Emblema Xilográfico

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emblema xilográfico

trabalho final de graduação Francisco Horta de Albuquerque Maranhão Orientador: Feres Lourenço Khoury Faculdade de Arquitetura e Urbanismo 2015

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agradecimentos

agradeço ao professor Feres Khoury pela orientação generosa; à professora Vera Pallamin, que me ajudou a conceber e definir a proposta do trabalho; ao professor Francisco Maringelli pelas referências e dicas práticas que tornaram o meu trabalho tão mais eficiente; ao Rafael Muto pelas reproduções fotográficas; à Marilia Ferrari pela ajuda com a diagramação deste caderno; à minha mãe Regina pelo total apoio diário; e a todos os amigos, colegas e companheiros da fau, que tanto contribuiram para a formação da minha pessoa e que foram a principal razão e motivação para que eu tenha persistido e chegado a este momento de conclusão. 7


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Ă€ Nerman, que, se ainda estivesse conosco, teria me agraciado com suas pequenas visitas de curiosidade felina, que faziam tĂŁo menos solitĂĄrias as madrugadas de trabalho.

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sumário

prefácio

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grafias e caligrafias

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cartazes e lambe-lambes

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interação com o espaço

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gravura em grandes formatos

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exemplos históricos

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conjunto de referências

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experiências anteriores

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sobre a descrição dos processos

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ensaio preliminar - relato

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ensaio no 2 - módulos vibrantes

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ensaio no 3 - matrizes tipográficas

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ensaio no 4 - emblemas xilográficos

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considerações finais

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prefácio

Este trabalho consiste em uma pesquisa prática sobre as artes gráficas em sua inserção no espaço urbano. O interesse em sua realização vem sendo cultivado desde as disciplinas iniciais de minha graduação, nas quais foi estimulada a prática de registrar o espaço por meio do desenho de observação, como etapa preliminar ao projeto de arquitetura. Tais atividades mostraram-se particularmente instigantes e frutíferas a um aluno como eu, cujo interesse maior ao ingressar na faculdade de arquitetura era, ingenuamente, formar-me “desenhista profissional” e, em segundo plano, arquiteto e urbanista. Sinto hoje que tais exercícios de desenho de observação de trajetos e percursos da cidade foram o que me conscientizou sobre minha própria disposição a contemplar a cidade e a arquitetura, que, em paralelo à afinidade que construí com as artes plásticas e gráficas, consolida, aos poucos, um direcionamento que norteia minha relação com o desenho. A observação atenta da cidade em seus detalhes exercita o olhar no sentido da valorização daquilo que na paisagem já é dado. O olhar prospectivo e projetual da arquitetura, treinado a objetivar o espaço para imaginar e propor a ele novas formas, muitas vezes é incapaz de reconhecer qualidades daquilo que está presente na configuração da percepção da paisagem urbana e de seu imaginário social constitutivo. Entendo que na atitude de um “vândalo”, ao pichar um muro, ou colar um “lambe lambe”, eventualmente pode estar implícita uma consciência de desenho e uma leitura do espaço tão ou mais complexa, elaborada e condizente com seu contexto de inserção quanto projetos de arquitetura, desenho urbano e obras de arte pública e intervenções especificamente situadas. A razão de ser deste trabalho está, portanto, na identificação da relevância de determinadas manifestações da arte aplicada, em especial as colagens de cartazes sobre os

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1. “Sendo partícipe na produção simbólica do espaço contemporâneo, a arte urbana - compreendida no plano das relações sociais e não reduzida a uma sua dimensão estetizada repercute as contradições, conflitos e relações de poder que o constituem. [...]Em meio aos espaços públicos, as práticas artísticas são apresentação e representação dos imaginários sociais. [...] intervindo nos modos diferenciais da produção dos seus valores de uso, sua validação ou legitimação, assim como de discursos e formas sedimentadas de representação cultural ali expostas.” (Pallamin, 2002)

muros da cidade, na constituição do imaginário contemporâneo da urbanidade e em seu potencial enquanto prática artística crítica. O ponto de partida para meu projeto é a hipótese de que a interação de imagens com as superfícies da cidade sempre carrega consigo, conscientemente ou não, determinada leitura e interpretação do espaço a que se destina .1 Para tanto, conduzo um ensaio poético de representação sobre a forma urbana cujo procedimento é o da observação, vivência e figuração da própria cidade na proposição de imagens gráficas que nela se insiram. Ou seja, o produto deste trabalho final de graduação é o resultado de uma tentativa de inserir meu trabalho gráfico em espaços públicos cujo interesse está nas suas próprias formas, volumes e significados. A tarefa a que me propus neste trabalho foi, portanto, a de produzir peças gráficas cujo conteúdo não é simplesmente em si, mas também para si, sugerindo àquele que as vê um momento reflexivo no qual a presença do objeto se coloca como indissociável do conteúdo existente no contexto que a circunscreve. O que não significa que aquele seja o único local em que ela pode estar e se efetivar; minha intenção não é a de criar site specifics, mas sim imagens em cuja individualidade e particularidade possa transparecer algo que se relaciona diretamente com seu local de inserção. Assim, o conteúdo simbólico e imagético que os trabalhos produzidos carregam é fruto da minha experiência direcionada em relação ao local em que se inserem. Não pretendo expor através deles conceitos e valores urbanísticos, tampouco revelar, destrinchar e desmascarar as contradições existentes no local. Meu propósito foi, no entanto, o de criar desenhos a partir de suas condicionantes materiais cujo conteúdo perpassa o meu entendimento e a minha apreensão poética daquilo existe naquele espaço. O que

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transparece nas imagens, consequentemente, é subjetivo e não carrega consensos; muito menos qualquer universalidade, e provavelmente não será por muitos apreendido como uma “leitura e interpretação” do espaço e sim como mais um trabalho a decorar e enfeitar a cidade. Como última ressalva, reluto em dizer que o que estou propondo se trata de uma intervenção, pois entendo que esse nome carrega a conotação de que aquele espaço está sendo submetido a um sujeito que vem de fora e que impõe a ele alguma condição ou acontecimento que o transforma, que de fato intervém sobre ele, o que significaria intervir sobre a vida daqueles que nele estão e sobre eventos que nele acontecem, no tempo e na “vida” própria do local. Meus trabalhos, ao contrário, têm origem no local em que se inserem e, na medida em que isso significa que perpassam o meu interior, não necessariamente atua, através deles, um sujeito que ali se coloca como interventor, não fazendo do espaço objeto da minha ação. Minha ação é simplesmente colocar ali um objeto que tenta participar, interagir e integrar-se à vida que existe naquele espaço, como planta que brota de uma semente que nasceu em suas proximidades e por ali caiu, eu fazendo o papel do passarinho, do vento, da gravidade, enfim, do veículo que levou a semente ao solo em que germinará.

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grafias e caligrafias

[fotos]ao lado, pichações sobre empena cega do Largo da Batata. abaixo, pichações ocupando muro do Jóquei Clube. maio/2015.

São Paulo contemporânea é impregnada de uma profusão de manifestações de caráter pictórico e gráfico, entre as quais predominam pinturas caligráficas (pichações, tags, assinaturas estilizadas). Destacam-se também pinturas figurativas que se reportam ao universo visual da ilustração, além de cartazes e estampas impressas sobre papel e coladas sobre paredes, conhecidas popularmente como “lambe-lambes”, nome originado do próprio procedimento técnico na colagem. Seria conveniente aqui nomear as duas primeiras formas de manifestação como graffiti, levando em conta que ambas compartilham mesmo material e técnica, sendo predominantemente aplicadas com spray contendo tinta acrílica e pintadas diretamente sobre as superfícies, mas essa parece não mais ser uma questão tão simples, uma vez que há, hoje em dia, uma cisão entre as duas vertentes dessa prática. A presença e a pregnância dos graffiti enquanto linguagem visual ganhou maior expressão desde que entrou em vigor a Lei Cidade Limpa (2007), implantada durante a prefeitura de Gilberto Kassab, na qual foi regulamentada uma diminuição na excessiva “poluição visual” causada pela ostensiva presença de imagens publicitárias e logomarcas espalhadas pela cidade. As restrições impostas às propagandas em toldos, totens e banners e ao tamanho dos letreiros e placas dos estabelecimentos comerciais nas ruas contribuiram por tornar mais evidentes as manifestações pictóricas e gráficas realizadas

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ilegalmente, que têm como “campo plástico”, ou suporte, literalmente qualquer superfície em que a tinta possa aderir.

[foto] graffitis sobre muro da Av. Corifeu de Azevedo Marques. maio/2015.

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Hoje em dia, em detrimento das faixas e letreiros impressos e reproduções técnicas carregadas de textos de legibilidade imediata, que muito incomodavam os olhos dos paulistanos, avolumam-se sobre nossa vista letras com aspecto de desenho, difíceis de decifrar e uma infindade de figuras e personagens multicoloridos e infantis. A necessidade de ocupar e conferir colorido às superfícies da cidade passou a não mais ser simplesmente uma ocupação marginal, tendo sido atualmente criada uma cisão conceitual que diferencia o que antes fora uma coisa só: graffiti e pichação. O graffiti passou a ser o bom-moço, inofensivo e bem-intencionado, ao passo que a pichação passou a significar a pura negatividade, temerária e agressiva, palco de competição e violência entre gangues de praticantes. Nota-se que, em comparação com o que hoje se chama de graffiti, as pichações, em geral,


2.“Na esteira da requalificação, tornaram-se frequentes as expressões ‘a cidade como uma grande galeria’, ‘museu a céu aberto’, que traduzem tentativas inócuas, cosméticas, paliativas de tornar o muito feio um pouco menos feio, atitudes conformistas que se apresentam como redentoras de uma cidade supostamente condenada à feiúra” (Zaidler Jr, 2014 )

3.“Como prática crítica a arte urbana associa-se à ideia de intervenção negativa na microescala e acentua tal validade antepondo-se a esta cultura puramente afirmativa que tem sido promulgada e divulgada pela midia e pelos processos de globalização” (Pallamin, 2002, )

revelam maior consciência perceptiva de desenho, contraste, uso da cor e escala em relação à própria inserção no espaço, talvez por serem parte de uma linguagem consolidada (caligráfica), de impacto visual mais agressivo e de mais simples execução se comparada ao cartaz e aos graffiti multicoloridos e de execução rebuscada. Geralmente, os caracteres simplesmente ocupam o espaço de maneira linear como a preencher linhas de texto, e isso é suficiente para que seja resolvida sua composição em relação à superfície sobre a qual são pintados. Embora seja difundida em São Paulo desde os anos 1970, a prática do graffiti alcança hoje em dia proporções inéditas, numa tendência mundial à aceitação e apropriação comercial das pinturas como manifestação da dita “arte popular”. Atualmente, é estimulada a sua realização sob responsabilidade institucional visando a requalificação de determinados espaços da cidade2, como no exemplo polêmico dos Arcos de Jânio em 2015. Em grande medida, sua produção já foi apropriada pela publicidade e é até fetichizada pelo mercado de arte, inclusive atingindo nele cifras milionárias. Em sua dissertação de mestrado, Waldemar Zaidler, um dos pioneiros do graffiti em São Paulo, nos traz a seguinte constatação: há uma tendência ao esvaziamento de uma suposta negatividade crítica3 à qual a prática do graffiti um dia esteve associada. Estaria tal negatividade hoje em dia relegada somente à pichação? Não creio; ao mesmo tempo em que o graffiti não se tornou puramente “mauricinho”, não é possível afirmar que a pichação é a verdadeira expressão da classe marginalizada que, violando as fachadas dos edifícios privados, se apropria ostensivamente do espaço que lhe é negado. Acredito que boa parte dos praticantes de ambas vertentes se situa, na realidade, num meio termo em que a constante é a auto-satisfação com um trabalho realizado e com a promoção de sua individualidade através de uma marca gráfica que ora agride e protesta, ora enfeita e mascara, mas que, na maioria das vezes, é só mais uma entre muitas. 19


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cartazes e lambe-lambes

Em meio à grande quantidade de graffitis, pode-se notar ainda uma outra variedade de exemplos de linguagem visual que são objeto específico deste trabalho: trata-se de cartazes colados aos muros, empenas e postes sem autorização legal. Frequentemente propagandas de casas de show e boates, assim como curiosos anúncios de profissionais autônomos e de seus serviços marginalizados e escusos, que vão desde comerciantes de ouro a despachantes, cartomantes, jogadores de búzios, políticos, entre outros. A prática, já antiga e amplamente difundida e difundida no Brasil, ainda que não tenha a princípio motivações poéticas e artísticas, tem inegável e ampla presença na constituição daquilo que configura o imaginário da paisagem urbana.

