SoLidão: Luz e sombra
Património pensado e vivido www.festivalimater i al.pt
PRÉMIO IMATERIAL
17 — 25 MAIO 2024 Évora, Por tugal
Sociedade:
sabe onde 16
capa
ilustração
susa Monteiro
Susa Monteiro vive em Beja, cidade onde nasceu.
Estudou Realização Plástica do Espectáculo na Escola Superior de Teatro e Cinema e cinema de animação no CITEN. Durante alguns anos trabalhou como figurinista, caracterizadora e aderecista para o teatro e para o cinema.
Em 2009, com a inauguração da Bedeteca de Beja e do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja (onde é responsável pela linha gráfica e coorganizadora), deixa definitivamente as artes do espectáculo e passa a dedicar-se exclusivamente à banda desenhada e à ilustração.
Nos últimos anos ilustrou livros para diversas editoras como a Pato Lógico, Bertrand, Asa, Verbo, Bruáa, Oficina do Livro, etc. E ilustrou cartazes e panfletos para várias instituições e projectos (Casa da Música, Palavras Andarilhas, Almarte – Festival de Artes na Rua, La Guarimba International Film Festival, Festival du Court Métrage de Clermont-Ferrand, etc.)
Publica regularmente ilustrações e bandas desenhadas em vários álbuns, fanzines, jornais e revistas.
Tem exposto frequentemente o seu trabalho em festivais de Banda Desenhada e galerias individual e colectivamente.
Notícias | Coluna do Provedor 17
Viagem: Tailândia
Crónica de Fernando Dacosta
Teatro da Trindade
Editorial
A Solidão Mata
OSer Humano é um ser eminentemente social. A nossa vida sem a relação com outros, em todas as dimensões dela, seria amputada de algo que para nós é quase tão importante como o ar que respiramos ou os alimentos que comemos. Seja na família, seja no contexto social em que nos inserimos, seja nos afetos, seja no amor, seja na economia e nos mercados, seja na política, seja na ajuda, em todas as dimensões o Homem realiza-se também na relação com o Outro. Uma das maiores punições ou degredos que nos podem ser impostos é sermos relegados à solidão. Seja prendendo, seja na velhice, seja por exclusão social, seja na empresa e no trabalho ao nos designarem a uma posição que se assemelha a uma cela solitária, ou quando uma criança é rejeitada, a solidão é sempre um crime perverso e profundo.
É verdade que o ser humano também precisa de momentos de solidão, de se encontrar consigo mesmo, de ser um peregrino solitário na sua própria mente, como diria Alçada Baptista. No entanto, isso é uma necessidade pontual, um direito inegável, mas sempre regressa ao porto de abrigo proporcionado pelos outros, que o fazem e o realizam.
Vivemos uma era em que o individualismo marca profundamente o nosso tempo. Muitos vivem em suas próprias bolhas, incapazes de fazer pontos com o Mundo ao seu redor. As tecnologias e as redes sociais têm alienado muitos, criando uma falsa sensação de ligação social com os outros. Paralelamente, o duplo envelhecimento social, com menos filhos e mais idosos, em famílias heterodoxas, na organização e nos compromissos sociais, juntamente com a desertificação do interior, fizeram aumentar consideravelmente a solidão indesejada, a ausência do outro e do sentido transgeracional da vida. Os dramas da solidão tornam-se evidentes tanto nas áreas rurais envelhecidas, quanto nas cidades desumanizadas. Nestas últimas, a multidão é composta apenas pela soma de milhões de indivíduos, com poucas ou mesmo nenhuma relação interpessoal, seja com o vizinho da Pólis ou com a família algures.
Os tempos de pandemia mostraram a todos o quão doloroso é sermos limitados ou proibidos de nos relacionarmos com os outros e com aqueles que gostamos. Foi uma experiência irrefutável de como somos seres sociais e de como precisamos de viver e nos relacionarmos com os outros.
Este Tempo Livre é dedicado a refletirmos sobre o mal das sociedades contemporâneas ocidentais, a Solidão. Espero que nos acompanhe nesta reflexão.
50 ANOS DO 25 DE ABRIL
“A Ephemera é um movimento cívico pela memória”
Fomos até Santa Iria da Azóia, num armazém imerso em livros, papéis e objetos, conversar com Pacheco Pereira sobre a Ephemera – Biblioteca e Arquivo, projeto que se dedica a um invulgar trabalho de preservação da memória
Nos cinquenta anos do 25 de Abril o trabalho sobre a memória surge como uma questão fundamental. “Falta uma política da memória, envolvendo historiadores, cidadãos e comunidade civil”, defendeu neste jornal em novembro, Joana Craveiro. Começámos pela Ephemera, que se autodefine como o mais público dos arquivos privados em Portugal e que tem em Pacheco Pereira o seu fundador e principal instigador (no próximo número iremos até ao Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra).
Pacheco Pereira, figura sobejamente conhecida no panorama político e mediático do país é também, desde sempre, um compulsivo recoletor e um apaixonado devorador da vasta biblioteca familiar onde se reuniam os espólios do seu avô paterno e de seu pai. Talvez seja por isso que a sua mãe tenha aceitado com bonomia a insólita negociação com o filho:
“Em casa dos meus pais eu passava o tempo na biblioteca. Aliás tive que convencer a minha mãe, porque ela como me via com a luz acesa até muito tarde, dizia, “vai-te deitar Zé Álvaro” e eu às tantas negociei a passagem do meu quarto para a cave, onde havia uma parte importante da biblioteca, e aí já não tinha intimação para ir dormir cedo. Há uma expressão inglesa que traduz esse tipo de relação que é “alimentando o monstro”. E eu fui alimentando o monstro a partir da biblioteca da família. Hoje vejo a lista com os livros todos que li em setembro de 1970 e nem acredito nisso, chegava a ler quase 30 livros por mês. Li aquelas coisas que ninguém lê mas que eu li porque encontrava lá e achava graça, por exemplo Bulhão Pato, mas também Camilo, Eça, Balzac, Maupassant. Isso é uma coisa fundamental para alimentar o monstro e depois o monstro nunca quis deixar-se ficar sem alimento, é uma forma de loucura mansa.” O seu interesse pela política começou cedo, desde que começou a escrever no jornal do liceu, tinha 14 anos. Foi aí que aprendeu o que era a censura. Era um jornal da Mocidade Portuguesa, não tinha censura prévia, tinha as chamadas ao reitor, o que, diz, “naquela época era uma coisa sinistra. Ainda por cima porque o Reitor, professor de alemão, era um homem que se tinha
formado na Alemanha nos anos 30, tinha a biografia perfeita”, ironiza.
Mais tarde, em 1973, a Pide chegou a assaltar-lhe a casa. Ele pertencia a um partido maoísta, o PCP (ML). Não o apanhou porque tinha recebido um telefonema a avisar que “tinha ratos em casa”. Conta:
“A Pide levou tanta coisa, panfletos, comunicados estudantis, livros, que não teve tempo de os ver até ao 25 de Abril.” Ele sabe disso porque, depois do fim do regime, foi à sede da Pide resgatar os materiais que tinham sido levados e ainda os encontrou metidos nos sacos. Começou a constituir também o seu próprio arquivo, a partir de 1968:
“Toda a vida andei aos papéis. E a partir de certa altura isto tornou-se aquilo que é hoje. Seis quilómetros de estantes, dois grandes armazéns no Barreiro, uma coisa gigantesca em Santa Iria em que em dois dos andares cabe um Boeing, só para dar uma ideia, seis casas na vila da Marmeleira, onde por razões de segurança estão os espólios mais valiosos e postos de recolha pelo país todo, um pouco por todo o lado. Isso dá-nos uma grande capacidade de impedir que se perca muita coisa no interior do país a que ninguém liga nenhuma.”
Na blogosfera começa por criar o Ephemera, que se afirma ser “um blogue destinado a colocar a público materiais do seu arquivo e biblioteca”. Arquivo que juntava
à biblioteca da família, doações entretanto recebidas. Um momento que Pacheco Pereira considera marcante para a constituição da Ephemera, Arquivo e Biblioteca é quando, em 2009 o seu amigo Joaquim Barros de Sousa, político com um papel autárquico relevante e que tinha sido um oposicionista ligado ao Congresso Republicano de Aveiro, lhe começa a passar o seu espólio.
O nome de Ephemera carrega uma certa ironia, revela-nos: “Nós lutamos contra a efemeridade das coisas. Nós sabemos que as coisas são efémeras, sabemos o que se perde todos os dias, sabemos que a memória é periodicamente reconstruída pela evolução quer de ideias, quer do presente, quer de intencionalidades e de manipulações. A Ephemera é um arquivo omnívoro, ou seja, ele come de tudo, as pessoas ficam um bocado espantadas mas a verdade é que por exemplo temos um vestido de noiva de uma senhora anticlerical que pediu à modista para fazer um vestido de noiva diferente dos da igreja. É um vestido que tem uma história.” Outra data importante, mais recente, em 2017, é a criação de uma Associação Cultural, reconhecida como Instituição de Utilidade Pública e distinguida pelo Presidente da República, em 2020, com a Ordem de Mérito. Têm cerca de setecentos associados
e o estatuto associativo permite-lhes realizar acordos e protocolos. Não tendo a vida fácil, realizam uma atividade que implica custos permanentes, principalmente no transporte, no armazenamento, e nas condições necessárias para preservar os materiais, afirmam a sua autonomia financeira. Tornarem-se uma Associação permitiu-lhes consolidar o projeto, fazer acordos e protocolos, ter contabilidade organizada: “Nós somos autossustentáveis. O facto de sermos uma associação de voluntários permite-nos fazer muitas coisas quase sem custo. Temos neste momento a circular 36 exposições, muitas em pequenas escolas, 36 exposições para uma instituição que tem autonomia económica, que não depende do Estado, é um esforço imenso. É claro que muitas vezes pagam-nos os transportes e as vitrinas, mas no essencial nós fazemos com que se poupe muito. Neste momento temos exposições desde a Barragem do Picote até ao Algarve. Nós damos uma especial atenção aos sítios onde nunca foi uma exposição destas, tratamos os sítios pequenos como tratamos uma grande autarquia.” Há um grande movimento em torno da Ephemera, são visitados por muita gente curiosa, diz-nos: “Há semanas em que a Ephemera tem um movimento com milhares de pessoas. É evidente que isto nos dá um dinamismo
que os arquivos institucionais não têm. E há as exposições. Andamos numa vida de judeus errantes, eu então em particular às vezes não tenho vida, nem consigo ir a casa durante quinze dias.”
A Ephemera recolhe material de doações, cada vez mais frequentes dado o mediatismo que o projeto adquiriu, e também porque recolhe todo o tipo de espólios. Afirma-se como uma espécie de combinação entre uma biblioteca, um arquivo e um museu. Quando recebem doações fazem uma primeira triagem do material em função da importância. Se tiver manuscritos, imagens, panfletos, não mexem antes de inventariar. E nalguns casos mantêm a Biblioteca junto com esses materiais. Por outro lado, e de uma forma inédita, têm uma rede de voluntários, com cerca de 150 pessoas pelo país todo, que faz uma recolha ativa de materiais contemporâneos. Explica-nos:
“Alguns dos nossos voluntários acompanham as manifestações. Seja da Palestina, da visibilidade trans, da habitação, de movimentos de direita. Por exemplo, nós temos aqui os materiais da marcha contra o islamismo na Europa. Cobrimos tudo, desde a extrema direita à extrema esquerda. Grupos contra as vacinas, causas bizarras, tudo, a gente vai lá buscar. Costumo dizer por brincadeira, se o Diabo publicar panfletos nós vamos ao Inferno buscá-los. O que
quer dizer que quem quer olhar para a contemporaneidade é aqui que tem de vir”.
Com alguma ironia diz-nos que, por causa da aglomeração de cartazes nas rotundas, são “especialistas em levar buzinões nas rotundas”. E andam na rua sempre a olhar para as paredes, a fotografar pichagens. Fala-nos com entusiasmo do trabalho desenvolvido nas eleições autárquicas:
“Para se ter uma ideia de porque é que este arquivo é diferente dos outros, somos os únicos capazes de cobrir as eleições autárquicas. Nas últimas eleições autárquicas houve cerca de 8000 campanhas diferentes.
“Costumo dizer por brincadeira, se o Diabo publicar panfletos nós vamos ao Inferno buscá-los”
Nós consideramos cada campanha individualmente, 3000 freguesias, 300 concelhos, cada um com umas cinco a dez listas. É um retrato da Democracia, cerca de 30 mil pessoas participaram nas eleições. As pessoas às vezes não têm a noção disso. Nessa campanha devem ter sido produzidos à volta de cem mil objetos físicos. Analógicos, não digitais. Desses conseguimos recuperar cerca de 60 por cento. Andamos permanentemente neste sistema. Quando nós vamos a um sítio somos predadores. Andamos por ali a chatear as pessoas.” Também recebem espólios internacionais. Por exemplo, quando vai fazer palestras sobre a Ephemera aos Estados Unidos, Pacheco Pereira aproveita para trazer sacos cheios de material que lhe é doado por pessoas que tomaram conhecimento da sua presença lá. Têm boas coleções de Espanha, graças a uma espécie de delegação de amigos que volta e meia visitam, trazendo no regresso os carros cheios. E também têm, diz, grandes coleções dos EUA, de França, Brasil. E uma nórdica, que lhes chega através de um amigo que trabalha numa Igreja Luterana na Suécia e anda pela Finlândia, pela Dinamarca, pela Noruega a recolher materiais que depois manda em pacotes gigantescos. Aliás, muitas doações que recebem estão associadas a pessoas com o mesmo espírito recoletor. Há também, refere, uma coleção importante sobre as direitas radicais no mundo. Fala-nos ainda, com humor, de uma coleção recente trazida de uma campanha eleitoral autárquica iraniana: “Nós também colecionamos doidos. Uns amigos nossos foram fazer uma viagem turística ao Irão durante uma campanha eleitoral autárquica. E puseram-se a arrancar os cartazes da parede. Eu disse-lhes, vocês são doidos, nunca mais façam isto, podem levar um tiro. O que é certo é que eles os trouxeram. E a gente olha para os cartazes. E vê mulheres candidatas. E vê ayatolas e a sua hierarquia. E percebe alguma coisa só olhando para os cartazes. E é evidente que nestes casos esses cartazes servem mais para fazer trabalhos comparativos. E é sempre interessante o trabalho comparativo. As nossas Universidades é que, regra geral são preguiçosas, tem pouca imaginação. Nós aqui temos o arquivo daquilo a que, a partir do poema do Brecht, chamamos os césares e os cozinheiros. No arquivo dos cozinheiros nós temos coisas de portugueses que geralmente não deixam traços. Isso são tudo documentos fundamentais. Isto está cheio disto. É por causa disso que eu às vezes digo, isto é uma espécie de fábrica da imaginação. O problema é que não há muita gente imaginativa.”
Qual a relação que este arquivo tem com outros arquivos, como o da Fundação Mário Soares e o Centro Documentação 25 de Abril?
