Frederico Spada Silva
Coleção de ruínas Ensaio
Frederico Spada Silva
Coleção de ruínas Ensaio
Edição do Autor Esta plaquette teve seu único exemplar, numerado e
Juiz de Fora
hors commerce, impresso em 12 de abril de 2016, a
2016
partir de ensaio escrito em 10 de dezembro de 2014.
Copyright © 2016 by Frederico Spada Silva
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Todos os direitos reservados.
Projeto gráfico e revisão: Frederico Spada Silva
Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
S586c
Silva, Frederico Spada Coleção de ruínas: ensaio / Frederico Spada Silva. – Juiz de Fora: Edição do Autor, 2016. 28 p. 1. Ensaio. I. Título. CDD: 864
Atravessar a língua, esta grande fratura, exige silêncio e mapas.
SARLO, Beatriz. Verdade dos detalhes. In: ______. Sete ensaios sobre Walter Benjamin e um lampejo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. p. 41-49. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão: a literatura do trauma. In: ______ (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Unicamp, 2013 p. 45-58. SILVA, Frederico Spada. Coleção de ruínas. Juiz de Fora: Macondo, 2014. (Coleção Cadernos de ausências, n. 2)
LINKS DAS IMAGENS Folha de rosto: Holland House Library after an air raid (1940): http://revistaumconto.wordpress.com/2014/11/14/a -leitura-entre-destrocos/
Geografia do abandono: I. Lungenkrankenhaus: http://abandonedography.com/post/49371456408/lu ngenkrankenhaus-by-jrej II. Palácio Al-Fared: http://abandonedography.com/post/48387060057/rem ash-al-fared-palace-mohammed-assiri-photo III. Kostroma: http://abandonedography.com/post/47968260899/aba ndoned-churches-and-villages-in-russia
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA AGAMBEN, Giorgio. Ideia do silêncio; Ideia da linguagem I. In: ______. Ideia da prosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 110-112. BARTHES, Roland. A utopia da linguagem. In: ______. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 73-76. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza; Sobre o conceito da história. In: ______. Magia e técnica, arte e política: (Obras escolhidas I). São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 114-119; 222-232. BENJAMIN, Walter. Caçando borboletas; Esconderijos; O caráter destrutivo; O coelho da Páscoa descoberto ou pequeno guia de esconderijos; Escavando e recordando. In: ______. Rua de mão única: (Obras escolhidas II). São Paulo: Brasiliense, 2009. p. 80-82; 91; 235240. BINES, Rosana Kohl. Longe dele, longe dela. In : VERSIANI, Daniela (Org.). O eu se escreve. O outro me escreve. Rio de Janeiro: 7Letras, no prelo. BLANCHOT, Maurice. L’écriture du désastre. Paris: Gallimard, 1980. p. 7-43. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Orgs.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: UFMG, 2012. p. 27-38. GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter Benjamin. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Orgs.). Op. cit. p. 107-132.
Colecionar ruínas é dirigir o olhar ao limiar da memória e do esquecimento, àquele entre-lugar em que se funda e de onde se erige o palimpsesto que é o tempo presente, isto é, o que se nos apresenta; é deter-se entre a concretude do que foi (do que ruiu) e as potências interrompidas, abandonadas do vir a ser; é ter diante de si não a História, mas a sua ruptura, um seu fragmento – e, ainda assim, compreender, de-cifrar suas garatujas. Nesse sentido, a verticalidade do verso, em vez de antecipar a queda do Todo, soergue os cacos da linguagem e os faz luzirem, guiandonos como faróis que, sempre em silêncio, dialogam entre si e redesenham os traços que compõem os mapas com os quais nos orientamos ao atravessar a língua, tornando o salto (a leitura) possível: « l’angoisse de lire : c’est que tout texte […] est vide – il n’existe pas dans le fond ; il faut franchir un abîme, et si l’on ne saute pas, on ne comprend pas » (BLANCHOT, 1980, p. 23). Parafraseando Agamben (2012, p. 112), a fratura informulada, a ideia de fratura, só existe para o homem.
Arquivo Colecionava miudezas, pequeno e íntimo museu de fragmentos coletados ao acaso– como a própria vida.
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus… (BENJAMIN, 1996, p. 226)
Arquitetura do tempo No plano, enfim, se configura a letra de que se ergue o poema em construção, e a voz, magna mater de todas as palavras, funda outra realidade, ampla e contínua, que escava o tempo em nova direção.
Todo arquivo é, antes de tudo, um inventário da própria vida: é sobretudo o passado que invade e preenche suas gavetas; é o passado que se olha e se investiga. A mão que abre a gaveta e tateia suas pastas, uma a uma, à procura de algo é a mesma que escava, camada a camada, para “se aproximar do próprio passado soterrado” (BENJAMIN, 2009, p. 239), atravessando língua e memória, presente e passado, e trazendo à tona miudezas, fragmentos, ruínas. Toda coleção, por sua vez, é uma museologia em constante expansão, um eterno particípio presente: colecionar é flexionar uma sintaxe imperfeita, “um trabalho utópico, já que, por definição e por sua própria lógica, não pode existir coleção completa” (SARLO, 2013, p. 46). Assim “como a própria vida”, colecionar é saciar-se do provisório.
