DIRETOR - FRANCISCO MADELINO JORNAL BIMEStrAL 3.a SÉRIE • 1€ N.0 10• Mar-abr 2018
Ciclo Mundos
A força do multiculturalismo
ÍNDICE
TL mar-abr 2018 3
4
Entrevista: Zap Mama
6
Entrevista: Elida Almeida
8
Fotorreportagem: Ação de limpeza das florestas
9 Viajando com livros
capa
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A Casa na árvore
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Memórias de Júlio Isidro
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19
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Entrevista: Cláudio Torres
Viagem: Rota de D. Quixote
Teatro da Trindade Inatel
Contos do Zambujal
Campeonato gastronómico
Desporto: Gonçalo Nunes
Coluna do Provedor | Notícias
Passatempos | Agenda
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Editorial
FRANCISCO MADELINO Presidente da fundação inatel
Património Cultural e Multiculturalidade
A ilustração
Alex gozblau
lex Gozblau é ilustrador com presença regular nas páginas do Expresso, Sábado, Visão, Diário de Notícias e Público; autor de livros ilustrados publicados por Caminho, Alfaguara, Pato Lógico, Texto, Planeta, Santillana, entre outras editoras; artista gráfico responsável por capas de livros editados pela Porto Editora, Edições Asa, Abysmo, Feltrinelli, Chandeigne, Caravan Edizione, Prisa, Levoir, e por cartazes para filmes e peças de teatro. Expõe, em nome individual e em mostras colectivas, regularmente e conta ainda com trabalhos reconhecidos em áreas como a banda desenhada e o cinema de animação. Venceu o Grande Prémio Stuart de desenho de imprensa El Corte Inglés/Casa da Imprensa, na sua sexta edição e teve outros trabalhos distinguidos pelo Clube de Criativos de Portugal, pela Society for News Design, e Society of News Design Ibérica.
E
ste ano é o Ano Europeu do Património Cultural. A demarcação destes anos serve, sobretudo, para chamar a atenção e dar relevo a assuntos considerados determinantes para as sociedades atuais. A preservação e o conhecimento do Património Cultural, material e imaterial, europeu é certamente um destes assuntos importantes. Património é conhecimento. Liga o sentir dos homens aos seus territórios e ao meio envolvente que marcou e marca a sua forma de ver o Mundo. Demonstra-nos que é importante respeitar as diferenças das pessoas, para que possamos viver em Paz e respeitando a Liberdade dos outros. Consciencializa-nos que só é possível abrir fronteiras se se tiver consciências das diferenças que estão por detrás delas. Fazem-nos perceber que os homens são uma mistura entre o seu livre-arbítrio e escolhas individuais, mas também enraizados em genéticas culturais profundas, que determinam os seus comportamentos e os seus valores. Património é economia também, pois os homens usufruem, cada vez mais, de lazer e nele procuram crescentemente experiências em zonas diferentes onde vivem e cresceram. Património bem preservado é fonte de exportações e de emprego. Nas sociedades de hoje, onde é cada vez mais fácil viajar e os movimentos demográficos são profundos, entre países e dos campos para as cidades, observa-se um grande desafio à sustentabilidade social das grandes urbes, e nesta o respeito pela diferença dos outros apresenta-se como um elemento comportamental e educacional crucial. A Fundação Inatel, porque se constitui de serviços de turismo e hotelaria, porque tem na sua missão a promoção da cultura portuguesa, porque tem um património histórico riquíssimo em receber e inserir refugiados, de vários pontos no Mundo e porque se alicerça na economia social, tem consciência da importância profunda deste Ano Europeu. Este número é assim dedicado a este, e nele ao valor da multiculturalidade. Portugal é um País constituído entre várias heranças culturais. Das germanas às árabes, passando pelas latinas e mediterrânicas. Das africanas e americanas, passando pelas asiáticas. É esta mistura que nos deu e dá uma grande riqueza cultural patrimonial. O Jornal Tempo Livre não poderia assim deixar passar em claro este evento.
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Entrevista Zap Mama
No início era a
voz Abriu da melhor forma a temporada de 2018 do Ciclo Mundos. Verdadeira lenda viva do universo da chamada “world music”, o projecto Zap Mama da belgo-congolesa Marie Daulne, deixou a sua marca profunda em todos os amantes de música em geral no início dos anos 90 com dois antológicos álbuns em formato a capella, em que a voz era o principal instrumento: “Zap Mama” (ed. Crammed, 1991) e “Sabsylma” (ed. Crammed, 1994)
O
formato de quinteto vocal foi extinto em 1996. Zap Mama passou por vários ciclos, influenciados pelo ritmo da vida pessoal e profissional de Marie Daulne, que foi criando vários projectos paralelos de música e de ensino. Zap Mama esteve um longo hiato de 10 anos sem a edição de um disco de temas originais que estará prestes a ser quebrado com a edição este ano (ainda sem data marcada) do oitavo álbum “Eclectic Breath”. Antes de deixar o Teatro da Trindade, Marie Daulne conversou com o Tempo Livre sobre as muitas vidas de Zap Mama. Em plena fase a capella do projecto Zap Mama, a editora norte-americana Ellipsis Arts lançou uma compilação de percussão africana com o curioso nome “The Big Bang: In The Beginning Was a Drum” (ed. 1994). Para si, o início era mesmo a voz… Sim, para mim a voz é o início porque a primeira coisa que fazemos é respirar. As pessoas podem pensar que fazemos ritmo com a voz, mas não é ritmo, é vibração das cordas vocais. Sim, o início é mesmo a voz.
Nasceu no Congo, mas cresceu na Bélgica. O que é que encontrou de diferente e que desconhecia quando já em adulta mergulhou na busca das raízes musicais do Congo, das polifonias vocais das tribos locais de pigmeus? Sem dúvida, os laços que se estabelecem na comunidade, que são muito mais importantes do que o individualismo. Quando se canta em conjunto, há o propósito de servir uma canção, de servir um espírito superior. Na Europa, o cantor é muito mais individualista. Chegou a viver nos Estados Unidos entre 2000 e 2004. O que é que ganhou em termos musicais com essa experiência? Uma maior dieta de música soul. A comunidade afro-americana canta em igrejas. Não canta individualmente, canta em comunidade, para servir Deus, Jesus, ou outra entidade superior. É uma experiência mais espiritual. Aí, a música é muito importante para as suas vidas. Na Europa a música também é importante, mas menos. Os americanos gostam de desporto e de música. Podes ir a qualquer cidade e tens sempre público. No entanto, a Bélgica tem sido ao
longo destes últimos 30 anos um local profícuo de criação musical por parte de artistas de sangue africano. Existem editoras como a Crammed, a Muziekpublique, a Igloo. Há mais uma fornada de novos artistas a afirmarem-se como referências, como por exemplo o Baloji, que também é belgo-congolês. Como é que vê esta evolução? Fico feliz por ter contribuído para abrir algumas portas e que a nova geração tenha seguido esses passos. Há também o Stromae [filho de pai ruandês e mãe belga] que se tornou muito popular na música electrónica. Fico feliz por ter sido uma espécie de “mamã” e espero continuar a usufruir daquilo que a nova geração está a fazer. Miriam Makeba, Hugh Masekela, foram as minhas inspirações. Eles foram-se embora. Qualquer dia eu irei também. Espero que os mais jovens continuem a trabalhar desta forma. Tem outros heróis fora da música africana como a Erykah Badu. Como é se sentiu quando ela lhe ligou para lhe propor uma colaboração? Não sabia o que dizer. Nessa altura estava numa fase de busca de verdade na minha música. E a verdade nessa
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beatriz LORENA
música não era seguir o que estava na moda. Agora toda a gente toca e segue a nova soul. A música que faço é a minha música, não importa o estilo e penso que a Erykah Badu gosta disso em mim. Pediu-me para a trazer para o meu mundo. A canção que gravámos [“Bandy Bandy”] tem soul, tem influências japonesas… Desde o álbum “Seven” (ed. Virgin, 1997) tem editado discos na área da soul, do r&b, do funk, do jazz. Nunca pensou em voltar às suas raízes, às polifonias vocais em bruto? O espectáculo que fiz o ano passado tinha quatro vozes e um beatboxer. No novo álbum tenho quatro danças a capella (dançamos enquanto cantamos). Tenho feito muitos workshops, ensino o lado histórico das polifonias e cantamos em conjunto, em vez de termos uma banda. Mas tenho uma guitarra e um portátil para o beat. Talvez possamos vir aqui a Lisboa fazer mais um espectáculo. Zap Mama tem tido muitas fases. O último disco que lançou foi há quase 10 anos. Está a preparar um disco novo que se chama “Eclectic Breath”. Porquê este hiato? Precisei de parar, porque servi a música
durante mais de 25 anos. Precisei de ter tempo para ver os meus filhos a crescer. Precisei também de estar com a minha mãe e a minha família. Fui compondo em casa. E entretanto a indústria musical mudou. Precisamos de encontrar uma nova forma de espalhar a palavra. Voltando à Bélgica, começou a gravar com o Marc Hollander da Crammed Discs e com o Vincent Kenis que produziu o seu primeiro disco e que posteriormente foi responsável pela fabulosa série “Congotronics”. O que pensa deste papel belga na evolução da música africana? O Vincent Kenis fez um trabalho fantástico recolhendo música fenomenal como Konono n.º1 e Kasai Allstars que adoro. Somos amigos e gastamos algum tempo a ouvir essa música que nos inspira e que inspira igualmente a Björk. Konono n.º1 inspirou igualmente muita gente na área da música electrónica. Mas a nova geração transformou completamente a sonoridade, a vibração, a frequência. É fantástico. Continua a trabalhar com Vincent Kenis? Apenas falámos de música, das nossas colecções, de coisas que ainda não
“Não tenho ido de propósito ao Congo pela música. Tenho viajado por todo o mundo. Estive recentemente na Indonésia, em Jacarta e no Bali e fiquei fascinada com a cadência das vozes. Não sou nacionalista. Cada ser humano, cada cultura tem algo belo”
editámos. É um homem apaixonado. Continua a ir ao Congo, a Kinshasa para fazer pesquisa, ouvir vozes locais? Não tenho ido de propósito ao Congo pela música. Tenho viajado por todo o mundo. Estive recentemente na Indonésia, em Jacarta e no Bali e fiquei fascinada com a cadência das vozes. Não sou nacionalista. Cada ser humano, cada cultura tem algo belo. Sempre teve uma forma muito própria de trabalhar. Tudo o que a rodeia inspira-a. Recordo-me de um dos seus primeiros temas, “Telephone”, inspirado no ruído criado pelas várias conversas telefónicas em simultâneo que escutava nos aeroportos quando se encontrava em trânsito. Ainda trabalha desta forma? Com esta impulsividade? Absolutamente. No meu novo disco tenho um tema que se chama “Text” porque toda a gente está actualmente a enviar mensagens através do telemóvel. Neste disco irei ter também canções em português, com o actor Vincent Cassel [ex-marido de Monica Bellucci com quem chegou a viver no Rio de Janeiro] e com o Seu Jorge em “Me And You”.