“Nós não somos competitivos com essas instituições. Mas eles são mais competitivos connosco. Temos muitos protocolos com muitas Instituições. Centros de investigação, museus, bibliotecas, autarquias, grupos interessados na memória. Com esses não. Mas sempre que nos pedem alguma coisa nós cedemos. Por exemplo quando querem organizar grandes exposições, nós temos materiais únicos.”
Refere também que o dinamismo que a Ephemera tem por vezes pode ser incomodativo face a arquivos que tem um financiamento muito superior. E por outro lado, diz, embora se forcem a manter alguns critérios arquivistas tomam algumas liberdades, porque não têm recursos. Esclarece: “Por exemplo nas coisas mais frágeis apontamos para cem anos de tempo de conservação. Na maioria dos armazéns
temos condições de controlo da humidade e da temperatura, temos o controlo de pestes, nunca tivemos nenhum problema desses. Mas não temos papel especial, não temos caixas especiais para arquivo, nem dinheiro para fazer isso. Gostaríamos de ter, mas não temos.”
Qual é a atividade regular da Ephemera?
“Fora este período de 2024 em que a gente já não se consegue virar para lado nenhum, em condições normais, nós temos visitas aos arquivos. Quer de universidades seniores, quer de grupos que organizam exposições, essencialmente ao Barreiro, que é onde se reúne o grosso do material. Quando digo escolas, digo universidades, arquivos, bibliotecas, que vêm visitar. Praticamente todas as terças-feiras temos uma ou duas visitas. E eu vou às escolas falar sobre o 25 de Abril para adolescentes. É um público muito difícil, mas eu tenho um “mata-telemóveis”. É um par de sapatos. Estão todos com os telemóveis, miúdos de 14, 15 anos, a namorarem com as raparigas ao lado, e param todos, estranham. E depois explico. Isto não são sapatos normais. Entre a sola e a parte de cima está uma serra. Foram feitos por um militante da LUAR, sapateiro, sabia desmontar o sapato, e enfiou uma serra entre a parte de cima e a sola para que pudesse levar a serra para a cadeia quando fosse preso. Uma pequena serra que não se via. A partir daí eu tenho a atenção deles.”
Alguma vez pensou em tornar profissional este vosso trabalho?
“Teria vantagens e inconvenientes. Nós não conseguiríamos fazer o que fazemos com os recursos que temos se não fossem os voluntários. E para nós também é importante que tenhamos voluntários que são operários e outros que são professores universitários. Porque o olhar deles, a capacidade de olharem para os diferentes materiais, é importante.”
E a tão almejada Fundação?
“Nós estamos muito insatisfeitos com a atual legislação das Fundações. A ideia era mudar a legislação para construir um modelo misto que pudesse ao mesmo tempo compatibilizar o trabalho dos voluntários, que fosse muito flexível, parecido com o modelo inglês. Que tivesse a solidez patrimonial das Fundações e o dinamismo que permita uma organização de voluntários.”
Tem consciência de que este seu espírito obsessivo de recoletor é um pouco pessoal e intransmissível, não tem?
“Não. Aqui já há um grupo contaminado. Mas eu sei, a pergunta que as pessoas costumam fazer é o que é que acontece quando você morrer? E eu respondo, está previsto, há planos para isso. Eu acho que há meia dúzia de pessoas aqui que percebem a coisa, percebem em que é que isto é diferente. Nós costumamos dizer que somos militantes da memória. Há um aspeto de movimento nisto, e eu quero que isso se preserve. Uma espécie de movimento. Tem uma natureza política. É um movimento cívico pela memória. Isto é uma militância pela memória. De militas, soldados da memória.” Alguma vez pensa, ‘ai, e se eu não me tivesse metido nisto’?
“Tenho pena é de não me ter metido mais cedo nisto assim, desta forma global. Eu vou dizer isto de uma forma filosófica: A luta pela memória é uma luta contra a morte.” Não se sente como o Dom Quixote?
“Não. Do Sancho Pança já me sentiria mais próximo. Para mim uma das coisas trágicas do Dom Quixote é a família a queimar-lhe a sua biblioteca de cavalaria.”
A sua família aceita bem isto?
“Não tem outro remédio. Mas aceita isso porque isto é uma coisa de família.” Joaquim Paulo Nogueira
Reportagem
O eclipse do Real na vida quotidiana
“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, a frase do Samba da Bênção que Vinícius de Moraes celebrizou, aplica-se como uma luva ao imenso mundo de novas possibilidades relacionais que o universo digital veio trazer
Éum tema cada vez mais atual, a forma como na sociedade contemporânea as relações à distância, vulgarmente designadas por online, vieram complementar e, em muitos casos substituir, as relações em presença.
Num tempo muito recente tivemos aliás, com o confinamento forçado a que a pandemia nos atirou, a oportunidade de, à escala mundial, experimentarmos de modo exacerbado, as possibilidades, e as consequências, destas mudanças nos relacionamentos humanos.
Que têm múltiplos contextos de abordagem. Um deles, a da informação falsa que circula em algumas redes sociais, como por exemplo YouTube, WhatsApp, Facebook, a que fizemos referência quando na última edição conversámos com o jornalista Adelino Gomes. Outra abordagem possível, e cada vez mais recorrente, e que se relaciona com o verso de Vinícius que encabeça esta reportagem, a forma como as relações virtuais trazem novas questões, algumas de natureza existencial, outras até éticas, aos processos de sociabilização indispensáveis à nossa existência.
Neste contexto assume cada vez maior importância a presença de milhões de pessoas nas aplicações sociais de encontros. À distância de um clique, de um deslizar de dedo, cada um de nós parece que pode exponenciar a um quase infinito a sua capacidade relacional. Sem sermos exaustivos, há uma plêiade de aplicações cada vez mais vasta, conversámos com utilizadores de algumas aplicações de encontros, nomeadamente do Tinder (talvez a mais famosa e donde surgiu, como contraponto a esta ilusão das histórias de encantar, a figura da Tinderela e do Tinderelo), do Bumble (que tem como novidade e condicionante, serem as mulheres a dar o primeiro passo) e da Raya (uma rede com algumas pretensões de filtro de utilizadores, criando uma espécie de clube de elite). Falámos
também com uma utilizadora do Second Life, o precursor do tão hoje falado Metaverso. Exceto o utilizador da Raya, todos os nossos interlocutores foram mulheres, e isto, como se verá, permite-nos perceber também uma centralidade do lugar da mulher nesta reconfiguração relacional do mundo digital promovido pelas redes de encontros. Iremos perceber também que as pessoas com quem conversámos, seja por características próprias ou até profissionais, têm um hábito de refletir sobre a sua presença nestas aplicações. E no fim, conversámos com a psicanalista Patrícia Câmara sobre algumas implicações comportamentais destes novos contextos relacionais.
No mundo das Tinderelas e Tinderelos
No Tinder, como na generalidade das aplicações de encontros virtuais, o dispositivo obriga à criação de um perfil com fotos do utilizador que se autodefine através de alguns parâmetros já estabelecidos. Depois a pesquisa faz-se através do famoso “swipe”, ou seja, deslizar para a esquerda, caso não lhe interesse, ou para a direita, caso tenha interesse, aquele fazer “like” que já entrou na linguagem quotidiana. Se a outra pessoa também tiver feito o mesmo gesto de interesse, a aplicação exibe a palavra “match” e as duas pessoas podem ficar em contacto. Tal como a generalidade das aplicações tem uma componente gratuita, muito limitada nos acessos, e componentes pagas, tendo uma estratégia muito subtil de ir gradualmente condicionando o acesso a quem não paga. Sofia, 60 anos, reformada, está intermitentemente na aplicação há cerca de seis anos. Vive atualmente uma fase de grande desinteresse até porque como cada vez faz menos “likes” e tem assim cada menos “matchs”. Praticamente só vai à aplicação quando se vai deitar, depois de se entreter com o jogo de cartas do “Solitário” passa para a aplicação para ver se algo de novo lhe suscita o interesse. Diz:
“Cada vez mais acho menos graça ao que encontro, acredito que para outras faixas etárias pode ser mais interessante, mas na minha, encontro cada vez mais pessoas muito patetas, nem posso dizer que sejam pessoas sem princípios, aqueles tipos dos papões que só querem sexo, não, são pessoas que ficam ali com conversas um pouco estúpidas, “olá bom dia, tem um dia ótimo!” e não dizem mais nada. Eu estou aqui porque quero encontrar-me com pessoas, o bom disto é que quando nos encontramos sabemos que queremos falar com aquela pessoa, que aquela pessoa quer falar connosco. Já me aconteceu ter conversas engraçadas com alguém e depois vou toda contente a pensar falar com ele no dia seguinte e de repente desapareceu, sem rasto. E isso irrita-me muito. As minhas amigas dizem-me, “Sofia, tu tens muita piada em estar aqui mas não podes deixar afetar-te assim, isto é um jogo!” É um jogo, mas também há afetos, eu entrego-me, respondo.”
Tem muitos amigos, mais amigas do que amigos, sai bastante, tem feito também bons amigos no Tinder, mas assume que vem à aplicação por uma certa solidão. Quando começou, porque gosta de escrever, é formada em Línguas e Literaturas Modernas, tentou perceber o funcionamento do Tinder, fez pesquisas,. Nas suas amigas ninguém andava na aplicação, por isso não lhes falava muito sobre a sua presença, apenas a algumas amigas mais próximas que se deliciavam a ouvi-la:
“Uma das mais-valias que eu tirei do Tinder foram os momentos ótimos que eu passava a contar as histórias da aplicação. Uma das minhas amigas até me desafiou para as escrever, porque achava que eu era uma boa contadora de histórias.”
Ainda chegou a pensar nisso, a escrita é muito importante na sua vida:
“A minha preocupação quando comecei a escrever foi mostrar o meu mundo exa-
tamente como a pessoa que eu sou. E não deixar que façam de mim outra pessoa.” Confessa o seu incómodo quando ouve críticas de quem não conhece a aplicação: “Quem mais opina sobre o Tinder nunca lá esteve, tem uma imagem estereotipada. A única maneira que tu tens de conhecer uma aplicação destas é criares um perfil e estares lá nem que seja um dia. Não há outra maneira de saber como é que funciona aquele ‘swipe’”.
Raya, uma espécie de clube dos famosos Na imensa variedade de aplicações de encontros surgiu Raya, um site exclusivo, só para convidados, que pretende juntar o glamour da riqueza e da fama. Vítor, 51 anos, jornalista, sempre se tinha mantido fora deste universo, até por algum pudor embora comece por dizer:
“A partir de certa altura essa divisão é artificial porque as redes sociais são a mesma coisa da vida. Hoje em dia a maior parte das pessoas quando têm alguma vontade de conhecer outras pessoas usam-nas, seja o Tinder, o Bumble ou a Raya ou outra qualquer.”
Há cerca de um ano, aproveitando um momento de mudança da sua vida em que quis encontrar outros círculos de sociabilização, inscreveu-se na Raya. É feita uma avaliação antes de alguém entrar, é um clube com expansão mundial, e como são pessoas que geralmente viajam muito é frequente os contactos com pessoas que estão em lugares muito diferentes. Vítor já conheceu em Lisboa uma polaca e também uma inglesa que vivia em Paris.
“São pessoas que viajam muito, por exemplo agora está a decorrer a Bienal de Veneza e tu não imaginas a quantidade de pessoas desta rede que está lá. Muitas destas pessoas são americanas, as mulheres americanas têm uma relação muito mais liberal e descontraída com estas aplicações, e para os americanos que vêm à Europa ir a Roma
“As relações virtuais trazem novas questões, algumas de natureza existencial, outras até éticas”
ou a Lisboa é a mesma coisa, até porque Lisboa se tornou num lugar muito ‘trendy’.”
Tem encontrado pessoas com quem fez boas amizades, com quem fala frequentemente e até sai. Quando lhe pergunto se estas aplicações diminuem a solidão, é muito crítico:
“As pessoas hoje sentem-se muito sozinhas, com relações muito fragmentadas, aquela ideia antiga de estares sozinho no meio da multidão tornou-se muito mais intensa no mundo digital. Quando estás numa rede com milhares de pessoas a mostrarem-se nas festas, nas praias, tudo isso aumenta a tua sensação de vazio e de que estás a passar ao lado de algo.”
Bumble, a diferença de ser a mulher escolher “Quando me divorciei inscrevi-me em tudo o que era workshop da cidade para ver se conhecia pessoas, não conheci ninguém, saia à noite sozinha, ia às inaugurações, ficava assim com o copo a balouçar na mão e ia para casa a chorar”, começa por dizer Joana, 54 anos, artista. Utilizadora do Bumble confessa que tem um problema com estas aplicações:
“Convencionou-se o pôr de lado toda a cortesia que nós conhecemos ao longo da vida. Gostaria que se mantivesse alguma dignidade no encontro virtual. Por exemplo, terem conversas simultâneas está ao nível de estarem num bar a conversar com a mulher que está na mesa ao lado. Ou deixarem uma conversa a meio e os mais honestos dizerem, “ah, desculpa, estou a fazer zapping”. Isto perturba-me, não tenho autoestima para isto, confesso. E depois nunca deixarei de me espantar com os perfis dos homens. Mostram o carrão, o motão, o peixe, é muita gente que mostra o peixe que acabaram de pescar, na piscina, ou quando estão a fazer a barba e a mostrarem o tronco nu, pudera, é o que eles queriam ver em nós, eles efetivamente não estão a falar connosco, não estão a falar com
Patrícia Câmara: “Fica sempre uma espécie de espelho que nunca se transforma em janela”
mulher nenhuma, estão a projetar-se assim no outro. Não sei se aumenta a solidão mas aumenta muito o ceticismo, o cansaço, são muitas frustrações acumuladas. Isto é um supermercado, os homens escrevem no perfil eu quero isto, isto e isto, há homens que escrevem no perfil não mais do que 50 quilómetros de distância, como se dissessem não penses que vou perder meia hora na estrada por causa de ti. É tudo ao serviço de mim próprio, ninguém ali está a pensar dar. Eu quero conhecer outros mas sinto que o outro não me quer conhecer a mim. Uma coisa que me impressiona muito é eu estar a falar com alguém, dizemos três frases e a pessoa tira-me. Isto é absolutamente ridículo eu sei, mas magoa-me e aleija-me muito.”
A caminho do Metaverso Carla, 58 anos, tradutora, é ‘cidadã’ do Second Live desde 2006. Sendo uma pessoa
introvertida a experiência ajudou-a a limar inibições e alguns temores relacionados com a interação social. O tempo que lhe dedica é muito dependente do tempo livre que vai conseguindo ter no dia a dia, no pico da utilização passava pelo menos 3 a 4 horas diárias. Um mundo virtual que junta pessoas em fusos horários muito diferentes obriga a uma certa organização para se poderem cumprir os compromissos assumidos. Muitas vezes não visita o Second Life durante meses, hoje em dia tenta visitar os amigos que lá tem uma vez por semana, mas nem sempre consegue.
“Para mim, que não tive possibilidade de viajar muito e com uma vida privada que não me ofereceu muitas oportunidades de sair à noite ou passar fins de semana fora, o Second Life permitiu-me conhecer pessoas de outros cantos de mundo e assim ter contacto com outras realidades. Isto é também um importante centro de produção de arte virtual, juntando amadores como eu e os artistas ‘verdadeiros’ com trabalho exposto também no mundo físico.”
