontuais de interesse do projeto, como as ideias sobre legitimação, autenticidade e qualidade artística. Tais ideias puderam ser mais bem identificadas e analisadas por
meio da realização de entrevistas semiestruturadas específicas. Por outro lado, as fontes secundárias geralmente não conseguem captar certas sutilezas importantes para compreender a complexidade das relações que nos propusemos estudar. Elas podem ser mais bem percebidas quando estamos no local, falando, interagindo com as pessoas (na universidade chamamos esse procedimento de técnicas de observação participante). A intenção sempre foi compreender as relações, o que pressupõe compreender os componentes destas relações. Neste sentido, foi fundamental estudar a partir da observação do contexto sociocultural em que os jovens artistas de Londrina produzem e, sobretudo, o contexto em que os mestres das artes tradicionais atuam. A investigação direta nas comunidades neste caso foi, sem sombra de dúvida, um fator determinante para o trabalho. Outra coisa que gostaria de ressaltar é que a produção de material audiovisual de alta qualidade pôde viabilizar – além de melhores registros que estão sendo utilizados no trabalho estritamente acadêmico – a obtenção de uma série de materiais disponíveis para serem utilizados na criação de livros, cd-roms, documentários em vídeo digital de alta definição, programas de rádio e exposições de fotos. No entanto, tudo isso custa bastante dinheiro. Tinha perspectiva de conseguir algum tipo de financiamento para o projeto, como não foi possível, informei à equipe que havia recursos para
Tipo de entrevista em que se elabora um roteiro prévio, com perguntas direcionadas para temas específicos sobre que se deseja obter informações, mas que ao mesmo tempo possui um nível de flexibilidade que possibilita incorporar outras informações de acordo com o andar da entrevista. Aldeia do povo Krahô, situada perto da divisa do estado do Tocantins com o sul do estado do Maranhão. A observação participante é uma técnica de investigação na qual o pesquisador compartilha, na medida do possível, as atividades, os interesses e os sentimentos de um grupo de pessoas ou de uma comunidade.
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cinco meses de viagem em condições mais confortáveis ou oito meses em economia de guerra. Unanimidade, todos optaram por oito meses sem comodidades. A casa seria o carro. Uma Doblò Adventure, cujo bagageiro comportou quatro engradados (para mantimentos, utensílios de cozinha, minibiblioteca e equipamentos), além das mochilas, sacos de dormir, pandeiro, cavaquinho, clarinete, barracas, lonas, cordas... e atrás, dependuradas, duas bicicletas. Era possível nos garantir em qualquer lugar. Procurávamos viajar sempre de dia e por volta das seis horas começávamos a buscar um lugar onde passar a noite. Essa estratégia nos possibilitou ficar em cidades e povoados inimagináveis, principalmente no Tocantins, semiárido nordestino e no Maranhão. Tivemos possibilidade de conhecer lugares e pessoas simples que nos acolheram sem ter nenhuma referência, por pura generosidade. Lugares onde ficaríamos horas e acabamos ficando dias ou onde ficaríamos dias e permanecemos semanas. Lugares e gente que quando tínhamos de deixar nos debulhávamos em lágrimas comovidas. Em alguns desses lugares tínhamos contatos prévios, amigos ou amigos de amigos que também calorosamente nos acolheram. Raras vezes ficamos em hotéis. O contato direto foi uma opção metodológica, uma necessidade e uma dádiva. Fomos sendo amaciados. Alguns de nós introduzidos e outros reintroduzidos num universo no qual a lógica do capital ainda não se impôs de forma avassaladora, onde o
individualismo é mais ameno, o cotidiano mais sereno e o terreno da solidariedade dá flores vistosas de cheiro colorido. Lugares onde a pimenta ainda é amassada com sal na horinha de servir e cuja uti-
lidade é tirar a ardência da cachaça artesanal que acompanha o pirão de frango. Dormir onde e como dorme o povo, comer sua rica, variada e saborosa comida, trocar um dedinho de prosa tomando café ou aguardente é uma experiência de sensibilização importante para esse tipo de trabalho. Permitenos adaptar nossa postura, gestos, tom de voz, linguajar, para poder compreender melhor e melhor ser compreendido. Diminui a distância e gera confiança. Muitas vezes é nesses momentos mais informais que extraímos as melhores informações. Quando nosso parceiro de prosa (informante) está mais relaxado, a conversa corre solta e percebemos riquezas e sutilezas que a intimidação da câmara de vídeo inibe. Nem tudo dá pra ser registrado
em aparelhos. Aquilo que foge das máquinas pode ser gravado no coração e na mente simplesmente. Aproveitei para não aproveitar tudo para o trabalho. Nem tudo é para ser instrumentalizado. É importante superar a relação utilitarista. As pessoas são seres com que interagimos, não devem ser reduzidas a simples objetos de estudo. Há coisas que devem ser aproveitadas desinteressadamente. São para a vida e não para o projeto que algumas situações nos são apresentadas e se tornam válidas.
E se vale pra vida, já valeu o projeto
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Algo constatado nessas andanças com
os brincantes: o prazer como elemento fundamental para o “fazer cultura tradicional”. Mais que a religiosidade, mais que o fato de ser promessa, mais que por respeito à memória dos antepassados, é o prazer – do cantador, do puxador, da comunidade – o maior motivador dos mestres entrevistados. “É a minha vida, me dá prazer”, diz Seu Amaral, mestre de um dos Tambores de Crioula de São Luis. Também Mãe Bete de Oxum, quando entrevistada, dizendo que a importância do Coco de Umbigada era trazer alegria pras pessoas. E mestre Amaral, do bumba meu boi Sotaque de Zabumba de Guimarães, que afirma: “Se a vida for só trabalho, aí não presta!”. Para grande parte das pessoas que trabalham com cultura tradicional, a manifestação cultural é, quando não a única, uma das coisas que mais dão sentido às suas vidas. É o que os move, o que os faz querer viver, o que dá orgulho e o que os tornam importantes neste mundo maluco e desigual. Isso que dá sentido, isso que dá tesão, tem que ser muito valorizado e considerado realmente algo digno de preocupações. Preocupações que gerem ocupações, que gerem mais políticas públicas, cada vez mais consistentes e funcionais. Porque o já batido refrão dos Titãs (que apesar de batido ouso repetir aqui) “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte” só tem sido confirmadíssimo nesta nossa jornada pelas manifestações culturais Brasil adentro, e na convivência com aqueles que as vivenciam e produzem.
PolĂtica Cultural de Londrina
Vários estudos publicados (Ortiz,
Ferreira, Chauí, Bitar) indicam que a concepção de política cultural que possibilitou a implantação dos pontos de cultura e do Promic é uma construção coletiva que foi se formando nas experiências do Partido dos Trabalhadores e seus aliados em modernos governos municipais e estaduais a partir da década de 1980. Neste sentido, os programas são parte do mesmo processo de ascensão deste grupo de esquerda, já que a cidade de Londrina foi administrada pelo PT por 12 anos nas últimas décadas. Tanto o Promic se aproxima do programa Cultura Viva, como as Vilas Culturais (onde atuam os jovens estudados) assemelham-se aos Pontos de Cultura. As Vilas Culturais – financiadas pelo Promic – consistem em dispor estruturas, por meio de recursos públicos, para que grupos de artistas e produtores culturais desenvolvam um plano de ação cultural. É como um pequeno centro cultural que recebe dinheiro do município, mas é gestionado por segmentos da sociedade civil. Os recursos são destinados ao pagamento de aluguel, à reforma e à adequação dos edifícios, bens de capital (equipamentos eletrônicos, de luz e som, instrumentos musicais) e o financiamento de um conjunto de atividades culturais previamente aprovadas. As pessoas e instituições responsáveis pelas Vilas Culturais se comprometem a desenvolver um trabalho com a população ao redor. Todas as Vilas são selecionadas a partir de concursos públicos e, até pouco tempo, ou passavam a compor duas redes coordenadas pela Secretaria de Cultura, a
Rede da Cidadania - com foco na formação cultural e a Rede da Alegria, com foco na circulação e desfrute cultural Acredito que para complementar a fundamentação de que o Programa Cultura Viva/Pontos de Cultura é, em grande parte, consequência de um processo coletivo deste grupo de esquerda que governa o Brasil, a partir de experiências empíricas desenvolvidas em governos locais (cidades e estados) e também para melhor justificar sobre o porquê do estudo da relação entre jovens artistas de Londrina (financiados pelo Promic) e mestres da cultura tradicional do nordeste (vinculados aos pontos de cultura), é importante apresentar alguns aspectos da política cultural de Londrina e o processo histórico de sua implantação. Como citado anteriormente, a atual política cultural de Londrina foi considerada modelo mundial pelo Observatório Cultural Montevidéu – vinculado à Unesco – em 2003, ano em que o presidente Lula toma posse em seu primeiro mandato. Na constituição brasileira de 1988, o campo da cultura ganha um novo status e o país passa a ser considerado como um Estado Moderno de Cultura, onde a cultura passa a ser entendida como direito constitucional. O novo marco constitucional, que define uma ação compartida entre os governos Federal, Estaduais e Municipais para a promoção da cultura, exige maiores responsabilidades das municipalidades. É neste contexto 82 83
que se inicia o processo que culminará com o atual modelo de Política Cultural de Londrina. No mesmo ano da promulgação da constituição foi criado, por lei municipal, o primeiro Conselho de Cultura da Cidade, com uma composição muito tradicional, privilegiando a representação das corporações artísticas vinculadas as belas artes. Mas, ja neste momento, o conselho teria um caráter deliberativo, normativo, consultivo e fiscalizador. A secretaria Municipal de Cultura foi criada em nove de março de 1992 e no mês de dezembro do mesmo ano foi promulgada a lei para a realização de projetos. Com estas três ações, a criação do conselho e da secretaria e a promulgação da lei, constrói-se a base sobre a qual se pode construir a atual política cultural. Cabe ressaltar que a iniciativa desta lei Municipal de Incentivo Fiscal foi de um parlamentar do PT, que no fim de 1992 seria eleito prefeito. No transcurso de 22 anos (1988 a 2011) é possível dividir a construção da política cultural da cidade em três fases. A primeira (1988-1996) é de criação e consolidação das estruturas institucionais. Depois das três ações básicas citadas anteriormente, em 1993 assume o novo prefeito (que anteriormente havia proposto a lei de incentivo). É um período de regulamentação e implementação da lei, de reestruturação da Secretaria da Cultura e de um trabalho mais integrado da Secretaria e no Conselho, que não teve no período nenhuma alteração substancial. A segunda fase (1997-2000) pode denominar-se como período de resistência. A Secretaria de Cultura se burocratiza, dificultando o trabalho dos produtores
Governo liderado pelo PT. Em 1991 fui convidado pelo vereador Luiz Eduardo Cheida do PT para ajudar na formulação de uma lei de incentivo à cultura para a cidade, que foi aprovada e sancionada no fim de 1992. No inicio do mesmo ano, o PT me indica para coordenar a elaboração do programa de Governo na área da cultura. A proposta apresentada é quase uma cópia de um texto elaborado por membros de órgaos culturais de cidades administradas pelo PT, a partir de suas experiências, e publicados no livro O modo petista de governar, editado pela Secretaria Nacional de Asuntos Institucionais do Partido, com o objetivo de ajudar nas formulações de políticas setoriais. Em 1993 este mesmo parlamentar toma posse como prefeito e eu vou trabalhar na reestruturação da Secretaria Municipal da Cultura e da lei de incentivo à cultura. O texto do programa de governo é reformulado com poucas alterações e aprovado como política cultural do município ainda no mesmo ano. Governo de caráter populista que foi retirado do cargo acusado de corrupção.
culturais, o Conselho de Cultura se extingue, criando obstáculos à participação cidadã e a lei sofre alterações que, por um lado, possibilitou uma maior capacidade de captação de recursos e por outro aumentou o poder de intervenção da iniciativa privada na definição de quais projetos seriam implementados na cidade. Isto porque era possível que uma empresa pudesse descontar, no pagamento de seus impostos, 100% do valor invertido em projetos culturais. A terceira fase (2001 até hoje) é a implantação do modelo atual. Neste período o Conselho é criado com as mesmas funções, mas com uma nova composição, extingue-se a lei de incentivo baseada na renúncia fiscal e se cria uma lei de incentivo fundamentada no fundo público e há uma nova estruturação da secretaria da Cultura. É esta terceira fase que pretendo fixar mais detalhadamente. Durante a campanha eleitoral de 2000, o candidato do Partido dos Trabalhadores (que ganharia as eleições) apresentou uma proposta chamada “Rede da Cidadania” que teria como objetivo articular as políticas sociais de uma maneira transversal tendo como eixo a cultura. Esta proposta exigia uma concepção alternativa de relação entre Cultura, Estado e Sociedade Civil; uma nova forma de organização administrativa da Secretaria de Cultura; outro modelo de financiamento público, os projetos culturais e novos mecanismos de participação. Como foram (e estão sendo) enfrentadas estas demandas? Comecemos pela primeira. Parece haver, de fato, uma concepção alternativa de relação entre cultura, estado e sociedade ci-
vil neste caso. Algumas formulações (FREY, 1999; COELHO, 1997) ajudam a compreender esta concepção alternativa de relação entre as três esferas. A atual política cultural em Londrina se aproxima do modelo democrático e descentralizado apresentado por Bruno Frey e do modelo definido por Teixeira Coelho como políticas de democratização cultural. A ideia de relação entre cultura, Estado e sociedade civil adotado pela política cultural de Londrina possui uma característica híbrida que mescla aspectos do que Teixeira Coelho denomina de política de democratização cultural com elementos de política da democracia participativa, já que a ideia de que a produção e consumo cultural são de interesse coletivo e devem ser democratizados sem privilegiar modelos predeterminados, sendo a participação popular e a autogestão dos processos culturais elementos centrais para a democratização da cultura. A segunda demanda – uma nova forma de organização administrativa da Secretaria da Cultura – é importante para materializar uma nova concepção de relação entre governo, sociedade e cultura. Principalmente para garantir a estrutura burocrático-administrativa para um ou outro modelo de financiamento, para os mecanismos de participação e para as ações transversais relacionadas. Apesar de a estrutura oficial ainda adotar um modelo administrativo tradicional, a Secretaria tem definidos setores para a gerência de novas tarefas, cabendo destacar a Direção de Incentivo à Cultura, 84 85
que fortalece o suporte administrativo ao processo de subvenção aos projetos culturais apresentados à comunidade.
ma de renúncia fiscal para a implantação de projetos culturais e ninguém quer voltar ao que era (renúncia fiscal).