Luís Rei
[O autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
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Entrevista Elida Almeida
“A minha identidade é a minha tradição” A temporada de 2018 do Ciclo Mundos não poderia ter começado da melhor forma com dois espectáculos esgotados de Elida Almeida. Jovem, ousada e incisiva cantautora cabo-verdiana de 24 anos que se tornou um verdadeiro fenómeno de popularidade entre a diáspora com apenas dois álbuns gravados
S
e “Ora Doci Ora Margos” (ed. Lusafrica, 2015) é um disco autobiográfico em que folheia páginas-canções do seu diário pessoal, “Kebrada (ed. Lusafrica, 2017) para além de reviver boas e doces memórias de infância, de venerar as suas raízes familiares e culturais, faz uma radiografia social ao lado amargo de alguns dos delicados assuntos que estão a flagelar boa parte da juventude que reside em todo o arquipélago. Na sua obra musical, Elida Almeida foge ao arquétipo de cantora de morna ou de coladeira e, por isso mesmo, nunca poderá ser considerada como uma sucedânea de Cesária Évora. Com o coração apegado às muitas tradições locais (morna, coladeira, batuque, funaná e tabanca), à veneração dos grandes heróis musicais badios (como Katchás, Manuzinhu, Sema Lopi, Norbertu, entre muitos outros) e com os olhos e os ouvidos bem atentos à soul e ao r&b globalizado do séc. XXI, Elida Almeida revela-se uma força da natureza da melhor pop de alma e de calor africano que se faz nos dias de hoje. Estavas à espera da recepção que tiveste no Ciclo Mundos com duas datas esgotadas? Qual foi o segredo? Não. Fiquei surpreendida. Estava na Costa do Marfim de férias. Uma pessoa que me apoia muito enviou-me uma fotografia com o cartaz que dizia Lotação Esgotada. Uau! Isto não é o meu concerto. Fiquei mesmo feliz. Quando surgiu a ideia de fazer um segundo concerto, eu disse: façam o que quiserem! Tivemos montes de mensagens nas redes sociais de pessoas que não conseguiram comprar bilhetes. Ainda esgotavas um terceiro concerto… Acho que sim (risos). A Ana [José Charrua] estava pronta para fazer isso. Ficaste então a dever um concerto a Lisboa... Vamos planear isso. Qual é o sinal de tudo isso? É que estamos a entrar de mansinho no território português. Temos de agradecer e dar uma salva de palmas à diáspora cabo-verdiana que me vem apoiando incondicionalmente há 3 anos. Muito obrigada mesmo. Essa diáspora cabo-verdiana apoia-te não só em Portugal como também em França… Em todo o lado. Onde é que tens esse público mais caloroso para além de Portugal? Em todo o lado. Fiquei mesmo
surpreendida. Só começas a ter noção da importância da diáspora quando sais de Cabo Verde. Há três anos, quando comecei, em todos os concertos havia cabo-verdianos e houve pessoas que, durante esse período, apareceram em todos os meus concertos. Tenho pessoas em Paris que já as conheço de irem sempre aos meus concertos. É uma coisa maravilhosa de ver e sentir. Temos uma comunidade muito forte na França, em todas as cidades: Marselha, Paris. Também há uma comunidade muito forte nos Estados Unidos. Já fui lá duas vezes com concertos completamente esgotados. A maior parte dos artistas cabo-verdianos são sempre muito acarinhados pelos seus conterrâneos. Há sempre ali uma falange de apoio omnipresente e em família (da filha mais nova, à mãe e à avó). A música para o cabo-verdiano é um dos aspectos mais fortes de apego à sua cultura. E o facto de ser emigrante incentiva ainda mais. Sim. Num outro dia estava à mesa com os músicos que me acompanham e estávamos a falar dos nossos artistas e das nossas lendas. Acabei por dizer que, na nossa bandeira, em vez de termos o milho [na anterior bandeira que vigorou entre 1975 e 1992] deveríamos ter tido um ícone da música. Toda a gente conhece Cabo Verde através da música. Sei que Cabo Verde deve muito à diáspora, à emigração. Em cada casa, tem uma ou duas pessoas que é emigrante. Mas não tinha uma percepção do quão unidos são os cabo-verdianos na diáspora. Eles consomem mesmo música. Compram discos. Depois há uma aculturação clara. A neta já tem um namorado franco-português. Leva-o ao concerto e ele, por sua vez, leva também a família dele. Numa sala tens 50% de cabo-verdianos e 50% de lusofranceses que foram com os cabo-verdianos. Isto é o lado mais doce da tua carreira musical. Nos teus discos também olhas muito para o lado amargo de Cabo Verde. Esse dom da escrita de canções vem desde muito cedo? Sim, eu sempre gostei de escrever e de falar. Os professores sempre me disseram que deveria ter uma profissão relacionada com a comunicação. A minha primeira música, “Nta Konsigui”, que foi também o meu primeiro single, escrevi-a com 17 anos. A partir daí não parei. Escrevo sobre o que acontece em Cabo Verde, o que me acontece, o que se passa com os meus vizinhos, os meus
familiares. Neste disco [“Kebrada”] fui um bocadinho mais longe. Falo no que acontece nas outras ilhas. Falo sobre os flagelos sociais de Cabo Verde com que temos de lidar diariamente. Deixa de ser um disco autobiográfico, para passar a ser um disco de crónica social. É isso? É quase uma radiografia do que se está a passar neste momento em Cabo Verde. Todos os problemas citados nas minhas canções são casos diários que sucedem em Cabo Verde. Desde quem é influenciado a entrar no mundo da droga; à violência doméstica em que a vítima diariamente arranja uma desculpa para ela mesma não tomar uma atitude para mudar de vida; à consequência da má qualidade de grogue que existe actualmente e que está a acabar com a nossa juventude; à guerra de gangs rivais em que uma mãe vê o filho a ir no caixão. É uma radiografia actual do que sucede em todas as ilhas. Esse lado de crónica social tem a ver com o facto de teres sido estudante de Comunicação Social. És uma cantora, poeta, repórter. É isso? Costumo dizer que tenho o privilégio de dizer que o problema da Maria, do João ou do Pedro seja também meu e que o consigo relatar mundo fora. Junto com isso, procuro buscar uma solução. Quando falo, no “Forti Dor”, da dor que uma mãe está a sentir ao ver um filho com a idade entre os 15 e os 20 anos a ser enterrado. Quando canto essa música, estou a chamar a atenção a várias camadas sociais. Começo pela mãe, que infelizmente é solteira, tem de sair cedo para o trabalho, chega à noite e não tem tempo de estar com o filho… Isso remete para outra questão que abordas: muitas das mães têm de ser também o pai de família. Sim, em Cabo Verde 80% é mãe e pai. Começa por essa mãe em tem de encontrar tempo para falar com o filho, começa com o filho que já está naquela fase de perceber que a mãe é a única pessoa com quem pode desabafar quando acontece alguma coisa de estranho na escola. Quando lhe oferecem alguma coisa que nunca tinha experimentado. E vai subindo até chegar ao Estado que tem de fazer alguma coisa. Uma pessoa não pode decidir tirar a vida a outra, ir para a prisão durante cinco ou seis anos e, se for bem comportado, estar na rua ao fim de dois ou três anos. Isso não pode ser. Então, é uma chamada de atenção para várias camadas da sociedade, que começa
na mãe e acaba em quem tem o poder de mudar a lei e de fazer as coisas acontecer. De parar com isso. Estamos a perder vidas de duas formas: uma já morreu e a outra vai para a cadeia. Não podemos continuar a perder a juventude dessa forma. Estavas a falar do “Forti Dor”. Curiosamente, é dos temas mais belos deste disco. Há aqui uma sensibilidade muito forte por parte do Hernâni Almeida que fez os arranjos. Oiço ali uma guitarra que parece uma cora de um griot mandinga. Este disco foi muito melhor cozinhado. Teve tempo para ser apurado. Porque o Hernâni é o produtor do disco e também o director musical. Passámos três anos em digressão a conhecermo-nos. Quando começo a cantar uma música para fazer uma maquete, ele já sabe o que eu preciso. Nesta música, havia-lhe dito que tinha gostado de um arranjo que ele fez para um disco da Lura e ele fez uma coisa parecida. Foi uma das últimas músicas em que pus a voz final, mas uma das primeiras que escrevi, porque não a conseguia gravar. O “Forti Dor” não teve cora, mas teve um violoncelo do Vincent Ségal que já actuou em duo no Ciclo Mundos com o tocador de cora maliano Ballaké Sissoko. Como é que o conheceste? Claro que é um nome que está à mão do teu produtor Djô da Silva. É necessário um violoncelista e contacta-se o Vincent Ségal… Pois é. Foi mais ou menos isso. Há músicos que conheci e que participei na captação de instrumentos e há outros que não tive a oportunidade de conhecer. Hoje em dia, com a internet, não necessitamos de estar presente para um músico gravar um instrumento. A música viaja, vai para Cuba, regressa a Portugal e vai novamente para o Brasil e quando a ouves já vem com toda essa bagagem. Dos músicos que participaram no disco, conheço bem o Gileno, o Régis Gizavo… O Régis Gizavo que entretanto faleceu e que estava com um projecto em formato trio muito interessante: Toko Telo. Segundo o Djô da Silva, foi a última gravação dele. O Miroca Paris, que acabou de gravar finalmente o primeiro disco a solo “D’alma”, também está aqui muito presente nas percussões. Tens uma boa relação de amizade com ele? Não. Ele não vive em Cabo Verde e eu só há três anos é que comecei a viajar. Ele também viaja muito. (risos)
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beatriz LORENA
Só o vi duas vezes. Mas conheço muito bem o trabalho dele. Sei tudo o que ele tem feito em prol da nossa cultura, sobretudo com a Cesária. Sintome lisonjeada em ter um disco com participações muito fortes de músicos da nova geração. E os filhos do Codé di Dona também… Pois. Isso é muito simbólico. És uma artista que vive no mundo globalizado, que ouve a pop e a soul ocidental que se faz actualmente, mas ao mesmo tempo não prescindes daqueles nomes mágicos que fizeram a história da música cabo-verdiana como Code di Dona, Katchás, Bitori que até tocaste neste concerto. Sim. Há três anos que toco essa música “Bitori Nha Bibinha”. Curiosamente, ainda não gravaste este tema em disco. Porquê? Por acaso, não. Acho que tem mais charme tocá-la só nos concertos. As pessoas vão ter que ir ao espectáculo para a ouvir. Cada dia que passa procuramos dar um novo arranjo. Sou, sim, muito apegada à minha tradição. Não podes ser uma artista de fusão, moderna, sem ter uma identidade. A minha identidade é a minha tradição. Com a minha tradição eu ramifico, misturo coisas e dá no que dá. Os próprios artistas da nova geração inspiram-me e apego-me muito a eles. Esse apego às tradições espelha-se no orgulho que tens em falar da tua mãe como vendedora de fruta, no “Bersu d’Oru” em que exultas os teus heróis musicais locais, no “Sapatinha” em que ouvias o galo a cantar ao acordar, no nome “Kebrada” que deste ao disco… Pois, é tudo isso que eu chamo de orgulho. O disco tem um lado triste em determinados temas que abordo mas também tem um lado mais feliz. O “Bersu d’Oru” fala de um sonho que
“Só começas a ter noção da importância da diáspora quando sais de Cabo Verde. Há três anos, quando comecei, em todos os concertos havia cabo-verdianos... Tenho pessoas em Paris que já as conheço de irem sempre aos meus concertos. É uma coisa maravilhosa de ver e sentir”
tive em ter convivido com os astros da música de Santa Cruz como Katchás, Manuzinhu, Sema Lopi, Norbertu, entre outros, e dizer que eu tive o privilégio de ter nascido num berço de ouro. Somos um concelho pequeno mas com pessoas que foram indispensáveis para a nossa cultura. Também tem o “Sapatinha” que fala de como é acordar em “Kebrada”, com o cantar de galo, de comer cachupa, fidjós e outros alimentos com ingredientes naturais e o sabor que tinha o final do dia com o cambar do sol à espera que os nossos avós contassem histórias do lobo e do chibinho. O disco tem esses dois lados: feliz e triste. Há pouco falavas que ainda não tinhas gravado o “Bitori Nha Bibinha”, mas gravaste o “Sofa” de Katchás… Por acaso, quando gravei o “Sofa” ainda não tínhamos pegado no “Bitori Nha Bibinha”. Assinei com a Harmonia do Djô da Silva na altura da Gamboa. Um festival que existe em Cabo Verde. Naquele ano, havia uma homenagem a Katchás em que participei. Cantei quatro músicas, “Sofa” incluído. O Djô da Silva gostou e disse para a guardarmos. O Hernâni deu uma roupagem completamente nova. E é isso, vamos fazendo coisas, vamos reinventando. Adoro pegar em clássicos e ir dando vida a eles. Mesmo que não os grave, vamos tocando nos concertos. A tua música é feita de imensos estilos musicais, mas há aqui um lado muito especial dedicado à tabanca e ao funaná. Curiosamente duas manifestações musicais proibidas pelos portugueses no tempo das colónias. Isto tem a ver com esta tua face de escritora de canções de intervenção? Na verdade, isso mexe um pouco comigo. Mas essa expressão “cantora de intervenção” não me soa bem. Quando ouço isso digo: O.k.! (pensativo) e fico a
processar. Mas isso é sobretudo porque sou badia da ilha de Santiago. Vivi, consumi, dancei, mastiguei o funaná, a tabanca e o batuque desde muito pequena através do Bulimundo, Sema Lopi, Nha Nacia, Manuzinhu que foi o rei da tabanca. Então está no sangue, está em toda a parte da ilha de Santiago. Por acaso nunca estudei a fundo essa questão, mas sei que tabanca surgiu numa revolta na qual os portugueses decidiram abolir o uso de instrumentos africanos e deram aos escravos um dia para fazerem a festa deles. Vamos vestir como eles e dar uma de chefe, de rei e de rainha (risos). Foi engraçado, mas ganhou uma força e, hoje em dia, o meu principal desafio é que a tabanca chegue às pessoas. Tabanca é um ritmo do outro mundo e é vasto. O tabanca que tocamos é moderno, tentamos dar uma roupagem diferente, chegar mais à juventude e conseguimos. Quando o tocamos em festivais de Cabo Verde é uma coisa do outro mundo ver toda aquela juventude, entre 15 a 30 anos, a dançar e a cantar essa música com uma força. Uau! Temos de fazer mais coisas deste tipo. Temos de ressuscitar estilos como a tabanca que está a desaparecer, dando uma roupagem diferente para trazer a juventude. Estou a estudar uma fórmula de fazer isso com outros estilos. Em relação ao funaná, no teu disco abordas várias ramificações, ora mais latino-americano, ora mais rock. No teu espectáculo tocaste um funaná três vezes mais rápido – o kotxi pó – que se está a desenvolver na rua pelas camadas jovens. Como vês este fenómeno? A música de Cabo Verde sempre foi assim, sempre vai ser assim. Porque os caboverdianos são viajantes. Os estudantes que estiveram em Cuba absorveram aí tudo o que puderam e chegaram a Cabo Verde e puseram essas influências na coladeira. Isto vai continuar para sempre. A música é cada vez mais globalizada e o funaná não fica de fora. Tínhamos o funaná de Bulimundo e de repente surgiu o Zé Espanhol. Os críticos diziam que isso não era funaná. De repente surgiu o kotxi pó. Uau! Três vezes mais rápido do que o Zé Espanhol faz (risos). Para veres como é que as coisas mudam todos os dias. Sempre defendo que não podemos competir com outros países africanos ou da América Latina sem estar ao mesmo nível. Temos de abrir a mente, abrir as portas. Temos de estar aptos a fazer coisas novas, a interagir, a fazer intercâmbios culturais. Quer os críticos musicais queiram ou não queiram, esses rapazes que tocam kotxi pó têm poder. É uma coisa do outro mundo ver 15 mil pessoas a dançar funaná três vezes mais rápido à beira-mar. Tem um grande efeito sobre a juventude. Temos de aceitar que a nossa música sofreu uma alteração. Evoluiu. Temos de acompanhar isso. Quer quiser ficar apegado ao que aconteceu há 20 ou 30 anos atrás que fique, mas eu sou da nova geração e quero acompanhar a evolução das coisas. O “Grogu Kaba” não é assim no disco, mas quando regressei a Cabo Verde e vi como é que é o kotxi pó. Convivi com aqueles rapazes e eles são músicos, não são só tocadores de kotxi pó, porque eles tocaram um funaná normal comigo no “Sapatinha” e cantam e tocam um “Sodade” com acordeão. São músicos. A nossa música sofreu uma alteração e temos que acompanhar isso. Eu vou. Quem não quiser ir que não vá.
