O livro vermelho de c g jung - the red book of c g jung

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introdução _ 193

Liber Novus:

O “Livro Vermelho” de C.G. Jung1 SONU SHAMDASANI

C.G. JUNG é amplamente reconhecido como uma figura proeminente no pensamento ocidental moderno, e seu trabalho continua a produzir controvérsias. Ele teve um papel importante na formação da psicologia, da psicoterapia e da psiquiatria modernas, e uma grande comunidade internacional de psicólogos analíticos trabalha sob seu nome. Entretanto, seu trabalho obteve o impacto mais amplo fora dos círculos profissionais: quando a maioria das pessoas pensa em psicologia, Jung e Freud são os nomes que aparecem em primeiro lugar, e suas ideias foram amplamente disseminadas nas artes, nas humanidades, no cinema e na cultura popular. Jung também é muito reconhecido como um dos provocadores de movimentos New Age. Contudo, é espantoso perceber que o livro que está no centro de sua obra, no qual trabalhou por mais de dezesseis anos, só agora seja publicado. Provavelmente existem poucos trabalhos inéditos que exerceram efeitos tão vastos sobre a história social e intelectual do século XX quanto o Livro Vermelho de Jung, ou Liber Novus [Livro Novo]. Assim chamado por Jung por conter o núcleo de seus trabalhos tardios, já foi reconhecido como a chave para a compreensão da gênese desses trabalhos. Ainda assim, apesar de já termos tido dele alguns poucos vislumbres atormentadores, permaneceu até agora indisponível para estudo.

1 O presente ensaio segue, às vezes diretamente, minha reconstrução da formação da psicologia de Jung em Jung and the Making of Modern Psychology: The Dream of a Science. Cambridge: Cambridge University Press, 2/ / 3. Jung refere-se ao trabalho tanto como Liber Novus quanto como O Livro Vermelho, como ficou mais universalmente conhecido. Como há indicações de que o primeiro é o título verdadeiro, refiro-me a ele como tal ao longo da Introdução por uma questão de coerência.










o caminho daquele que virá _ 229

[fol. 1(r)]1

O caminho daquele que virá Isaias dixit: quis credidit auditui nostro et brachium Domini cui revelatum est? Et ascendet sicut virgultum coram eo et sicut radix de terra sitienti non est species ei neque decor et vidimus eum et non erat aspectus et desideravimus eum: despectum et novissimum virorum virum dolorum e scientem infirmitatem et quasi absconditus vultus eius et despectus unde nec reputavimus eum. vere languores nostros ipse tulit et dolores nostros ipse portavit et nos putavimus eum quasi leprosum et percussum a Deo et humiliatum. cap.liii/i-iv. parvulus enim natus est nobis filius datus est nobis et factus est principatus super umerum eius et vocabitur nomen eius Admirabilis consiliarius Deus fortis Pater futuri saeculi princeps pacis. caput ix/vi. [Isaías disse: Quem creu naquilo que ouvimos, e a quem se revelou o braço de Javé? Ele cresceu diante dele como um rebento, como raiz que brota de uma terra seca; não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado pelos homens, um homem sujeito à dor, familiarizado com a enfermidade, como uma pessoa de quem todos escondem o rosto; desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E, no entanto, eram as nossas enfermidades que ele levava sobre si, as nossas dores que ele carregava. Mas nós o tínhamos como vítima do castigo, ferido por Deus e humilhado]2. [“Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe-dapaz” (Is 9,6)3.] Ioannes dixit: et Verbum caro factum est et habitavit in nobis et vidimus gloriam eius quasi unigeniti a Patre plenum gratiae et veritatis. Ioann.cap.i/xiiii. [João disse: E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e nós vimos sua glória, glória que Ele tem junto ao Pai como filho único, cheio de graça e de verdade (Jo 1,14).] Isaias dixit: laetabitur deserta et invia et exultabit solitudo et florebit quasi lilium. germinans germinabit et exultabit laetabunda et laudans. tunc aperientur oculi caecorum et aures sordorum patebunt. tunc saliet sicut cervus claudus aperta erit lingua mutorum: quia scissae sunt in deserto aquae et torrentes in solitudine et quae erat arida in stagnum et sitiens in fontes aquarum. in cubilibus in quibus prius dracones habitabant orietur viror calami et iunci. et erit tibi semita et via sancta vocabitur. non transibit per eam pollutus et haec erit vobis directa via ita ut stulti non errent per eam. cap. xxxv.

