É de Direito Uma Incursão pela Proteção, Atendimento e Justiça de Adolescentes e Jovens

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É de Direito uma incursão pela Proteção, Atendimento e Justiça de Adolescentes e Jovens no Sistema Socioeducativo de Pernambuco

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Cofinanciamento

Coordenação

Realização

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É de Direito

uma incursão pela Proteção, Atendimento e Justiça de Adolescentes e Jovens no Sistema Socioeducativo de Pernambuco

1ª Edição São Paulo Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente 2013 3


CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO Presidente: Carlos Antonio Tilkian Vice-Presidente: Synésio Batista da Costa Secretário: Bento José Gonçalves Alcoforado SECRETARIA EXECUTIVA Administradora Executiva: Heloisa Helena Silva de Oliveira Gerente de Desenvolvimento de Programas e Projetos: Denise Maria Cesario Gerente de Desenvolvimento Institucional: Victor Alcântara da Graça PROJETO É DE DIREITO, PROTEÇÃO E JUSTIÇA PARA CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS Equipe Fundação Abrinq – Save the Children Miguel Benjamin Minguillo Neto (2013) Ana Cristina Dubeux Dourado (2011/2013) Nara Menezes (2010/2011)

Ficha Técnica Texto: Aída Maria Novaes Maia Chagas e Ana Maria Maciel Groarke Edição: Miguel Benjamim Minguillo Neto, Cristinalva Quintino Santos

Equipe Cendhec

Lemos, José Ricardo de Oliveira, Luzinete Virginia Airola da Silva,

Luzinete Virginia Airola da Silva, (2013)

Telma Low Silva Junqueira e Vanja de Melo Cintra Valença

Eduardo Paysan Gomes (2010/2013)

Leitura crítica: Denise Maria Cesario Colaboração: Daniela Resende Florio, Gislaine Cristina de Carvalho, Stéfany Terceiro dos Santos e Victor Alcântara da Graça Revisão ortográfica e gramatical: 2Abad - Pedro Reis Eros Camel | © Camel Press Projeto gráfico e diagramação: Priscila Hlodan Impressão: Infocolor Gráfica e Informática Tiragem: 1.000 exemplares ISBN: 978-85-88060-57-9 Esta publicação é financiada pela União Europeia. As opiniões expressas nesta publicação não refletem as opiniões da Comissão Europeia.

São Paulo, novembro de 2013



APRESENTAÇÃO ..............................................................................................................................................................

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PARTE I – O PROJETO É DE DIREITO: PRINCÍPIOS, ESTRATÉGIAS, RESULTADOS E APRENDIZAGENS 1. Protagonistas do projeto: uma breve apresentação ..................................................................................... 14 2. Gênese e contexto do Projeto .............................................................................................................................. 16 3. Instituições envolvidas ............................................................................................................................................ 19 4. Objetivos e resultados esperados ....................................................................................................................... 20 5. Abrangência do Projeto .......................................................................................................................................... 21 6. Princípios e diretrizes orientadoras ..................................................................................................................... 24 7. Metodologia e estratégias ...................................................................................................................................... 25 8. Ações principais ......................................................................................................................................................... 27 8.1. Estudos para conhecimento da realidade abordada pelo Projeto É de Direito .......................... 27 8.2. Ações de articulação, advocacy e controle social................................................................................... 32 8.2.1 Atividades relacionadas: seminários, reuniões e encontros .................................................... 35 8.2.1.1 Eventos promovidos pelo Projeto É de Direito ............................................................... 36 8.2.1.2 Eventos que contaram com a participação do Projeto É de Direito ........................ 42 8.2.2 Atividades relacionadas: incidência política, controle social e advocacy .......................... 44 8.2.2.1 Incidência e articulações no âmbito local......................................................................... 45 8.2.2.2 Incidência e articulações no âmbito nacional ................................................................ 48 8.2.2.3 Ações de defesa e denúncia .................................................................................................. 49 8.3. Contribuições para ampliação da visibilidade da proposta do Projeto É de Direito ................. 50 9. Ações para qualificar o atendimento nas instituições e nas comunidades ......................................... 51 10. Os caminhos apontados pelo Projeto É de Direito ..................................................................................... 52 10.1. Considerações finais .................................................................................................................................... 52 10.2. Recomendações técnicas para o Sistema Socioeducativo ........................................................... 55 10.3. Recomendações técnicas para o Sistema Protetivo......................................................................... 59

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PARTE II – OS ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE NA REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE: ECOS NO RUÍDO 1. Contexto da pesquisa no Sistema Socioeducativo ....................................................................................... 64 2. Considerações sobre a metodologia de pesquisa ......................................................................................... 66 2.1 Fundamento teórico: posicionamento político e ético da pesquisadora ..................................... 68 2.2 Definição das técnicas de pesquisa da metodologia qualitativa: perfil dos participantes .... 71 3. Avaliação sobre a prática da medida socioeducativa de privação de liberdade: “olhares” de diversos atores .................................................................................................................................... 74 3.1 Entraves no desempenho das instituições e no cumprimento de suas funções ....................... 74 3.2 O que afirmam os outros atores? ................................................................................................................ 80 3.2.1 Narrativas dos técnicos e dos agentes socioeducativos da Funase ...................................... 81 3.2.2 Narrativas sucintas de representantes das comunidades de origem dos adolescentes em privação de liberdade.......................................................................................... 86 4. Experiências dos adolescentes em Centros de Atendimento Socioeducativo na Região Metropolitana do Recife: vivências socioeducativas? ................................................................... 90 5. Narrativas dos adolescentes: refigurações de suas vidas no momento presente .............................. 99 6. Novas velhas visões de futuro ............................................................................................................................... 106 7. E quanto ao porvir? ................................................................................................................................................... 117

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PARTE III – FORMAÇÃO PARA QUALIFICAÇÃO DO ATENDIMENTO E DAS AÇÕES DIRIGIDAS A CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS 1. Propósito e estratégia .............................................................................................................................................. 122 2. Curso de aperfeiçoamento para profissionais das instituições e do sistema de atendimento e justiça na área da infância e da juventude ........................................................................ 124 2.1. Instituições participantes ............................................................................................................................... 124 2.2. Desenvolvimento do processo de formação .......................................................................................... 125 2.3. Perfil dos participantes ................................................................................................................................... 128 2.4. Avaliações sobre a atividade, os resultados e os impactos ................................................................ 129 2.4.1 Capacitações realizadas e público atendido ................................................................................ 129 2.4.2 Análise da atividade e seus resultados ........................................................................................... 130 3. Curso de extensão escola e comunidade: prevenção da violência e promoção da cultura de paz ........................................................................................................................................................ 132 3.1. Instituições participantes ................................................................................................................................ 132 3.2. Desenvolvimento do processo de formação ........................................................................................... 133 3.3. Perfil dos participantes .................................................................................................................................... 136 3.4. Avaliações sobre a atividade, os resultados e os impactos ................................................................. 137 3.4.1 Capacitações realizadas e público atendido ................................................................................. 137 3.4.2 Análise da atividade e seus resultados ............................................................................................ 137 4. Mecanismos de avaliação dos processos de formação................................................................................ 139 5. Implementação de Boas Práticas ........................................................................................................................ 140 6. Aspectos diferenciais e inovadores das atividades de formação ............................................................ 141 7. Curso de facilitador em círculos de justiça restaurativa e de construção da paz ............................... 143 7.1. Conteúdo e metodologia ............................................................................................................................... 144 7.2. Perfil dos participantes ................................................................................................................................... 145 7.3. Análise da atividade e seus resultados ...................................................................................................... 145 8. Os caminhos apontados pela experiência dos processos de formação ................................................ 146

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................................................. 149

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APRESENTAÇÃO

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O marco legal brasileiro na área da infância e da juventude é considerado um dos mais avançados que existe, a começar pela Constituição Federal Brasileira, que deu um passo importante e inovador ao instaurar a doutrina jurídica da proteção integral, onde a criança e o adolescente passaram a ser considerados sujeitos de direito e pessoas em condição especial de desenvolvimento. Subsequentemente, a promulgação da Lei 8.069, em 1990, instituindo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a criação do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) e do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) vieram a reforçar o instrumental jurídico e oferecer condições para o estabelecimento de uma ampla parceria entre o poder público e a sociedade civil na elaboração e no monitoramento da execução de todas as políticas públicas voltadas para a população infantojuvenil. Entretanto, essa renomada referência não assegura, per se, a efetiva proteção na prática, como preconizada no ordenamento legal do país e nas normativas internacionais para garantia dos direitos de crianças e adolescentes. As políticas públicas têm mostrado ser inadequadas e pouco eficientes para fazer frente à situação de frequentes violações de direitos a que está submetido esse grupo populacional, especialmente os adolescentes em situação de cumprimento de medida socioeducativa por haver cometido ato infracional. Um dos exemplos mais claros é a situação precária – por não dizer calamitosa – das unidades do meio fechado do sistema socioeducativo da Região Metropolitana de Pernambuco, confirmada por diferentes estudos e alvo de inúmeras denúncias por abusos de diversa natureza, que são o estopim para rebeliões violentas. Esse foi o contexto de atuação do Projeto É de Direito, Proteção e Justiça para Crianças, Adolescentes e Jovens, um trabalho realizado conjuntamente pela Fundação Abrinq - Save the Children e o Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) com a chancela do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco.

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Ao tratar do problema das violações dos direitos de crianças e adolescentes no âmbito dos sistemas de proteção, atendimento e justiça do Estado, o Projeto propõe, principalmente, a ampliação da perspectiva sobre o tema, desde a valorização dos direitos desta população, a busca pela articulação interinstitucional e pela melhoria das políticas públicas e a qualificação de profissionais e da comunidade, além de introduzir a ótica da Justiça Restaurativa nessa abordagem. Experiências bem-sucedidas no Brasil e no mundo atestam o potencial da Justiça Restaurativa como meio eficaz para lograr as mudanças positivas demandadas, tão necessárias e urgentes, mas que parecem distantes de serem conseguidas através das práticas jurídicas habituais, especialmente no que se refere aos adolescentes em conflito com a lei. Esta publicação procura dar conta do percurso do Projeto É de Direito ao longo de seus 36 meses de duração, entre os anos de 2010 e 2013. O que se pretende é compreender o processo como um todo, considerando os princípios e as estratégias a partir dos quais foram desenvolvidas as atividades para a consecução dos objetivos propostos pela iniciativa, com a consciência de que apenas foram dados os passos iniciais nessa direção. Sabe-se, também, que um desafio dessa envergadura exige a participação ativa e ampliada de todos os setores da sociedade. Ao compartilhar o aprendizado acumulado, as dificuldades encontradas e os êxitos conseguidos nessa trajetória, espera-se poder contribuir no sentido de dar subsídios que apontem os caminhos a serem trilhados a partir da mudança dos atuais paradigmas e da construção de novas perspectivas e alianças.

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I E T R PA

O PROJETO É DE DIREITO: PRINCÍPIOS, ESTRATÉGIAS, RESULTADOS E APRENDIZAGENS

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Protagonistas do projeto: uma breve apresentação1

Fundação Abrinq A Fundação Abrinq é uma organização sem fins lucrativos, criada em 1990, que tem como missão promover a defesa dos direitos e o exercício da cidadania das crianças, para que sejam reconhecidas como sujeitos de suas próprias histórias, com o direito de viver com dignidade, respeito, liberdade e saúde, tendo acesso à alimentação adequada e à educação de qualidade, ao esporte, ao lazer, à cultura e à profissionalização. Seu trabalho é pautado pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ONU, 1989), a Constituição Federal Brasileira (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

Save the Children Internacional A Save the Children é uma organização internacional, plural e independente sob o ponto de vista político ou religioso, cujo objetivo fundamental é a defesa ativa dos direitos e dos interesses das crianças, especialmente as mais desfavorecidas, para ajudá-las a realizar o seu potencial e conseguir uma mudança imediata e duradoura em suas vidas. Foi criada em 1919 e atua em 120 países, principalmente nas áreas de educação, saúde, nutrição, trabalho infantil, prevenção de abuso sexual e reunificação familiar.

A parceria no Brasil Em 2010, a parceria firmada entre a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente e a Save the Children Internacional potenciou o trabalho que ambas as organizações já realizavam em defesa dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil, ampliando a abrangência nacional de seus projetos na área de educação, saúde e proteção. Além de permitir o aumento do público atendido por suas ações, essa aliança outorgou visibilidade internacional a questões relacionadas ao cenário da infância brasileira. A estratégia para a abordagem destas questões inclui, em palavras da própria Fundação, “o estímulo e a pressão para implementação de ações públicas, o fortalecimento de organizações não-governamentais e governamentais para prestação de serviços ou defesa de direitos, o estímulo à responsabilidade social, articulação política e social na construção e defesa dos direitos e conhecimento da realidade brasileira quanto aos direitos da criança e do adolescente”.

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Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec) O Cendhec, fundado em 1989, tem como missão “defender e promover os direitos humanos, em especial de crianças, adolescentes, moradoras e moradores de assentamentos populares e grupos socialmente excluídos, contribuindo para a transformação social, rumo a uma sociedade democrática, equitativa e sem violência”. É uma das principais organizações da sociedade civil de defesa e promoção de direitos da infância e da juventude no Estado de Pernambuco. A Save the Children mantém uma estreita colaboração com o Cendhec desde o início dos anos 1990, quando trabalharam conjuntamente em um projeto para oferecer assistência jurídica a crianças e adolescentes vítimas de violência.

Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco (Cedca/PE) A missão do Cedca/PE é formular políticas de proteção, promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente, bem como coordenar, controlar e fiscalizar sua execução. O órgão, vinculado ao gabinete do governador do Estado, está composto por 14 membros – entre eles o Cendhec –, dos quais metade são representantes da sociedade civil escolhidos por organizações não-governamentais, sendo o restante nomeado pelo Governo Estadual. O Cedca iniciou sua gestão em março de 1991 e é considerado como o primeiro Conselho Estadual criado no país.

1. Fontes: http://www.fundabrinq.org.br; http://www.savethechildren.net; http://www.savethechildren.es; http://www.Cendhec.org.br; http://www.Cedca.pe.gov.br 15


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Gênese e contexto do Projeto

Com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)2, o Brasil passou a ter, a partir do início dos anos 1990, um marco legal que orienta os Estados e os municípios a adotarem modelos integrados de políticas públicas, constituindo o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). Este sistema – que deve funcionar por meio da articulação entre sociedade civil e governos – propõe uma divisão equilibrada de papéis entre órgãos dos poderes executivo e judiciário, ainda com os Conselhos Tutelares e Conselhos de Direitos. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)3 trouxe consigo modificações significativas no que se refere à aplicação e execução de medidas socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei, estimulando o emprego da medida em meio aberto como alternativas à internação e o investimento em práticas restaurativas. O objetivo desta política pública é estabelecer diretrizes que garantam o cumprimento adequado das leis para a responsabilização e o acompanhamento socioeducativo desses jovens, contemplando todos os aspectos envolvidos, desde a apuração do ato infracional até o financiamento do Sistema Socioeducativo. O Plano de Reordenamento Socioeducativo do Estado de Pernambuco 2010-20154 foi elaborado pelo Cedca/PE para adequar o Sistema Socioeducativo ao Sinase a partir da constatação da necessidade de melhorias nas unidades de internamento, sob a responsabilidade do governo estadual. Fundamenta-se nas normativas vigentes que regem as políticas e as ações voltadas parainfância e juventude no Brasil, principalmente o ECA, abordando três eixos principais: a) expansão do meio aberto; b) estrutura física nos parâmetros arquitetônicos do Sinase; c) gestão de pessoas.

2. O Estatuto da Criança e do Adolescente consiste na legislação específica que regulamenta o paradigma da proteção integral preconizado na Convenção Sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) e no artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Substituiu o Código de Menores, inaugurando uma nova concepção de criança e adolescente e superando a ideia de que são incapazes e, consequentemente, passíveis de tutela. A partir do ECA, as crianças e os adolescentes passam a ser considerados cidadãos em fase peculiar de desenvolvimento e, portanto, portadores de direitos. Fonte: http://www.andi.org.br. 3. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo foi instituído pela Resolução nº 119/2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e aprovado em janeiro de 2012 pela Lei nº 12.594, para regulamentar a forma como o Poder Público, por seus mais diversos órgãos e agentes, deve prestar o atendimento especializado ao qual adolescentes autores de ato infracional têm direito. Fonte: http:// www.crianca.caop.mp.pr.gov.br; http://www.sdh.gov.br. 4. O Plano de Reordenamento Socioeducativo do Estado de Pernambuco, aprovado em assembleia pelo Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente em novembro de 2010, traz “um conjunto integrado de marco situacional, metas, eixos estratégicos e respectivos objetivos, resultados esperados e cronograma a serem concretizadas entre 2010 e 2015”. Sua execução é de responsabilidade do Poder Público (federal, estadual e municipal) em conjunto com a sociedade civil. Fonte: Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo do Estado de Pernambuco 2010-2015, publicado pelo Cedca/PE.

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No entanto, apesar dos avanços na legislação e da disponibilidade de instrumentos adequados, as situações de descumprimento dos direitos básicos de crianças e adolescentes persistem no Brasil, sobretudo entre setores mais vulneráveis da população. A realidade em Pernambuco está na contramão do que preconiza o ECA e o Sinase. As medidas de privação de liberdade ainda se destacam enquanto opção judiciária determinante, em detrimento das medidas em meio aberto que, em muitos casos, observa-se serem possível enquadrar. Por outro lado, é um dos Estados brasileiros com maior índice de violação de direitos de adolescentes atendidos em instituições de internamento – mais perto de se parecerem a centros de detenção do que a unidades socioeducativas –, além do quadro recorrente de superlotação extrema, onde já foram registrados casos graves, tais como tortura, espancamento, humilhação e exposição a ambientes insalubres. Houve, inclusive, várias mortes de adolescentes (em 2012 foram assassinados sete adolescentes e até agosto/2013, quatro), durante as frequentes rebeliões ocorridas dentro dessas instituições, especialmente ao longo dos anos de 2012 e 2013. O jovem que cumpre medida em meio fechado tampouco tem garantido o direito à defesa plena, ao seguimento de caso ou ao estreitamento dos laços familiares. Um estudo realizado no ano de 2008 pela Save the Children UK – Análise de Situação dos Direitos da Criança no Brasil5 – já expunha a situação de vulnerabilidade das crianças e dos adolescentes atendidos nas unidades de cumprimento de medidas socioeducativas. Durante os seus anos de atuação no Estado de Pernambuco, a Save the Children sempre trabalhou na área de proteção de crianças e adolescentes, realizando trabalhos em parcerias com ONGs de referência na área dos direitos humanos, entre elas o Cendhec. Foi assim que a Save the Children convidou o Cendhec para apresentar uma proposta para atuação nos Sistemas Protetivo e Socioeducativo, respondendo ao Edital de Financiamento de Projetos da Direção Geral de Desenvolvimento e Cooperação – EuropeAid – da Comissão Europeia, por intermédio da Save the Children UK.

5. Análise da situação dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil. Estudo realizado por Save the Children Reino Unido em 2008, focado prioritariamente em Pernambuco, embora também tenham sido analisados dados do país como um todo. Uma das principais conclusões da pesquisa foi que o não-cumprimento de normas e padrões manifesta-se por meio de: (1) violência, superlotação e falta de serviços de educação, saúde, proteção e lazer nas instituições; (2) estereotipagem negativa contra adolescentes (predominantemente negros) dos centros urbanos que prevalece entre as pessoas que trabalham dentro dos sistemas de atendimento e justiça, como também na sociedade como um todo; (3) aplicação punitiva de medidas de privação de liberdade (tanto em abrigos como em centros de internação) sem considerar medidas alternativas de justiça ou proteção em espaços familiares ou comunitários, conforme o ECA (tais como orientação e apoio sociofamiliar, apoio socioeducativo em meio aberto, colocação familiar, liberdade assistida e semiliberdade).

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A iniciativa ajustava-se às ações previstas nas diretrizes da EuropeAid sobre a promoção dos direitos da criança, respondendo aos dois primeiros objetivos específicos do Eidhr6, de acordo com o documento de estratégia 2007-2010: Aprimoramento do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais em países e regiões em situação de alto risco Fortalecimento do papel da sociedade civil na promoção de direitos humanos e reforma democrática, apoiando a conciliação pacífica de grupos/setores e consolidando a participação e representação política.

Assim, o Projeto É de Direito, Proteção e Justiça para Crianças, Adolescentes e Jovens, patrocinado pela União Europeia e co-patrocionado pela Save the Children Italiana, foi realizado pela Fundação Abrinq - Save the Children em parceria como o Cedca/PE e o Cendhec. Realizado em um período de 36, a partir de novembro de 2010, envolveu distintos atores engajados na promoção e defesa dos direitos infanto-juvenis, tanto em Pernambuco como no Brasil. A proposta teve como objetivos principais a redução da violência em unidades de atendimento e justiça e o monitoramento do cumprimento de normas, padrões e marcos regulatórios nacionais e internacionais em prol dos direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens. A ação foi desenvolvida no Estado de Pernambuco abordando o contexto de dez instituições localizadas na Região Metropolitana do Recife (RMR) e em três comunidades dos municípios de Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Recife: Jaboatão Centro, Peixinhos e Santo Amaro, respectivamente. Estudos prévios levados a cabo pela própria Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) em Pernambuco revelaram que um número expressivo de adolescentes e jovens que cumpriam medidas socioeducativas em meio fechado provinha dessas comunidades e de áreas circundantes ao centro da cidade de Jaboatão dos Guararapes.

6. European Instrument for Democracy and Human Right (EIDHR): Instrumento Europeu para a Promoção da Democracia e dos Direitos Humanos

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Instituições envolvidas

Os três parceiros – Fundação Abrinq - Save the Children , Cendhec e Cedca – estiveram envolvidos em todas as etapas do ciclo do projeto: planejamento (documento conceitual e proposta integral), execução, monitoramento e encerramento. Houve a participação de outros atores estratégicos em reuniões e oficinas para a elaboração conjunta do marco lógico e do plano de ação detalhado para a proposta inicial, bem como em distintas atividades ao longo da execução do Projeto. Na articulação desenvolvida pelo Projeto, destaca-se o envolvimento do Ministério Público e o Tribunal de Justiça de Pernambuco – Vara da Infância e Juventude da 1ª Circunscrição, a Secretaria Estadual da Criança e da Juventude e a Secretaria de Educação de Pernambuco. Para a execução de algumas atividades específicas, foram desenvolvidas relações contratuais com duas instituições – a Fundação Apolônio Salles de Desenvolvimento Educacional (Fadurpe), através da Escola de Conselhos, vinculada a Universidade Rural Federal de Pernambuco e a Lince Instituto de Pesquisa Ltda. A colaboração de outras instituições, de distinto grau e natureza, serão detalhadas mais adiante na descrição das atividades específicas onde ocorreram.

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Objetivos e resultados esperados

O Projeto É de Direito buscou provocar mudanças nas instituições de acolhimento e atendimento da RMR e, por extensão, no sistema de proteção e justiça de Pernambuco a fim de garantir os direitos essenciais das crianças e dos adolescentes institucionalizados. Outra das metas era estimular a criação de alternativas à institucionalização em comunidades onde a violência impacta diretamente sobre a população infanto-juvenil. Para alcançar os objetivos propostos, desenvolveram-se ações no âmbito de pesquisas, articulação, incidência política, advocacy, controle social e formação (qualificação de profissionais e das comunidades envolvidas – lideranças e educadores), para qualificação do atendimento e trabalhou-se em conjunto com diversos atores-chave do SGDCA a fim de criar mecanismos para acompanhar a aplicação do Sinase no Estado. O Projeto trouxe, também, a discussão da justiça restaurativa e mediação de conflitos aplicada à justiça juvenil, mobilizando representantes dos poderes públicos e da sociedade civil. Embora ainda de forma incipiente, percebe-se que distintos setores mostram interesse em instaurar práticas restaurativas no atendimento a crianças e adolescentes em situação de acolhimento ou em conflito com a lei, tanto no âmbito institucional quanto no comunitário.

Objetivo geral: Reduzir todas as formas de violência e de violações de direito contra crianças e adolescentes atendidos em instituições de atendimento e justiça no Estado de Pernambuco. Objetivo específico: Aumentar o cumprimento das normas e padrões em relação aos direitos da infância e da juventude – incluindo a diminuição da violência contra crianças e adolescentes – em dez instituições de atendimento e justiça na Região Metropolitana de Recife, Pernambuco.

Resultado 1: Instrumentos internos e externos de monitoramento de normas e padrões internacionais de direitos humanos para crianças/ adolescentes são sugeridos e monitorados em instituições de atendimento e justiça na Região Metropolitana de Recife. Resultado 2: Qualificação de profissionais em dez instituições de atendimento e justiça da RMR e de profissionais da área de atendimento e justiça da infância e da juventude em Pernambuco em relação a crianças/adolescentes vulneráveis e em conflito com a lei. Resultado 3: Implantação de um plano operativo em Pernambuco para programas de atendimento alternativo familiar e comunitário, alternativas à internação e reintegração.

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Abrangência do Projeto

O Projeto trabalhou com dez centros de atendimento e justiça, sendo quatro abrigos para crianças e adolescentes necessitando de proteção e seis instituições para crianças e adolescentes em conflito com a lei. No entanto, dois abrigos selecionados – a casa da Harmonia e a Casa de Carolina – foram fechados logo nos primeiros meses do projeto, por condições inadequadas de funcionamento, o que obrigou a substituição por outro com o mesmo perfil, a Casa da Vovó Geralda.

Quadro situacional das unidades em 2010 Instituições selecionadas CASAS DE ACOLHIMENTO Abrigo Raio de Luz (feminino) Abrigo Novos Rumos (masculino) Comunidade Rodolfo Aureliano Casa Carolina Subtotal CENTROS DE INTERNAÇÃO Case Abreu e Lima Case Santa Luzia Case Jaboatão Subtotal CENTROS DE TRANSIÇÃO* Cenip Santa Luzia-Recife Cenip Recife Subtotal CENTROS DE SEMILIBERDADE Casem Recife I TOTAL

Crianças e adolescentes atendidos

Faixa etária

20 20 45 100 185

7 a 18 anos 14 a 18 anos 0 a 18 anos 0 a 7 anos

323 27 61 411

15 a 17 anos 12 a 18 anos 12 a 15 anos

16 180 196

12 a 18 anos 12 a 18 anos

43

12 a 18 anos

835

*Centros para adolescentes que aguardam julgamento e onde oficialmente podem permanecer um máximo de 45 dias, razão pela qual esse número é variável. Obs. Os números expressos correspondem àqueles do momento da apresentação da proposta e incluem os ajustes realizados uma vez iniciado o Projeto, com a substituição de uma das instituições de acolhimento.