Luís Rei
[O autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
8 TL MAR-ABR 2018
fotorREPORTAGEM
Ministro do Trabalho e Solidariedade Social, José Vieira da Silva e José Manuel Alho, membro do conselho de administração da Fundação Inatel. Atividade organizada pela fundação de envasamento de carvalhos. A ação decorreu na unidade hoteleira de Entre-os-Rios
INATEL ENTRE-OS-RIOS Ação de limpeza das florestas
Limpeza de uma das três propriedades da Fundação Inatel com a empresa competente e responsável para o efeito
O
governo lançou uma campanha de sensibilização para a limpeza de matas. O primeiro-ministro, António Costa, e vinte membros do governo assistiram aos trabalhos florestais no passado dia 24 de março. Em Entre-os-Rios, o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, José Vieira da Silva, marcou presença na limpeza de 27 hectares de floresta que pertencem à Fundação Inatel e onde a prevenção é prioridade. A proximidade das habitações, a localização dos terrenos, exige a atenção e ação da Fundação. Maria João Costa e Beatriz LORENA (fotos)
Presidente da Fundação Inatel, Francisco Madelino, devidamente equipado, a receber instruções para participar na limpeza das matas A Secretária de Estado da Segurança Social, Claúdia Joaquim e o Secretário de Estado do Emprego, Miguel Cabrita, participaram na ação de limpeza
Membros do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e membros da Fundação Inatel presentes por um Portugal sem Fogos. É um dever de cada cidadão proteger e evitar que os cenários de 2017 se repitam. A Fundação Inatel está atenta, e a atuar nas unidades hoteleiras atingidas pelos fogos no verão passado, em Piódão, São Pedro do Sul, Manteigas, Linhares da Beira e Vila Ruiva
Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social a participar ativamente na limpeza das matas Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social a participar no transporte de eucalipto depois de cortado por agentes profissionais
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Viajando com livros
ANTERO – ONTEM, HOJE E AMANHÃ
U
Lido e admirado por Tolstoi, traduzido nas principais línguas europeias, Antero de Quental foi um dos poetas portugueses de maior projeção e reconhecimento universal. Fernando Pessoa também não seria o que é se não tivesse recebido o impacto da aproximação profunda da obra de Antero Por António Valdemar
Retrato de Antero de Quental (1889), óleo s/ tela de Columbano Bordalo Pinheiro, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado
m ciclo se abre e outro se encerra com a publicação das Odes Modernas. Este primeiro livro de Antero de Quental motivou, em várias dimensões, a controvérsia literária – o repúdio do sentimentalismo vazio e retórico; a controvérsia moral – a desmontagem do elogio mútuo e da corrupção intelectual: e, ainda, a controvérsia política – o incitamento à indignação e à revolta para instaurar a República, como regime político e o Socialismo, como estrutura social. A poesia portuguesa vai ser outra e também outra será a ação política, a abordagem da questão social, a urgência da transformação da mentalidade. É o ímpeto seminal que se vai repercutir no primeiro ultimato para modernizar Portugal: a denúncia das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, apresentada nas Conferências Democráticas do Casino. Antero alertou para os efeitos calamitosos do estabelecimento da Inquisição, para os condicionalismos do catolicismo dogmático e repressivo imposto no Concílio de Trento e para as consequências irreparáveis da expulsão dos Judeus, três fatores que acentuaram a intolerância, o isolamento e a impossibilidade de integração de Portugal na Europa. A criação poética inicial de Antero permite avaliar a influência cultural e a militância cívica que exerceu. Foram de tal amplitude que transpuseram, entre os seus contemporâneos e numa perspetiva de futuro, a área da literatura para incidir noutros domínios da sociedade portuguesa. A primeira edição das Odes Modernas (1865) tem estado circunscrita a bibliógrafos. A segunda edição, de 1875, – e que Antero considerou definitiva – não se reduziu, apenas, ao apuramento formal e à substituição de títulos de poemas. Antero retirou, por exemplo, dois textos essenciais e que reaparecem, na íntegra, na recente edição crítica organizada por Luiz Fagundes Duarte e editada pela Abysmo, por iniciativa do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e integrada nas Obras Clássicas da Literatura Portuguesa. Trata-se da carta – dedicatória das Odes Modernas a Germano Meireles, um dos seus mais íntimos amigos; e do posfácio no qual desenvolve e propõe o entendimento da poesia como arma de combate e de expressão revolucionária. A polémica desencadeada, em 1865, teve origem na primeira edição das Odes Modernas, nas interpelações enérgicas de Antero ao magistério de Castilho e incluídas nos dois textos agora recuperados. Neles se depara o rastilho da agitação que se estendeu através de todo o país, durante mais de um ano, em jornais e revistas e em panfletos virulentos e oriundos dos dois setores; dos adeptos da tradição intransigente personificada em Castilho; e da nova geração empenhada na revolução política e social e, ao mesmo tempo, em desenterrar a língua que jazia nos túmulos do vernaculismo. Tudo isto e muito mais elegeu Antero como a mais emblemática figura intelectual da Geração de 70. Fez desmoronar o pontificado de Castilho e a irrelevância dos seus epígonos que tiveram em Pinheiro Chagas um dos paradigmas nacionais. O perfil deste e outros
personagens será objeto das implacáveis caricaturas de Eça de Queiroz: n’O Primo Basílio, do conselheiro Acácio; na Correspondência de Fradique Mendes, de Pacheco, ministro, conselheiro, um «imenso talento» elogiado por todos e que só a viúva, não deu por isso, quando, após a morte, recebia condolências nacionais... Contudo, o renome nacional e universal de Antero tem derivado dos Sonetos (18611886) sistematizados em diversas fases. Condensam as indagações em torno da angústia metafísica e o desespero físico que o torturaram e conduziram, numa tarde cinzenta, húmida e opressiva de setembro, e numa praça pública da sua ilha de S. Miguel, ao trágico encontro com a morte. Antero de Quental (1842-1891) além de uma recolha de sonetos de juventude – Coimbra, 1861 – a chamada edição Sténio, pseudónimo literário do seu colega, amigo e também açoriano Alberto Teles (1840-1917) publicou, no Porto, em 1881 uma outra edição de Sonetos, numa altura em que já atingira o maior prestígio intelectual, e, cinco anos mais tarde, em 1886, Os Sonetos Completos, acompanhados com um estudo introdutório de Oliveira Martins, incluíram com a anuência de Antero, cinco outras poesias a que chamou «lúgubres»: Os Cativos, os Vencidos, Entre Sombras, Hino da Manhã e A Fada Negra. Em 1886, Antero acrescentou sonetos inéditos e dispersos e repartidos em cinco ciclos correspondentes à evolução intelectual e filosófica, às intervenções cívicas, aos combates políticos e às efusões sentimentais: 1860-1862, vinte; 18621866, vinte e oito; 1864-1874, dezassete; 1874-1880, vinte e três; e 1880-1884, vinte e um. Desta compilação surgiu uma segunda edição (1890), ainda em vida do autor, sem alterações nos textos dos sonetos, mas incluindo 46 traduções de 32 sonetos para alemão (por Wilhelm Storck), espanhol (Curros Enríquez e Baldomero Escobar), italiano (Giuseppe Cellini, Marco Antonio Canini, Emilio Teza e Tommaso Cannizzaro) e francês (Fernando Leal). O conjunto de cento e nove Sonetos de Antero teve sucessivas reedições, muitas das quais repetindo gralhas e outras incorreções que afetaram a autenticidade do texto. Entretanto, António Sérgio organizou, no âmbito do centenário do nascimento de Antero celebrado em 1942, uma edição anotada, mais tarde inserida nos Clássicos Sá da Costa, e que não só manteve lapsos tipográficos como, também, alterou por completo a sistematização preconizada por Antero e Oliveira Martins. A edição crítica, realizada por Luiz Fagundes Duarte, apresenta as sucessivas variantes introduzidas pelo poeta, a partir dos manuscritos autógrafos, quando
disponíveis, ou da última edição em vida. Numa secção de Addenda, estão três sonetos apócrifos, um dos quais a propósito de Camões, no centenário de 1880 – ao qual Antero não se associou e assumiu atitude crítica – o soneto Ananké, que se provou não ser de Antero, mas sim de Joaquim de Araújo, pelo que desaparece do corpus anteriano. Mais ainda: dois sonetos atribuídos a Antero que circulavam, desde 1916, nos meios espíritas como tendo sido ditados por Antero através de um médium. Na carta autobiográfica, Antero classificou os Sonetos como «a notação de um diário íntimo e sem mais preocupações do que a exatidão das notas de um diário; as fases sucessivas da minha vida intelectual e sentimental» (...) «uma autobiografia de um pensamento e como que as memórias de uma consciência». E Oliveira Martins afirmou que os Sonetos de Antero «não são os quaisquer episódios particulares de uma vida de homem; são a refração das agonias morais do nosso tempo, vividas, porém, na imaginação de um poeta». Antero optou quase sempre pelo soneto que imortalizara «Dante, Miguel Ângelo, Shakespeare e Camões» para exprimir, conforme salientou, «a forma completa do lirismo puro». Foi, portanto, na concisão lapidar do soneto, que Antero manifestou as crises de incerteza, as dúvidas pertinentes, os fantasmas interiores, as derrocadas sentimentais que exacerbavam o pessimismo em que mergulhara. O suicídio acabou por ser o desfecho para se libertar de uma vida insuportável. A obra poética de Antero teve o maior impacto na sua geração e continuou a motivar, no século XIX e no século XX, as gerações seguintes. Marcada por Cesário Verde e Camilo Pessanha, a geração do Orpheu, não ficou indiferente à poesia de Antero, em especial aos Sonetos. Manuscritos existentes na Biblioteca Nacional revelam que Pessoa deixou traduções para inglês de muitos sonetos e projetou uma edição das Poesias de Antero, constituída por seis pequenos volumes, uma edição encadernada, de 370 páginas, do tipo da de Coleridge, por W. & Foyle. Existe um exemplar, na Casa Fernando Pessoa, com a sua assinatura na sua biblioteca pessoal. Tal facto leva-nos a admitir que Fernando Pessoa não seria o que é se não tivesse havido a aproximação e a forte influência da obra poética de Antero de Quental. Podemos ainda referir que os Sonetos de Antero – através da tradução alemã de Wilhelm Storck chegaram ao conhecimento de Tolstoi que registou a profunda emoção que lhe causaram. Antes da obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa – e o Livro do Desassossego de Bernardo Soares é um dos exemplos mais significativos – Antero de Quental foi um dos poetas portugueses de maior projeção e reconhecimento universal.