[fotos] ao lado, colagens e graffiti na Av. Eusébio Matoso (abril/ 2015)

Dentro do que aqui se denomina como “cartaz de lambe lambe” existe uma vertente cujas intenções não são exclusivamente comerciais e publicitárias, e apesar da escassez de seus exemplos, são realizadas com intenção artística. São promovidas geralmente por coletivos que, diante da preponderância das técnicas digitais, difundem as artes gráficas numa tentativa retrospectiva de valorizar o universo da tipografia móvel e das técnicas de impressão manual a partir de matrizes.

abaixo, muro reservado para lambelambe na Av. Corifeu de Azevedo Marques. (maio/2015)

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[foto] colagem de lambe-lambe sobre pilares do Viaduto Cidade Universitária. (maio/2015)

Sendo a comunicação escrita o objetivo principal de grande parte destes cartazes, a discussão por eles suscitada pode ir além do escopo de sua inserção na escala da paisagem urbana enquanto elemento visual. Em geral, carregam mensagens literais, características da arte aplicada, sendo veículo para um tipo propaganda que está à margem da publicidade institucionalizada, sendo distribuidos na cidade por grupos sociais de pequeno porte, politicamente engajados ou não. Não interessa aqui analisar criticamente o valor artístico de tais cartazes enquanto expressão de conceitos, sejam eles caros à arte contemporânea ou à estética relacional, mas evidenciar que há neles notáveis qualidades visuais resultantes da técnica de impressão, que inegavelmente é dotada de distinta riqueza no detalhe e nuances que transparecem no papel, a plasticidade da tinta e a corporeidade da matriz. Comparadas à qualidade “chapada” e “pixelada” das transições e nuances das manchas de cor reticuladas em impressões digitais e offset, tais impressões parecem conter uma vida e uma materialidade palpável que as torna muito mais interessantes e expressivas,

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[foto] colagem de lambe-lambe sobre fachada da Rua Fradique Coutinho, de autoria da Gráfica Fidalga (jun/2015)

interagindo e incorporando-se vivamente às superfícies da cidade com uma espécie de verossimilhança e com singularidades que somente as técnicas de impressão gráfica manuais e mecânicas são capazes de produzir. A reprodutibilidade característica da estampa gráfica tem a propriedade de ser incapaz de produzir cópias exatamente idênticas a partir de uma mesma matriz. A persistência das técnicas de impressão com matrizes (tipografia, xilografia e litografia), desde o advento das técnicas de reprodução fotográfica, vale-se de suas “imprecisões” e “imperfeições” para justificar seu interesse justamente na singularidade de cada impressão. Hoje em dia, sua prática é difundida e comercializada como “gravura”, e não mais como a técnica universal de impressão e reprodução de imagens. Tendo em vista sua singularidade e menor evidência, interessei-me sobretudo pelas manifestações da “arte de rua” cuja condicionante é a presença do papel como suporte e campo plástico, revelando-se, portanto, mais frágeis e efêmeras do que os graffiti. Obviamente, uma pintura ou pichação realizada com tinta diretamente sobre uma parede 23


é a melhor maneira para que haja uma aderência imediata e resistente entre superfície e pintura, o que torna muito mais fácil a valorização das marcas e detalhes já existentes na superfície como elemento pictórico. Há também técnicas de pintura direta sobre as paredes cujo procedimento é mais próximo ao da gravura, como o estêncil e a serigrafia. Se a necessidade do papel impõe limitações a esse tipo de trabalho, tais limitações se explicam pela sua natureza física, procedimento técnico e raciocínio plástico, que são diferentes daqueles de uma pintura. Por outro lado, a reprodutibilidade gráfica traz uma série de qualidades e possibilidades inexistentes na prática da pintura direta e do estêncil, não interessando aqui a comparação entre a maior ou menor efetividade de uma ou outra técnica para a finalidade de desenhar sobre o espaço urbano. [foto]lambe-lambe sobre fachada da Rua dos Pinheiros, de autoria da Gráfica Fidalga (jun/2015)

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A definição do objeto de estudo deste trabalho passa pelo meu interesse particular em produzir xilogravuras, prática com a qual já possuo familiaridade, e em verificar as pos-


sibilidades de inseri-las como colagens na paisagem urbana. O principal desafio que se coloca à produção dessas xilogravuras é vencer suas dimensões convencionais para que possam interagir efetivamente com o espaço, colocando-as na dimensão da experiência corpórea do espectador. Contudo, não tive a pretensão chegar a escalas monumentais como, por exemplo, a de murais pintados em empenas cegas dos edifícios, o que acredito estar além da vocação desse tipo de trabalho. O valor da imagem gráfica por excelência, ou seja, da imagem que é impressa como estampa a partir de uma matriz cuja superfície foi gravada (escavada, entalhada, esculpida), reside na materialidade que o papel registra no ato da impressão. Uma estampa de gravura possui caráter de objeto, e não pode ser valorizada somente em termos de imagem, sendo mais tridimensional do que os outros tipos de impressão. Isso confere a ela uma especificidade que propicia maior interação com a materialidade bruta das superfícies construídas. A interação entre uma imagem digitalmente produzida e impressa e uma parede de concreto, por exemplo, é distante, muito descolada e artificial, impregnada de um certo “estranhamento” entre suas partes. No entanto, uma estampa xilográfica colada a uma parede de concreto parece aderir-se com maior reconhecimento mútuo entre as partes envolvidas, incorporando-se a ela de uma forma mais orgânica. É essa inteligência de interação que identifico nas iniciativas dos coletivos que realizam lambe-lambes sobre os muros da cidade. Os cartazes parecem saltar aos olhos em relação aos graffiti adjacentes e ainda assim incorporarem-se ao seu plano de fundo. No caso dos lambe-lambes, há sempre um intermediário na relação entre parede e mancha gráfica, no caso, o papel. Os artistas poderiam optar pelo uso de um papel translúcido, deixando visível a superfície sob o cartaz, mas ainda assim seria possível notar sua presença. Entendo que essa alternativa parece ir contra o propósito destes trabalhos; é a interação afirmativa do papel com a superfície rígida em que está colado o que lhes interessa. 25


interação com o espaço

[foto] em contraste com uma imagem digitalmente impressa, uma xilogravura de Maria Bonomi como lambe lambe no Edificio Vilanova Artigas; exemplo da adequação ao contexto e da deterioração do papel ao longo dos anos.

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Apesar de não ser objeto central deste trabalho, existe ainda o fator crucial da recepção e aceitação desse tipo de manifestação por parte dos indivíduos que participam no espaço público, que podem ter razões para destruí-lo, interferir sobre ele ou, ainda, colar sobre ele outro cartaz. Uma vez colado, o cartaz pode ser arrancado, rasgado, molhado, sujo e pintado por qualquer um que se disponha a fazê-lo. Acredito que a deterioração do papel e da mancha gráfica, causada pelas intempéries a que o cartaz está sujeito no espaço público, torna ainda mais interessante a forma como se dá sua incorporação à parede em que adere. A fuligem e a poeira que sujam o concreto são as mesmas que irão sujar a estampa; o papel apodrece e vai, aos poucos, se desmaterializando com a umidade e a chuva e sendo queimado pelo sol. Nos poucos exemplos de lambe-lambes que encontramos por São Paulo, nota-se geralmente certa indiferença em relação ao seu espaço de inserção. Em grande medida, o espaço em que se inserem acaba por tornar-se nada mais que suporte para um conjunto


de cartazes, de forma que não há relação formal evidente na composição do conjunto com seu contexto espacial. Explora-se majoritariamente o recurso à repetição de uma mesma imagem, pela disposição contígua de uma mesma estampa, ou alternando-se duas ou três imagens diferentes em sequência. Propiciada pela reprodutibilidade característica das técnicas de impressão, a eventual variação de cores garante contraste na composição, e a repetição faz com que o trabalho assuma dimensões condizentes com a escala da cidade e do edifício e seja visto à distância pelo passante. Não se trata propriamente de um raciocínio modular de composição de um desenho de grandes dimensões, mas resulta em tentativas acertadas de incorporar-se à paisagem urbana, mais por ser um conjunto “vistoso” do que por desenhar sobre a cidade. É meu objetivo evidenciar esta necessidade de leitura e interpretação da espacialidade dos lugares da cidade para a produção deste tipo de trabalho, uma vez que é sua característica intrínseca a própria presentificação diante da materialidade, historicidade e temporalidade que constituem um corpo complexo a ser traduzido e incorporado ao diálogo necessário entre a imagem e seu espaço de inserção. No que diz respeito à gravura, a escala é o fator determinante para que seja vivenciada em sua dimensão corpórea e interaja com o espaço. São raros os exemplos da produção contemporânea de gravura cuja veiculação se dá pela inserção no espaço edificado exterior e na cidade. E o pouco que a história da gravura nos diz sobre sua produção em grandes dimensões refere-se quase exclusivamente à sua exposição em espaços públicos interiores na forma de painéis, cartazes ou como papel de parede.

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gravura em grandes formatos

A gravura hoje em dia ainda reluta em sair para além de seu lugar comum, os livros e os espaços interiores. Isso se deve muito por ela estar tradicionalmente relacionada a um caráter de trabalho essencialmente intimista, realizada em ateliês apertados e com alto grau de refinamento em detalhes, talvez por estar relegada a um circuito restrito de artistas com pouca penetração nas grandes esferas da arte comercial institucionalizada. Certo é que não é possível entalhar uma matriz com a mesma liberdade e rapidez com que se pinta uma tela ou mural, e isso já é o bastante para explicar as pequenas dimensões às quais os artistas gravadores estão habituados. Entretanto, uma vez produzida a matriz, é possível imprimir a partir dela muitas estampas, cada uma com suas especificidades de cor, técnica de impressão, tipos de papéis etc. O custo de produção da xilogravura, por exemplo, é relativamente baixo, uma vez que há alternativas baratas de papéis, tintas gráficas e compensados de madeira adequados para o trabalho, que é muito simples, podendo ser realizado sem o auxílio de equipamentos caros, como prensas gráficas, e não depende necessariamente de um ateliê e de técnicos especializados. Pode-se dizer que a xilogravura é o tipo mais artesanal de gravura, no sentido de que ela prescinde de técnicos e equipamentos industriais para ser produzida. No entanto, para que alcance grandes dimensões, o raciocínio técnico de produção da estampa muda, dada a necessidade, muitas vezes, de um número maior de matrizes para realizar a impressão. Isso se deve tanto aos tamanhos limitados das placas de madeira disponíveis, quanto ao processo de impressão, que passa a ser feito em etapas, assim como questões práticas de manuseio e armazenamento das matrizes. A compartimentação da matriz xilográfica acarreta uma série de novas possibilidades de composição do desenho, levando a experiências de caráter construtivo e modular na gravura. Essas novas formas de se conceber a imagem gráfica passam, então, a se realizar, para

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[foto] Thomas Kilpper ”Don’t Look Back” (22 x 12 m) Sbre a academia de arte de Poznan. créditos: Diane Fox http://web.utk.edu/~imprint/Publicity.html

alguns artistas, com maior efetividade num lugar de exposição mais instigante e mais vivo do que os interiores brancos e estéreis das galerias, que são as paredes da cidade. Nelas, a gravura se defronta com um novo sentido para as características expressivas de sua fatura, participando de um rico universo de contrastes, ruídos, cores e formas de que a cidade dispõe. A identificação e escolha de um lugar de atuação para a gravura neste trabalho não se justifica simplesmente, entretanto, em uma suposta “contemporaneidade” dessa vertente da arte gráfica, mas por uma necessidade interna à exploração dos recursos expressivos e de linguagem da minha produção xilográfica, que encontra nas superfícies mudas da cidade um possível receptáculo. Assim, não se trata simplesmente de uma urgência em publicizar o trabalho, e tampouco de grandiloquência.

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exemplos históricos

4. An Introduction to a History of Woodcut, Arthur M. Hind, 1963, p.64

Muito pouco se escreveu sobre a presença de xilogravuras de grandes dimensões coladas ou montadas sobre paredes ao longo da história, mas há indícios de ter sido essa uma prática muito corrente até o surgimento da litografia, que revolucionou a história do cartaz. A literatura acessível descreve exemplos escassos da xilogravura aplicada no Oriente, embora se saiba que desde a invenção do papel na China, ela foi amplamente utilizada para impressão de códices, dos quais se tem registro a partir do século II d.C.. No entanto, a grande expansão de seu uso teria ocorrido, segundo Hind, somente no século VI com a introdução do Budismo Tântrico.4 A xilogravura aplicada no Ocidente tem na chegada do papel, através das rotas comerciais, seu momento de expansão. Antes do século XIV, predominam registros de sua utilização na manufatura da padronagem têxtil, até que, com o advento do papel, em meados do século IX, seu uso passou a incorporar diversas vertentes da decoração; das lombadas e capas de livros, passou-se a pequenos objetos como caixas; em seguida, à mobília, e daí em diante, aos pequenos altares de capelas e à decoração das igrejas, enfim

[foto] detalhe de xilografia como decoração do ainda existente no Claustro de Wienhausen, datada de 1564.

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6. Woodcuts as Wallpaper: Sebald Beham and Large Prints from Nuremberg, 2008.Alison G. Stewart, p. 2

chegando, no século XV, aos papeis de parede. Essa prática prosseguiu até se tornar lugar-comum no século XVIII. Embora provavelmente tenha ocorrido anteriormente no Oriente, teria sido na Europa que os paineis e papeis de parede xilográficos atingiram dimensões monumentais. Os primeiros registros de painéis e murais xilográficos na Europa datam da Baixa Idade Média; as estampas eram uma alternativa mais barata em relação ao afresco, sendo montadas sobre painéis de madeira e pintadas posteriormente. A prática adquiriu maior expressão no século XV, em Veneza, tendo atingido seu auge no Sacro Império Romano-Germânico no século XVI.

[fotos] reprodução e detalhe de uma pintura da cena de uma taverna de 1540 (atribuída ao Monogamista de Brunswick), revelando uma gravura de Sebald Beham colada à parede , em que podemos ver uma estampa de gravura parcialmente descolada.

A popularização da estampa xilográfica perpassa o entretenimento popular, e as dimensões dos cartazes passaram a aumentar no âmbito público e doméstico por seu baixo custo e pela liberdade que tinha, por seu caráter popularesco e independente, de representar temas cômicos, eróticos e todo o universo que escapava à arte oficial e religiosa, assim como em reproduzir pinturas famosas de artistas renomados6. Assim, foi amplamente utilizada e teve suas dimensões ampliadas para decorar tavernas e antigos cabarés

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7. Sebald Beham’s Fountain of Youth-Bathhouse Woodcut: Popular Entertainment and Large Prints by the Little Masters, Alison G. Stewart University of Nebraska-Lincoln (1989)p. 1

[foto] Arco Trifunfal de Maximiliano, com 3,0 x 3.5 m, composto de 192 matrizes.

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nos contextos veneziano, germânico e flamengo entre os séculos XV e XVI, tendo em Sebald Beham, pupilo de Dürer , seu principal expoente. 7 Aparentemente, a venda de estampas xilográficas era considerada ilegal no Império Romano Germânico: por razões óbvias, foi no meio oficial que surgiu a mais emblemática realização em gravura de dimensões monumentais à época. Trata-se conjunto de artes gráficas encomendado por Maximiliano I, produzido entre 1512 e 1526 por uma equipe de artistas sob supervisão de Albrecht Dürer. Foi um grande empreendimento de relações públicas visando a difusão da glória e pompa do Imperador, e sua veiculação se dava a partir de paineis montados sobre paredes dos interiores de diversos edifícios oficiais. São três imagens monumentais de dimensões sem precedentes, o Arco Triunfal, a Procissão Triunfal, que seguiriam a Grande Carruagem Triunfal de Maximiliano I em


[foto] Vista de Veneza, de 1500, com 2,8 x 1,3 m.

8. Linda S. Stiber, Elmer Eusman & Sylvia Albro The Triumphal Arch and the Large Triumphal Carriage of Maximilian I: Two oversized, multiblock, 16th-century Woodcuts from the Studio of Albrecht Durer;

[foto] Grande Carruagem Triunfal de

que o Imperador é representado como um dos grandes Césares do auge do poder Romano. A intenção de Maximiliano em realizar essa campanha tem origem na xilogravura monumental Vista de Veneza, desenhada por Jacopo de Barbari e completada em 1500, que retrata com detalhes uma vista panorâmica da ilha em seis matrizes. No mesmo ano, Anton Kolb, um mercenário de Nuremberg que havia publicado a Vista de Veneza, teria prestado serviços em parceria com de Barbari ao Imperador e, assim, influenciado Albrecht Dürer.8

Maximiliano I com 2.4x 0,5 m.