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Quadro situacional das unidades em Setembro de 2013 Instituições selecionadas Capacidade da Unidade CASAS DE ACOLHIMENTO 20 Abrigo Raio de Luz (feminino) Abrigo Novos Rumos (masculino) 20 Comunidade Rodolfo Aureliano 40 Casa da Vovó Geralda 20 Subtotal 100

Crianças e adolescentes atendidos

Faixa etária

63 – 44 26 133

7 a 18 anos 14 a 18 anos 0 a 18 anos 12 a 18 anos

CENTROS DE INTERNAÇÃO Case Abreu e Lima Case Santa Luzia Case Jaboatão Subtotal

98 20 72 190

307 47 72 426

15 a 17 anos 12 a 18 anos 12 a 15 anos

CENTROS DE TRANSIÇÃO* CENIP Santa Luzia-Recife CENIP Recife Subtotal

20 90 110

21 248 269

12 a 18 anos 12 a 18 anos

CaseM Recife I

20

40

12 a 18 anos

TOTAL

410

868

CENTROS DE SEMILIBERDADE

Fonte: Formulário Estatístico das Unidades – Funase – Julho/2013. *Capacidade estimada.

Beneficiários diretos Inicialmente, o público-alvo nas instituições trabalhadas era de 835 crianças e adolescentes atendidos e 1.180 profissionais, entre gestores, educadores sociais, assistentes sociais, agentes socioeducativos, psicólogos, pedagogos, advogados e outros. Com a substituição de uma casa de acolhimento por outra instituição, esses números passaram a ser de 917 crianças e adolescentes beneficiados. Na área de atendimento e justiça para a infância e a juventude em Pernambuco, foram considerados 100 profissionais, incluindo juízes, defensores públicos, delegados, membros dos conselhos de direito e dos conselhos tutelares, psicólogos e pedagogos, entre outros.

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Os membros das três comunidades selecionadas totalizavam 720 pessoas, das quais 300 crianças e adolescentes, 320 pais ou responsáveis, lideranças e professores, assistentes sociais e membros de conselheiros tutelares atuantes nessas áreas. ATENÇÃO! Total: 1.317 adultos, crianças e jovens

Beneficiários indiretos Os beneficiários finais estavam estimados em 5.873 indivíduos, entre 1.784 crianças e adolescentes atendidos em instituições de atendimento e justiça e 4.089 crianças, adolescentes e famílias das comunidades incluídas no Projeto.

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Princípios e diretrizes orientadoras

Toda e qualquer ação relacionada com o Projeto É de Direito está em conformidade com os marcos legais dos direitos da infância e da juventude nacionais – ECA e Sinase –, bem como em acordo com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU, que proporcionaram os princípios orientadores da proposta. Foram considerados os fatores que impactam na vida de crianças, adolescentes e jovens em distintos âmbitos – social, econômico, político, comunitário e familiar –, de acordo com os mesmos parâmetros que orientam o desenvolvimento dos projetos realizados pela Save the Children: Realização de ações práticas que permitissem viabilizar mudanças duradouras, mediante a mobilização de apoios e do fortalecimento de políticas e mecanismos para melhor efetivar os direitos das crianças e dos adolescentes; Envolvimento de todos os atores estratégicos no processo, especialmente o poder público e a sociedade civil, em um trabalho conjunto para desenvolver e efetivar projetos sustentáveis que possibilitem que crianças, adolescentes e jovens possam efetivar seus direitos e satisfazer suas necessidades imediatas; Conhecimento e compreensão da realidade trabalhada, por meio de estudos que permitissem identificar as violações de direitos praticadas e as lacunas nos serviços prestados a crianças, adolescentes e jovens atendidos pelo sistema de proteção e justiça; Desenvolvimento das habilidades técnicas e organizacionais de parceiros, profissionais e demais atores envolvidos; Fortalecimento da motivação e da capacidade de grupos da sociedade civil para que exerçam seu papel na reivindicação dos direitos das crianças e dos adolescentes, além de responsabilizar os governos (e outros atores) a cumprir com suas obrigações junto às crianças.

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Metodologia e estratégias

As três principais linhas estratégicas adotadas para a consecução dos objetivos do Projeto É de Direito foram o conhecimento profundo e abrangente da realidade trabalhada, a articulação entre atores-chaves e a qualificação daqueles que lidam diretamente com os principais beneficiários da ação – o público infanto-juvenil – nas instituições e nas comunidades. Para tanto, era essencial identificar que percepções, crenças e posturas contribuíam para a manutenção desses fatores e dessa situação. O caminho escolhido foi a realização de um amplo estudo que incluiu, além dos profissionais responsáveis pela execução e a fiscalização de medidas protetivas e socioeducativas, a população atendida nas unidades de acolhimento e justiça, gestores e autoridades do SGDCA e membros das comunidades selecionadas. Foi feito, então, um importante investimento em pesquisas de linha de base e estudos de conhecimentos, atitudes e práticas (CAP) ao longo da execução do Projeto. Por outro lado, era fundamental promover a articulação e a criação de vínculos sustentáveis com atores-chave do sistema de atendimento e justiça em Pernambuco, bem como com representantes de instituições que atuam na área de prevenção à violência nas comunidades selecionadas – gestores públicos, profissionais, lideranças comunitárias e representantes de organizações da sociedade civil –, a fim de estabelecer a base que daria suporte para o desenvolvimento das ações priorizadas no projeto aprovado junto a União Europeia. Era preciso, pois, utilizar recursos que estimulassem uma maior permanência desses vínculos institucionais. Procurou-se, então, propiciar um encontro estratégico e duradouro entre o poder público, os diferentes segmentos do SGDCA e a sociedade civil, abrindo espaços de escuta, discussão e aprendizado que possibilitassem o compartilhamento de conhecimentos, experiências e dificuldades. Esperava-se, assim, contribuir para uma melhor compreensão do papel que desempenha cada um dentro desse universo, a fim de levar ao reconhecimento da necessidade de se assumir coletivamente a responsabilidade de efetivar as condições que garantam um atendimento de qualidade às crianças e aos adolescentes, de acordo com o que preconizam as normativas existentes. Nesse sentido, os processos de formação dirigidos aos profissionais do sistema de proteção e justiça, líderes comunitários e educadores desempenharam um papel importante no fortalecimento das parcerias e dos vínculos necessários. Os cursos de extensão e

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aperfeiçoamento incluíam, também, o estímulo à instauração de boas práticas no âmbito institucional e comunitário. Este trabalho com profissionais que atuam diretamente nas instituições e membros das comunidades ofereceu a oportunidade de provocar um processo de mudança no cotidiano das pessoas que lidam diariamente com crianças e adolescentes acolhidos e no cumprimento de medidas, além de colaborar para gerar alternativas de atendimento nas próprias comunidades de origem e contribuir para o robustecimento do papel da sociedade civil na promoção da justiça, com a valorização das práticas restaurativas nesse meio. A incidência política e as ações de advocacy foi outra das estratégias empregadas para provocar mudanças nos sistemas de proteção e justiça infanto-juvenil, buscando lograr melhorias nos procedimentos – para que se cumpram de acordo com normas e padrões nacionais e internacionais – e promover mecanismos que ofereçam alternativas à internação, com o incentivo ao atendimento familiar e à mediação comunitária e escolar. Foram realizadas reuniões ampliadas para revisão de contexto do Sistema Socioeducativo e seminários de articulação e qualificação, buscou-se o envolvimento na agenda do Cedca para abordagem do Plano de Reordenamento e participou-se de vigílias e audiências públicas.

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Ações principais

Aqui se apresentam de forma detalhada as atividades mais relevantes desenvolvidas ao longo do Projeto e que contribuíram para alcançar os resultados esperados, com registro dos ajustes necessários e análise das aprendizagens adquiridas.

8.1 Estudos para conhecimento da realidade abordada pelo Projeto É de Direito A elaboração do Projeto É de Direito, realizada em conjunto por consultores nacionais e internacionais, seguiu os padrões da União Europeia, por isso foi preciso adaptá-lo ao contexto brasileiro. Um dos principais ajustes era o reconhecimento de estruturas e instrumentos para elaboração de políticas e monitoramento já existentes, como é o caso do conjunto de instituições e órgãos que fazem parte do SGDCA. Por esse motivo, uma das estratégias fundamentais do Projeto era a realização de estudos que proporcionassem não só o conhecimento, mas também a compreensão do cenário sobre a qual se iria trabalhar, sob o prisma dos direitos da criança e do adolescente. Não se tratava apenas de reunir dados objetivos que explicassem essa realidade do ponto de vista socioeconômico ou de obter um diagnóstico sobre a situação de violência vivida no âmbito das instituições do sistema de atendimento. Era preciso, principalmente, entender a dimensão dessa violência, identificar as causas e suas distintas manifestações em um contexto – físico, social, cultural – mais amplo. Esse saber foi sendo construído ao longo dos dois primeiros anos do Projeto, cujo ponto de partida foi o documento Resultados Preliminares de uma Análise Contextual e um Estudo de Base – O Sistema Protetivo no Brasil e em Pernambuco7, que serviu como referência para o desenvolvimento das ações subsequentes. O texto compunha um panorama da situação inicial por meio da recopilação de dados e informações existentes, a partir da consulta a fontes diversas, tais como documentos oficiais, estudos prévios ou indicadores socioeconômicos. Além de fazer uma reflexão a respeito da transformação dos conceitos sobre infância e juventude ao longo da história brasileira e de apresentar o arcabouço legal e institucional atual, o documento expunha os princípios que orientaram o desenvolvimento

7. Resultados Preliminares de uma Análise Contextual e um Estudo de Base – O Sistema Protetivo no Brasil e em Pernambuco. Texto produzido por Ana Cristina Dubeux Dourado, consultora externa. Apoio da equipe do Cendhec na realização de entrevistas e grupos focais.

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dos instrumentais para a realização de um estudo de conhecimentos, atitudes e práticas (CAP) mais amplo e profundo. Continha, também, um resumo da primeira pesquisa realizada em instituições do Sistema Protetivo, onde foram efetuadas entrevistas estruturadas com os profissionais (gestores e educadores, em sua maioria) e grupos focais com as crianças e os adolescentes atendidos. Percebeu-se, no decorrer do primeiro ano do Projeto, que era preciso aprofundar sobre o significado da violência e ampliar os conceitos relacionados ao tema antes de avançar com o estudo CAP. A proposta apresentada originalmente se referia à redução da violência dentro das instituições incluídas no Projeto, algo que mostrou ser um fator limitador à medida que a ação ia se desenvolvendo. Uma das principais barreiras foi, precisamente, a resistência dos profissionais das instituições pesquisadas em aceitar a ocorrência de violência em seu ambiente de trabalho, provavelmente por não conseguir identificá-la em suas distintas manifestações. Isso foi observado em ambos os sistemas, embora nas casas de acolhimento a relutância fosse mais acentuada, atribuindo-se os episódios dessa natureza às experiências trazidas pelas crianças e os adolescentes atendidos, com causas externas e anteriores à institucionalização. A equipe do Projeto começou, então, a modificar gradualmente a abordagem da problemática da violência, passando a encarar o tema sob a ótica das violações dos direitos da criança e do adolescente que se observam nesse âmbito. Por outro lado, o inicio do processo de formação para profissionais (segundo semestre de 2011), onde foram aplicados instrumentos do estudo CAP, colaborou para ampliar a compreensão sobre o significado e a abrangência do atendimento dado nas instituições, especialmente aquelas do Sistema Protetivo. Considerava-se que a característica de transitoriedade desses serviços excluía a necessidade de oferecer recursos que contribuíssem para o desenvolvimento integral das crianças e dos adolescentes, ferindo, de certa forma, o que preconiza o ECA com respeito aos direitos básicos e à proteção integral: crescimento físico e desenvolvimento mental saudáveis, acesso à educação, saúde, lazer e manutenção dos laços familiares e comunitários, entre outros. À parte de estimular uma revisão do papel das instituições nesse processo, a formação também ajudou a que os profissionais refletissem sobre a questão das desigualdades e da reprodução dos distintos tipos de discriminação – sexual, étnica, cultural, social e/ou física – que também constituem uma forma de violência. Sendo assim, ainda que no início o desenvolvimento do estudo CAP fosse um pouco mais lento do que o previsto, ele ocorreu de forma integrada com outras atividades – tais como o processo de formação – e se viu favorecido pelo ajuste na abordagem e pela modificação paulatina nas percepções dos profissionais que seriam envolvidos na pesquisa.

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O resultado dos estudos sobre conhecimentos, atitudes e práticas realizados durante o período de execução do Projeto É de Direito ultrapassou o propósito de revelar o panorama do atendimento prestado a crianças e adolescentes institucionalizados. Deu, também, recursos para fazer frente à situação de violência e violação de direitos de que esse coletivo é vítima, orientando a mobilização e o fortalecimento de estratégias de controle social e monitoramento compartilhado, de forma a incidir positivamente na qualificação desse atendimento. As conclusões e recomendações permitiriam fundamentar as discussões com atores relevantes na área de defesa de direitos de crianças e adolescentes e com especialistas em atendimento e justiça infanto-juvenil – representantes do SGDCA, do poder público e da sociedade civil. Por fim, o estudo serviu para identificar os possíveis entraves para a efetivação de um plano integrado para monitoramento do Sistema Socioeducativo, bem como para orientar futuras campanhas contra a discriminação e a estereotipagem em relação aos jovens em conflito com a lei. O uso do instrumental do estudo CAP ajudou, igualmente, no desenho dos cursos destinados a profissionais e membros das comunidades e proporcionou indicadores para o acompanhamento dos participantes após o processo de formação, com o intuito de averiguar as possíveis modificações quanto a crenças, estereótipos e atitudes negativas que violem os direitos das crianças e dos adolescentes atendidos.

Abrangência do estudo CAP A investigação abarcava três âmbitos: os profissionais das dez instituições selecionadas – centros de internação e abrigos – e as crianças e os adolescentes atendidos nas mesmas, uma amostra selecionada de profissionais do sistema de atendimento e justiça do Estado e de membros das três comunidades contempladas no Projeto. Buscava revelar, entre outras coisas, o grau de conhecimento sobre as leis existentes e as crenças, atitudes e práticas em relação à violência que atinge crianças, adolescentes e jovens, seja nas instituições de atendimento e justiça, seja no ambiente de onde procedem. À parte do estudo preliminar inicial citado anteriormente, efetuaram-se duas pesquisas qualitativas, uma mais extensa, focada no Sistema Socioeducativo e que envolveu diversos atores do SGDCA, e outra voltada exclusivamente para instituições do Sistema Protetivo. A primeira foi realizada por meio de uma consultoria externa.8 Na segunda, a coleta de dados entre os profissionais e as crianças e os adolescentes atendidos em casas de acolhida foi executada por profissionais da equipe do Cendhec e a elaboração da sistematização, a análise de dados e a produção do relatório final ficaram a cargo de uma consultora externa.9

8. Estudo a cargo de Lince Instituto de Pesquisa, empresa sediada em Recife, Pernambuco, que realiza pesquisas de mercado e de opinião pública e social, executando todas as etapas do processo, do planejamento às recomendações estratégicas. Fonte: http://www.lincepesquisa.com.br. 9. Laudicena Maria Pereira Barreto, assistente social, mestra em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco.

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No terceiro ano do Projeto, levou-se a cabo realização de um estudo de diagnóstico da situação das crianças e dos adolescentes dos sistemas socioeducativo no Estado de Pernambuco, de modo a identificar a percepção de especialistas da área, profissionais, dos próprios jovens e crianças, além de suas famílias, quanto a possíveis mudanças e melhorias ocorridas durante o último ano (março 2012 – março 2013) no Estado.

Pesquisa qualitativa: Sistema Socioeducativo A ideia inicial era que os estudos CAP realizados durante o período de execução do Projeto É de Direito servissem de base para a criação de um plano de monitoramento compartilhado entre sociedade civil e governo. O diagnóstico resultante corroborou o cenário delineado pelo Projeto desde o início, mostrando a falta de articulação do SGDCA de Pernambuco e confirmando a necessidade de se investir fortemente no desenvolvimento do sentido de integralidade entre os membros desse sistema, a fim de propiciar as condições para a construção de uma rede que trabalhe de forma coordenada. O relatório do estudo10, além de retratar a realidade do SGDCA, procurou contribuir positivamente no sentido de estimular discussões e ações qualificadas que possibilitassem a efetivação de mudanças qualitativas no atendimento oferecido a crianças, adolescentes e jovens. Esse documento é um importante aporte do Projeto É de Direito para alcançar essa meta. A pesquisa, levada a cabo no primeiro semestre do ano de 2012, foi realizada no âmbito do Sistema Socioeducativo e envolveu atores relevantes dos órgãos executores e fiscalizadores do SGDCA, profissionais e adolescentes de cinco unidades da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) de Pernambuco, além de membros das comunidades incluídas no Projeto11. Para ampliar a informação sobre esse processo e seus resultados, ver parte II desta publicação.

10. Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente: Configurações a partir do olhar das Instituições Fiscalizadoras/Executoras e dos Adolescentes do Socioeducativo. Relatório de Pesquisa Qualitativa. Lince Instituto de Pesquisa; 2012 (mimeo). 11. Estudos de Conhecimentos, Atitudes e Práticas (CAP) no Sistema Socioeducativo na Região Metropolitana do Recife. Entrevistas e sistematização de dados realizadas pelo consultor externo Francisco Carlos de Figueiredo Mendes, historiador e mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco.

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Pesquisa qualitativa: Sistema Protetivo O estudo sobre a situação do acolhimento institucional na cidade do Recife tinha como finalidade estabelecer uma comparação entre a realidade retratada e o que consta nas normativas nacionais e internacionais. Este marco normativo fundamentou a análise das violações de direitos e as proposições para a superação da situação observada. O produto final apresentado12 – um relatório analítico e propositivo – tomou como base, além das informações coletadas nas instituições pesquisadas e os instrumentos e as leis de Direitos Humanos13, textos e informações de outros estudos sobre a área do protetivo. As instituições do protetivo, sob a responsabilidade do Instituto de Assistência Social e Cidadania (IASC), da Prefeitura da Cidade do Recife, escolhidas para participar da pesquisa foram os abrigos Novos Rumos e Raio de Luz, e a Casa de Acolhida Comunidade Rodolfo Aureliano (Craur), vinculada ao Governo do Estado de Pernambuco. As duas primeiras estavam entre as mais estigmatizadas, em função do público que atendem: crianças e adolescentes em situação de rua, muitas com histórico de envolvimento com o uso de substâncias psicoativas. Enquanto que a Craur atende a crianças e adolescentes com deficiências múltiplas. A metodologia utilizada nas pesquisas efetuadas nos abrigos Novos Rumos e Raio de Luz foi a de entrevistas com profissionais (coordenação, equipe técnica e educadores sociais) e com as crianças e os adolescentes atendidos. Na Craur, propunha-se realizar estudos de casos com crianças e adolescentes atendidos que apresentam alto grau de deficiência intelectual associada a diversos outros tipos de deficiência (motora, auditiva etc.). O roteiro foi desenvolvido e validado em um processo coletivo entre as equipes do Projeto É de Direito e das instituições citadas. Entretanto, a complexidade que supunha uma investigação desse tipo impediu que a atividade fosse adiante. Os resultados da pesquisa e as visitas de monitoramento realizadas às instituições do Sistema Protetivo mostram que, embora os direitos e as necessidades básicas sejam atendidos, é preciso adequar melhorias na infraestrutura existente, ofertar novas unidades e qualificar o atendimento para oferecer às crianças e aos adolescentes abrigados condições para o pleno desenvolvimento de seu potencial físico, cognitivo, afetivo/emocional e intelectual.

12. A proteção à criança e ao adolescente na cidade do Recife: O que revelam os dados sobre o Sistema Protetivo – Uma análise acerca dos Abrigos Raio de Luz e Novos Rumos. Laudicena Mª Pereira Barreto, consultora externa, assistente social, mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco. 13. ONU, Convenção sobre os Direitos da Criança, 1990; ONU, Conselho de Direitos Humanos: Diretrizes de Cuidados Alternativos à Criança, 2009; BRASIL, Constituição de 1988, artigos 203 e 204 e 227 e 228; Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 – ECA/lei 8.069/90; CNAS/Conanda, Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, Brasília, 2009; Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito da Criança e Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Brasília, 2006; CNAS, Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, 2009.

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Por outro lado, observou-se que o processo de municipalização começado em 2011 – de acordo com orientação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária – teve um impacto inicial negativo nas casas de acolhimento por causa da situação de instabilidade e de falta de estrutura em que se encontrava o Sistema Protetivo em Pernambuco. A dificuldade em oferecer um atendimento permanente e de qualidade está relacionada com a falta de políticas públicas que garantam a sustentabilidade dessas instituições, desde quando totalmente vinculadas ao Executivo Estadual, como também pela pouca capacidade dos municípios para arcar com esse ônus. O recurso paliativo dos convênios temporários com organizações não-governamentais impede a instauração de princípios e práticas que respondam à demanda por um atendimento integral e qualificado, de acordo com o que preconizam as normativas vigentes.

8.2 Ações de articulação, advocacy e controle social Um dos primeiros movimentos da equipe executora foi o trabalho de articulação para a construção de parcerias estratégicas que permitissem, no futuro, garantir a sustentabilidade das ações previstas. Este processo permeou praticamente todas as atividades realizadas ao longo do Projeto e ocorreu, inclusive, em âmbitos onde não era previsto, como foi o caso dos cursos de extensão para profissionais e comunidades.14 As ações de articulação fizeram parte do conjunto de atividades cujas intenções eram, principalmente, tornar possível o cumprimento do primeiro resultado da iniciativa.15 Ainda que o Projeto tivesse como foco a redução da violência cometida contra crianças e adolescentes nas instituições, sempre se manteve em perspectiva o reconhecimento e a abordagem das situações de violência vividas por esse grupo em suas múltiplas facetas e no contexto mais amplo onde se manifestam e perpetuam. Assim, as organizações parceiras enxergaram claramente a necessidade de envolver as instituições e os órgãos que compõem o SGDCA em Pernambuco, além de outros atores relevantes, em um esforço conjunto para uma atuação eficaz contra a violação de direitos de crianças, adolescentes e jovens, seja no meio institucional, seja no seu próprio ambiente de origem – comunidade e escola.

14. Para mais detalhes, ver capítulo dedicado aos processos de formação nesta publicação. 15. Resultado 1: Instrumentos internos e externos de monitoramento de normas e padrões internacionais de direitos humanos para crianças/adolescentes são sugeridos e monitorados em instituições de atendimento e justiça na Região Metropolitana de Recife.

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No empenho por provocar mudanças de políticas e práticas que afetam diretamente aos beneficiários do Projeto, também se investiu intensamente em ações de advocacy, buscando sensibilizar aqueles que tomam decisões para a necessidade de viabilizar essas transformações e realizar as melhorias demandadas. É importante destacar o amadurecimento e a liderança dos parceiros do Projeto na organização de eventos de incidência política e na participação ativa em espaços e atividades em prol da mobilização da sociedade civil promovidos por outros atores.

No decorrer da execução do Projeto É de Direito, as ações de articulação, advocacy e incidência foram recorrentes e crescentes em importância, marcando a atuação da Fundação Abrinq - Save the Children e do Cendhec.

Articulações institucionais Sabia-se que era imprescindível trabalhar de forma articulada com o poder público, o conjunto de atores-chave do SGDCA e as organizações da sociedade civil, ainda que cada um desses segmentos tenha respondido de forma diferenciada, em intensidade ou frequência, às atividades relacionadas com o Projeto. Uma das primeiras parcerias cogitadas para uma conjugação de esforços em ações no âmbito da prevenção à violência era com o governo estadual, mediante o Pacto Pela Vida.16 Esta política pública possuía, na sua formulação, uma Câmara Temática da Criança e do Adolescente, com 132

16. O Pacto pela Vida é uma política pública de segurança, transversal e integrada, construída, inicialmente, de forma pactuada com a sociedade, em articulação permanente com o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Assembleia Legislativa, os municípios e a União. Fonte: http://www.pactopelavida.pe.gov.br/pacto-pela-vida

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projetos ligados à área. O que se observou, no entanto, foi a priorização de ações focadas, primordialmente, nas metas de diminuição de homicídios em geral. Certas resistências de cunho político-ideológico, identificadas ao longo do primeiro ano de execução do Projeto, inviabilizaram a aliança naquele momento.17 Mesmo assim, o Projeto É de Direito manteve uma relação constante com o governo do Estado, onde houve muitos momentos de advocacy e certo enfrentamento, como era natural, mas recebendo, ao mesmo tempo, apoio para dar continuidade a suas atividades. Foi assim nas ações de monitoramento nas unidades, quando foram realizadas visitas mesmo em períodos de crise ou rebelião, na participação de funcionários nos cursos de extensão e de aperfeiçoamento e na discussão de medidas e processos alternativos à internação. Nesses casos, os órgãos governamentais com os quais o Projeto manteve maior fluidez de comunicação e colaboração foram a Secretaria da Criança e da Juventude,18 a Funase e a Secretaria de Educação. Além da Secretaria Estadual de Educação, o Projeto angariou importantes suportes para as atividades relacionadas aos processos de formação dirigidos a profissionais e comunidades, tais como o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ/PE) – Vara Regional da Infância e da Juventude – via o Projeto Escola Legal –, a Universidade Federal Rural de Pernambuco, por meio da Escola de Conselhos, a Secretaria Municipal de Educação e o Tribunal de Justiça de Jaboatão dos Guararapes. Vale destacar o apoio institucional do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), por meio de promotores e do Centro Operacional da Infância e Juventude, à divulgação da pesquisa sobre o funcionamento do SGDCA em reuniões estratégicas para o compartilhamento e a análise do conhecimento obtido, como parte da estratégia para o desenvolvimento de um plano de monitoramento compartilhado dos sistemas protetivo e socioeducativo em Pernambuco. O MPPE, o TJ/PE – Vara Regional da Infância e da Juventude mantiveram um diálogo constante com o Projeto e participaram de distintas atividades. Nas ações de advocacy, controle social e incidência política, o Projeto participou de iniciativas conjuntas com a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), o Fórum Socioeducativo, o Fórum Estadual e o Fórum Municipal da Criança e do Adolescente. No âmbito nacional, destacam-se as alianças com a Associação Nacional dos Centros de Defesa (Anced) e a Rede Nacional de Defesa dos Direitos do Adolescente em Conflito com a Lei (Renade).