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A Casa na árvore Grevílea bastante alta, perto do Castelo de Silves, Algarve
A Grevílea veio da Terra Australis, cheia de sonhos, néctar e enguias Por Susana Neves
A árvore que perdeu a tristeza
U
m caçador chamado Tuggan Tuggan caminhava na floresta quando de repente se apaixonou por uma árvore. Era alta, o tronco escuro muito direito, as folhas verdes e prateadas tinham um recorte gracioso. Vendo que estava triste, Tuggan Tuggan não hesitou perguntar-lhe o que a afligia. A árvore disse-lhe que tinha frio e precisava de um manto. O caçador, pertencente à tribo da Baía de Moreton, de Queensland, na Austrália, lançou-se ao caminho mas nem encontrava o manto nem caçava, e um dia os anciãos, vendo que regressava novamente de mãos vazias, decidiram castigá-lo, tirando-lhe o único instrumento de caça que possuía: o boomerang. “Como não caças, o boomerang de nada te serve”, dito isto atiraram-no tão alto que desapareceu no ar. Durante muito tempo, Tuggan Tuggan procurou o boomerang e o manto para a sua árvore amada, mas como não caçava, começou a enfraquecer e a ficar doente e decidiu parar as buscas. No regresso, ao aproximar-se da sua árvore, foi visto por um bom espírito chamado Biami. Sabendo a razão da sua fragilidade, Biami encontrou o boomerang e deu-lho. Tuggan Tuggan não hesitou e atirou-o, pela última vez, em direcção da copa da árvore, para que se desfizesse em milhares de fragmentos dourados, que a cobriram como um manto protector. Neste sonho do povo aborígene Nunukul (Queensland), recolhido em primeira mão pela poetisa australiana e activista Oodgeroo Noonuccal (1920–1993), reveste-se de particular interesse o facto do caçador e a árvore terem o mesmo nome, uma vez que Tuggan Tuggan é a forma como esta tribo designa o “carvalho sedoso australiano” (silky oak), ou Grevílea
(Grevillea robusta A. Cunn. ex R. Br. Brown, R.). Por seu turno, o manto protector, oferecido pelo caçador à árvore, merece igual atenção, porque evoca simultaneamente a sensibilidade desta espécie à geada e a sua inesquecível floração laranja-dourada, que ocorre, em Portugal, no mês de Maio, e na Austrália, em Outubro e Novembro. Mas mais interessante ainda, neste sonho, é a mentalidade visionária que lhe está subjacente: para um aborígene australiano, Tuggan Tuggan é simultaneamente homem e árvore, pela simples razão que a floresta não é concebida como exterior ao Homem. Não se trata, por conseguinte, de uma metamorfose, o caçador não se transforma numa árvore, prescinde de comer para a proteger, morre para salvá-la, ou melhor dito, para se salvar e salvar todos os seres que dela dependem. Porque a nobre e alta Tuggan Tuggan (pode atingir 35
Pormenor das folhas e flores
metros), também conhecida por Duradi (em Kilkoy), Koomkabang (em Bundaberg) e Warra-garria (a norte de Nova Gales do Sul), vive nas florestas húmidas tropicais de Queensland, rodeada de centenas de pássaros multicolores, insectos e alguns marsupiais, como o possum, que se alimentam do pólen e néctar das suas flores hermafroditas, e das suas sementes. Para os aborígenes australianos ela não é madeira para construção de casas, como foi vista pelos colonos europeus no século XIX, nem simplesmente ornamental para decorar jardins e arruamentos, ou “árvore-operária”, podada à medida da sombra que se pretende nas produções de chá (Sri Lanka), café (Sul da Índia), e milho (Quénia), mas um ser mágico através do qual o tempo pode ser lido. Como explica, Joanna Besley, no artigo ‘This noble species’: Grevillea robusta, publicado no jornal Australian Garden History, vol. 21, N.º 1, Julho/
Agosto/Setembro, de 2009, para os aborígenes, as grevíleas eram também “calendários”, indicando o período de floração, a época de pescar e comer enguias, por nessa altura estarem mais gordas. Enquanto os botânicos europeus — entre eles, Robert Brown (1773-1858) que nomeou o género Grevillea em homenagem a um dos fundadores da Royal Horticultural Society, Charles Francis Greville (17491809) — reparavam na estranha forma das suas flores, que se apresentam em espiga e oferecem pingos de néctar, incluindo-a na família das Proteáceas (da qual fazem parte também as próteas, banskias e as waratahs ou telopea), os nativos da Austrália saboreavam-nas como “chupa-chupas do bosque”, e metendo-as em água, sorviam o seu néctar diluído. O explorador britânico e comandante do navio Endeavour, James Cook (17281779) também foi sensível ao Paraíso que era a floresta tropical australiana, quando na segunda-feira, 25 de Abril de 1770 (há 248 anos), atracou em Kurnell. Inicialmente, devido à quantidade de mantas ou peixe-diabo que encontrara, pensou chamar ao local Baía das Mantas, mas ao ver o número de plantas recolhidas pelos botânicos inglês e sueco que acompanhavam a expedição — respectivamente, sir Joseph Banks (1743-1820) e Daniel Carlsson Solander (1733-1782) — acabou por chamar-lhe Botany Bay (Baía Botânica). Incluídas nesse vasto conjunto de plantas, várias espécies de grevíleas fariam a viagem de regresso a Inglaterra (o Endeavour chega a Kent em Julho de 1771), envolvidas nas folhas do livro Paradise Lost (Paraíso Perdido), longo poema épico inglês, escrito por John Milton (1608-1674), quando já estava praticamente cego. [A autora escreve de acordo com a antiga ortografia]
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MEMÓRIAS DE JÚLIO ISIDRO
FERNANDO TORDO UM CAVALO À SOLTA
Rita Carmo
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oi do rock quando a música e as palavras não andavam à solta. Primeiro os Deltons, depois os Sheiks, rapaziada que fazia das Avenidas Novas o que de mais novo se podia fazer. Eram os tempos do café Vá-Vá onde nascia o cinema novo, a música nova e as ideias feitas de esperança no futuro. Foi nesse tempo que me cruzei com o Fernando Tordo e, desde então, as nossas vidas estão cheias de cantigas comuns, ele a fazê-las, eu a divulgá-las. O Fernando que em 1971 escreveu uma das mais belas baladas da nossa música, mesmo antes dos esquecidos, falarem de baladas. Foi até ao nosso festival, e trouxe a consolação de ter feito com o José Carlos Ary dos Santos uma canção para durar. Estas as primeiras memórias que me chegam ao presente quando o meu amigo chega ao clube dos septuagenários. Igual na sua criatividade, coerente nas suas indignações, cada vez mais apurado no seu humor corrosivo. Eu, nos bastidores dos festivais da canção, gravador (pesado como um tijolo-burro) na mão, a registar declarações dos candidatos. Ele a surpreender pela sua
frontalidade que é a forma mais fácil de arranjar inimigos. Aos 21 anos o jovem bonitão, que era, vencia o Prémio da Casa da Imprensa como cantautor porque lhe reconheciam uma enorme riqueza harmónica e melódica. Foi pelo caminho das pedras, cavalgando melodias, para chegar ao direito a um álbum a solo, “Tocata” de 1972/73 que toquei, talvez com a pretensão de estreia, no meu programa do Rádio Clube Português e que guardo ciosamente porque sei que vale como raridade. Para mim, vale como saudade. E quando fui ao lançamento numa tasca do Bairro Alto de um 45 rotações, “O Café” onde nesse ano já se falava de meninos bem com a China na bota?! Seria que Tordo/Ary antecipavam o percurso de um menino com mau feitio, rumo ao maior banco do mundo? É bom saber que a música popular também escreve história… Do “Café”, à arena das palavras provocadoras, foi um galope. Em 1973, o Fernando bandarilhava os lápis azuis, e vencia o festival com a “Tourada”. Nem houve um “inteligente” para acabar com as canções.
Nesta catadupa de fotogramas de um filme ainda por fazer, instalo-me nas noites muito longas no último andar esconso da Rua da Saudade onde se cantava, bebia e se sonhava com um país ressuscitado. Muitas cabeças, diferentes sentenças, mas o direito à palavra era de todos. E aquela noite em que saímos a correr para o hospital onde o Fernando e amigos se uniram num enorme sentimento de paternidade. – São três, são três!!! – o músico e o resto da orquestra não se calava: – O mais fraquinho é uma força da natureza e vai arribar. Tempos mais tarde surgia a “Balada para os nossos filhos”, dedicada à Joana e ao João. O Fernando é um caminheiro que vai, mas está sempre de volta. Dos Açores trouxe-nos um “Anti-ciclone” e a “Ilha do Canto”. Uma das canções que uso para os meus momentos maus e que foi feita decerto com os olhos no mar, chama-se “Adeus tristeza”. Depois deste exílio assumido, voltou em 1986. O percurso do Fernando tem sido feito lado a lado, mesmo que por vezes à distância, com dois amigos dos mesmos ve-
lhos tempos do Vá-Vá, o Paulo de Carvalho e o Carlos Mendes. Um dos projectos mais interessantes da nossa música, foi uma ideia de Pedro Osório, chamou-se Só nós três, e deu quase a volta ao mundo. E lá vai ele de novo. Agora é o Brasil: – Vou-me reformar deste país. Não me apetece ficar aqui. Ainda tenho muita coisa para fazer. Passados quatro anos voltou. Mais maduro e com muito mais música no coração. E não é que voltou a concorrer ao festival da canção, agora com a voz da Anabela? “P’ra te dar abrigo” Não ganhou o direito à Eurovisão, mas o autor teve a coragem de dar a cara e manter o respeito daqueles que lhe seguem as canções há mais de cinquenta anos. Gosta de pintar, escreve palavras profundas, confirmo que continua senhor de uma saudável indignação e de um humor que sublinha com uma gargalhada única. Acabada esta indisciplinada prosa que não quis ser uma biografia, vou-me sentar a ouvir a “Estrela da tarde” outra balada que os esquecidos do passado precisam de recordar. [O autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
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Entrevista
Cláudio Torres “O ato de conversão é sempre um ato pacífico” O mundo do Mediterrâneo, mais que um lugar de conflito tem de ser visto como um lugar de relação em que decorre um processo de reconfiguração e encontro para o futuro de que somos parte
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o alto dos seus anos e décadas de trabalho, o historiador diz coisas que para nós são surpreendentes: não houve invasões dos visigodos e celtas, muito menos invasões árabes. Grande parte do que é hoje Portugal foi muçulmana devido ao comércio e à conversão pacífica. O multiculturalismo não é aqui uma relação com os outros, a arqueologia prova que os muçulmanos que sucederam aos cristãos podiam ser pai e filho. Quando na Europa existe islamofobia e em Portugal veem-se traços disso, não estamos a renegar parte do que somos? Não, porque a questão da islamofobia é uma reação a um existir do islão. De repente, no Mediterrâneo, o islão começou a ter vontade de ser o que é, o que é uma coisa recente. E é de certa maneira uma reação à colonização. Nós colonizamos a parte sul do Mediterrâneo durante séculos. Pela primeira vez surge o islão como qualquer coisa que é diferente. E isso dá uma certa identidade e orgulho. Os dominados e colonizados, aqueles que eram considerados de segunda categoria, estão a encontrar qualquer coisa que têm orgulho de o ser. É uma reação natural, tinha de acontecer. O que aconteceu nos anos 70, do século passado, com a erupção do socialismo pan-arábico não era também uma reação ao colonialismo? Também foi, simplesmente muito imbuído da própria estrutura de cópia da Europa do norte. Neste momento, é através da religião que eles encontraram fenómenos identitários que nunca tinham tido. Se até há pouco tempo havia uma certa reação aos colonizadores, acompanhada por um certo complexo de não serem iguais, hoje parece-me que o islão serve de máquina identificadora e identitária importante, que encontraram
nele uma forma de orgulho contra os outros: nós somos diferentes, temos outra religião, outra postura. Estão a encontrar a forma como podem ser diferentes. E isso vê-se no véu da mulher. A própria tem orgulho de levar o balandrau por cima. “Andas toda coberta e escondes-te”, “não, não sou como tu, tu é que andas assim e eu sou diferente”. É uma outra forma de olhar. Como se pode garantir que a mulher esconde o corpo com orgulho e não é obrigada pela família e pelos costumes a fazê-lo? Isso pensamos nós. O que é interessante é que na Europa, as raparigas muçulmanas, inteligentes e mais de que cultas do ponto de vista cultural, assumem com orgulho essa sua postura diferente. Encontra-se por parte delas não uma submissão, mas sim uma afirmação. Mas em países como a Arábia Saudita e o Irão há mulheres presas por não quererem ser obrigadas a usar essas vestes, como enquadra isso na sua tese? Há coisas misturadas. Em países como a Arábia há uma submissão esclavagista completa, do ponto de vista civilizacional. Aquilo é uma América frustrada. Aquilo não tinha existência real foi criada pelo petróleo. É uma reinvenção no século XX feita pelo dinheiro. É a mesma ideologia e o mesmo tipo de sonho, o que os americanos já não podem fazer porque há uma certa resistência interna, é realizado e executado naquele país. É um país artificial. Já o caso do Irão é diferente, afirma a sua cultura, língua e forma de ser, e o seu xiismo que também tem que ver com a luta contra a Arábia do lado controlada pelo dólar americano. O islão está a afirmar-se de uma forma interessante. Está a encontrar dentro de si próprio – religião, cultura e passado – elementos que vão ser decisivos para o futuro. O islão está-nos a rodear. Nós
“O islão está a afirmar-se de uma forma interessante. Está a encontrar dentro de si próprio – religião, cultura e passado – elementos que vão ser decisivos para o futuro. O islão está-nos a rodear. Nós estamos ligados a ele, até pelo nosso passado e pela nossa cultura ibérica”
estamos ligados a ele, até pelo nosso passado e pela nossa cultura ibérica. E é nesta cultura comum do Mediterrâneo que vamos encontrar qualquer coisa de interessante e mais importante que as eventuais divergências e guerras que ainda existem. Há qualquer coisa de aproximação e reconfiguração que pode ser importante para aquilo que poderá ser o Mediterrâneo. Mas não há efeitos negativos em relação, por exemplo, ao papel da mulher nessas sociedades? Nós esquecemos que na nossa sociedade as mulheres também são espezinhadas. É evidente que aqui é de uma forma muito mais camuflada e a mulher tem mais mecanismos de defesa, pode e sabe defender-se melhor e tem armas para isso, no entanto esta opressão faz parte também da nossa cultura e civilização, principalmente do Mediterrâneo. Conhecemos mal o mundo nórdico, onde a mulher por razões históricas teve sempre um papel mais autónomo. Mas lá também são oprimidas e espezinhadas, embora menos. O processo das mulheres conquistarem uma certa igualdade é muito longo. Ainda estamos muito longe de uma sociedade igualitária. Está a acontecer nas classes superiores e educadas, mas na maioria da sociedade ainda não. Aí a mulher faz o seu trabalho e ainda tem de ir para a cozinha, tem de tratar da casa e dos filhos. Por outro lado, nas sociedades camponesas há uma tradição diferente. A mulher sempre teve um papel autónomo. Tinha o seu mundo. Esse tipo de divisão do trabalho deu à mulher camponesa um tipo de autonomia que se sente na sua participação e na sua capacidade de tomar a palavra, muito mais do que na mulher no mundo pequeno-burguês. Não se pode dizer que o islão nasceu de um certo impulso para a igualdade, as
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DR
pessoas são submissas apenas perante Deus e iguais nessa adoração? O islão é uma religião irmã do cristianismo, com o judaísmo completa-se as religiões do Livro. Surgiu para facilitar uma melhor organização da sociedade. No planeta Terra, os pobres trabalham e os ricos vivem. Como todas as religiões do Livro serve para dar alento ao pobre. São religiões salvíficas, em que o pobre sofre na terra, mas vai para o céu, em que o rico não conseguirá entrar nem pelo buraco de uma agulha. Os pobres vão ser donos lá em cima e vão-se vingar no céu. Não pode ter duas leituras, a religião não pode ser emancipadora também na terra? Não, todas as religiões prometem coisas para o futuro. Elas têm só como função estabilizar a vida das pessoas neste momento. Permitir que a sociedade não entre em ruturas, revoluções e insubmissões. Manter uma sociedade que está bem hierarquizada. A religião permite a imposição de uma submissão de uma forma muito mais inteligente: aqui na Terra tens de alimentar os barrigudos dos patrões, mas lá em cima quem vai mandar és tu. É sempre a compensação do sofrimento aqui. A grande vantagem do islão é que tem uma linguagem mais popular e menos complicada. O mundo dos vários cristianismos criaram uma linguagem que roça o esoterismo, com poderes tão complexos em que temos de passar por vários intermediários. É isso que o islão anulou. O islão criou uma ligação inédita nas regiões anteriores, que é uma ligação direta entre o crente e a grande divindade. Não há uma classe sacerdotal, salvo naqueles que não falam árabe, como os persas, em que para lá aceder precisavam dos mullahs? É a questão do árabe, porque a língua é a
língua sagrada. Esse contacto direto faz com que o crente dialogue diretamente com o grande e o Deus das barbas, que é uma novidade enorme nas religiões, nas outras é muito difícil de penetrar. Isso não quer dizer que os muçulmanos não sejam iguais aos crentes de outras religiões e não tenham também o seu politeísmo. Em todas as sociedades de todo o Mediterrâneo os camponeses continuam a ter todos os seus santinhos de proximidade que tratam das coisas pequenas: dores de garganta, do sexo que não funciona, de todas as coisas importantes, enquanto as grandes religiões tratam do exoterismo total do crente com a grande divindade. Essa postura não tem nada que ver com aquela pequenina dos de baixo, com os seus pequenos santinhos: em que as mulheres vão ter com o seu santinho pondo-lhe problemas diretos, de nascimento e dores de barriga. Isso é tratado pelo santinho da aldeia, que normalmente é um herói local que lá está enterrado. Não é reconhecido diretamente, o grande islão não reconhece os pequenos santinhos, mas são fundamentais para a vida do camponês. Tal como os santinhos desenvolvidos pelo cristianismo. Disse que a arqueologia era uma espécie de história dos pobres, porque revela aquilo que os detentores da escrita, ligados aos poderosos, nos escondem. Isso permite-nos descobrir que fomos historicamente muçulmanos e católicos em épocas diferentes e não vítimas de uma invasão? Se formos camponeses sim, a atividade não mudou. Faz-se sempre o mesmo há centenas de milhares de anos. Obviamente aí não mudam os deuses. Mas quando surge a atividade comercial é quando aparecem os deuses abstratos. O valor do monoteísmo e o Deus único.