[Isaías disse: Alegrem-se o deserto e a terra seca, rejubile-se a estepe e floresça; como o narciso, cubra-se de flores, sim, rejubile-se com grande júbilo e exulte... Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se desobstruirão. Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará canções alegres, porque a água jorrará do deserto, e rios, da estepe. A terra seca se transformará em brejo, e a terra árida em mananciais de água. Onde repousavam os chacais surgirá um campo de juncos e de papiros. Ali haverá uma estrada – um caminho que será chamado caminho sagrado. O impuro não passará por ele, ele mesmo andará por esse caminho, de modo que até os estultos não se desgarrarão (Is 35,1-8)4.] manu prop[ria] script[um] a C.G.Jung an[n]o Do[mini] mcmxv in dom[u] s[ua] Kusnacht Turic[ense?]. [Escrito de próprio punho por C.G. Jung no ano do Senhor de 1915 em sua casa de Küsnacht/Zurique.] / [HI i(v)] [2] Quando falo em espírito dessa época5, preciso dizer: ninguém e nada pode justificar o que vos devo anunciar. Justificação para mim é algo supérfluo, pois não tenho escolha, mas eu devo. Eu aprendi que, além do espírito dessa época, ainda está em ação outro espírito, isto é, aquele que governa a profundeza de todo o presente6. O espírito dessa época gostaria de ouvir sobre lucros e valor. Também eu pensava assim e meu humano ainda pensa assim. Mas aquele outro espírito me força a falar apesar disso para além da justificação, de lucros e de sentido. Cheio de vaidade humana e cego pelo ousado espírito dessa época, procurei por muito tempo manter afastado de mim aquele outro espírito. Mas não me dei conta de que o espírito da profundeza possui, desde sempre e pelo futuro afora, maior poder do que o espírito dessa época que muda com as gerações. O espírito da profundeza submeteu toda vaidade e todo orgulho à força do juízo. Ele tirou de mim a fé na ciência, ele me roubou a alegria da explicação e do ordenamento, e fez com que se extinguisse em mim a dedicação aos ideais dessa época. Forçou-me a descer às coisas mais simples e que estão em último lugar. O espírito da profundeza tomou minha razão e todos os meus conhecimentos e os colocou a serviço do inexplicável e do absurdo. Ele me roubou fala e escrita sobre tudo que não estivesse a serviço disto, isto é, da interfusão de sentido e absurdo, que produz o sentido supremo. Mas o sentido supremo é o trilho, o caminho e a ponte para o porvir. É o Deus que vem – não é o próprio Deus, mas sua imagem que se manifesta no sentido supremo7. Deus é uma imagem, e aqueles que o adoram devem adorá-lo na imagem do sentido supremo.