A vida virtual acrescenta-lhe ilusão, fantasia, diz:
“Visitas exposições, assistes a concertos ao vivo, compras produtos e serviços nas inúmeras lojas existentes, vais dançar, podes falar em grupo, ou em privado. Há imensas atividades que se podem realizar a dois: ir jantar, passear na praia, assistir ao pôr do sol, ver um filme, dançar num lindo palácio, atravessar o deserto num camelo, visitar um planeta distante ou participar numa comunidade da época vitoriana.”
Criou algumas relações de amizade que se mantêm e com quem sente que pode contar a qualquer hora, e também encontrou pessoas com quem teve relacionamentos mais próximos. Deixa-nos uma ideia muito positiva desta experiência:
“Tratando-se de um ambiente virtual (e não exatamente um jogo com níveis a alcançar), cada um procura ali compensar o que não tem no mundo físico. Assim, há quem procure só sexo sem ligação afetiva, mas também há pessoas que tiveram infâncias problemáticas e têm avatares infantis que podem ser adotados por casais, com famílias inteiras de irmãos e irmãs, tios, cunhados (há clãs alargados reconhecidos facilmente pelo apelido comum que todos usam), há pessoas com dificuldades motoras que ali passam a vida a dançar em clubes, há designers gráficos que ganham a vida (ou complementam o seu rendimento mensal) com os produtos que criam ‘in-world’”.
Patrícia Câmara, psicanalista, membro da direção da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática, encontra na prática clínica os contextos do mundo digital: “Aparece-nos a toda a hora. Desde a preocupação com o número de ‘likes’, como forma de fazer a regulação da autoestima, o que é tramado, porque é uma relação a um nível superficial, sem impacto interno. Passar o dedo para escolher pessoas, sem nenhuma relação com a intimidade do outro. Por um outro lado também me parece uma instrumentalização. Fica sempre uma espécie de espelho que nunca se transforma em janela. O que é importante dizer também: é que nenhum de nós pode achar que está imune.”
Fala do impacto comportamental que tem este contraponto entre realidade e ilusão:
“Estamos a ficar num modo em que a realidade não interessa nada. O valor passa a estar na sensação que as coisas provocam, basta gritar alto e passar por cima do outro que a agitação toma o lugar da relação.
As relações implicam tolerar o diferente, implicam escuta, encontro e desencontro num clima de cooperação, a ausência do clima de cooperação amplia a dificuldade de suportar a dor da diferença e o medo aguça-se para calar o outro. Para que eu não escute no outro aquilo que não posso ouvir em mim. Os algoritmos são matriz de uma vida sempre surda e, portanto, sempre semimorta. O valor da informação não se mede pela qualidade e inscrição na seriedade, mas sim nas sensações que levam a mais ou menos ‘likes’. A imortalidade que tanto procuramos, só pode vir pela relação inteira entre as pessoas, só nessa relação somos imortais. Temos densidade humana quando as sensações são oriundas de uma relação em que o outro nos reconhece para além da imagem que quer ver refletida.” É preciso também uma maior responsabilidade de quem opera estas aplicações, refere:
“A busca permanente de um número cada vez maior de visualizações ou gostos não tem qualquer vigilância ética. Dá-se aquilo que o ‘outro quer’, sem importar saber se o que se está a proporcionar ao outro são ‘alimentos tóxicos e cancerígenos’. A autodeterminação, central para a saúde mental, é confundida com o poder escolher estar permanentemente em contacto com conteúdos híper excitatórios, mas vazios. Ficamos em híper alerta permanente ou adormecemos como forma de sobrevivência. A ética deveria ser resgatada para o lugar da ética, a produção de conteúdos digitais deveria estar inscrita num respeito pela dignidade humana e pela intimidade. Digo isto com cuidado porque aquilo que digo também pode ser utilizado, pervertido, por aqueles que ‘nos querem salvar de nós’ impondo uma conduta moralista que é igualmente letal.”
Reforça a ideia de que é preciso uma mudança de comportamento: “Acho que o que devíamos estar a fazer era uma tentativa de irrigação da humanidade. Ampliar uma atitude de busca pela verdade (não absoluta, claro), pela história. Não agir de forma primária, parar para pensar antes de escolher abrir determinados conteúdos ou levá-los como verdades absolutas. Na Sociedade Portuguesa de Psicossomática, esse tem sido sempre o nosso lema, pensar em conjunto e de forma multidisciplinar. Resgatar o respeito mútuo e distinguir plenamente o objeto da discussão do ataque ao carácter de quem discute. Saber o impacto que têm em nós as múltiplas promessas de imortalidade que os meios digitais oferecem no nosso corpo (mente incluída) e a desregulação psicofisiológica que causam. Assim, como o impacto que tem em nós as relações boas, complementares, que sabem que a saúde não é totalitarista, aceita a diferença.”
Durante toda a conversa sublinhou as possibilidades que este novo mundo digital também traz.
“Tirar a máscara da identidade ao mesmo tempo que tem esta possibilidade de criar uma carapaça caracterial que impede o verdadeiro contacto também permite que as pessoas se entreguem de uma forma mais genuína, mais autêntica.”
E assinala alterações em relação ao comportamento esperado na mulher:
“Há uma certa libertação na possibilidade de ser a mulher a decidir. Acho que mudou o padrão da mulher enquanto ser que está à espera. Eu também posso chegar à aplicação da mesma forma que o homem. Não tenho de esperar que o homem venha ter comigo. Tudo isto tem múltiplas questões. Eu penso que de uma forma geral reposiciona e coloca de igual para igual.”
Joaquim Paulo Nogueira
Viajando com livros
Camões verso e reverso
A coincidência do V centenário do nascimento de Camões com as comemorações do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas no mundo, conduzem à aproximação do Poeta e da sua Obra, à língua que eternizou e utilizamos todos os dias Por António Valdemar
Os quinhentos anos do nascimento de Camões, integrados em comemorações nacionais, não se restringem, apenas, a Lisboa, ao Porto, a Coimbra e outras cidades com prestígio cultural e estatuto universitário. Serão assinalados em muitos outros locais associados a Camões e referidos n’Os Lusíadas. O próprio poeta afirmou ter «a vida pelo mundo em pedaços repartida».
O nascimento circunscreve-se entre o ano 1524 e o ano de 2025. Teófilo Braga, pouco antes de falecer a 28 de Janeiro de 1924, pronunciou-se acerca da data do nascimento de Camões. Indicou 1524 acrescentando o mês e o dia: 4 ou 5 de Fevereiro. Daí o governo presidido por Álvaro de Castro (de 18 de Dezembro de 1923 a 6 de Julho de 1924) com representação expressiva do grupo da Seara Nova – era ministro da Instrução, António Sérgio – determinou para feriado nacional o 5 de Fevereiro de 1924. O Congresso da República votou a favor e mereceu a promulgação do Chefe de Estado, na altura, Manuel Teixeira Gomes, um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Os primeiros biógrafos e comentadores da vida e da obra de Camões, não são unânimes nas referências do essencial. Encontram-se por esclarecer: o local exato do nascimento e a data rigorosa em que ocorreu; a origem e a condição social dos pais; os estudos realizados que o dotaram de uma cultura multifacetada; a permanência em Ceuta; a estadia em Macau; os últimos anos em Lisboa; a data da morte, as causas da morte e identificação da sepultura.
Certezas há poucas: o regresso a Lisboa, após muitos anos no Oriente e na África; a composição e impressão d’Os Lusíadas, (1572), na oficina de António Gonçalves, instalada na Costa do Castelo. Resta a questão da tença subscrita pelo rei D. Sebastião, paga com atrasos, mas renovada, de três em três anos. Logo a seguir à morte de Camões, ainda beneficiou a sua mãe Ana de Sá. Este conspecto sumário enumera, em poucas linhas, os parâmetros da vida e da obra, as guerras e as guerrilhas entre eruditos, debatendo-se entre a realidade concreta e o fabuloso e lendário.
a leitura das Cartas e outros testemunhos contemporâneos restituíram o homem de carne e osso , o Camões marginal, frequentador assíduo de tascas e lupanares
Numerosos investigadores portugueses e estrangeiros, dissecaram Os Lusíadas canto por canto, estrofe por estrofe, verso por verso, palavra a palavra, vírgula a vírgula. Em redor da obra épica, da obra lírica e dos autos, o perfil passou a ficar com uma coroa de louros. Mas a leitura das Cartas e outros testemunhos contemporâneos restituíram o homem de carne e osso, o Camões marginal, frequentador assíduo de tascas e lupanares. Assim reconheceu Carolina Michaelis e, cem anos depois, Frederico Lourenço.
A universalidade d’Os Lusíadas, destaca-se no contexto de outras epopeias. O domínio do latim permitiu-lhe mergulhar na Ilíada e na Odisseia de Homero e, sobretudo, na Eneida, de Virgílio. Teve a aspiração de ser um Virgílio português. Outro contributo decisivo e que muito enriqueceu a sua formação literária foi o conhecimento dos principais representantes do Renascimento italiano. Ter vivido muitos anos no Oriente não se limitou a desgraças.
Mas não cabe nesta visão retrospetiva a avaliação do ciclo rolandiano, das gestas heroicas do Cid, do caudal de sabedoria que emerge no Rigveda, no Mahabharata, no Bhagavad-Gita e na efervescência narrativa do Harivança e do Ramaiana
Muito se poderá concluir numa leitura comparativa d’Os Lusíadas com a Jerusalém Libertada, de Tasso (1581); o Paraíso Perdido, de Milton (1667); a Messíada, de Klopstock (1748); a Henríada de Voltaire (1728); e a Kalevala (1835), o poema nacional da Finlândia. Uma coisa é certa: Camões manteve-se indiferente aos epigramas venenosos de Pedro Andrade Caminha (1520-1589). Em suma: os epígonos de Camões perderam o interesse: Jerónimo Corte Real, autor de Sucesso do Segundo Cerco de Diu (editado em 1574, dois anos após Os Lusíadas), até José Agostinho de Macedo (1761-1831) ao redigir O Oriente (1811), em XII cantos, motivados para transpor ou suplantar o génio de Camões. A evolução da poesia épica em Portugal, ficou circunscrita a alguns parágrafos, a lacónicos rodapés das Histórias de Literatura, arrumados nas estantes recatadas das Bibliotecas e Arquivos, ou nas montras circunspectas dos alfarrabistas que, no Brasil, se chamam os «sebos».
Chegamos a Fernando Pessoa, aos poemas ortónimos da Mensagem (1934), destinados a interpretar Portugal, a aproximar portugueses, a incutir interrogações. O Infante D Henrique: «Tem aos pés o mar novo e as mortas eras./ O único imperador que tem, deveras,/ O globo mundo em sua mão». Já o legado do Infante D. Pedro encerra o verso e o reverso: «Claro em pensar e claro no sentir,/ E claro no querer;/ Indiferente ao que há em conseguir/ Que seja só obter; dúplice dono, sem dividir,/ De dever e de ser/ (…) «Assim vivi, assim morri, a vida./ Calmo sob mudos céus,/ Fiel à palavra dada e à ideia tida.» Para cada época o seu Alcácer Kibir. A fatalidade do nevoeiro apodera-se quase sempre do quotidiano. A coincidência da celebração do V centenário do nascimento de Camões, com as comemorações do 10 de Junho, de 2024, conduzem-nos à inevitável aproximação com a obra do Poeta. As palavras de Camões ganharam eternidade e, ao mesmo tempo, continuam a ser faladas e escritas todos os dias.
A Casa na árvore
A grande desconhecida
A árvore-do-paraíso dá “azeitonas” que sabem a algodão e cinzas Por Susana Neves
Aprimeira vez que vi uma árvore-do-paraíso (Elaeagnus angustifolia L.) não imaginei que esta espécie arbórea, originária do Médio Oriente, um dia me fizesse rir. No entanto, assim aconteceu ao ler as memórias de John Törnquist, um missionário protestante sueco que, durante mais de 30 anos, viveu no Turquestão Oriental (actual Xinjiang), onde estas árvores, de belas folhas prateadas, se encontram em estado silvestre e plantadas em pomar.
Através das memórias de Törnquist, escritas em 1926, percebe-se que a árvore-do-paraíso (também designada oliveira-da-rússia, salgueiro-de-jerusalém e tâmara-de-trebizonde) não só produzia um dos frutos secos mais apreciados da Ásia Central, como era imprescindível à beleza das mulheres uigur (povo de origem turcomena que habita o noroeste da China). Usavam elas longas tranças e quanto maior o seu número mais a sua beleza era apreciada, de tal forma que se o cabelo não fosse suficientemente comprido juntavam-lhe pêlo da cauda de iaque! De modo a manter o cabelo brilhante e suave, as mulheres uigures tratavam-no com resina da árvore-do-paraíso (jigdä). Ora a estes cuidados capilares femininos não era indiferente o homem uigur, como se verifica no episódio cómico que Törnquist relata: «Um velho mendigo, que durante algum tempo estivera atento ao feio cabelo encaracolado de uma das nossas missionárias, teve tanta pena dela que um dia lhe ofereceu de presente uma porção dessa resina [de jigdä].»
Incluído num artigo de etnobotânica sobre a utilização da Elaeagnus angustifolia no Turquestão Oriental (“Ethnobotany and Utilization of the Oleaster, Elaeagnus angustifólia L in Eastern Turkestan”, Orientalia Suecana 2022, vol. 71), publicado pela Universidade de Uppsala, na Suécia, o episódio do mendigo e da missionária é acompanhado de outras informações, muitíssimo interessantes, sobre a forma como o povo uigur sempre tratou e ainda trata esta árvore caducifólia (de folha caduca), longeva (pode tornar-se multissecular e atingir 12 metros de altura); de
grande rusticidade (capaz de sobreviver em diferentes tipos de solos e condições atmosféricas) e, cuja floração na Primavera (sobretudo, no mês de Maio), impregnava a milenar cidade-oásis de Kashgar (uma das paragens da Rota da Seda) com um perfume doce, inesquecível — digno do Paraíso!
Segundo os autores do artigo acima referido, Patrick Hällzon, Zulhayat Ötkür e Ingvar Svanberg, académicos da Universidade de Uppsala, o povo uigur estima de tal maneira a jigdä (em particular, a yémish jigde, a variedade “doce”) – presente na sua toponímia e em ditos populares – que mantém a área à volta destas árvores tão limpa como o interior da própria casa. Ninguém pode lançar excrementos humanos ou de animal ou enterrar cadáveres de bichos (gatos e burros) na sua proximidade. Ninguém pode prender ao tronco o cão, burros, mulas e cavalos e se uma galinha procurar abrigo nos seus ramos é enxotada!
Evidentemente todas estas proibições, que assumem a dimensão de um tabu, resultam da necessidade em preservar uma árvore benigna em todas as suas partes constituintes (folhas, flores, frutos, casca, madeira e raízes) e por isso indispensável à sobrevivência do povo uigur. Associadas
aos costumes e identidade dos uigures, as jigdä não só ajudaram a preservar a feminilidade, com vimos, mas foram utilizadas na farmacopeia (p. ex., no tratamento de reumatismo, problemas urinários e digestivos) como combustível, e matéria de construção de várias infraestruturas rodoviárias (p. ex. na parte inferior das pontes), e, sobretudo, na alimentação e recuperação dos solos, uma vez que, devido a uma relação simbiótica com as bactérias do género Frankia, os nódulos radiculares da árvore conseguem fixar azoto atmosférico.