Uma nova forma de financiamento, a terceira demanda, foi uma mudança radical e é fruto da Primeira Conferencia Municipal da Cultura de Londrina (2001). A comunidade foi chamada para debater a política cultural do município e estabeleceu um novo modelo de Conselho de Cultura, reformulando a lei Municipal de Incentivo a cultura que passou de um modelo de renúncia fiscal para um modelo com fundo público. A partir desta deliberação foi criado o Promic – Programa Municipal de Incentivo à Cultura. Aqui é importante destacar duas informações. Uma é que a Primeira Conferência Nacional de Cultura só se realizaria em 2005, quando Londrina já havia realizado duas conferências municipais, antecipando e ajudando a consolidar esta forma mais democrática e participativa de tomada de decisões. A outra informação é que a mudança de um financiamento baseado em renúncia fiscal para um modelo baseado em fundo público não foi tranquilo. Como eu já havia estudado no mestrado a política cultural da cidade de Porto Alegre (administrada durante anos pelo PT), que trabalhava com fundo público, fiz, durante a I Conferência de Londrina, uma proposta de mudança que não foi bem aceita em um primeiro momento, mas que contou com a compreensão e apoio do prefeito. A resistência inicial era inclusive dos próprios artistas e produtores culturais, que seriam os principias beneficiados com a nova proposta. Atualmente não há nenhuma outra for-
O Promic incentiva dois tipos de projetos: Os Projetos de Produtores Independentes são aqueles que se orientam para o circuito cultural tradicional ou cuja inserção seja comunitária e busque estimular a produção artística e cultural nos bairros e regiões da cidade. Em ambos os casos, os projetos devem nascer da iniciativa independente dos produtores culturais. Na apresentação do projeto cultural independente, fica o proponente obrigado a oferecer à comunidade uma contrapartida na forma de atividades culturais destinadas a universalizar o acesso à cultura. Já os Projetos e Programas Estratégicos são aqueles que visam a realização das diretrizes da política municipal de cultura, alimentando, ativando, potencializando circuitos culturais em benefício da comunidade. Em todos os casos os projetos são apresentados por pessoas físicas ou jurídicas e avaliados por duas comissões. A comissão que seleciona os projetos independentes é formada por 4 membros titulares e dois suplentes, indicados pelo Conselho Municipal de Cultura; e três membros titulares e um suplente, indicado pelo Secretário Municipal da Cultura. Já a comissão de avaliação dos projetos estratégicos é composta por cinco membros de reconhecida idoneidade e capacidade, sendo três indicados pelo Secretário Municipal de Cultura e dois pelo Conselho Municipal de Cultura.
Depois de aprovados os projetos, assina-se um convênio e dois proponentes recebem os recursos diretamente em suas contas bancárias. Ao final da execução é realizada uma rigorosa prestação de contas. Finalmente a quarta demanda, os novos mecanismos de participação popular. Além das possibilidades de participação da comunidade nas comissões de seleção de projetos, que tem, inclusive, o poder de deliberar sobre destinações de recursos, duas instâncias de participação se destacam. A primeira é o Conselho Municipal de Cultura, “instrumento democrático e participativo da comunidade, com atribuições normativas, deliberativas, consultivas e fiscalizadoras de questões relacionas a cultura”, cuja composição conta com dezenove membros da sociedade civil e um do poder público. Observa-se que grande maioria dos representantes é da sociedade civil e a composição é bem representativa, incluindo não apenas os representantes das tradicionais belas artes, como também de outras áreas da cultura. Cabe ressaltar ainda a possibilidade de apresentação dos consumidores de cultura, por meio dos representantes comunitários (sete membros).
LEI Nº 8871/2002 (disponível em: http:// migre.me/9l28g)
180 delegados que definiram as diretrizes da política cultural para Londrina para os próximos dois anos seguintes. Em resumo, a política pública de cultura de Londrina está baseada na história de organização e articulação dos agentes culturais da cidade e em um conjunto de outros fatores interrelacionados. O modelo de gestão cultural desenvolvido tem enfoque nas necessidades da população a partir de um entendimento da cultura como política pública. Os principais pontos deste modelo são: a gestão compartida, que possibilita à comunidade e aos produtores culturais decidirem em conjunto com o governo; uma estrutura administrativa razoável; uma boa quantidade de recursos (para os parâmetros brasileiros), com financiamento direto aos agentes culturais. Além disso, destaca-se um trabalho de inclusão sociocultural que articula a produção, circulação e consumo cultural tendo como orientação a ideia de direito cultural. Esta concepção de política cultural e sua implantação tem relação com outras experiências administrativas do PT, que formaram a base da formulação e implementação do programa Cultura Viva/Pontos de Cultura.
A segunda instância é a Conferência Municipal de Cultura, que acontece a cada dois anos (até o momento foram realizadas quatro), a última conferência – agosto de 2007 – teve como saldo 60 pré-conferências, envolvendo os segmentos culturais e as comunidades de várias regiões da cidade, para debater e eleger os delegados. Foram habilitados 86 87
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ESPERA AÍ, E o
No texto
“Artes Tradicionais, Vale a Pena?”, afirmamos que uma relação entre arte e Estado no Brasil, numa perspectiva progressista, pode se entender a arte como uma produção social de interesse coletivo que não deve ficar à mercê da lógica de mercado. Assim, o acesso à arte deve ser democratizado por meio da participação popular e da autogestão dos processos artísticos. Em relação às artes tradicionais, discutimos sua incorporação como objeto de políticas públicas, na medida em que poderiam provocar perturbações nos campos das artes eruditas, estimulando renovações nestes campos.
ESTADO?
A proposta deste tópico é identificar e analisar as possíveis relações entre a concepção de política cultural formulada no parágrafo anterior e as visões dos jovens artistas de Londrina e dos mestres de Recife e São Luis sobre a função do Estado, no que diz respeito às artes de tradição oral. O envolvimento dos jovens estudados com a cultura tradicional ocorreu a partir de uma origem comum e por meio de um processo específico de mediação. O artista Tião Carvalho parece ser o principal elo de conexão destes jovens com a cultura tradicional nordestina. Tião Carvalho nasceu no estado do Maranhão em uma comunidade tradicional, foi criado por uma família de classe média da capital maranhense, onde iniciou sua formação artísti90 91
ca. Posteriormente, ampliou essa formação em contato com grupos do cenário cultural de São Paulo. Vejamos sua influência. Com exceção de Marcelo Pinhatari, que em 1994 conheceu algumas manifestações culturais do Maranhão, todos os demais jovens artistas entrevistados se envolveram efetivamente com a cultura tradicional do Nordeste a partir de Londrina. O processo de envolvimento inicia-se com a edição do projeto Consertos Matinais da Universidade Estadual de Londrina/UEL, que promoveu um show com Tião Carvalho, em 2000. A partir deste momento torna-se a principal referência para os artistas londrinenses pesquisados. Daniela Fiorucci AlmaBrasil
O Tião é mestre. Você já esteve perto de um mestre? Ele é, né? Ele respira isso. [...] Ele é mandingueiro naquele sentido, sabe, a capoeira que fala, que só mostra o jogo conforme o outro vai pedindo? O Tião é assim. Engraçado que todos estes anos de convívio com o Tião, 2001, quando você fala ‘ah, eu já aprendi o que o Tião tem pra ensinar...’, ele te ensina o ponto que você precisa, não o que ele sabe. Quando você acha que aprendeu, tem mais um ponto. E daí você vai vendo que o conhecimento dele é muito grande, só que se eu não chegar lá eu não vou saber do conhecimento dele, porque ele
só vai ensinar pra mim um pouco a mais do que eu sei. Olha, vou falar uma coisa, no fuá do Retalho... teve dias de sair chorando de alegria do Tião, de pensar ‘será que ele tem consciência’, é uma dúvida que eu tenho, se o Tião tem a consciência do que ele faz, ou se ele faz sem consciência. De mexer com você. De conseguir falar do seu problema sem te expor de jeito nenhum, sabe? E tocar lá fundo, na sua ferida, sem ninguém saber que é de você que ele está falando. Não sei se ele tem esta consciência ou se é espiritualmente, que é soprado no ouvido dele, porque é o tempo todo assim.
José Luiz (Peixe) Arubatá
Tião Carvalho é de fundamental importância, tanto que as pessoas que têm este contato com o Tião criam esta história de ele virar mestre. Ele é uma pessoa muito sábia, vivida, com um talento incrível, e que tem muita facilidade pra trabalhar com as pessoas. Então a importância dele é vital. Uma pela bagagem dele. Então você fala, ‘Tião, que é o lelê?’ ‘Ah, o Lelê é lá do Maranhão’, que ele já conviveu, sabe? E a gente percebe isso porque quando trazíamos ele uma vez por mês, nesta época tinha um menino de Cabo Verde que fazia intercâmbio, o Antônio, e o
Tião perguntou pro Antônio, conta como é Cabo Verde. E o Antônio explicou e falou sobre o funaná, uma manifestação de lá. Tião pegou este funaná, quis aprender o ritmo, falava com o Cabo Verde, quis aprender o ritmo, como era a coisa toda, aprender... E você via o interesse da pessoa, era uma coisa nova, que ele não conhecia. Depois de um tempo, o Tião tava cantando funaná, compondo funaná... Então você vê que a pessoa é aquilo, né? Vive, pesquisa vivendo, é muito legal. Até hoje, sempre que a gente pode, traz ele, é uma pessoa assim...ímpar.
Fernando Goes Alma Brasil
O Tião tem alguma coisa de especial, parece que ele é um mensageiro, designado pra isso, ele veio e plantou uma semente que brota com toda a força e todo vigor. Tem que ter uma coisa na maneira de ser, na maneira de passar, ou é uma delicadeza, ou é um cabedal de conhecimento que joga tudo junto, qual a maneira de ensinar? Que ele ensina você a brincar brincando. Na escola não. A gente quer ensinar a brincar da maneira certa! Ensinando. Sentado. Faz assim, assado. O Tião tem este talento, além de artista. Você não espera tudo isso daquele neguinho, né, e o cara vem...é generoso. De igual pra igual.
Marcelo Pinhatari Vila Cultural Brasil
O Tião Carvalho, por exemplo, é um mestre que a gente valoriza muito. Eu, pelo menos, procuro valorizar muito quando a gente traz ele pra cá, divulgar o trabalho dele como mestre de boi, como músico. 92 93
Como podemos notar é impressionante a admiração e a influência exercida pelo artista maranhense nesse grupo de artistas. No entanto, não chega a ser surpreendente, pois com um pouco mais de atenção podemos perceber que ele contribui com o desencadeamento do processo em Londrina de forma similar ao que já havia feito em São Paulo, no Morro do Querosene, no bairro do Butantã, próximo ao campus da USP. Em meados da década de 1980, Tião Carvalho e o violeiro Paulo Freire, os dois músicos do Teatro Vento Forte, alugam uma casa e vão morar no Morro do Querosene. A casa vira um ponto de encontro e de festas que ultrapassam o espaço interno e ocupam a rua. O bumba meu boi, cacuriá e outras manifestações botaram fogo no Queresone. Segundo Tião: Isso há 21 anos. Então essa coisa com a comunidade foi tendo esse processo, acho que é isso aí, foi um processo muito natural, eu diria até inconsciente, a gente não tinha essa preocupação que a gente tem hoje. A gente não tinha tanta certeza que a gente, colocando instrumento nas mãos das crianças, adolescentes, esse convívio, a música, a arte ia ser tão forte pra gente lidar com toda uma situação de risco, porque o Morro do Querosene nessa época, há vinte e poucos anos atrás, era tido como um dos lugares mais violentos da cidade de São Paulo. Você conhecia o Morro por
questão de violência. Por isso o Morro era conhecido na cidade. E a gente transformou tudo isso, eu, a minha geração transformou tudo isso, através de música, da arte, do bumba meu boi. Mas antes a gente não tinha tanto essa clareza, sabia que era legal, mas essa clareza a gente não tinha, que ia trocar os instrumentos pelas armas. Mandar as armas embora e colocar os instrumentos nas mãos deles. Mas foi isso que aconteceu. Essas mazelas foram se afastando, através dos instrumentos, dos pincéis, da palavra, do aconchego, do carinho, da sinceridade.