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conjunto de referências

A pequena pesquisa até aqui exposta vai no sentido da delimitação de um recorte específico a servir de guia para a produção das gravuras. Para tanto, procurei reunir uma pequena bibliografia sobre arte urbana e história da gravura e elenquei um conjunto de referências constituído de obras de arte e artistas com trabalhos de caráter público, gráficos e pictóricos. A escolha dos artistas elencados a seguir como referência se deu mais pela proximidade direta de alguns de seus trabalhos com o tema do tfg do que por qualquer predileção ou julgamento crítico que se possar fazer acerca de sua qualidade artística. Em sua maioria, trata-se de artistas brasileiros atuantes na gravura no contexto do estado de São Paulo. Evidentemente, há uma série de outros artistas cuja influência sobre este trabalho é relevante, mas o intuito aqui é simplesmente apontar alguns trabalhos de caráter gráfico em grandes dimensões veiculados no espaço público. Não pretendo, portanto, simplesmente catalogar trabalhos que me sirvam de inspiração e exemplo para a realização dos meus, mas delimitar um campo de ação a partir do que já foi feito em São Paul,o justamente para explicitar que não pretendo reinventar ou redescobrir a gravura, nem contestar e superar aquilo que já foi feito. O máximo a que posso aspirar é constatar a ocorrência de determinados processos e formas de se empregar a linguagem xilográfica no espaço e tentar, no meu trabalho, dialogar com algumas delas, verificar suas viabilidades técnicas, e assim, definir os limites do que sou capaz de produzir sozinho, neste curto período de tempo, sem recair no completo pastiche ou imitação de um trabalho já feito e refeito por outro com muito maior qualidade e profissionalismo .

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Maria Bonomi Quando se fala em xilogravura de grandes formatos, é impossível deixar de lado a artista Maria Bonomi, cuja vasta produção vem, desde os anos 1960, contribuindo com excelência no sentido de extrapolar a gravura para o espaço público. Ainda que suas experiências com colagens no espaço público sejam raras (vide a imagem da empena do A. I., no edifício da FAUUSP, na página 24), sua linguagem gráfica se inseriu na cidade transcrita para o muralismo em relevos de concreto, sendo autora de murais como o do edifício Safra na Av. Paulista, o da Igreja da Cruz Torta, entre outras. Sua sensibilidade em relação à arquitetura moderna no contexto do brutalismo paulista se expressa na predileção que têm os arquitetos da escola paulista em realizar com ela parcerias em seus projetos.

[foto] Tragédia Cósmica, xilografia, 140 x 90 cm, 1970.

Entretanto, interessa aqui principalmente o seu processo de composição das estampas xilográficas, nas quais raramente há uma só matriz. Em sua maioria impressas a partir de muitas repetições e variações de diversos pedaços de madeira, as estampas exploram com notável precisão e delicadeza suas sobreposições e transparências, em composições de forte impacto visual em que a linguagem essencialmente xilográfica determina o desenho.

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Flávio Motta e Marcelo Nitsche Caminhos do Jaraguá (1974) Concebida em 1971, a intervenção projetada por Flávio Motta e executada com o auxílio de Marcelo Nitsche para os pilares do Elevado Costa e Silva apresenta como motivo poético a projeção narrativa do olhar do espectador em direção ao pico do Jaraguá, por meio de uma pintura sequencial composta de uma longa série, de natureza cinematográfica. Pilar a pilar, figuravase o movimento “quadro a quadro” de formas geométricas aos poucos ia cedendo lugar a figuras da natureza, com passarinhos voando, sugerindo o progressivo distanciamento em relação ao centro da cidade. Integrou o projeto “Arte e Planejamento”, sob responsabilidade da Coordenadoria Geral de Planejamento do Município.

[foto]trecho do trabalho nos pilares do Minhocão nos anos 1970.

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Fabrício Lopez O artista, residente em Santos- SP, trabalha suas matrizes geralmente partindo do módulo básico das placas de compensado de 2,20x1,60m, criando paisagens que se apresentam ao espectador em dimensões que se aproximam do “tamanho real”, em representações oníricas cujo universo poético vem da vida em contato com o mar.

[foto] exposição A Concha Eloquente do Coração em que foram expostas matrizes do artista, realizada de agosto a outubro de 2013 no Centro Universitário Mariantonia.

Seu método de impressão é estritamente manual e caracteriza-se pela proximidade com a pintura: usualmente, na xilogravura, as diferentes cores de uma estampa são impressas a partir de diferentes matrizes. Já as estampas de Fabrício são resultantes da entintagem simultânea de diversas cores em uma mesma matriz, não havendo interesse em imprimir grandes quantidades de uma mesma estampa de forma seriada.

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Paulo Camillo Penna Tamanduateí (2013)

[foto] colagens de Tamanduateí sobre a lateral do Viaduto Diário Popular.

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Atual coordenador do ateliê de gravura do Museu Lasar Segall e co-fundador do Atelier Piratininga, é um gravador atuante no espaço público de São Paulo. Realizou, entre a rua do Gasômetro e o Parque Dom Pedro, seu trabalho Tamanduateí, que consiste em uma série de estampas xilográficas e cartazes tipográficos colados em livres justaposições com lambe-lambes nas imediações do rio oculto. O projeto foi contemplado pelo edital de Arte na Cidade, da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo.


Fernando Vilela Mais conhecido como ilustrador de livros infantis, o artista paulistano realizou alguns experimentos com lambe lambes xilográficos em grandes dimensões entre 2003 e 2004 , integrando o Projeto Lambe-Lambe relatados em sua dissertação de mestrado(ECA -USP).

[fotos] colagens de lambe-lambe registradas na dissertação de mestrado de Fernando Vilela.

Na imagem abaixo à esquerda, apesar de não se saber se a estampa foi projetada especifcamente para o local, ocorre uma reinterpretação formal da esquadria da porta ao lado da qual foi colada. Na imagem da direita, interessa a forma simples com a qual se acoplam as estampas lado a lado, em que se transcende a mera repetição de uma mesma estampa, promovendo uma continuidade variável às figuras.

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Ernesto Bonato Co-fundador do Atelier Piratininga, realizou diversas intervenções com lambe-lambe, entre as quais se destacou a colagem de um conjunto corações de baleia xilográficos em escala real sobre os pilares do Elevado Costa e Silva, também integrando o Projeto Lambe-Lambe.

[fotos] Coração de Baleia e colagem sobre ruína.

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“A gravura busca silêncio com Ernesto Bonato: embora seus cartazes estejam previstos para ocupar a cidade, visam amplificar-lhe o ruído, pois, nela entrando, silenciosos, silenciam-na.” ( Kossovitch p. 33, op.cit.)


Comando 14 Trabalhando em parceria, Frederico Heer e Guilherme Boso têm se destacado como criadores de cartazes xilográficos ligados à promoção de eventos relacionados ao movimento estudantil, sempre realizando colagens de lambe-lambe pelos espaços da cidade. A inventividade com que criam suas composições transparece na forma como modulam suas imagens que, como no tanque rosa-choque ao lado, a figura se repete de forma a invadir o espaço da figura subsequente, tanto na horizontal como na vertical, revelando que já na matriz está previsto que a imagem seria disposta “enfileirada”.

[fotos] tanque rosa-choque, colagem na ECA-USP(2013)e, ao lado, touro (2015)

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Francisco Maringelli O artista, que esteve desde há muito envolvido em colagens de lambe-lambe em São Paulo, produz cartazes xilográficos para divulgação de seus cursos, exposições e feiras relacionadas à gravura. Seu trabalho tem como atores principais a figuração da cidade e de seus personagens; as palavras, letras e grafias populares participando ativamente das composições revelam uma pesquisa rica sobre a expressão gráfica da cidade. “[...]retém a cena urbana como agressiva, no cortante da incisão e, ainda mais, na violência dos movimentos. Como cartaz, a gravura, em que a cidade se torna cena, volta à mesma cidade como pertsonagem.” ( Kossovitch, 2000, p. 33, op.cit.)

[foto] Demogorgon, cartaz de exposição de Maringelli em 1995.

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Monica Nador Paredes Pinturas

[fotos] Sede do JAMAC e estampas sobre muros de casas na periferia de São Paulo.

Apesar de já ter exposto trabalhos em paredes de museus e galerias, a artista tem como mérito maior a criação do JAMAC ( Jardim Miriam Arte Clube), espaço voltado a atividades artísticas para comunidades da periferia de São Paulo, em que produz estamparia com serigrafia e estêncil especificamente para os locais onde serão coladas em conjunto com os habitantes. Numa proposta relacional de trabalho artístico, a artista promove oficinas e ensina as técnicas à população para que possam, por si mesmos, criar motivos que se desenvolvem de forma padronizada em consonância com a pintura das paredes das casas, a partir de uma figuração que parte dos que vivenciam aquele espaço.

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Augusto Sampaio Interferências

[foto] projeto Cemig, paineis xilográficos em Belo Horizonte. 2004.

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O artista produz xilogravuras com motivos geométricos e destinadas a se tornarem murais para espaços públicos, entre as quais destacou-se uma série de intervenções nos terminais metropolitanos de São Bernardo do Campo em 2004. A consciência de inserção espacial dos trabalhos do artista é excepcional, transparecendo a preocupação com a adequação e a priorização do espaço ao qual seus murais se destinam. A maneira com que trabalha suas matrizes indica uma uma sofisticada participação do “branco de fundo” no contraste de suas imagens.


Gilberto Tomé Livrocidade Pi-Iêrê/Pinheiros e Cidadegráfica [fotos] abaixo, Livrocidade - colagem na região do Largo da Batata. na seguinte, Cidadegráfica mais abaixo, colagens de uma reprodução de xilografia ampliada em serigrafia sobre parede do Sesc Ipiranga, em 2005.

O artista realiza colagens de lambe-lambe com diversos tipos de reprodução gráfica em espaços públicos de São Paulo. Na imagem logo abaixo, vale notar a forma complexa como o artista varia as imagens nas serigrafias dispostas em linha. Já no segundo caso, na foto seguinte, o recurso é mais simplório, usufruindo da repetição alternada de três estampas com variação de posição e cor do papel.

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experiências anteriores

[fotos] Aí, xilografia sobre papel Whenzou,(1,00x 1,70 m), 2013. ao lado, montagem de sua inserção no edifício da FAUUSP

A definição da natureza prática do trabalho, delimitação do objeto e formatação de sua proposta aconteceram concomitantemente à produção de um conjunto de estampas cuja função era ser um primeiro contato experimental com grandes dimensões de xilogravura. Este primeiro contato aconteceu de fato alguns anos atrás, quando passei a frequentar o ateliê de gravura do CAP, Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. Havia lá uma dupla de alunos (Frederico Heer e Guilherme Boso) que produziam, em conjunto, grandes xilogravuras em chapas de compensado de 2,20 x 1,60, cujas impressões eram coladas às paredes do prédio. Influenciado por seus trabalhos, resolvi tentar usar um par de placas retangulares idênticas de compensado que havia encontrado numa caçamba para criar uma gravura em forma de quadríptico, que resultaria em uma mancha gráfica de dimensões da ordem de 1,20 x 1,80 m. Escolhi essa forma para aproveitar ao máximo as duas placas que tinha, das quais gravaria ambas as faces. Os cantos irregulares das duas placas mostravam serem provenientes de móveis, e a justaposição espelhada de todas as suas faces em duas linhas e colunas criava, oportunamente, uma forma que se assemelhava aos contornos da esquadria de uma porta de vidro de correr em tamanho real. Por ocasião da Expofau 2013, achei que seria uma boa oportunidade para usar as tais quatro matrizes e criar uma gravura especificamente situada em uma parede interna do edifício. Então, criei um desenho que “abria uma janela” na lateral da caixa do elevador no nível do último andar do prédio, revelando uma cena em seu interior, voltada para o Ateliê Interdepartamental (A.I.). No fim das contas, não fui capaz de colar a estampa exatamente onde pretendia por razões práticas, mas a fixei em outra parede próxima, que atendia suficientemente bem à proposta. Não fiquei muito satisfeito com o resultado, a ponto de não registrá-lo em fotografia e, assim, mantê-lo sob certo anonimato. Já se aproximava o final do ano, a reforma no último andar estava prestes a começar e a

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estampa foi arrancada da parede em pouco tempo. A impressão reproduzida na página anterior é uma nova estampa daquela gravura. Por ser esta gravura o princípio de tudo o que culminou neste tfg, tomei a liberdade de simular sua colagem no local para o qual foi projetada. Em 2014, tive a oportunidade de criar uma gravura sob encomenda para decorar a sala de recepção de um escritório de arquitetura. O processo de criação foi semelhante ao que havia feito em 2013 para a Expofau, e se iniciou com o levantamento fotográfico da sala e medição do tamanho da parede em que seria pendurada. As xilografias de Maria Bonomi e um livro sobre desenho técnico de carpintaria me serviram de inspiração para criar uma estampa de 2,20 x 1,30 m composta a partir 11 matrizes diferentes, provenientes da reciclagem de duas gavetas desmontadas. Ainda que contenha indícios claros da influência do construtivismo russo, a estampa foi criada utilizando o raciocínio de um quebra cabeças de peças xilográficas: de cada uma das peças de madeira, extraí ao menos duas impressões cuja mancha gráfica resultante era recortada do papel e disposta independentemente sobre o plano para criar a composição. Desta maneira de criar o desenho se originou o interesse pelas possibilidades de sobreposição das impressões, utilizando, no caso, o preto e o vermelho. O binário preto e vermelho acabou por tornar-se o motivo que dá sentido à composição, propondo uma figura que se realiza em dois esquemas perspectivos distintos e, de certa forma, incongruentes e ambíguos na ilusão de sua espacialização. Claramente, o “branco” de fundo do papel tende a assumir grande importância nesse método de composição, dado que ele prescinde da ideia de uma matriz cheia, positiva, da qual se retira, negativamente, o “branco”; a postura, no caso, é oposta, e o desenho é concebido essencialmente num raciocínio aditivo, que acarreta a imposição do “branco” 48


[foto] Criado Mudo, xilografia sobre papel Whenzou, 1,20 x 2,30 m, 2014. CrĂŠditos: Rafael Muto