Como referimos (e experimentámos!), durante a Primavera, mas também nos primeiros meses de Verão, as pequenas flores amarelas da árvore-do-paraíso lançam um perfume intenso, verdadeiramente maravilhoso. Melífluas, estas flores não têm pétalas, mas sépalas que
1. Folhas e “azeitonas” ainda verdes (final de Agosto)
2. Pormenor das flores
3. A partir da Primavera, distingue-se facilmente uma do árvore-do-paraíso pela tonalidade prateada da sua copa. No percurso das hortas urbanas da Quinta da Granja, perto do Centro Comercial Colombo (Abril)
se “fundiram” em pares. Ocorrida a polinização, forma-se um fruto parecido com uma azeitona. Durante os meses de Verão, o fruto apresenta uma cor prateada por se encontrar coberto de pequenas “escamas” prateadas, tal como as folhas e, por vezes, os galhos mais jovens (que têm espinhos lenhosos). A copa relativamente aberta com ramos pendentes, devido ao peso dos frutos que se apresentam isolados ou em cachos, dá à árvore uma aparência de salgueiro. A cor prateada-metálica do conjunto – folhas e frutos – supera o tom prateado da copa das oliveiras, cuja face inferior das folhas também apresenta este tipo de revestimento em “escama” (tricomas peltados).
O fruto amadurece lentamente. No Outono, torna-se vermelho e, por fim, castanho. É nessa altura que deve ser colhido e comido. Retirada a casca, come-se a polpa branca e deita-se fora o caroço onde se encontra a semente. A dispersão da semente é também feita por alguns pássaros, mas o fruto flutua na água e por isso podemos considerar que a água é igualmente um agente disseminador.
Para o povo uigur (e para os povos do Médio Oriente, em geral) este fruto era mais do que uma curiosidade alimentar ou um snack lúdico das crianças: era o “pão do povo”, o fruto seco facilmente transportado pelo caçador, pelo nómada e pelo viajante que pernoitava nas caravanserai (locais onde os viajantes da Rota da Seda podiam descansar). Acessível, gratuito, muito abundante, qualquer pessoa podia colhê-lo, guardá-lo, e comê-lo como fruto seco ou reduzi-lo a farinha. Fermentá-lo e produzir uma espécie de licor. Ou ainda alimentar os rebanhos, permitindo-lhes suportar melhor a escassez do Inverno. Afinal, qual o sabor deste fruto? Num artigo sobre viagens e alimentação no Afeganistão (“Travel and Food in Afghanistan”), de Helen J. Saberi (incluído no livro Food on the move: proceedings of the Oxford Symposium on Food and Cookery 1996), explica-se com muita graça por que motivo o seu sabor pode não ser aliciante a um europeu. Citando o botânico e cirurgião escocês James Edward Tierney Aitchison (Notes On The Products Of Western Afghanistan And Of North Eastern Persia, 1890), a autora britânica justifica da seguinte forma o eventual desinteresse gustativo pelo fruto: «Sabe-me a uma mistura de algodão seco com cinzas.» Mas que importa o sabor, se através dele fizermos entrar dentro de nós o paraíso de uma árvore?
[A autora escreve de acordo com a antiga ortografia]
MEMÓRIAS DE JÚLIO ISIDRO
PESSA A PESSA...
... se constrói uma vida completa. Mesmo que o título supra denuncie erro ortográfico, coisa que o Pessa criticava violentamente
Fernando Luís de Oliveira Pessa nasceu a 15 de Abril de 1902 e, muito contrariado, partiu cem anos e duas semanas depois, a 29 de Abril.
Estávamos em 2002 e mesmo todos sabendo que a eternidade é um mito ou uma fé, o senhor Fernando Pessa tinha que estar aqui e agora. Filho de um oficial médico de Cavalaria, também quis seguir a carreira militar tendo tentado o ingresso na Escola de Guerra, hoje designada Academia Militar.
E aconteceu que foi chumbado por falta de aptidões físicas!
A este propósito costumava dizer que não tinha entrado para a arma de cavalaria, não por problemas seus, mas porque o exército não possuía cavalos suficientes para tantos oficiais!
A paixão pelo hipismo manteve-se, em particular nos quatro anos que viveu no Rio de Janeiro, mas uma queda aparatosa, acabou com sua pretensão de cavaleiro de concurso.
Mas quem não se lembra dos seus relatos das provas hípicas e dos célebres Tattoos militares, em directo do estádio do Restelo.
Elegantérrimo, bem-humorado, sarcástico q.b. profissionalíssimo, foi uma personalidade inimitável no mundo da comunicação.
Representou a nossa voz de esperança durante a 2.ª Guerra Mundial, quando ao microfone da BBC de Londres nos trazia novas da grande batalha pela liberdade.
Aos 74 anos entrou para funcionário da RTP depois de muitos como simples colaborador.
Trabalhou até aos 99 sempre criativo, diferente, original, e à frente de todos os tempos.
No dia 29 de Abril passam mais de duas décadas de um certo vazio entre todos aqueles que o viam chegar à RTP no seu velho Rover, luvas de pelica e chapéu very british. Recordo o corte dos colarinhos das camisas e as gravatas às riscas de nó muito fino.
Em determinada altura da sua vida, o Pessa decidiu-se por uma bolsa pendurada a tiracolo e mudou de sapatos Church para ténis, o que foi uma “revolução” para quem o via de blazer azul escuro com botões dourados e uns Adidas brancos que
Aos 74 anos entrou para funcionário da RTP depois de muitos como simples colaborador. Trabalhou até aos 99 sempre criativo, diferente, original, e à frente de todos os tempos
lhe davam mais conforto para as reportagens que fazia.
Creio que o segredo da sua eterna juventude estava no humor permanente, ele que percorreu as ruas destruídas de tantas cidades inglesas até com risco da própria vida para nos trazer notícias de uma guerra onde teoricamente Portugal era país neutro.
Quem o queria ver a manter a forma, era ir ao jardim atrás do ex-cinema Roma, a pedalar na sua pasteleira do tempo da guerra, vinte quilos bem medidos. Disse-me um dia que não tomava comprimidos para dormir, apenas um cálice de Cordial, licor que o ajudava a entrar no mundo dos sonhos.
O seu gabinete está intacto à entrada do nosso museu e ainda lhe ouvimos, nos momentos de saudade, o matraquear da velha máquina.
Quando passo por perto, paro sempre e chega-me do éter a voz deste meu mestre, a exigir da gente nova um português correcto e escorreito.
Entrevistou tudo e todos, até um peru! Se fosse hoje teria tantos e tantas peruas a quem estender o microfone…
Fez reportagens únicas, o célebre leão de Rio Maior, a entrevista a nado no Tejo ou o tradicional banho de 1 de Janeiro na praia de Carcavelos e apresentou grandes artistas com aquele ar de quem fala do alto de um metro e noventa.
Nos meus programas de televisão tenho apresentado peças sobre o Pessa como tributo à sua memória e para que os seus trabalhos sirvam de aula prática a profissionais relutantes.
Também cantava o fado e escreveu um, cheio de ironia a ridicularizar o senhor Hitlerrrr.
Escreveu também um Fado Final de que destaco a última quadra:
“E então, lá de longínquas paragens, Eu vos falarei nas noites de inverno.
Fazendo divertidas reportagens...
Só não sei se do Céu... se do Inferno”
Uma confissão, um desejo que faço sempre quando como as 12 passas da passagem de ano: Quando for grande quero ser um Pessa que não maça.
E esta, hein?!
[O autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
+INFO: hotelaria@inatel.pt | hoteis.inatel.pt | 210 072 387 * *chamada para a rede fixa nacional
MADEIRA: A PÉROLA DO ATLÂNTICO
1 a 5 setembro
Partidas: Porto | Lisboa
GERÊS ENCANTADO
5 a 8 setembro Lisboa | Santarém Coimbra
Rota das Aldeias do Xisto
11 a 15 setembro
Partidas: Viana do Castelo
Braga | Porto | Aveiro
Cuba cultural: inesquecível!
21 a 29 setembro
Partidas: Lisboa
22 a 28 setembro
Partidas: Santarém
Lisboa | Setúbal | Évora
29 setembro a 7 outubro
Partidas: Lisboa
Porto | Funchal
Entrevista Adalberto Dias de Carvalho “Todos os estados de carência são potenciadores da solidão”
O coordenador do Observatório da Solidão do ISCET (Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, no Porto) alerta para a premência de se combater, de forma transversal, o fenómeno, que não atinge só os mais velhos. A temática da solidão, defende, deve ir a Conselho de Ministros. Porque as palavras, ditas e escritas, podem transformar realidades
Adalberto Dias de Carvalho, professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, filósofo, diretor e presidente do conselho técnico-científico do ISCET, preconiza que a “abordagem da solidão deve constituir uma das prioridades da ação governamental”
Celebrando os 500 anos do nascimento de Camões, comecemos com um excerto de um soneto do poeta para abordar a solidão: “Amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói, e não se sente;/ É um contentamento descontente;/ É dor que desatina sem doer./ É um não querer mais que bem querer;/ É um andar solitário entre a gente;/ É nunca contentar-se de contente;/ É um cuidar que se ganha em se perder…” Extrapolando o verso “É um andar solitário entre a gente”, encontramos uma definição aceitável para a solidão?
Certamente que Camões sentiu essa solidão que refere. No meio de tanta gente, sabia que era incompreendido. Com aquela dimensão e inteligência, e com as peripécias que passou, era um homem que, entre a gente, se sentia sozinho.
Encontrou uma feliz maneira para tratarmos o problema da solidão. Uma das características da solidão é essa, a de nos sentirmos sós no meio de muita gente. Por um lado, podemos viver sós e não experienciar o fenómeno da solidão. Por outro, podemos viver no meio das pessoas e sentir essa mesma solidão.
A solidão é, sobretudo, um fenómeno urbano?
A solidão é – não apenas – um fenómeno urbano. Digo ‘não apenas’ para não haver a ilusão de se pensar que a solidão existe apenas nas cidades e que nos meios rurais são todos muito felizes. Em contexto urbano, mesmo nos nossos apartamentos, que são, por definição, casas no meio de outras, não se quebra a solidão que as pessoas possam sentir. Mesmo vivendo no meio de outras casas, com outras famílias, normalmente, as pessoas não se preocupam umas com as outras. Preocupam-se mais com fenómenos de solidão que aparecem nos meios de comunicação social, e aí até choram e se comovem, ficam extremamente sensibilizadas. Todavia, nem sequer pensam que a solidão pode viver ao seu lado – até dentro da própria casa. Há propensão genética para a solidão? Está relacionada com o contexto ambiental? O que desencadeia a solidão? Tenho a convicção de que a experiência e a propensão para a solidão são inerentes à condição humana. Mas, ao mesmo tempo, há contextos que podem favorecer a emergência da solidão. Como quaisquer outros padecimentos, podemos ter propensão [para a solidão] e não ser desencadeada ou, havendo contextos, há pessoas que resistem mais e outras menos. Na realidade, a experiência da solidão – entendida como a pessoa sentir-se só relativamente ao meio no qual vive –emerge desde o nascimento. Quando o bebé nasce, normalmente grita, chora. Sai da segurança do ventre materno para um ambiente inóspito, que desconhece em absoluto, e não tem elementos que contextualizem a situação que está a viver. Depois, a experiência da solidão aparece em várias fases da vida. Aos três, quatro anos é a fase em que a criança toma consciência de que não está no ventre materno e percebe que é diferente da mãe – é nessa altura que faz birras e os pais acham que está a ficar malcriada. São reações a tentar ser sujeito de si mesmo, mas isso traz sofrimento – ainda que possa ser passageiro. Na adolescência, a pessoa desprende-se das figuras familiares e tem esse impulso – mesmo que esteja a sofrer com isso, vai procurar ter pessoas mantendo uma relação de par
que substitua a relação anterior familiar que deixa de servir. O adolescente sofre experiências de solidão.
Todos podemos ter experiências de solidão ao longo da vida com a morte de alguém, com divórcios, separações conjugais, com a saída dos filhos de casa… São sempre perdas de relações estáveis que nos dão segurança. Todas elas nos iniciam à experiência da solidão, que, depois, se pode instalar ou não.
Tudo depende das compensações que consigamos fazer e da robustez psicológica de cada um de nós.
Sendo a possibilidade de solidão inerente à condição humana, como é que as pessoas são preparadas para isso? Que compensações precisam de trabalhar?
Aí entra a minha formação pedagógica e educativa. O aspeto fundamental aqui é a educação em termos de apoio pedagógico, formação, no sentido lato da palavra. É aprendizagem em termos de formação humana. Há um aspeto filosófico por detrás disto. Cada ser humano é um sujeito situado na natureza, na sociedade. Michel Foucault dizia que é fundamental que cada ser humano se recurve sobre si mesmo, se interrogue e se procure. Fomentar, desde criança, passando pelo jovem e pelo adulto, essa capacidade de nos olharmos, interrogarmos e procuramos a nós mesmos. É importante que a educação permita que nos olhemos a partir de nós próprios. Normalmente, isso é deixado para disciplinas como Moral, numa perspetiva religiosa, ou Educação Cívica, numa perspetiva de formação social, mas aqui estamos a falar de formação humana. Porque é que isto é importante? Porque, confrontados com situações que nos podem conduzir à solidão, podemos contextualizar, compreender e enfrentar de uma forma saudável.
A experiência da solidão, sendo transversal em diferentes fases da vida, é mais forte nas pessoas mais velhas?
A experiência da solidão é fortíssima na velhice. Não é apenas um fenómeno dos velhos, mas a velhice tem envolvências muito importantes – é partir-se do princípio de que o velho começa a ter dificuldades no relacionamento com terceiros e com muita frequência, por várias razões: pela morte dos amigos ou porque os familiares o põem de parte e ele sente que não é estimado e considerado. O velho tem tendência a fechar-se sobre si mesmo. Mas ao fechar-se em si mesmo não deveria ser condenado a ficar fechado sobre ele próprio. É importante a promoção da convivência com outras pessoas. Em contexto urbano, as relações de vizinhança normalmente não existem. Essas relações são muito importantes no combate e na envolvência do fenómeno da solidão. A vizinhança é algo que desaparece nas cidades. Daí que várias das intervenções sociais, em contexto urbano, vão no sentido de tentar promover as relações das pessoas que estão sozinhas, com vizinhos que conhece, que não conhece ou deixou de se se relacionar. Há pouco quando falava da preparação para as experiências de solidão, da formação, como é que se pode concretizar em termos práticos?