Dicionário de palavras esquecidas A memória se perde entre os tipos esmaecidos e esta língua que já pouco –ou nada– me diz: folheio o esquecimento, entre dois muros de meio-couro.
A geografia do abandono demarca-se não só no espaço, mas também no tempo, e traça suas linhas (reais e imaginárias) com a tinta do apagamento: tanto mais ampla uma ruína, mais apagados os seus contornos. É preciso estudar seus mapas com rapidez, consultar especialistas, buscar documentos, ouvir relatos, analisar os rastros e vestígios, para ser possível redesenhar seus limites e preservar sua História entre os homens. Do contrário, só restará de Kostroma e suas ruínas alguma estampa “na superfície esmaltada de uma porcelana de Limoges, na qual sobressaem no fundo azul as ameias e as muralhas de Jerusalém” (BENJAMIN, 2009, p. 82).
Se, para os gregos, a língua delimitava as fronteiras da barbárie, dominá-la era o salvoconduto para a civilização, primeiramente calcada na oralidade e só mais tarde gravada na escrita, que passou, então, a fazer o conhecimento transitar entre a imaterialidade da memória humana e a materialidade de tabuletas e pergaminhos. Mas o registro da memória se dá dialeticamente, pois ela “só existe ao lado do esquecimento: um complementa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve” (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 53): o livro-guia que preserva e ordena a queda de Babel como uma memória coletiva e histórica da(s) língua(s) só tem sentido em ser aberto quando os dedos que o folheiam e os olhos que o percorrem são guiados pelo olvido. Igualmente, como aponta Barthes (2004, p. 76), “a escrita literária porta ao mesmo tempo a alienação da História e o sonho da História: como Necessidade, ela atesta o dilacerar-se das linguagens […]; como Liberdade, ela é a consciência desse dilacerar-se e o esforço mesmo que quer ultrapassá-lo”. Entre a Necessidade e a Liberdade, as palavras – esquecidas – quedam encarceradas “entre dois muros/ de meio-couro”.
Geografia do abandono I Lungenkrankenhaus Hornberg, Alemanha
Paredes descamam como pele. Bolor e umidade aderem-se aos menores interstícios. Há tosses, ainda, ressoando em solidão. Hoje, o ar é pesado demais.
III Kostroma, Rússia
O que os homens já não podem contar revela-nos o que foi deixado para trás. Os retratos esquecidos nas paredes, as imagens que adornam as ruínas, tudo atesta a pressa com que fugiram.
As portas e janelas abertas confirmam que nunca cogitaram retornar.
Só o homem consegue interromper, na palavra, a língua infinita da natureza e colocar-se por um instante diante das coisas mudas. (AGAMBEN, 2012, p. 112)
Que história conta-nos um grão de areia? Que passado traz, inscrito em sua minúscula superfície mineral? Cada uma de suas angulações revela-nos algo de sua história, as intempéries por que passou, as distâncias que percorreu, as águas que o lavaram, as mãos que o deixaram escapar por entre os dedos. “Mas o que acontece quando não se pode ser o fiador da própria história vivida?” (BINES, s/d) Para “manter o passado ativo no presente” (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 57), é preciso clivar experiência e voz, propor uma leitura (uma escrita) estética do passado, dar voz à fabulação em vez de ao testemunho. Que história, deserto?
então,
conta-nos
todo
um
“A arte da memória, assim como a literatura de testemunho, é uma arte da leitura de cicatrizes” (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 56). Observar um espaço em ruínas é buscar em suas fendas, fraturas, cicatrizes, cortes e fissuras os rastros do passado que ainda não tenham sido apagados, é procurar nas entrelinhas do discurso e do concreto as inscrições desta “presença de uma ausência e ausência de uma presença” (GAGNEBIN, 2012, p. 27) que nos desfiam, em silêncio, suas perdas. As ruínas escrevem sua própria história numa língua particular que parece querer ensinar-nos que “uma literatura que siga incólume à destruição não merece ser praticada ou lida” (BINES, s/d).
II
Palácio Al-Fared Madain Saleh, Arábia Saudita
Era uma vez um monte em meio ao deserto, entalhado pelas mãos famintas de milhares de súditos leais à espada que lhes cortaria o pescoço, caso se cansassem. O portal que se abre às dunas dá a ver miragens de outros tempos: caravanas de mercadores, dançarinas, poetas, profetas e astrólogos que nunca souberam antever, nos céus, o vazio que os habitaria.