Quando Tião vai a Londrina em 2000 já tem um trabalho consolidado. Mais de 14 anos de atividades artísticas no Morro exercitando a habilidade para o trabalho comunitário criativo e o convívio salutar com pessoas de distintos perfis. De imigrantes maranhenses à classe média paulistana universitária. A partir do reconhecimento crescente de suas atuações, ele é convidado para se apresentar no projeto da UEL. Ou seja, é exatamente uma instituição pública
Entrevista concedida em dezembro de 2008.
de cultura que desencadeia o processo. Neste sentido, há, por parte dos jovens artistas de Londrina, um reconhecimento da importância das políticas públicas para garantir o acesso às manifestações artísticas tradicionais do nordeste. A seguir alguns posicionamentos deles sobre o papel do Estado: Daniela Fiorucci AlmaBrasil
Não tem que existir o Estado e o povo, o Estado tem que existir para o povo e vir do povo. (O Estado) Trabalha com dinheiro da população, e a maior parte da população não tem dinheiro, então tem que voltar pra população, e isso já deveria ter voltado há muito tempo atrás. [...] O Estado sempre se voltou muito pouco pra cultura popular, falava, vamos valorizar as artes, mas valorizar o quê? Valorizava outro tipo de arte, teatro como se fazia na Grécia, musica erudita principalmente.
Fernando Goes Alma Brasil
[...] A gente gostou muito do que viveu e quer que as outras pessoas também passem pela mesma coisa, pode ser uma mera... satisfação do ego, né? Mas acho que a cultura popular tem uma função. Acho que alguma coisa aí ela vai mexer, vai tirar, vem com uma vibração boa, legal, uma coisa que a gente tá carente e que de uma maneira... a gente acha também que o poder público trabalha com o dinheiro desta população, né, a gente acha que é uma obrigação do poder público propiciar este momento.
José Luiz (Peixe) Arubatá
Eu acho que... como o Tião, que é de vital importância, eu acho que o poder público também. Porque eu tive acesso a estas manifestações populares através do poder público, através de projetos, da universidade, da Secretaria de Cultura, do Governo do Estado... O meu acesso foi através deles.
Marcelo Pinhatari Vila Cultural Brasil Inúmeros fatores podem acabar com teu trabalho. Por exemplo, uma coisa que está acontecendo agora é o lance da transição política, por exemplo, se a gente pega um político que não vê o trabalho de política cultural com bons olhos, ele pode sabotar este trabalho, entendeu? 94 95
A UEL foi importante por possibilitar grande parte do acesso inicial a esse tipo de arte por meio de seus projetos, inclusive do Festival de Música e por atrair um grande contingente de estudantes que foram e/ou são protagonistas desse movimento. Porém, se a universidade desempenhou tal papel, a prefeitura, por intermédio do Promic, é citada como instituição importante para a consolidação e ampliação das ações.
Marcelo Pinhatari Vila Cultural Brasil
Isto (os vários projetos ligados à cultura tradicional) é uma consequência de uma política cultural muito avançada, tanto que Londrina é uma referência de política cultural pro Brasil inteiro e até no mundo, se você for parar pra pensar.
José Luiz (Peixe) Arubatá
[...] eu tive sorte, de cair, despertar pra cultura popular em Londrina, porque aqui esta política cultural funciona, Secretaria, Universidade, Casa de Cultura, então... acho que o caminho é este, sem este apoio, a coisa não estaria no pé em que está não. Estaria muito aquém.
Daniela Fiorucci AlmaBrasil
Tanto esta onda que a gente viu, todo mundo brincava ciranda, não era só a gente, quanto esta coisa do poder público, acho que tem um momento histórico dentro disso, você vê desde o Ministério se abrindo pra cultura popular de alguma forma, as leis municipais, então acho que é um momento que casa muitas coisas.
Fernando Goes Alma Brasil
Então a gente começou a colocar projetos culturais do Promic, de montagem com ele (Tião Carvalho), pra conviver com ele e trazer ele de volta também, botar ele na área.
Da mesma forma, os mestres, de um modo geral, reconhecem a importância do apoio do poder público, porém ressaltam várias dificuldades e têm uma posição bem crítica sobre a relação que mantiveram e atualmente mantêm com os vários governos com os quais têm se relacionado. Lia de Itamaracá
[...] Tô achando é que (o governo) deve incentivar mais a cultura, ol har mais o lado de quem não tem condições de manter a cultura, que é muito forte e muito boa, e apoiar. Incentivar e ter um capital de giro pra que a pessoa possa se dirigir. Eu mesmo sou uma pessoa que não tem condições de manter este espaço cultural. Compramos, com esforço, junto com Beto, se tem o local porque não ajudarem? [...] Porque eu não tenho mais condições de colocar o meu dinheiro neste espaço cultural. 96 97
Mãe Bete de Oxum, referindo-se ao apoio do Ministério da Cultura para a implantação do telecentro do Ponto de Cultura do qual é coordenadora, afirma que na perspectiva da apropriação das tecnologias e das redes foi e é importante o apoio recebido. No entanto, alerta que agora, apesar de entender que é possível construir muita coisa com o Estado, não quer depender dele, pois não se pode ficar refém dos governos, é preciso criar corpo, na medida em que não se consideram Estado e sim sociedade civil organizada.
Mãe Beth de Oxum Coco de Umbigada
[...] essa coisa do edital é muito bom, por um lado, mas ela vicia por outro. Por exemplo, em relação à música. Tenho discutido aqui com os mestres... É bem da verdade que a gente tem que ter edital, (para o) universo da cultura e da música de raiz. Mas... e acredito muito mais, num estúdio que a gente tem aqui. A gente gravou 10 CDs no ano passado, o Pombo Roxo cantando Zeca do Rolete, um grupo de coco lá do Alto de Moura de Caruaru. Pé quente, Coco de Mazuca, só voz e o ganzazinho. Afoxé, a ciranda de acalanto. A gente cantou nesta perspectiva de entender a dimensão desta música, da memória que a gente carrega, gravar isso. Claro que não com as condições ideais, mas... E eu joguei também, e aí a gente vai ficar refém eternamente dos grandes estúdios? É um mercado tão grande. Quando você vai pra determinados editais, aí tem lá, banca, que vai avaliar o critério (técnico). Por exemplo [...] esse CD aqui não tá esteticamente no nível que este pessoal que faz a avaliação... tá entendendo o gargalo que é isso aí? Mas essa música tem valor estético também, só que em ou-
tro contexto. E a gente vai ficar refém dos grandes estúdios, a música só e boa quando tem esse recorte, tá nesse universo? Porque se for assim, também a gente não vai gravar nada nunca. Nem a nossa memória mesmo a gente vai gravar. Aí você fica refém de edital, agora, aos poucos, três, cinco anos pra cá tem gravado (uns CDs com o pessoal de uma produtora), [...]. Então por um lado é bom, a gente precisa de uma política pública aí que garanta a valorização desta cultura, tem que ter um CD de qualidade, gravado num estúdio, sabe? Que não fique aquela coisa que você não escuta a pegada [...]. E o que a gente pode buscar dentro de casa como memória do futuro, como é que fica? Então é um gargalo aí que eu deixo pra nós refletirmos um pouco. Mas concretamente aqui, depois que a gente recebeu os recursos, a gente montou as oficinas, hoje a gente tem 10 pessoas trabalhando aqui, ganhando salário. Dez, numa crise dessa, a gente tem 10 pessoas aqui segurando a onda, e com a autoestima grande, não é brincadeira. Mudou. E tem que mudar.
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Mestre Humberto do Boi Maracanã (Maracanã/São Luis) indagado sobre qual o papel de uma prefeitura ou governo de estado em relação às manifestações como o bumba meu boi diz que é necessário ter “brio, vergonha” e criar uma secretaria, um ministério de cultura e órgãos de cultura popular.
Mestre Humberto Boi de Maracanã
E o compromisso de fazer, não é ajudar, (que) já parte pra esmola. E apoiar com sinceridade, substancialmente. Eles pensam que pagar o cachê é o suficiente e não é. Eles têm compromisso demais. O turista chega, olha essas brincadeiras bonitas, cada uma no seu estilo, mas todo mundo caprichando. Mas eles deveriam dar apoio, além de um cachê digno. Apoio é criar uma verba. Quanto custa o boi pra sair, 100.000 reais? Olha, 100.000 nós não temos condições, mas temos 80. Pronto! Já era um apoio. E pagar o cachê. O cachê que eles pagam hoje, dois mil e seiscentos reais, custava há
cinco anos atrás, quando o ônibus custava 90 reais, até 60 [...] Hoje eles pagam este cachê e o transporte custa 600 reais, o ônibus! Com a quantidade de ônibus que tem, toda vez fico com débito. Por quê? Porque o que leva todo o dinheiro é o transporte. Ficamos devendo às lojas onde compra a indumentária... e eles (o governo) não têm isso. O papel deles é esse: cria. Eles não criam dinheiro pra roubar? Encher os canecos? Milhões e milhões? Por que não cria esta secretaria, não cria o dinheiro que dá pra manter isso (os bois)? Onde é que tá a cultura do Brasil?
A crítica do Mestre Afonso do Maracatu Leão Coroado também é bastante contundente. Quando questionado sobre o que os governos deveriam fazer pra dar melhores condições dos Maracatus, afirma: Mestre Afonso Maracatu Leão Coroado
Rapaz... a intenção deles (governo) é acabar, não é de preservar, porque se quisesse preservar tinham poder pra preservar e criar em outras coisas. Então querem acabar com o tradicional pra criar o estilizado. E a própria prefeitura aqui hoje que obriga a mudar. Porque se eles mantêm um concurso onde tua agremiação é obrigada a desfilar, se você tá num concurso, é pra ganhar. Aí vem seu coirmão, muda as coisas e é campeão. Você que vem do tradicional perde. Aí você tá na guerra da competição, vai lá e se iguala a ele. Outro que vem atrás
vai querer se igualar a você. E taí... é isso que eles tão fazendo e tá acabando. Você encontra maracatu com timbau, atabaque, até com odalisca. E são os campeões. Então é uma prova de que a Prefeitura quer acabar. A gente achou que não devia participar destes concursos, então tirei o grupo. Eles que são os culpados disso. Não é ninguém não. Tudo que eles fazem, dá aquela jogada pra dizer que deu, que fez, aí o pobre todo se anima com aquilo, só que embaixo tem uma casca de banana que vai te puxar.
Todos esses mestres, com exceção de Mãe Beth de Oxum, têm uma idade mais avançada e uma vivência de luta para manter suas atividades artísticas que permitiram relacionamentos com governos – nos níveis municipal, estadual e federal – de vários matizes ideológicos e em épocas muito distintas. Eles possuem histórias de vida muito diferente das histórias dos jovens de Londrina. Os mestres, de um modo geral, viveram o exercício de seus ofícios transitando em modelos de Estado de caráter patrimonialista (com políticas de dirigismo cultural) e neoliberal (com políticas de liberalismo cultural). Atualmente vivem, no âmbito federal, um modelo de Estado e uma política cultural em gestação. No entanto, nos âmbitos estaduais e municipais eles se relacionam com governos de matrizes ideológicas diferenciadas. Já os jovens de Londrina iniciaram seu envolvimento com a cultura tradicional nordestina no momento em que o Partido dos Trabalhadores assumiu, pela segunda vez, o governo da cidade. O mesmo grupo político é reeleito em 2004 e o PDT, com o apoio do PT no segundo turno, assume a prefeitura em 2008, sem alterar substancialmente a política cultural do município. Ou seja, a relação desses jovens com o Estado, na esfera municipal e federal, é quase que integralmente vinculada à mesma concepção de Estado e política cultural. Um modelo de Estado que propõe a democratização dos processos decisórios, busca justiça social e atua efetivamente no crescimento econômico por meio da distribuição de renda, e que busca implantar um mescla de política de democratização cultural com política da democracia participativa. As diferenças apontadas podem explicar o posicionamento marcadamente mais crítico dos mestres. Quase todos relatam processos de perseguição de agentes do Estado contra as manifestações artísticas que participam.
Mestre Afonso Maracatu Leão Coroado
Você quer ensinar um grupo dentro da comunidade, quer repassar as coisas, tá lá com o vizinho tocando. E quando você vê, para o carro da polícia na tua porta que diz “encerra aí que tá incomodando.
Ver primeiro capítulo. 100 101
O mestre do Boi de Maracanã, depois de discorrer sobre a falta de apoio institucional adequado, alega que apesar das dificuldades continua fazendo boi porque a resistência faz parte da história.