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do papel desde o início. É corrente a ideia de que na xilogravura o valor principal de contraste é sempre o escuro que resulta das áreas não escavadas da superfície da matriz, o que evidencia uma questão de ordem prática da xilogravura tradicional: normalmente, quanto mais “branco”, mais trabalho. É muito difícil trabalhar as áreas vazias de forma a que o vazio se torne predominante na mancha gráfica; a tradição advinda da gravura expressionista contribuiu para afirmar este tipo de imagem de atmosfera predominantemente escura, em que o branco do vazio irrompe como luz ruidosa, brilhante e violenta de dentro de um continente escuro. Na história da gravura, verifica-se que este conceito, pelo contrário, de imagem xilográfica não foi, nem de longe, o mais frequente, sendo bastante recente, estabelecendo-se como padrão desde o advento da gravura artística moderna. Portanto, cabe aqui frisar que a realização dessa estampa foi determinante na constituição daquilo que seria desenvolvido neste tfg, por fertilizar em mim um novo campo de possibilidades de ordem prática na fatura da gravura, tanto no que toca à técnica, experimentando uma nova escala de trabalho, quanto em relação um conceito de imagem gráfica até então por mim desconhecido. Alguns diriam que caso não seja realizado o entalhe, na superfície da madeira, a rigor a obra não seria nem mesmo uma gravura, mas sim uma monotipia, ou uma simples frottage, dada a inviabilidade de reprodução quase idêntica de uma mesma imagem. Obviamente, esse tipo detrabalho não pode corresponder às exigências da tiragem gráfica tradicional. Diante da possibilidade de trabalhar com diversas matrizes livremente, como carimbos, num raciocínio construtivo e modulado, sobre um plano qualquer em que se possa imprimir as matrizes, experimentei a sensação de libertação das “amarras” da matriz retangular positiva, cuja subtração é o único meio para se chegar aos valores luminosos. 50


sobre a descrição dos processos

Pretendo aqui, antes de passar à descrição do trabalho realizado para o tfg, introduzir uma breve reflexão. Já há algumas décadas, faz-se grande alarde em torno da questão do trabalho artístico em sua qualidade inacabada, em detrimento da ideia clássica do trabalho completo, acabado, perfeito, assumidamente concluído. Ou seja, o que está por trás dessa revisão de valores é consequência de uma tardia percepção, por parte de alguns, de que o trabalho artístico se dá em processo. Processo este que é, muitas vezes, mais importante, poético, interessante e enriquecedor do que a própria obra acabada. Entendo que essa ideia carrega grande parte da narrativa que descreve o desenvolvimento da história da arte moderna, principalmente no que tange ao seu episódio chamado contemporâneo. No entanto, não é nenhuma novidade a exploração do processo de trabalho como motivo para determinadas obras de arte, e isso é possível verificar em diversos artistas na história: no caso da gravura, poderia citar Rembrandt, que deixava grande parte de seus desenhos e gravuras inacabados, e depois voltava a elas, alterando -as e reinventando suas possibilidades compositivas e poéticas em novos estados de uma mesma matriz. Uma vez que se assume a impossibilidade de se julgar criticamente o valor de um objeto artístico em sua perfeição e acabamento, já que isso não mais dá conta de explicar e atribuir valor às muito diversas manifestações da arte, cabe, muitas vezes, ao processo e aos meios pelos quais é desenvolvido o trabalho, evidenciarem sua riqueza ou qualidade artística. Entretanto, esta atitude, que se justifica para uma série de casos, acaba por ser, ao meu ver, prejudicial para tantos outros; o processo passa a ser fetiche, e assim, capaz de justificar qualquer coisa que se possa chamar de arte, pois o valor do processo trabalho de arte contemporânea é supostamente intangível, e se coloca no plano do conceito, e basta que um crítico floreie algumas palavras para que se assuma a importância daquele processo. Isso quando não cabe ao próprio artista explicar por meio de texto aquilo que sua obra, enquanto resultado e produto(in)acabado, é incapaz de suscitar à sensibilida51


de dos outros, que supõe serem pobres coitados que não conseguem entender o discurso da obra por falta de interesse e repertório. Meu argumento contra essa ideia é o de que o processo é, sim, a parte mais importante e enriquecedora, mas somente para aquele que dele participa, ou seja, que é autor ou que, de algum modo, participa do trabalho. E por isso, este assunto é tão caro a este momento do tfg, pois não desejo produzir aqui um “diário de bordo”, um relato descritivo em que se explicam todos os pormenores e em que se ilustra todo o processo do trabalho, com longas sequências de fotos e vídeos em time-lapse. Acredito que isso talvez mostraria supérfluo para o leitor, relacionando-se mais à minha própria disciplina e saber técnico. Muito do que aprendi com esse trabalho é dificílimo de ser passado para o texto e talvez não interessaria a ninguém que não eu mesmo, como por exemplo, o aprendizado sobre a minha própria expressão corporal, já que o fato de me defrontar com um trabalho de gravura de grandes dimensões suscitou em mim uma nova atitude física para viabilizá-lo. Como fazer disso algo interessante para os outros? Não sei, por isso optei por fazer descrições sucintas e o mais objetivas possíveis daquilo que estou produzindo, deixando as observações para aquilo que se mostre mais relevante a respeito dos trabalhos em si, sob a perspectiva de seu acabamento. Pois se fosse dar asas à imaginação a partir dos processos e tentar descrevê-los aqui, sua realização acabaria por perder o interesse e tudo seria apenas uma grande promessa, como acaba acontecendo com talvez uma boa parte da produção artística contemporânea: tem-se uma ideia na cabeça, essa ideia é transmitida por um projeto, cria-se uma propaganda em torno desse projeto, com vídeos e arrecadação do tipo crowdfunding em que muito se promete e pouco se realiza. E tudo isso acaba sendo justificado, pois o processo está registrado de alguma forma, e é ele o que se vende e o que se critica, e não o seu resultado e seu produto. 52


A fetichização dos processos tem o efeito extremamente deletério de fazer de artistas grandes projetistas, visionários de ideias exuberantes que, uma vez que têm o respaldo de alguma instituição que financie seus projetos e lhes dê visibilidade, terceiriza o trabalho para uma série de artífices que o realizam sob sua supervisão. E o que fica desse trabalho, muitas vezes é, no máximo, um vídeo que poucos vão assistir e sobre o qual pouquíssimos vão realmente pesquisar, entender e dialogar, dando continuidade a uma linguagem que se poderia desenvolver, entre outros tantos benefícios que legitimam a produção de arte. Ou seja, nesse arranjo da fetichização dos processos, só quem sai perdendo é a arte. No entanto, o foco aqui não é fazer a crítica da arte contemporânea sob a perspectiva de seus maus exemplos, mas sim justificar a forma sucinta com que apresento esses meus trabalhos, que não pretendem, inclusive, participar do que se chama arte contemporânea, mas simplesmente serem exercícios de expressão visual gráfica aplicada ao espaço urbano.

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ensaio preliminar relato

Até hoje, grande parte de minhas xilogravuras foram feitas a partir da reciclagem de peças de madeira que encontro pela rua, pois o formato da matriz e a conformação dos veios da madeira me servem de ponto de partida para a criação do desenho a ser gravado. Esta atitude recicladora me é muito frutífera na produção, pois estabelece os primeiros condicionantes às decisões que me levarão à elaboração do desenho. Não por acaso, as primeiras estampas produzidas para esse tfg são provenientes do recorte a laser de chapas de compensado naval utilizadas para a confecção de bancos numa oficina do LAME, realizada no início de 2015. O fato fortuito de eu haver encontrado os restos desses bancos na caçamba de descarte do LAME foi o estopim para que eu começasse a produzir. Obviamente, não eram restos de madeira quaisquer; sendo o “negativo” das peças do banco, conformavam um conjunto que constituía uma família de formas muito interessante, que se assemelhava a ornamentos orientais, ao mesmo tempo sugerindo um alfabeto de signos abstratos em que cada uma das peças continha variações sutis das mesmas formas. Não pude deixar de utilizá-las, pois nelas a racionalidade de aproveitamento do material propiciava a sugestão de uma linguagem. Seu aspecto alfabético, quase hieroglífico me remeteu muito às letras estilizadas das pichações, e isso me inspirou a criar com elas algumas composições. O procedimento seguinte foi uma catalogação do material de que dispunha: depois de cortadas e lixadas todas as matrizes, elas foram agrupadas por semelhança de tamanho e forma e impressas em tiras de papel de 60 cm por aproximadamente 2,50 m, sendo esta última a maior dimensão de que disponho em meu local de trabalho. O resultado foi uma série de tiras em que registrei todas as matrizes que possuía, dispondo-as intuitivamente e criando as primeiras associações compositivas entre suas formas; por vezes variando as cores da tinta, às vezes girando e invertendo o sentido de uma ou

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[fotos] Peças de madeira tranformdas em matrizes agrupadas por famílias de formatos e dimensões. Vê-se que já aí passam a surgir as primeiras composições.

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outra, e assim tendo um primeiro vislumbre de suas possíveis relações.

[foto] matrizes dispostas durante a criação da composição de Totem

O intuito deste primeiro esforço era também (re)familiarizar-me com tais dimensões de impressão, que demandam em sua execução um enorme esforço, uma vez que trabalho sozinho e realizo todas as impressões manualmente, transferindo a tinta com que carrego as matrizes ao papel com a fricção de uma colher de pau. Evidentemente, a qualidade de impressão melhorou progressivamente, assim como diminuiu o tempo e o esforço necessário para imprimi-las, pois estava desacostumado à manipulação das grandes quantidades de tinta necessárias para produzir estampas em tais dimensões. A segunda etapa desse primeiro experimento consistiu na decisão de criar um campo maior para as composições; acoplando lado a lado duas tiras de papel, resultando em dimensões de 1,20 x 2,50 m. Nessas dimensões, criei composições com as mesmas matrizes, já tendo maior consciência de suas relações formais e possibilidades de acoplamento. Utilizei um método derivado da tipografia móvel para realizar a impressão: as matrizes eram amarradas com barbantes pela lateral e espremidas uma contra a outra, o que impediria que se movimentassem enquanto eu as imprimia. Essa técnica impôs às composições uma característica mais compacta, pela conformação à qual as matrizes foram submetidas pela tensão do barbante. Escolhi livremente as variações de cores entre as tintas que possuía, sem elaboração prévia de testes de cor e contraste para as composições, que resultaram em figuras totêmicas, que se assemelhavam não mais a caracteres soltos, mas sugeriam máquinas, engrenagens mecânicas compostas de acoplamento de peças semelhantes. Ficou claro que para poder trabalhar com tais tamanhos, teria que melhorar muito minha técnica de impressão, assim como adquirir maiores quantidades de tinta e um rolo

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maior e de melhor qualidade para entintar as matrizes adequadamente. Além da constatação prática das dificuldades técnicas, a produção destas primeiras estampas me colocaram frente ao desafio principal da criação deste trabalho: a especificidade da inserção no espaço. Vale lembrar que as imagens produzidas neste ensaio preliminar têm caráter universalista, generalista, e, apesar de serem pensadas para o espaço público, não tocam exatamente na intenção colocada de início no trabalho, pois sua criação não partiu da leitura e interpretação de um determinado espaço ao qual estariam destinadas.Por outro lado, a principal dificuldade que se impôs desde o início do trabalho foi a escolha de um local específico da cidade, que serviria como laboratório para os ensaios de intervenção gráfica e, eventualmente, para a execução das colagens. Se fosse o caso, poderia dar continuidade ao desenvolvimento desses experimentos gráficos explorando e desenvolvendo a linguagem que resulta dessas formas, mas talvez isso seja um outro trabalho, com outro tempo de maturação, a ser desenvolvido mais tarde.

[foto] matrizes dispostas durante a criação da composição de Carruagem

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Totem, xilografia sobre papel manilha, 1,20x 2,40 m

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Carruagem, xilografia sobre papel manilha, 2,50 x 1,20 m.

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simulações de inserção

De início, movido por uma intenção de me debruçar sobre o centro da cidade, realizei tímidas incursões em busca de lugares de interesse para desenvolver meu projeto. No entanto, foi na vivência diária de observação e registro dos meus trajetos cotidianos, quase sempre feitos de bicicleta, que se revelaram alguns denominadores comuns entre os vários focos de interesse. Assim foi delimitado não um local específico para o projeto, mas uma região de abrangência, no caso, as margens do Rio Pinheiros, entre o Butantã e o Largo da Batata. Essa área de abrangência não fica restrita à antiga várzea do Pinheiros, mas pode espraiar-se para mais além. A ideia de um vetor que cruza o rio prolongandose em dois sentidos parece ser o mais adequado a expressar a área de abrangência em que resolvi trabalhar. Não se tratava, então, de definir precisamente um trajeto em que se desenrolasse sequencialmente algum tipo de narrativa, mas de demarcar com as estampas uma família de imagens gráficas entre as quais seja possível identificar relações poéticas para além da linguagem formal do desenho. O recorte físico do trabalho é, portanto, nada mais que uma região em que há diversos lugares convidativos à imaginação e propícios à colagem dessas imagens. O terceiro momento deste ensaio preliminar, logicamente, seria o seu desfecho, na medida em que seriam, finalmente, coladas as estampas em algum lugar da cidade. Mas antes de partir direto às colagens, interessa registrar as tentativas de previsão e simulação dessa colagem, que acredito terem resultado bastante interessantes. Neste sentido, criei uma pequena série de simulações com fotomontagens digitais de alguns possíveis arranjos na colagem desse primeiro conjunto de estampas. O local escolhido, neste caso, foi o cruzamento da avenida Doutor Arnaldo com a avenida Sumaré, sob o viaduto que contém a estação de metrô. As simulações foram produzidas sem um

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partido compositivo específico. São resultado de uma tentativa intuitiva de inserir em escala aproximada as estampas impressas até agora nas fotografias que tirei do local. Na foto abaixo, simulo uma colagem feita a partir da calçada da av. Dr. Arnaldo, vista da av. Sumaré. As estampas foram dispostas em escala aproximada à real, que coincide com a medida dos intervalos vazados sob o parapeito do viaduto, a presença de graffitis, pichações e lambe lambes nesta mesma superfície é convidativa à inserção de estampas com dimensões da ordem das que produzi até então.

fotomontagem 1 - av. Sumaré com viaduto Doutor Arnaldo

Apesar da longa distância que separa o parapeito de quem a vê de baixo, na Av. Sumaré, a escala , as cores e as formas das matrizes garantem legibilidade e contraste às suas partes constituintes e aos contornos bem definidos que a cor de fundo do papel proporciona. Portanto, considero essa simulação bem sucedida no seu potencial de inserção no local, dispondo de boa visibilidade e uma escala cuja dimensão não se torna desprezível em relação à da superfície em que se insere, ainda que sejam muito pequenas ante o porte colossal do viaduto e da estação de metrô que ele abriga. Bem-sucedida ela

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fotomontagem 2 - av. Sumaré com viaduto Oscar Freire

é também do ponto de vista da viabilidade de sua realização, dado que há espaço para que os braços passem pelo espaço vazado sob o parapeito, tornando, assim, a colagem viável e relativamente segura. A segunda montagem insere as estampas sob o viaduto da rua Oscar Freire, que passa por cima da avenida Sumaré, logo próximo ao viaduto da avenida Dr. Arnaldo. Agradame particularmente o resultado que obtive nesta montagem, tanto por sua verossimilhança quanto pela composição com o espaço em que se insere. Simula-se uma colagem cuja realização prática seria muito difícil, devido à inclinação do muro de arrimo sob o pilar, sobre a qual seria quase impossível equilibrar uma escada para alcançar o limite entre o pilar e a viga. A tira de papel da esquerda, com a estampa inteira em preto, parece, no entanto, passível de ser realizada sem o auxílio de uma estrutura de apoio, talvez com o uso de um cabo com extensor para o rolo com o qual se aplica a cola.