17. O aumento da gravidade da violência institucional em Pernambuco no ano de 2012 provocou contundentes reações da sociedade civil, do Ministério Público e do Poder Judiciário e Legislativo que tiveram um impacto considerável e levaram, entre outras coisas, à instauração de uma Câmara do Pacto Pela Vida para o Sistema Socioeducativo. 18. A Secretaria da Criança e da Juventude (SCJ) do Estado de Pernambuco, instituída em 2011, foi criada para trabalhar de forma articulada com os demais órgãos da administração pública na promoção dos direitos de crianças, adolescentes e jovens por meio de políticas e ações públicas voltadas para o desenvolvimento, o amparo e o atendimento a esse grupo populacional. A Secretaria Executiva dos Sistemas Protetivo e Socioeducativo, vinculada à SCJ, presta apoio na realização das atribuições de competência da Secretaria, especialmente na política de atendimento da Funase no Sistema Socioeducativo. Fonte: Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo de Pernambuco 2010-2015.

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8.2.1 Atividades relacionadas: seminários, reuniões e encontros A Fundação Abrinq - Save the Children e o Cendhec proporcionaram, ao longo do período de desenvolvimento do Projeto, inúmeras oportunidades de encontro com e entre representantes de instituições-chave do SGDCA e da sociedade civil organizada, além de órgãos do poder público. Da mesma forma, os parceiros do Projeto participaram ativamente de atividades dessa natureza realizadas por outras entidades. Os eventos propiciaram espaços de diálogo e reconhecimento para todos os envolvidos com a promoção e a proteção dos direitos da criança e do adolescente e possibilitaram a ampliação da discussão sobre as políticas atuais, os indicadores de qualidade para melhoria do monitoramento do SGDCA e os mecanismos de controle dos casos de violência institucional. Esses encontros serviram, também, como canal para a divulgação de conceitos e experiências na área da justiça restaurativa e de mediação de conflitos. Fomentaram e fortaleceram as relações, permitindo o aprofundamento dos temas debatidos e o desenvolvimento de ações concretas. Inicialmente, as articulações ocorreram mais em função de consolidar as relações entre os envolvidos na elaboração do Projeto e da aprovação do Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo de Pernambuco, via Cedca/PE. Durante o ano de 2011, se intensificaram os movimentos de advocacy e foram feitas articulações mais estratégicas em benefício do reconhecimento da postura propositiva do Projeto e para demarcar o terreno de legitimidade da sua agenda de incidência política. Dentro dessa perspectiva, apresentou-se o Projeto É de Direito para a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Gabinete da Presidência da República (outubro de 2011) e começaram as participações nas audiências públicas do Tribunal de Justiça Estadual e também do Ministério Público Estadual de Pernambuco sobre a averiguação de denúncias de violências no Sistema Socioeducativo e sobre a Funase – ações civis públicas do MPPE. À parte das atividades próprias do Projeto, a equipe executora também se engajou no grupo de trabalho convocado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança (Comdica) para colaborar na elaboração dos planos municipais de convivência familiar e comunitária e de atendimento socioeducativo em meio aberto.

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8.2.1.1 Eventos promovidos pelo Projeto É de Direito Foram levadas a cabo diversas atividades para a promoção de articulações, troca de experiências e debates na área do direito infanto-juvenil a fim de alinhar conceitos e estratégias comuns que permitissem avançar na elaboração de propostas de ação concretas. As mais relevantes e de maior abrangência foram os seminários realizados no âmbito do Projeto, especialmente durante o segundo ano de sua execução.

Oficina sobre Justiça Restaurativa na Justiça Juvenil O primeiro passo significativo no sentido de fomentar articulações e construir uma rede de parcerias foi uma oficina – que teve lugar em outubro de 2011 – sobre a justiça restaurativa na justiça juvenil,19 onde se reuniram atores-chave que realizam experiências nesse campo no Estado de Pernambuco. Além de discutir formas de aumentar o impacto dessas iniciativas, o encontro procurou fomentar o desenvolvimento de novos projetos, dirigidos a beneficiar adolescentes em conflito com a lei. Esperava-se constituir, no futuro, um espaço mais formal de discussão conceitual sobre o assunto. O grupo de trabalho contou com a participação de representantes de órgãos dos poderes executivo e judiciário, conselhos tutelares, organizações da sociedade civil, associações comunitárias e universidades. A partir desse encontro, o Projeto É de Direito estreitou vínculos com o TJ/PE, por meio da Vara Regional da Infância e da Juventude. Ao final do primeiro ano, iniciou-se a colaboração no desenvolvimento de atividades para ampliação das alternativas de atendimento em meio aberto – associadas a práticas restaurativas – nas comunidades de origem dos adolescentes em conflito com a lei, com a formação de mediadores de conflitos entre líderes comunitários e educadores. Este tema está tratado com mais detalhe no capítulo dedicado aos processos de formação.

19. A oficina foi a oportunidade para intercâmbio de conceitos e práticas relativos ao tema da justiça restaurativa. Tinha como objetivos apresentar experiências nacionais e locais focadas na prevenção da violência por meio de estratégias de justiça restaurativa e/ou de mediação de conflitos, promover o encontro de organizações locais e especialistas no tema de justiça restaurativa, a fim de impulsionar o diálogo e ampliar o potencial de iniciativas locais voltadas para a prevenção da violência, e refletir sobre o potencial de estratégias de justiça restaurativa e de mediação de conflitos na criação de alternativas à internação ou acolhimento de crianças e adolescentes.

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1º Seminário sobre Práticas Restaurativas na Justiça Juvenil de Pernambuco A resolução de conflitos sob a ótica da justiça restaurativa considera os direitos e interesses dos diferentes envolvidos e propõe um paradigma distinto à punição. Quando aplicada no âmbito da justiça juvenil, oferece oportunidades para que os adolescentes restaurem vínculos com suas comunidades, seus familiares e mesmo com as pessoas vitimadas pelas agressões, possibilitando a construção de projetos de vida coletivos. Portanto, era importante pôr o tema em pauta e trazê-lo para a discussão mais abrangente proposta pelo Projeto. A realização do Seminário veio responder a esta necessidade, sensibilizando um público amplo e diversificado. O Seminário – que aconteceu no primeiro semestre de 2012, na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife – teve um papel de destaque no processo de fomentar articulações entre indivíduos e instituições. O encontro contou com a participação de mais de cem pessoas, entre especialistas nacionais e internacionais em temas relacionados aos direitos da infância e da juventude, justiça restaurativa e cultura de paz, profissionais do sistema judiciário dos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo, gestores e profissionais do SGDCA e representantes do poder público e de instituições públicas e privadas, além de organizações da sociedade civil e lideranças comunitárias. Foram apresentadas experiências positivas, inspiradas em princípios e metodologias aplicadas na área da justiça restaurativa, que têm se revelado exitosas, como alternativas à institucionalização. Abriu-se, então, o espaço para o diálogo sobre conceitos de cultura de paz, práticas e justiça restaurativas, no sentido de ajudar na reflexão sobre formas para qualificar o atendimento e o acompanhamento judicial para crianças, adolescentes e jovens em situação de acolhimento ou em conflito com a lei. Também esteve presente um grupo de adolescentes atendidos em uma unidade do Sistema Socioeducativo da RMR. Observou-se que o conceito de justiça restaurativa ainda não está muito disseminado no Brasil e que a aplicação de práticas restauradoras é bem recente, se comparada a outros países. São realizadas ações pontuais, que acontecem graças à iniciativa de operadores do Direito que, por sua militância, vêm tentando criar um espaço efetivo para esse tipo de prática jurídica. Mesmo assim, há Estados onde houve um avanço significativo na instauração de experiências desse tipo, especialmente aquelas impulsionadas no âmbito do Sistema Judiciário. Em Pernambuco, esse movimento é muito incipiente e o grau de adesão ainda está abaixo do desejado, apesar de existirem iniciativas nesse sentido. O encontro, que deu continuidade ao trabalho de articulação iniciado pelo Projeto, serviu para esboçar estratégias de atuação conjunta nas comunidades e dentro do sistema de justiça. Funcionou, também, para estreitar vínculos com profissionais e instituições que trabalham em torno ao tema da mediação de conflitos e da justiça restaurativa nesses contextos.20 Na oportunidade, agregou-se à programação uma apresentação dos resultados preliminares das pesquisas realizadas pela Fundação Abrinq - Save the Children, Cendhec e Lince Instituto de Pesquisa. 20. O Programa Justiça ao Jovem, lançado em 2010 sob a denominação de Medida Justa, foi elaborado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ) com o propósito de realizar uma radiografia nacional a respeito da forma como vem sendo executada a medida socioeducativa de internação. A ação teve abrangência nacional, com a produção de relatórios parciais que continham indicações específicas para cada uma das unidades da federação. Estes documentos foram encaminhados aos Tribunais de Justiça, aos Executivos Estaduais e a outras autoridades integrantes do Sistema de Garantias de Direitos Infanto-juvenis para análise das recomendações e adoção das providências cabíveis. Fonte: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/infancia-e-juventude/programa-justica-ao-jovem.

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Seminário Construindo as Bases para um Plano Integrado de Monitoramento do Sistema Socioeducativo em Pernambuco No evento, que reuniu atores estratégicos para a instauração de mudanças que possam qualificar ações do Sistema Socioeducativo no Estado de Pernambuco, foram apresentadas experiências de distintos lugares do Brasil sobre fiscalização e monitoramento focadas na metodologia e nos instrumentais utilizados em unidades socioeducativas. Entre os participantes havia representantes do MPPE, do Poder Judiciário, do poder público estadual e municipal e da sociedade civil, mas se sentiu a ausência de juízes, defensores públicos e promotores de justiça. Tampouco foi possível contar com algum representante do Programa Justiça ao Jovem, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O seminário ocorreu em setembro de 2012 e trouxe três experiências: a do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca/CE), executada em parceria com o Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente daquele Estado; a da Ouvidoria Externa da Defensoria Pública da Bahia e a realizada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (mecanismo independente de prevenção e combate à tortura). Nessa mesma ocasião, o Projeto É de Direito apresentou o relatório da pesquisa qualitativa realizada com profissionais dos órgãos executores, deliberativos e de controle do SGDCA e com adolescentes internos nas unidades do Sistema Socioeducativo21. A proposta era fazer desse estudo uma referência para entender o funcionamento do sistema de garantia de direitos, suas fragilidades e entraves, sobretudo no monitoramento das instituições. Na apresentação desses resultados, buscou-se dar destaque à análise feita a partir dos dados e que deu margem às proposições para as melhorias necessárias, não ao panorama de fragmentação que emergiu na pesquisa. Ficou claro que a efetivação de um plano integrado de monitoramento das instituições socioeducativas requer um trabalho em rede, que some esforços em cada área de atuação. Levando em conta o contexto do SGDCA em Pernambuco, suas dificuldades e sua idiossincrasia, pode-se considerar que o processo de trabalho do seminário foi positivo, com alta adesão dos participantes às propostas e aos encaminhamentos realizados. As avaliações das conclusões e dos resultados permitem considerar esse encontro, realizado em parceria com o MPPE, como uma das atividades mais importantes entre

21. Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente – Configurações a partir do olhar das Instituições Fiscalizadoras/Executoras e dos Adolescentes do Socioeducativo. Relatório da pesquisa qualitativa realizada pela empresa Lince Instituto de Pesquisa, dentro do marco do Projeto É de Direito.

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as ações relacionadas à consecução do Resultado 1 do Projeto É de Direito. Representou um momento culminante do investimento feito em pesquisas e no planejamento coletivo, e deu início a uma ação conjunta que, segundo se espera, contribuirá para as mudanças desejadas. O relatório resultante desse evento22, assim como o da pesquisa qualitativa realizada no SGDCA, tornou-se um documento essencial para identificar e compreender o cenário no qual o Projeto É de Direito se desenvolveu. Ambos os documentos ajudaram a corroborar as percepções iniciais de que não se tratava de criar novos sistemas ou mecanismos de fiscalização e acompanhamento, mas sim de potencializar os recursos disponíveis e de garantir sua efetiva aplicação. A coordenação colegiada sempre foi ciente de que, antes de apresentar esses produtos, era preciso criar uma base institucional para o Projeto, dar-lhe legitimidade e tornar suas estratégias conhecidas para aqueles que podem fazer a diferença na qualificação do Sistema Socioeducativo. O material produzido oferece uma base sólida para fundamentar a reflexão de como os atores que desempenham um papel-chave dentro do SGDCA podem trabalhar de forma colaborativa, no sentido de contribuir para o monitoramento das mudanças qualitativas que se espera ver neste sistema. O relatório de sistematização do seminário resume a produção do encontro e os resultados da pesquisa. Entre suas principais conclusões e recomendações, destacam-se: Formulação de um modelo de monitoramento da violência institucional e de todo o Sistema Socioeducativo de Pernambuco, com foco na prevenção e no enfrentamento de práticas que violem os direitos dos adolescentes atendidos (inspirado na experiência do Cedeca/CE); Criação de um grupo de trabalho permanente de fiscalização das unidades da Funase, a ser constituído no âmbito do Cedca/PE, reunindo representantes dos órgãos fiscalizadores e executores SGDCA e de organizações da sociedade civil;

22. Construindo as bases para um Plano integrado de Monitoramento do Sistema Socioeducativo, relatório de sistematização do seminário de mesmo nome, produzido pela consultora externa Fabiana Botelho Zapata, Defensora Pública do Estado de São Paulo; mestra em Adolescente em Conflito com a Lei pela Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban).

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Criação de um comitê para prevenção e combate à tortura em Pernambuco pela Assembleia Legislativa do Estado, nos moldes da experiência do Estado do Rio de Janeiro. Esta ação foi apontada como indispensável para o enfrentamento às violações aos direitos humanos ocorridas nas unidades da Funase; Fomentar a capacitação contínua dos atores do SGDCA, especialmente os executores das medidas socioeducativas, para qualificar sua prática. Esta recomendação referendou a ação de formação levada a cabo pelo Projeto, tanto na forma como no conteúdo; Reforçar o papel da Defensoria Pública na defesa e proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes (prioridade absoluta). Incentivou-se, também, a criação de uma ouvidoriageral externa para articular a atuação do órgão, a fim de que responda aos interesses e às necessidades desse público, em especial os adolescentes privados de liberdade. A análise das críticas e dos questionamentos expostos nesse documento apoiou de forma extremamente qualificada os processos de incidência política realizados pelo Projeto a partir de então.

Reunião Ampliada: Construindo as Bases para um Plano Integrado de Monitoramento do Sistema Socioeducativo O evento deu continuidade às discussões e propostas surgidas no Seminário Construindo as Bases para um Plano Integrado de Monitoramento do Sistema Socioeducativo. Entre as recomendações feitas no relatório de sistematização, estava a criação de uma comissão mista cuja atribuição seria, em princípio, a fiscalização e o monitoramento do funcionamento do SGDCA para assegurar o cumprimento do estabelecido pelo Sinase e o ECA. Naturalmente, o primeiro passo seria organizar um grupo de pessoas interessadas na tarefa e estabelecer uma dinâmica de trabalho com o fim de desenvolver coletivamente a proposta. Portanto, o foco do encontro era iniciar o movimento para a constituição de uma comissão ampliada para monitoramento do Sistema Socioeducativo. Este grupo estaria encarregado de propor alternativas para qualificar o acompanhamento judicial e o atendimento direto para adolescentes em conflito com a lei. As reflexões iniciais trataram de entender quais necessidades deveriam ser atendidas para, então, definir o papel, as atribuições e a composição da comissão, assim como o marco de legitimidade e os aspectos operacionais para sua atuação. A intenção do Projeto era buscar um envolvimento efetivo do Cedca na ação, por entender que o órgão, em razão de suas atribuições, seria o âmbito legítimo no qual essa comissão deveria ser constituída. O Cendhec, como representante da sociedade civil no mesmo, foi encarregado de incluir a proposição na pauta do Conselho.

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Além da formação da comissão, o encontro tinha como objetivo a socialização do relatório de sistematização do seminário, com o resgate e o aprofundamento dos seus pontos mais relevantes, a fim de sensibilizar as instituições participantes quanto à importância de somarem esforços para construir um monitoramento mais articulado e sistemático das instituições. Também se abordou o Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo do Estado de Pernambuco 2010-2015, elaborado e publicado pelo Cedca/PE. A pauta da reunião previa avançar no delineamento de um conjunto de ações e na definição de uma agenda de trabalho para a comissão, o que não foi possível. Pois, além da incipiência no assunto e da abrangência da tarefa, não houve oportunidade para uma leitura prévia do relatório do seminário por parte dos participantes. Embora esteja claro que uma ação desta natureza requer o trabalho conjunto dos diferentes atores do SGDCA, a ausência dos gestores dos principais órgãos deste sistema ou seus representantes deixou patente o baixo envolvimento de determinados setores, demonstrando que não percebem a importância dessa mobilização em prol da articulação entre seus integrantes. É ponto pacifico que se precisa dar início a esse processo com presteza, não só para garantir o pleno cumprimento do que preconiza o ECA e o Sinase nas unidades do socioeducativo, mas também para aproveitar ao máximo um momento onde se percebe que há uma disposição coletiva nesse sentido. O arranque imediato e a continuidade nos trabalhos seriam elementos fundamentais para o fortalecimento do grupo de trabalho e o sucesso na concreção da proposta.

Observações sobre a articulação de uma Comissão de Monitoramento do Socioeducativo Foram feitos aportes importantes nessa primeira reunião. Concluiu-se que não caberia à comissão competir com o sistema existente, cujos órgãos têm atribuições definidas, e sim ter uma atuação diferenciada e desempenhar o papel de articulador técnico, funcionando como uma caixa de ressonância que ajudasse a indicar caminhos para superar entraves e solucionar problemas do sistema – como foi, basicamente, a maneira de operar do Projeto É de Direito. No entanto, não foi possível avançar na constituição de um grupo de trabalho mais formal, que assumisse a tarefa de levar a proposta adiante e concretizar ações. A comissão ampliada seria uma via de sustentabilidade do processo iniciado pelo Projeto, mas, de momento, haverá que esperar. Como se verá mais adiante, tampouco o Cedca/PE assumiu o compromisso de promover sua instauração institucional, como havia sido proposto. Atualmente, não há um comitê ou comissão que articule Governo do Estado e sociedade civil para monitoramento do Socioeducativo. Apenas há um comitê de caráter governamental, pelo Programa Pacto Pela Vida, que abre espaço para essa pauta, mas sem a participação de representação da sociedade civil. 41


8.2.1.2 Eventos que contaram com a participação do Projeto É de Direito As organizações parceiras tomaram parte ativa em distintas atividades correlatas à abordagem do Projeto É de Direito, promovidas por outras entidades. Isso ajudou a fortalecer o papel do Projeto em debates e ações que envolviam violações de direito de crianças e adolescentes, qualificação do atendimento nos Sistemas Protetivo e Socioeducativo e consolidação do conceito de justiça restaurativa no cenário local.

Seminário Monitoramento do Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo de Pernambuco 2010-2015 O encontro, organizado pelo Cedca/PE, foi o primeiro evento dirigido a monitorar a efetivação do Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo em Pernambuco 2010-2015. Ainda que não fosse uma atividade do Projeto É de Direito, estava estreitamente relacionada com o cumprimento da meta do primeiro resultado, além de contar com a participação ativa do Cendhec que, como membro do Conselho, impulsionou sua realização e liderou o grupo de trabalho encarregado da preparação do evento. Foram traçadas estratégias para implicar os diversos órgãos públicos integrantes do SGDCA e as Secretarias de Governo que possuem assento no Cedca/PE. No entanto, a resposta obtida esteve aquém do esperado, constatando-se o pouco envolvimento dessas entidades. Apesar da participação de funcionários do TJ/PE, o evento não contou com a presença de representantes estratégicos do Sistema Judiciário, como juízes, promotores e defensores públicos, e entre os Conselheiros do Cedca a participação mais expressiva foi a de integrantes de entidades da sociedade civil organizada. Por outro lado, houve um significativo comparecimento de funcionários da Funase, organizações da sociedade civil e integrantes do Fórum Estadual DCA e da Associação de Conselheiros e Ex-Conselheiros Tutelares de Pernambuco (Acontepe). A baixa adesão desses atores-chave indica que a sensibilização de determinados grupos para o tema ainda requer muito investimento. Outro sinal nessa direção foi a resposta pouco significativa à solicitação feita pelos organizadores do seminário, para que cada um dos órgãos responsáveis se pronunciasse sobre a situação em que se encontravam as ações que correspondiam às suas atribuições, de acordo com os eixos traçados pelo Plano. O documento-base proposto para essa análise foi o relatório de sistematização do seminário Construindo as Bases para um Plano Integrado de Monitoramento do Sistema Socioeducativo. Dentre as questões discutidas no seminário, uma das mais importantes foi a necessidade de acelerar a construção de novas unidades de internação – de acordo com os parâmetros do

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Sinase –, assim como o fechamento daquelas que não cumprem com as exigências mínimas, segundo o relatório do Programa Justiça ao Jovem, do CNJ – o Case de Abreu e Lima e o do Cabo de Santo Agostinho. A violência nessas duas unidades, com a morte de vários adolescente ao longo do ano de 2012, alcançou tal grau de calamidade que exigia a adoção de medidas urgentes. Além disso, ficou clara a importância de que os municípios do Estado invistam mais na estruturação das medidas em meio aberto e que juízes, promotores de justiça e defensores públicos atuem para dar cumprimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente, resguardando o caráter de excepcionalidade e a brevidade da medida de internação. Pretendia-se que durante o encontro fosse instaurada a comissão ampliada de monitoramento do Sistema Socioeducativo de Pernambuco, de acordo com o que havia sido recomendado no relatório de sistematização do seminário Construindo as Bases para um Plano Integrado de Monitoramento do Sistema Socioeducativo e discutido em uma reunião posterior. No entanto, a falta de um acordo entre os membros do Cedca impediu a concretização dessa proposta, o que concorreu para o retraso no alcance do Resultado 1 do Projeto É de Direito. Apesar da importância do evento, ficou evidente que a efetivação do Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo em Pernambuco está se ressentindo com a fragmentação de esforços e a pouca implicação demonstrada por aqueles que deveriam impulsioná-la.

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8.2.2 Atividades relacionadas: incidência política, controle social e advocacy A partir da priorização dada ao Sistema Socioeducativo – consequência do aumento da violência e do número de adolescentes assassinados dentro das unidades de internação antes e durante o desenvolvimento do Projeto É de Direito –, houve uma intensificação no engajamento dos parceiros executores em ações de articulação e incidência política. O lento avanço na execução do conjunto de políticas definidas no Plano de Reordenamento aprovado em 2010 tornou-se um dos focos das atividades desse tipo nas quais o Projeto se envolveu, ao lado do Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente (DCA) do Recife e o de Pernambuco, do Fórum Socioeducativo23 e do Cedca/PE. Além de mobilizar atores para a construção de estratégias de monitoramento do sistema, era preciso cobrar das autoridades competentes que fossem tomadas medidas urgentes, com o fim de modificar a situação de violação de direitos que estava sendo vivida pelos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado. Essa articulação foi importante para reforçar e dar visibilidade às ações do Projeto. A condição do Cendhec como membro eleito no Cedca/PE naquele momento foi relevante, tanto pela possibilidade de dar destaque ao tema da situação do Sistema Socioeducativo em Pernambuco como para instar o Conselho a assumir seu papel de fiscalizador e deliberador da política para a infância e a adolescência do Estado. Entretanto, esse propósito viu-se dificultado por desacordos internos entre alguns de seus membros.

23. O Fórum Socioeducativo foi criado depois de uma rebelião ocorrida em janeiro de 2012, no Case de Abreu e Lima, para tratar questões do Sistema Socioeducativo local, pensar estratégias para instar o Estado a cumprir o Plano de Reordenamento e o Sinase, além de ser um espaço para escuta e esclarecimento de familiares. Participam integrantes do Fórum Estadual DCA, membros da sociedade civil, conselhos de classe (OAB/CRESS/CRP) e mães de adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa.

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8.2.2.1 Incidência e articulações no âmbito local O Fórum DCA Estadual e o Municipal, bem como o Fórum Socioeducativo, constituíram-se em espaços de articulação que permitiram ao Projeto É de Direito expandir localmente o âmbito de atuação e a influência de sua proposta. Foram realizadas ações conjuntas de incidência política, controle social e denúncia. O Fórum Estadual DCA, do qual o Cendhec é membro ativo, assumiu de forma permanente a luta do Fórum Socioeducativo, concebido para ser uma instância de articulação e controle social da sociedade civil sobre o Sistema Socioeducativo, além de manter um canal de diálogo permanente com familiares de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. As Vigílias pelo Fim da Violência nas Instituições do Sistema Socioeducativo, organizadas e promovidas pelo Fórum Estadual DCA, percorreram as ruas da cidade do Recife no décimo dia de cada mês para lembrar uma rebelião ocorrida em 10 de janeiro de 2012, quando três adolescentes morreram em uma das unidades da Funase. Foram pensadas com o fim de dar visibilidade à situação da violência institucional das unidades de internação, denunciar os abusos cometidos e a superpopulação, dar esclarecimento à população e fazer pressão sobre o Poder Público, responsável pela efetivação do Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo. Ainda dentro do âmbito das atuações conjuntas com o Fórum Estadual DCA, é preciso destacar a participação em Audiências Públicas, como as realizadas no Ministério Público e no Tribunal de Justiça, onde foi assinado um termo de ajustamento de conduta que cobrava o Governo do Estado a efetivar as ações previstas no Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo. Do mesmo modo, várias Audiências promovidas pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) sobre a temática da área socioeducativa contaram com a presença de representantes da equipe do Projeto, entre as quais se destaca a realizada no final de 2012, em comemoração ao aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e as que ocorreram em maio e outubro de 2013, para discutir os temas: A Funase e as Medidas Privativas de Liberdade e a Aplicação de Medidas Socioeducativas para Adolescentes Infratores. Em todas as ocasiões, houve oportunidade para denunciar violações de direitos cometidas e falar de assuntos abordados pelo Projeto, com ênfase para as alternativas à internação, as iniciativas que reforçam as práticas restaurativas associadas a medidas socioeducativas em meio aberto e a não redução da maioridade penal e o não aumento do tempo de internação de adolescentes privados de liberdade. Na metade do terceiro ano do Projeto, a Fundação Abrinq - Save the Children e o Cendhec organizaram e participaram de eventos cujo objetivo era incidir na análise da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 33/2012, tramitada na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania do Senado. O ato público contra a redução da maioridade penal foi promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil, seção Pernambuco (OAB/PE), e a Secretaria da Criança e da Juventude do Estado.