“Não houve invasões celtas, como não houve invasões árabes. Nós sabemos hoje que não houve nenhuma invasão árabe, são balelas. São explicáveis pelo próprio sucesso do islão”
Deuses irrepresentáveis e abstratos. O monoteísmo surge nas cidades de grande comércio, na zona do Líbano, da Fenícia. Não é por acaso que naquela zona é onde nascem as religiões monoteístas. Muitas das religiões orientais começam a implantar-se e a espalhar-se. Temos ainda poucos dados sobre todo este processo. A nossa formação académica está muito ligada ao período do século XIX, muito devedora de um certo pangermanismo que criou aquilo que é hoje a nossa história: os visigodos e os celtas. Foi tudo inventado pelos alemães. Não existiam? Não se sabe. São necessidades políticas que os inventaram. Os lusitanos são o mesmo género de invenção? Não há nenhuns lusitanos. São zonas de pastorícia. Os pastores da Serra da Estrela eram temporários, havia já transumâncias. Não é claro. O que sabemos é que, do ponto de vista histórico e arqueológico, há 40 anos que buscamos os visigodos e celtas, e eles nunca apareceram. Nada. Nunca apareceu tal coisa. Um zero absoluto. É evidente que faz parte dos nossos manuais. Agora, que tenha havido, em Toledo, uma família de origem europeia que por razões várias se ligou a uma casta senhorial e constituiu um reino visigótico, isso é possível, mas são situações contadas pelos dedos. É perfeitamente plausível, mas isso não tem nada a ver com invasões visigóticas, nem celtas, como constam nos livros. A que propósito viriam para cá? Podem ter sido expulsos pelos hunos? Essas são as nossas justificações. As populações da zona dos bálticos e de parte da Alemanha são maioritariamente braquicéfalos, e nós já escavamos quase 4000 pessoas em cemitérios, e nunca apanhamos cá nenhum braquicéfalo. Não houve invasões celtas, como não houve invasões árabes. Nós sabemos hoje que não houve nenhuma invasão árabe, são balelas. São explicáveis pelo próprio sucesso do islão. Um milagre que em poucos anos espalhou-se por todo o Mediterrâneo. Daí dizer-se que eles eram tantos que só podiam ser uma invasão. Coitadinhos de nós! Mas não é isso que faz expandir as religiões. As religiões nunca foram levadas pela espada, mas pelo comércio. O facto religioso é um facto pacífico. Não é a matar que isso acontece. Nós habituamonos a pensar que era assim, por causa do tempo colonial, julgando que era a espadeirada que se resolvia tudo. E nem aí foi assim. Foi a ocupação económica, que veio a seguir, é que impôs a religião dos senhores. Mas no mundo antigo nem pensar em impor pela espada. Tem de haver um diálogo e o diálogo era feito no comércio. O comerciante chegava a um porto e não podia matar o seu comprador. Com as novas ideias que vieram surgiram as ideias religiosas. O ato de conversão é sempre um ato pacífico. Aquilo que estudamos dá-nos é uma informação importantíssima de continuidade e de proximidade entre as pessoas do Mediterrâneo. As investigações têm evoluído nesse sentido. Temos vindo a descobrir arqueologicamente no sul de Portugal que há uma presença muito sólida e prolongada do mundo berbere. Esta é a grande novidade do nosso trabalho. Começamos a apanhar uma grande ligação em termos toponímicos e micro toponímicos à língua tamazigue, que é a língua berbere. Nuno Ramos de Almeida
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CAMPEONATO GASTRONÓMICO INATEL
BONS PRATOS A DE NORTE A SUL
s equipas de Cerveira (1.º) e Entre-os-Rios (2.º), representantes da região Norte, Vila Ruiva (1.º) e Piódão (2.º), da região Centro, Albufeira (1.º) e Foz do Arelho (2.º), da região Sul, foram as vencedoras da primeira fase do campeonato. A última prova decorre a 25 e 26 de maio, no hotel da Foz do Arelho, onde participam três equipas finalistas e duas unidades hoteleiras convidadas, das ilhas de Porto Santo e Flores. Para o apuramento dos pratos vencedores, a avaliação é feita pelos clientes, mediante o preenchimento de um formulário entregue antes da refeição. Bom apetite!
Inatel Cerveira Hotel Naco de Vitela com Ratatouille e batata gratinada Ingredientes 1,2 kg Vitela Vazia; 20 ml Molho demi-glace; 1 kg Batatas; 1 l Natas; 50 g Ovos; 20 g Sal; 20 g Oregãos; 400 g Beringelas; 400 g Curgetes; 400 g Cebolinhas; 400 g Cogumelos; 400 g Pimentos; 200 g Salsa; 250 g Manteiga; 200 g Casca de limão. Preparação Corte os medalhões de vazia depois de lhes tirar as peles duras e as gorduras. Num sauté bem quente sele os medalhões dos dois lados e reserve. Batata gratinada: Corte a batata em chips, tempere com sal e envolva as natas. Forre um tabuleiro com papel vegetal e acame esta mistura. Leve ao forno a 180º C, mais ou menos 45 minutos. Desenforme em frio e corte triângulos de batata, leve ao forno com um fio de azeite durante 10 minutos. Ratatouille: Corte os legumes todos em mirepoix fina. Leve a saltear com um pouco de azeite por ordem de espessura dos legumes. Regue com um pouco de caldo de carne e tempere com sal e orégãos. Manteiga Maitre d’Hotel: Amassar a manteiga, a salsa picada e o sumo de limão até ficar homogénea, fazer rolinhos e cortar em rodelas. Empratamento: Emprate o medalhão em cima do molho demi-glace e coloque uma rodela grossa de manteiga Maitre d’Hotel em cima. Acompanhe com o triângulo de batata gratinada e um pouco de ratatouille.
Inatel Vila Ruiva Hotel
Juntar a alheira com o preparado de maçã e deixar cozinhar. Cortar a massa folhada em pedaços, colocar um pouco de recheio e enrolar em forma de croissant.
Folhado de Alheira de Urtiga Ingredientes 2 un. Massa Folhada; 220 g Alheira urtiga; 100 g Maçã Golden; 50 g Açúcar; 10 ml Azeite. Preparação Pré-aquecer o forno a 180 graus. Picar a maçã sem pele em pedaços pequenos e colocar numa frigideira com azeite. Deixar cozinhar até que obtenha uma consistência macia. Retirar a pele da alheira e cortar em pedaços pequenos.
Inatel Albufeira Hotel Cataplana de Peixe Ingredientes 4 kg Tamboril e outros peixes; 1 kg Camarão selvagem; 2 kg Batatas; 1 kg Ameijoa branca; 1 kg Pimento; 1 kg Tomate redondo; 300 ml Azeite; 200 g Alho; 100 ml Vinho; 1 kg Cebola;
Coentros secos q.b.; Creme de marisco q.b.; Louro q.b.; Sal q.b.; Pimenta q.b. Preparação Tempere os peixes com sal grosso. Numa cataplana, junte metade das cebolas cortadas às rodelas e metade dos pimentos cortados em juliana e regue com azeite. Adicione o peixe e tempere com vinho branco e brandy, junte o resto das cebolas e do pimento em juliana e coloque sobre o peixe. Em seguida, adicione o tomate maduro, sem peles e sementes, finamente cortado, os dentes de alho, louro, um ramo de salsa. Para finalizar, decore com presunto, camarão e ameijoas. Vai ao fogo durante 15 minutos. A cataplana é servida com batatas previamente cozidas à parte, cortadas às rodelas, dispostas em volta da mesma.
TL mar-abr 2018 15
Viagem
Revisitar D. Quixote entre a fantasia e a realidade Paisagens de Villanueva de los Infantes, Campo de Criptana ou El Toboso são alguns dos cenários que trazem ao nosso imaginário as aventuras e desventuras do “Cavaleiro da Triste Figura”
“N
um lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo...”, assim começa uma das mais célebres obras da literatura ocidental, Dom Quixote de la Mancha, cuja primeira parte foi publicada em 1605. Miguel de Cervantes, romancista, dramaturgo e poeta castelhano, que viveu numa época de guerra e com uma passagem pela prisão, dedicou a maior parte da sua existência à obra literária. Morreu em 1616, um ano após terminar a segunda parte do seu extraordinário livro, considerado o mais lido e traduzido em todo o mundo, a seguir à Bíblia. Ao longo deste itinerário imaginemos o herói cervantino, D. Quixote, montado no seu esquálido cavalo, Rocinante, ao lado do seu escudeiro, Sancho Pança, a percorrer o território da Mancha – derivada da palavra árabe manxa (terra árida) –, lembrando a sua busca: “Alcançar a estrela inatingível.” Chegamos a Ciudad Real. Aqui se encontra o Museu del Quijote e a Biblioteca Cervantina. Visitamos a Catedral de Santa Maria del Prado. Segue-se a Plaza Mayor, onde se podem provar os vinhos e os queijos da região manchega, aos sons musicais do relógio carrilhão, inaugurado em 2005, numa varanda da praça, com as figuras de Cervantes, D. Quixote e Sancho. Seguimos para Villanueva de los Infantes. Localidade com uma arquitetura predominantemente renascentista e barroca, cujo
amores era árvore sem folhas nem frutos, e corpo sem alma”, diz Cervantes.
A rosa do açafrão
ex-libris é a casa de D. Diogo de Miranda, a quem D. Quixote chamava o “Cavaleiro do Verde Gabão”.
Ao encontro de Dulcineia Pela manhã vamos a Almagro. Passeamos pelo centro histórico, perto da Plaza Mayor encontra-se o Museu Nacional de Teatro, no Palácio Maestral, exclusivamente dedicado à atividade cénica de Espanha. Nesta localidade realiza-se um importante festival internacional de teatro clássico.