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fotomontagem 3 - Av. Sumaré com viaduto Oscar Freire

A terceira fotomontagem foi feita como uma variação para o mesmo local da anterior, mas numa colagem um pouco mais fácil de se realizar. Simula-se aqui uma possibilidade de aplicação nas laterais, cuja colagem seria viável sem a necessidade de uma escada. Porém, o resultado não me convence muito; nem pelo seu realismo, nem enquanto composição da colagem, que não se apropria da forma da estrutura como faz a anterior. O arranjo proposto nesta terceira foto faz com que as estampas apareçam soltas, sem relação entre si, ao contrário da montagem anterior, em que as estampas sugerem uma espécie de pórtico que sustenta o viaduto, de forma a incorporar-se ao desenho construtivo do pilar. A escala das estampas está errada nesta montagem; depois de feita fui verificar no local e constatei que a área ocupada pelas estampas seria um pouco maior, e não haveria a possibilidade, por exemplo, de dispor as duas estampas mais à direita na

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foto, como propus.

fotomontagem 4 - Av. Sumaré, sob a Estação de metrô

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Na quarta montagem , proponho a colagem sobre os pilares do viaduto da av. Dr. Arnaldo. O arranjo foi feito de forma a contemplar uma aplicação possível sem o auxílio de nenhuma estrutura de apoio, procurando fazer com que as estampas ocupassem cada um dos três pilares. Claramente, a escala das estampas não está adequada à magnitude dos pilares; talvez, se houvesse o dobro de área de papel impresso, já haveria uma interferência visual impactante, mas como o intuito dessas montagens é simular as colagens a partir do material que já possuo, e não simplesmente dar asas à imaginação, optei por não inserir uma quantidade maior de estampas nas paredes, inclusive por que isso implicaria na sua repetição. Nesta montagem ainda há uma certa imprecisão de escala, como na anterior, e conforme as medições que fiz no local, as estampas são, na


fotomontagem 5 - Av. Sumaré, sob a Estação de metrô

realidade, maiores do que estão na simulação. A quinta montagem é uma variação da anterior, em que optei por concentrar-me apenas em dois dos pilares. O resultado da composição no pilar do meio me pareceu bem resolvido, pois dá conta de ocupar com a linha horizontal superior toda a largura do pilar, obtendo uma impressão de preenchimento e completude. A solução se aproxima mais da que propus para a segunda montagem, sob o viaduto Oscar Freire, em que tiro partido da forma do pilar enquanto construção para criar a composição. A estampa isolada no pilar à direita, apesar de centralizada, parece muito solitária e não se adequa à escala do pilar. Provavelmente, estaria melhor se trocasse de posição com a outra sua semelhante, que está na vertical, centralizada lado a lado com o graffiti do saci-pererê, e esta outra, colocada na horizontal, ocupando o pilar da direita. 71


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ensaio no 2 módulos vibrantes

Como segundo momento do trabalho, me propus um exercício mais curto e simples. Consciente de que produção da xilogravura e seu método de impressão tomam muito tempo e esforço, optei por experimentar realizar um trabalho com serigrafia, aproveitando a oportunidade de que já estava cursando uma disciplina optativa em que teria de utilizar o ateliê de serigrafia do LPG da FAUUSP. A ideia que tinha em mente era criar uma imagem que pudesse ser impressa muitas vezes e utilizada como módulo de uma composição para realizar colagens de lambe-lambe, como um mosaico, mas sem ter, necessariamente, a característica de um padrão visual. Sua especificidade seria a de que o módulo deveria poder ser justaposto aos seus semelhantes em qualquer posição. Ou seja, girando-se o desenho em todas as suas orientações, haveria ao menos oito diferentes possibilidades de “acoplamento” entre duas reproduções da mesma imagem. O módulo mínimo foi pensado, então, como um desenho que, em sua composição, apontasse para fora de seu próprio campo em diversas direções, podendo, assim, sugerir a continuidade de suas formas no desenho ao seu lado. Havia, além disso, a intenção de que o resultado do arranjo feito com várias impressões desse módulo mínimo criasse um desenho agressivo, caótico e desordenado, para que gerasse uma sensação visual tanto interessante quanto incômoda a quem o visse. Para a composição, foi criada uma grade cujo elemento visual principal era a diagonal. As partes desenho, uma vez mapeadas, poderiam sempre sair para fora de seu campo de maneira que criassem continuidade com alguma outra forma que escapasse de alguma outra direção, levando em conta os quatro lados do desenho. Dessa forma, utilizei uma espátula para desenhar com tinta xilográfica a composição sobre uma mesa de vidro e extraí dela uma monotipia das dimensões da maior folha de 73


papel adequado à impressão de que dispunha, no caso o papel jornal A2. Satisfeito com o resultado, resolvi que seria esse mesmo o tamanho e formato do módulo mínimo do trabalho e que o imprimiria naquele mesmo papel, mas em duas cores, no caso preto e vermelho, cores que, àquele momento, já tinha escolhido como identidade cromática para meu trabalho. Minha ideia era, no entanto, não utilizar o vermelho como parte do desenho e o preto como outra parte , mas sim sobrepor duas impressões da mesma imagem em vermelho e em preto. Assim criaria, a partir da monotipia, uma só tela serigráfica que serviria de matriz para ambas as impressões que constituíam cada módulo do trabalho. A sobreposição do preto sobre o vermelho seria feita com o intuito de criar um efeito de vibração da imagem. Ou seja, uma vez impresso o vermelho, o preto seria impresso por cima deste, mas ligeiramente deslocado para que aparecesse a impressão anterior e, nessa sua forma de aparecer, criasse um efeito visual de meio-tom quente que vibra, enganando os olhos, que vêem duas vezes a mesma imagem, ainda que em cores diferentes, como se houvesse uma falha de comunicação neurológica entre eles. Esse efeito gera um incômodo visual, que atuaria como agravante no sentido da agressividade que o desenho já, por si só, possuía. Ao imprimir a serigrafia, decidi que imprimiria sempre o preto por cima do vermelho pois achava que, na ordem inversa, haveria interferência do preto de baixo sobre o vermelho de cima, que tenderia a desaparecer onde estivesse sobreposto o preto, como ocorre na xilogravura. Mas o que ocorre na serigrafia é muito diferente: como optei por não reticular digitalmente a imagem que seria gravada sobre a tela serigráfica, para preservar as características da monotipia a impressão resultou chapada. Não ocorreu qualquer forma de transparência entre as duas cores, como eu de início imaginava. Portanto, caso eu houvesse invertido a ordem das cores, isso não prejudicaria a impressão 74


[fotos] monotipia original em tinta xilogråfica sobre papel jornal e sua reprodução em serigrafia a duas cores. (42x59,4cm)

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como eu antes imaginava. Conclui-se daí que a escolha de imprimir o preto por cima tinha, na verdade, outra razão: a de que a imagem resultante adquiriria, assim, maior contraste e visibilidade em relação ao fundo creme do papel, do que se o preto aparecesse simplesmente escondido por baixo do vermelho, que o encobriria quase completamente. Interessa aqui tocar nesses detalhes pois isso viria a ser para mim uma lição que levaria adiante nos trabalhos, nos quais uso a sobreposição entre preto e vermelho na xilogravura, mesmo que a qualidade de impressão xilográfica seja muito diferente da serigráfica, muito mais rica em ruídos, imprecisões e transparências. A questão da qualidade da impressão serigráfica se coloca nesse momento, pois pude verificar sua interação com a impressão xilográfica e observar que é dotada de uma carga material espessa, que lhe confere uma sensação (inclusive ao tato) muito palpável, que salta em relação ao papel. A qualidade de tinta que se usa na serigrafia, baseada em solventes, é muito diferente daquela das tintas xilográficas, baseadas em óleo. A tinta oleosa forma um filme sobre as camadas de tinta subjacentes, e isso lhe confere, dependendo da saturação e quantidade de tinta utilizada na impressão, um caráter quase semitranslúcido que se soma com a presença dos veios da madeira criando ricas transparências. Sem retículas, a tinta serigráfica não é capaz de produzir tranparência, e ainda que a impressão de serigrafia seja riquíssima em qualidade se comparada ao padrão de impressões digitais. a materialidade de sua tinta é muito saturada e forma sobre o papel uma superfície plana e lisa, que apesar de opaca, gera muitos reflexos. Realizei esse exercício na tentativa de criar um elemento gráfico coadjuvante em relação às figuras e formas que viria a gravar depois. A intenção que tinha era ocupar, com esses módulos, espaços intermediários entre as estampas xilográficas da próxima série que iria fazer, no contexto de sua inserção na cidade. Contudo, acabei desistindo de utilizá-las 76


em conjunto pois, visualmente, não formam uma boa combinação, seja pela diferença da qualidade da cor das tintas, que é perceptível, seja pela qualidade da textura que têm. O que ficou evidente é que não funcionariam juntas como parte de um mesmo trabalho. Seria impossível demonstrar, com a reprodução impressa deste caderno, a maneira como contrastam os dois tipos de impressão, mas na sua presença física são tão diferentes, que colocadas lado a lado, parecem pertencer a dimensões diversas. Tal fato, além de contribuir para a decisão de fazer deste um episódio à parte dentro do conjunto de trabalhos, trouxe empiricamente um reforço a uma de suas hipóteses centrais: a de que é na presença física das estampas que se percebe que, tal qual objetos, são carregadas não só de informação visual, mas de qualidades táteis que não dependem do toque para que sejam percebidas. Por isso, volto a enfatizar que não é possível apreender a qualidade de gravuras sob conceitos de imagem, e sim como objetos que se colocam no espaço, principalmente quando se trata de grandes dimensões, nas quais essa materialidade perceptível se faz ampliada. Como desenvolvimento desta etapa, produzi alguns estudos simulando sua eventual colagem de lambe-lambe na cidade, buscando explorar as possiblidades compositivas e os arranjos resultantes de seu raciocínio modular, mas mantendo fidelidade à verossimilhança destas simulações, sempre levando em conta a escala e a quantidade real de estampas que existem. Nesse capítulo optei por mostrar apenas alguns estudos de suas combinações, mas como, de início, as serigrafias foram pensadas como elemento constituinte do que viria a ser a próxima etapa do trabalho com xilogravuras, elas estarão presentes também em simulações que virão no próximo capítulo. A partir das simulações, pude perceber que, apesar de estar satisfeito com o aspecto que as estampas assumem e com as formas que resultam das diferentes disposições de seus módulos, não creio que sua escala contribua para que que o efeito visual que pretendia 77


fotomontagem 6- Lateral do Viaduto Bernardo Goldfarb

obter com elas ocorra efetivamente nas ruas; vistas de longe, parecem simplesmente um ruído visual, é preciso chegar um pouco mais perto para entender do que se trata. Neste momento do trabalho, já havia escolhido um novo local de investigação para inserir as estampas, no caso uma região de abrangência delimitada pelas imediações do rio Pinheiros. Poderia defini-lo como um percurso para as colagens, iniciando no cruzamento entre a av. Eusébio Matoso e a av. Vital Brasil, sobre o túnel que leva ao Jóquei Clube, transpondo o rio pelo Viaduto Bernardo Goldfarb e chegando em Pinheiros pela Rua Butantã, indo em direção ao Largo da Batata. No primeiro exercício de simulação da aplicação desta estampa, optei por usá-la como um padrão que não atuaria exatamente de forma a revestir completamente uma superfície, mas iria constituir, ele próprio, uma figura. A sequência de repetição e variação foi

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fotomontagem 7 - oficina mecânica Rua Butantã

feita de maneira intuitiva, simplesmente desenhando a partir da forma do viaduto, que vem estreita desde o parapeito do viaduto até se alargar e cair sobre as pedras queimpossibilitam que o chão das laterais do viaduto seja ocupado por qualquer pessoa. Imaginei que minha estampa poderia interagir com o monte de pedras que ali repousam, enfatizando a agressividade que caracteriza aquele não-lugar. A segunda simulação deste ensaio foi realizada a partir da lógica mais convencional possível: repetir a imagem de maneira ordenada e ortogonal de forma que ela preencha uma determinada superfície, revestindo-a. No caso, escolhi revestir as paredes da fachada de uma oficina mecânica, cuja vizinha ostentava uma fachada muito mais expressiva e marcante, num exemplo de pichação com consciência visual invejável. O resultado me agrada pela sua óbvia relação de contraste com o padrão de ladrilhos preto e branco da oficina ao lado e pela adequação da escala dos módulos à situação, que condiz com o

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fotomontagem 8- entrada do Mercado Municipal de Pinheiros

tamanho das paredes da fachada. No entanto, o uso que se faz da estampa aqui tende anular sua expressividade enquanto desenho, por torná-la mais próxima de uma estamparia de papel de parede comum. O terceiro exercício de simulação foi realizado no Mercado Municipal de Pinheiros com o intuito de subverter um pouco a conformação regular da disposição das estampas, em contraposição às montagens anteriores. Neste caso, tentei conferir maior autonomia às variedades de formas que as linhas de força da imagem sugerem; quando se desloca a linha de encontro entre duas estampas dispostas lado a lado, tanto na vertical quanto na horizontal, surgem novas possibilidades de “acoplamento” no desenho, que acredito conferirem maior vida ao conjunto do que dispondo-as de forma mais regrada.