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O seminário Proteção e Justiça para os Adolescentes: Retrocessos e Avanços na Luta contra a Redução da Maioridade Penal – ocorrido no dia 10 de abril de 2013, marcando o Dia Nacional de Mobilização contra a Redução da Maioridade Penal –, foi resultado da articulação de ações entre a Fundação Abrinq - Save the Children, o Cendhec e o Fórum DCA Municipal na área de advocacy, com foco na luta pela não redução da maioridade penal e no enfrentamento ao trabalho infantil. Essa atividade estava alinhada com os princípios norteadores do Projeto e o empenho por garantir o cumprimento efetivo das normas e dos padrões nacionais e internacionais dos direitos humanos de crianças e adolescentes. O encontro, cujo propósito era mobilizar e informar a sociedade sobre os motivos para a oposição à redução da maioridade penal, foi dirigido ao Poder Judiciário e ao Poder Público, além de organizações da sociedade civil. Contou com uma boa adesão das instituições integrantes do SGDCA do Recife e de Pernambuco, bem como com o apoio do TJ/PE e da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban).

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O Projeto também procurou alianças com entidades ou indivíduos comprometidos com a defesa dos direitos humanos, com foco nos direitos das crianças e dos adolescentes. Uma das reuniões – com a Comissão de Direitos Humanos da OAB/PE – tinha como pauta a realização de ações conjuntas de incidência política para enfrentar as graves violações dos direitos dos adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio fechado. Já o propósito do encontro com o responsável pela 39ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital, que fiscaliza as unidades da Funase, era a retomada do contato com o órgão. Esta reunião deu bons resultados, especialmente pelo compromisso e a disposição em colaborar demonstrados pelo novo Promotor. Quanto à OAB/PE, observouse que é preciso investir mais na construção de uma articulação que possibilite o alcance das metas desejadas. Destaca-se, ainda, reunião realizada em 2013 com o Instituto de Assistência Social e Cidadania (Iasc).

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8.2.2.2 Incidência e articulações no âmbito nacional A coordenação colegiada do Projeto entendeu que era preciso abrir a perspectiva sobre as problemáticas locais e colocá-las dentro do contexto nacional. O que acontece em Pernambuco é uma realidade presente em todo o país, mas o Estado lidera o número de mortes de adolescentes no Brasil. A partir desse princípio, procurou-se estender a ação de incidência por intermédio da articulação com entidades que transitassem em âmbitos mais amplos, como a Associação Nacional dos Centros de Defesa (Anced)24, a Rede Nacional de Defesa dos Direitos do Adolescente em Conflito com a Lei (Renade)25 e a Pastoral do Menor da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)26, dentre outros. O Cendhec participou, principalmente, em ações conjuntas com as duas primeiras, o que permitiu ao Projeto fortalecer sua atuação política frente aos órgãos do Estado mobilizando, também, outros atores importantes. Entre as atividades realizadas, merece destaque a Reunião da Força-Tarefa Nacional, que ocorreu no início do terceiro ano do Projeto, onde participaram organizações de direitos humanos de crianças e adolescentes de âmbito nacional, para acompanhar a situação do Sistema Socioeducativo de Pernambuco, em geral, e a da violência institucional nas unidades de internação da RMR, em particular. O grupo fez uma visita de fiscalização a uma das unidades de internação mais problemáticas e manteve reuniões com o Secretário Estadual da Criança e Juventude e com diversos atores do SGDCA. A ação foi divulgada por meio de uma Nota Pública sobre a situação do Sistema Socioeducativo no Estado e de uma entrevista coletiva para a imprensa local. Esse trabalho havia sido iniciado no começo do ano de 2012, por meio das articulações entre Renade, Anced e Cendhec. Além dessas três entidades, participaram da Força-Tarefa o Conanda, a Abmp, o Fórum Nacional DCA e a Coordenação do Sinase da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDC).

24. A missão da Anced é “contribuir para a implementação integral da Política de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, assegurando, em especial, o acesso à justiça para efetivação de seus Direitos Humanos com vistas a um Estado e a uma sociedade democráticos e sustentáveis”. Busca articular e fortalecer a atuação local dos 36 Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) e assegurar a efetivação do princípio constitucional de prioridade absoluta para os direitos infanto-juvenis. Fonte: http://www.Anced.org.br. 25. Renade é uma rede de mobilização e integração de instituições, no âmbito nacional e internacional, de defesa de adolescentes em conflito com a lei. Tem como objetivo a proteção e a defesa dos direitos humanos de adolescentes a partir do marco normativo vigente, com a missão de “contribuir para a implementação integral da Política de Garantia de Direitos de Adolescentes inseridos no contexto da justiça juvenil, tendo como foco os direitos humanos”. Fonte: http://www.Renade.org.br. 26. A Pastoral do Menor, como agente transformador dentro da realidade da infância brasileira, tem como missão “promover e defender a vida das crianças e dos adolescentes empobrecidos e em situação de risco, desrespeitados em seus direitos fundamentais, promovendo a participação dos mesmos como protagonistas”. Fonte: http://www.pastoraldomenornacional.org.

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8.2.2.3 Ações de defesa e denúncia Foram realizadas duas representações perante o Ministério Público referentes à descontinuidade da prestação dos serviços, uma para o Sistema Protetivo e outra para o Socioeducativo. Tendo em vista o esgotamento das iniciativas para a superação dos problemas mais graves frente a oferta de um Sistema Socioeducativo que garanta os direitos de adolescentes e jovens, como prevê o ECA e, por conseguinte, o Sinase, há uma perspectiva de se elaborar, por iniciativa de várias instituições da sociedade civil, uma petição ao Sistema Regional de proteção dos direitos humanos para requerer uma medida cautelar por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O objetivo será de evitar a escalada da violência nas instituições do meio fechado e, inclusive, buscar a reparação das famílias cujos filhos foram vitimados pela violência letal nessas unidades.

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8.3 Contribuições para a ampliação da visibilidade da proposta do Projeto É de Direito Houve um grande empenho, desde o início, para divulgar os princípios e as estratégias do Projeto nos diversos espaços de atuação política dentro do âmbito dos direitos infanto-juvenis. Estabeleceu-se contato com grande parte das instituições que atuam na área de atendimento e de justiça juvenil em Pernambuco, sobretudo nos municípios contemplados. Houve, igualmente, a preocupação de dar destaque aos parceiros que participaram da iniciativa em todos os eventos realizados no marco do Projeto. Além da produção específica para divulgação – material de publicidade, folhetos, convites e cartazes para eventos –, levou-se a cabo outras atividades, não previstas na proposta original, que responderam à necessidade de ampliar o debate público sobre a problemática posta em discussão pelo Projeto. Também houve eventos e produtos que, sem serem pensados para esse fim, contribuíram para colocá-lo em evidência, como é o caso de duas publicações que contaram com a participação de membros da coordenação colegiada da Fundação Abrinq Save the Children e do Cendhec. Ambas propunham reflexões sobre conceitos de cultura de paz e justiça restaurativa, além de relatar experiências de mediação de conflitos coletivos com representantes de comunidades da RMR. Todas essas atividades ganharam importância por sua capacidade de aumentar a visibilidade institucional do Projeto É de Direito e de suas ações, entre as quais, se ressaltam: Produção de textos para artigos, relatórios, dossiês e clippings sobre o Sistema Socioeducativo; Participação na mídia impressa e eletrônica (TV, rádio e internet), por meio de entrevistas e depoimentos; Elaboração de Notas Públicas; Participação em seminários organizados por outras instituições, com destaque para o seminário Direitos em Pauta, promovido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), que tratou das alternativas à internação de adolescentes em conflito com a lei; Lançamento do livro Diálogo, Mediação e Justiça Restaurativa – Cultura de Paz, organizado por Marcelo Pelizzoli e Sandro Sayão, publicado pela Universidade Federal de Pernambuco, na Livraria Cultura, em Recife, no mês de novembro de 2012. Esta publicação contém um texto de autoria de Ana Dourado, coordenadora do Projeto pela Fundação Abrinq - Save the Children naquele momento. O artigo referia-se à abordagem dada ao tema da justiça restaurativa no Projeto É de Direito; Lançamento do livro Mediação de Conflitos, Direitos Humanos e Acesso à Justiça, produzido pelo Gajop, na Audiência Pública realizada na Alepe em dezembro de 2012. A publicação incluía um

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artigo que trata da justiça restaurativa na justiça juvenil, a partir da experiência desenvolvida pelo Projeto É de Direito, produzido pelo então coordenador do Projeto pelo Cendhec, Eduardo Paysan Gomes. É preciso trabalhar no sentido de modificar a visão negativa e estigmatizada que os setores mais conservadores da mídia e da sociedade em geral têm sobre os adolescentes e os jovens em conflito com a lei. A coordenação colegiada do Projeto É de Direito identificou a necessidade de se fazer um investimento maior em estratégias de comunicação para fazer frente a essa situação, a fim de que o problema da violência contra esse grupo de pessoas seja tratado com a objetividade e o critério de justiça que exige.

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Ações para qualificar o atendimento nas instituições e nas comunidades

Os processos de formação respondiam por dois dos eixos estratégicos do Projeto: a qualificação do atendimento nas instituições e a criação de uma base para a instauração de medidas alternativas à internação no âmbito comunitário. O tema é desenvolvido com detalhes no capítulo Formação para Qualificação do Atendimento e das Ações Dirigidas a Crianças, Adolescentes e Jovens desta publicação.

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Os caminhos apontados pelo Projeto É de Direito

Após três anos de intenso envolvimento com as ações do Projeto É de Direito, a Fundação Abrinq - Save the Children e o Cendhec realizaram uma reflexão profunda, a fim de extrair da experiência acumulada uma síntese que possibilite fazer as observações e recomendações pertinentes, a partir de considerações que refletem a análise complexa, crítica e situada do processo vivido.

10.1 Considerações finais O Projeto É de Direito aceitou o desafio de abordar uma problemática ampla e muito complexa, com a implicação de aspectos de naturezas diversas – econômica, política, histórica, social e cultural – a situação do adolescente em conflito com a lei. É preciso entender, também, o caráter processual da maioria das intervenções propostas, para as quais o tempo é um dos aliados principais. As ações realizadas representam apenas os movimentos iniciais, ainda que importantes, de um percurso mais longo, até que se alcancem os impactos e as mudanças almejadas. Mesmo considerando tais dificuldades, deve-se reconhecer que durante os anos de sua duração o Projeto ganhou um lugar de liderança e protagonismo no enfrentamento à violação dos direitos de crianças, adolescentes e jovens institucionalizados em Pernambuco. O empenho e o comprometimento com a tarefa assumida foram, em boa medida, responsáveis por essa conquista, além de que as organizações parceiras mostraram competência no tema e capacidade de articulação em diversas instâncias. Por outro lado, independente de assumir também uma postura de denúncia, advocacy e de por em cheque o status das políticas públicas municipais e estadual de Pernambuco, sobretudo em relação à situação de superpopulação das unidades, obteve um importante diálogo e articulação com as instituições públicas do executivo do Estado e dos Municípios de abrangência do Projeto. O Projeto É de Direito gerou oportunidades para o debate e a reflexão coletiva, com participação simultânea do Estado e da sociedade civil, sobre a situação do SGDCA e dos Sistemas Protetivo e Socioeducativo, bem como produziu documentos de pesquisa e análise relevantes, citados ao longo desta publicação, que são instrumentos sólidos para o

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embasamento de propostas. Esse empenho contribuiu para a mobilização de diferentes setores e para e uma maior consciência com respeito à realidade desses sistemas e à necessidade de atuar em conjunto. A constituição de um campo de diálogo entre atores-chave com capacidade para pautar e minimizar os efeitos da violência dentro das instituições e qualificar o sistema de proteção e justiça no Estado foi, sem dúvida, um dos pontos fortes dessa atuação. Vale a pena ressaltar, também, o pioneirismo em trazer a discussão da Justiça Restaurativa para o âmbito da justiça juvenil no Estado, provocando o interesse e a mobilização de representantes dos poderes públicos e da sociedade civil para o assunto. A instauração desse conceito nos procedimentos jurídicos, bem como de práticas restaurativas no atendimento, representa a possibilidade de que as crianças e os adolescentes venham a ser favorecidos por medidas que realmente priorizem seu bem-estar e o pleno desenvolvimento físico, intelectual e afetivo. A qualificação do atendimento por meio de processos de formação e o estímulo para a implementação de boas práticas nos contextos institucional e comunitário apontam nessa mesma direção, além de responder a uma demanda antiga dos profissionais que trabalham diretamente com esse público. Entre as provocações mais fortes, diz respeito ao objetivo de desenvolver instrumentos e condições para o monitoramento nas instituições de atendimento e justiça na Região Metropolitana de Recife. Os estudos realizados confirmaram que a estratégia adequada seria potencializar os recursos e a estrutura existentes. Para isso, é preciso avançar na definição da composição e do papel a ser desempenhado por uma comissão ampliada para monitoramento do Sistema Socioeducativo. Sobretudo, que envolva a sociedade civil pernambucana. As primeiras reflexões indicam que uma Comissão de Monitoramento, envolvendo os atores do SGDCA/PE - Governo Estadual, Sistema de Justiça e sociedade civil, poderia cumprir a função de fórum de discussão integrador entre as diversas instâncias envolvidas e os órgãos do SGDCA cujas atribuições sejam, precisamente, de fiscalização e monitoramento. Necessitaria, portanto, de uma fundamentação técnica, ética e política que lhe permitisse estabelecer diálogos com respeitabilidade. O Cedca aparece como a instância que confere legitimidade para fomentar a criação desta Comissão de Monitoramento do Socioeducativo.. Nesse sentido, há um amplo instrumental disponível para identificação de potenciais problemas, parceiros e recursos, bem como para indicar pautas e metodologias de atuação, além de ferramentas para efetivar ações, como os documentos produzidos pelo Projeto e pelos órgãos que fazem parte do SGDCA, além do próprio Sinase e do Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo de Pernambuco. O início imediato e a continuidade do trabalho desse grupo são elementos-chave para seu fortalecimento e o sucesso na efetivação da proposta. Quanto à construção de uma base de dados, o Sistema de Informações para Infância e Adolescência (Sipia)27 – assim como o Plano Individual de Atendimento (PIA)28, de forma complementar – oferece todas as condições para ser a ferramenta idônea. No entanto, é preciso transpor os obstáculos que

27. O Sistema de Informações para Infância e Adolescência (Sipia) é um instrumento de apoio à gestão em direitos da criança e do adolescente, que facilita a aplicação da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em âmbitos local, regional e nacional. Seu objetivo é fortalecer as ações do Sistema de Garantia de Direitos e qualificar a elaboração, a execução, o monitoramento e a avaliação de políticas públicas de direitos humanos de crianças e adolescentes. Fonte: http://Sipia2.sdh.gov.br. 28. O Plano Individual de Atendimento (PIA) está inserido na Lei do Sinase (Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012), em seu capítulo IV. Fonte: http://www.crianca.caop.mp.pr.gov.br.

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impedem sua adoção definitiva como instrumento obrigatório para coleta, armazenamento e acesso aos dados e ao histórico dos adolescentes em conflito com a lei. Não há somente dificuldades de caráter técnico ou de infraestrutura, mas, principalmente, aquelas resultantes da fragmentação e dispersão de meios e informações, da desarticulação entre os integrantes do SDGCA, da ausência de recursos financeiros destinados aos Sistemas Protetivo e Socioeducativo e mesmo da falta de decisão política para sua implementação. A aplicação do Sipia contribuiria de forma decisiva para o monitoramento de políticas públicas na área da infância e da juventude, garantindo o pleno cumprimento das leis e normativas existentes. Em dezembro de 2012, observou-se alguns movimentos do Governo do Estado de Pernambuco, através da Secretaria da Criança e da Juventude, quando houve troca de cargos nesta Secretaria de Estado e também junto à Direção da Funase. Observou-se, a partir de então - abertura de concurso público com 38 vagas para o vínculo com a Funase (janeiro de 2013), abertura de “Seleção Simplificada” visando a contração temporária de 205 vagas (janeiro a maio de 2013), parceria com a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco para professores que passassem a atuar junto aos Centros de Internação, algumas reformas de infraestrutura em Abreu Lima e outras Unidades - apesar da indicação do CNJ de serem demolidas ou repassadas ao sistema carcerário adulto, bem como o anúncio de inauguração de outros Centros de Internação (sendo uma delas incompatível às determinações do Sinase). Entretanto, o cotidiano em que os adolescentes e jovens que estão cumprindo medidas socioeducativas de privação de liberdade na Região Metrolpolitana de Pernambuco é ainda incompatível às prerrogativas previstas pelo ECA e Sinase. A realidade atual do sistema socioeducativo, nas unidades da RMP, exige uma reestruturação total, com estratégias de curto, médio e de longo prazos. E, em tais estratégias, aliando-se ao protagonismo necessário e obrigatório do Governo do Estado de Pernambuco em prol de melhorias, deverão estar envolvidos ainda, e com compromissos assumidos, os órgãos do Sistema de Justiça Estadual - Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública, além dos Governos Municipais Pernambucanos, assumindo de fato o dever de implantarem com eficiência e eficácia às Medidas Socioeducativas em Meio Aberto - Liberdade Assistida e Prestação de Serviços a Comunidade. Nesta perspectiva, orienta-se ainda que se respeite o pleno direito do engajamento nestas estratégias a sociedade civil e as crianças, adolescentes e jovens, respeitando-os enquanto “sujeitos de direitos”. Independentemente de algumas iniciativas que estão sendo tomadas frente ao status atual do Sistema Socioeducativo da RMR, estas mesmas propõe o questionamento de qual

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a política socioeducativa que está se propondo para o Estado de Pernambuco. Há ainda muito a ser feito para não se supor a existência de uma perspectiva que promova mais a punição e culpabilização dos adolescentes e jovens, do que o compromisso com sua ressocialização através de ambientes favoráveis a intervenções socioeducativas e cidadãs.

10.2 Recomendações técnicas para o Sistema Socioeducativo Adequar o Sistema Socioeducativo do Estado de Pernambucano às diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), sobretudo para garantir ao adolescente em conflito com a lei um tratamento digno, que respeite os direitos à individualidade, escolarização e profissionalização, além da manutenção de seus vínculos familiares e o acesso ao lazer, à cultura e à convivência comunitária; O Sinase vem reforçar o Princípio da Prioridade Absoluta para Criança e Adolescente (art.227 da CF e 4º art. do ECA), quando afirma que a situação do adolescente em conflito com a lei não restringe a aplicação do princípio constitucional de prioridade absoluta, de modo que compete ao Estado, à sociedade e à família dedicar a máxima atenção e cuidado a esse público, principalmente a aqueles que se encontram numa condição de risco ou de vulnerabilidade pessoal e social; Todos os direitos garantidos pelo ECA, ou seja, o direito à vida e à saúde (Título II, Capítulo I); o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade (Capítulo II); o direito à convivência familiar e comunitária (Capítulo III); o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer (Capítulo IV) e o direito à profissionalização e proteção no trabalho (Capítulo V), devem estar contemplados na elaboração das políticas públicas que envolvem os adolescentes em conflito com a lei.

Sobre a criação e implantação de delegacias especializadas para realizar o procedimento de apuração de ato infracional Em cumprimento ao que dispõe a Resolução do Conanda n.º 113, no seu art. 9º, inciso VIII, em prol de aperfeiçoamento institucional, por meio de uma Lei de reestruturação e regionalização do Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA); antiga GPCA; Responsabilização de agentes que desvirtuam a aplicação da lei, nos termos do artigo 230 do ECA, quanto à “privação da criança ou do adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente”.

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Sobre a necessidade de defesa técnica realizada pela Defensoria Pública do Estado de Pernambuco para adolescentes autores de ato infracional O Governo do Estado de Pernambuco deve realizar concurso público para Defensoria Pública; Promover ações indenizatórias para as famílias que tiveram seus adolescentes mortos dentro de unidades de internação de Pernambuco; Criar ouvidoria externa – Ouvidoria Geral da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco; Assegurar a convivência familiar e comunitária para os adolescentes privados de liberdade nas unidades da Funase, em respeito à disposição do artigo 35, inciso IX, Lei 12.594/12 (Sinase); Realizar a reavaliação das medidas socioeducativas, conforme preceitua o Art. 42, da Lei 12.594/12 (Sinase), assim como impugnar o Plano Individual de Atendimento (PIA) quando o considerar inadequado, de acordo com o disposto no art. 41, §3º, da Lei 12.594/12 (Sinase); Acompanhar caso a caso o cumprimento do art. 49 da Lei 12.594/12 (Sinase), que aborda os direitos dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, principalmente na normativa apresentada no §2º do referido dispositivo.

Sobre a prioridade para as medidas em meio aberto Instaurar programas municipais e criar vagas para o cumprimento de medidas de Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviço Comunitário (PSC). As medidas socioeducativas devem ser aplicadas em consonância com o ato infracional praticado; Contratar equipe técnica interdisciplinar em quantitativo condizente com a demanda de atendimento. O Sinase prevê a composição mínima do quadro de pessoal em cada modalidade de atendimento socioeducativo; Criar infraestrutura fixa para o atendimento semanal oferecido aos adolescentes e seus familiares. É imprescindível desenvolver um processo pedagógico que proporcione reflexos e mudanças de hábitos para o jovem, a fim de reduzir a violência e a reincidência, bem como para fortalecer seus vínculos familiares e comunitários. Por outro lado, é fundamental envolver a família na execução dos programas de LA e PSC, fato que torna imprescindível sua presença durante as reuniões mensais e trabalhos de grupo, assim como a realização de entrevistas individuais, quando necessário; Respeitar o art. 5º, inciso III, da Lei 12.594/12 (Sinase), para que atores do Sistema de Justiça impulsionem a municipalização e o fortalecimento das medidas em meio aberto; Ofertar vagas para o cumprimento das sentenças judiciais de imputação de medidas socioeducativas em meio aberto. Os adolescentes em cumprimento das medidas precisam ter o serviço disponível e receber acompanhamento interdisciplinar de uma equipe composta por psicólogo, pedagogo, assistente social, advogado e educador social. Garantia de contratação de

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pessoal suficiente e qualificado, com perfil adequado ao desenvolvimento de suas funções, a fim de propiciar um serviço de qualidade aos usuários; Prioridade na proteção, e não na responsabilização. Não tratar a responsabilização como um objetivo meramente penal ou punitivo, mas como meio de ampliar o conceito de responsabilidade, buscando que a violação produza alterações na estrutura das políticas públicas e no acesso a direitos de crianças e adolescentes.

Sobre o combate à violência institucional nas unidades de internação para adolescentes e jovens do Estado de Pernambuco Assegurar a estrutura física das unidades de acordo com os parâmetros apresentados pela Lei 12.594/12 (Sinase), respeitando aspectos como a quantidade de adolescentes por unidades e por casas de acolhimento, a separação por idade, ato infracional e compleição física e a oferta de espaços para esporte, educação e convivência familiar (41, §3º, 42 e 49, inciso IV Sinase); Retomar o Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo de Pernambuco (2010-2015), de acordo com os parâmetros do Sinase, elaborado pelo Cedca/PE; Criação de um plano de monitoramento para as unidades da Funase – de acordo com o previsto nos arts. 9º a 17 do Sinase – e de um grupo permanente de monitoramento e fiscalização (comissão mista). Este monitoramento deve ser resultado de uma atuação mais articulada entre os órgãos do Sistema Socioeducativo – sobretudo o Tribunal de Justiça e o Ministério Público –, e envolver, também, a sociedade civil organizada, via Cedca e Fórum DCA, respeitando o controle social da política socioeducativa por meio de relatórios periódicos, processos de visitas técnicas e de fiscalização, com a produção de recomendações e, se necessário, provocando audiências públicas com proposituras de ações civis públicas; Responder à recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2011, para o fechamento gradual de duas unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei no Estado: os Centros de Atendimento Socioeducativo (Case) do município de Cabo de Santo Agostinho e o de Abreu e Lima. Além disso, interromper a entrada de novos internos nas duas unidades; Instaurar um processo pedagógico que assegure educação, profissionalização, cultura e lazer. Elaboração do PIA (art. 52 e os seguintes – Sinase); Criação de sistema de acompanhamento de egressos do Sistema Socioeducativo, com perspectiva de diálogo com outras políticas públicas como Educação e Saúde, por exemplo, para que os jovens, ao completarem 18 anos, saiam das instituições com referências e em condições de desenvolver sua autonomia; Instituir a obrigatoriedade, segundo recomendações do Sinase, da elaboração do PIA para cada adolescente, ressaltando que tal instrumental deve ser elaborado em conjunto com o jovem; Favorecer o cruzamento das informações dos órgãos que integram o Sistema de Justiça e

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Segurança da Infância e Juventude, por meio do Sipia; Equipe técnica da Funase, composta por profissionais das áreas de psicologia, pedagogia, serviço social e jurídica, que preparará e acompanhará o adolescente para a progressão da medida socioeducativa; De acordo com o Sinase, o quadro de pessoal do atendimento socioeducativo nas entidades e/ou programas deve considerar que a relação educativa pressupõe o estabelecimento de um vínculo que, por sua vez, depende do grau de conhecimento do adolescente. Portanto, é necessário que o profissional tenha tempo para construir essa relação com cada um dos adolescentes sob sua responsabilidade. Para isso, é preciso trabalhar com grupos reduzidos; Respeito ao acompanhamento processual de adolescentes em conflito com a lei, que é obrigatório e com prazos estabelecidos pelo art. 42 do Sinase. As medidas socioeducativas de liberdade assistida, de semiliberdade e de internação deverão ser reavaliadas a cada seis meses, no máximo. A autoridade judiciária poderá designar audiência, se necessário, dentro de um prazo máximo de dez dias, cientificando o defensor, o Ministério Público, a direção do programa de atendimento, o adolescente e seus pais ou responsáveis; Criação de um Comitê Estadual para a Prevenção e Combate à Tortura, para realizar fiscalização de estabelecimentos de privação de liberdade, sem prévio aviso, de acordo com o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura das Nações Unidas (2002), ratificado pelo Brasil em 2007. Efetuar investigações sobre a prática de tortura dentro das unidades de internação, assim como fiscalizar o andamento das denúncias e das ações indenizatórias contra o Estado de Pernambuco; Criação de regimento interno para as unidades da Funase – art. 71 Sinase –, com tipificação das condutas tidas como indisciplinares, as sanções previstas, os motivos de agravamento ou abrandamento das sanções, com a previsão do devido processo administrativo. Esta ação é de responsabilidade do Presidente da Funase, Ministério Público e Defensoria Pública; Criação de canal de denúncia para escuta das famílias, para que tenham possibilidade de denunciar com segurança, sem temer represálias.