Mestre Humberto Boi de Maracanã
[...] se faz, porque tá no sangue da gente, não tem como não fazer, e é em nome de nossos antepassados que a gente faz. Teve uma época que o boi foi proibido de ir na cidade, de existir. Os grandalhões daquela época, não sei que época, mas existe no arquivo da Secretaria da Cultura um jornal que foi de um jornalista da época, quando o governo, os mandantes, proibiram o boi. Porque era uma ameaça, preconceito.Vinha daqui, se hoje isso aqui ainda rural, e naquela época? Era muito rústico, caboclo de pé no chão, ninguém ia pra cidade calçado, não tinha nem dinheiro pra comprar sapato. Então brincava boi descalço. Pisava mesmo. Eles acabaram com o boi, “negros, sujos, fedorentos, não têm que existir”. Primeiro acabaram com o boi. Passou uns anos e eles ficavam todos os anos, quando chegava na época de São João, todo mundo fica-
va... ‘E aí, vai ter boi?’ ‘Não... não se faz’. Depois resolveram, vamos fazer. Não existia a matraca, a matraca veio como arma. Então vamos fazer e vamos armados, cada um procurou fazer sua matraca. Se eles vierem pra cima da gente agora dizer que o boi não sai nós arrebentamos eles com as nossas matracas. Tá lá no jornal, registrado não sei que século. Tenho uma amiga, Joila Moraes, intelectual dessa área de cultura, trabalhou muito junto, ela que me deu esta informação. Eles voltaram com as matracas, com este propósito de lutar. E ficou até hoje. Depois houve um chefe de polícia que proibiu o boi entrar na cidade. Esse eu ainda alcancei. E depois entrou um prefeito, senador, governador do estado, prefeito, ele proibiu que o boi brincasse no dia depois de São Pedro. Veja bem o quanto era safados!
Mãe Beth de Oxum Coco de Umbigada
A gente tem que mudar esta sociedade que ela tá de bobeira, a gente tem que mudar muita coisa, principalmente no universo da cultura popular de matriz africana, né? Já conviveu com muita intolerância pública, muita intolerância do Estado, da lei inclusive, que proibiu. Então hoje a gente tem que estar inclusive no Estado mesmo,
compartilhando a política pública e dizendo como é que têm que ser as coisas também. Porque essa coisa do compartilhar às vezes está muito distante, né? Essa coisa do Estado compartilhar e tal, mas às vezes fica distante. Se o cara não tiver, por exemplo, a compreensão da religiosidade e da cultura, ele não vai entender certas coisas.
Esta última frase dita por Mãe Beth revela outra preocupação dos mestres com a relação das artes tradicionais e os governos. Muitas pessoas que trabalham nos governos não têm sensibilidade, formação ou boa fé (defendem outros interesses) para entender as muitas dimensões que perpassam tais ma-
nifestações culturais. Nas entrevistas, dois aspectos a esse respeito são bem realçados. O primeiro pode ser identificado nas condicionantes burocráticas que exigem um nível de institucionalização para o apoio governamental. Tais condicionantes na maioria das vezes confrontam a lógica, os interesses e a tradição das artes tradicionais. Isso pode ser, por exemplo, observado na seguinte fala: Mestre Afonso Maracatu Leão Coroado
Queriam tornar os terreiros de candomblé inteiros filantrópicos. Negócio de raiz, tradicional: aquela batalha vem dos teus pais, teus avós, aí cria..., ficaram arretado comigo. E aí, mestre? Meu terreiro não vai não. Porque não? Vai não. Pra eu fazer isso aí vou ter que criar estatuto, fazer assembleia, criar uma diretoria. O diretor do meu terreiro é os orixás! Não sou eu! Eu sou empregado deles. Então quando for fazer um toque, o presiden-
te que vai dizer que tem que fazer, o santo não mais. Faz a assembleia, o pessoal decide que vai tocar naquele dia, aí não vai consultar os orixás nem nada. Ou então, quando fizer reunião, chama Xangô, que é o patrão, pra assinar ata, né? É um meio de acabar. Porque mesmo sendo filantrópico, você tem que declarar, que estar em dia com FGTS, mesmo que não pague nada, se você esqueceu de declarar, ferrou-se, vai ser multado.
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O segundo aspecto se refere à perspectiva de instrumentalização da cultura para as atividades de turismo.
Mestre Humberto Boi de Maracanã
Eles pensam que pagar o cachê é o suficiente e não é. Eles têm compromisso demais. O turista chega, olha essas brincadeiras bonitas, cada uma no seu estilo, mas todo mundo caprichando [...] Que é um problema também, cada dia três apresentações, vai a mesma quantidade de transporte.
Mestre Afonso Maracatu Leão Coroado
Fizeram uma prévia da Noite dos Tambores (Silenciosos) agora aqui em Recife. Aí na segunda-feira eu disse, daqui a pouco vai ter prévia da Sexta-feira Santa, do Natal. É a imposição do rico. Eles não querem ficar ali porque não tem camarote, se tivesse camarote com uísque ficava. Mas não tem. Aí foram, buzinaram no ouvido do Conselho de Cultura, o pessoal da Prefeitura, aí então bora fazer uma prévia pros turistas verem e o pessoal de classe média alta. Foi um sucesso. Cinco horas da tarde, na praça. Aí me ligam, eu falei ‘não vou não’. E não fui não. Mestre! É mil e duzentos e cinquenta reais... Não vou não. Aí começam a me pisar por conta disso, né? Eu não aceito mesmo. Se for pra massacrar a minha cultura e a minha religião hoje eu não aceito. Não vendo mesmo. Vê se tem cabimento isso?
Mãe Beth de Oxum Coco de Umbigada
Quando eu fui assinar, eu vi que o projeto (para ser Ponto de Cultura), não tinha nada a ver. Ela queria que eu fizesse coco na Casa da Cultura, e disse “Tá vendo que não tem sentido você fazer o coco lá no terreiro, lá em Guadalupe, lá em Olinda? O Ministério não vai entender esta dimensão, na Casa da Cultura vem muito gringo, turista, e você vai mostrar o coco e tal”.
Aqui aparecem bem claras as influências da política de liberalismo cultural. A arte tradicional deve ser valorizada com meio de atração turística. Toda dimensão de fé, religiosidade, resistência política contra a histórica opressão, identidade cultural e dos valores simbólicos deve ser reduzida para que prevaleça o espetáculo descontextualizado como produto de entretenimento palatável ao gosto medíocre dos turistas, que, por sua vez, se sentem no direito de usufruir de “um serviço cultural” condizente com seu status de turista. Tudo deve ser bonitinho e confortável para que as fotos e os vídeos possam ser mostrados com satisfação aos familiares e amigos. Cabe frisar que os jovens artistas de Londrina, apesar de desenvolverem suas atividades em um contexto no qual a política cultural é diferenciada, têm consciência destas dificuldades e contradições, seja por meio dos estudos acadêmicos, das viagens que fazem ou pelos contatos que passaram a ter com os mestres. Além disso, Londrina não está, e nem poderia estar, imune às contradições do mundo capitalista e da política
Fernando Goes Alma Brasil
Aqui, a cultura tradicional, ela é por etnia, por guetos. Japoneses, alemães na warta, gaúchos no CTG. E na rua não rolava nada. Pra gente é o principal espaço onde as coisas devem acontecer, e foi aí que a gente procurou usar a política cultural do município pra isso. Porque alguém bancando isso você pode trazer com melhores condições. A gente não poderia trazer Tião Carvalho se alguém não pagasse passagem, hospedagem, alimentação e o preço que ele cobra pra fazer isso. Não é imprescindível, o Estado não é imprescindível nem pra fazer nem pra manter a cultura tradicional, pelo contrário. Aliás, isso é uma coisa que a gente está vivendo agora e vai sofrer as consequências daqui a algum tempo. Faz muito pouco tempo que o Estado começou a bancar as manifestações da cultura popular. Isso é bom por um
lado e ruim por outro, estes dias vi o depoimento de um cara questionando, um kalunga, lá de perto da Chapada dos Veadeiros... O Estado estava começando a chegar na terra deles, com luz, com água, tudo. Então eles tinham a cultura deles independente do Estado, tudo precário, sob o ponto de vista da civilização. Econômico, do branco. A única coisa industrializada que eles tinham dentro da casa era uma lata de azeite. O resto, barro, pedra, pau. Aí... agora, depois de alguns anos, isto estava chegando [...] Agora vi um comentário de um cara na mídia, dizendo que a tiazinha lá do kalunga não estava mais utilizando a erva medicinal, porque ela recebe o Bolsa (família) e vai na farmácia comprar. Não está mais fazendo a farinha, o pão. Quer dizer, no que isso vai dar eu não sei. 104 105
Marcelo Pinhatari Vila Cultural Brasil
Então se você quer participar de um ritual indígena você participa, fazer boi , faz, capoeira, faz. Tudo é coisa de trabalho e verdade, verdade que você tem dentro de ti, se você faz com o coração você faz. E a discussão era essa: ‘Pô, mas vamos trazer uma coisa de fora pra trabalhar num ambiente cultural que não tem nada a ver com isso?’ Eu falava que nós estamos trabalhando elementos de dança, música, que são elementos da cultura brasileira, que as pessoas vão assimilando com o tempo. (O pessoal) batia de frente [...] também, essa coisa do... como era o termo mesmo? Resgate. A gente falava de resgate de cultura popular, eles falavam que não era resgate, que resgate seria trabalhar uma coisa que já estava ali, no União da Vitoria e tal. Então... Isso foi um processo de desgaste do grupo, acabou meio que esvaziando o debate. Marcelo
Os fragmentos dos discursos dos jovens artistas de Londrina e dos mestres de Pernambuco e do Maranhão revelam coincidências sobre o papel do Estado, que são corroboradas pelas várias situações que vivenciamos ao longo de nossa viagem. Todos apontam a necessidade de apoio do Estado às manifestações das artes tradicionais, ainda que seja no sentido de não criar obstáculos ao desenvolvimento do trabalho. A segunda coincidência refere-se às críticas, em geral às formas como os governos têm tratado as manifestações artísticas tradicionais. Ou seja, os jovens e maestros têm a percepção de que a intervenção do Estado tende a inibir a inovação e a diversidade na produção.Os conteúdos e as formas das críticas direcionadas aos governos apontam, a nosso ver, para o modelo de política cultural esboçada no início deste texto: a arte é uma produção social de interesse das pessoas que não deve ser submetida à lógica de mercado. Neste sentido, o acesso à sua produção e ao seu desfrute deve ser democratizado sem privilegiar modelos predeterminados, ou seja, incluindo a arte tradicio-
União da Vitória é um bairro periférico de Londrina, escolhido por várias pessoas ligadas à cultura tradicional para montar uma brincadeira de Bumba Meu Boi.
nal. E mais, as pessoas devem ter o direito de participar das decisões e das atividades, inclusive para garantir a autogestão, sem tutela, dos processos artísticos. Estas são condições fundamentais para o exercício da cidadania cultural, bem como para a potencialização das artes tradicionais para além dos reducionismos verificados nas políticas de dirigismo e liberalismo cultural. Afirmamos anteriormente que cabe ao Estado criar condições, estimular, garantir a participação popular e a autogestão dos processos artísticos. Ah, faltou discutir incorporação das artes tradicionais como objeto de políticas públicas e de que forma elas poderiam provocar perturbações em outros campos das artes. Tudo bem, vamos tratar de alguns assuntos que podem nos ajudar nesta tarefa.
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Autenticidade É necessário considerar que o atu-
al fenômeno urbano de revalorização e ressignificação das artes tradicionais formam parte de um contexto mais amplo que denominamos nova ordem econômica mundial. Na atualidade, acelera-se o processo de globalização econômica que, por sua vez, está relacionado ao desenvolvimento das novas tecnologias e à expansão dos meios de comunicação de massa que propiciam a circulação da informação à uma velocidade jamais antes imaginada. Este processo, como vimos, aparentemente cria, ou melhor, amplia as possibilidades de intercâmbios culturais. Entretanto, isto se assemelha à aparência. Na realidade, o que mais se impoe é uma tentativa de “mundialização” da cultura do consumo. Os interesses do mercado para estabelecer um gosto médio, bastante propício ao consumo de bens culturais produzidos e distribuídos em massa, geram a reação contrária: a valorização das experiências particulares e diferenciadas, da diversidade cultural e daquilo que se aproxima mais ao artesanal. Dialeticamente se intensifica a luta pela proteção do que ainda não foi totalmente alcançado pela
lógica do capital, tanto no que se refere ao mundo natural quanto ao mundo cultural: o ambiente natural menos modificado e as culturas tradicionais. Parece que o atual interesse dos jovens de classe média urbana de Londrina pelas artes tradicionais não é alheio a este contexto. Estes jovens possuem recursos (capital cultural específico) que possibilitam o acesso a algo que é escasso em seus contextos: experiências pessoais e estéticas que estão mais além dos interesses da indústria e dos mercados culturais convencionais de seus grupos sociais.