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Da mesma forma, as lacunas deixadas no conjunto por esse deslocamento, como aconte-


ce nos “vazios” azuis da mancha gráfica da imagem acima, contribuem para sugerir à percepção visual possíveis elos implícitos entre suas partes, de modo que o vazio acaba por contribuir positivamente. Ainda assim, não tive a ousadia de sair do registro ortogonal e da livre sobreposição das estampas, o que poderia levar a um novo rol de possibilidades. Acredito que dar esse passo descaracterizaria a lógica do exercício, pois a tendência dessa atitude em relação à composição é a de recair numa livre colagem, na qual a linguagem que surge da interação entre as formas de uma mesma família se perde. Não faz sentido criar um desenho que possa se ligar a outro dele mesmo de diferentes maneiras, se no limite posso simplesmente recortá-lo como bem entender e utilizar seus pedaços como quiser, superpondo, rasgando-o e recortando-o para criar a composição. O raciocínio modular se esvazia à medida em que se nega o módulo e passa-se a submetê-lo à livre disposição da intuição, e essa é a questão com a qual me deparei ao criar este trabalho. Ainda que não tenha, intencionalmente, criado o módulo sob regras rígidas de composição, que levariam a conseguir “acoplamentos” perfeitos entre as diversas partes das estampas, essa atitude não deixou de resultar no “engessamento” que me incomoda em relação às composições gráficas padronizadas. A tendência do módulo, enquanto elemento visual gráfico, é sempre a de perder sua singularidade à medida em que se multiplica dentro de uma mesma composição visual. É isso o que ocorre com minha estampa: quanto mais ela se multiplica, menor seu interesse enquanto desenho. É possível que essa situacão indique, meramente, que não fui capaz de criar um bom módulo, pois caso o fosse, isso não aconteceria, e o desenho, ao invés de se perder na sua multiplicação, nela se encontraria. O que posso concluir é que o bom módulo depende de uma visão que seja tão consciente de sua singularidade quanto do todo a ser composto pela sua multiplicação. No meu caso, eu conhecia muito bem a singularidade do módulo, mas ao desenhá-lo não previa, de forma alguma, onde queria chegar com ele; simplesmente esperava que o acaso fizesse a sua parte. 81


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ensaio no 3 matrizes tipográficas

[foto] ao lado, estudos de desenho de letra apartir das matrizes

9. Hind, Arthur M.1963, op.cit. p.64

O terceiro ensaio deste trabalho foi movido por uma intenção já antiga de me aventurar no terreno das letras e palavras em sua relação com o desenho. A figuração baseada no desenho de observação e no formalismo geométrico têm sido os pilares da minha zona de conforto em relação à expressão gráfica. Neste sentido, o primeiro ensaio deste tfg trouxe uma grande contribuição, pois me fez lidar com matrizes prontas cujas formas, intuitivamente, interpretei como análogas a letras, com certa regularidade de ornamentos e uma linguagem visual comum que, no caso, tinha origem no desenho industrial. Aliado ao fato de que, por conta de uma disciplina optativa, tive meu primeiro contato com matrizes tipográficas no início deste ano, o interesse pelo caráter alfabético e ideográfico que aquelas peças negativas do corte a laser de um banco suscitaram à minha imaginação me trouxeram a ideia de que uma boa maneira de colocar a xilogravura como linguagem gráfica para grandes dimensões seria utilizá-la como letra; pois, assim, tem maior apelo visual em meio à sobrecarga de estímulos e manifestações gráficas que a cidade comporta. Além disso, se utilizada como módulo, a letra contribui para tornar possível a composição de um número maior de estampas e acelera os processos de impressão, dado que é muito mais rápido utilizar várias vezes um mesmo conjunto de matrizes que contenham letras do que entalhar tais letras numa matriz única. A tipografia móvel com matrizes xilográficas remete aos primórdios da imprensa na China do século II d.C. e já era utilizada para imprimir, não letras, mas ideogramas9. No entanto, ainda assim, tratava-se de algo ligeiramente diferente, pois o ideograma chinês não é uma célula básica da escrita, tal qual a letra o é para o alfabeto romano. Mas o que interessa aqui é o percurso da xilogravura de grandes dimensões na minha produção, acarretando em uma volta a princípios primordiais da xilogravura. É claro que tal influência já estava na prática do lambe-lambe corrente hoje, que é essencialmente tipográfica, mas meu interesse era outro: tentar apropriar-me da letra não somente 83


[foto] acima, matrizes das letras S, N, D (e O) e C.

enquanto texto, mas enquanto gravura, o que também não se traduz em nenhuma novidade, já que tantos artistas o fazem, como exemplo Jasper Johns, que se apropria do desenho de letras extensivamente em sua obra gráfica. Não há nada de inaugural nesse percurso em que a gravura se encontra com a letra, percurso esse que foi já tantas vezes traçado por gravadores. Porém, isso nos indica, talvez, um “eterno retorno” da gravura a algo que lhe é muito próprio, que está no interior de seu desenvolvimento. Não falo aqui exatamente da história da imprensa arcaica oriental, mas de algo mais distante, pré -histórico, que remete à gravura em seu sentido original, do ato de riscar e gravar sobre uma superfície uma grafia, antes de existir a distinção entre escrita e desenho. E é nesse ponto que a volta à letra na atitude gráfica se encontra: na consciência de que o valor da matéria gráfica independe de ela ser ou não escrita ou desenho. Inevitavelmente, ela é uma grafia, em seu sentido mais profundo, e ser ou não comunicação escrita literal é uma questão secundária que passa ao largo das suas motivações essenciais. No meu caso, o ponto não é simplesmente fazer gravuras usando as letras como motivo; desejo comunicar literalmente um texto, mas esse texto não necessariamente prepondera em relação à gravura. Na realidade, como ficará evidente neste capítulo, o texto surgiu a partir das condicionantes físicas das matrizes de madeira, e das necessidades

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[foto] acima, matrizes das letras V, A, L e E.

que a técnica gráfica impuseram à proposta do trabalho. O texto acaba sendo mais uma consequência do que um fim, cujo meio necessário era a gravura. Novamente, não por acaso, quatro matrizes encontradas por mim em caçambas foram o que deu início a esta etapa do trabalho; sua particularidade era a de serem em dois pares de peças de madeira iguais, cujas dimensões da mesma ordem eram perfeitamente ajustáveis à largura (60 cm) do rolo de papel manilha que tenho utilizado para imprimir as estampas desde o começo do trabalho. A escolha deste papel se deu em função do seu preço baixo, sua largura relativamente grande e de sua viabilidade para a impressão manual, o que não significa que seja um bom papel para gravura. O formato característico das matrizes imediatamente me sugeriu letras circcunscritas em sua silhueta, e a coincidência de serem dois pares de matrizes iguais, levou à ideia de que poderia criar a partir delas oito letras, utilizando ambas as faces de cada peça de madeira como matriz. Assim, passei a tentar encontrar relações geométricas dentro de cada matriz que, intuitivamente, me levaram às letras L , A, N, S, V, C , E, D e O, esta última sendo simplesmente a versão girada a 180 graus da letra D. 85


A partir daí, passei a buscar todas as palavras que conseguia formar com as letras que possuía, sempre levando em conta que não poderiam ser palavras muito longas, pois seria inviável imprimir tiras de papel muito compridas. Por isso, as palavras têm em média de 5 a 7 letras, que se acomodam em tiras de papel da ordem de 2,5 metros de comprimento. Novamente, era o tamanho da maior superfície plana de que disponho em meu local de trabalho para imprimir as estampas, o que determinou sua dimensão, e assim, dei continuidade ao método que já havia experimentado na etapa preliminar, em que utilizei as matrizes de corte de banco. É interessante como as condicionantes materiais contribuem mais do que atrapalham no desenvolvimento de uma linguagem artística plástica; se não há limites para o trabalho, ele passa a ser intangível, “abstrato”do ponto de vista de sua realização e, consequentemente, pobre em termos de linguagem, pois não é possível “colocá-lo no papel” de maneira adequada. A própria presença física, na qual se efetiva, é o ápice da complexidade e riqueza que um trabalho desse tipo pode almejar. Se não há esta consciência por parte do autor, um abismo entre ideia (conceito) e resultado (produto) claramente se evidenciam. Isso não quer dizer que, necessariamente, o trabalho só terá qualidade se realizado sob este método. Mas, na minha experiência, e creio que na de muitos outros, o que mais contribui para o processo criativo é a consciência das limitações técnicas e físicas, pois é ao lidar com elas que se vislumbra com mais clareza as possibilidades de realização do trabalho, possibilidades que vêm à tona através da experiência de tentar, testar, do embate com a matéria. Se há uma linguagem artística que prescinde desse trabalho “braçal”, ela é, para mim, coisa de gênios, e somente deles. Uma vez gravadas as letras que possuía, passei a encará-las tal qual um “jogo” de formar palavras, que em seguida formariam um texto. A natureza deste “jogo” seria consequência da lógica de que, por terem mais ou menos as mesmas dimensões e serem formadas 86


[foto]primeiros rascunhos de aplicação das letras.

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pelas mesmas letras, as palavras poderiam ser, enquanto manchas gráficas, equivalentes, tornando possível jogar com sua variação e repetição em composições que se dariam nos espaços onde as estampas viriam a ser coladas. A forma de texto que se mostrou mais condizente com a proposta foi a do poema, pois as palavras se desenvolveriam uma a uma sob intervalos rítmicos no espaço, e seu formato horizontal contribui para que tenham uma leitura linear nesse seu desenvolvimento espacial, cujo intervalo remete à estrofe, principalmente no que toca à tradição concreta da poesia. No entanto, afirmo que não tenho, com esse trabalho, a intenção de produzir poesia, linguagem com a qual não possuo afinidade e tampouco repertório para produzir uma criação poética elaborada, em que se explore com riqueza seus aspectos sintáticos, semânticos, fonéticos e rítmicos. Por isso, reitero a preponderância que a linguagem visual assume nesse trabalho. O máximo a que posso aspirar é jogar com “dizeres” cujas rimas podem remeter ao poema, mas que somente sugerem significados de natureza poética por serem por vezes enigmáticos e ambíguos, me aproximando mais daquilo que se realiza no graffiti e no lambe-lambe. Não se tratando propriamente de poesia, sinto-me mais isento e à vontade para poder “jogar” com as palavras sem maiores pretensões. À medida em que as palavras iam surgindo, suas sequências iam se afigurando para mim, e, por alguma razão que ainda não sei explicar, seus significados se encadearam por meio da palavra ”se” que, colocada após os verbos, assume por vezes a função de pronome reflexivo, mas que pode ser também a partícula passivadora dos verbos, e outras vezes uma conjunção que indicaria a continuidade dos períodos. A maioria dos verbos está no modo imperativo, aludindo diretamente à linguagem publicitária, e a intenção é justamente colocar tais palavras de ordem em situações de ambiguidade, pois dependendo de como se situam em relação às outras, podem assumir outros sentidos. Por isso, a palavra “se”está sempre destacada do verbo por uma segunda impressão em preto por 88


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cima do vermelho, para que fique claro que se trata de outra palavra, e não de um erro ortográfico grave, e para que assuma em todas as suas ocorrências uma mesma aparência gráfica, o que tende a generalizar seu sentido particularizando a palavra enquanto elemento gráfico, contribuindo à ambiguidade. Se eu optasse por colocar o “se” em só uma ou duas palavras, cada qual impressa de um jeito, ou simplesmente em vermelho como os verbos, o sentido de “se” seria particular a cada um dos casos, tornando mais restrita possibilidade de se jogar com os significados. Em alguns casos, procurei diminuir a indefinição do “se“ utilizando uma matriz que sugere um hífen. Mas sua função não é necessariamente essa, sendo apenas mais um recurso de linguagem que contribui para a ambiguidade, podendo indicar uma vírgula ou ponto, separando visualmente uma palavra da outra dentro da composição da estampa. Dando continuidade ao método desenvolvido até agora, passo às observações sobre as 94


simulações de inserção das estampas nas ruas. A imagem acima ilustra uma disposição mais espaçada, com boa folga entre cada uma delas. No caso, tirei proveito da perspectiva da foto, que tem em primeiro plano o muro entre as duas pistas da av. Eusébio Matoso, com o início do Viaduto Bernardo Goldfarb. Esse exemplo, no entanto, me traz dúvidas quanto ao seu arranjo pouco denso, que adquire uma leitura linear somente do ângulo de onde a foto foi tirada. Para aquele que olha mais de longe, ou de um ângulo menor em relação à linha da rua, imagino que a composição perca a pouca unidade que tem. Ainda assim, acredito que se trata de uma alternativa interessante, pois situandose as estampas com maior espaçamento entre si, cria-se maior independência entre as partes do conjunto, o que pode conferir maior dinâmica e movimento à composição, principalmente na perspectiva de alguém que caminha nesta mesma calçada vindo do cruzamento da av. Vital Brasil em direção ao rio. A partir desse trajeto poderá ver o arranjo entre as palavras assumir diversas conformações, do esparso ao alinhado. 95


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As duas imagens aqui apresentadas constituem dois momentos de uma mesma simulação, em que proponho uma composição estritamente linear das estampas nas extremidades do mesmo viaduto num arranjo simétrico, em que o rio estaria no centro. Não presumo que ambos os lados possam ser vistos simultameamente pelo pedestre, mas pretendo aqui demonstrar uma alternativa de inserção cuja justificativa se dá na leitura do viaduto como um todo, concentrando a disposição em seus locais de entrada e saída , no momento em que o viaduto repousa seuspontos de apoio sobre as margens do rio. A força expressiva deste arranjo está, portanto, na indicação de um vetor de movimento visual que a forma do viaduto, vista em perspectiva, suscita ao pedestre. As estampas serigráficas do ensaio anterior foram incluídas nesta montagem, como intervalo rítmico entre as palavras, garantindo o espaçamento destas de forma que ainda permaneçam “conectadas”por uma ruidosa mancha gráfica preta e vermelha. Acredito

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que essa seria uma boa forma de empregar as serigrafias, uma vez que eu desconsiderasse o problema do “estranhamento”que considero resultar da justaposição das estampas serigráfica e xilográfica, já citado no capítulo anterior. Das simulações que apresentei até aqui, poucas levam em conta a viabilidade imediata de execução de suas colagens, uma vez que estão em locais altos e de difícil acesso, onde somente ousados e escolados pichadores teriam a capacidade de chegar sem o auxílio de equipamentos de segurança. Entendo que, por se tratar de exercícios de linguagem visual, não necessariamente devo me ater somente ao plausível, pois este é o momento de “sonhar alto”, sem perder, é claro, as referências da realidade como, por exemplo, a escala das estampas e sua quantidade impressa real. O mais importante é ressaltar que a escolha destas situações para a simulação de colagem das estampas está na origem de sua criação; foi também a partir da observação destes locais, que são parte dos meus

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trajetos cotidianos, que surgiu a ideia para estas gravuras, não se tratando, portanto, de uma escolha por mera conveniência. Evidentemente, há infinitos outros locais com essas características na cidade, por isso, minhas gravuras não são trabalhos site specific, mas têm sua gênese a partir de situações espaciais específicas. Na terceira simulação, foi escolhida a entrada do túnel que passa por baixo da av. Eusébio Matoso, indo em direção ao Jóquei Clube. Nela, proponho uma disposição mais compacta e linear, acompanhando a descida do terreno. O ponto de vista é uma calçada onde, normalmente, há pessoas sentadas em mesas do lado de fora de um bar, e nessa conformação, o conjunto toma uma forma mais próxima do poema concreto. A palavra “se” é responsável por garantir a rítmica, sendo como um ponto de ligação entre uma estampa e a seguinte. A ideia para o formato dessas estampas foi, em grande medida, influenciada pela forma das placas de concreto que conformam o muro que abriga o

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túnel, por isso acredito que há uma boa adequação das estampas a este local, no que diz respeito à escala.