Sobre a disponibilidade de recursos públicos para a implementação de políticas públicas na área da infância e da juventude Implementar a lei Fundo a Fundo, um sistema de transferência de recursos do tesouro estadual para os municípios, de forma automática e regular. Os recursos serão destinados a cofinanciar ações socioassistenciais de fomento desenvolvidas no âmbito do Estado; É de responsabilidade do Governo de Estado efetivar o Plano de Reordenamento do Sistema Socioeducativo, garantindo recursos para a construção ou as reformas das unidades de internação, salvaguardando as prerrogativas do Sinase.

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10.3 Recomendações técnicas para o Sistema Protetivo Destaque para a importância do Poder Municipal desenvolver diagnósticos e planos de melhoria, sobretudo no atual contexto de municipalização do atendimento nas casas de acolhida; Estruturar o atendimento nos serviços de acolhimento de acordo com as Recomendações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes: a) Excepcionalidade do afastamento do convívio familiar; b) Provisoriedade do afastamento do convívio familiar; c) Preservação e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários; d) Garantia de acesso e respeito à diversidade e não discriminação; e) Oferta de atendimento personalizado e individualizado; f ) Garantia de liberdade de crença e religião; g) Respeito à autonomia da criança, do adolescente e do jovem, devendo-se viabilizar a escuta por meio de métodos condizentes com o grau de desenvolvimento da criança e do adolescente.

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Sobre a disponibilidade de recursos públicos (executivos estadual e municipal) para a implementação de políticas públicas na área da infância e juventude Adesão dos municípios à lei Fundo a Fundo, para garantir a continuidade das ações da assistência social sem interrupções no repasse de recursos; Melhoria no acompanhamento aos egressos do Sistema Protetivo. Sugestão para desenvolvimento de experiências com os serviços de acolhimento na modalidade de repúblicas, destinadas aos jovens adultos; Assegurar que os serviços para tratamento da dependência química estejam preparados para receber, também, adolescentes em situação de conflito com a lei; Investir em ações que articulem a rede socioassistencial nas comunidades e nas escolas, na perspectiva da prevenção à violência, da mediação de conflitos e da garantia dos direitos infanto-juvenis, a fim de fortalecer os próprios sujeitos – crianças e adolescentes – e suas famílias, buscando evitar sua institucionalização; Fortalecimento e maior investimento na infraestrutura e na supraestrutura dos Conselhos Tutelares, buscando ofertar condições de atuação adequadas e suficientes; Efetivação do direito à convivência familiar e comunitária, tornando as casas de acolhimento mais próximas das famílias e da sociedade, fazendo com que as crianças tenham condições de reconstruir elos com seus familiares e, também, que estejam mais preparadas para uma vida autônoma após a maioridade; Poder Executivo (Estadual e Municipal): garantir o reordenamento adequado e suficiente, bem como com monitoramento dos serviços de acolhimento; Instituir a obrigatoriedade, segundo expresso nas Recomendações Técnicas para os Serviços de Acolhimento, da elaboração do PIA para cada criança e adolescente atendidos; Poder Executivo Municipal: garantir a contratação de pessoal qualificado e com perfil adequado para o desenvolvimento de suas funções a fim de propiciar um serviço de qualidade aos usuários; Garantia de corpo profissional suficiente e qualificado, continuamente, para trabalhar nas casas de acolhimento, com formação consistente e habilidades para trabalhar com o público atendido; Elaboração de medidas garantidoras da inserção dos adolescentes oriundos das casas de acolhimento no mundo laboral.

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Sobre a articulação intersetorial para o desenvolvimento das ações Articulação com o SGDCA (Conselho Tutelar, Justiça da Infância e da Juventude e Ministério Público, entre outros), com a rede socioassistencial (Proteção Social Básica e Proteção Social Especial), com as demais políticas públicas – em especial, saúde, habitação, trabalho e emprego, educação, cultura e esporte – e a sociedade civil organizada (centros de defesa do direito da criança e do adolescente, grupos de apoio à adoção etc.).

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II E T R PA

OS ADOLESCENTES PRIVADOS DE LIBERDADE NA REGIテグ METROPOLITANA DO RECIFE: ECOS NO RUテ好O

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Contexto da pesquisa no Sistema Socioeducativo

Os adolescentes privados de liberdade na Região Metropolitana do Recife: Ecos no Ruído29 Ana Maria Maciel Groarke30

Muitas publicações já remeteram à inadequação da maioria das unidades de privação de liberdade em Pernambuco (CNJ, 2012; Dourado, 2012; Zapata, 2012). Mesmo a imprensa local aborda continuamente episódios de homicídios, violações, abusos, tumultos e motins nos Centros de Atendimento Socioeducativo (Case) da Região Metropolitana do Recife (RMR), bem como fugas31. Ciente de que a Lei 12.594/12 de execução do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) abrange tanto o regime fechado (semiliberdade e internação) como o meio aberto (liberdade assistida, prestação de serviço à comunidade, reparação de danos e advertência verbal), foi decidido como prioridade do Projeto É de Direito a investigação do contexto de privação de liberdade na RMR. Para aprofundar o conhecimento e a compreensão da problemática, efetuou-se uma pesquisa empírica, executada pelo Lince Instituto de Pesquisa em duas etapas – a primeira entre março e abril de 2012 e, a segunda, entre julho e agosto de 2013. A ideia inicial do estudo, discutida a princípio no ano de 2012, teve como fundamento os seguintes objetivos: Compreender o funcionamento do Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) e fazer um levantamento de suas vulnerabilidades e possibilidades, com o objetivo de indicar caminhos estratégicos para o seu fortalecimento; Analisar a eficácia do SGDCA em assegurar os direitos dos adolescentes de uma maneira geral e, em especial, daqueles que cumprem medida em meio fechado: identificar se os adolescentes privados de liberdade têm acesso a esse Sistema; Aprofundar o conhecimento acerca das condições de vida dos adolescentes do Socioeducativo em meio fechado, buscando a melhoria de sua qualidade de vida dentro das unidades de internação e o combate rigoroso a violações de seus direitos, bem como uma maior compreensão acerca de suas expectativas de futuro fora do Case. 29. Em alusão ao título, esse artigo irá ilustrar a invisibilidade dos adolescentes pesquisados, cumprindo medida socioeducativa de privação de liberdade em unidades de internação. O título evoca a impossibilidade do diálogo, tendo em vista a precariedade das condições da maioria dos Case pesquisados, e certa falta de abertura às reais necessidades dos adolescentes, inclusive a da escuta atenta. Neste sentido, o eco reverbera as várias falas, mas compromete a inteligibilidade do que está sendo dito. 30. PhD em Estudos Socioculturais pelo Theory, Culture & Society (TCS) Centre/ The Nottingham Trent University, UK; Socióloga, diretora da área de Pesquisa Qualitativa do Lince Instituto de Pesquisa. 31. http://ne10.uol.com.br/canal/cotidiano/grande-recife/noticia/2013/08/19/cenip-corrige-numeros-da-fuga-da-Funase-437369.php.

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Inúmeros fatores contribuíram para a decisão de aprofundar o conhecimento acerca do cotidiano dos adolescentes em privação de liberdade. Vale destacar o fato do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ter recomendado32 ao Governo de Pernambuco o fechamento de dois Case por superlotação, venda de drogas, entrada de prostitutas e violência entre os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade (Zapata, 2012). Após a visita do CNJ em 2010, praticamente não houve avanços nesse sentido, o que levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) local a encaminhar uma solicitação para que o Alto Comissariado da ONU atuasse na garantia de direitos desses jovens, visando à regularização do sistema (Zapata, 2012; apud www.liberdade.com.br/noticias.php?id=7125). Ressalte-se, ainda, que nos últimos anos a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) em Pernambuco tem sido foco regular da imprensa local por frequentes ocorrências, tais como fugas de adolescentes em unidades de internação, exonerações de agentes do Socioeducativo33 por práticas que violam os direitos dos adolescentes e rebeliões nos Case culminando em mortes de socioeducandos34. Mesmo considerando as fragilidades que permeiam as medidas socioeducativas em meio aberto na RMR – que suscitam, inclusive, inúmeras internações indevidas de adolescentes cujas infrações não justificam a privação de liberdade (Groarke, 2012), conforme discutido de forma detalhada na pesquisa anterior –, entende-se que o regime fechado está em uma situação no limite do caos. Para os pesquisados, particularmente os representantes do Tribunal de Justiça, a maioria numericamente entre os pesquisados de instituições fiscalizadoras, executoras e deliberativas*, muitos adolescentes são levados a cumprir medidas socioeducativas em regime fechado por infrações consideradas de “relativa”/ “baixa gravidade” , como por exemplo, furto de aparelhos celulares, que não justificam a privação de liberdade. Isso ocorre, na opinião da maioria dos entrevistados, por vários motivos: ideologia ainda manifesta na cultura judicial pernambucana do código do menor; falta de confiança dos juízes no cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto e deficiência particularmente no que tange ao quantitativo de técnicos e recursos materiais que vem cerceando o desempenho efetivo do Sistema Socioeducativo no meio aberto conforme salientado por vários segmentos pesquisados em 2012.

32. O Programa Justiça ao Jovem, de 2010, realizou uma radiografia sobre a execução da medida socioeducativa de internação. A ação teve abrangência nacional, com a produção de relatórios parciais que continham indicações específicas para cada uma das unidades da federação. Fonte: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/infancia-e-juventude/programa-justica-ao-jovem. 33. http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2013/08/apos-fuga-de-jovens-Funase-do-bongi-sera-demolida-diz-governo.htm. 34. http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2013/08/15/interna_vidaurbana,456393/ * Para aprofundar o conhecimento acerca da metodologia, universo e perfil dos representantes dos órgãos fiscalizadores, executores e deliberativos, consultar publicação do relatório de pesquisa (Groarke, 2012). É importante salientar que os representantes do Tribunal de Justiça pesquisados proporcionalmente aos representantes dos demais órgãos foram um dos segmentos numericamente mais expressivos no que diz respeito ao total de entrevistados por órgão/instituição.

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Considerações sobre a metodologia de pesquisa

A investigação utilizou a metodologia qualitativa em ambas as fases do trabalho de campo. Ao invés de realizar um mapeamento estatístico da situação dos adolescentes cumprindo medidas socioeducativas em meio fechado na RMR, panorama já elaborado pela pesquisa nacional do CNJ (2012), buscou-se aprofundar a compreensão do funcionamento dos órgãos executores, deliberativos e de controle que compõem o SGDCA e o papel desempenhado por essas instituições para assegurar direitos e prevenir violações. Era preciso tratar de averiguar, também, o grau de integração entre elas quanto ao funcionamento sistêmico e integrado de suas ações (Groarke, 2012). Por outro lado, tendo em vista que vários estudos já apontaram os problemas estruturais e de escassez de recursos (financeiro, humano, material etc.) que interferem negativamente na situação dos adolescentes em privação de liberdade em vários Estados do Brasil (CNJ, 2011 e 2012; Mattar, 2008; Nogueira Neto, 2012), o objetivo da pesquisa realizada dentro do marco do Projeto É de Direito foi, primeiramente, enfatizar os aspectos subjetivos e motivacionais que permeiam as vivências desses jovens, que podem indicar perspectivas ou resistências quanto à mudança de vida. Em razão desse foco mais subjetivo e da busca pela compreensão e o aprofundamento das experiências vividas pelos jovens – incluindo o levantamento de vivências mobilizadoras e possíveis violações no âmbito do cumprimento da medida no meio fechado – optou-se por técnicas de pesquisa qualitativas nas duas fases da investigação. A análise das informações coletadas nessas duas etapas propiciou uma visão mais fundamentada acerca das percepções dos adolescentes pesquisados com relação às experiências do presente e às expectativas futuras. Considerando a multiplicidade de informações levantadas, pode-se afirmar que essa compreensão da vivência dos jovens “em sua totalidade” e da interação com as várias dimensões de suas vidas é, sem dúvida, o cerne do presente artigo. Por meio de suas narrativas, procurou-se captar as sensações, as motivações e as atitudes que tendem a extrapolar os interesses e as opiniões racionalizados, tais como valores, preferências ou processos “de escolha”, além de apontar tentativas de aproximação ou de rejeição a atitudes ou experiências mobilizadoras e inovadoras de projetos de vida. Ainda sobre a escolha metodológica, é imprescindível explicar que a segunda fase da pesquisa, em 2013, tornou a incluir adolescentes e incorporou jovens de sexo feminino que cumprem medidas socioeducativas em privação de liberdade na RMR. Além desse segmento, participaram

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técnicos da Funase que trabalham no meio fechado, agentes socioeducativos e membros da comunidade – representantes de movimentos sociais e grupos comunitários, conselheiros tutelares e de direito, entre outros, indivíduos que, de alguma maneira, acompanham a situação dos adolescentes egressos do meio fechado e/ou trabalham em prol da melhoria das oportunidades de vida dos jovens em comunidades de baixa renda. Os representantes comunitários que participaram da pesquisa são residentes ou atuam profissionalmente em bairros do Recife ou da Região Metropolitana com elevada proporção de adolescentes que cumprem ou cumpriram medidas socioeducativas nos últimos anos. Outro pré-requisito da seleção para inclusão no estudo, tanto dos técnicos da Funase como dos membros da comunidade, foi a participação nos cursos de formação de aperfeiçoamento ou de extensão promovidos como uma das atividades do Projeto É de Direito. Mesmo com um escopo mais reduzido na segunda etapa da pesquisa, tentou-se contemplar os segmentos dos principais atores sociais35 envolvidos no Sistema Socioeducativo de privação de liberdade, além do público-alvo das medidas socioeducativas – os adolescentes –, que serão o foco deste artigo. Os únicos segmentos não contemplados na segunda fase foram os representantes de órgãos executores, deliberativos e de controle, por terem sido estudados em 201236. A decisão de dar seguimento ao estudo iniciado em 2012 justifica-se pela necessidade de identificar e contextualizar possíveis processos de continuidades e mudanças no Sistema Socioeducativo no último ano do Projeto, particularmente na RMR. Buscou-se, então, avaliar as práticas dos diversos atores e dos adolescentes, a fim de se levantar perspectivas que possam sinalizar eventuais mudanças.

35. Alguns desses segmentos foram investigados pelo pesquisador Francisco Carlos Figueiredo Mendes (2012) por meio de entrevistas semiestruturadas com gestores de unidades socioeducativas da RMR, técnicos, agentes socioeducativos, adolescentes e familiares das comunidades de Peixinhos (Olinda) e Santo Amaro (Recife). O Lince Instituto de Pesquisa foi contratado, paralelamente, para realizar a pesquisa com os órgãos fiscalizadores e executores e os grupos de discussão com adolescentes (dez participantes), a fim de possibilitar a troca de experiências em coletividade. 36. Primeira fase da pesquisa realizada em 2012 pelo Lince Instituto de Pesquisa (Groarke, 2012).

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2.1 Fundamento teórico: posicionamento político e ético da pesquisadora Uma das perspectivas teóricas que respaldou a pesquisa acerca do sistema socioeducativo em todas as suas etapas – escolha metodológica, trabalho de campo, análise dos dados – foi o entendimento acerca dos fragmentos de narrativas dos pesquisados, os quais enfatizam e contemplam vivências de vários momentos da vida dos adolescentes privados de liberdade, tomando como referência a “fusão de temporalidades” de Paul Ricoeur (1988). Isso significa que nossa vida e nossas experiências conectam o passado por meio das memórias, o presente, pelas experiências, e o futuro, pelas expectativas. Sendo assim, os adolescentes, ao narrarem suas antecipações quanto ao futuro, estão realizando a mediação do passado, do presente e do futuro, muitas vezes de forma inconsciente. Da mesma forma, a pesquisa demonstra que os fragmentos de narrativas dos adolescentes só são passíveis de serem minimamente compreendidos se trazem à tona suas relações com pessoas e instituições que permeiam a esfera doméstica (o espaço da casa, do lar, da família), os laços com amigos, escola e todas as demais formas de vínculo ou identificação do segmento entrevistado (Groarke, 2004). Utilizando-se do fundamento teórico metodológico da “fusão de temporalidades”, é possível compreender que os adolescentes em privação de liberdade tendem a recriar e a reproduzir significados de seu cotidiano – por meio de suas vivências na instituição Funase – em suas próprias rotinas, visitas de familiares, lembrança de casa, “apertos no peito” advindos da saudade, do enfrentamento e da reelaboração de sensações de frustração, esperança ou pessimismo. Com isso, reconhecemos, por um lado, que a recriação e a reprodução de significados de vida e antecipações de futuro são mediadas por motivações, desejos de autonomia, individualidade, integração social, relações e expectativas de outros – sujeitos e instituições (Groarke, 2004). Por outro lado, é importante enfatizar que a percepção e a perspectiva de autonomia e independência estão profundamente imbricadas em categorias de identidade, tais como gênero, orientação sexual, idade (geração), classe social, raça, etnia, cultura local e nacional, que “compõem” a identidade dos sujeitos, assim como permeiam suas antecipações de futuro, ou seja, suas aspirações. Destaca-se que as narrações dos adolescentes ilustradas neste artigo, dentro da perspectiva de suas rotinas ou de suas aspirações, intersectam, necessariamente, os aspectos mais individualizados e as experiências particulares de suas vidas com os contextos socioeconômicos, culturais e políticos nos quais estão inseridos. As narrativas citadas aqui levam em consideração o fato dos pesquisados estarem “situados no mundo”, tomando emprestada a expressão de Haraway (1991). Estar situado no mundo implica que o conhecimento, as práticas e as

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experiências desses adolescentes são parciais e interagem com as “categorias sociais de pertencimento”, componentes de suas identidades no tempo e no espaço, a exemplo de gênero, orientação sexual, classe social, raça ou etnia, entre outros. Em síntese, as narrações, as elaborações de experiências do presente e as antecipações quanto ao futuro dos adolescentes devem ser contextualizadas como articuladas, configuradas e refiguradas (Ricoeur, 1988, 1992) por sujeitos que, apesar de compartilharem um mesmo espaço e fazerem parte da mesma sociedade – que no caso particular do Brasil é profundamente marcada por desigualdades socioeconômicas –, são heterogêneos, com histórias de vida específicas e singulares. Percebe-se, assim, o quanto os relatos desses jovens e suas vivências no presente se articulam e são configurados e refigurados, ora reproduzindo certos valores e experiências, ora questionando-os e revisando-os. Apesar de o processo narrativo estar aberto às várias possibilidades de configuração e refiguração no tempo e no espaço, o mesmo é, por excelência, imbricado nas experiências vividas pelos sujeitos. Portanto, é fundamental levar em consideração que as oportunidades não brotam do nada, pelo contrário – são constituídas de experiências vividas, conquistas, frustrações e restrições do presente identificadas pelos adolescentes no processo de pensar sobre o futuro. Desse modo, aludir às antecipações sobre o porvir é, automaticamente, focar nas práticas cotidianas, ou seja, na experiência diária de negociar possibilidades e restrições, pois é por meio dessa experiência que as aspirações são articuladas. Olhar o Sistema Socioeducativo através das narrações dos adolescentes em privação de liberdade implica no compromisso de entender os limites impostos pelas condições materiais de existência, tanto a partir das lembranças do passado dos pesquisados como da situação dentro das unidades de internação, sem perder de vista o fato dos adolescentes serem, em sua maioria, oriundos de famílias com precárias condições materiais (CNJ, 2012; Mattar, 2008; Nogueira Neto, 2012) e contextos caracterizados por inseguranças e possibilidades de escolha limitadas ou, em alguns casos, por ameaças de mortes e violência (Waiselfisz et al, 2004). Esse cenário, sem dúvida, está marcado pelas inúmeras violações de direito que atravessam as trajetórias de vida da maioria desses adolescentes e de suas famílias. De modo que se pode constatar a ausência do Estado e, consequentemente, de políticas públicas que garantam os direitos fundamentais dessa população. É importante registrar até que ponto as situações de vulnerabilidade dos adolescentes e a limitação de escolhas, por pertencer a uma classe social materialmente desfavorecida e a uma raça/etnia historicamente marginalizada e excluída, são reforçadas, minimizando ou mesmo restringindo as transformações. Dito de outra maneira, é primordial demonstrar como as desigualdades sociais são reproduzidas nas unidades de internação de forma um tanto quanto determinista e, consequentemente, desmobilizadora. Ao mesmo tempo, ao identificar as possibilidades de reelaborações por meio dos relatos dos adolescentes, este artigo também

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se propõe a ilustrar as táticas (De Certeau, 1988) e as estratégias que podem ser articuladas, configuradas e refiguradas pelos participantes, a partir desse processo narrativo e interativo entre a pesquisadora e os adolescentes durante o grupo de discussão. Apesar do dinamismo do processo narrativo, a prática de engajamento e narração dos participantes não deve ser vista meramente como um processo formal e homogêneo. Essa prática é construída a partir de um processo dual – a participação dos pesquisados e o envolvimento da pesquisadora na investigação. É preciso, por meio de um processo reflexivo, ter consciência do poder que detém a pesquisadora – que é maior que o do pesquisado –, visto que lhe cabe a incumbência de produzir conhecimento. Portanto, a tendência é de que não se estabeleça uma relação entre iguais, por maior que seja o esforço do investigador por instaurar processos de escuta atentos, abertos a relações democráticas com os “sujeitos” da pesquisa. Em se tratando do segmento pesquisado – adolescentes cumprindo medida socioeducativa em meio fechado –, é preciso reconhecer o fato de que esse grupo vivencia experiência de grande vulnerabilidade, em uma situação de fragilidade na qual o direito básico de ir e vir foi confiscado temporariamente. Nesse contexto, o poder da profissional como pesquisadora e socióloga da classe média brasileira certamente não passou despercebido pelos sujeitos pesquisados. Observa-se, através das narrativas citadas ao longo deste artigo, que os adolescentes insistem em chamar a pesquisadora de “doutora”, apesar do esforço para criar uma dinâmica de grupo mais espontânea. A preocupação durante todo o processo de escuta, coleta e análise das informações foi manter a consciência sobre a diferença de poder entre as partes envolvidas, presente em vários momentos da pesquisa – da articulação do passado e o relato de vivências pelos adolescentes à ação da moderadora do grupo de registrar, catalogar, relembrar e selecionar as narrativas dos jovens. O processo de produção de conhecimento continua, então, refletindo essa diferença de poder (Groarke, 2004; Foucault, 1979, 1980; Walkerdine et al, 2001). Salienta-se que este artigo pretende desconstruir todo tipo de generalização acerca dos socioeducandos. Os adolescentes pesquisados não são identificados aqui como parte de uma categoria homogênea, dissociada da sociedade. A perspectiva teórica que embasa a análise sobre os jovens cumprindo medidas socioeducativas de privação de liberdade respalda-se na tradição dos estudos culturais mais recentes, que apresentam posicionamentos socialmente integrados da juventude. Evitaram-se abordagens sobre juventude ou grupos juvenis – neste caso, os socioeducandos – que os identificasse de forma determinista, reducionista e maniqueísta, definindo-os como pessoas “normais” ou “patológicas”, “boas” ou “más”. O momento de vida dos adolescentes pesquisados foi contextualizado de forma não linear e heterogênea. Tampouco se negligenciou o fato das táticas selecionadas pelos adolescentes estarem imbricadas à estrutura social em vigor, que na sociedade brasileira se caracteriza, infelizmente, pela elevada desigualdade social.

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Dito isto, é preciso destacar que o posicionamento teórico, ético e político adotado neste artigo foi de não categorizar os adolescentes em privação de liberdade como “marginais” ou “jovensproblema”, “merecedores de punição”. Esta postura, profundamente arraigada no código do menor e no imaginário social de tantas pessoas, vem restringindo, até hoje, a adoção ampliada e qualificada de medidas socioeducativas em meio aberto em Pernambuco. Vale ressaltar que o reconhecimento de “pertencimentos” e “categorias identitárias” diferentes entre os adolescentes e a pesquisadora não representou um problema para o estudo. Pelo contrário, a pesquisadora verificou que a autorreflexão sobre as experiências e os pertencimentos (Haraway, 1988; 1991) divergentes dos sujeitos pesquisados enriqueceu o processo de investigação. Sabe-se que o investigador necessita de certo distanciamento para conseguir compreender melhor a realidade estudada, sem naturalizar os acontecimentos e as vivências. Foi possível estabelecer um bom diálogo com os adolescentes e deixá-los o mais à vontade possível, respeitando seus silêncios, brincadeiras, fantasias, raivas e frustrações.

2.2 Definição das técnicas de pesquisa da metodologia qualitativa: perfil dos participantes Conforme citado anteriormente, as técnicas de pesquisa qualitativa utilizadas nas duas fases da investigação foram entrevistas em profundidade e grupos de discussão (focus groups), por suscitarem engajamentos de certa profundidade com os participantes do estudo. Efetuaramse entrevistas em profundidade face a face com um só indivíduo ou grupos de discussão com uma média de dez participantes. Foi elaborado um roteiro de pesquisa aberto, não estruturado, cuja ordem dos tópicos a serem perguntados foi modificada conforme o engajamento e o grau de relevância do tema para os entrevistados. Os grupos de discussão foram gravados, com autorização prévia dos participantes, para permitir a análise minuciosa das informações. A fim de possibilitar certo distanciamento dos Case, a pesquisa, tanto com os adolescentes como com os demais segmentos, ocorreu fora das unidades de internação. A metodologia qualitativa suscita possibilidades de engajamento com sujeitos em localidades específicas e, por essa razão, não é indicada na elaboração de inferências e generalizações. As experiências dos pesquisados no contexto dessa pesquisa são ilustrativas de determinada realidade; nesse caso, de vivências de adolescentes em privação de liberdade na RMR. No entanto, não devem ser generalizadas como sendo o retrato do que acontece em Pernambuco de forma geral, nem tampouco no resto do Brasil. Considerando que o estudo ilustra as experiências dos sujeitos que fazem parte de segmentos do Sistema Socioeducativo, é imprescindível apontar o perfil e o quantitativo dos pesquisados nas duas etapas da investigação, conforme as tabelas a seguir.