Estes setores atuam a partir do que Néstor García Canclini defende como culturas híbridas. Segundo o autor, este é um conceito que busca expressar o atual movimento cultural em que se dá uma dissolução das fronteiras entre formas de cultura antes vistas como distintas. Os limites entre a cultura erudita, popular, e de massas, a artesanal e a industrial, a tradicional e a tecnologia de ponta, a que possue uma identidade e a globalizada, tornam-se permeáveis. Neste sentido, a hibridação refere-se ao processo pelo qual uma manifestação cultural, ou fragmentos desta manifestação, desprendem-se de seus contextos AT 109
originais, migram até outros contextos culturais e interatuam com outras manifestações ou fragmentos culturais de origem distintas. A nova combinação de manifestações e fragmentos culturais origina novas práticas culturais. “Uma conseqüência da hibridação é a desterritorialização, fonêmeno onde as expressões culturais se desvinculam de seus espaços e tempos originais e são transplantados em outros espaços e tempos, mantendo aproximadamente as mesmas características iniciais” (COELHO, 1997, p. 125). Quer dizer, desterritorialização é o processo pelo qual Os modos culturais se separam de seus territórios de origem, eventualmente apagam todos os traços distintivos relacionados com um território em particular, e incorporam traços de outros territórios dos quais se propõem representações adequadas (ou ao menos são assim consideradas). Denomina-se desterritorializado tanto o modo cultural que incorpora um território de aportação como o modo cultural assim deslocado (COELHO, 1997, p. 150). Em resumo, a indústria e o mercado cultural, inseridos no processo de globalização, condicionaram o surgimento de culturas híbridas que geram fenômenos de desterritorialização. Grande parte das características de tal fenômeno não é novidade, pelo contrário, é a dinâmica da cultura em si mesma. Não existe cultura sem intercâmbio. A mudança da cultura ocorre por meio dos
intercâmbios culturais. O que hoje chamamos arte tradicional foi, em determinado momento, desterritorializado e recombinado no território brasileiro. Foi inovadora e transgressora em suas origens. Fragmentos da cultura ibérica e africana cruzaram o Atlântico, rearticularam-se e interatuaram com fragmentos da cultura indígena, originando o bumba meu boi do Maranhão. Coroações de reis africanos e portugueses se recombinaram nas origens do maracatu. Danças medievais europeias encontraram, no movimento das ondas do mar de Pernambuco, o pretexto para se transformarem em um belo balé circular que move e ameniza a espera pelos homens que se lançam ao oceano buscando peixes todos os dias: ciranda. Indígenas e negros, provavelmente, em franca sinergia, dançaram juntos desde e por muito tempo, para que muitos de nós possamos “cocar” hoje. Neste sentido, a novidade não é o fenômeno dos intercâmbios culturais na contemporaneidade, se não a forma, o sentido, o volume e a lógica dos intercâmbios culturais na contemporaneidade, redimensionadas pela globalização econômica e pelo desenvolvimento das novas tecnologias de registro e difusão da informação.
Tocar, dançar e cantar Coco.
Como afirma Eric Hobsbawn (1997), a tradição é uma construção social que responde a interesses de determinados grupos em determinados contextos sociais. Nada é autêntico ou tradicional a princípio. São as forças sociais que atribuem o selo de autêntico ou tradicional a determinadas manifestações culturais, e o fazem porque existem interesses em campo. Hobsbawn faz, inclusive, uma im110 111
portante distinção entre costume e tradição, sobretudo as “inventadas”. Para ele, tais tradições são “reações ou situações novas que, ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através de uma repetição quase obrigatória.” A “tradição” neste sentido deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente em sociedades ditas tradicionais. O objetivo e a característica das tradições, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado à que se referem impõem práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume” nas comunidades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, se bem é certo que por exigência deve parecer compatível ou idêntica ao que a precede. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sensação de que o que a precede, de continuidade histórica e direitos conforme o expressado pela história [...]. O “costume” não pode dar-se ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim, nem as sociedades tradicionais (HOBSBAWM, 1997, p.10).
Em geral, os jovens artistas de Londrina e os mestres com o qual temos entrado em contato têm concepções que se aproximam à interpretação sobre a tradição e a autenticidade que acabamos de expor: o tradicional e autêntico cantador de bumba meu boi, por exemplo, é uma inovação (na forma e no conteúdo) das maneiras de atuar dos cantadores indígenas. Com exceção de um dos mestres de Pernambuco que defende de maneira enfática a manutenção das formas de fazer arte tal qual foram sendo herdadas, todos os outros, de uma maneira ou de outra, percebem que existe relação entre a inovação e a preservação e com isto ampliam a diversidade.
Qualquer tentativa artificial de manter nossa arte tradicional imutável está destinada ao fracasso, pois a imutabilidade é a origem da desaparição. As artes tradicionais se manterão vivas, encantadoras e com capacidade de encantar sempre que tenham sentido para os grupos que a mantém. Quando não tenham, desaparecerão ou se transformarão em outras manifestações, como sempre aconteceu. 112 113
Em seus pronunciamentos, todos indi-
cam, com maior ou menor ênfase, que existem muitas disputas de poder, em diferentes esferas, e tomam uma posição. É possível perceber o que querem manter, como e por que querem fazê-lo, e como são construídas as legitimidades daqueles que terão papéis destacados na luta para garantir os aspectos da tradição que desejam manter. Os mestres atuam como um tipo de guardião da tradição e muitos jovens da classe média urbana, dependendo do nível de proximidade que mantém com os mestres e as comunidades tradicionais, consagram-se como tipos de “embaixadores” da cultura tradicional. Por outro lado, os jovens podem oferecer aos mestres o reconhecimento e a valorização dos saberes e costumes que muitas vezes não recebem por parte dos jovens da mesma comunidade tradicional. Assim, terminam por fomentar o comprometimento dos jovens das comunidades tradicionais com as suas tradições. É o processo equivalente ao que ocorre nas relações entre os Pontos de Cultura
estudados, os mestres vinculados a eles e os jovens das comunidades tradicionais. Os Pontos de Cultura, ao valorizar o trabalho dos mestres (de forma equivalente ao que fazem também os jovens de classe média), realizam um processo de legitimação junto aos jovens das comunidades tradicionais que (como no caso dos jovens de classe média) passam a relacionar-se melhor com os mestres. Os processos de legitimação também ocorrem em relação aos governos de esquerda que apoiam as artes tradicionais, cuja gestão passa a ser reconhecida como uma ação democrática que dá prioridade às formas culturais e aos seguimentos sociais que quase sempre foram marginalizados econômica, social e culturalmente. Simultaneamente, o apoio governamental, além de contribuir com seus recursos para financiar as ações, significa o reconhecimento público por parte dos representantes da sociedade, da importância daquele tipo de manifestação. Existem negociações nos intercâmbios de conhecimentos. Aquele que legitima é também legitimado.
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Qualidade artística
Outro aspecto que desejávamos compreender quando inicia-
mos a investigação é a avaliação da qualidade das manifestações artísticas. Nos campos da arte erudita, a qualidade de uma obra de arte geralmente se avalia desde o ponto de vista estético, que a maior parte das vezes se reduz aos aspectos formais. No primeiro capítulo, apresentamos a formulação de Giulio Carlo Argan (1994, p.14) de que a obra de arte é um produto do trabalho humano e de suas técnicas, construído por meio de uma relação entre uma atividade mental e uma atividade operacional cujo valor artístico (ou qualidade artística) se evidencia na forma (coisas possíveis de “se perceber”). Este produto perceptível é considerado uma obra de arte (e uma obra de boa qualidade) quando a pessoa que desfruta a julga como tal. Embora os gostos estéticos possam ser considerados subjetivos, os critérios ou parâmetros incorporados pelos sujeitos que fazem possíveis estes juízos estão historicamente condicionados, ou seja, constroem-se socialmente por meio das relações que as pessoas estabelecem com seu contexto histórico. Assim, os parâmetros para a formulação de juízos estéticos (de qualidade) sobre as obras variam de uma época para outra e de um lugar para outro. Argan, quando discute a função dos críticos e dos historiadores da arte, afirma que o juízo (de valor), além de declarar “que uma determinada obra é uma obra de arte e tem valor artístico” deve situar a obra “no espaço e tempo, coordenando com outras obras com as quais tem uma relação, explicar a situação em que foi produzida e as consequências a que deu lugar.” O autor declara que cada sociedade estabelece os critérios para avaliação e estes geralmente estão vinculados à ideia de verdade. Como a sociedade moderna ocidental está baseada na ciência (a ideia de verdade está hegemonicamente relacionada ao conhecimento científico) e se considera a história a ciência que estuda as ações humanas, o parâmetro de juízo seria a história. Uma obra é vista como obra de arte quando tem importância na história da arte e contribuiu para a
formação e desenvolvimento de uma cultura artística. Enfim: o juízo, que reconhece a qualidade artística de uma obra, reconhece ao mesmo tempo sua historicidade (ARGAN, 1994, p.18-19). 116 117
É interessante que em determinado momento Argan estabelece uma relação entre autenticidade e qualidade. Para ele, a qualidade de uma obra de arte relaciona-se com a sua autenticidade, cuja noção é histórica. Autêntico é antônimo de falso, que “na arte, é uma coisa que passa por ser pelo que não é”. E adiciona que a história da arte “é processo: tudo aquilo que marca o passo e não faz avançar o processo, nem modifica a situação, está isento de autenticidade” (ARGAN, 1994, p. 20). Quer dizer, as obras de arte que não tem influência na história da arte, que não modificam os campos das artes, não são autênticas. É conveniente observar aqui que a concepção de autenticidade é diferente da ideia de autenticidade relacionada com a tradição, abordada anteriormente. Na primeira compreensão (de Argan), a autenticidade está relacionada com a inovação, com aquilo que modifica a situação. E na segunda (de Hobsbawn), a autenticidade está relacionada com a tradição. Ou seja, como vimos anteriormente, está relacionada com a invariabilidade, com a concepção do passado que “impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição”. Para a primeira concepção, autêntico e de qualidade é aquilo que muda, para a segunda é o que se mantém, que se repete. No caso deste estudo, existem manifestações nos dois sentidos. Minoritariamente, em relação aos mestres, está a compreensão de que a “verdadeira” (autêntica e boa) arte tradicional é aquela que mantém as “raízes”, a “origem”. Para os jovens e para a maioria dos mestres deve haver inovação, mas não mudança total. O segundo caso se aproxima mais à
ideia de costume adotada por Hobsbawm. Ou seja, os dados o indicam, no caso da arte tradicional os dois significados são utilizados para certificar a qualidade das manifestações. Neste sentido, o conceito de autenticidade como certificação da qualidade das manifestações artísticas tradicionais não é o mais adequado. Além disso, a discussão proposta por Argan situa-se no contexto da história da arte ocidental, que por sua vez está relacionada com a própria história da constituição dos campos da arte no mundo ocidental, engendrados no processo de especialização do conhecimento desenvolvido pelo capitalismo. A autonomia relativa dos campos artísticos construída no processo histórico permitiu avaliar as obras a partir de parâmetros inerentes aos campos artísticos. As histórias da arte citadas por Argan estão inseridas nas histórias dos campos restritos (eruditos) da arte, tal como discute Bourdieu. É o jogo, as disputas pelos capitais artísticos específicos na perspectiva de eliminar a concorrência (de produtores e de produtos), que levaram ao estabelecimento do formalismo como teoria e como prática artística que volta-se para o interior do campo. Assim, regras e valores intrínsecos aos campos passaram a orientar a avaliação da qualidade artística. Neste sentido, a forma orienta a produção artística e o discurso sobre ela. É uma produção e um discurso para dentro, que dificulta o diálogo da arte com o resto do mundo. Como a arte tradicional se desenvolve em outro contexto, com outra lógica e estrutura de funcio-
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namento, é necessário outro enfoque na discussão da qualidade artística. Neste sentido, propusemos compreender as manifestações artísticas tradicionais a partir da observação do contexto em que surgem. Esta estratégia permite perceber a intrincada rede de significações que correlacionam tais manifestações com a organização social das comunidades a que pertencem. Kabengele Munanga, ao fazer referência aos dilemas metodológicos e às controvérsias sobre a dimensão estética da arte africana, afirma que A abordagem etnológica busca saber o que são os objetos de arte africano para esta sociedade e o que significam. Ou seja, determinar o que estes objetos representam, os símbolos que contêm e os mitos que evocam. Tal
abordagem provoca um sério problema epistemológico. É possivel capturar o significado independentemente das formas e viceversa, seria possível analisar a forma sem considerar o conteúdo? (MUNANGA, 2006, s/p).
Para o autor, a etnoestética surge deste questionamento, dando forma a uma abordagem que estabelece uma “confrontação dialética entre a observação dos objetos em seu contexto cultural e a análise conceitual.” (MUNANGA, 2006, s/p). Essa confrontação que consiste em fazer uso dos dados objetivos e mensuráveis, e estudar os objetos em seu meio, corresponde ao que alguns chamam de mestiçagem cultural ou união. Esta abordagem remete ao que foi, desde então, chamado Antropologia da Arte, cujo objetivo era solucionar a velha oposição entre os defensores do funcionalismo e os defensores do formalismo. De fato, pela adoção de uma demarché contraditória consistindo em examinar o objeto não apenas segundo
os dados culturais do observador, se não também segundo os dados culturais da sociedade estudada, realiza-se de maneira incontestável a contradição entre os que privilegiam o estudo das formas e os que, pelo contrário, tomam partido pelo conteúdo. Esta conciliação é, além disso, a prova de que qualquer estudo da arte das civilizações não ocidentais que se fundamentasse unicamente sobre o funcionamento ou o formalismo não seria adequado (MUNANGA, 2006, s/p).