A formação para a solidão passa pela experiência, pela relação humana. Não se ensina uma pessoa a enfrentar o fenómeno da solidão, mas pode-se experienciar com as pessoas a vivência da solidão. Isso implica, entre outras coisas, a partilha, que é algo que dificilmente as pessoas fazem. As pessoas falam de terceiros, do que é exterior, mas não
partilham a sua vida. Não estou a dizer que se vai partilhar a vida com toda a gente, mas há contextos onde essa partilha é fundamental. A própria vivência na escola, a maneira como os professores, funcionários e alunos se relacionam, tudo isso é decisivo. Tínhamos de conceber uma educação muito diferente da que temos atualmente, ou seja, uma educação que não seria disciplinar mas formativa. Isso no plano ideal?…
Sim, é algo ideal… Se virmos experiências em alguns países no norte da Europa, a formação disciplinar tem muito pouco lugar. Se fôssemos a uma escola finlandesa do ensino básico, diríamos: “Eles não estão a aprender nada, isto é brincadeira.” Passam uma boa parte do dia fora do próprio espaço escolar… Por exemplo, a apanhar folhas, a observar coisas e depois a confrontar-se com a organização, quem vai à frente e atrás… As suas observações, experiências e surpresas são trazidas para a sala de aula. Podemos dizer que ficam pior preparados do que os nossos – não ficam. Basta ver o desenvolvimento social, cultural, industrial desses países. O que isto tem a ver com o problema da solidão? As pessoas são formadas segundo vivências. Vivências, essas, que partilham com colegas, professores, e isso é extremamente importante.
Países do norte da Europa também já foram notícia pelas taxas de suicídio… Há uma taxa de suicídio, nomeadamente, na Suécia, menos na Finlândia. É verdade que tem diminuído a taxa de suicídios nos últimos anos. O fenómeno do suicídio pode ter a ver com o fenómeno da solidão, mas também com outros fatores. Não é por acaso que que em Portugal a maior taxa de suicídios é no Alentejo, concelho de Odemira. Há diversos fatores, tem a ver com o clima, a paisagem…
A paisagem e o clima são diferentes no norte da Europa e no Alentejo. No caso do Alentejo ninguém consegue explicar. Há umas tentativas de explicar…
A maior taxa de suicídios aparece quando sopra o vento Suão, um vento forte… Há um aspeto importante no fenómeno dos suicídios e pode ter a ver com o fenómeno da solidão: a formação cultural. A religião no sul de Portugal era pouco importante.
A cultura religiosa não tinha a força do norte…
Quem tem uma experiência religiosa sente-se menos só?
A cultura católica, designadamente, foi mais branda no sul de Portugal durante muito tempo. Para todos nós, quer sejamos religiosos ou não, quer queiramos quer não, todos somos culturalmente gregos, árabes, cristãos… Para a religião cristã cada um de nós é uma criatura criada à semelhança de Deus. Matarmos alguém ou matarmo-nos a nós próprios é um pecado gravíssimo, é matar uma criatura de Deus. No norte da Europa a cristianização foi mais branda e houve muita resistência a essa cristianização… Para quem é crente, Deus existe sempre e nunca nos abandona – a segurança que isto não dá. E porquê? Porque em termos humanos todos temos, mais ou menos, experiências de pessoas que nos abandonaram, até porque morreram. Com Deus, por definição, isso nunca acontece. Portanto, a experiência religiosa permite escapar em larga medida à solidão. Eu direi que a relação com Deus não substitui a relação com os humanos. Porque a relação com os humanos, mesmo quando é conflituosa, suscita o nosso empenhamento pessoal. Normalmente, os conflitos que temos com outras pessoas implicam o nosso investimento, a nossa
entrega, a busca de solução, a busca da própria realização e potenciamos ainda mais as nossas capacidades. No nosso país, cerca de dois milhões vivem no limiar da pobreza. A pobreza também potencia a solidão? Todo os estados de carência, material e sentimental, são potenciadores da solidão, que depois se pode consumar ou não. A pobreza percorre uma grande parte das famílias da nossa sociedade nas diversas formas: na impossibilidade de acederem ao aquecimento, à alimentação conveniente… A pobreza é uma violência e ela própria suscita violência. A falta de bens provoca conflitos entre as pessoas. A pobreza tem a ver com a solidão, na medida em que é uma privação que não é legítima de bens essenciais; implicitamente, conduz a uma experiência, a um sentimento de fragilidade insuperável: “Sinto a fragilidade e não a posso ultrapassar.” Esta é, com certeza, uma experiência de solidão – é experienciada numa sociedade em que, ao mesmo tempo, se veem pessoas que têm acesso a tudo isso e “não se importam comigo; há uma experiência de alheamento dos outros relativamente a mim”. Essa experiência conduz à solidão. Tudo isto exige uma resposta mais ampla. Que estratégia defende em Portugal para a problemática da solidão? Não é criando um ministério da Solidão… Isso foi feito no Reino Unido e no Japão… A ministra da Solidão do Reino Unido esteve aqui há cerca de quatro anos e lisonjeou-nos a todos, porque teve conhecimento do Observatório da Solidão e fez questão de estar connosco.
O que o país tem de fazer nesta matéria?
Um aspeto importante era vermos, por exemplo, no programa do Governo ser anunciado um combate à abordagem do fenómeno da solidão e um combate aos fenómenos violentos da solidão, constituindo uma prioridade. Esta abordagem construtiva e interventiva do fenómeno da solidão, quer na formação das pessoas quer na superação da expressão violenta da sua emergência, implica ter políticas consequentes em termos de trabalho, remunerações, etc. O salário é importantíssimo para evitar situações de pobreza, como as condições de trabalho e a educação, pelas razões que referi anteriormente. A abordagem da solidão deve constituir uma das
“A abordagem ao fenómeno da solidão obriga qualquer Governo a procurar resolver um conjunto de questões importantíssimas que são fundamentais para a felicidade e o bem-estar das pessoas”
prioridades da ação governamental, na medida em que o fenómeno tem um conjunto de valências que a proporcionam e que não é obrigação de um só ministério. Tem de haver consciência de que ele existe e é transversal. Deve ser abordado nos Conselhos de Ministros. A abordagem ao fenómeno da solidão obriga qualquer Governo a procurar resolver um conjunto de questões importantíssimas que são fundamentais para a felicidade e o bem-estar das pessoas.
Em tempos, defendeu uma secretaria de Estado da Solidão. “Evoluiu” no seu pensamento, no que concerne a este ponto?
Quando falei numa secretaria de Estado foi de propósito para não falar num ministério, na medida em que a problemática da solidão tem um conjunto de vetores condicionantes, de consequências constituintes que têm a ver com todas as dimensões da existência humana que são da responsabilidade de diversos ministérios. Quando falei numa secretaria de Estado era para ser uma estrutura intermédia, que assegurasse que a problemática era abordada, suscitasse a questão em vários ministérios e fizesse a síntese. E, depois, pudesse passar para instituições que, de uma forma ou de outra, lidam com o fenómeno da solidão. Deveria haver uma instância – poderia ser uma secretaria de Estado, uma direção-geral – que estivesse atenta ao fenómeno da solidão.
Sendo o trabalho do Observatório da Solidão – Obsolidão – recolher dados, analisá-los, divulgá-los, o que tem observado sobre a solidão dos portugueses? O que os dados lhe dizem? Muitas vezes há a tendência de ligar a solidão aos mais velhos. A solidão também é experienciada pelos jovens. Um dado que conseguimos recolher num estudo foi que havia mais jovens a dizer que vivem a solidão do que os idosos, em termos relativos. Só com uma diferença: os jovens conseguem escapar à solidão com mais facilidade do que os velhos. Um idoso tende a ter uma esperança menor do que o jovem, porque tem uma experiência de vida muitas vezes negativa. A esperança num mundo melhor tem tendência a desvanecer-se no idoso, enquanto o jovem tem a capacidade para imaginar um mundo melhor, quer em termos comunitários quer em termos pessoais. Se eu estiver a viver uma experiência negativa, ter esperança é um fator muito importante para ultrapassar a solidão ou a iminência da solidão.
O que o estudo da solidão o tem ensinado?
A construção de utopias imaginárias, realizáveis ou não, são formas de uma pessoa ter esperança e construir alternativas. Outra temática que me interessa são os limites, que tanto podem gerar constrangimentos como oportunidades. O que a solidão me obrigou a estudar: a utopia e os limites. Num poema de José Gomes Ferreira, A minha solidão, o poeta escreveu “A minha solidão/não é uma invenção/ Para enfeitar noites estreladas…/ Mas este querer arrancar a própria sombra do chão/ E ir com ela pelas ruas de mãos dadas”. O que cada um de nós pode fazer para agarrar a mão do outro, para que ele não sinta que está sozinho no caminho?
[Silêncio] José Gomes Ferreira é de uma densidade, é extraordinário!… É, no mínimo, termos consciência daquilo que poderíamos e deveríamos fazer e não fazemos, porque isso obriga-nos a ter respeito pelos outros… Sílvia Júlio
Sociedade
Solidão que dói e não se sabe onde
Há histórias onde a solidão é uma constante na vida. Um sentimento vivido por quem se sente invisível e longe das pessoas que gosta, mesmo que habite na mesma casa, rua, cidade ou país. Um estado de alma que perpassa por todas as geografias e gerações
António não compreendia por que razão não recebia chamadas. Acreditava que o responsável para tanto silêncio na vida era o telemóvel. O aparelho não devia estar em condições. Dirigiu-se à loja para reclamar. Algo estava errado para não ouvir o som do telemóvel a tocar. Depois de entrar no estabelecimento comercial e escutar quem está por detrás do balcão a informá-lo de que o móvel não tinha quaisquer problemas, entendeu que, afinal, ninguém lhe ligava. A história é real. Só o nome é fictício. Aconteceu numa grande cidade portuguesa.
O idoso não contava chegar a esta fase com a vida vazia de pessoas. Queria ouvir a pergunta: “Como está?” Alguém que se interessasse por ele. Alguém com quem partilhar coisas do seu estreito mundo. Alguém para trocar dois dedos de conversa. Uma mão amiga. Com coragem, procurou ajuda psicológica para enfrentar a solidão. Já não aguentava o aperto de um coração que parecia minguar. Quis fazer medrar a energia e a esperança para que, revigorado, procurasse dias melhores. Um dia de cada vez.
Na correria das horas de um quotidiano agitado, quase nem se dá conta de casos semelhantes. Que são mais comuns do que imaginamos. Sobretudo, em grandes centros urbanos. De olhos abertos para o que se passa noutras geografias, a vista nem sempre parece ver bem o que se passa mesmo à frente do nariz: “Vivemos num paradoxo, num mundo em que as pessoas se preocupam – e bem – com outras que estão em sofrimento, em solidão e em angústia no outro lado do mundo, mas ao nosso lado morrem vizinhos e nem damos por isso”, observa Manuel Coutinho, psicólogo clínico e da saúde.
Falta de estímulos
Este profissional, que cuida da sanidade mental de crianças e adultos, defende que devia haver reuniões de vizinhos que não tratassem apenas de questões da administração do condomínio. A vizinhança encontra-se, algumas vezes, para fazer valer as suas ideias, reclamações, embirrações, irritações e até intolerâncias: “Vemos muito a pessoa na sua
funcionalidade e não na sua afetividade – seria importante que se fizessem reuniões de condomínio para as pessoas se conhecerem, partilharem o que têm de bom e zelarem umas pelas outras”, sugere o psicólogo. “No dia a dia, podemos tornar a vida do outro melhor, se olharmos para ele e percebermos que, à nossa frente, temos uma pessoa que é afetiva e precisa de um abraço”, acrescenta.
A Organização Mundial da Saúde declarou, no final do ano passado, que a solidão se trata de um “problema global da saúde pública”. A solidão, em especial dos mais velhos, pode levar ao declínio cognitivo – embora não seja exclusivo dos idosos a degradação dos relacionamentos e das conexões entre neurónios. “A solidão não é estimulante para ninguém – o que é diferente da escolha de estar sozinho. Quando a pessoa navega sempre dentro de si mesma, fica ensimesmada, fechada, condicionada, com falta de estímulos, de novas oportunidades e novas experiências. Este encarceramento dentro dela própria leva à falta de estimulação e, consequentemente, ao declínio”, explica Manuel Coutinho.
A Joana e o Rui, nomes fictícios, casados há uns anos, vivem juntos e entregam o IRS como família. No entanto, afetivamente, estão separados. Coabitam mas não comunicam. Não há pontos de contacto, não têm interesse pelo outro. Sentem-se sozinhos. Há casais assim, “é a ausência de estar presente naquele relacionamento; dia a dia afundam-se em quadros disruptivos, depressivos, de stresse e ansiedade”, afirma o profissional de saúde mental.
Comportamentos autolesivos
Histórias de solidão há muitas. Realidades que ultrapassam a ficção. Como o caso deste adolescente. Vamos chamá-lo Alexandre. Filho de pais separados, foi viver para o interior do país, acompanhando a mãe numa mudança de vida familiar e profissional. Deixou a escola em Lisboa, onde tinha amigos desde os tempos da creche. A distância do melhor amigo feriu-o a valer. Está a ser acompanhado na psiquiatria, entre outras razões, porque começou a ter comportamentos autolesivos. Há cortes que se fazem no corpo para se saber exatamente o que dói e onde dói.
Vários adolescentes ligam para a linha SOS Criança (116 111), do Instituto de Apoio à Criança (IAC), com situações semelhantes às do Alexandre. O coordenador da linha e também secretário-geral do IAC fala “num profundo sofrimento” destes jovens: “Não olham para eles com afeto e sentem-se perdidos dentro deles próprios. Têm uma dor psicológica tão grande que – por se sentirem em sofrimento e em solidão – sentem necessidade de a materializar através do corte. ‘Pelo menos, sei que dói aqui’, pensam. É como se passassem a dor psicológica a uma física. Quando os pais se apercebem disso, a criança ou o jovem já estava em grande sofrimento”, analisa Manuel Coutinho. À linha SOS Criança, pioneira em Portugal, criada em 1988, chegam 20 a 30 apelos diários de quem está a precisar de respostas – algumas de grande complexidade. Hoje tem atendimento personalizado social, psíquico, jurídico. Existe, também, a possibilidade do contacto por WhatsApp (913 069 404), acompanhando os novos tempos. Os relatos dos mais novos são preocupantes: “A questão das depressões, das ansiedades e da ideação suicida está muito presente na vida das nossas crianças e dos nossos jovens – o que compromete muito a solidão e a saúde mental. As crianças vivem muito tempo sozinhas, com cargas emocionais muito fortes e com obrigações escolares muito intensas. As pessoas não se apercebem, mas há muita competitividade. A competitividade mata a saúde mental das crianças”, afirma o responsável da linha SOS Criança.
Ao final do dia, muitos pais perguntam “Como correu o teste? Que notas tiveste?”, ao invés de questionarem “Como correu o teu dia?” ou repetirem amiúde “Amo-te, gosto tanto de ti”. O psicólogo constata: “Valoriza-se mais o ter do que o ser. O ter sobrepõe-se ao ser.”