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Primeira fase da pesquisa: março/abril 2012 Segmentos Tribunal de Justiça Órgãos do Sistema de Justiça Órgãos Executores Representantes de Conselhos Tutelares e de Direito Total

Nº absoluto de entrevistas em profundidade (EP) 5 2 2 6 15

Segmentos Socioeducandos do Case A, adolescentes do sexo masculino da RMR Socioeducandos do Case B, adolescentes do sexo masculino da RMR Total

Total (em %) 33,4% 13,3% 13,3% 40,0% 100,0%

Grupos de discussão 1 1 2

Segunda fase da pesquisa: julho/agosto 2013 Município/ Região

REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE

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Nº de Focus Groups

Segmento

Sexo

1

Socioeducandos da Unidade A – grupo formado por internos com experiência de pelo menos três meses no Case e por socioeducandos mais antigos – com maior tempo na instituição

Masculino

1

Socioeducandos da Unidade B – grupo formado por internos com experiência de pelo menos três meses no Case e por socioeducandos mais antigos – com maior tempo na instituição

Masculino

1

Socioeducandos da Unidade C – grupo formado por internas com experiência de pelo menos três meses no Case

Feminino

1

Socioeducandos da Unidade C – grupo formado por internas com maior tempo no Case

Feminino

1

Técnicos e agentes socioeducativos que trabalham atualmente em um dos Case da RMR, que participaram do curso de formação promovido pelo Projeto

Misto

1

Membros de instituições/movimentos/organizações atuantes nas comunidades de origem dos socioeducandos que participaram do curso de formação promovido pelo Projeto

Misto


Foram transcritas as verbalizações mais representativas dos participantes da pesquisa, com o propósito de reproduzir as narrativas dos pesquisados da forma mais fidedigna possível. Conforme o compromisso firmado com os pesquisados e em cumprimento rigoroso do código de ética ICC/Esomar (World Association for Market, Social and Opinion Research)37, preservouse integralmente o anonimato dos participantes. Por essa razão, nem mesmo a identificação dos Case em que os adolescentes pesquisados estão internos será feita. Optou-se, então, por nomear as instituições com as letras A, B e C, de forma inteiramente aleatória. Da mesma forma, não há nenhum tipo de identificação nos fragmentos de narrativas desse segmento, nem mesmo agrupamentos por características gerais.

37. http://www.esomar.org/uploads/public/knowledge-and-standards/codes-and-guidelines/ESOMAR_ICC-ESOMAR_Code_English.pdf.

73


3

Avaliação sobre a prática da medida socioeducativa de privação de liberdade: “olhares” de diversos atores

Conforme mencionado, o objetivo deste artigo é introduzir algumas reflexões acerca das vivências dos socioeducandos em privação de liberdade oriundos de três Case da RMR. Optouse, então, por sintetizar a opinião de outros segmentos – atores-chave do SGDCA, técnicos e agentes socioeducativos e membros das comunidades incluídas no Projeto É de Direito, das quais procede um número significativo de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas. Por atores-chave entende-se aqueles que fazem parte dos órgãos fiscalizadores, executores e deliberativos do SGDCA, cujas avaliações estão registradas no relatório da pesquisa realizada no segundo ano do Projeto (Groarke, 2012) como já salientado no presente artigo. Esse estudo identificou vários entraves no sistema de garantias, apontando como o cerne da problemática a falta de intersetorialidade e integralidade das ações, ausência de interdisciplinaridade e o não conhecimento dos papéis e ações assumidos e efetivados pelos diversos órgãos desse sistema. Os diversos representantes dos órgãos pesquisados foram unânimes em reconhecer que o sistema de garantias de Pernambuco não está funcionando como deveria por uma série de razões, o que cerceia, ou mesmo compromete o cumprimento das missões institucionais das entidades pesquisadas.

3.1 Entraves no desempenho das instituições e no cumprimento de suas funções O desempenho devido e eficaz das atribuições de fiscalização por alguns órgãos se vê prejudicado por conta da limitação de recursos materiais – carência de transportes para visitações externas e número reduzido de profissionais nas diversas áreas, por exemplo – o que vem restringindo a prática dos pesquisados ao cumprimento de atribuições processuais (escuta, produção de relatórios, fiscalização da regularidade em termos de legalidade do jovem no Socioeducativo ou da criança no Protetivo). Tais circunstâncias

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dificultam a realização de uma fiscalização sistemática e integral das unidades do Socioeducativo, bem como o acompanhamento regular dos casos de adolescentes que vêm sofrendo violações de forma contínua. A pesquisa identificou, entre os vários segmentos pesquisados, que não há visitas sistemáticas aos Case nem tampouco conhecimento profundo acerca do cotidiano dos adolescentes nas unidades de internação. Percebeu-se que a rotina dos órgãos fiscalizadores parece estar marcada, essencialmente, pela produção de relatórios ou análise de processos cujos prazos, a princípio, deveriam ser cumpridos rigorosamente, o que já garante um cotidiano extremamente assoberbado. O que acaba ocorrendo é a produção em série e bastante fragmentada de informações sobre os adolescentes institucionalizados, não compartilhadas por um sistema único a que todos os órgãos do sistema de garantia tenham acesso. Nesse sentido, o Plano Individual de Atendimento (PIA) é citado como o ideal que deve se tornar efetivo em um futuro próximo. No entanto, a pesquisa mostra que a sobrecarga de urgências a que os funcionários estão submetidos atualmente não proporciona as condições de funcionamento adequadas para realizar e priorizar a construção, execução e monitoramento do PIA, em parceria com a equipe técnica, os adolescentes e suas famílias. Para que este instrumento seja posto em prática o mais rápido possível, é preciso que essas instituições façam adequações imediatas, em consonância com as demandas atuais. Por outro lado, no cenário atual em que as informações são produzidas individualmente, de forma fragmentada por cada núcleo, departamento – mesmo que atrelado a uma única instituição –, é agravante o fato de não haver acompanhamentos sistemáticos e troca de informações complementares acerca de cada adolescente do Sistema. Isso induz a não haver uma análise e interação com os adolescentes e jovens de forma sistêmica e articulada entre estes distintos órgãos que fiscalizam as unidades. Até 2012, quando foi feita a pesquisa com representantes das entidades, inexistia uma política de monitoramento e avaliação entre os órgãos fiscalizadores quanto a violações cometidas e punidas, sobretudo no Sistema Socioeducativo, onde foram registrados casos alarmantes e recorrentes no segundo e no terceiro anos do Projeto É de Direito. Baseando suas opiniões na desarticulação dos órgãos pesquisados, vários participantes chegaram a afirmar de forma um tanto quanto “taxativa”/categórica que “não há sistema de garantias hoje implementado em Pernambuco”. Nesse sentido, o Projeto É de Direito vem se contrapor a essas afirmativas e destacar que o SGDCA existe, está implementado, porém não funciona com a qualidade e da forma “ideal” e integral prevista no ECA. A pesquisa revela a fragilidade de uma rotina vinculada à execução de políticas públicas voltadas para a redução ou mesmo a prevenção da prática de violações. No que concerne à falta de mobilização para a elaboração dessas políticas, os membros dos Conselhos de Direitos que representam a sociedade civil revelaram, na pesquisa, sua “decepção” com o

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papel enfraquecido que o órgão desempenha atualmente em Pernambuco; queixam-se da centralidade do Governo do Estado e de seus representantes nas tomadas de decisões e da perda do poder de coesão e influência do Conselho. Na opinião de representantes entrevistados da sociedade civil no Conselho de Direito, a atual administração estadual vem sendo muito eficiente no sentido de captar lideranças de movimentos sociais, organizações não-governamentais, atribuindo-lhes papéis expressivos, cargos de certa influência no Governo do Estado. Neste contexto, essas lideranças que antes eram de oposição às administrações governamentais, hoje, encontram-se atreladas ao Governo. Com isso, os entrevistados, em particular, os representantes do Conselho de Direito da sociedade civil percebem o próprio Conselho de Direito de Pernambuco como enfrentando momento de enfraquecimento e, de certa forma fragmentação de forças. Isso significa dizer que lideranças atuantes no passado de forma, articulada no próprio Conselho de Direito do Estado de Pernambuco, por exemplo, hoje, encontram-se, segundo alguns dos pesquisados em lados opostos politicamente, portanto, não necessariamente defendem as mesmas ações, medidas dos representantes da sociedade civil entrevistados. Além da ausência da lógica sistêmica (superposição de atribuições, informações fragmentadas ou repetidas), observou-se que algumas instituições pesquisadas incorporam para si a função de outros órgãos. Conforme opinião de um entrevistado, “o desvio de função ocorre, em muitos casos, pelos atos de violações cometidos pelos próprios órgãos que deveriam assegurar os direitos dos adolescentes”. Como exemplo, cita-se a prisão ilegal pelo Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA), antiga Gpca, e a ausência do pleno direito de defesa do adolescente. O número insuficiente de defensores públicos limita o acesso à Defensoria Pública. Isso significa que, comumente, o adolescente não conta com qualquer defesa e está prejudicado não só pelo quantitativo limitado de representantes desse órgão, mas também por não entender a linguagem hermética da área jurídica, difícil para qualquer pessoa que não seja especialista, mesmo as mais instruídas, e inacessível para a maioria dos socioeducandos por causa de seu grau de instrução. Vários entrevistados das instituições executoras, fiscalizadoras e deliberativas enfatizaram que a linguagem excessivamente técnica utilizada pelo judiciário agrava a dificuldade de compreensão dos adolescentes sobre o que está sendo decidido quanto às suas vidas futuras. Isto sem dúvida representa mais um entrave no processo de defesa. Dificultando ainda mais a situação dos adolescentes cita-se a baixa escolaridade da maioria. Uma pesquisa realizada pelo CNJ em 2012 chama a atenção para essa questão, concluindo que 70% dos adolescentes “infratores” do Nordeste do país cursaram até a sexta série do ensino fundamental, não terminando sequer a formação básica. Pelo exposto até agora, percebe-se a qualidade questionável das execuções das medidas socioeducativas de internação na RMR, onde se identifica a violação de vários dos direitos dos adolescentes. Isso é corroborado pelo fato das medidas de internação terem obtido os

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piores índices – de regular a péssimo – no que tange à qualidade de execução, em uma pesquisa feita pelo CNJ/IPEA (2011). Este estudo, em uma avaliação minuciosa, enumera os vários aspectos que devem ser contemplados pelas instituições responsáveis pelo cumprimento das medidas socioeducativas de privação de liberdade no Brasil, ainda que constate que a grande maioria não cumpre adequadamente as prerrogativas do Sinase. Afora as vulnerabilidades mencionadas, a precariedade da infraestrutura de alguns dos Conselhos Tutelares chamou a atenção durante o processo de pesquisa. Muitos não contam com o apoio financeiro dos municípios para o desempenho de suas funções e, segundo os entrevistados, alguns não dispõem sequer de recursos básicos como material de escritório, computador ou telefone, por exemplo. Se por um lado os indivíduos entrevistados ressaltaram a rotina sobrecarregada, o empenho em cumprir suas atribuições da melhor forma possível, mesmo sem recursos, e a insatisfação com o resultado de seu trabalho, por outro reconhecem que os desafios enfrentados pelos órgãos nos quais atuam para cumprir com o exercício efetivo de todas as suas funções institucionais independem dos esforços empreendidos individualmente. Não é por acaso que 60% dos representantes dos órgãos pesquisados afirmaram estar pouco ou nada satisfeitos com a maneira com que suas instituições funcionam (ver gráfico a seguir). Vale salientar que os entrevistados exerciam, majoritariamente, a função de gestão ou supervisão de seus núcleos, órgãos ou até mesmo instituições, significando que gozavam de certa autonomia na cadeia hierárquica.

Imagem resultante da instituição Está satisfeito com a atual gestão da instituição?

30%

30%

Parcialmente Sim Não

40%

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“A gente teria que tá visitando as unidades do Recife, Jaboatão e Abreu e Lima. Raramente a gente conta com esse transporte... o transporte é priorizado pra outras ações da Vara. Isso é um dado...” (Tribunal de Justiça) “Eu diria que é a dificuldade da gente de atender ao principal pressuposto de competência que nós temos, que é de fiscalizar o executor da semiliberdade e internação. Hoje, por conta de apreensões indevidas de adolescentes que são trazidos pra cá, pra Vara Regional... nós temos trabalhado muito mais até no sentido do atendimento ao adolescente fugado do que na fiscalização dada execução da medida socioeducativa...” (Tribunal de Justiça) “Não, eu acho que às vezes falta uma... não sei, eu acho que se eu fosse dizer onde é que tá mais frágil eu acho que é a possibilidade do sistema de articular com os municípios a implementação de políticas públicas.” (Órgão do Sistema de Justiça) “Outro limitador é a equipe reduzida... o quadro hoje do psicossocial é de oito profissionais pra atender o meio fechado e o meio aberto.” (Tribunal de Justiça) “De vez em quando há a iniciativa de ampliação numérica, mas hoje a gente vê que o problema não é só mais esse, a insuficiência numérica, é o estímulo a permanecer, né?! Porque por a gente tratar com uma demanda tão complexa e que é um acúmulo de demandas sociais não atendidas, não supridas... os profissionais que vêm pra cá, eles deveriam vir com o compromisso de permanecer, tanto deles quanto o do Tribunal em mantê-los. E aí o que também acontece é que muitos profissionais não se identificam e aí o Tribunal cede, deixando-os sair. As pessoas que chegam também percebem de cara que não é prioridade do Judiciário, e muito menos do Executivo, a efetividade do Sistema Socioeducativo, então acabam não achando sentido ficar aqui e pedem para sair.” (Tribunal de Justiça) “... por um fato simples. Como a abordagem policial, assim, busca e apreensão, já caracteriza uma certa ilegalidade, ela é remetida à GPCA e depois da GPCA à Uniai, e aí como, diante de algo... que aí eu volto à questão da falta da defesa, né, do adolescente, por essa falta da defesa, a demanda acaba vindo pra o Judiciário.” (Tribunal de Justiça) “Outro problema é o atendimento aos jovens fugados... atualmente, para o bem e para o mal, a maioria dos adolescentes em semiliberdade está fugado... não sei dizer com precisão, mas há um número muito extenso, parece que em torno de 600 adolescentes.” (Tribunal de Justiça)

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“O adolescente, segundo o Estatuto, teria que ser ouvido pela autoridade judiciária e ministerial... e aí quem tem feito a escuta somos nós, quando se trata de reincidência da fuga.” (Tribunal de Justiça) “No nosso Conselho Tutelar tem tudo: telefones, computadores, recursos humanos. Tem Conselho que não tem administrativo, que não tem um guarda municipal, não tem um serviço... Mas pra você ter ideia, tem Conselho no Estado por aí que o conselheiro tutelar é quem faz a faxina.” (Representante de Conselho Tutelar) “Se a gente, do ponto de vista formal, do que o Estatuto fala, da atuação do promotor de Justiça, é feito, eu já disse, tá direitinho ali. No Sistema de Garantias é muito isso, por que qual é o papel da gente? A gente fiscaliza a lei e a gente pode entrar através das promotorias de cidadania, implementar essa necessidade de entrar com procedimentos de investigação e tal, isso a gente faz. Agora, nem sempre a gente consegue, a gente tem muitas barreiras.” (Órgão do Sistema de Justiça)

“Barreiras até doutrinárias, mesmo, se a gente quiser, por exemplo, que o Estado implemente uma política tal. Aí o Estado entra com a defesa dele, de que não é o papel da gente... obrigar o cumprimento de uma... uma construção de um local, por exemplo, entendeu? Então, começa com essas questões até doutrinárias mesmo, que dificultam, que aí é por isso que o Socioeducativo, a gente tá brigando há anos. Porque começa com mil questionamentos jurídicos...” (Órgão do Sistema de Justiça) “Tá difícil, o nosso Conselho está numa inércia só.” (Representante de Conselho de Direito) “Parece um cabo de força, a sociedade civil no Conselho de Direito puxando para um lado e os membros do Conselho que representam o Governo para o outro, e a gente enfraquecido, sem poder agir, forçar mudança, e quanto a elaborar política pública, nem se fala. Não adianta dizer que está tudo bem, porque todo mundo sabe que não está...” (Representante de Conselho de Direito)

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Entraves no desempenho dos órgãos fiscalizadores e executores, desencadeando indiretamente práticas de violações

Limitação de recursos materiais e humanos

Incorporação para si de funções de outros órgãos Cumprimento parcial Missão institucional - acompanhamento da situação dos adolescentes em meio fechado torna-se secundária

Desconhecimento de papéis e poder

Atenção voltada aos prazos de processos judiciários ainda em tramitação, ou seja, não julgados, em detrimento da fiscalização rigorosa de violações e articulação para elaboração/ implementação de políticas públicas

Hierarquização do poder “ do juiz”/Resquício do código do menor

3.2 O que afirmam os outros atores? A pesquisa identificou, em suas duas fases, insatisfações generalizadas nos diversos segmentos estudados quanto à qualidade da medida socioeducativa de privação de liberdade na RMR. As opiniões de técnicos e agentes socioeducativos da Funase, bem como as de representantes das comunidades, referem-se a algumas das problemáticas já discutidas sobre as fragilidades das medidas socioeducativas, embora fundamentem seus pontos de vistas nas próprias vivências e experiências, ou seja, aquilo que Haraway (1988) denomina “conhecimento situado”, construído a partir de uma localização particular, um “pertencimento singular” no mundo. Sobre isso, é importante lembrar que o “conhecimento situado” é continuamente confrontado, atravessado pelas construções socioculturais da realidade. Como já foi dito, a sociedade brasileira é estruturada a partir de desigualdades históricas, profundamente arraigadas, e marcada por diferenças que fazem com que as oportunidades de vida estejam interpeladas por questões de classe, sexo, gênero, raça, etnia e orientação sexual, entre outros. 80


3.2.1 Narrativas dos técnicos e dos agentes socioeducativos da Funase Muitos dos aspectos que causam descontentamento nos técnicos e nos agentes socioeducativos que trabalham nos Case pesquisados também haviam sido mencionados pelos representantes das instituições fiscalizadoras e executoras, tais como baixo reconhecimento pelo trabalho realizado, condições laborais insatisfatórias, em um ambiente desgastante e pouco motivador para a permanência de funcionários e, ainda, risco de contaminação por doenças não tratadas dentro dos centros. Conforme salientado no grupo de discussão, outro fator de insatisfação com o trabalho é a temporalidade de grande parte dos contratos de trabalho dos agentes socioeducativos, com o prazo máximo de seis anos no exercício da função, o que representa 70% do quadro de agentes da Funase, hoje38. Alguns chegaram a mencionar que os adolescentes também sentem o impacto negativo dessa rotatividade. “É temporário e o trabalho só dura seis anos. O que eu acho absurdo, não só para a gente, que fica sem nenhuma garantia de trabalho, e também para os meninos. Imagina, a gente sabe que vai sair e eles não contam com ninguém com mais experiência, que já tenham certa confiança.” (Agentes/Técnicos, Case) “E quem é que vai investir nessa profissão, me diga?! Eu mesma vou ser muito sincera: só decidi começar a trabalhar na Funase porque já estava há muito tempo desempregada. Quem vai querer trabalhar num local que é estressante, perigoso, pois o tempo todo tem risco de rebelião, com comida péssima. Realmente, a comida é horrível, condições de trabalho péssimas e, além de tudo, não temos garantia de emprego.” (Agentes/Técnicos, Case) “Veja bem, depois que tem uma pessoa de experiência, após seis anos a Funase coloca na rua.” (Agentes/Técnicos, Case)

“... muita gente tem experiência, aprendeu com os meninos e, de repente, sai depois de seis anos e toda vez tem uma rebelião porque os meninos não aceitam as pessoas novas.” (Agentes/Técnicos, Case) “O salário também é péssimo. A gente ganha bem menos que dois salários mínimos.” (Agentes/ Técnicos, Case)

“E digo logo que essas pessoas que têm faculdade não vão querer ficar lá dentro, a realidade é essa, porque lá dentro tem doença, tem essa doença de coceira, como se diz? Sarna; tem vários tipos de doença lá dentro.” (Agentes/Técnicos, Case)

38. http://especiais.ne10.uol.com.br/por_tras_do_muro/internas/agentes.html.

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Afora baixos salários, instabilidade laboral ou ambiente sob a ameaça constante de rebeliões, os técnicos e agentes socioeducativos da Funase entrevistados salientaram que a maioria inicia seu trabalho na instituição sem preparo suficiente para lidar de forma profissional com as atribuições do cargo, em um meio tido como hostil e crítico no que tange inclusive à segurança pessoal. Foi dito no grupo que a maioria dos agentes começa sem ter tido experiência prévia com adolescentes em geral, nem com jovens que cometeram infrações. Somada à inexperiência profissional, os pesquisados assinalam a falta de preocupação da entidade em treinar e capacitar seu quadro de funcionários. É provável que a ausência de apoio institucional revelada pela pesquisa contribua para a falta de clareza desses servidores quanto a suas reais atribuições, particularmente no que concerne à rotina dos adolescentes privados de liberdade. Inclusive, emergiu no grupo o relato sobre certas restrições para o trabalho de mulheres que são técnicas ou agentes na sua relação com os adolescentes, pois, segundo as participantes, não é permitido um contato mais próximo.

“Mas qual era a da Funase? Estudar mais aquelas pessoas, passar um curso para elas, melhor ver quem queria ficar ou não. Mas lá a gente não tem apoio de nada, a gente ganhou um vale quase em dezembro, a gente gastava nosso próprio dinheiro com passagem para ir e voltar para a Funase.” (Agentes/Técnicos, Case) “... mas eu nunca trabalhei com adolescente na minha vida, eu nunca nem tive filho, pensei até: como vou trabalhar? Fui com a cara e a coragem, mas me dou bem com eles, aperto a mão deles e, às vezes, as mãos estão cheias de sarna e eu nunca peguei sarna, às vezes estão com raiva porque querem sair, ai eu digo que se eu estudasse e fosse juiz eles já tariam na rua...” (Agentes/Técnicos, Case) “Eu queria fazer mais, ler um versículo, falar a da palavra de Deus, passando força para os que estão agressivos, tristes, mas eles já disseram que a gente, mulher, não é para conversar com os meninos.” (Agentes/Técnicos, Case)

Os fragmentos das narrativas configuradas, tanto nos grupos de discussão com adolescentes como com técnicos e agentes socioeducativos, deixaram entrever a onipresença do abandono em que os jovens se encontram na maior parte dos Case da RMR. Os textuais que ilustram este artigo permitem identificar vários aspectos que corroboram tal percepção. Um deles é que o Estado vem contratando profissionais – a exemplo dos agentes socioeducativos – para, “supostamente”, lidar e acompanhar os adolescentes diariamente, embora geralmente não possuam formação ou experiência de convívio com adolescentes ou jovens em situação de vulnerabilidade. Um segundo aspecto é a negligência com a saúde dos adolescentes nas unidades de internação, algo que surgiu em vários momentos durante os grupos com os jovens. 82


No âmbito da Funase identifica-se, também, a reprodução da cultura patriarcal classista e racista, arraigada no passado histórico colonial escravocrata de Pernambuco e do Brasil, que aparece aliada à continuidade da percepção dos adolescentes como “marginais” e “perigosos”. Neste contexto, as agentes socioeducativas acabam desempenhando um papel secundário em comparação com seus colegas do sexo masculino, por serem orientadas a não se aproximarem e “impedidas” de dialogar abertamente com os jovens. De acordo com as entrevistadas, a justificativa explícita é o fato de se tratar de adolescentes “criminosos”, que supostamente podem violentá-las, o que revela, por sua vez, imensa contradição – como esses agentes socioeducativos podem efetivamente contribuir para cultivar nesses adolescentes possibilidades/oportunidades de novas escolhas, projetos de vida, se eles mesmos os vêem como criminosos, marginais? O que a pesquisa no Socioeducativo demostrou foi o sofrimento vivenciado pelos adolescentes que, infelizmente, segundo os próprios pesquisados, não costumam ter espaços disponíveis no âmbito da Funase para o desabafo, o alívio - suscitado pelos “prantos de choro”, possibilidades para confrontar escolhas passadas e desejos presentes de forma mais suportável emocionalmente, compartilhar suas dores, mágoas, tristezas, melancolias, esperanças, receios de repetições e/ou anseios por mudanças de forma a contar com escutas atentas. A pesquisa identificou que, praticamente, hoje, os adolescentes pesquisados não têm acesso a processos terapêuticos, socioeducativos, que abram espaço para diálogos, escutas atentas e possibilitem processos dinâmicos, compatíveis com mudanças, seja através do alívio de dores e sofrimentos, aquisição de novos conhecimentos e aprendizados, interações com novas oportunidades, enfim, possibilidades propícias ao vislumbramento de novos caminhos. A temporalidade do quadro de funcionários da Funase e o fato da instituição não priorizar a interação entre adolescentes e técnicos, e agentes socioeducativos, contradiz completamente as pesquisas recentes sobre práticas restaurativas realizadas em países como Canadá, Reino Unido e Estados Unidos (Burnett and McNeil, 2005; O’ Connor, 2008; Brayford, J; Cowe, F; and Deering, John, 2010). Fica evidente, portanto, o quanto a atuação da Funase no presente contraria várias experiências bem-sucedidas de ressocialização juvenil, que têm mostrado a importância de se investir na construção de vínculos interpessoais que garantam uma relação de confiança, respeito e acolhimento entre a equipe profissional e técnica das unidades de internação e os socioeducandos. A tendência, quando se desenvolve esse tipo de vínculo, é que os adolescentes se sintam mais propensos e motivados a realizar, gradualmente, mudanças significativas em seus comportamentos (Burnett and McNeill, 2005; O’Connor, 2008). Por isso, vários autores enfatizam a importância da consistência e da permanência dos profissionais nas unidades de internamento como um fator associado ao sucesso dos programas. Neste aspecto, como em outros tantos, Pernambuco está longe do ideal, tanto pelo que se pode inferir a partir do mencionado no grupo de discussão como por informações obtidas por outros meios39. Além da instabilidade dos cargos, os profissionais com mais antiguidade costumam ocupar funções administrativas e tampouco estabelecem contato com os adolescentes.