Em outros termos, os parâmetros para avaliar a qualidade das manifestações como o bumba meu boi, maracatu, ciranda, coco, seja em seus contextos originais ou suas reinvenções urbanas, devem estar relacionados com as múltiplas dimensões da vida nos grupos sociais nos quais se manifestam. Que significam tais expressões culturais para nós, investigadores com determinados saberes e valores estéticos? Por outro lado, o que representam os símbolos que contém e os mitos que evocam no contexto dos grupos que as produzem? Partindo destas questões, como avaliar a qualidade destas expressões artísticas? Parece-nos que a articulação de parâmetros relacionados com as ideias de celebração, prazer, ludicidade (caráter lúdico) e imaginação são mais adequados para avaliar a qualidade deste tipo de produção do que o conceito de autenticidade. 120 121
Fé
E prazer
Neste momento
nos introduziremos um pouco no campo da especulação, porque os dados obtidos estão direcionados a um aspecto que nos parece fundamental: a relação entre fé e prazer, que podem convergir com a ideia da celebração. Inicialmente não havíamos previsto tal aspecto que, portanto, merece uma atenção maior. A religiosidade, a fé, estão presentes no discurso de todos os mestres. Não de maneira periférica, mas central. Tudo indica que a dimensão religiosa se coloca como um importante nó em meio a uma rede que articula e organiza também as dimensões de caráter político, social e econômico. Se considerarmos que o catolicismo português era, por assim dizer, algo profano, dado a festas e celebrações e que teve intercâmbios com manifestações religiosas, indígenas e africanas, de aspecto ainda mais aclamativo, encontraremos formas de sincretismo em que a fé pode ser prazerosa e o prazer sagrado. À diferença do catolicismo mais dogmático e de outras formas de cristianismo, em que a culpa tem um papel destacado, as religiões afro-brasileiras e indígenas possuem um forte sentindo de celebração da vida. Tudo indica que, para os mestres, a conjunção de fé/prazer na tradição religiosa com a que estão envolvidos orienta as brincadeiras (jogos e manifestações artísticas) em que participam: são brincantes de fé. No caso dos jovens artistas de Londrina, tudo indica que o prazer é o guia, ao menos a princípio. Questionados pela razão de seu interesse pelas artes tradicionais, de alguma maneira todos citam o prazer. Depois, muitos acabam relacionando-se com as dimensões religiosas das manifestações artísticas, mas o impulso inicial é o prazer. São interesses por formas de lazer que jamais ha122 123
viam conhecido. Porque existe algo que seduz e encanta. Neste caso, isso também pode ser entendido como um tipo de reação às restritas opções de ocupação do tempo livre oferecidas no mundo atual, que transformam o lazer em entretenimento. Este processo está relacionado ao desenvolvimento das sociedades industriais que passaram a reconhecer o lazer como valor social que outorga ao indivíduo o direito à desfrutar de um período de tempo conforme a sua vontade. Este tempo livre está garantido depois do cumprimento das obrigações. É um tempo livre ocupado com atividades que propiciam o descanso e o divertimento. No entanto, a partir da década dos 1950, o lazer passa a ser questionado na medida em que o mercado se organiza para transformá-lo em um aspecto da atividade econômica que busca fundamentalmente a obtenção de lucros. [...] colocando fortemente em cheque o caráter ou a possibilidade liberatória que essa atividade [o lazer] devia ter. A indústria cultural, a sociedade do espetáculo, a globalização, [...] deram às atividades de lazer uma face extremamente padronizada e superficial
que levou a críticas incisivas sobre a possibilidade real de apresentarem-se essas atividades como alternativas eficazes à esfera das obrigações quase sempre alienadas e alienantes em que o indivíduo circula na maior parte do tempo (COELHO, 1997, p. 127-129).
Deste modo, o desenvolvimento artístico de jovens de classe média urbana, concebido como opção de complementação cultural na ocupação do tempo livre passa a sofrer os efeitos da mercantilização do lazer, deixando de se constituir como alternativa às obrigações alienadas e alienantes. A participação em movimentos de recriação da arte tradicional cria novos espaços de sociabilidade, ampliando as possibilidades de ocupação do tempo livre, criando condições de participação em atividades artísticas que provocam o questionamento, a reflexão, oportunizando a apropriação de um capital cultural para esses grupos. Ou seja, propiciando “às pessoas aquilo que o lazer visava conquistar: uma libertação do tédio cotidiano que nasce das tarefas repetitivas, das rotinas e dos estereótipos, permitindo-lhes o acesso à dimensão do imaginário e daquilo que é normalmente interditado pela sociedade ou pelo
Ver Ferreira (2005).
grupo” (COELHO, 1997, p. 127-129). As artes tradicionais acabam, assim, cumprindo uma função libertária em relação à indústria cultural e de entretenimento, cujas opções são, na maioria das vezes, conformistas e alienantes. Segundo Maria Celeste Mira, muitos jovens de classe média urbana, a partir do envolvimento com a arte tradicional, passam a ter uma maior preocupação ambiental, a reavaliar seus padrões de consumo e a desenvol-
ver modos de religiosidade diferentes dos de sua família, com destaque para aqueles vinculados ao candomblé. No caso dos jovens de Londrina, todos passam a ter uma relação com o candomblé. Em relação ao grupo LATA, em seu processo de transformação em Grupo de Maracatu Semente de Angola, há inclusive um ritual de batismo que segue as tradições do candomblé com situações impactantes para os padrões dos jovens de classe media urbana.
Ver Mira (2009, p. 592). 124 125
INC
INCONCLUSÕES Compreendemos que, mesmo que experiências como o Promic/Vilas Culturais em Londrina e o Programa Cultura Viva/Pontos de Cultura no âmbito federal hajam convergido em uma concepção de política cultural, constituindo um avanço considerável, são modelos em processo de maturação que vão exigir ajustes sistemáticos e constantes para consolidar-se como uma política cultural adequada às manifestações artísticas de tradição oral e para os jovens das cidades que também desejam e têm o direito de encantar-se com as manifestações artísticas de tradição oral.
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pós-difícil Depois de uma viagem
tão fascinante, de encontros para lá de encantadores, fica difícil colocar um ponto final. Mesmo porque há muita água para passar por debaixo da ponte no que se refere à formulação e à implantação de políticas públicas para as artes tradicionais e para os grupos urbanos nelas referenciados. Um dos grandes desafios é a construção coletiva de indicadores que possibilitem em boa avaliação de programas e projetos voltados para tais atividades. Não temos dúvidas que a construção destes instrumentos de avaliação tem que estar em conformidade com as especificidades deste tipo de produção artística. O processo de avaliação para qualificar as políticas públicas para as manifestações artísticas de tradição oral e para os grupos urbanos recriadores deve ser estruturado com urgência e determinação para evitar os inúmeros equívocos verificados ao longo
da história das políticas públicas implantadas pelo Estado brasileiro. Principalmente porque entendemos que as relações entre Estado e os grupos de jovens da classe média urbana, “recriadores” das manifestações da arte tradicional podem e devem auxiliar na consolidação e divulgação da riqueza e da complexidade da produção artística tradicional para um público mais amplo. Deve contribuir para valorizar o sentido dessa produção artística, não como algo congelado no tempo, fossilizado ou como um conjunto de elementos dispersos a serem coletados descontextualizadamente e usados pelos demais campos da arte, e sim como dimensão viva, dinâmica e contraditória, como manifestação estética e forma de expressão das complexas redes simbólicas vinculadas aos modos de vida destas comunidades. Ainda como resultado e motor de nossa mestiçagem, capaz de impactar de forma tão decisiva esta gama enorme de manifestações artísticas atuais.
AT 129
Há mar aracatu abá Há Mandacaru maracatu, abá Maracatuaba Amar aracatu abá Amar maracatu Amar Mandacaru Amar
Referências bibliográficas
fotografias Capa - Esconde-esconde. Crianças brincando no Centro de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira (Juréia). Barra do Ribeira-Iguape (São Paulo). Janeiro de 2009. Foto de Lucas Kiler. Pg. 2 - Criança da Aldeia Nova durante a Festa da Batata. Ponto de Cultura Cultura Viva Timbira. Aldeia Nova/etnia krahô (Tocantins), maio de 2009. Foto de Lucas Kiler. Pg. 3 - Vermelho. Criança na Festa da Batata. Ponto de Cultura Cultura Viva Timbira. Aldeia Nova/etnia krahô (Tocantins), maio de 2009. Foto de Lucas Kiler. Pg. 4 - Sitio com obras de Mãe Romana. Natividade (Tocantins), julho de 2009. Foto de Kennedy Piau. Pg. 5 - Ruína de igreja. Natividade (Tocantins), julho de 2009. Foto de Kennedy Piau.
Pg. 7 - Brincantes da festa do Bumba-meu-boi. São Luis do Maranhão (Maranhão), junho de 2009. Foto de Kennedy Piau. Pgs. 8 e 9 - Preparação para um cortejo da festa do Bumba-meu-boi. São Luis do Maranhão (Maranhão), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pgs. 10 e 11 - Ao sol, a sóis, una duna, una Bruna: Lençóis. Lençóis Maranhenses/ Atins (Maranhão), Julho de 2009. Foto de Kennedy Piau. Pg. 12 - Inicio da viagem, agora motorizados. Bauru (São Paulo), Janeiro de 2009. Foto de Eric Tristão Schmitt. Pg. 13 - Acima: Hospedados por novos amigos comprometidos com as causas indígenas. Carolina (Maranhão), maio de 2009. Arquivo do Projeto Tateio, tá? Abaixo: Momento de descanso e de degustação na Praia de Boa
Viagem. Recife (Pernambuco), junho de 2009. Foto de Kennedy Piau. Pg. 15 - Caixeiras do Divino no Ponto de Cultura Tambores do Maranhão. São Luis (Maranhão), junho de 2009. Foto de Kennedy Piau. Pg. 16 - Mãe Beth de Oxum no Ponto de Cultura Núcleo de Memória e Produção Popular Coco de Umbigada. Olinda (Pernambuco), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pg. 18 - Centro de Iguape. Sede do município onde está localizado o Centro de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janeiro de 2009. Foto de Lucas Kiler. Pg. 20 - Grupo Baque de Maracatu Mandacaru atuando no 6º Concurso de Grupos de Percussão de Barcelona. Barcelona (Espanha), julho de 2011. Foto de Kennedy Piau.
Pg. 22 - Mestres e aprendiz da cultura tradicional do Marajó no Ponto de Cultura Música e Artesanato Marajoara/Museu
Pg. 30 - Calunga, a boneca sagrada do Maracatu Nação, na apresentação do Maracatu Leão Coroado no Encontro Nacional
do Marajó (também chamado de Ponto de Cultura Giovanni Gallo). Cachoeira do Arari – Ilha de Marajó (Pará), Julho de 2009. Foto de Kennedy Piau.
de Pontos de Cultura. Fortaleza (Ceará), abril de 2010. Fotos de Kennedy Piau.
Pg. 23 - Os meios de transporte alternativos e as condições particulares de tráfego. Lençóis Maranhenses entre Atins e Barreirinhas (Maranhão), Julho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pg. 24 - Carimbó, música e dança em Salva Terra. Ilha de Marajó (Pará), julho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pg. 25 - Tambor de Crioula no Encontro Nacional de Pontos de Cultura. Fortaleza (Ceará), abril de 2010. Foto de Kennedy Piau. Pg. 26 - Ambientação da Vila Cultural Alma Brasil. Londrina (Paraná), dezembro de 2010. Foto de Kennedy Piau.. Pg. 28 e 29 - Apresentações de várias manifestações das culturas tradicionais no Encontro Nacional de Pontos de Cultura. Fortaleza (Ceará), abril de 2010. Fotos de Kennedy Piau.
Pg. 32 e 33 - Tambor de Crioula no Encontro Nacional de Pontos de Cultura. Fortaleza (Ceará), abril de 2010. Foto de Kennedy Piau.
equivalente ao Candomblé. Celebração de batizado do Boi e celebração pra Xangô. Ponto de Cultura Tambores do Maranhão. São Luis (Maranhão), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pg. 44 - A capital do Maranhão em época de festas juninas. São Luis (Maranhão), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.
Pg. 35 - Cazumbá, personagem do Bumba-meu-boi de sotaque Pindaré ou de Baixada. Ele é fusão entre humano e o animal e o feminino e o masculino. Ser do universo do lúdico e da magia. São Luis do Maranhão (Maranhão), junho de 2009. Foto de Kennedy Piau.
Pg. 45. Brincante do Boi de Maracanã às onze da manhã. O inicio da brincadeira (dança) foi às vinte três horas do dia anterior. Maracanã, São Luis (Maranhão), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.
Pg. 36 - Danças Portuguesas, uma das manifestações da arte popular presente nas festas juninas do Maranhão. São Luis (Maranhão), junho de 2009. Foto de Kennedy Piau.
Pg. 48 e 49 – Pátio do Ponto de Cultura Coco de Umbigada, onde são realizadas oficinas de percussão e dança. Olinda (Pernambuco), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.
Pg. 38 e 39 - Idem
Pg. 50 e 51 - Cavalo Marinho, folguedo da cultura tradicional da zona da mata de Pernambuco no Ponto de Cultura Estrela de Lia. Itamaracá (Pernambuco), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.
Pg. 40 e 41 - Ritual de batizado do Boi, Boi de Maracanã, sotaque de Matraca ou da Ilha, em Maracanã, bairro na zona rural. São Luis (Maranhão), junho de 2009. Fotos de Kennedy Piau. Pg. 43 - Tambor de Minas, manifestação
Pg. 52 e 53 – Passeando de barco em um dos muitos momentos de lazer e 132 133
prazer. Praia próxima a São Luis. São Luis (Maranhão), julho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pg. 54 - Encontro de Folias de Reis em Brasília (Distrito Federal), março de 2009. Foto de Lucas Kiler.