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A fotomontagem acima seria a simulação de uma variação da proposta anterior, inserida no muro oposto do mesmo túnel, mas baseada numa composição diferente da anterior por não dialogar exatamente com a forma do túnel, e sim por se tratar de uma disposição mais autônoma, em que o próprio encadeamento das palavras assume protagonismo. A ideia aqui era jogar com linhas de texto paralelas cujos significados e sentidos de leitura se embaralham. Novamente, o ponto de ancoragem entre cada palavra é a sílaba “se”, ainda que tal condição não se aplique rigorosamente à sequência toda. Procurei trabalhar com uma estrutura de texto em que tanto é possível ler as palavras em linha reta, quanto em “zigue-zague”. Entretanto, importa mais entender que o interesse está na escolha entre possiblidades de leitura de um mesmo texto: no sentido convencional


de leitura, as palavras da linha de baixo ocorrem, no início do texto, mais espaçadas, cadenciando o ritmo mais constante e compacto da linha de cima; já no final do texto, tal arranjo se dissolve, e não mais há essa diferença entre as duas linhas, sugerindo uma dispersão, tanto no sentido da leitura enquanto forma visual, quanto no significado do texto. Cabe aqui, para concluir o capítulo, tocar no assunto da escolha de palavras e do significado do texto. Soaria quase petulante, hoje em dia, tomar a licença poética de parafrasear a canção de Chico Buarque, “Cálice”, como início de qualquer manifestação artística. No entanto, reafirmo tal petulância ao colocar no meu “cale-se” uma conotação provocativa que persegui ao longo de quase todos os “poemas” gráficos que criei neste ensaio. Diria que o tom do discurso é irônico e pessimista, pautado pela ideia do “lançar-se” enquanto sentido figurado e literal, dada sua inserção em laterais de viadu-

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tos, pontes e túneis, locais que sugerem vertigem e mesmo queda, no caso daqueles que estejam dispostos, a partir de ideias suicidas, a se jogar do alto no meio dos carros. Mas a ideia principal dos textos está na oposição entre os conceitos de “ler” e “ver”, como dois momentos de um mesmo ato que estão no cerne da questão colocada por este trabalho, em que decidi operar com gravuras de caráter alfabético. Travestidas de graffiti ou, queira-se, de pichações, as estampas trazem em tom publicitário a sentença imperativa que está, na verdade, implícita ao próprio objeto colocado nas paredes da rua; para se efetivarem, a “arte de rua” e as, já em vias de extinção, faixas de propaganda e protesto, devem se lançar ao público, se promover enquanto marca e discurso. Assim como o fazem a pichação, o graffiti e a arte enquanto mercadoria, na medida em que esses dois últimos participam da publicidade. As referências são as mais variadas, indo desde o jogo com as corriqueiras faixas em que se lê “VENDE-SE, até uma provocação direta com a estampa “LANCE-SE”, à significativa campanha de mesma natureza “LAMBE” promovida pela Gráfica Fidalga, hoje espalhada por toda São Paulo. Minha intenção é, contudo, não apenas provocar, mas suscitar a reflexão acerca do que se pode apreender de uma palavra ou de conjuntos delas dispostos em paredes das ruas que podem ser, a um só passo, gravura, lambe-lambe, desenho, graffiti , pichação, propaganda, poema e protesto. Ainda que as estampas não estejam de fato nas ruas esse é um momento necessário, em que me propus a pensar, testar e conjecturar as melhores formas de realizar esta empreitada. Se atingi minhas expectativas com esta série de estampas tipográficas, isto se deu no contexto de um exercício curto de experimentação, pois sinto ainda estar muito longe de haver explorado a linguagem das composições a partir das “matrizes-tipo” que pro102


duzi. Certamente, enquanto gravura, suas qualidades estão restritas a um tipo de entalhe em que o gesto da incisão que abre luz na matriz não participa; os valores gráficos que procurei explorar aqui seguem a hipótese de que, para que funcione como elemento visual que se integra à paisagem, é necessário abdicar do prazer de imprimir à gravura a característica mais gestual, prevalecendo o corte e o desbaste de grandes áreas de luz em detrimento das hachuras e incisões. Os valores gráficos que se impõem no tipo de gravura produzida neste ensaio são os do contraste geométrico da luz de fundo, o “branco” do papel, em sua relação com a sutil transparência da mancha gráfica resultante dos veios da madeira, que conferem às letras uma singularidade em relação às tipografias comuns. A intenção primeira, de “desenhar” com as letras e com seu fundo branco, acabou por não ser explorada tal qual eu gostaria, pois impôs-se a necessidade de criar um conjunto coeso de palavras com a mesma linguagem visual para que eu pudesse aplicá-las na sua potência de ocupar o espaço, e este objetivo mostrou-se tão trabalhoso que não me sobrou tempo para uma experimentação mais livre de suas possibilidades gráficas. Mas estou certo de que neste terceiro ensaio pude atingir um novo patamar no que toca à técnica e à eficiência nas impressões, ainda que tal constatação tenha me servido simplesmente para tomar consciência de quanto trabalho ainda falta para que se mostre esse “desenho do fundo branco” de maneira satisfatória.

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ensaio no 4 emblema xilográfico

O último ensaio deste trabalho pretende ser um momento conclusivo, o de se colocar em prática aquilo que foi apreendido do caráter mais experimental dos três primeiroensaios. Trata-se, antes de tudo, de uma tentativa de contemplar dois anseios que motivaram a minha intenção de trabalhar com gravuras de grandes dimensões: primeiro, a ideia de expandir a escala do gesto gráfico e da linguagem xilográfica para além do seu caráter livresco, colocando-a na dimensão corpórea e espacializada; soma-se a essa ideia, em segundo lugar, a vontade de me aventurar no universo das palavras no sentido de sua interação com o desenho. Procuro aqui negar um certo estigma do senso comum, muito ligado à imagem publicitária, de que é tarefa unicamente da ilustração unir em um só campo visual o texto e a figura. As diversas maneiras com que pode um texto relacionar-se com uma figura são um problema complexo, aparentemente inesgotável, pois é muito tênue o limite entre uma relação em que ambos se somam, enriquecendo-se mutuamente, e uma relação que resulta em redundância entre o significado da figura e o texto que a acompanha, contribuindo negativamente à expressividade de ambas as partes. Contudo, está muito longe de ser minha ideia explorar aqui as interações entre texto e figura em suas características semióticas, sintáticas e semânticas. O que me interessa é pensar como produzir, na xilogravura de grandes dimensões, uma imagem que resulta de um texto que se associa a uma figura, dentro da perspectiva de sua referenciação direta ao espaço ao qual essa imagem se destina. Dito nesses termos, parece tratar-se de algo um tanto complexo, por isso me limito à tentativa de produzir simplesmente o que talvez seja só mais uma variante do cartaz. O que espero é conseguir testar o que pude aprender com os três primeiros ensaios deste trabalho em novas formas, que sejam desenhadas e entalhadas na madeira por mim, independentes do acaso de encontrar, como no caso do ensaio preliminar, um conjunto de matrizes quase pronto. Não quero dizer 105


que há algum demérito em fazer destas formas prontas um trabalho, mas trata-se de um momento em que senti a necessidade de traçar e entalhar meus próprios desenhos e figuras e procurar fazê-los participar do universo das letras que venho criando. Da mesma forma, sinto a necessidade de criar estampas cujo motivo de inspiração é um local determinado e específico, o que ainda não foi realizado propriamente neste tfg, e que constava como uma de suas proposições iniciais.

a escolha do local Rua Butantã

Neste sentido, talvez este ensaio conclusivo seja um momento mais ”conservador” de minha parte, de retorno à tradição da gravura, pois nele abdiquei da atitude recicladora anterior, e me propus a produzir a partir de matrizes de compensado compradas, todas de mesma dimensão (2,20x0,80 m), dimensão esta que resulta do corte da placa padrão (2,20x1,60m) em duas metades iguais. Tais escolhas têm em vista exigências de ordem técnica, como a intenção de produzir estampas com duas matrizes de cores diferentes cuja padronização garante um registro preciso para realizar a impressão, por exemplo, entre outras características, a qualidade do compensado e a garantia de que não tenha marcas. Espero já estar evidente, desde os últimos dois ensaios, o local de inserção escolhido para minha estampas, a região que margeia o rio Pinheiros. Caso fossem coladas nas ruas todas as gravuras produzidas ao longo do ano, de uma só vez, tratar-se-ia de um percurso, o que transpõe o rio iniciando no Butantã, pelos arredores da av. Vital Brasil, atravessando o viaduto Bernardo Goldfarb e chegando à rua Butantã, que desemboca no Largo da Batata. Certamente, seria o próprio Largo o local mais significativo e carregado de valor cultural, urbanístico, simbólico e histórico dentro desse percurso, mas não será exatamente sobre ele que pretendo colar minhas estampas. Ainda que, a princípio, me tenha sido muito atraente como um motivo para criar meus trabalhos, acabei me interessando mais pela rua Butantã, no sentido de que é ela ainda o “braço” do Largo

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da Batata que o liga ao rio, e, na sua atual característica de deterioração e tranformação, um espaço muito propício a dar vazão à criatividade, a partir de suas muitas paredes e empenas de edifícios ociosos, que contrastam com os tapumes dos grandes empreendimentos imobiliários ainda não construídos.

“arrocha”

Ao defrontar-me com a proposta de criar gravuras sobre a região, pareceu-me um bom caminho tentar eleger temas, objetos, personagens e elementos representativos da região que pudessem servir de motivo para a criação de grandes cartazes, nos quais seriam as figuras articuladas com algum texto. Nesse intuito, a primeira personagem simbólica que me veio à mente foi o ônibus, que, pode-se dizer, é um dos protagonistas da história e da vida do Largo da Batata e seus arredores. A ideia do ônibus me estimulava por ser ele uma boa forma de fazer com que palavras e tipografias participassem do desenho, uma vez que a lataria dos ônibus municipais é sempre carregada de texto: nomes dos logradouros, trajetos, códigos referentes à linha, marcas etc. , que compõem uma mistura interessante de letras variadas na superfície do veículo. Daí em diante, buscando algum texto para escrever com as letras sobre o meu projeto de ônibus, me veio a ideia de relacionar o ônibus com outra personagem simbólica da região: o forró que agita todas as noites do Largo da Batata. Há ali uma quantidade imensa de casas de forró e seus subgêneros , não somente no epicentro do largo, mas também na rua Butantã e arredores. O forró está na da vida da região, e, ainda que esta esteja em rápida transformação devido à especulação imobiliária e ao vetor da Operação Faria Lima que nela aos poucos se aloja, acredito que custará até que o tradicional forró seja expulso de lá. A relação que pude estabelecer entre o forró e o ônibus é muito simples: ambos são locais do confronto direto, e com grande proximidade, entre concidadãos; ambos são lugares em que as pessoas se espremem para ocupar o espaço, e isso, na minha visão talvez romantizada, traz um encanto que vem na contramão do aspecto solitário, indi107


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vidualista e anônimo da vida urbana moderna. Investigando esta possível relação entre ônibus e forró, pensei numa palavra que seria o mote para o desenho: “arrocha”. Além de ser uma forma do verbo arrochar, que significa apertar, espremer, “arrocha” é um dos subprodutos mais atuais do forró e pode ser ouvido todas as noites nas casas do Largo da Batata. A partir daí, passei a tentar desenhar maneiras de colocar a palavra “arrocha” na composição do meu ônibus. A ideia é que fosse um ônibus cheio de gente, que poderia, inclusive, estar dançando em seu interior. No entanto, a maioria dos desenhos que esboçava mais se assemelhavam a um ônibus comum com uma profusão de palavras e letras cuja expressividade se perdia em meio à quantidade, e as pessoas dentro do ônibus pareciam inexpressivas vistas atrás das janelas . [foto] ao lado, conjunto de esboços para “arrocha”.

A solução para a composição se deu quado desisti de desenhar uma profusão de palavras e resolvi enfatizar somente a palavra “arrocha”, de modo que a própria palavra se tornou o ônibus, dentro do qual estavam as pessoas, todas dançando forró. O interesse que acredito ter encontrado nessa solução é o de que a imagem passa a ser ao mesmo tempo figura e palavra, de modo a não sugerir uma hierarquia rígida na articulação entre ambas na imagem que resulta de sua combinação. Por opção, a palavra, no caso, prevalece enquanto elemento visual, por ser escrita em letras grandes e de aspecto impactante, ocupando na estampa o campo gráfico quase que completamente. Já aquilo que representa o ônibus, foi feito em traços mais delicados , quase que em outra escala de desenho. Provavelmente, alguém que a veja de longe vai conseguir ler somente a palavra, podendo depois observar que ela está sobre rodas. As pessoas dançando só podem ser vistas com precisão a uma distância mais curta, constituindo quase um outro momento do desenho: à medida que o espectador se aproxima do detalhe das pessoas, ele deixa de ver a palavra. 109


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111 arrocha- xilografia sobre papel manilha 2,20x,0,80 m


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A única ressalva quanto ao resultado obtido com esta gravura é uma constatação pessoal, a de que a maneira com a qual desenhei e gravei as pessoas dançando no ônibus não me parece satisfatoriamente expressiva e dançante como gostaria. Por falta de tempo, não me foi possível experimentar mais e me debruçar sobre várias outras maneiras e tipos de traço e hachuras que tornasse seu aspecto menos naturalista, dialogando melhor com a linguagem gráfica do desenho da letra. No entanto, não posso dizer que não esteja satisfeito com a estampa resultante. Como já foi dito, reservei para este último ensaio a proposta de produzir estampas com uma direção mais específica no que toca seu local de inserção, optando, portanto, por fazer uma só fotomontagem de simulação para cada estampa produzida. O que não significa que estou engessando a sua inserção a um local, mas sim me mantendo mais fiel à ideia original que levou à sua produção. Tal qual as estampas produzidas anteriormente, a ideia para a estampa do ônibus foi concebida a partir de incursões direcionadas em que tentei imaginar possíveis desenhos para determinados locais. Ela foi pensada pela primeira vez para ser colada aos tapumes de uma construção na rua Butantã. O tapume de compensado comum é extremamente convidativo à ideia de colar sobre ele uma estampa cuja matriz é, também, uma chapa de compensado, por razões óbvias. No entanto, me frustrei imensamente por não poder tê-la colado antes que os tapumes da fotografia ao lado fossem substituídos por um tipo mais robusto, feito de chapas de alumínio estruturadas, com o nome CYRELA escrito repetidamente. Como só o que sobrou dos amigáveis tapumes de compensado foi esta foto, decidi fazer a montagem a partir da ideia inicial que a inspirou. Como é possível notar, ao dispor as estampas nesse arranjo de repetição linear, estou contradizendo aquilo que antes critiquei na falta de inventividade com que se realiza m 113


lambe-lambes em geral, recorrendo à mera repetição justaposta dos cartazes. Mas, no caso desta estampa, reconsiderei minha antiga crítica, pois esse arranjo me parecia útil para ela desde a ideia inicial, por sugerir um engarrafamento de ônibus enfileirados. A repetição faz com que o conjunto ganhe força, nesse contexto específico em que a repetição tem na própria figura um referencial conceitual que a sustenta. Também o significado da palavra “arrocha” parece dotado de um novo apelo quando a palavra é repetida sucessivamente no contexto específico de um muro de tapumes de um empreendimento imobiliário.