39. http://especiais.ne10.uol.com.br/por_tras_do_muro/internas/agentes.html.

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“Profissionais que soubessem socializar, que não tem. Soubessem chegar, conversar, conciliar.” (Adolescentes, Case)

“Soubessem tratar as pessoas bem. Porque pra eles, a gente é meio que lixo.” (Adolescentes, Case) “A gente é um monte de vadia que não tem o que fazer, marginais. Só que nós somos pessoas que erramos por falta de instrução. E, às vezes, porque quisemos mesmo.” (Adolescentes, Case) “E que a gente nunca vai mudar, que a gente não presta pra nada.” (Adolescentes, Case) “E a gente vai ser o tipo de pessoa que se eles cruzarem na rua vão ter que mudar de calçada. A gente vai ao encontro deles numa rua e eles vão mudar de calçada. Porque, pra eles, é um monte de bandida. Só que não somos. Quem sabe algum dia não seremos uma das juízes?” (Adolescentes, Case)

As verbalizações de técnicos, agentes socioeducativos e adolescentes deixam entrever que os profissionais da maioria dos Case pesquisados acabam baseando suas práticas em concepções negativas sobre os jovens, a quem consideram que não se pode dar confiança. A pesquisa aponta que esses funcionários não são valorizados na sua qualificação e capacitação, a fim de que possam contribuir efetivamente nos processos de aprendizagem e desenvolvimento das potencialidades desses adolescentes. De acordo com o Sinase, isso deveria ser a função essencial de um centro socioeducativo. No entanto, a perspectiva socioeducativa não parece ser prioridade na maioria dos Case da RMR pesquisados, o que deixa dúvidas sobre a verdadeira crença dos que trabalham nessas instituições e sua qualificação para colocar em prática o que está previsto em lei. Até que ponto os dirigentes, os gestores e os profissionais confiam no sucesso das medidas socioeducativas e na possibilidade de cumpri-las? Os funcionários pesquisados, tanto temporários como fixos, opinam que a instituição, além de não contribuir para a vivência de experiências de aprendizados ou de transformação, expõe os adolescentes a situações de sério risco, como acontece em alguns Case: ameaça de morte, abuso sexual ou violência física, entre outras. O problema do abuso sexual emergiu nos grupos de adolescentes de ambos os sexos. Muitos afirmaram que além da troca de favores sexuais ser fato corriqueiro entre os adolescentes, frequentemente os jovens se veem obrigados a manter relações sexuais para não sofrerem violência. Aparentemente, esses são casos comuns, para os quais não costuma haver responsabilização, visto que a proteção e garantia dos direitos dos adolescentes, hoje, não é prioridade na maioria dos Case. A pesquisa realizada em 2013 ilustra alguns aspectos que fundamentam a situação descrita, semelhante à encontrada no ano anterior – infraestrutura física deficiente, configuração de

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presídio e não de lar, superlotação e praticamente inexistência de atividades pedagógicas e educacionais. Expõe-se, mais uma vez, “o círculo vicioso” de repetições que tem como consequência o despreparo dos adolescentes para voltar às suas comunidades com dignidade. Os seguintes textuais deixam claro que no cotidiano desses jovens predomina o convívio com ausências em praticamente todos os aspectos da vida, mais do que qualquer forma de experiência pedagógica ou vivência que suscitem reelaborações de perspectivas futuras. A situação constatada é tão grave que no grupo de técnicos e agentes socioeducativos a Funase foi comparada com “lixões humanos”.

“É para profissionalizar e eles saírem prontos para o “mundão” como eles dizem, para levar uma vida como a gente... Mas como eles vão sair de lá? Porque eles são espertos, eles são tão espertos que se der uma peça e uma ferramenta eles fazem um avião, eles fazem uma máquina de fazer tatuagem com o motor de um DVD, tem que ver como um menino fez...” (Agentes/Técnicos, Case) “Eles são muito inteligentes, aqueles meninos, e perdidos ali, um olhando para a cara do outro e querendo um ter sexo com o outro, e às vezes eles colocam alguma coisa na boca que os homens não dão para escutar e tem violência sexual... não tem a visita íntima deles, não tem... Hoje, o que eu sei é que a medida socioeducativa é mais uma punição – na verdade, sinto que mistura os direitos deles com o crime que fizeram... A última rebelião que teve, os adolescentes que se machucaram tavam lá por furto pequeno, foi furto pequeno, roubo de celular, de comida, e sei que qualquer um deles pode morrer ali, porque aqueles meninos que praticaram esses furtos pequenos não eram para estar ali...” (Agentes/Técnicos, Case) “E também aqueles meninos mais afeminados que estão ali misturados com os meninos, e eu não sei o que acontece, porque eu não trabalho dentro da ala e eles não vão dizer para mim, eles têm medo porque eu posso falar e chegar o chefe da ala dele, dos adolescentes, e quebrar o menino... mas sei que esses meninos mais moças sofrem um bocado... apanham, são abusados, têm que fazer sexo...” (Agentes/Técnicos, Case) “Eles, esses meninos mais afeminados, ficam com medo... eles têm um medo danado de falar, porque sabem que se falar, morrem. Vários do que eles chamam X9, que já falou algo, morreram em rebeliões, de pisa, até quebraram a cara todinha.” (Agentes/Técnicos, Case) “Às vezes realmente dá dó, o adolescente fica perguntando quando vai ficar livre e fica dizendo que a equipe só faz cozinhar e a equipe força muito, mas tem a lei, tem o juiz e a legislação, é tudo cruel, às vezes um celularzinho tijolinho, ele devolveu e a mulher deu queixa dele e ele está lá, tomando remédio de nervo, e a gente vê que não era para aquele menino estar ali na Funase.” (Agentes/Técnicos, Case)

“Tem tanto menino que podia tá num lugar melhor, podia tá aprendendo alguma coisa. Agora tá ali, enfurnado, com ódio crescendo por dentro.” (Agentes/Técnicos, Case) 85


Esses fragmentos de narrativas refletem o que havia sido apontado por todos os segmentos entrevistados quanto à situação verificada nos Case da RMR pesquisados, nos quais há adolescentes cumprindo medidas em meio fechado sem que suas infrações o “justifiquem”, que registram um alto grau de absentismo escolar e uma insuficiente oferta de atividades pedagógicas, forçando os jovens à ociosidade, e onde as violações e os abusos sexuais parecem ser frequentes, especialmente para adolescentes com orientação sexual não heteronormativa ou com identidade de gênero cujo sexo biológico difere do gênero que a pessoa se identifica40. O quadro revelado nessas unidades do Sistema Socioeducativo é inteiramente inaceitável e fere frontalmente o que preconiza o ECA e a lei do Sinase.

3.2.2 Narrativas sucintas de representantes das comunidades de origem dos adolescentes em privação de liberdade Durante a realização do grupo de discussão com os representantes das comunidades incluídas no Projeto – onde moram familiares de vários adolescentes internos nos Case estudados –, emergiram relatos sobre diversas situações de grande vulnerabilidade social, que tendem a se agravar, inclusive, pela atuação deficiente da rede socioassistencial. Um dos aspectos salientados pelos pesquisados foi a carência de serviços de assistência social, sanitária, jurídica, educacional voltados para a reintegração desses adolescentes na comunidade, que se reflete na alta incidência de egressos fora da escola e na dificuldade de acesso a apoio psicossocial ou a uma atenção sanitária eficaz para o combate ao uso abusivo de drogas, por exemplo. Para os entrevistados, essas comunidades são marcadas pelo abandono quase absoluto. Mencionam a ausência do poder público no cotidiano das comunidades, que geralmente se faz presente apenas para controle policial em casos extremos, como assassinatos ou tráfico de droga, ao invés de atuar com medidas protetoras e de prevenção.

“Realmente não é fácil trabalhar com comunidade, porque o poder público claramente precisava estar lá dentro e não está.” (Representantes da comunidade) “Não tem nem o poder público, nem praticamente mais ninguém...” (Representantes da comunidade)

“O poder público não poderia entrar na comunidade somente como polícia, tem que entrar com saneamento, educação, tem que dar assistência. É obrigação do Estado, mas o Estado não cumpre sua obrigação.” (Representantes da comunidade)

40. O despreparo e ausência de políticas públicas que contemplem a questão da pluralidade quanto à orientação sexual e identidade de gênero das pessoas não se limita ao segmento dos adolescentes.

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“Tem o problema seriíssimo das drogas nessas comunidades, em que todos os dias perdemos vários jovens para ela. E o que o Estado está fazendo?” (Representantes da comunidade) “O que acontece nas nossas comunidades é a droga se alastrando por todo canto, comprometendo os nossos jovens até o fim.” (Representantes da comunidade) “Roubo por traficantes, adolescentes virando traficantes, sendo mortos, indo para a Funase, saindo e ficando no Cotel”. (Representantes da comunidade)

As opiniões verbalizadas nesses fragmentos de narrativas indicam, por um lado, a fragilidade das políticas públicas na área de saúde, educação, assistência e cultura, entre outras. Por outro lado, uma atuação dos serviços de segurança pública predominantemente repressiva, posto que não raro a própria polícia é uma das principais violadoras dos direitos dos moradores das comunidades de periferia. Esses textuais reproduzem, também, um imaginário social de que algumas práticas exercidas nesses ambientes – tráfico, uso abusivo de drogas, violência – são as causas principais do “problema”, sem que as questões estruturais sejam, de fato, evidenciadas e enfrentadas. A percepção unânime entre os partícipes do grupo de representantes comunitários foi que os egressos da Funase saem da instituição muito fragilizados no que se refere a ausência de processos e atividades que fomentem a revisitação e fortalecimento dos seus projetos de vida. Segundo essas pessoas, quando os adolescentes retornam às comunidades costumam encontrar a mesma realidade marcada por restrições materiais, precárias condições de vida e vulnerabilidade sociofamiliar, entre outras questões, o que na maioria das vezes pode levar ao reatamento dos vínculos com antigas amizades relacionadas aos atos infracionais que cometeram e, posteriormente, ao retorno à Funase ou ao Cotel, em caso de maioridade. Salienta-se que a fragilidade das políticas públicas que visam o fortalecimento da família e seus vínculos contribui para que os adolescentes egressos muitas vezes não recebam, por parte dos familiares e da comunidade, o apoio necessário para buscar e concretizar seus projetos de vida. Conforme os entrevistados, normalmente isso não se deve à falta de vontade em ajudar os jovens no seu retorno à casa, mas sim a restrições materiais e a consequente preocupação com a sobrevivência familiar.

“O que vejo é a saída dos adolescentes sem nenhuma expectativa de melhora. Geralmente, pelo que vejo, eles saem da Funase sem expectativas, planos, nada.” (Representantes da comunidade)

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“Saem sem nenhuma expectativa de melhorar de vida. Fico espantada”. (Representantes da comunidade) “Vejo os meninos sem voltar à escola, sem perspectiva de trabalhar e sem acreditar que não vão retornar à Funase. Parece que eles saem achando que em breve vão voltar!” (Representantes da comunidade)

“E, infelizmente, o que a gente vê é isso mesmo – meninos caindo e voltando para Funase.” (Representantes da comunidade)

“Quando eles chegam aqui, encontram a família desestruturada, geralmente a mãe, que não tem condições financeiras, coitada, nem para o básico. E muitas vezes esses adolescentes acabam encontrando as condições piores.” (Representantes da comunidade) “Não tem um apoio, uma escola, nada.” (Representantes da comunidade) “Os poucos que eu conheço não voltaram à escola, acabam voltando para a patota da droga, do tráfico, em busca do dinheiro fácil; e se for menina, volta a namorar, a se envolver com bandido, a fazer o tráfico e a namorar com meio mundo de gente.” (Representantes da comunidade)

Apesar do processo de reelaborar configurações de narrativas ser eminentemente aberto e contínuo, sabe-se da importância da construção de “valores positivos” e das vivências de oportunidades reais para a orientação das escolhas de vida, da mudança de práticas previamente adotadas e do planejamento do futuro. Isso significa que é necessário investir em atividades pedagógicas nas unidades de internação dirigidas a elementos de vida construtivos, éticos, que possibilitem o desenvolvimento de transformações nos adolescentes e ajudem a guiar novas escolhas e propósitos de vida. Diversos trabalhos e estudos vêm demonstrando que são justamente a experiência de reconstruir qualidades internas e a vivência de elementos identitários positivos que influenciam os adolescentes na adoção de novos rumos. O êxito desse processo de fortalecimento interior tem sido comprovado em vários programas de ressocialização por todo o mundo. Muitas vezes, iniciativas simples são bem-sucedidas, como é o caso de um programa de leitura e discussões em grupo denominado Leitura para a Vida (Reading for Life)41, que se iniciou com adolescentes que cumpriam medida de serviço comunitário e, posteriormente, foi estendido a jovens em privação de liberdade em South Bend, Indiana, Estados Unidos. Baseia-se, essencialmente, em leituras de livros que oferecem exemplos vibrantes de virtudes como ética, solidariedade, fidelidade, esperança, prudência e justiça, entre outras. Em geral, o programa tem duração média de 12 semanas, com sessões semanais de duas horas. No final, os adolescentes

41. Ver http://ireadforlife.org/; http://iei.nd.edu/programs/reading-for-life-helps-juvenile-offenders/.

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apresentam para os pais o que leram e aprenderam durante essas semanas. Um estudo sobre os resultados da atividade demonstrou que 99% dos concluintes do programa não reincidiram no sistema prisional. A pesquisadora não pretende afirmar, com isso, que um programa isolado, a exemplo do Leitura para a Vida, irá resolver as várias problemáticas encontradas na execução das medidas de privação de liberdade na RMR. O que esse programa tentou mostrar, assim como tantos outros que adotam perspectiva semelhante, é que o processo de execução de medidas socioeducativas precisa ser fundamentado em um engajamento profundo com as necessidades reais dos adolescentes. As medidas socioeducativas devem prever e promover a mudança do indivíduo e, para isso, é necessário que o Estado exerça seu papel como garantidor de direitos, embasado em políticas públicas que possibilitem uma vida digna, justa e livre para todos os cidadãos. A falta do suporte adequado da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Estado faz com que seja muito difícil, para os adolescentes, a descoberta de oportunidades que provoquem a ressignificação de experiências e vínculos, e favoreçam o fortalecimento da autoestima e o autorreconhecimento como sujeitos de direitos e deveres. Quando isso não acontece, permanece a situação atual, na qual os jovens parecem se sentir perdidos por não contar com o apoio necessário e “entregues à própria sorte”. No processo da pesquisa empírica e teórica, observou-se que os adolescentes em privação de liberdade geralmente se percebem como estigmatizados, marginalizados e com seus direitos violados. Sabe-se que essas percepções, quando não reelaboradas, podem impulsionar a reprodução de relações e comportamentos com diversas pessoas, em diferentes espaços, semelhantes àqueles vivenciados antes do cumprimento das medidas socioeducativas (Center for National Policy, 2001). Neste contexto, a reincidência no cometimento do ato infracional, o retorno dos adolescentes e dos jovens aos Case ou à prisão – ou mesmo o extermínio de suas vidas – pode comprometer o seu futuro.

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Experiências dos adolescentes em Centros de Atendimento Socioeducativo na Região Metropolitana do Recife: vivências socioeducativas?

As narrativas dos adolescentes mostram, em sua maioria, o quanto a experiência nos Case é significativamente marcada por ausências. A sensação de estarem em uma prisão é frequente, pois vivem em espaços semelhantes a presídios, em nada parecidos com um lar. Mesmo as adolescentes do sexo feminino, internas em um Case com estrutura parecida à de uma casa, dizem perceber o espaço como uma espécie de “lotação”. A pesquisa revelou, também, que a experiência de viver numa prisão é bem mais ampla e transcende o espaço físico, dado que está intrinsecamente associada à privação de liberdade, ao fato de não dispor do direito básico de ir e vir. Observou-se que a experiência da privação de liberdade é vivenciada de forma ambígua. Por um lado, os adolescentes identificam racionalmente que estão sendo “punidos” por suas infrações – ficou muito claro, durante toda a pesquisa, que eles compreendem a medida socioeducativa de privação de liberdade como punição. Por outro lado, os jovens ilustram uma série de reações distintas, como raiva, incompreensão, desamor ou vingança que possivelmente estão vinculadas, de forma subliminar, ao sentimento de “vitimização” e exclusão social, como se a sociedade não tivesse oferecido outras oportunidades mais dignas de existência e, sim, preconceitos e discriminações. Outros aspectos relacionados com a experiência nos Case da RMR e a privação de liberdade foram, por exemplo, a falta de apoio jurídico – percebe-se nas narrativas dos adolescentes elementos que denunciam ausência de informação e acompanhamento da evolução das medidas socioeducativas individuais – ou de oportunidade de continuidade dos estudos nas escolas públicas, com exceção dos adolescentes que estão no ensino médio, uma minoria, bem como a escassez de atividades pedagógicas, esportivas e culturais na maioria dos centros de internação. Acrescente-se, ainda, o relacionamento conflitivo com alguns agentes socioeducativos que, muitas vezes, culmina em agressões físicas42 e psicológicas ou rebeliões, 42. Quanto à incidência de agressões físicas, é preciso ressaltar que as menções a esse respeito ocorreram em diversos momentos no processo de pesquisa em 2012, mas não se repetiram em 2013. Todavia não foi possível identificar, a partir dos grupos, o que contribuiu para impelir o que se denomina como “pacto de silêncio” entre os adolescentes entrevistados. Há várias possibilidades, entre as quais se cita que poderia haver certa redução nas agressões físicas dentro das unidades no período de um ano, aproximadamente, embora esse problema não tenha sido inteiramente solucionado. Por exemplo, em 2013 foi divulgado que o Case de Abreu e Lima registrou, no mês de junho, agressões de agentes socioeducativos contra socioeducandos, devidas à reclamação dos jovens pelo desligamento da luz antes do horário previsto e, nessa mesma unidade, um adolescente foi assassinado por seus pares em abril desse ano. Outra possibilidade é que os adolescentes tenham optado pelo “silêncio” em virtude do receio de se tornarem vítimas de mais violências e punições. Ver links: http://www.folhape.com.br/blogdafolha/?p=104640, http://blogs.diariodepernambuco.com.br/segurancapublica/?p=4144 e http://blogs.diariodepernambuco.com.br/segurancapublica/?p=3469.

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muito embora nos grupos realizados em 2013 esse aspecto tenha sido mencionado apenas de forma indireta. Foi observado certo acordo de silêncio entre os pesquisados, que evitaram falar em agressões, algo expressado de forma muito mais explícita e espontânea na primeira fase da pesquisa (Groarke, 2012). Conforme explicitado no relatório da pesquisa realizada no segundo ano do Projeto (Groarke, 2012), as sensações predominantes entre os adolescentes que vivem nos Case são descritas como monotonia, repetição, abandono, desvalorização e falta de dignidade. Nesse sentido, não foi identificada qualquer mudança significativa entre as duas etapas do estudo. A percepção quanto ao cotidiano nas instituições continua marcada por sentimentos de negatividade. Os jovens pesquisados não identificam perspectivas de mudanças ou transformação de vida, visto que o ambiente, segundo a maioria, acaba influenciando negativamente os socioeducandos, inclusive aqueles que estão na Funase por erro do judiciário, já que suas infrações não justificariam a internação.

“Eu tou há um mês aqui, mas parece um ano. Não tem o que fazer. Todo dia é a mesma coisa – acorda, come, escola, almoça, fuma, tranca. Cinco horas é hora da janta. Oito horas, lanche. Dez horas, recolhe. Às vezes, eu fico só olhando pro teto, é tédio, total.” (Adolescentes, Case) “Só sábado que tem uma diferençazinha, porque liberam a piscina e a gente fuma quatro cigarros ao invés de três.” (Adolescentes, Case) “Casa não... é uma lotação, menina dormindo no chão. Na casa 51, por exemplo, são 51 meninas.” (Adolescentes, Case) “É uma chatice a vida aqui... repetição: a gente acorda, toma café, aí fica em casa sem fazer nada... quem quer vai pra escola, mas pra mim aquilo ali não é uma escola.” (Adolescentes, Case) “A vida lá não tem o que ensinar, não. Os ASE já acordam a gente gritando. E qualquer coisa que fizer, já corta o cigarro.” (Adolescentes, Case) “Tem menina que já acorda quebrando tudo. São eles aos gritos e elas no quebra-quebra, as baratinadas, mais doidas e perturbadoras, que tomam remédio.” (Adolescentes, Case) “É briga, é estresse, é tudo. E tudo isso longe da família e longe de quem a gente gosta.” (Adolescentes, Case)

“Lá dentro, lá não deixa ninguém feliz.” (Adolescentes, Case) “Somos tratados como cachorros.” (Adolescentes, Case) “Dentro do Case ninguém é feliz, porque está preso.” (Adolescentes, Case)

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“E quem vai correr por causa de nós?” (Adolescentes, Case) “Muitos ADS acham que são melhores que a gente.” (Adolescentes, Case) “Para mim, Case significa inferno.” (Adolescentes, Case) “A gente entra aqui e já sabe que vai penar. E o pior é que só sabe o dia que entra, mas não sabe quando volta.” (Adolescentes, Case) “Nesse lugar ninguém gosta de estar, ninguém pode estar bem aqui...” (Adolescentes, Case) “Lá é o inferno.” (Adolescentes, Case) “Lá não ressocializa ninguém. Piores situações.” (Adolescentes, Case) “A pessoa sai de lá pior.” (Adolescentes, Case) “Tem meninas que nem eram dessa vida e agora, lá dentro, mexeu até com a cabeça delas. Elas tão completamente mudadas do que entrou. Entrou de um jeito e saiu de outro.” (Adolescentes, Case) “Tem menina que entra de um jeito e sai de outro. As meninas que não são dessa vida, que caiu por besteira.” (Adolescentes, Case)

Quanto à rotina – identificada como desestimulante pelos adolescentes –, não houve diferenças entre os entrevistados de ambos os sexos, permanecendo a mesma situação observada na primeira fase (Groarke, 2012). Há diferenças significativas entre os dois Case masculinos pesquisados. Um deles conta com uma infraestrutura razoavelmente adequada, a comida normalmente é apreciada e são oferecidas opções de lazer, educação física, música, canto e artesanato. No outro centro, são descritas ausências quase totais: os adolescentes passam quase o dia inteiro confinados dentro das alas, em um espaço físico descrito por eles como similar “a um presídio”, onde falta um refeitório, a comida é considerada como “lavagem” e as camas são insuficientes. Os jovens mostraram dificuldades em expressar algo positivo sobre essa unidade de internação, mesmo quando estimulados. Após diversas técnicas, o máximo que conseguiram lembrar foi de um pequeno espaço para jogar futebol, algo ansiado, mas que não ocorre com

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a regularidade desejada. O Case feminino, embora tenha problemas estruturais graves como, por exemplo, superlotação e falta de equipamentos básicos, ainda oferece algum tipo de lazer, mesmo considerado pelos entrevistados como repetitivo. As verbalizações permitem traçar, de forma ilustrativa, um panorama da situação dos Case, desde a perspectiva das narrativas produzidas pelos adolescentes: Case A: masculino, estrutura totalmente precária, onde não se atende às condições básicas de existência, como direito à alimentação digna, ao sono (falta de camas), à saúde e à educação. É, sem dúvida, o mais precário entre os centros pesquisados; Case B: masculino, estrutura em melhor estado geral, organizado, onde há cuidado com a higiene, rotina de regras e obrigações, frequência regular à escola e opções de lazer. Este centro está mais próximo ao que é descrito pelo Sinase quanto a prerrogativas de medidas socioeducativas de privação de liberdade, embora ainda haja necessidade de ajustes para o efetivo cumprimento da lei; Case C: feminino, com problemas de superlotação que impedem assegurar uma experiência positiva, carência de uma rotina motivadora de aprendizado, ainda que se proporcionem algumas atividades culturais e de lazer, consideradas insuficientes, embora a rotina diária tenha sido descrita como “pobre”, sem muitas opções de atividades físicas, esportivas ou pedagógicas.

“A casa tem 32 camas e 52 adolescentes, o povo tá dormindo pelo chão. Tem escorpião, tem barata.” (Adolescentes, Case) “A casa é lotada, não cabe nem uma formiga. As meninas dormem no chão.” (Adolescentes, Case) “Dormem num colchão dessa finurinha.” (Adolescentes, Case) “A comida mesmo; parece que nós é cachorro.” (Adolescentes, Case) “É horrível, a comida... Parece lavagem de porco.” (Adolescentes, Case) “Leva a gente para eventos como, por exemplo, a apresentação da quadrilha em Caruaru e no Cabo.” (Adolescentes, Case) “Vim de outro lugar e achava muito melhor, porque lá a gente ficava solto, jogava bola e aqui a gente passa o dia preso.” (Adolescentes, Case) “Às vezes, em uma semana a gente só joga bola duas vezes.” (Adolescentes, Case)

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“Almoçar, é no chão mesmo. A colher é a tampa de alumínio.” (Adolescentes, Case) “Tratam mal a gente. A gente só vive dentro da cela, trancado.” (Adolescentes, Case)

A segunda fase da pesquisa voltou a identificar fragilidades no sistema educacional oferecido aos adolescentes privados de liberdade. Os jovens de ambos os sexos denunciaram a existência de um processo de ensino deficiente dentro e fora dos Case43, cujo nível é baixo, com métodos e práticas pedagógicas pouco criativas e desinteressantes. O relato comum foi que muitos dos jovens não frequentam a escola diariamente, principalmente nos Case A e C. Em um deles, inclusive, há impedimentos para que os adolescentes compareçam à escola diariamente, mesmo que o desejem, como consequência da rotina de revezamento para evitar o encontro de membros de alas rivais. Essa dinâmica também foi mencionada no grupo de discussão de agentes e técnicos da Funase.