Pg. 69 - Doroty Marques ensaiando as crianças no Ponto de Cultura Cavaleiro de Jorge. São Jorge /Alto Paraíso (Goiás), abril de 2009. Fotos de Camila Pierobon. Pg. 76 - O carro como um hotel na beira da praia. Soure/Ilha de Marajó (Pará), julho de 2009. Fotos de Kennedy Piau.
de Bumba-meu-boi na Vila Cultural Alma Brasil. Londrina (Paraná), outubro de 2011. Foto de Kennedy Piau. Pg.91 - Fernando Goes e Tião Carvalho em apresentação no Projeto Quizomba. Londrina (Paraná), dezembro de 2005. Foto de arquivo do Projeto Quizomba.
Pg. 56 - Idem. Pg. 59 - Ibidem. Pg. 60 e 61 - Pintura corporal nas crianças. Preparação para mais um dia da Festa da Batata. Aldeia Nova/ etnia krahô (Tocantins), maio de 2009. Fotos de Lucas Kiler. Pg. 62 e 63 - Apostando corrida no pátio da aldeia. Festa da Batata. Aldeia Nova/etnia krahô (Tocantins), maio de 2009. Fotos de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pg.64 - Demonstração sobre Coco no Ponto de Cultura Coco de Umbigada. Olinda (Pernambuco), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.
Pg. 77 - Caminhando nas dunas de Atins. Lençóis Maranhenses (Maranhão), Julho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo. Pg.78 - Maracatu Semente de Angola em Festa de Erê no Ilê Axé Ogum Mêge/ Mãe Mukumby. Londrina (Paraná), outubro de 2011. Foto de Kennedy Piau. Pg.80 - Apresentação do espetáculo Santeria no Projeto Quizomba: o samba e outros batuques. Londrina (Paraná), dezembro de 2007. Foto do arquivo do Projeto Quizomba. Pg. Idem
Pg.94 - Grupo de Maracatu de Lerroville, distrito de Londrina. Grupo estruturado por Danilo, jovem estudante de medicina da UEL, oriundo de Recife. Londrina (Paraná), dezembro de 2005. Foto de arquivo do Projeto Quizomba. Pg. 95 - Lia de Itamaracá em entrevista no Ponto de Cultura Estrela de Lia. Itamaracá (Pernambuco), fevereiro de 2010. Foto de Milene Moura. Pg.97 - Idem página 16. Pg.101 - Mestre Afonso concedendo entrevista no Ponto de Cultura Maracatu Leão Coroado. Olinda (Pernambuco), fevereiro de 2010. Foto de Milene Moura.
Pg. 65 - Almoço no Mercado Municipal da Madalena. Recife (Pernambuco), junho de 2009. Foto de Bruna Muriel Huertas Fuscaldo.
Pg.86 e 87 - Roda Saia. Oficina de danças tradicionais, ministrada por Tião Carvalho na Vila Cultural Alma Brasil. Londrina (Paraná), outubro de 2011. Foto de Kennedy Piau.
Pg. 102 - Mestre Humberto de Maracanã no ritual de batizado do Boi, em Maracanã/Luis (Maranhão), junho de 2009. Fotos de Kennedy Piau.
Pg.66-77 - Desenhos de Flávia Mielnik.
Pg.88 e 89 - Tião Carvalho em apresentação
Pg. 105 - Grupo de Bumba-meu-boi Anjo
da Guarda de Maringá em apresentação na Vila Cultural Alma Brasil. Londrina (Paraná), outubro de
Grupo L.A.T.A e do Grupo de Maracatu Semente de Angola. Ministrando oficina de percussão na Vila Cultural Alma
2011. Fotos de Kennedy Piau.
Brasil. Londrina (Paraná), abril de 2010. Foto de acervo do Projeto Tateio, tá?
Pg. 106 - Contemplando a Festa de Erê no Ilê Axé Ogum Mêge de Mãe Mukumby. Londrina (Paraná), outubro de 2011. Foto de Kennedy Piau. Pg. 108 - A classe média urbana na cultura tradicional. Oficina de Maracatu de Baque Virado na Vila Cultural Alma Brasil. Londrina (Paraná), dezembro de 2010. Foto de Kennedy Piau. Pg. 109 - Festival de Cultura Popular na Vila Cultura Alma Brasil. Londrina (Paraná), outubro de 2011. Fotos de Kennedy Piau. Pg. 110 - Grupo L.A.T.A. em apresentação no Projeto Quizomba, na Vila Cultural Usina Cultural. Londrina (Paraná), novembro de 2006. Foto de Kennedy Piau. Pg. 111 - Samba de Roda no Projeto Quizomba, em Comemoração ao Dia da Consciência Negra, na Usina Cultural. Londrina (Paraná), novembro de 2005. Foto de Kennedy Piau. Pg. 112. Edgar de Abreu e Mauricio Werner, coordenadores, respectivamente do
Pg. 114 - Oferendas feitas para o batizado do Grupo de Maracatu Semente de Angola. Ilê Axé Ogum Mêge/Mãe Mukumby. Londrina (Paraná), dezembro de 2010. Foto de Kennedy Piau. Pg. 117 - Apresentação do espetáculo Santeria no Projeto Quizomba. Londrina (Paraná), dezembro de 2007. Foto de arquivo do Projeto Quizomba. Pg. 119 - Detalhe da ambientação da Casa de Cultura Cavaleiros de Jorge/ Ponto de Cultura Cavaleiro de Jorge. São Jorge /Alto Paraíso (Goiás), abril de 2009. Fotos de Lucas Kiler. Pg. 120 - Oferendas feitas para o batizado do Grupo de Maracatu Semente de Angola. Ilê Axé Ogum Mêge/Mãe Mukumby. Londrina (Paraná), dezembro de 2010. Foto de Kennedy Piau. Pg. 121 - Jovens de classe média no Projeto Quizomba: o samba e outros batuques. Londrina (Paraná), dezembro de 2007. Foto de arquivo do Projeto Quizomba.
Pg. 122 - Instrumentos consagrados no batismo do Grupo de Maracatu Semente de Angola no Ilê Axé Ogum Mêge/Mãe Mukumby. Londrina (Paraná), dezembro de 2010. Foto de Kennedy Piau. Pg. 123 - No samba de Roda. Projeto Quizomba. Londrina (Paraná), novembro de 2005. Foto de Kennedy Piau. Pg. 124 - Jovens com Mãe Mukumby, participando do batizado do Grupo de Maracatu Semente de Angola, no Ilê Axé Ogum Mêge. Londrina (Paraná), dezembro de 2010. Foto de Kennedy Piau. Pg. 126 - Moenda de mandioca para a feitura de farinha em Grajauna, região da Estação Ecológica da Juréia-Atins. Visita com membros do Centro de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira. Juréia (São Paulo), Janeiro de 2009. Fotos de Camila Pierobon. Pg. Idem página 18. Pg. 128 - Final de tarde nos Lençóis. Lençóis Maranhenses/ Atins (Maranhão), Julho de 2009. Foto de Kennedy Piau. Pg. 136 - Fiorela, Camila, Piau e Lucas, travessia de balsa na Barra do Ribeira, rumo ao primeiro ponto da viagem. Iguape (São Paulo), Janeiro de 2009. 134 135
Foto de arquivo do Projeto Tateio, tá? Pg. 137 - (Esquerda) Bruna Muriel no Carnaval no Carnaval de rua. São Luiz do Paraitinga (São Paulo), fevereiro de 2009. Foto de Lucas Kiler. Pg. 137 - Camila Pierobon com crianças do Centro de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janeiro de 2009. Fotos de Lucas Kiler. Pg. 140. Fiorela Bugatti no Centro de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janeiro de 2009. Fotos de Camila Pierobon. Pg. 141 - Lucas Kiler gravando entrevista no Centro de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janeiro de 2009. Fotos de Camila Pierobon. Pg. 144 - Idem página 2 Pg. 146 - Idem capa. Pg. 147 - Tecendo a rede para a lida. Barra do Ribeira. Iguape (São Paulo), Janeiro de 2009. Fotos de Kennedy Piau.
ilustrações Todas por Flavia Mielnik
textos Kennedy Piau: pg. 31 (Artes tradicionais... Vale a pena?); O pg. 37 – 48 (Estado/ Sobre a arte e o Campo da Arte); pg. 55 (Sobre o apoio público às artes tradicionais); pg. 62 (Resumindo...); pg. 66 (Como Fizemos); pg. 80 –127 (Política Cultural em Londrina/ Pós-Difícil); pg. 129 (Poema); Bruna Muriel Huertas Fuscaldo: pgs. 27, 35, 53, 65,79 (Crônicas) Camila Pierobon: pg.138 (Uma Noite na Chapada) Fiorela Bugatti: pg. 140 (Museu Vivo do Fandango) Lucas Kiler: Pg. 142 (Londrina e o inicio da viagem)
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IMPRESSÕES E APRESENTAÇÕES DOS CAÇADORES DE ENCANTOS Kennedy Piau Sou um que, mesmo depois dos 40, como diz a Ana Joaquim - via Alice Ruiz - ainda anda com o coração na cabeça. Nas horas vagas professo, confesso. Professo porque sou bobo, porque acredito na resistência da simples bondade e no cultivar da teimosia da decência. Acredito no claricelispectar da existência. Sou contraditório, ambíguo, seguro e inseguro, ágil e lerdo, desorganizado e ordenado, misterioso e transparente, vago e preciso, geminiano de 31 de maio. Sou mineiro, acredito nos Santos: o Dumont, por insistir em voar, e o Milton, pelo humanismo. Professo na UEL porque gosto de professar, principalmente sobre arte. Aprendo com o professar dos estudantes. Como professam! Sou um dos que quer um mundo diferente e tenta, às vezes sem saber direito, mudá-lo, muito mais por paixão e indignação do que por obrigação militante. Sou daqueles que gosta de navarandaolhar. Gosto da arte que instiga os desejos, a sensibilidade e a inteligência. Gosto de sentir e entender. Creio que educação rima com desejo e curiosidade. Mas, também, tem que rimar com ética e dignidade. Sou um aprendiz que diz: me encante!
BRUNA MURIEL HUERTAS
CAMILA PIEROBON
Nasceu na megalópole paulista, mas cresceu em uma ilha, bela. Virou pé vermelho, retornou à Espanha ancestral, aportou no Pará dos irmãos. Cursou Ciências Sociais, abandonou jornalismo, dissertou sobre as Relações Internacionais. Teve que atravessar Gibraltar para ir lá, pisar o chão da Marrocos materna. Dançou e pesquisou o carimbó e depois adentrou, investigando, analisando, saboreando e vivenciando aquilo que “ faz do Brasil, Brasis”. Em um caos ordenado apenas pela intuição, vai do micro ao macro ao micro... Retornando ao macro. É ChucKuy entre os craré dos Krahó. Percorreu a Venezuela, a Colômbia, o Equador, o Peru, a Bolívia... E optou por doutorar sobre a América Latina. Buscando, talvez, entender um pouco mais esta identidade fluida, de múltipla cidadania, caiçara/cigana, brasileira/latina/cosmopolita que traz em si. Segue (tal qual a descreveu seu pai, duas décadas atrás) “letra, na busca da forma (...)” . Forma esta que não chega, tal qual “camiño que no hay”... E por aí vai...
(Esta crônica é dedicada a Camila, minha melhor amiga, e ela saberá que é uma pequena homenagem a ela - Antônio Edmilson Martins Rodrigues) É encantadora e feliz. Anda de um jeito que faz inveja. A leveza de seu andar revela a vida despojada e livre. A alegria estampada no seu rosto indica que possui um extremo gosto pela vida. Tudo isso combinado faz com que todos se apaixonem por ela, por seu sorriso franco e aberto, que cativa porque se anuncia pelo cantinho de sua boca. Por vezes, essa paixão foi traduzida por controles e limitações que a desencantaram e a fizeram triste. 138 139
Vi suas lágrimas um dia e desejei nunca ter vivido aquele momento. Mas isso por muito pouco tempo, pois a vontade de viver, sua dignidade e a força de ser livre a deixaram novamente encantadora e feliz, mostrando que ela sabia se defender dos pobres de espírito. Eu cá comigo a admiro ainda mais, em especial quando ela exerce o seu direito de ser livre.
Erraram, e o que os visitantes quiseram foi a banda de reggae seguido de uma rave no meio do cerrado. Lucas e eu iríamos as duas, claro. Passei na casa em que estava hospedada para escrever uma das longas mensagens de celular que foram enviadas naquela noite, Lucas entra no quarto e me convida insistentemente a conhecer o bar que ele encontrara. Eu, com a grosseria que nunca me falta, respondi:
Uma noite na chapada
-Já vou moleque, espera um pouco.
Não lembro exatamente o dia, lembro-me apenas que era um fim de semana de feriado prolongado. Carros transitavam pelas ruas da vila de São Jorge/chapada dos veadeiros-GO. Nas trilhas, penetravam turistas ávidos a consumir quatro dias d’uma natureza de incrível beleza e fragilidade. Pousadas que, construídas com a compra barata dos terrenos antes pertencentes aos garimpeiros, convidavam o dinheiro dos brasilienses a encherem o bolso dos donos que moram em outras localidades.
Ele disse-me para procurá-lo onde estivesse o som, e apenas estas palavras bastaram para que eu pudesse encontrá-lo.