Carências de atenção
No seio de algumas famílias, onde há um filho que dá mais dores de cabeça, pode haver ainda um outro filho, que não costuma ser o foco permanente da preocupação dos pais, a experimentar a solidão. A atenção dos progenitores está ocupada e preocupada noutro lugar. E ele, que nem dá tanto “trabalho” como o outro irmão,
“Muitas
vezes a solidão acaba por acontecer porque nós, ao longo da vida, vamos fechando portas, em vez de construirmos pontes afetivas com os outros”
“Somos
a água que rega diariamente as sementes dos outros. Sozinhos, murchamos, definhamos, atrofiamos”
Inzmam khan/pexels sente-se invisível. Sozinho e sem afeto: “Um filho que não dá problemas também precisa de muita atenção. Independentemente do número de filhos que um pai e uma mãe possam ter, todos os filhos são únicos”, sublinha o secretário-geral do IAC.
Segundo o especialista em saúde mental, Manuel Coutinho há, pelo menos, dois tipos de solidão: a emocional, que surge quando se tem carência de relacionamentos mais próximos e afetivos (exemplo: relações amorosas), e a social, que se caracteriza pela pessoa não se relacionar com os seus elementos queridos da família, amigos e colegas.
A falta de contactos com pessoas que são significativas para cada um de nós é solidão. Este sentimento, esta experiência, causa sofrimento, dor psíquica, stresse e, em última análise, pode levar a quadros ansiosos, depressivos e de baixa autoestima. Cada pessoa tem uma forma única de sentir a solidão.
Casos há, também, de solidão acompanhada. Alguém pode estar na presença do outro, mas o outro não o completa. Alguém pode estar próximo de muita gente, mas está sozinho dentro dele próprio. A estas situações, Manuel Coutinho designa por solidão acompanhada: “Esta solidão está muito próxima da dor, do sofrimento, da ansiedade, da ideação suicida e de grande tristeza em quadros depressivos.”
“A solidão acompanhada”, elucida, “acontece até com muitas crianças, idosos e casais que não têm a mesma dimensão emocional”. O psicólogo clínico e da saúde explica a importância da empatia (colocar-se no lugar do outro) para se chegar a quem está a viver a dita solidão acom-
panhada: “As pessoas não veem o coração afetivo, são indiferentes ao outro. Estão juntas, mas estão indiferentes. Esta indiferença não leva a um desígnio comum, que é a alegria e o bem-estar. A pessoa não se sentir bem leva a perturbações da saúde emocional e psicológica.”
Quando a solidão insiste e persiste, importa olhar para outras perspetivas: “Muitas vezes a solidão acaba por acontecer porque nós, ao longo da vida, vamos fechando portas, em vez de construirmos pontes afetivas com os outros. E aí a solidão vai-se instalando, e isso é sempre muito perigoso.” Sob outro ponto de vista, há, também, casos em que “a solidão se instala contra vontade do próprio e está próxima da questão do envelhecimento, porque as pessoas, à medida que envelhecem, vão ficando cada vez mais transparentes para o outro e para a sociedade, o que é lamentável. A pessoa que foi útil, serviu ao longo da vida, vai sentindo que os laços que os outros têm por ela se quebram e deixam-na vulnerável e em solidão”. O secretário-geral do IAC evoca o filósofo francês Emmanuel Mounier para reforçar a ideia de que somos felizes na medida em que nos damos aos outros. E salienta a mensagem: “Temos a obrigação de estar na vida do outro, para que o outro se sinta acompanhado. Se o outro se sentir acompanhado por nós, de alguma maneira, também nos está a acompanhar” S.J.
A linha SOS Criança recebe, muitas vezes, chamadas de meninas e meninos que precisam apenas de conversar e de uma companhia. Há telefonemas frequentes de crianças que ficaram sozinhas na escola, porque os pais, separados, se esqueceram que tinham de as ir buscar à escola. A mãe pensava que iria o pai. O pai pensava que iria a mãe. “Os pais esquecem-se que a rutura conjugal não significa a rutura parental. O casal parental é para sempre. As pessoas andam tão atarefadas, preocupadas com a vida, com a organização das suas economias e dos desempenhos profissionais, que se esquecem daquilo que têm de melhor: os filhos. E esses filhos telefonam para o SOS Criança com alguma regularidade, para nos contarem que os pais não conversam com eles. Os pais não querem que lhes falte nada mas não lhes dão atenção.”
O relato de uma criança surpreendeu quem a atendeu do outro lado da linha, quando disse: “Tenho pena que lá em casa não seja a televisão. Se eu fosse a televisão, quando os meus pais chegassem a casa, ligavam-me logo. Se eu fosse a televisão, os meus pais não deixavam ninguém falar enquanto estivesse a falar. Se eu fosse a televisão, os meus pais estavam sempre a olhar para mim. Mas eu não sou a televisão; por isso, os meus pais não me ligam, não olham para mim nem se interessam por aquilo que digo.”
Combate à solidão
Quando se ouvem estas palavras, respira-se fundo para se ganhar fôlego para o que se possa dizer de seguida. E que faça sentido perante o ‘sem-sentido’. Casos ligados a crianças e jovens podem sensibilizar mais. Mas outros há que envolvem adultos e que, por razões de saúde e outras, se sentem arredados do mundo.
O Carlos, também nome fictício, ficou de baixa em casa, na sequência de um acidente de trabalho. Vive sozinho. É raro o colega que lhe liga a perguntar se precisa de ajuda ou se está a melhorar, após a intervenção cirúrgica. “A tragédia da sociedade atual é o isolamento, são os risos públicos e os choros privados. Toda a gente tem de sair a rir quando o coração está a chorar, porque a sociedade não lida bem com a dor e o sofrimento do outro. As pessoas lidam bem com o sucesso e a alegria”, nota Manuel Coutinho.
O combate à solidão, que pode trespassar todas as faixas etárias, faz-se com presença. “Nós precisamos de estar presentes na vida do outro. A nossa presença combate o isolamento e, consequentemente, a solidão. Não podendo estar fisicamente, podemos estar através de um telefonema, uma videochamada, uma carta. Podemos estar presentes de muitas formas. O interesse que se tem pelo outro é muito importante, porque nós somos a água que rega diariamente as sementes dos outros. Sozinhos, murchamos, definhamos, atrofiamos”, diz Manuel Coutinho, que alerta: “O declínio cognitivo perpassa sobre todas as idades. Somos seres relacionais. Precisamos a todo o momento de afeto, carinho e amor. Desde o momento em que nascemos, somos o resultado dos braços que nos estendem, dos braços que nos abraçam. Um abraço pode ser uma excelente arma terapêutica.”
Sílvia Júlio
Poesia em Liberdade, em Aveiro
Aveiro foi a cidade escolhida para acolher a iniciativa com que a Fundação Inatel celebra o Dia Mundial da Poesia. “Poesia em Liberdade”, espectáculo com textos de vários poetas nacionais e internacionais, dirigido por Rui Sérgio e que reuniu artistas como, entre outros, Statt Miller, Daniel Martinho, José Fidalgo, Joana Brandão, Lara Pereira ou Luísa Pinto, foi apresentado no dia 21 de março no Estaleiro Teatral. No dia anterior, na Biblioteca Municipal, a tertúlia “Expressões de Liberdade” moderada por Anabela Mota Ribeiro, juntara a cantora e compositora Amélia Muge e o cineasta Diogo Varela Silva, numa conversa enriquecida pelas diferentes histórias de vida dos intervenientes. Anabela e Diogo são ambos de 1971, Amélia nasceu 19 anos antes, em 1952. No 25 de Abril de 74 estava em Moçambique, na Faculdade tinha surgido um movimento ligado às questões do desenvolvimento, próximo da ideia de independência. Anabela Mota Ribeiro evocou um momento singular que viveu no Chile, quando se assinalaram 40 anos sobre o Golpe de Pinochet, em 11 de setembro de 1973, quando a mãe de Michelle Bachelet, médica epidemiologista que por duas vezes foi presidente do Chile lhe confidencia que a filha sabia
Manifestos da Poesia em livro
Na 10ª edição da “Poesia em…”, iniciativa com que a Fundação Inatel desde 2014, celebrando o Dia Mundial da Poesia homenageia grandes nomes da poesia portuguesa, realizou-se também o lançamento do livro reunindo os Manifestos da Poesia escritos por Gonçalo M. Tavares, Maria Andersen, José Luís Peixoto, Joel Neto, João Pinto Coelho, Maria de Fátima Candeias, Fernando Palouro, Afonso Cruz, Isabel Rio Novo e Anabela Mota Ribeiro.
Medalha de Mérito Municipal para
Inatel Castelo de Vide Hotel
Com esta distinção a Câmara Municipal destacou a relevância do hotel para o crescimento da atividade turística do concelho e o seu papel na economia local, incluindo o contributo para a empregabilidade e para a promoção do turismo.
cantar a Grândola Vila Morena. Por seu lado Diogo Varela Silva, neto da fadista Celeste Rodrigues, irmã de Amália, ao falar do seu documentário “Do Bairro” que se debruça sobre a perda da identidade cultural dos bairros da Mouraria e Alfama, fala do calão “Badoncali”, linguarejar próprio, anterior ao Estado Novo, praticamente desaparecido na Mouraria e ainda praticado nalguns lugares de Alfama, que se foi constituído também como um lugar de insubmissão.
Deste diálogo vivo, ainda duas referências, uma, a frase lapidar com que a mãe de Anabela Mota Ribeiro resumia o 25 de Abril – e neste contexto o fim da guerra colonial – dizendo “o 25 de Abril trouxe o pai para casa”. A outra quando Amélia Muge, dando conta da dicotomia em que vivera entre a necessidade de dar voz aos que lutavam pela independência e por outro lado a sua própria identidade, confidenciou “a poesia salvou-me de não ter de julgar nenhum dos lados”.
Ciclo Mundos põe o Trindade a dançar a marrabenta
Noite de festa com o público acompanhando os ritmos quentes da marrabenta numa sessão do Ciclo Mundos no Teatro da Trindade Inatel que nos trouxe o carismático músico moçambicano António Marcos que enriqueceu a sua intervenção musical com a partilha de aspetos da sua vida, criando uma forte ligação emocional com
o público. Foi também no Trindade, uns dias mais tarde, que foi apresentado o programa do Festival Músicas do Mundo que, de 20 a 27 de julho, vai trazer a Porto Corvo e a Sines mais de 40 concertos, enquadrados por inúmeras iniciativas de animação e festa com que a Fundação Inatel mais uma vez se associa ao FMM – Festival Músicas do Mundo.
Património Cultural Imaterial da Humanidade
Com quase seis centenas de membros foi criada a 13 de abril, em reunião ocorrida no Inatel Foz do Arelho, a Secção Portuguesa do IOV (International Organization of Folk Art), em cuja Comissão a Fundação Inatel está integrada. A IOV é uma entidade cujo papel na preservação do Património Cultural Imaterial da Humanidade é reconhecido pela Unesco.
Coluna DO provedor
Manuel Camacho provedor.inatel@inatel.pt
Passava um ano sobre a adesão de Portugal à Comunidade Europeia quando, em 1987, Fausto Bordalo Dias, no seu álbum “… para além das cordilheiras”, gravou o tema “Europa, querida Europa”.
A adesão de Portugal à CEE representava um futuro com uma expectativa de progresso e modernidade, cujas perspetivas de desenvolvimento lançavam ao país um enorme desafio.
O entusiasmo generalizado com que se abraçou o projeto atenuou o peso da responsabilidade a que obrigavam os acordos e regras apertadas da adesão.
O tempo foi passando e aos poucos, quase 40 anos volvidos, é com naturalidade que nos sentimos parte dessa Europa, partilhando em comunidade o mesmo espaço e ideal.
Em junho de 2024, e pela oitava vez em Portugal, elegemos os 21 deputados que durante os próximos cinco anos vão representar-nos no Parlamento Europeu.
A importância destas eleições vai muito além de uma simples representação.
Os desafios e preocupações que se instalaram de uma forma transversal na Europa Comunitária, e não só, devem ter um efeito motivador que nos leve a exercer o nosso direito de voto pela democracia, pela coesão e pela paz.
Por isso é importante que a abstenção continue a descer, também nas eleições para o Parlamento Europeu. Será de certeza a forma mais eficaz de evitar a pergunta: para onde vais “… querida Europa”?
VIAGEM
Tailândia surpreendente
O espanto numa viagem ao exotismo do Oriente. Uma cultura enriquecedora. As pessoas. Os monumentos. As paisagens. Em cada olhar, tudo se expande. Memórias que se guardam para sempre
Ovoo é para Banguecoque, com escala no Dubai. As expetativas estão, literalmente, ao alto. Aquando da chegada à capital da Tailândia, o entusiasmo cresce e a vontade de descobrir uma cultura diferente fervilha em cada passo.
O dia 1, em Banguecoque, está preenchido com muitas visitas. Templo Wat Trimitr e o seu Buda Dourado, de cinco toneladas e meia de ouro maciço. Wat Po, o templo mais extenso de Banguecoque, com o seu colossal Buda Reclinado e os Chedis dos Reis. O Grande Palácio era a sede não apenas do rei e da sua corte, mas de toda a administração governamental. A arquitetura é tailandesa, embora também existam alguns designs europeus. Brilhantemente colorido e dourado, e decorado com detalhes intrincados, o efeito geral fica gravado na retina.
O palácio foi residência oficial dos reis da Tailândia entre o século XVIII e meados do século XX. O edifício mais famoso no terreno do palácio é Wat Phra Kaew (Templo do Buda Esmeralda), considerado o templo budista (wat) mais sagrado da Tailândia. Ao contrário de outros templos tailandeses, não contém alojamentos para monges; em vez disso, tem apenas edifícios sagrados, estátuas e pagodes ricamente decorados. O edifício principal do templo é o ubosoth central, uma espécie de capela que abriga o Buda Esmeralda. De cor verde, o Buda é na verdade esculpido em uma única peça de jade e, embora tenha apenas 17 centímetros de altura, é o objeto mais reverenciado na Tailândia. No recinto encontram-se vários palácios,
utilizados para diversas ocasiões: o Palácio Funeral, o Palácio da Receção, a Sala do Trono, a Sala da Coroação e a Royal Guest House. A maioria dos salões e palácios só pode ser vista de fora, mas os exteriores vão ficar entre as boas memórias desta viagem.