1 Os manuscritos medievais eram numerados por fólios em vez de por páginas. O lado da frente do fólio é o rectum (a página da direita de um livro aberto), e o lado de trás é o versum (a página à esquerda de um livro aberto). No Liber Primus, Jung seguiu esta prática. Voltou à paginação contemporânea no Liber Secundus. 2 Essas passagens são tiradas da Bíblia de Lutero. Em 1921, Jung citou os três primeiros versos dessa passagem (da Bíblia de Lutero), observando: “O nascimento do Salvador, isto é, o aparecimento do símbolo, acontece justamente onde não é esperado e exatamente onde a solução é a mais improvável” (Tipos psicológicos. OC, 6, § 484s.). 3 Em 1921, Jung cita essa passagem, observando: “A natureza do símbolo redentor é a de uma criança, isto é, a atitude de criança ou atitude não preconcebida faz parte do símbolo e de sua função. A atitude ‘de criança’ faz com que automaticamente surja no lugar do voluntarismo próprio e da intencionalidade racional um outro princípio orientador tão onipotente quanto divino. O princípio orientador é de natureza irracional, razão por que se manifesta sob a capa do maravilhoso. Isto foi muito bem expresso por Is 9,5. Esses atributos indicam as qualidades essenciais do símbolo redentor... O critério da ação ‘divina’ é a força irresistível do impulso inconsciente” (OC, 6, § 491-492). 4 Em 1955/1956, Jung observou que a união dos opostos dos poderes destrutivos e construtivos do inconsciente formam um paralelo com a realização do estado messiânico descrito por Isaías nesta passagem (OC, 14, § 258). 5 No Fausto de Goethe, Fausto diz: “O que significa para vós o espírito dos tempos, /isto é no fundo o espírito do próprio Senhor, /no qual os tempos se espelham” (Faust l, linhas 577579). 6 O esboço continua: “isto me disse alguém que não me conhecia, mas a quem cabia evidentemente sabê-lo: ‘Que tarefa notável tu tens! Precisas revelar às pessoas todo teu mais íntimo e mais inferior’. Mas a isto me recusei, pois não detestava outra coisa mais do que isso que me pareceu lascívia e falta de respeito” (p. 1). 7 Em Transformações e símbolos da libido (1912), Jung interpretou Deus como um símbolo da libido (OC, B, § 111). Na versão reformulada, Jung deu grande ênfase à distinção entre a imagem de Deus e a existência metafísica de Deus (cf. passagens acrescentadas à edição revista e com novo título (1952) de Símbolos da transformação (OC, 5, § 95).

fol. i(r)/i(v)


O

LIVRO VERMELHO LIBER NOVUS

C.G. Jung Editado por Sonu Shamdasani Prefácio de Ulrich Hoerni Tradução: Liber Novus: Edgar Orth Introdução: Gentil A. Titton e Gustavo Barcellos Revisão da tradução: Dr. Walter Boechat “Os anos durante os quais me detive nessas imagens interiores constituíram a época mais importante da

minha vida. Neles todas as coisas essenciais se decidiram. Foi então que tudo teve início, e os detalhes posteriores foram apenas complementos e elucidações. Toda minha atividade ulterior consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos e que inicialmente me inundara: era a matéria-prima para a obra de uma vida inteira.” - C.G. JUNG, 1957 Durante a Primeira Guerra Mundial, C.G. Jung embarcou numa ampla autoexploração que chamou de seu “confronto com o inconsciente”. No centro desta exploração estava o Livro Vermelho, um grande livro em iluminuras que ele elaborou entre 1914 e 1930, contendo o núcleo de suas obras posteriores. Foi nesta obra que ele desenvolveu suas principais teorias dos arquétipos do inconsciente coletivo e do processo de individuação, que iriam transformar a psicoterapia de uma prática ocupada com o tratamento dos doentes num instrumento para o desenvolvimento ulterior da personalidade. Embora Jung considerasse o Livro Vermelho sua obra mais importante, só um punhado de pessoas o viu alguma vez. Talvez seja a mais influente obra inédita na história da psicologia. Agora, numa reprodução completa em fac-símiles e tradução, editada por Sonu Shamdasani e com introdução do mesmo, a obra está disponível aos estudiosos e ao público em geral. É um maravilhoso volume de caligrafia e arte, que sugere influências tão diversas como a Pérsia e os Impérios Maias - uma obra igualável a manuscritos com iluminuras como o Book of Kells e os de William Blake. A publicação do Livro Vermelho é um divisor de águas que iniciará uma nova era nos estudos junguianos. Sonu Shamdasani, eminente historiador de Jung, ministra cursos sobre História de Jung no Wellcome Trust Center for the History of Medicine, no University College London.

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