Era sábado e a vida calma dos mais de vinte dias que estávamos naquela vila incomodava quem não suportavam mais a convivência consigo mesmo. Nós esperávamos aquele fim de semana como se fosse a salvação de algo que nem sabíamos o que era, mas esperávamos. A ideia era ficarmos o início da noite na Casa de Cultura, dançando músicas brasileiras típicas de bares que querem agradar os turistas que se dizem amantes da cultura nacional.
Demoro uns dez minutos e quando começo a me situar, ainda do lado de fora, vejo pela janela o Lucas dançando com os olhos fechados na sala de uma casa onde fora montada a pista de dança. Entro e percebo as paredes cor-de-rosa desbotado, não sei se pelo tempo ou pela qualidade da tinta; a luz não era suficientemente clara para inibir aqueles que sentem vergonha em dançar em público nem escura a ponto de possibilitar contatos mais ofegantes entre os adolescentes. Nas noites de festa, retiram-se os sofás, colocam-se as mesas de lado e enchem a geladeira com bebidas a serem vendidas durante a noite. Tentou-se um balcão para apoiarem os cotovelos. Na porta do banheiro uma cortina feita de miçangas azuis e no chão um mosaico colorido que desenhava uma
flor, o rosa na parede continuava.
gumas pessoas nos observavam de canto de olho.
Na porta, em que se dá o trânsito entre a sala e o interior da casa, uma senhora de blusa branca, saia azul, coque despenteado e pés descalços. Certamente era a proprietária.
Terminou a apresentação, e, ao mesmo tempo em que os adolescentes gritavam pedindo a volta da música, aparece uma senhora bem velhinha que carregava um cestinho de palha, como aqueles que existem nas igrejas católicas para os devotos doarem dinheiro, recolhendo o mísero pagamento do músico.
À frente da sala estava o músico com seu teclado e o microfone. Um sujeito simples, mas aclamado pelo público a cada música. O repertório, pouco variado, trazia em ritmo de forró músicas como “créu”, “cada um no seu quadrado” e outras da mesma categoria, todas interpretadas por “Robinho dos Teclados”. Os adolescentes, com a energia que lhes são características, pulavam e gritavam com suas roupas justas, curtas e de cores vivas; nos pés, vestiam sandálias pretas com fivelas douradas, como aquelas vistas nas prateleiras de brechó ou as encontradas entre as poças depois da madrugada. Os dedos, sempre com esmaltes cintilantes, saiam e abraçavam as palmilhas chegando quase a tocar o chão, sobra sempre sandália no calcanhar. Em seguida começavam as músicas românticas. Lucas e eu decidimos tirar um par para dançar. Ele tirou uma garota de estatura baixa, um pouco inchada, não chegava a ser gorda, pele queimada de sol, cabelo escuro preso e laranjado nas pontas. Eu tirei um rapaz alto, bem moreno, corpo desenvolto e cheiro forte de suor. No fim da primeira música romântico-cafona nossos pares nos soltaram, a impressão que deu foi que estávamos infringindo alguma regra, éramos os únicos turistas, e al-
Volta a música, agora um techno-brega daqueles que ficam gravado no teclado, e os adolescentes cantavam gritando e pulavam incansavelmente. Ficamos em dúvida se a aclamação era mesmo para o Robinho ou apenas para a música. Dançamos o rit do momento “não vale mais chorar por ele, ele jamais te amou...” Caminhamos para a rave.”
FIORELA BUGATTI Nasci em um Porto de adjetivo Alegre. Era o início dos anos 80. Inicinho mesmo: segundo dia do primeiro ano da então nova década. Foi ancorada nesse porto de rio chamado Guaíba que vivi boa parte da minha vida. Um tanto pela conjuntura (um namoro acabado e uma faculdade de história concluída) e outro tanto pela vontade plantada em mim desde pequena de “ampliar horizontes” - grande Seu Marconi! - resolvi cruzar oceanos e conhecer outros portos. O ano era 2004. Parti em busca. De paisagens, experiências, pessoas, mas principalmente, em busca de mim mesma. Fui para bem longe. Primeiro Itália e depois Espanha. Durante 140 141
todo esse tempo acumulei bons e verdadeiros amigos, o grande amor, algumas línguas, umas tantas histórias para contar e um (quase) mestrado em gestão do patrimônio cultural. Foi o encontro com um peixe pequeno de nome Piau e seu convite para mergulhar por esse Brasil se encantando com a cultura popular que me trouxeram de volta. Sou a seta na reta, direta. Prezo por sinceridade, integridade e respeito. Tudo o que foi, tudo o que já não é e tudo o que está por vir a ser.
Museu vivo do Fandango Iguape, litoral sul de São Paulo, Brasil. Região de praias, mangue, vegetação de restinga e muita Mata Atlântica. Fusão do índio com o português e, em menor medida, com o negro que se evidencia no cultivo da mandioca, na arquitetura colonial das ruas do centro histórico, na produção de cestaria, no uso do pilão e na confecção de instrumentos musicais. Elementos que compõem um modo de viver baseado na agricultura e pesca de subsistência e no artesanato. Uma das principais formas de expressão cultural dessa região é o fandango, manifestação de música e dança que tem sua origem nos mutirões organizados entre os vizinhos para o trabalho na roça ou na construção de casas. O baile de fandango era oferecido como forma de pagamento pelo serviço prestado. Música e dança como elementos indissociáveis de um modo de viver em comunidade. Foram as transformações decorrentes do crescimento urbano
e das alterações no estilo de vida que fizeram com que o fandango de certa forma perdesse sua força, sendo mantido apenas por algumas famílias e grupos que ficaram à margem desse processo. De uns anos para cá, diversas iniciativas levadas à cabo por associações de moradores, universidades,
artistas, poder local e governo federal vêm sendo realizadas com o objetivo de registrar, preservar e difundir o fandango enquanto forma de manifestação artística, identidade e memória. A criação em 2005 do Museu Vivo do Fandango faz parte desse movimento. Idealizado pela Associação Caburé em conjunto com uma série de lideranças locais, o Museu se estende na faixa litorânea que vai do norte do Paraná ao sul de São Paulo - Morretes, Paranaguá, Guaraqueçaba, Cananéia e Iguape – área onde se concentra a tradição fandangueira. Como o próprio nome diz, a vontade nasce da ideia de se criar um museu vivo, que tem o território como sede, os saberes e memórias como coleção e a própria comunidade como sujeitos do processo de documentação e transmissão do seu patrimônio. Cada uma das localidades que compõe a rede do Museu Vivo tem uma maneira particular de fazer fandango – certo modo de tocar a rabeca, de denominar a viola, de entoar a voz. Aqui na Barra do Ribeira, em Iguape, conhecemos o Cleiton do Prado Carneiro - menino mestre construtor de rabeca – membro ativo do Museu e importante figura que trabalha pela difusão e afirmação do fandango e da identidade caiçara como um todo.
LUCAS KILER Nasci em Cordeirópolis, cidade de nome curioso, numa noite de quinta-feira de outubro. Filho
único, de uma mineira que veio cedo pro interior de São Paulo e de um dos gêmeos que tocavam na banda da cidade. Na infância, brinquei muito. Sozinho, com primos e na rua de casa. Na adolescência, fiz música. No colegial, um intercâmbio. Na faculdade, artes em Londrina, onde descobri a paixão por fotografia, por vídeo, a paixão pelo invisível. Fiz amigos diversos que guardo até hoje. Já trabalhei em locadora, aula de inglês, monitoria, com edição, com fotografia, assistência de direção. Já tive amor platônico e também internético. Já tive amor eterno e paixões diárias. Várias 142 143
caras, vários nomes, vários quases. Tenho sobrenome Kiler, mas tenho Silva também. Às vezes quieto, me calo. Coletivamente paciente, individualmente complicado. Acredito com curiosidade. Desacredito com dor. Tenho várias dúvidas e muitos sonhos e ainda existe espaço em mim para enchê-lo com mais saudade.
Londrina e o inicio da viagem De volta a Londrina após quatro anos? Não lembro direito. Já faz algum tempo. Passear pela cidade foi “labirintinoso”. Revi rapidamente Kadu, amigo que tanto amo, fui me reencontrar com a Tatu, após anos no silêncio. Acredito ter sido uma das melhores coisas desse meu retorno à cidade. Ela e suas eternas plantas, o mesmo jeito, as ideias incríveis, borbulhantes. Depois revi a Jack, cheia de aparelhos agora, mas ainda assim linda e amando, e toda ¨jeca¨ como ela mesmo fala, o que dá toda a graça. Londrina tem cheiro de juventude, a eterna Terra do Nunca continua adolescente, e a cada esquina que dobrava meu coração apertava, uma memória renascia, nostálgica Londrina, onde tudo começou. Nas ruas repetia em voz baixa: Como gosto de você, como gosto de você, como gosto de você. Finalmente a sensação da estrada chegou. Deixar Londrina não é ruim, visto o que me aguarda ser muito mais instigante do que qualquer memória. Dirigimos o dia todo e não paramos momento algum para comer. Me empanturrei dessas bolachas
social club. O primeiro pacote ok, mas quando se chega ao quinto causa certo enjoo. A vontade de chegar logo é tanta que não nos incomodamos com a fome. Só estrada, estrada, estrada. Resolvemos descer pela Serra de Paranapiacaba. Que escolha sábia. Quanto verde, quanto cheiro de mato, estrada de terra. E em certas curvas vinhedos sem fim e um cheiro macio de uvas que invadia o carro. Revezamos o volante e a direção quando me pertencia fazia com que esquecesse todas as coisas não resolvidas ou as dúvidas ainda existentes. Fui largando tudo lá pra trás ao som de um rockezinho, ora eletro, algo moderninho pra no fundo no fundo me reconhecer em referências não reconhecidas. É engraçado como as coisas se tornam pequenas na estrada. A chegada a Iguape foi linda. Em um final de tarde atravessamos a balsa e ao chegar em um vilarejo tive uma imagem de algo escondido do mundo, o mundo frenético de Sampa ou mesmo Londrina. A cidadezinha é pequena, uma vila, as ruas são de grama, e o mar duas quadras da casa. Tomei banho de lua, nu, eu e Fiorela. Ainda me entrego ao escuro, mas com essas pessoas sinto que a claridade chegara mais rápido do que imagino.
Flavia Mielnik Nasci em São Paulo. Vivi até meus 23 anos na mesma casa de tijolos, vidros, madeiras e jardim. Alimentada por lápis de cores, cresci tropeçando em papéis, agarrando em livros, réguas e esquadros para não cair. Fui estudar arte e descubri que
o desenho é minha ferramenta de reconhecimento do mundo, dos ruídos das cidade, das formas das pessoas, da organização da minha casa e com ele me sinto segura para rascunhar meu caminho. Na IV Bienal de Arquitetura de São Paulo, com a elaboração da obra “Lâminas”, fui despertada pela magia da arquitetura e as histórias que podemos criar a partir dela.
que nossas cidades se modificam. O amor por minhas raízes convive com a apaixonada e impulsiva curiosidade de percorrer outras realidades. Guiada por um motor - às vezes mais forte, às vezes mais frágil - distancio-me de São Paulo para voltar a descobrirlo e me encanto pelo misterioso silêncio festero que me guia nas andanças e itinerâncias da vida. Em cada viagem e nos cinco anos que passei na Espanha repousam a infinita motivação em tatear memória-tempo-lugar nutrindo meu proceso de criação e minha paixão por gerar leituras e registros de nossa sociedade.
Chico Maciel
Com o projeto “Quarto Plano”, que venho trabalhando desde 2004, mergulhei no estado de transformação das estruturas físicas do meio urbano, buscando formas de aproximar o espaço arquitetônico ao espaço da memória, como resposta imediata ao tempo que vivimos e o ritmo acelerado em
Navci em São Paulo. Aperum, samus nobis aut aut rem qui optatis maio cum que doloruptate nonsendis rem sam, optatis aut ad quatam nonsed ut facepro del inciae perore omnist, non remque eum lacipsam aut doloriam que cusdand anduntis unt eatur auditatia dolore doluptam, eum quiae apercia qui con ratium que reriberum, qui volupta dolorio volutem quid expe voluptatur a simaion ratios pro ipid estendi od quis alitia dolora sandeli quodis ad etur re pa apero magnis volorit, que enia qui di dolo excea volorum non est, omnieni omnis volorpo rehenti atest, oditam fugiaep eratis ut ad et, occat laut latis aut doluptatem quaspe nusant poribus, odigene ssincit atibus quae. Nam con conet pratemquam ex ex excerio omnis nim sunt.
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A
gora uma Caravana que faz da arte e da sensibilidade a sua arma. Anos de sonhos, meses de estrada, dias de magia. O desejo de um professor universitário que quis ir além. Estudou arte, estética, conceitos, teorias... deu aulas, estudou, deu aulas novamente, estudou... foi para fora do país e, a distância, olhou sua terra com mais proximidade. Voltou. Queria ir além. Foi para dentro. Depois de muito sonhar e economizar (mergulhar para dentro tem custo), junto com Bruna, sua companheira de jornada, e outros bons amigos, jogaram-se em nosso Brasilzão. Este é um livro que fala de povo e de suas habilidades, seus sentidos e sentimentos. Um povo que não faz separação entre trabalho e arte, razão e magia. Está tudo embolado. Neste livro está expresso um pouco deste sentimento de povo, desta fala que sai do fundo de nossa alma e diz para nós mesmos o que vem a ser povo. Um povo para além de estereótipos e folclorizações. Um povo que se mira no espelho e se reconhece como tal. C T
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