Cenas pitorescas
No dia seguinte, a visita a Ayutthaya, antiga capital da Tailândia, que se situa a 76 quilómetros a norte de Banguecoque. Capital tailandesa há 417 anos, Ayutthaya é uma das principais atrações da Tailândia. Muitas ruínas antigas e obras de arte podem ser vistas na cidade, fundada em 1350 pelo Rei U-Thong. Trinta e três reis de cinco dinastias governaram o reino até ser destruído pelos birmaneses em 1767. Esta excursão, de dia inteiro, é efetuada parcialmente de carro até Ayutthaya. O regresso a Banguecoque será diferente, navegando ao longo do rio Chao Phraya. A vista panorâmica da margem do rio é marcante. Embarque no Grand Pearl Cruise Liner, deslizando pelas cenas pitorescas da vida fluvial tailandesa, pelas linhas ininterruptas de edifícios, mercados, armazéns, lojas e templos magníficos, bem como pelo fluxo contínuo de barcos num curioso quotidiano. No cruzeiro é apresentado um almoço com a variada gastronomia tailandesa e culinárias internacionais. Noutro dia desta viagem, num voo doméstico, destino a Chiang Mai. Ali, no Parque Natural dos Elefantes, vão ser criadas novas e surpreendentes memórias, com a observação, o conhecimento dos habitats e a história destes mamíferos. Posteriormente, ruma-se a Chiang Mai. Os templos
budistas de Chiang Mai apresentam uma mistura de estilos que refletem a herança variada do norte da Tailândia. Esculturas em madeira intrincadas e escadas protetoras em forma de serpente adicionam um toque extravagante que reflete uma incrível reverência pela religião budista. Depois, a visita ao templo mais sagrado
Exotismo do Oriente
Data: 19 a 28 de outubro Partida: Lisboa
Mais informações: Tel. 210027000 | turismo@inatel.pt | www.inatel.pt
do norte, Wat Phra That Doi Suthep, alcançado por uma escadaria Naga (serpente com cabeça de dragão) de 306 degraus. Há, também, um teleférico. As vistas panorâmicas da cidade a partir do terreno do templo são inolvidáveis. No regresso ao hotel, paragem no templo mais antigo dentro das muralhas da cidade; Wat Chedi Luang (1411 DC), onde o Buda Esmeralda já foi consagrado; Wat Pra Singh (1345 DC), que abriga uma imagem muito sagrada de Buda de 1500 anos; e Wat Suan Dok (1371 DC), onde as cinzas da família real de Chiang Mai estão enterradas.
Paraíso natural
Quase a chegar ao fim desta viagem, ao sétimo dia, um dos momentos mais aguardados para tantos. Do aeroporto de Chiang Mai, voo doméstico com destino a Pukhet. Tempo livre para descobrir um dos lugares mais emblemáticos da Tailândia.
No dia seguinte, partida para as Ilhas Phi Phi. Já na praia em Bamboo Island, chegou o momento de respirar fundo, nadar, fazer snorkelling ou, simplesmente, relaxar. Haverá tempo, ainda, para passeios panorâmicos por Monkey Beach e Viking Cave. Para contemplar paisagens de Phi Phi Lay. Para mergulhar em Pi Leh Cove, em águas cristalinas e de cor turquesa. Ao nono dia, dia livre em Phukhet para usufruir deste paraíso natural.
Volvida a dezena de dias desta viagem, é tempo de partilhar com a família e os amigos as vivências e o espírito tailandês resumido no lema budista “Sanuk, Sabai e Saduak”: “Sê feliz, fica tranquilo, contenta-te com aquilo que a vida te oferece.”
A volta ao mundo entre Évora e Sines outros mundos
Do blues do deserto de Samba Touré ao son cubano de Eliades Ochoa.
O Tempo Livre faz uma seleção do que ver entre Maio e Julho nos principais palcos de músicas do mundo
Abriu a época dos festivais de “world music”. Do Imaterial de Évora ao FMM de Sines, passando pelo Med de Loulé e o Mimo de Amarante. Ao todo, são mais de uma centena de artistas provenientes de mais de 50 nacionalidades que vão passar pelo nosso país, nos próximos meses.
O FMM de Sines
A 24.ª edição do FMM de Sines realiza-se entre os dias 20 e 27 de Julho. Eis a nossa seleção de 11 nomes que não pode perder.
1. Samba Touré. Primeiro dia de festival com um dos mais dignos herdeiros dos blues do deserto maliano de etnia Songhai que honra o legado de Ali Farka Touré. (20 de Julho, Porto Covo)
2. Siti And The Band. Da tão pequena quanto mística ilha de Zamzibar ao largo da Tanzânia. Tradições musicais árabes, turcas, indianas e africanas miscigenadas com linguagens contemporâneas (jazz, funk, reggae) num espectáculo de empoderamento feminino. (21 de Julho, Porto Covo)
3. Melingo. Deixou boas memórias no Ciclo Mundos. Performer radical que testa os limites do “proto-tango” ou do “tango sujo”, unido as suas raízes com a subversão do rock e do ruído contemporâneo. (22 de Julho, Porto Covo)
4. Margareth Menezes. Um peso pesado desta edição. Actual ministra da Cultura brasileira e ativista social, defensora dos direitos das mulheres, dos afrodescendentes e da preservação das tradições culturais de Salvador Bahia e do Brasil. (24 de Julho, Castelo de Sines)
5. Caamaño & Ameixeiras. Um duo de empatia orgânica (acordeão cromático e violino) que renova raízes da música galega em diálogo com tradições bascas, balcânicas e “celtas”. (25 de Julho, Pátio das Artes)
6. Gyedu-Blay Ambolley & His Sekondi Band. Lenda da música revolucionária do Gana. Uma boa forma de celebrar os
50 anos do highlife, do afrobeat e da fusão do jazz e funk com ritmos africanos. (25 de Julho, Castelo de Sines)
7. Cara de Espelho. Tem tudo para ser o momento “A Garota Não” deste ano. Letras de combate que reflectem as angústias político-sociais dos tempos actuais. Ao fim de tarde (18h) no Castelo com entrada livre que estará certamente sobrelotado. (26 de Julho, Castelo de Sines)
8. Groundnation Reggae, dub californiano com contributos jamaicanos para reviver boas memórias de outros FMM deixadas por Skatalites ou Lee “Scrach” Perry. (26 de Julho, Castelo de Sines)
9. Liades Ochoa. Um dos últimos sobreviventes de Buena Vista Social Club e referência maior do son Cubano para início de noite do último dia de FMM. (27 de Julho, Castelo de Sines)
10. Adédèjì. Afrobeat nigeriano de raízes de etnia Iorubá e uma sinopse do autor desenvergonhada: “Se gosta de James Brown, Stevie Wonder, Prince, George Benson e, claro, Fela, provavelmente adorará Adédèjì!” (27 de Julho, Castelo de Sines)
11. Son Rompe Pera. Todos os elementos explosivos para um final de celebrações no Castelo apoteótico. Fogo de artifício. Cumbia punk, marimbas voadoras do “movimento cultural” dos subúrbios da Cidade do México. (27 de Julho, Castelo de Sines)
Imaterial de Évora
Bem antes do FMM, realiza-se o Imaterial de Évora, entre os dias 17 e 25 de Maio. É, provavelmente, o festival de músicas de raiz, com a programação mais ousada, exploratória e actual. Não apenas ao nível das propostas musicais, mas tam-
Da Occitânia francesa há sempre bons ventos de modernidade. Depois de San Salvador, de Barrut, de Lo Cór de la Plana (passaram pelo FMM), há cantos polifónicos para dançar com as Cocanha Estrela maior desta edição do imaterial, a cantora, compositora e ativista tunisina EMEL (Mathlouthi). Uma das vozes da Primavera Árabe.
Mais um diálogo intercultural promissor feito de improvisos entre a kamancha da turca Melisa Yıldırım e as tablas da indiana Swarupa Ananth Da Andaluzia, o “improvável e excêntrico” Tomasito que miscigena flamenco com hip-pop, rock e ska. Mais um Imaterial de grande nível, de inúmeras boas descobertas.
Med de Loulé
bém no que diz respeito às actividades paralelas, ao cinema documental que inclui, por exemplo, a estreia europeia de “The Nightingale’s Song” do realizador Emmanuel Vaughn-Lee sobre o trabalho do excelso compositor britânico Sam Lee (que acabou de editar o álbum “songdreaming”) que neste documentário “entrelaça vozes humanas com o virtuosismo criativo do rouxinol”.
O cardápio musical em verdadeiro espírito de descoberta, inclui Os do Fondo da Barra, que tão bem cuidam e dinamizam o folclore galego. Formação liderada pelo irmão de Mercedes Péon, o bailador, investigador e divulgador Quique Péon (que também fundou outro projecto galego de boa memória - Radio Cos).
Da Coreia do Sul, Dason Beak traz-nos a riqueza de alguns dos aerofones ancestrais de bamboo destas paragens como o daegeum, o soguem e o saenghwang. Já o estoniano Duo Ruut apresenta-nos música encantatória para kannel “siamês” (citara da família do kantele finlandês que Mari Kalkun já apresentou, quer no Imaterial, quer no FMM de Sines).
Da região remota paquistanesa do Balochistão, Ustad Noor Bakhsh traz-nos o benju, “adaptação regional de um instrumento de brincar japonês, levado para o Paquistão por marinheiros, com uma sonoridade que não será estranha a apreciadores de sitar e de guitarra eléctrica”, nem de Ravi Shankar e de Jimi Hendrix.
A Escandinávia oferece-nos o diálogo a quatro mãos entre a violinista sueca Lena Jonsson e a acordeonista finlandesa Johanna Juhola
Do Rajastão indiano, a tradição milenar da raga em miscigenação com a cultura urbana pela voz de Parveen e as tablas e beatbox de Ilyas Khan
O Centro histórico de Loulé recebe entre os dias 27 e 30 de Junho a edição comemorativa dos 20 anos do Festival Med. A fadista Lina, que esteve no início do ano no Ciclo Mundos, apresentará igualmente o álbum “Fado Camões” ao público louletano. Assim como Cara de Espelho, antes de ir a Sines, trará também as canções de combate ao Med. Por falar em luta, soprarão ventos fortes do Levante e fusão shamstep, dubstep e hip-hop com os palestino-jordanos 47Soul; uma visão mais rock dos ritmos maloya da Ilha Reunião pela jovem formação Mouvman Alé (expressão crioula que significa “movimento para avançar”); a corá levitante do griot maliano Ballaké Sissoko (nome tão importante quanto o de Toumani Diabaté); o excelso pianista, compositor e produtor cubano Roberto Fonseca que leva o son e a música afrocubana para o legado do jazz contemporâneo e funk; a cantora marroquina Oum que também funde jazz e soul com tradições locais numa edição dedicada a este país da região do Magrebe; o duo Puuluup (que viram o seu concerto do Ciclo Mundos ser cancelado devido à pandemia), além de representarem a Estónia no Festival Eurovisão da Canção, vêm a Loulé servir surrealismo, folclore moderno e instrumentos estranhos como a talharpa, “irmã” do jouhikko finlândes; e da Finlânia, Antti Paalanen, outro acordeonista (quase) tão subversivo como Kimmo Pohjonen; do Brasil, o coletivo de afrobeat instrumental Bixiga 70 que não se fica pelo legado de Fela Kuti e de Tony Allen e faz inúmeras incursões por cumbia, dub, ehio-jazz, samba-jazz, etc; e da República Democrática do Congo, Kin’Gongolo Kiniata. Mais um projecto (alô Konono Nº1, Staff Benda Bilili) que usa produtos reciclados (garrafas de plástico, objectos de metal, utensílios domésticos) para criar ritmos frenéticos de rumba afro-punk de Kinshasa.
MIMO de Amarante
À beira do Tâmega, a extensão portuguesa do brasileiro MIMO, recebe de 19 a 21 de Julho vários nomes que já passaram pelo FMM e Ciclo Mundos: a cantora e actriz maliana Fatoumata Diawará, a haitiana-americana Leyla McCalla, o nigeriano Dele Sosimi com a banda chilena de Newen Afrobeat, o rapper Marcelo D2 e um dos filhos de Fela, Femi Kuti & The Positive Force Luís Rei
[O autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
Arquivo histórico O cais do olhar
TEMPOS
EM MUDANÇA Festivais
Verão, moda e bons costumes: o arejamento da FNAT perante as ideias mais retrogradas da sociedade portuguesa
Colónia de Férias «Marechal Carmona», Foz do Arelho: no dia da inauguração das novas instalações, 2/9/1961 [ Óscar Coelho da Silva – Fundação Inatel | AF\OCS 6650 ]
Com a primavera chegam os Festivais de Cinema de referência, alguns em itinerância, com estreias mundiais em competição ou retrospetivas e reposições que merecem novos olhares, em formatos e de géneros diversos, incentivando a produção nacional, combinando artes visuais, música, literatura, humor, festas, oficinas, debates, e política, nos 50 anos de Abril. Quem gosta de partilhar filmes com família, amigos e desconhecidos, entre copos e petiscos, artistas e músicos ou até os companheiros de quatro patas, já pode assistir a Sessões ao Ar Livre
17.ª Festa do Cinema Italiano | mai–jun | Abrantes, Almada, Beja, Coimbra, Évora, Figueira da Foz, Funchal, Lagos, Leiria, Loulé, Oeiras, Porto, Sardoal, Vila Velha de Rodão
• O festival histórico e emblemático para os apaixonados pela cultura e cinema italiano percorre o país.
Festival Política | 2–4mai | Entrada livre | Braga
• Apresenta-se como o maior evento em Portugal dedicado aos direitos humanos e cidadania, elegendo a Intervenção como tema central, em 2024.
seleção do melhor de outros festivais.
17.º Festival Internacional de Cinema de Santarém – FICS | 15–19mai | Santarém, Alpiarça, Almeirim
• Fiel à sua matriz inicial, aposta nas temáticas agrícola, rural e ambiental, e mantém-se um espaço de debate entre agricultores, investigadores, ambientalistas e artistas, sob o mote “Um festival da terra, pela Terra”.
Maia International Film Festival | 15–19mai | Maia
• O icónico Cinema Venepor é anfitrião desta primeira edição, que quer tornar a cidade da Maia o epicentro do cinema internacional para cineastas e entusiastas que aqui farão confluir criatividade, talento e diferença.
4.º Festival Imaterial – Ciclo de Cinema | 17–25mai | Entrada livre | Évora
• Filmes que documentam crónicas de grandes artistas da tradição oral, transportando-nos para o mundo vibrante de culturas musicais quase desconhecidas e em risco de extinção.
Colónia de Férias «Marechal Carmona»: jovens em fato de banho c. 1965 [ Óscar Coelho da Silva. – Fundação Inatel | AF\OCS ]
Com a aproximação de mais uma época de veraneio e a natural preocupação com a aparência, sobretudo por parte da juventude, é sempre de antever algum conflito geracional. Foi o que sucedeu no verão de 1959 – mais de uma década após o aparecimento do biquíni em Paris (1946) –, quando o cónego José Morais e Costa, que prestava assistência religiosa na Colónia de Férias «Marechal Carmona», atual Unidade Hoteleira da Foz do Arelho, resolveu queixar-se ao Ministro das Corporações, Veiga de Macedo, de certas senhoras e meninas que, na sua ótica, «querem andar, e andam, muito à sua vontade». Tendo o assunto chamado a atenção e merecido a devida preocupação do governante – não tanto pelo objeto do reparo em si, quanto pelo queixoso –, entendeu Veiga de Macedo que «O problema da assistência religiosa nas colónias de férias da F.N.A.T. não pode deixar de ser seriamente
encarado», recomendando «medidas convenientes». Numa interpretação arejada e algo intrépida do sentido do despacho ministerial, ainda que ambígua, retorquiu Bento Parreira do Amaral, Presidente da Direção da FNAT, que o problema não estava tanto na moda, mas mais nos agentes da censura.