ROTA DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA E DO AÇAFRÃO
De 25 a 30 de outubro Partidas: Coimbra | Leiria | Santarém | Lisboa | Setúbal | Évora; Viana do Castelo | Braga | Porto | Aveiro | Viseu | Guarda Informações: Tel. 211 155 779 turismo@inatel.pt | www.inatel.pt
Continuamos para o Campo de Criptana. À nossa frente, uma panorâmica dos moinhos de vento do século XVI. Os famosos moinhos contra os quais D. Quixote lutava, confundindo-os com gigantes, e alvoroçando o escudeiro Sancho: “Quais gigantes?” Depois das paisagens de Mora, Tembleque e Villacañas, chegamos a El Toboso. No Museu Cervantino estão expostas numerosas edições de Dom Quixote de la Mancha, (cerca de 700 volumes publicados em mais de 70 línguas). Segue-se a Casa Museu de Dulcineia, anteriormente conhecida como a Casa de la Torrecilla, onde terá habitado Ana Zarco, que ficou conhecida pelo nome de Dulcineia del Toboso. Na praça junto à Igreja de Santo António Abad, de estilo gótico tardio, encontramos uma estátua de Dulcineia defronte à de D. Quixote, simbolizando o eterno enamoramento, porque “andante cavaleiro sem
De Toledo partimos para Consuegra. Esta pequena localidade organiza a Festa da Rosa do Açafrão, no final de outubro, para celebrar a cultura tradicional de Castilla-La Mancha, com um vasto programa que inclui folclore, gastronomia e artesanato. Visitamos, ainda, um campo de açafrão, o castelo medieval e o moinho de vento Bolero. Em Madrilejos vamos ao Museu do Açafrão e Etnográfico, no antigo Convento dedicado a São Francisco. Queremos regressar a Toledo. Quando caminhamos pelo centro histórico, nas praças e ruas estreitas, por vezes labirínticas, celebra-se a existência deste Património da Humanidade que ao longo do tempo presenteia os nossos sentidos. Entre os históricos edifícios e monumentos da cidade, conhecida pela secular convivência entre cristãos, árabes e judeus, destacam-se a Catedral Primada de Toledo, a Mesquita do Cristo de la Luz, a Sinagoga de Santa Maria la Blanca, a Igreja dos Jesuítas. Na Igreja de São Tomé está patente uma obra-prima de El Greco, O Enterro do Conde de Orgaz (1588). Mais adiante, encontra-se a casa que lhe é dedicada, o Museu de El Greco. E há muitos mais locais de interesse cultural para descobrir. Por fim, uma magnífica vista sobre Toledo pode ser admirada do Miradouro do Vale. E vale a pena lembrar que com D. Quixote podemos “sonhar o sonho impossível”.
16 TL MAR-ABR 2018
desporto “A Seleção Nacional é o resultado do acumular de trabalho ao longo do ano” Gonçalo Nunes
começou no Clube Desportivo de Paço de Arcos, foi contratado pelo Benfica onde esteve um ano na equipa dos juniores e rapidamente despertou o interesse do Sporting, onde tem contrato até 2020. Com passagem pelo clube espanhol Alcobendas e atualmente emprestado ao Paço de Arcos, Gonçalo, de apenas 19 anos, é atualmente segundo melhor marcador da 1.ª divisão de hóquei em patins e presença assídua na Seleção Nacional
C
om 2 anos agarrado às tabelas, e sob o olhar do pai, a dar os primeiros passos de patins no Clube Desportivo de Paço de Arcos. A chorar e com medo de quem já andava no ringue, depressa cresceu, “fez-se homem” e hoje é dele que muitos jogadores têm medo, e é dele que a equipa espera mais um golo para se manter na primeira divisão. De poucas palavras, tímido, Gonçalo foi deixando cair os braços e escapar o sorriso ao longo de uma conversa sobre o amor e dedicação que tem pela modalidade, à qual se dedica a 100% para conseguir alcançar as metas a que se propõe diariamente, “o meu ponto alto ainda está para vir”. Cresceu numa família de hoquista, foi inspirado e hoje é a inspiração para o mais novo dos dois irmãos, que com apenas oito anos admira o Gonçalo e pede que lhe ensine todos os passes e golos executados no ringue. A família é o verdadeiro pilar, amigos são poucos, prefere confiar na família, com quem pode contar: “Não tenho muitos amigos, prefiro ter amigos da família, não sou de me agarrar a pessoas de fora, agarro-me à família.” E se tinha dúvidas de que eles são essenciais para a sua formação como jogador, quando esteve em Alcobendas deixou de as ter, foram 5 longos meses, de altos e baixos, com momentos que prefere não partilhar,
onde percebeu que precisa de estar perto de quem ama. Quando questionado sobre a possibilidade de jogar numa equipa fora de Portugal, Gonçalo responde sem hesitações: “Neste momento já estou preparado, já não estou sozinho, e assim será mais fácil. Vivo com a minha namorada, não dependo de ninguém, pago as minhas contas.” E não esconde que precisará sempre do apoio da namorada, “é uma das coisas que eu peço, que ela venha, para me sentir melhor”. Mas jogar em Portugal será sempre a sua primeira opção. “O hóquei português está a crescer em relação às outras ligas. Está ao mesmo nível do futsal português mas ainda não cresceu no meio televisivo. Há muito potencial para o país, para clubes de topo, mas (os jogadores portugueses) têm que ser mais aproveitados, jogar em equipas de alto rendimento em vez de serem emprestados.” A entrada na Seleção Nacional aconteceu quando tinha 16 anos, entrou na equipa sub-17, mas foi com os sub-20, em 2016, que
viveu o momento mais alto da sua carreira até hoje como campeão mundial de Hóquei em Patins, num jogo contra a vizinha Espanha e onde Gonçalo, aos 7 segundos de terminar o jogo marca o golo do empate e permite à equipa disputar os penáltis e assim levar a Taça para casa. “Foi o meu primeiro ano de sub-20, fo-
mos campeões mesmo por esforço, pela luta, e foi mesmo a acabar que a gente conseguiu dar a volta e depois foi a sorte dos penáltis e ganhámos, claro que me lembro desse dia, foi um momento alto da minha carreira”, um momento partilhado na bancada com a família que acompanha todos os jogos de forma entusiasta. A entrada para a Seleção Nacional não é para Gonçalo sinónimo de estabilidade e conforto: “A Seleção é o resultado do acumular de trabalho ao longo do ano, e vou continuar a trabalhar no clube onde estiver e claro, espero com isso poder voltar à Seleção.” O clube que ambiciona, não esconde, é o Sporting, com quem tem contrato por mais dois anos, mas era na equipa sénior que se imagina a jogar. “O Sporting é um clube que eu gostava de jogar nos seniores, é um clube grande, poderá ganhar o campeonato, as ligas dos campeões, e era esse o clube onde gostava de estar”, e acrescenta: “Pode acontecer, tenho trabalhado para isso, tenho apresentado resultados, mas não sei o dia de amanhã, não sei o que eles pretendem.” Gonçalo pretende continuar a trabalhar. Os seus dias são dedicados ao treino dentro e fora do ringue, sabe que é preciso mais do que apenas treinar com a equipa para ser um jogador de topo e não perde o foco em momento algum, nem no início, nem a meio e no fim do jogo. “Quando acaba o jogo eu não quero ouvir ninguém, prefiro estar no meu mundo, vou para casa descansar e só quando chegar ao próximo treino é que ouço os treinadores e colegas, e é assim que evoluo.” Focado no jogo, “despassarado em casa”, a viver com a namorada confessa que o jantar é muitas vezes preparado por ela, mas é ele quem lava a louça. Não esconde os medos que qualquer jogador sente, como uma lesão ou a impossibilidade de não conseguir jogar mais, mas o maior medo para Gonçalo é terminar a carreira demasiado cedo por falta de contrato. “O pior medo é ter que acabar o hóquei mais cedo por não ter um contrato numa equipa forte, porque monetariamente não é muito alto (jogar Hóquei) e se for para uma equipa abaixo da tabela, sem contrato do Sporting, terei que acabar a carreira. Ou só treinar e trabalhar noutra área porque é assim que se vive no hóquei.” Quando o stick parar e Gonçalo tiver que arrumar os patins de vez, é como treinador que imagina o seu futuro e tem em Jaime, o primeiro treinador, o exemplo. “Foi o treinador que mais me marcou. Ainda hoje, no meu dia de anos, dá-me sempre os parabéns, dos únicos que o faz… E foi das mãos dele que recebi o meu primeiro stick.” O futuro é incerto mas prefere viver a vida no momento, hoje, a jogar no Clube Desportivo de Paço de Arcos, onde se sente completamente em casa, sabe que é um elemento fundamental para a equipa para não descer de divisão, e é com orgulho que veste a camisola de uma equipa que o formou e que faz dele o “Saviola” do hóquei em patins, alcunha pela qual é conhecido mas é com Gonçalo Nunes estampado nas costas que quer alcançar o topo.
Maria João Costa (Texto) Beatriz LORENA (foto)
TL mar-abr 2018 19
TRINDADE UM SUCESSO DA BROADWAY, A LOUCURA DE UM POETA E UM CONTADOR DE HISTÓRIAS
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Fotos: DR
uase Normal, uma adaptação do premiado Next to Normal, chega em maio à sala Eça do Trindade. Um musical rock, integralmente tocado e cantado ao vivo, com encenação de Henrique Feist e direção musical de Nuno Feist. Já a sala Estúdio recebe, também em maio, Mário ou Eu Próprio-o-Outro, na versão de Rogério Paulo, a partir do texto de José Régio, cartas de Fernando Pessoa e poemas de Mário de Sá-Carneiro. Segue-se, em junho, ainda na sala Estúdio, a apresentação de Lições de Dança para Pessoas de Uma Certa Idade, uma adaptação do romance de Bohumil Hrabal por João Lagarto, que interpreta Jyrca, um experiente contador de histórias
QUASE NORMAL
De 5 de maio a 3 de junho, o Teatro da Trindade Inatel recebe Quase Normal, um musical rock escrito por Brian Yorkey, com música de Tom Kitt. Conta a história de uma mãe que luta contra a sua bipolaridade e os efeitos que a doença, e as tentativas da sua cura, têm sobre a família. A encenação é de Henrique Feist e a direção musical de Nuno Feist. Quase Normal é uma adaptação do musical Next to Normal. Tem os ingredientes principais que vão desde a comédia ao drama, sendo considerado unanimemente como um “poderoso musical rock que lida com questões de doenças mentais numa família suburbana, alargando assim a panóplia de assuntos que podem ser explorados em musicais”. Despido de plumas e lantejoulas, neste espetáculo todos são convidados a viver a fantástica história de amor e dedicação de uma família que tinha tudo para ser normal, mas… não o é! Estreou-se Off Broadway, em 2008, e recebeu várias nomeações para prémios, vencendo o Outer Critics’ Circle Award para Best Score (Melhor Partitura). Apresentou-se no Arena Stage (Washington) e chegou à Broadway, em 2009. Foi nomeado para 11 Tonys, vencendo em três categorias: Melhor Partitura, Melhor Orquestração e Melhor Atriz. Venceu também o Prémio Pulitzer para Drama, sendo o oitavo musical de sempre a receber esta honra. Lúcia Moniz, Henrique Feist, Mariana Pacheco, Valter Mira, André Lourenço e Diogo Leite protagonizam duas horas de fortes emoções, num dos melhores musicais que passaram pelos palcos portugueses. Uma produção da ArtFeist – Produções Musicais.
MÁRIO OU EU PRÓPRIO-O-OUTRO
Centrado nos últimos momentos de vida de Mário de Sá-Carneiro, que se suicidou
Um poderoso musical rock, Integralmente tocado e cantado ao vivo
a 26 de abril de 1916 num quarto de hotel em Paris, este espetáculo estreia a 10 de maio, na sala Estúdio do Trindade. A partir de Mário ou Eu Próprio-o-Outro, de José Régio, de cartas de Fernando Pessoa e poemas de Mário de Sá-Carneiro, Rogério Paulo propõe um tecido cénico e performativo sobre o suicídio do poeta, recriando uma relação entre dois personagens, com génese apenas num. Na verdade Sá-Carneiro, não se suicidou, foi suicidado. Pelo Outro, por ele próprio, o espelho de uma mente instável e revoltada em si, de si, para si. A atuação das palavras e os diálogos visuais são criados num jogo de conflito, submissão, superioridade e loucura. Os dois personagens não procuram ser o oposto um do outro, mas sim a personificação de desejos e diferenças que Mário almejava. E deu a vida ao Outro. E o Outro, deu-lhe a morte. Régio, através das suas palavras, conta esse momento: cartas entre Mário e Pessoa ilustram esses pensamentos, e com estes ingredientes a umbigo-companhia de teatro recriou cenicamente um espetáculo, que conta com a interpretação de Anouschka Freitas e Ricardo Barceló.
LIÇÕES DE DANÇA PARA PESSOAS DE UMA CERTA IDADE
Mário de Sá-Carneiro não se suicidou, foi suicidado. Régio conta-nos esse momento
Um caso sério de humor em palco, com João Lagarto a protagonizar Lições de Dança para Pessoas de Uma Certa Idade
A proposta que João Lagarto traz à sala Estúdio, a partir de 14 de junho, baseia-se no romance homónimo do grande autor checo Bohumil Hrabal (1914-1997). Neste monólogo, João Lagarto dá também voz ao narrador Jyrca, antigo sapateiro e um hábil e torrencial contador de histórias, que recorda episódios do seu tempo. Neste espetáculo, Jyrka é um homem que sabe viver e a caminho dos setenta anos conta sem parar, à mesa de um bar, episódios da sua vida e com eles a história do século – desde o tempo do imperador até ao comunismo, passando por duas guerras e Adolf Hitler. Ajudado pelos espíritos do álcool, provoca e dá conselhos à audiência feminina de acordo com os exemplos recolhidos ao longo de uma vida dedicada a consertar os sapatos dos outros. O romance apresenta a façanha muito saudada na altura da sua publicação (1964) de não ter um único ponto final. Parodia a história da antiga Checoslováquia, contrapondo a vida pública do país à vida privada (e lúbrica) do narrador. Para o ator e encenador, os romances de Hrabal “são sempre longos monólogos, é sempre alguém a falar de uma maneira tão divertida que apetece levá-los para o palco de um Teatro popular, onde imagino um público a rir perdidamente”. Uma coprodução de João Lagarto com a Câmara Municipal de Almodôvar e a Casa das Artes - Arcos de Valdevez, em cena até 15 de julho.