“enterrados vivos”

As últimas duas estampas que produzi neste ensaio são imagens “irmãs”, operando na lógica de um díptico, mas sem que precisem uma da outra para fazer sentido e funcionar como composição, sendo independentes, mas correlatas. A ideia inicial para cada uma delas era distinta, mas ao longo do processo de concepção acabaram se encontrando e convergindo para algo que poderia ser descrito no sentido figurado como sendo “dois lados de uma mesma moeda”. Na busca por figuras simbólicas que expressassem algo próprio da região, acabei por enxergar, a partir de dois locais específicos, duas figuras que me inspiraram a criar as estampas. A primeira foi a imagem de uma Virgem Maria, mais especificamente a Nossa Senhora de Montserrat, padroeira da igreja do Largo da Batata. Longe de ser por motivos religiosos, a vontade de desenhar a Nossa Senhora partiu de uma pintura decorativa na fachada do antigo edifício da Telesp, hoje desativado, na rua Butantã. A pintura descreve um grande triângulo de arestas azuis cujo vértice está a aproximadamente cinco metros de altura em relação ao piso elevado da entrada do edifício. Ao olhar para aquele triângulo, não consegui deixar de imaginar a colagem de uma imagem de uma Virgem Maria circunscrita por ele. E, insistindo nessa ideia acabei me convencendo a deixar de lado os meus preconceitos ateístas e me debrucei sobre o desenho da Virgem.

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Na estampa da Nossa Senhora de Montserrat inspirei-me na imagem original dessa virgem, uma escultura catalã, conhecida como “La Moreneta”. Lanço nela uma provocação, contrastando a virgem branca de Nossa Senhora de Montserrat situada no interior da igreja do Largo da Batata, com uma imagem externa que seria, de certa forma, a sua negação: uma virgem negra, cuja cor favorece o uso da tinta preta, a cor básica da xilogravura. Por outro lado, a coroa da virgem da estampa, feita a partir de uma das matrizes provenientes do corte de banco e utilizada desde o ensaio preliminar do trabalho, poderá remeter à ideia de um capacete de astronauta, ou capacete de mergulho. Trata-se, assim, pela inclusão desses elementos comtemporâneos, de uma possibilidade de ressignificação da imagem tradicional de Virgem, como se ela fosse um ser estranho ao ambiente em que se situa, quase como um alienígena, o que não deixa de ser em parte verdade, se levarmos em conta a história do Brasil, por exemplo. A Virgem com o Menino no colo, segurando o globo terrestre - que simboliza o cuidado ou o domínio que exerce sobre os que habitam a Terra - está sentada sobre um trono composto por um desenho de letras dispostas na parte inferior da estampa. Tais letras desenhadas formam quatro linhas contendo cinco letras, em que se lê, linha a linha, a sentença ENTER/RADOS/VIVOS/MTSRT, que poderá ser “decifrada”pelo observador atento, talvez mediante um pouco de esforço visual. A interpretação da frase vai depender do repertório dos observadores, mas sua leitura é literal, e diz “enterrados vivos Montserrat”. A brincadeira que se desenvolve está nas diversas possibilidades de leitura que as letras conformam, e seu significado intencional sugere, em certo sentido, um trocadilho em que o caráter esquizóide, extraterrestre que a madona negra transmite se reafirma numa possível leitura do particípio “enterrado”, como “aquele que veio à Terra”. Outra possível leitura seria no sentido de “em terra dos vivos”, que sugere o entendimento por sua contraposição, no caso, os “mortos que chegamà terra dos vivos. A questão que intenciono suscitar aos observadores é, simplesmente, quem teria sido 115


[foto] esboços e rascunhos para enterrados vivos.

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enterrado vivo? Para aqueles que conhecem as histórias bíblicas, será muito fácil perceber que não se trata de um atributo da virgem Maria e tampouco do menino Jesus. A outra estampa que integra essa dupla, também traz as mesmas palavras ENTERRADOS VIVOS, porém ao final lê-se PI-IÊRÊ, que em tupi significa “transbordar”. Essa palavra está na origem do nome que se transformou, por corruptela, em Pinheiros, que nomeia hoje o rio e o bairro em que eram comuns as araucárias. Não à toa, a figura que se relaciona com as letras é, nesse caso, o próprio rio Pinheiros. Pretendo que essa estampa seja colada a um pilar que sustenta o viaduto Bernardo Goldfarb, no canteiro direito da lateral da av. Marginal Pinheiros. Ali posicionada, ela será vista como uma imagem em paralelo à própria vista atual do rio, com a diferença de que, na estampa,


trata-se do rio do passado, cujo desenho foi baseado na observação de uma foto do rio Pinheiros datada do começo do século XX. Encimando a estampa, há uma referência às antigas araucárias: trata-se do desenho baseado no pinheiro que identifica, como um logo, a caixinha em que são colocados os palitos de fósforo de uma marca que traz o nome da árvore. As letras que formam o texto ENTERRADOS VIVOS relacionam-se com o desenho do rio Pinheiros do passado, numa tentativa de figurar a própria ideia expressa pelo texto. Ao desenhar tais letras, intencionava que se parecessem com uma representação abstrata da cidade verticalizada. Nessa relação, a imagem do rio e o texto abaixo dele se interpenetram a partir de dois pontos de vista: olhada a estampa de cima para baixo, pode-se pensar no rio sendo engolido passivamente, tragado pela cidade. Numa outra leitura, se se observa a imagem de baixo para cima, é a cidade que parece engolir o rio, cidade figurada nos traços verticais e diagonais das letras que formam o texto. Essa interpretaçao é possível se consideramos que a grade que cria o desenho das letras sugere volumes perspectivados, construídos pelas linhas diagonais relacionadas às verticais. De todo modo, trata-se do rio que hoje é apenas um canal em que desembocam detritos vindos de outros antigos rios, agora totalmente canalizados e vivendo no subterrâneo da cidade. Enfim, as duas imagens, como já foi dito anteriormente, apesar de terem sido concebidas cada qual a partir de um local diferente de inspiração, apresentam pontos fortes de convergência, irmanadas por uma mesma intenção criativa, cada qual com sua particularidade. É possível que, como criava os desenhos de ambas simultaneamente, as decisões que tomava para uma delas tinham na outra sua contraproposta, e após gravadas e impressas, é possível notar como, sob alguns de seus aspectos formais, uma gravura é programaticamente a inversão da outra. 117


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enterrados vivos - pi-iĂŞrĂŞ Xilografia sobre papel whenzou 0,80x 2,20 m.

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enterrados vivos - montserrat - Xilografia sobre papel whenzou 0,80x 2,20 m.

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A simulação de colagem da estampa em que figura a virgem morena de Montserrat mostrou-se a mim surpreendentemente bem resolvida e condizente com seu contexto. Talvez, isso se deva principalmente à escolha do lugar, que de fato é uma cena muito representativa daquilo que se nos oferece nas ruas como território fértil à imaginação daqueles que se dispõem a ver com os olhos bem abertos e atentos as infinitas histórias registradas nas grafias da cidade. No caso da montagem ao lado, o triângulo cuja aresta de base é oculta, à época em que foi pintado era provavelmente somente mais um elemento decorativo na fachada do edifício cuja maior contribuição seria torná-lo mais facilmente reconhecível. Hoje, extinta sua função, exerce outra, a de constituir-se em um palco para a imaginação desfrutar de mais um momento de deleite em que tudo o que é visível integra o solo fértil do desenho.

[fotomontagem] ao lado, fachada do antigo edifício da Telesp.

Como não comover-se diante dos vultos gigantescos que se afiguram enfileirados a partir das grandes manchas cinzas que, com o extintor de incêndio, vândalos de alta qualidade riscam sobre as fachadas? Caso não houvesse ali registro algum de pichações, a esterilidade se imporia à fachada e não seria convidativa à ideia que me levou ao desejo de criar uma estampa para colar sobre ela. Não batasse estéril, se mostraria feia marcada por um triângulo que em si é inexpressivo e pouco interessante como composição com a arquitetura que o comporta. No entanto, foi ativada pela ação dos pichadores e das intempéries que a sujam e fertilizam o terreno da linguagem visual. Se até agora, neste trabalho, alguma certeza houve quanto ao lugar ideal para uma gravura, creio que foi este da foto ao lado. Certamente, outras gravuras, minhas e de outros, se inseririam lá tão bem quanto ou melhor que a minha . Mas o que importa é que, mantendo-me fiel ao desejo de criar uma estampa para este local, cultivei em mim mesmo técnica, cultura e sensibilidade e certamente, uma vez que a virgem morena se instale nesse seu lugar, estaria ela também espalhando um pouco desse espírito que tanto enri-

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quece a vida e a cultura das pessoas na cidade.

[fotomontagem] ao lado, pilar no canteiro direito da av. Marginal Pinheiros, sob o viaduto Bernardo Goldfarb.

Nem tão bem-resolvida foi, contudo, a simulação de inserção da imagem do rio em frente ao canal podre a que foi subsumido. A inserção da estampa no espaço destinado não se revelou comovente como a anterior, talvez por ser tal espaço dotado de poucos elementos visuais com que a estampa possa se relacionar, e dialogar de maneira frutífera à composição. Há ali somente um par de tags de pouco interesse e a própria forma do pilar, que é também pobre em expressividade. A esterilidade que permeia este caso pouco emocionante de inserção de uma estampa é a esterilidade do conceito, que tem respaldo na longa lista de códigos, signos e texto que a imagem traz consigo para se oferecer ao ambiente, que, por sua vez, não corresponde com reciprocidade. Apesar de os conteúdos da imagem terem muito a dizer sobre o local, este tem pouquíssimo a oferecer, e na sua condição de não-lugar, antes atraente para mim, pouquíssimo contribui para que minha gravura, se beneficie de seu contexto espacial. No máximo, ela se beneficia de uma sua eloquência conceitual à qual seu tema de referência, o rio Pinheiros, responde também enquanto conceito. Há pouco envolvimento “corporal” da referida gravura com seu contexto, e apesar de sua “alma” transbordar e se espalhar sobre o terreno, trata-se só de “alma” e só de “alma” nada se sustenta. Ainda que a estampa possa ser em si bela e interessante, isso não é capaz de fazer com que tal beleza e interesse se façam apreensíveis para aqueles que estão ali dentro de seus carros , preocupando- se em irritar-se ao diminuir a velocidade compulsoriamente.

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considerações finais

Buscando compreender, do ponto de vista teórico, qual seria a operação realizada nas minhas tentativas de articular texto e imagem nas três gravuras deste último ensaio, me aproximei, na medida do possível e dentro dos limites que se colocam num tfg, do conceito de emblema, tal como caracterizado por João Adolfo Hansen em sua obra Alegoria - construcão e interpretacão da metáfora. Segundo esse autor, no emblema, palavras relacionam-se, direta ou indiretamente com imagens pictóricas “[...] fornecendo temas mitológicos, religiosos, políticos, históricos, morais etc., que são retomados por poetas e pintores ao longo dos séculos XVI e XVII[...]”. (p.191).Tais formas alegóricas, compostas de corpo (imagem) e alma (discurso), caracterizavam-se por seu uso público e, geralmente, por uma finalidade político-moral. A constatação da similaridade entre as estampas que produzi neste ensaio com a já muito antiga tradição dos emblemas trouxe ao trabalho uma nova perspectiva. Não se trata, no entanto, de tentar conferir ao emblema uma nova roupagem e tampouco buscar analogias que deem conta de resgatar as intenções que tanto motivaram sua prática séculos atrás. Meu primeiro contato com a teoria que expõe esta forma alegórica serviu como um solo sobre o qual minhas atuais pretensões com relação à produção de xilogravuras de grandes dimensões podem passar a tatear, engatinhar e quem sabe em breve ensaiar os primeiros passos em direção a uma linguagem que traga novo frescor à gravura e as ricas interlocuções que a partir dela o desenho e a palavra, juntos, mantém. Acredito ter sido esse último ensaio um desfecho plenamente satisfatório para o meu trablho, na medida em que nele se expressam questões relativas a todo o desenvolvimento que transcorreu no ano que se passou. É interessante perceber como as questões e anseios iniciais nunca deixam de sê-lo, apenas passam por algumas provas e demonstram sua pertinência por vezes sob outras formas vindo de outras direções. No meu caso, fica patente um mesmo tipo de desenho cuja composição simplesmente se reconfigura em

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função da técnica e do tipo de matriz e procedimento xilográfico ao qual recorri, mas, no entanto, o fundamental se mantém desde o ensaio preliminar ao ensaio conclusivo e de maneira que as últimas gravuras são consciente e inconscientemente reconfigurações das primeiras, que supostamente inovadoras, por seu caráter experimental, na realidade são reconfiguração de conteúdos visuais e simbólicos cuja busca incessante está evidente até nas primeiras gravuras, quiçá nos primeiros desenhos e garatujas, o que já considero um pouco precipitado dizer, pois, acredito que a cada meio expressivo cabe uma maneira com a qual cada um se defronta. A linha de raciocínio triádica que dá forma aos diferentes momentos do trabalho intenciona apontar para diversas frentes de uma mesma técnica com mesmos fins práticos e, se daquilo que realizei no três primeiros algo permaneceu e foi por mim apreendido, é provável que se mostre em pelo menos um dos três trabalhos do ensaio conclusivo. O que aconteceu comigo é que não me satisfiz com a pespectiva de manter-me experimentando com as mesmas matrizes soltas exaustivamente, precisei retornar aos problemas mais básicos da xilogravura, que envolvem maior enfrentamento da matéria com a gravação e aspectos referentes ao registro que orienta sobreposições de diferentes cores em matrizes padronizadas. Sinto que esse esforço final resultou em três estampas muito distintas das feitas nos primeiros ensaios, e isso se deve à preponderância que a figuração acaba impondo ao texto, ao menos no meu modo de conceber a forma de equacionar ambas as partes, “corpo” e “alma”, destes emblemas. Até o presente momento da edição deste caderno, uma parte essencial do trabalho ainda foi deixada em aberto. Após a realização de muito trabalho, tive de adiar o momento conclusivo real, que, no caso, seria a colagem dos trabalhos nas ruas. Amparado pela possibilidade de testar a inserção as imagens com o auxilio do computador, acabei, também por uma série de outras razões que impediram que o fizesse, abdicando desta parte 127


tão importante do trabalho, que me traria um retorno verdadeiro e uma noção muito mais completa da natureza destas estampas do que a que tenho até agora. Mas creio que isso não há de ser o maior dos problemas, nem caracteriza de fato uma inconclusão do trabalho, pois se assim não fosse, as estampas, que são o seu produto físico, não estariam prontas. Espero poder, assim que possível, realizar esta fase tão importante do processo.

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