Dada a dificuldade «[…] de orientar no sentido desejado […]» a «massa» «heterogénea», concluía o Presidente, que a melhor forma de «[…] moderar quanto possível certos “à vontades” dos colonos, é serem escolhidos para assistentes religiosos nas colónias sacerdotes cuja formação, por mais atual e compreensiva dos hábitos da vida moderna, lhes permita exercer livremente a sua função, independentemente da maior ou menor liberalidade dos trajos dos colonos desde que os mesmos não ofendam a moral e a dignidade do ambiente da colónia.». (Ata n.º 834, 07/10/1959, fls. 67r-67v). Eram os tempos em mudança. José Baptista de Sousa
15.º Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa – FEStin | 2–12mai | Lisboa
• Aqui a festa do cinema é em português, com obras da CPLP e temas como inclusão social, habitação e racismo, fazendo deste evento um catalisador do diálogo e diversidade cultural através da 7.ª Arte.
24.º Encontros de Cinema de Viana | 2–14mai | Viana do Castelo
• É um convite à análise sobre arte cinematográfica e verdadeiro lugar de partilha entre cineclubistas de Portugal e Galiza, estudantes e professores, com participação ativa de profissionais do meio.
11.º Leiria Film Fest – Festival Internacional de Curtas-Metragens | 8–12mai | Entrada livre | Leiria
• Focado no cinema independente em dose curta, promove a competição de ficção, animação e documentário e exibições não-competitivas, com uma
21.º IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema | 23mai–2jun, Lisboa | até set, digressão nacional • É um acontecimento na cidade de Lisboa que, invariavelmente, enche salas para celebrar a força e a diversidade do cinema, revelando autores e tendências recentes e obras fora do circuito dominante. A cuidada seleção do IndieJúnior, para todas as infâncias, reafirma o cinema como recurso inesgotável para a aprendizagem, diversão, reflexão e crescimento.
20.º FEST – Festival Novos Realizadores Novo Cinema | 24jun–1jul | Espinho
• Além de conferir visibilidade a criadores emergentes, abrindo caminho para novas perspetivas sobre o cinema e formando novos públicos, constitui oportunidade única para aprender junto dos maiores talentos mundiais da indústria, em áreas técnicas, artísticas e teóricas.
15.º CineConchas | 27jun–13jul | Entrada livre | Lisboa
• Filmes em ecrã gigante para toda a gente, ao ar livre, nas noites de quinta, sexta e sábado, bastando estender a manta no relvado do belo Parque da Quinta das Conchas e apreciar a sessão.
teatro da Trindade noite de reis a fantasia, o sonho, o brincar a sério
Depois do êxito do ano passado com salas esgotadas, regressa ao Trindade a versão de Ricardo Neves-Neves desta popular comédia de Shakespeare. Desta vez fomos conversar com os atores Joaquim Nicolau, Rui Melo e Cristóvão Campos
Comecemos por recordar o que escrevemos sobre esta peça em 2023 aquando da sua estreia, fazendo notar que em “Noite de Reis”, de William Shakespeare (1564-1616), o tão recorrente jogo do amor, do encontro e do desencontro, é enquadrado por uma série de trocas de identidade e de género. Foi este também o mote para a conversa com três atores, Joaquim Nicolau, que vai substituir o malogrado ator Luís Aleluia (D. Telmo), Rui Melo, que substitui Adriano Luz (Maria) e Cristóvão Campos (Violeta/ Cesário), com quem falámos ao telefone, o ator estava na ilha do Pico a gravar. Com os outros dois juntámo-nos no bar da Comuna-Teatro Pesquisa, onde estão a ocorrer os ensaios de substituição.
Joaquim Nicolau já tinha estado no elenco, substituíra num espetáculo em Loulé, Luís Aleluia, colega e amigo com quem estava na altura a trabalhar em televisão aquando da sua inesperada morte. Rui Melo, ator e músico, que já tinha visto o espetáculo e que é grande admirador do trabalho de Neves-Neves encarou o desafio de substituir Adriano Luz com grande entusiasmo e preocupação, era um trabalho que já estava feito e com grande sucesso. Quanto a representar o papel de uma mulher não lhe coloca nenhuma questão. Trago para a conversa aquilo que me tinha dito Cristóvão Campos:
“Não tinha interesse em fazer um travesti. Nunca fui por aí. E foi bom perceber que não era isso a proposta do Ricardo, de nenhum de nós. Por outro lado, ao descobrir que o Ricardo estava a fazer com esta Ilíria algo de tão hiperbólico, tão fantasioso, tão um universo da Alice no País das Maravilhas, permitiu-me criar na Violeta um contraponto, um ponto de vista talvez mais próximo do olhar do espectador.”
Rui Melo responde:
“No meu caso eu não tive essa circunstância, o código já está instalado, eu já sei, porque já vi, o que é que o Ricardo pretende e é a isso que eu quero corresponder. E como gosto muito tenho o trabalho até certo ponto facilitado. E quanto à questão do género o incómodo que eventualmente possa causar é importante.”
Joaquim Nicolau, que vai fazer D. Tel-
“Há uma outra coisa que nos tornou mais cúmplices: o estarmos a fazer sempre com casas cheias. Torna tudo mais divertido” Cristóvão Campos
mo, um personagem cujo raciocínio está frequentemente toldado pelo álcool, intervém:
“Eu também mantenho o que já estava feito porque tal como o Rui, o código já está instalado, e eu adorei ver o Luís Aleluia, aliás disse-lho a ele.”
Falamos da brincadeira, de um lado onírico, hiperbólico, que já tinha sido também acentuado por Cristóvão Campos.
Rui Melo diz:
“Shakespeare é popular. É uma coisa brincada, é teatro popular. E o Ricardo Neves-Neves tem essa capacidade de ser pueril nas suas encenações. Isto é quase um jogo de crianças sempre. O espetáculo do Ricardo tem sempre estas coisas.”
Joaquim Nicolau complementou:
“Eu que nunca tinha trabalhado com o Ricardo e era admirador do seu trabalho, tinha achado delicioso o Pantagruel. E se tu fores à dramaturgia do Shakespeare encontras lá este lado fantástico, de fadas, de fantasia. Repara, o que se cria na nossa cabeça, nas nossas mentes de espectadores, isso é que é extraordinário.”
NOITE DE REIS
De William Shakespeare
Dramaturgia e encenação Ricardo Neves-Neves
Coprodução Teatro da Trindade
Inatel, Convento São Francisco, Teatro do Eléctrico, Cineteatro Louletano e Culturproject
Com António Ignês, Cristóvão Campos, Dennis Correia, Filipe Vargas, João Tempera, Joaquim Nicolau, José Leite, Manuel Marques, Marco Delgado, Rafael Gomes, Ruben Madureira, Rui Melo e Tomás Alves Direção musical Rita Nunes
Ensemble
Helena Silva / Carolina Duarte (violino), Teresa Soares / Sara Oliveira / Teresa Martins (violoncelo), Daniela Pinheiro / Solange Silva (flauta), Juliana Campos (fagote e voz), Rita Nunes / Nádia Anjos (saxofones), Eliana Lima (trompa e acordeão), Inês Laginha / Mariana Godinho (teclados), Teresa Braga (percussão), Beatriz Ventura, Filipa Portela, Isabel Cruz Fernandes, Rita Carolina Silva, Sara Brites (voz)
Figurinos Rafaela Mapril Cenografia Ana Paula Rocha Desenho de luz Cristina Piedade Coordenação Produção / Comunicação e Assessoria de Imprensa TdE Mafalda Simões
Sala Carmen Dolores 2 MAIO a 21 JULHO Quarta a Sábado 21h | Domingo 16h30
CONVERSA COM O PÚBLICO 2 JUN / Dom. após o espetáculo
Por seu lado, Cristóvão tinha dito sobre o clima do trabalho:
“O que desenvolveu uma maior cumplicidade foi o Ricardo fazer dos ensaios momentos muito divertidos. Estamos ali divertidos a criar um boneco maior do que a vida. É muito prazeroso fazer isto assim, neste processo. Isso tornou-nos mais cúmplices. E há uma outra coisa que nos tornou mais cúmplices: o estarmos a fazer sempre com casas cheias. Torna tudo mais divertido. O sucesso é tanto melhor quanto é mais partilhado. É um espetáculo muito feliz.”
Joaquim Nicolau acaba por dar a ideia de fecho desta conversa necessariamente breve e em que ficamos com a sensação de que precisaríamos de muito mais espaço para dar conta da riqueza do testemunho destes atores:
“É engraçado, nós somos artistas e até por uma questão de sobrevivência, tendemos a cultivar os nossos egos. Mas é engraçado, no teatro, nesta roda, os egos não sobrevivem, não sobressaem muito aqui.”
Joaquim Paulo Nogueira
Crónica
Comunicar, censurar, manipular
Generalizou-se entre nós a ideia de que a Censura acabou no 25 de Abril. Não acabou: foi privatizada, isto é, deixou de ser exercida por organismos do Estado para ser, sob outros nomes, por gabinetes da comunicação social.
Antes do 25 de Abril não havia, aliás, uma Censura, mas duas – a Censura (assumida) da direita, nacionalista, moralista, e a Censura (escamoteada) da esquerda, internacionalista, neo-realista. Com a Revolução a primeira foi trespassada, a segunda reforçada. Resultado, a hecatombe (de leitores, de suportes, de isenção, de autonomia) do actual jornalismo, eclipsado por uma comunicação social que não se sabe muito bem o que é. Serão os comboios, os telefones, os pombos correios? – perguntava, sarcástico, o grande Baptista-Bastos.
Há quem, maldosamente, a veja (à comunicação social) como uma espécie de guarda-chuva, ou guarda-sol, branqueadora de manipulações, corrupções, explorações e outros ‘iões’ afins. Como em democracia parece mal matar os mensageiros, o que se fazia em épocas muito recuadas (não tanto como isso) passou-se a neutralizá-los tornando-os obedientes e dependentes, sem protecção, sem intervenção, sem opinião. As ditaduras controlam pelo silêncio e pela repressão, as democracias pelo chinfrim e pela sedução; as primeiras gostam de utilizar militares, as segundas comunicadores.
A Censura do Estado Novo, selectiva mas desajeitada, visava acima de tudo apagar os que figuravam nas suas listas negras, sobretudo se ligados ao Partido Comunista Português, a força verdadeiramente temida pelo regime. Quer escrevessem sobre flores ou passarinhos eram, não por intervirem mas por existirem, cortados.
A pressão da esquerda, de uma certa esquerda, exercia-se nos jornais a partir dos suplementos, caso dos culturais e económicos, que privilegiava. Especiais vítimas de ambas foram os surrealistas (anatemizados, exilados), os católicos progressistas (embora amparados pelo Cardeal Cerejeira), os fracturantes (em semiclandestinidade), os da extrema-esquerda (por incontroláveis) e, na fase final, os desertores da guerra colonial.
Salazar, discreto apreciador de jornais e jornalistas, tinha (alguma) má consciência ante eles por causa da censura. Dizia mesmo ter sido, em Coimbra, “vítima
dela”. Tentando compensá-los (amaciá-los) consentiu-lhes privilégios relevantes na época, como uma assistência médica gratuita de grande qualidade, através da Casa da Imprensa, como 50 por cento de descontos em todos os transportes públicos, como cedências de terrenos para vivendas próprias (as cidades de jornalistas em Nova Oeiras e Carnaxide), etc., tudo anulado depois do 25 de Abril. Logo a seguir à Revolução, os novos poderes tiveram a ideia de entregar um jornal a cada partido, o que, de imediato, abarrotou as redacções de comissários políticos, de controleiros, de manipuladores, de censores afectando gravemente a credibilidade da informação – jamais reposta. Os títulos que tentaram resistir ou foram fechados (caso de O Século e das suas publicações, Século Ilustrado, Vida Mundial, Modas e Bordados), ou foram sabotados, caso do Diário Popular e do Diário de Notícias, com tiragens na ordem dos 100 mil exemplares diários.
A estratégia montada consistiu em juntá-los a empresas altamente deficitárias para os tornar inviáveis economicamente e subservientes politicamente. O Diário Popular faliu, o Diário de Notícias aguen-
Generalizou-se entre nós a ideia de que a Censura acabou no 25 de Abril. Não acabou
tou-se devido ao pequeno anúncio (depois retirado) até entrar no estertor em que se encontra. Leis que obrigavam os directores a serem jornalistas com mais de cinco anos de profissão, que atribuíam aos Conselhos de Redacção poderes vinculativos, que impunham cotas para estagiários foram atiradas para o lixo. A precarização e a proletarização mancharam todo o sector. A via económica tornou-se a grande tesoura da democracia.
Um dos espíritos mais subversores do século XX, Natália Correia, advertia, entretanto, que “Tão censurante é impedir de dizer como obrigar a dizer” (texto que devia figurar em todas as redacções, gabinetes, ministérios, escolas – mas não figura), pois o obrigar a dizer abre portas a ilimitadas impunidades, manipulações - e fake-news
Em comunicado recente, o Fórum Internacional de Jornalistas, Escritores e Editores alerta dizendo “enganaram-se aqueles que acreditam só haver em sociedades totalitárias ou autoritárias censura à liberdade de escrever, ler, editar. Nas outras sociedades, as democráticas, multiplicam-se mecanismos de autocensura através de pressões políticas, económicas, sociais, culturais de igual modo perigosas e devastadoras”.
Há 100 anos Raul Proença escrevia na Seara Nova que “chamamos liberdade de imprensa ao direito que têm certos potentados, graças à sua fortuna e suas chantagens, de influir na opinião pública”.
A liberdade de expressão, a democracia, a cultura, a justiça estão a ser ameaçadas por censuras de cariz evangélica (e judiciária) tão dissolventes como as demais.
[O autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
Passatempos
Palavras cruzadas POR josé lattas
HORIZONTAIS:
1-Alcantil. 2-Pateta; Vila portuguesa, sede de freguesia, do concelho de Belmonte; Ástato (s.q.). 3-Exaltação; Repetição; Agrupai. 4-Árgon (s.q.); Abandonado; Ósmio (s.q.); Irídio (s.q.). 5-Caduco; Dólmen. 6-Retirada. 7-Região do NO da Grécia, que, na Antiguidade, foi uma monarquia independente, cujo rei mais famoso foi Pirro (318-272 a.C.). 8-Círculo; Remo; Imensidão. 9-Voga; Desocupação. 10-Substância composta de ferro e carbono, a qual endurece pela têmpera; Portanto; Junta. 11-Morder; Relva.
Soluções:
VERTICAIS:
1-Funesto; Prezar. 2-Mente; Chalaça. 3-Gálio (s.q.); Conjunto (inv.). 4-Escândio (s.q.); Entende. 5-Promontório; Agência Portuguesa do Ambiente (sigla); Sufixo, com o sentido de qualidade, agente ou instrumento de ação 6-Nome masculino, muito usado pelos brasileiros; Pentear. 7-Escárnio; Pira; Prata (s.q.). 8-Rapaz; Rio de Portugal, que nasce na Serra do Caldeirão, e desagua a O de Setúbal. 9-Sódio (s.q.); Tábua. 10-Cuba (inv.); Rendem. 11-Impelir; Divina.
ABALADA; R. 7-T; EPIRO; P. 8-ARO; ASA; MAR. 9-MODA; A;
CARIA; AT. 3-IRA; BIS; UNI. 4-AR; SÓ; OS; IR. 5-GAGÁ;
A.
as letras nas HORIZONTAIS) 1-A;