20 TL MAR-ABR 2018
Coluna DO provedor
“BRO” VENCE CONCURSO TEATRO NOVOS TEXTOS INATEL A XXI edição premiou Maria de Fátima Ribeiro, com o grande prémio, e Tiago Correia com uma menção honrosa
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Fundação Inatel criou há 21 anos o Concurso Teatro Novos Textos com o objetivo de incentivar os novos autores, a dramaturgia e a escrita dos mais jovens. A última edição recebeu mais de 25 inscrições onde foram entregues dois prémios, o Grande Prémio Novos Textos e Menção Honrosa. Por decisão do júri, o prémio Manuel Rovisco, que premeia jovens autores com menos de 25 anos, não foi entregue na edição 2017/2018. Carla Raposeira, diretora do departa-
mento de Cultura da Fundação Inatel, destaca que para além do prémio monetário, as obras vencedoras são publicadas (já são 30 os livros publicados a partir do concurso) e distribuídas pelos CCD Inatel e bibliotecas. O texto, se encenado no âmbito do concurso de Teatro Amador, tem ainda a oportunidade de ser apresentado no Teatro da Trindade, um desejo que a autora não esconde: “Gostaria que o texto viesse a conhecer o palco, ele nasceu para ser representado e esse é o destino do texto.” Fátima Ribeiro é professora de cinema, mas confessa que esteve sempre ligada à dramaturgia, e que o texto “BRO” já tinha sido escrito há dois anos, uma primeira versão, mas acreditou nele. “Continuei a trabalhar porque pensava e penso em inclui-lo num projeto de teatro e comunidade no Bairro do Condado, em Chelas.” Tiago Correia, ator há 12 anos, encena, dirige, tem um projeto musical e descobriu a escrita como meio para ser melhor em cima do palco, mas a escrita começa a falar mais alto, pede mais tempo e dedicação. A dedicação deu-lhe uma menção honrosa com o texto “Ponto de Fuga”. “A escrita ainda é a mais pequenina de todas as coisas que vou fazendo, mas é a que se está a tornar a mais importante. É a segunda peça que escrevo, com a primeira ganhei o Grande Prémio da SPA, e agora, com a segunda peça que escrevo, venço este prémio com júris que admiro.” Cucha Carvalheiro, Maria João Luís, Rui Pina Coelho foram os membros do júri, que de forma anónima, premiaram os vencedores de mais um concurso que promete continuar, e de uma forma mais revigorada já na próxima edição.
“Poesia em Torga” Miguel Torga homenageado pela Fundação Inatel em Vila Real e Sabrosa
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Dia Mundial da Poesia foi comemorado entre as “fragas” de Trás-os-Montes, para celebrar a vida e obra de Miguel Torga. Depois de Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa, José Régio e Natália Correia, a Fundação Inatel quis dar a conhecer quem “manda para lá do Marão”. Um dos objetivos principais da iniciativa era descentralizar e diversificar o universo de poetas e escritores, bem como contribuir para a divulgação do património literário português. Ao longo de dois dias, 21 e 22 de março, Torga foi discutido, declamado e elogiado por muitos. No dia 21, a Inatel reuniu Vila Real à mesa para uma tertúlia sobre o poeta, com a participação de Maria Hercília Agarez (professora e escritora), João Luís Sequeira (diretor do Espaço Miguel Tor-
ga), e Domingos Lopes (professor universitário), que conhecem e estudam a obra de Miguel Torga e que se identificam com a escrita do poeta, com a descrição do que via e vivia. No dia 22, em Sabrosa, o auditório municipal encheu-se para um espetáculo que pôs à prova todos os sentidos do público. Sob a direção artística de Luís Oliveira, o espetáculo contou com o ator José Pinto; a atriz Sara Barros Leitão, acompanhada pela viola amarantina de Eduardo Costa, na leitura do Manifesto pela poesia “O vento das palavras”, escrito por João Pinto Coelho; os Peripécia Teatro; Rui Oliveira com um projeto de poesia cantada e Luís Antero num concerto onde os sons da natureza prevaleceram. Houve ainda espaço para o projeto Fado ao Centro – Fado de Coimbra, e a apresentação de uma curta-metragem, “Brinquedo”, do agrupamento de Escolas Miguel Torga.
A Alentejana de novo Portuguesa 12 Anos depois a Volta ao Alentejo é em português, Luís Mendonça levou a amarela para casa
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om início em Torres Novas, a 14 de março, a Volta ao Alentejo voltou a desafiar 21 equipas a pedalar 751,9 quilómetros de competição, com o regresso do contrarrelógio, nove anos depois. Ao longo das seis etapas, o pelotão da 36.ª Volta ao Alentejo lutou por quatro camisolas que representam outras tantas lideranças. Além da amarela, das mais desejadas, os mais jovens competiram pelo Prémio da Juventude, representado na camisola branca da Fundação Inatel, um prémio que o diretor da prova, Joaquim Gomes, destaca: “oferece aos corredores mais jovens a oportunidade de participarem num evento internacional, e é a este nível, que a camisola, o símbolo de liderança dos mais jovens acaba por ter o apoio da Fundação Inatel, a camisola branca, que diariamente vai desseguir o melhor jovem em prova.” Mark Downey (Team Wiggins) foi o jovem irlandês vencedor da camisola branca da Fundação Inatel, e foi o terceiro classificado da prova depois de ter estado na liderança durante três dias e de ter perdido para Luís Mendonça. A última etapa começou em Castelo de Vide e terminou em Évora com o chegar sufocante do corredor da Aviludo-Louletano, Luís Mendonça: “Há quatro anos andava aí noutras andanças e agora é só ciclismo, quem diria que estaria aqui a vencer a Alentejana 30 anos depois do meu ídolo de infância ter vencido, é um orgulho enorme.” Joaquim Gomes é o ídolo de Mendonça, e não esconde que a 36.ª Alentejana foi uma união de coincidências felizes: “A realidade é que em 1988 representei o Louletano, e a única vez, e tendo representado essa equipa, só um ano, é dos locais onde deixei mais amizades, portanto, passados 30 anos e assinalando a minha vitória de 1988, ter um corredor de Loulé a vencer a prova é terminar com chave de ouro.” A “maldição” foi quebrada e o ter sido um português a vencer é a prova de que “o ciclismo português está em alto nível, não são só os estrangeiros que conseguem ser brilhantes, estamos em alto nível, somos às vezes até superiores”, afirma Luís Mendonça. A classificação geral da 36.ª Volta ao Alentejo ficou completa com os nomes de Ricardo Mestre (W52/FC Porto) na segunda posição, a 8 segundos de Mendonça, e de Mark Downey (Team Wiggins), na terceira posição a 11 segundos.
Manuel Camacho
provedor.inatel@inatel.pt
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os 90 minutos Portugal estava a perder 1-0 num jogo amigável com o Egito. E eis se não quando, nos escassos minutos de compensação, o Cristiano Ronaldo faz dois golos na sequência de duas assistências de Ricardo Quaresma. Nem tinha estado a dar muita atenção ao jogo, mas de repente dei por mim a pensar: Isto somos Nós! Uma mistura de gentes e de raças, cheios de arte e engenho, com um ritmo e um “saber fazer ” nem sempre dentro daqueles padrões mais ou menos predefinidos. Recuei então 20 anos e encontreime em pleno Parque das Nações, nessa altura um autêntico “estaleiro” porque estávamos a dois meses da inauguração da Expo’98. Tive nessa altura o privilégio de visitar o espaço, acompanhado de profissionais de várias áreas intervenientes na finalização dos trabalhos, e sentir de perto a evolução dos mesmos. Éramos cerca de duas dezenas de “visitantes” interessados e, confesso que um pouco incomodado, fui ouvindo aqui e ali alguns comentários passando a mensagem de que a Expo ia ser um “fiasco”, porque era impossível finalizar os trabalhos no prazo previsto... Era a já tão conhecida atitude de “Velho do Restelo”! Ainda hoje estou a aguardar que me paguem meia dúzia de jantares, resultantes da aposta que fiz nessa altura, como estaria tudo impecável no dia 22 de maio de 1998. E estava mesmo tudo impecável. Aquele dia foi um acontecimento inolvidável e de grande prestígio para todo o país. Podia dar-vos aqui muitos outros exemplos de como somos Nós – e não vale a pena inventar e/ou procurar comparações. No passado recente, como no mais longínquo, encontramos inúmeros exemplos que provam o diferente que somos enquanto povo, enriquecidos pela mistura de raças, culturas e saberes que resultaram nesta miscelânea fantástica de que tanto me orgulho. Que bom ter nascido aqui.
TL mar-abr 2018 21
VER
OUVIR
Beijos roubados
Capa do álbum “Recomeçar” de Tim Bernardes
“Cinema Paraíso”, óscar melhor filme estrangeiro, volta às salas em cópia digital remasterizada
Ammore e Malavita, de Antonio Manetti, Marco Manetti | Itália, 2017 Com: Giampaolo Morelli, Serena Rossi, Claudia Gerini. •Surpreendente regresso da comédia à italiana (em tom musical, género… ‘breakdance’) com uma história de amor delirante, à mistura com um ajuste de contas atribulado entre mafiosos napolitanos. Premiado em Veneza.
Esplendor, de Naomi Kawase | Japão, 2017 Com: Masatoshi Nagase, Ayame Misaki, Tatsuya Fuji. •A crítica elogia-lhe a elegância filosófica, a fluidez narrativa, a sublime atmosfera poética. Se há uma palavra que melhor se aplica a “Esplendor” – história de amor entre “uma jovem escritora de versões para invisuais e um fotógrafo mais velho que está a perder lentamente a visão” – é humanismo.
Na Síria, de Philippe Van Leeuw | França / Bélgica, 2017 Com: Hiam Abbass, Diamand Bou Abboud, Juliette Navis. •Do quotidiano de uma família enclausurada no seu apartamento nos arredores de Damasco com a guerra a acontecer “lá fora”, trata “Insyriated”, no título original, filmado no Líbano. Para denunciar a violência o cineasta “mostra-a” fora de campo. O que interessa, é dar a ver como existem, como se organizam e sobrevivem essas pessoas à loucura brutal e terrível que as ameaça. Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore | Itália/França, 1988 Com: Philippe Noiret, Jacques Perrin, Salvatore Cascio. •O regresso ao grande ecrã de uma obra muito amada dos últimos trinta anos. Entre a nostalgia e o realismo, “Nuovo Cinema Paradiso”, marca o fim de uma era – a dos grandes cinemas que desapareceram. Impossível esquecer a cena final, dos beijos roubados. Música de Ennio Morricone.
Acerta o Passo, de Richard Loncraine | GB, 2017 Com: Celia Imrie, Imelda Staunton, John Sessions, Joanna Lumley. •Uma comédia dramática-romântica, pouco convencional e assaz divertida, centrada no despertar para a vida de uma mulher irascível de meia idade que é traída pelo marido e se muda para casa de sua irmã. Do mesmo realizador do thriller-fantástico shakespeariano, “Ricardo III”.
Ilha dos Cães, de Wes Anderson | EUA, 2018 Animação. Com (vozes): Bryan Cranston, Edward Norton, Liev Schreiber. •Fábula política, comovente e inventiva, sobre a intolerância e o poder da amizade, à volta de um autarca corrupto que decreta o exílio a todos os animais de estimação caninos numa ilha-lixeira… Um prodígio visual, cheio de humor e emoção.
Joaquim Diabinho [O autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
A Canção – Novas revelações e audições intemporais
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través da audição de uma canção podemos vivenciar diversas reações emocionais: tristeza, nostalgia, felicidade, alegria… São sensações provocadas em nós pela imaginação de quem as compõe e de quem tem a capacidade de tocar o outro através da letra e da melodia. Muitas vezes essas canções acompanham-nos pela vida. Resolvem momentos difíceis, ajudam a tomar decisões. Nesta coluna a canção será o elo de ligação de três concertos, que humildemente considero imperdíveis. Não posso deixar de partilhar algumas das descobertas sonoras que vou fazendo. O Tim Bernardes foi uma delas. Vocalista da recente banda brasileira O Terno, com fortes influências de grupos como os Beatles, Mutantes ou Clube da Esquina, Bernardes lança “Recomeçar”. Nesta estreia enquanto cantautor assina tudo: composição, voz, coros, guitarras, pianos, bateria, baixo, órgão, mellotron, percussões, autoharp e metalofone num jogo perfeito de sons e silêncios. Todas as canções incorporam um sentimento denso, com uma seriedade crua nas letras e bonito lirismo na voz e instrumentação. Com maturidade e um extremo bom gosto, Bernardes brinda-nos com uma expressão brutalmente honesta onde o triste encontra o belo, onde a complexidade das dúvidas e lamentos da mente se tornam memórias, diálogos, divagações; uma viagem sonora entre a simplicidade e a fuga à realidade. Bernardes vai dar que falar. Estará na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, a 14 e 17 de junho; na Casa da Cultura de Setúbal, a 15 de junho, e no Auditório de Espinho, a 16 do mesmo mês. Vindo também dos trópicos, outro grande artista passará por Portugal para nos apresentar o seu mais recente trabalho. Falo de Chico Buarque. Para quem conhece o
cancioneiro de Chico, o seu 38.º álbum “Caravanas” é mais uma bonita soma de canções com metáforas sobre amores e relacionamentos na primeira e terceira pessoa, aspetos sociais e claro, o samba e o futebol. São ao todo nove canções sólidas com várias parcerias, em que destacamos o cantor Edu Lobo, o baixista Jorge Helder ou a sua neta Clara Buarque. Estará nos Coliseus do Porto a 2 e 3 de junho, e Lisboa a 7, 8 e 9 de junho. Do outro lado do Atlântico, tivemos este ano o regresso de Sérgio Godinho com o álbum “Nação Valente”. Na longínqua década de 80 do século passado, Godinho fez um álbum de parcerias com músicos do Brasil (entre outros, Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco, Chico Buarque) cujo resultado foi uma panóplia de lindas canções que ficaram na memória coletiva, sendo um dos trabalhos mais reconhecidos do seu público. Passados 35 anos brinda-nos com novas parcerias, desta vez, com músicos portugueses. Com letras da sua autoria, o trabalho resulta de várias colaborações com José Mário Branco, Hélder Gonçalves, Nuno Rafael, Pedro da Silva Martins e Filipe Raposo. O cantautor irá apresentar-se de forma inédita com a Orquestra Metropolitana, sendo a primeira vez que o compositor canta os seus temas com arranjos para orquestra. Irá apresentar-se de 5 a 8 de julho, no Teatro Municipal São Luiz. Não querendo entrar em questões académicas musicológicas, omitindo especificidades de forma, conteúdo, género e estética, de um modo simples, a canção é a forma musical e literária mais antiga em que a relação entre o texto e a música ganha uma configuração poética capaz de imprimir sentimentos, legitimando-os e levando os ouvintes a outros lugares. Escrever uma Canção é um desafio superado apenas por alguns. Bons concertos! Susana Cruz
22 TL MAR-ABR 2018
Os contos do zambujal
NÃO DEIXOU DE SER QUEM ERA
O
vento assobia lá fora e a chuva bate em rajadas na vidraça da janela. Está um dia triste, Margarida vai colocando a roupa e mais pertences em duas malas grandes, nada ficará no apartamento de Rodolfo Silvedo, onde vive e com quem vive vai para seis anos. Ia para seis anos, tempo de encantamento e Margarida não entende a transformação de Rodolfo nos últimos meses. O homem amoroso, risonho, carinhoso ao ponto de fazer todas as vontades e repetir várias vezes ao dia, “Sim, Margarida, meu amor”, passara a personagem sombria, agreste no pouco falar, seco, frio, ausente. Desde o início tinha sido uma relação alegre e terna, e ele proferia a cada passo aquela expressão mágica: “Margarida, meu amor.” Mais de cinco anos de convívio enternecido e, subitamente, Rodolfo surgia-lhe como um desconhecido, de modos e palavras sem carinho, diferente, tão diferente do jovial companheiro que a fazia feliz. Por isto Margarida tem os pensamentos divididos, amargurada pelo epílogo do romance, firme na decisão de partir, o homem que se encontra na sala ao lado não se assemelha ao que conheceu por casualidade, apresentado por uma amiga comum. Lembra-se como logo nesse
momento o achou divertido e atraente, a graça com que lhe suplicou o número de telefone, no dia seguinte o telefonema a convidá-la para jantar e nessa mesma noite o desafio para a vida em comum e definitiva, no fim a imploração: “Diz que sim, Margarida, meu amor.” Poderia ter sido entusiasmo passageiro ou conversa de sedutor de pouco crédito. Mas Margarida, sentindo-se tão fascinada como Rodolfo dizia estar por ela, aceitou o repto. Passaram anos felizes sem que Margarida tivesse a menor razão para se arrepender, ao contrário, Rodolfo confirmava-se como o perfeito parceiro de vida, pródigo em mimos, e aquela amabilidade – “Sim, Margarida, meu amor” – a qualquer sugestão dela, fosse para um passeio, ida ao cinema, ou ideia de ser ela a cozinhar para o jantar: “Sim, Margarida, meu amor.” Vai dobrando e emalando os vestidos e casacos com que tantas vezes acompanhou Rodolfo, sempre unidos e de mãos dadas, e repetidamente pergunta a si própria: “Porquê?”. Não encontrava resposta no seu comportamento, em momento nenhum deixou de ser a companheira afectuosa que ele tanto louvava, e nem uma desavença, um arrufo, tinham manchado o bem-estar do casal. Se ao menos ele falasse, explicando tão abrupta mudança
Mário Zambujal
de atitude, Margarida poderia compreender ou desfazer qualquer equívoco. Mas todo ele navegava em silêncios e quando, por uma vez, Margarida o interpelou, a resposta foi curta e vazia: “Deixa-me em paz.” Agora Margarida também quer a paz do afastamento, não suporta viver ao lado da sua desilusão. Voltará para o pequeno apartamento onde era feliz antes de lhe ter chegado a felicidade maior de repartir a vida com Rodolfo Silvedo. Fecha as malas e toma o caminho da porta, passará pela sala onde, indiferente, se encontra a distorcida imagem do homem que sempre a tratava por “Margarida, meu amor.” Rodolfo nem se oferece para a ajudar no carrego das malas até à porta. Olha-a, apático, sem uma palavra. É ela que solta a palavra final e sem resposta: “Adeus”. E sai. Dois minutos depois volta o sorriso, há tanto arredio, no rosto de Rodolfo. Segura no telefone, marca um número, todo ele parece diferente do homem taciturno dos últimos meses. É em voz animada que diz: – Tudo resolvido, caminho livre. Fui obrigado a fingir-me um sujeito detestável para ela desistir de mim. De outro modo não sairia e eu era incapaz de a mandar embora, conheces o meu bom feitio. Hoje já podes vir viver comigo. E vem já, Susana, meu amor.
josé Alves
TL mar-abr 2018 23
Passatempos
agenda inatel
Palavras cruzadas POR josé lattas 1
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ATIVIDADES CULTURAIS E DESPORTIVAS
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BEJA
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Circuito Inatel BTT, Ferrobico – Por Terras de Mato, 27 de maio, Cabeça Gorda.
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BRAGA
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“Braga Fado” – Jovens fadistas 25 de maio, Inatel de Braga, Av. Central, 77. entrada livre. “Bandas destas Bandas” – Comemorações 10 de Junho. Encontro de Bandas, praça Eng. Armando Rodrigues, Póvoa de Lanhoso.
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COVILHÃ
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HORIZONTAIS: 1-Banheiras; Calculam. 2-Ave pernalta, semelhante à avestruz; Também; Ergo. 3-Nobélio (s.q.); Assobia; Sufixo, formador de substantivos masculinos, derivados de nomes, que indica uso ou serventia, ou aumentativo. 4-Escarneça; Cólera. 5-Adaptação às circunstâncias, para delas beneficiar. 6-Reboca; Terceira letra, do alfabeto grego. 7-Altar, em que se oferecem sacrifícios; Gemidos (inv.); Apelido de heroína francesa. 8-Nota musical; Érbio (s.q.). 9-Recato. 10-Gálio (s.q.); Grau ou insígnia de doutorados; Ástato (s.q.). 11-Limo; Adivinho.
VERTICAIS: 1-Esticado; Encharca. 2-Intrínseco; Preposição, que traduz a ideia de movimento; Alumínio (s.q.). 3-Sódio (s.q.); Trajecto. 4-Arau; Cuspo. 5-Bermas; Partícula, que exprime exclusão ou alternativa (inv). 6-Titânio (s.q.); Prefixo, com o sentido de dentro, no interior de. 7-Sardinha muito pequena; Sufixo, com o sentido de pequenez, diminuição. 8-Melodia; Sobem. 9-Nota musical; Dispneia. 10-Ferro combinado com carbono e endurecido pela têmpera; Disposição; Prata (s.q.). 11-Atado; Vila e concelho do Distrito de Portalegre.
Soluções: 1-TINAS; PESAM. 2-EMA; ATE; IÇO. 3-NO; APITA; OL. 4-S; RIA; IRA; M. 5-OPORTUNISMO. 6-ATOA; GAMA. 7-ARA; SIA; ARC. 8-LA; B; N; A; ER. 9-A; CAUTELA; A. 10-GA; BORLA; AT. 11-ALGA; A; MAGO.
Sudoku POR Jorge Barata dos Santos Problema n.08 Prencha a grelha com os algarismos de 1 a 9 sem que nenhum deles se repita em cada linha, coluna ou quadrado.
Soluções:
CINEMA AO AR LIVRE – De maio a agosto, às 21h30. As três primeiras sessões incluem curtas-metragens dos alunos do Curso de Cinema da UBI: O Desassalto e Gato Preto, Gato Branco, 18 de maio; Em vez de mimos, semeava ovos nas costas e A Residência Espanhola, 25 de maio; Criados na Serra e Casablanca, 1 de junho. Million Dolar Baby, 8 de junho; A Vida é Bela, 15 de junho; O Padrinho, 22 de junho; Mamma Mia!, 29 de junho; Os Condenados de Shawshank, 6 de julho; Master e Commander, 13 de julho; O Pianista, 20 de julho; Cinema Paraíso, 27 de julho; Avatar, 3 de agosto; A Canção de Lisboa, 10 de agosto.
ÉVORA
Exposição, 23 a 30 de junho, Galeria Inatel, Palácio do Barrocal: O Surrealismo, de Eusebio Loro. Encontros de Música Tradicional Portuguesa: Beira Serra – Associação Os Malteses (Almodôvar), Aguarela do Divor – União Recreativa Cultural Igrejinhense (Arraiolos), Sons do Campo – Associação Cultural Sons do Campo (Portalegre), 19 de maio, 17h, Praça da República, Arraiolos; Vozes do Imaginário (Évora), Os Alentejanos (Serpa/ Beja), Grupo de Cantares de Santa Eulália (Portalegre), 26 de maio, 21h, Auditório do Centro Cultural de Arronches; Grupo Coral e Instrumental “Amigos da Malagueira” (Évora), Grupo Cantares Cantalagoa (Portalegre), Os Alentejanos (Serpa/Beja), 16 de junho, 21h, Pousada de Alvito. Ciclo de Teatro Inatel: “A MESTRA PATHELINA”, GRUPO TEATRO PENSENNISSO - SOCIEDADE FILARMÓNICA MONFORTENSE, CINE TEATRO CURVO SEMEDO, MONTEMOR-O-NOVO, 12 DE MAIO, 21H30; “ATÉ ÀS BODAS DE OURO”, TEATRO EXPERIMENTAL DE PIAS, CINE TEATRO DE ALTER DO CHÃO, 19 DE MAIO, 21H; “VAMOS A CONTAR MENTIRAS”, GRUPO ALTERENSE DE CULTURA, CINE TEATRO MARQUES DUQUE, MÉRTOLA, 3 DE JUNHO, 18H; “AS ESPINGARDAS DA SENHORA CARRAR”, SOCIEDADE OPERÁRIA DE INSTRUÇÃO E RECREIO JOAQUIM ANTÓNIO DE AGUIAR, SEDE DO GRUPO TEATRO ANIMAÇÃO MOURA ENCANTADA, MOURA, 9 DE JUNHO, 21H30.
LISBOA
Concerto dos Laureados do Concurso de Composição para Orquestra de Sopros,
Fundação Inatel/Banda Sinfónica do Exército, 14 de junho, 21h30, Teatro da Trindade.
GUARDA
Circuito de Jogos Tradicionais, 2 de junho, 15h, Parque Urbano do Rio Diz. Informações: Inatel da Guarda/Associação Jogos Tradicionais da Guarda, Tel. 271 221 729. Caminhada “Sou feliz com a idade que tenho”, 15 de junho, 14h, (Local de partida: Associação Cultural Social e Recreativa da Sequeira; Chegada: Parque do Rio Diz). Informações: Inatel da Guarda/Associação Cultural Social e Recreativa da Sequeira, Tel. 271 033 845.
PONTA DELGADA
ESPETÁCULO DO CURSO DE TEATRO INATEL : “PEÇA ROMÃNTICA PARA UM TEATRO FECHADO”, DE TIAGO RODRIGUES, 24 de maio, 21h30, Teatro Micaelense. Apresentação do trabalho final do grupo de formandos do Curso de Teatro, organizado pela INATEL de Ponta Delgada, em parceria com o Teatro Micaelense. LEITURAS DRAMATIZADAS DE TEXTOS PARA TEATRO – 1.a LEITURA, 30 DE MAIO, 21H, TEATRO MICAELENSE. ENTRADA GRATUITA. A Inatel junta-se ao projeto do Teatro Micaelense e Instituto Cultural de Ponta Delgada, para apresentação de textos vencedores do Concurso Inatel/Teatro Novos Textos. A primeira obra é “O Quarto de Hotel”, de Ana Cristina Valente, vencedora do prémio Miguel Rovisco, em 2006. Inscrições: para ler uma personagem (uma semana antes da Leitura), teatronoteatroleituras@gmail. com | inatel.pdelgada@inatel.pt | bilheteira do Teatro Micaelense.
SANTARÉM
Ópera para Todos: “Dido e Eneias”, de Henry Purcell, 19 de maio, às 16h, Claustro Principal do Convento de Cristo, Tomar. Espetáculo encenado por Carlos Miguel, com o Coro Polifónico da Golegã, dirigido pelo maestro José Dias, solistas formados pela Escola Superior de Música de Lisboa e, ao piano, Francisco Sassetti. Parceria com a Associação Cultural Cantar Nosso, Câmara Municipal de Tomar e Convento de Cristo. Entrada livre.
VISEU
“Vouga Run and Bike” – Prova de BTT e Trail, 23 de junho, Termas de São Pedro do Sul. Parceria com o CCD Termas Hóquei e Clube.