“O que precisava era educador, educar os meninos, porque têm uns que têm família, tem outro que não tem e as famílias são pobres... era para dar cursos para eles, porque têm meninos que são mais esforçados em aprender e não ficam deitados assistindo televisão, assistindo coisas que não valem nada na televisão, sem futuro. Às vezes tem uma escolazinha, mas às vezes não pode juntar ala com ala, aí são muito poucas as aulas para eles.” (Agentes/Técnicos, Case) “Vai para o colégio de vez em quando.” (Adolescentes, Case) “Um curso, uma escola.” (Adolescentes, Case) “Não oferece nada que ajude a gente depois, não tem curso de informática, computação.” (Adolescentes, Case)

“Tem muitas coisas: ler, aprendizado, estudar, falar inglês, um monte de bagulho que agora sei que é importante o cara aprender e aqui a gente não faz.” (Adolescentes, Case) “Dizem que é uma escola, mas que, na verdade, escola não é nada. Não tem organização, não tem material, não tem nada...” (Adolescentes, Case)

43. As adolescentes pesquisadas mencionaram que frequentam a escola fora do Case, em um espaço reservado exclusivamente para elas, ou seja, que assistem às aulas separadas das adolescentes que não estão cumprindo medidas socioeducativas.

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“Como não pode botar nós pra estudar numa escola, fizeram um anexo para que a gente vá estudar.” (Adolescentes, Case) “Nem caneta tem pra gente escrever.” (Adolescentes, Case) “Horrível! Não tem organização. Alguns não respeitam. E a gente, quando volta, ainda passa por uma humilhação. Porque tem que ser ‘baculejada’ todo dia que volta.” (Adolescentes, Case) “A gente arreia o short e a calcinha, abaixa três vezes e sobe de novo, depois levanta a blusa e o sutiã.” (Adolescentes, Case) “Pega no cabelo, abre a boca, tira relógio, um ‘baculejo’ muito ruim, toda vez. Por isso que eu não vou pra escola, fico sem estudar mesmo. Porque eu não vou tá passando por essa humilhação.” (Adolescentes, Case)

Além de reclamar da precariedade das condições de ensino – marcadas pela falta de materiais, a precariedade das estruturas físicas e a ausência de aulas e estratégias didáticas atrativas, por exemplo – onde parece faltar o mínimo, os adolescentes sentem-se desestimulados para frequentar a sala de aula, pois, segundo alegam, as aulas não agregam nada à sua vida presente ou futura. A sensação da maioria é que os professores conversam mais do que ensinam (“eles só vão mesmo para bater papo”). Ainda assim, vale destacar que, diferentemente das críticas feitas ao tratamento hostil por parte de alguns agentes socioeducativos, o relacionamento com professores, pedagogos e psicólogos não foi visto como problemático ou conflitivo, de modo geral. No entanto, sente-se falta, nesses profissionais, de uma maior proatividade e dinamismo para orientar os adolescentes sobre como conquistar sua liberdade ou para informá-los do estágio de seus processos. As adolescentes reclamaram do constrangimento de serem revistadas após o retorno da escola e houve, inclusive, quem mencionasse preferir deixar de frequentar as aulas para evitar esta situação embaraçosa. Outra crítica recorrente foi quanto ao fato da educação nos Case ser realizada em um regime de vigilância permanente, com a presença de agentes, em espaços restritos aos socioeducandos. Os adolescentes expressaram o desejo de frequentar as escolas públicas com outros alunos “ do mundão”44, o que possibilitaria a troca de experiências e daria a oportunidade de ter acesso a uma metodologia de ensino mais dinâmica, algo percebido como distante pela maioria dos socioeducandos.

44. Esta é a forma como os adolescentes se referem à vida e ao mundo fora das unidades de internação.

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Embora a sensação de aprendizado “vigiado” não tenha sido aprofundada nos grupos, a pesquisa captou, subliminarmente, sensações contraditórias entre os adolescentes, posto que os mesmos consideram que, de uma forma ou de outra, a possibilidade de engajamento no processo de aprendizado é limitada quando não se goza de liberdade. Provavelmente, os jovens se referem ao sofrimento que experimentam em virtude da privação de liberdade, que lhes impossibilita de “galgar outros voos” nesse momento de suas vidas por estarem “trancados”. Em todo o processo de pesquisa, a menção acerca da restrição de liberdade foi frequente.

“Escola é só conversa. Ir para falar.” (Adolescentes, Case) “Acho que dizem que tem escola porque é obrigatório, mas escola mesmo, não... isso é mais uma promessa.” (Adolescentes, Case) “A escola aqui é um ó.” (Adolescentes, Case) “Eu, por exemplo, só fui chamado para sala de aula neste ano uma vez.” (Adolescentes, Case) “Os caras não chamam a gente para estudar e depois diz que a gente não quer.” (Adolescentes, Case) “Para que estudar?” (Adolescentes, Case) “Eu realmente vou dizer uma coisa: estando trancado, não faz sentido estudar.” (Adolescentes, Case) “Ontem foi a primeira vez que fui para escola e o professor me perguntou se eu queria ser um cavalo ou um burro, achei aquilo muito sem graça.” (Adolescentes, Case) “Acho que você não entendeu a brincadeira, porque eu tava lá e não achei ofensivo.” (Adolescentes, Case)

“As tarefas da escola daqui parecem da primeira série.” (Adolescentes, Case) “Não tem comparação com o colégio do mundão.” (Adolescentes, Case) “A escola aqui não avança, a gente volta sempre para a mesma classe.” (Adolescentes, Case) “Não passa, volta para mesma coisa.” (Adolescentes, Case) “Na escola tem um moi de ADS.” (Adolescentes, Case)

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A Secretaria da Criança e da Juventude do Estado, em parceria com a Secretaria Estadual de Educação, vêm desenvolvendo uma metodologia específica para embasar as aulas junto aos adolescentes privados de liberdade, além de oferecer uma gratificação aos professores que irão atuar dentro dos Case. Essa é, sem dúvida, uma ação positiva que poderá contribuir para o processo de mudança e fortalecimento do Sistema Socioeducativo em Pernambuco. Outra forma de ilustrar a precariedade que caracteriza a maioria dos Case é a ausência de uma infraestrutura que ofereça atividades socioeducativas que contemplem a perspectiva do esporte, da cultura e do lazer como, por exemplo, tomar banho de sol, jogar bola de forma mais rotineira, praticar esportes, tocar instrumentos musicais etc. A pesquisa deparou-se com rotinas “ociosas” e vivências “letárgicas” que não estimulam o engajamento com outros aspectos da vida que fomentam motivações: disposição física, exercícios, alimentação, música. Os adolescentes passam muito tempo deitados ou assistindo televisão, especialmente em duas das unidades de internação pesquisadas. O próprio relato dos entrevistados indica que o fato de alguns internos tomarem medicamentos prescritos de forma irregular acarreta, muitas vezes, excesso de sono e dificuldade de concentração. Por isso, o apelo dos socioeducandos – sobretudo os meninos – por uma estrutura e um cotidiano que garantam e contemplem de atividades físicas e esportivas que possam contribuir para afastar pensamentos repetitivos e “perseguidores”. Todos os grupos pesquisados mencionaram a necessidade de uma oferta de cursos técnicos e profissionalizantes que proporcionem aprendizados considerados por eles como significativos e, de certa forma, “úteis”. É exatamente o que Day et al (2004) denomina de um programa responsivo e mobilizador, capaz de motivar a participação dos adolescentes privados de liberdade em atividades e processos de aprendizado que sejam pessoalmente significativos, por conseguir, de algum modo, despertar a curiosidade e o reconhecimento do valor do que está sendo aprendido.

“Era bom que oferecesse aula de dança, para que a gente esquecesse mais disso aqui. Também aí a gente poderia se distrair mais, distrair a mente.” (Adolescentes, Case) “Queria que tivesse uma quadra, que a gente pudesse praticar esporte.” (Adolescentes, Case) “Aula de computação, aprender informática.” (Adolescentes, Case) “Uma escola organizada, que realmente passasse conhecimento.” (Adolescentes, Case) “Aula de línguas, inglês, espanhol.” (Adolescentes, Case) “Cursos de mecânica.” (Adolescentes, Case)

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“Culinária, eu queria, mas não tem.” (Adolescentes, Case) “Eu queria fazer o curso de inglês faz é tempo, mas nunca teve.” (Adolescentes, Case) “Primeiro, que ali devia ter um curso profissionalizante pra todo mundo que tá ali dentro fazer. Uma ocupação. Até mesmo fazer uma coisa, sair, se locomover, aprender coisas novas, mas não, fica tudo parada, pensando um monte de besteira. Aí, começa a fazer coisas que, às vezes, nem é da pessoa, mas no momento, na convivência...” (Adolescentes, Case) “Curso, alguma coisa que a gente pudesse usar nas nossas vidas.” (Adolescentes, Case) “Eles só prometem que a gente vai fazer isso, aquilo e aquilo outro, mas não tem nada.” (Adolescentes, Case)

“Porque a pessoa só aprende a fazer uns negócio de palitinho de picolé, umas caixinhas, sempre a mesma coisa, mas isso não vai nos ajudar no futuro.” (Adolescentes, Case)

Fica evidente o quanto os Case da RMR, em diferentes medidas, não oferecem a proteção e a garantia de direitos necessárias para todos os adolescentes nesse momento de suas vidas. Muitos sofrem intensamente e, algumas vezes, respondem com agressividade ao padecimento provocado por dores psíquicas agudas, baixa autoestima e vínculos sociais fragilizados ou, então, com o uso abusivo de álcool e outras drogas. Este último chega, em alguns casos, a ser reforçado com subornos e trocas de favores com os agentes socioeducativos, conforme identificado na pesquisa.

“Os próprios agentes trazem drogas.” (Adolescentes, Case) “Eles trazem e a gente tem que arrumar dinheiro para eles. Dessa forma, ele nos atende.” (Adolescentes, Case)

“Se a pessoa tiver uma cabeça centrada do que realmente quer, tipo ‘eu errei, mas eu sou uma pessoas de bem´, então eu vou entrar, cumprir a minha ‘medida’ e vou sair. Se não, uma pessoa que nunca conheceu uma maconha já sai de lá ‘bolando um fininho’. Mas, realmente, é a verdade, entendeu?! Porque as pessoas fazem um negócio assim não porque a Funase é um centro de ressocialização de menores infratores. Isso é conversa, aquilo lá não ressocializa ninguém, pelo contrário, se você entra de um jeito, sai é pior.” (Adolescentes, Case) “Porque tem pessoas lá, sabe? Que se acham donos da situação, mas não é nada. Só porque a gente é reeducandas e eles, educadores. Mas se botar reeducandas e educadores, as reeducandas valem mais que os educadores.” (Adolescentes, Case) 98


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Narrativas dos adolescentes: refigurações de suas vidas no momento presente

Na tentativa de engajamento com as narrativas dos adolescentes pesquisados, procurou-se não apenas ilustrar suas rotinas diárias, mas também interagir com as verbalizações desses jovens e “configurar”/”refigurar” os vários fragmentos de suas narrativas, buscando compreender as percepções acerca desse momento de suas vidas. Neste sentido, a pesquisa tratou de identificar em que contexto os pesquisados remetem a imagens de perspectivas esperançosas, planos, desejos, mobilizações, mudanças, medos, frustrações, desânimos, alusão à prática de novos atos infracionais – nomeada por eles como “faculdade do crime” – e retorno aos Case, à privação de liberdade. Ao focar nas perspectivas de mudança ou na repetição dos adolescentes, é preciso identificar em que medida as suas vivências nas unidades de internação contribuem para reforçar pensamentos positivos, fortalecer a autoestima e recriar horizontes de transformação ou retroalimentam o “círculo vicioso” do envolvimento com novas infrações. Conforme citado anteriormente neste artigo e tomando emprestado o argumento de Bercroft (2006), é difícil conseguir uma mudança se a experiência socioeducativa não investe no aprofundamento e na eficácia do processo de ressocialização. Não somente no que tange a investimentos pedagógicos, educacionais e profissionalizantes, mas também em intervenções psicossociais que favoreçam o desenvolvimento e o fortalecimento das potencialidades dos adolescentes, a fim de que possam confrontar e (re)significar as possíveis dores, angústias e experiências marcadas por abusos sexuais, violências, padecimentos e ausências. Ainda segundo Bercroft (2006), se esse investimento não é feito, o que resta é o “círculo vicioso”, caracterizado pela repetição da “cultura emergente prisional”. Neste contexto, a vivência passada e presente, dentro e fora “do mundão”, convergem: subornos, abusos, uso abusivo de drogas, tráfico, relações sexuais em trocas de favores, violência e bullying (Terre des Hommes, 2012; CNJ, 2012; Mattar, 2008; Nogueira Neto, 2012).

“Comecei a traficar, já sabia que ia ser presa.” (Adolescentes, Case) “Eu só fumava, meu marido vendia. Me revoltei porque minha mãe morreu.” (Adolescentes, Case) “Fumava com raiva, maconha.” (Adolescentes, Case)

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“Foi porque me envolvi com má influência, comecei a fumar maconha.” (Adolescentes, Case) “Eu fumava e comecei a traficar quando mataram meu marido. Eu me baratinei, senti revolta.” (Adolescentes, Case) “Mataram meu marido na cocó.” (Adolescentes, Case) “Vai nas ilusões do inimigo.” (Adolescentes, Case) “Dinheiro, mulher e droga.” (Adolescentes, Case) “Todo dia o cara está atrás de novinha, muito dinheiro e droga.” (Adolescentes, Case) “Arma.” (Adolescentes, Case) “É através disso aí que ilude o homem.” (Adolescentes, Case) “Elas puxam o cara para essa vida.” (Adolescentes, Case) “Muitas vezes a gente quer mudar de vida, mas a gente vai atrás delas.” (Adolescentes, Case) “Fumando muita maconha (risos).” (Adolescentes, Case)

Outro aspecto identificado pela pesquisa durante os grupos com os adolescentes foi a percepção de que se sentem “empoderados” e detentores de certo prestígio a partir do envolvimento com o mundo das drogas e das armas, mesmo que tais sensações sejam vividas de forma transitória e ilusória.

“Roupa de marca, porque eu estou usando aqui roupa de marca, aí o pessoal fica: `ele está com roupa de marca, é cara´; aí gosta e já compra também, porque é cara e todo mundo usa.” (Adolescentes, Case) “E assim vai, porque é roupa nova, tipo roupa de surfista da Seaway.” (Adolescentes, Case) “É importante, porque demonstra que a gente tá podendo.” (Adolescentes, Case)

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“A maioria da gente usa essa roupa, a mesma marca.” (Adolescentes, Case) “Ah, porque, por exemplo, a Adidas: ela é boa de usar e é cara.” (Adolescentes, Case) “Eu também estou com Adidas e ele também.” (Adolescentes, Case) “As mulheres gostam da gente com roupa de marca.” (Adolescentes, Case) “Tem mulher que só anda com o cara por causa da roupa.” (Adolescentes, Case) “Farra, brega, roupa de marca, cachorrada, festinha, prata, ouro. Só luxo.” (Adolescentes, Case) “Cordão de prata.” (Adolescentes, Case) “Luxo e poder.” (Adolescentes, Case) “Roupa de grife.” (Adolescentes, Case) “Tudo de bom.” (Adolescentes, Case)

Essas experiências podem ser compreendidas tomando como referência o suposto “padrão de vida familiar” de grande parte dos adolescentes que estão nos Case da RMR atualmente. Trata-se de existências marcadas por profundas ausências materiais, em uma sociedade como a nossa – influenciada pela cultura do consumo nas mais diversas dimensões, que valoriza intensamente o culto ao “ter”, a troca constante do “velho” pelo “novo”, a conquista de novos prazeres e lazeres que possibilitem sensações de êxtase, ainda que de forma efêmera. Assim, poder aquisitivo e bens materiais tornam-se valores essenciais e primários na vida dos adolescentes nas sociedades ocidentais (em particular da brasileira, neste artigo45) e se refletem na centralidade do dinheiro e do prazer de “ter e conquistar novinhas”, “bebida”, “droga”, “roupa de marca”, para demonstrar que eles estão ”podendo” e, ao mesmo tempo, obter reconhecimento social. Embora alguns tenham mencionado espontaneamente a conquista de poder, inclusive revelando que já “teve carro” ou “pegou em tanto dinheiro que era difícil de contar”, outros se mostraram profundamente incômodos ao relembrar situações relacionadas a atos infracionais.

45. Os ideais de consumo dos adolescentes em conflito com a lei são muito semelhantes aos de adolescentes da classe média. Nos grupos masculinos em particular, foram citadas algumas marcas como Adidas e Seaway, esta última relacionada com a moda praia e a temática do surf. Este exemplo demonstra como o forte apelo midiático da cultura de consumo faz com que esses produtos sejam valorizados socialmente e tidos como “essenciais”, “inseparáveis” para o adolescente. Na sociedade em que vivemos, tal influência permeia os ideais e os desejos não somente dos adolescentes em conflito com a lei, mas também dos jovens e mesmo dos adultos de classe média e alta. Para aprofundamento da temática acerca da “lógica” da cultura de consumo, ver Baudrillard (2005).

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Como se pode depreender dos textuais anteriormente citados, uma das diferenças significativas entre adolescentes de ambos os sexos participantes da pesquisa é que, embora todos relatem histórias de vida com perdas, ausências, dificuldades, sofrimento e traições, um dos fatos que parece contribuir com o envolvimento no tráfico de drogas no caso das meninas é a influência e/ou a participação do marido ou do namorado nessa atividade, assim como a perda de uma pessoa amada. No caso dos meninos, mesmo que enfrentem momentos traumáticos e perdas importantes, as primeiras experiências com o mundo das drogas e do tráfico parecem ter sido vivenciadas através de “amigos”, que normalmente são as pessoas com as quais costumam ter alguma identificação ou mesmo admiração, pela suposta “coragem” ou “status de poderoso”. Ao mesmo tempo, é preciso pontuar que, muitas vezes, a conquista da individualidade e da independência – demarcadores da vida adulta nas sociedades ocidentais (Groarke, (2004) – é vivenciada na adolescência por meio da busca incessante de ações “corajosas”, que propiciem “status e poder”. Tais experiências não são limitadas aos socioeducandos pesquisados, mas parecem estar relacionadas com o anseio geralmente típico da juventude por novas descobertas, experiências, aventuras e desafios. O que a pesquisa indica é que há aspectos emocionais, estruturais, materiais e sociais, bem como situações de grandes ausências e perdas – morte de mãe, namorado ou marido, abandono ou não reconhecimento paterno, por exemplo – que, quando somadas a outras violações, vivenciadas muitas vezes sem apoio, podem suscitar situações de risco, como o envolvimento em atos infracionais. As meninas pesquisadas tendem a lembrar e a trazer à tona a perda de entes queridos de forma trágica e inesperada em seus relatos que narram a experiência “desencadeadora” de seus atos infracionais. Esse aspecto foi exaustivamente compartilhado nos grupos femininos, enquanto que emergiu em alguns dos relatos dos meninos de modo pontual. A ausência da figura paterna por distância física ou emocional é consensual entre os dois gêneros, embora aludida de forma mais dolorosa, “rancorosa” ou “ressentida” pelas meninas. Observou-se que para grande parte dos pesquisados suas famílias restringem-se à figura materna, irmãos e, em alguns casos, avós, sobretudo maternas, o que significa que a maior parte não conta com a presença da figura masculina em sua vida que assuma o exercício da paternidade proativamente46. É importante ressaltar a forte influência que as figuras masculinas exercem na vida dessas adolescentes, como ilustram algumas de suas falas. Quando se aborda o assunto do ponto de vista psicológico, sabe-se que experiências mal resolvidas do passado podem levar a uma repetição das mesmas, ainda que em contextos distintos. Possivelmente, as meninas sofreram duplamente o abandono dos seus homens, primeiro como filhas, e, depois, como mulheres. Algumas das jovens pesquisadas tinham filhos e muitas disseram desconhecer o paradeiro de seus antigos “homens”. Os fragmentos de narrativas a seguir permitem observar que grande parte das adolescentes atribui aos companheiros sentimentais o envolvimento com o mundo das drogas e da criminalidade, o que deixa claro as inúmeras dores causadas pelos homens que estão associados às suas histórias de vida.

46. Em nenhum momento foi intenção da pesquisadora restringir a ausência proativa do exercício da paternidade às famílias dos socioeducandos, visto que isso ocorre nas diversas classes sociais. Os papéis diferenciados construídos culturalmente e atribuídos ao homem e à mulher têm, certamente, relação com a prática, muitas vezes superficial e pouco comprometida, de muitos pais no exercício da paternidade, mesmo nos dias de hoje. Também se reconhece que a presença física do pai não assegura o exercício pleno da paternidade.

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“De quando eu saí da casa dos meus pais para morar com meu ex-marido. No começo foi tudo muito bom, tudo maravilhoso, achei que finalmente teria uma casa, um homem para cuidar da gente, mas depois foi começando os problemas. Aí acabou que eu achando que ia resolver um, acabei arrumando outro, que foi esse aqui.” (Adolescentes, Case) “Meu pai quase não falava comigo, só fazia brigar, reclamar, colocar pressão, foi exatamente por isso que resolvi sair de casa.” (Adolescentes, Case) “Pai é qualquer um, o que adianta me botar no mundo...” (Adolescentes, Case) “Teu próprio pai te ignora, para mim é a mesma coisa de não ter.” (Adolescentes, Case) “No meu caso eu digo que não tenho pai, porque o meu me abandonou desde pequenininha.” (Adolescentes, Case) “O meu só me conheceu quando tinha 13 anos e assim mesmo porque fui atrás, pelo menos para saber quem era.” (Adolescentes, Case)

Ciente de que as experiências não são isoladas entre presente, passado e futuro – visto que ao relembrar o passado reativamos nossas memórias, trazendo-as para o presente, e ao narrar o presente articulamos, mesmo que de forma inconsciente, a memória e as nossas expectativas –, a pesquisa buscou concentrar a atenção sobre as experiências vividas dentro do Case. À parte de críticas, descontentamento e até mesmo denúncias, foi difícil resgatar vivências positivas. No entanto, a partir de estímulos variados, foi possível levantar uma das experiências mais prazerosas compartilhadas pelos adolescentes, independentemente do sexo e do tempo de internação. Para os pesquisados, a melhor coisa que lhes acontece na unidade é o dia da visita, pela possibilidade de rever alguns membros de suas famílias (a maioria afirmou receber visitas de familiares). Os que são do interior do Estado e, minoritariamente, os que viveram em casas de acolhimento, mencionaram que as visitas não acontecem com frequência pela falta de dinheiro para custear o transporte ou por não existir família nem outra pessoa de referência que os visite. Não resta dúvida de que os adolescentes apreciam as visitas e que, de fato, o acolhimento dos familiares tende a confortar e a aliviar seu desalento. Ao mesmo tempo, é importante salientar que os sentimentos emergentes a partir daí também estão carregados de ambiguidade, particularmente por fatores como o constrangimento de ver as mulheres – mães e namoradas – serem obrigadas a passar por controles de segurança completamente despidas. Também destacaram a falta de privacidade dos encontros e a frustração por não poder retornar com os visitantes às suas casas. Apesar de apreciar e aguardar esses dias com ansiedade – considerados

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pela maioria como sendo “o melhor dia da semana” –, os socioeducandos ficam emocionalmente tocados e mesmo abalados, tanto pela tristeza da saudade e da separação da família como pelo grande esforço por aparentar fortaleza (“faço força para não chorar na frente da minha mãe”).

“O dia da visita é o dia de alegria. O único dia de alegria para mim.” (Adolescentes, Case) “Sinto falta da minha família.” (Adolescentes, Case) “Dia de segunda, aqui fica a visita e aqui fica as monitoras, fica escutando a conversa, às vezes a pessoa quer conversar um assunto importante, aí fica escutando, é ruim demais assim.” (Adolescentes, Case) “Quando eu vejo a minha mãe na visita, quando ela sobe aquela ladeira eu pergunto logo, mãe quer água?” (Adolescentes, Case) “Eu lembro do casamento da minha irmã que foi alegre, estava eu e minha ex-pirraia lá tirando foto e foi alegre, e hoje eu estou... eu não acredito, mas estou aqui nesse lugar, mas tem hora que a gente ergue a cabeça, se arrepende do que a gente fez e volta à vida real.” (Adolescentes, Case)

“Só nossa família, quando vai visitar a gente lá.” (Adolescentes, Case) “Depende, porque às vezes a visita causa revolta.” (Adolescentes, Case) “O que me deixa alegre também é quando a gente escuta a palavra de Deus na hora da visita.” (Adolescentes, Case) “Não dizem à gente, não, mas a gente sabe como são as coisas. A humilhação que nossas mães passam para visitar a gente.” (Adolescentes, Case) “Ela pode estar com o maior sorriso alegre, mas quando sai, a gente sabe como ela fica também.” (Adolescentes, Case) “Naquele momento da visita nossa mãe e nosso pai está sorrindo, alegre porque eles querem ver a gente alegre, mas quando a gente entra e eles saem a gente sabe que eles vão chorar.” (Adolescentes, Case)

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Outro fator que marca profundamente o presente, sobretudo das mães adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa em meio fechado, é a intensa saudade dos filhos. Expressaram muita dor por esse distanciamento, pelo convívio interrompido, muitas vezes, durante a amamentação, pela falta de sentir o cheiro dos filhos em seus corpos. As jovens mães tenderam a demonstrar de forma mais categórica a necessidade de mudar de vida para, inclusive, poder reconquistar o filho ou a filha. Apesar de que o sentimento de saudade não foi expresso apenas pelas meninas, elas o fizeram de forma mais terminante e sofrida. Para os meninos, a perspectiva do filho estava mais relacionada à vida futura do que ao momento presente.

“Meu filho, pra mim, foi uma solução na minha vida.” (Adolescentes, Case) “Quando eu engravidei, eu não queria. Normal de todos os pais, pelo fato de ser muito nova. Mas aí terminou que muitas coisas eu já não fiz na minha vida por conta do meu filho.” (Adolescentes, Case) “Sair assim, sem destino, sem pai, sem mãe, sem ninguém. Viver uma vida sem regras. Mas hoje em dia eu não penso assim, por conta do meu filho. Eu vejo ele chegando, ele já fala, aí chega e diz: ‘Mamãe, eu te amo!’. Pelo fato que eu tô longe dele há muito tempo. Ele vai crescendo, todo dia que ele chega, ele tem aprendido uma coisa diferente e sofro por não estar com ele.” (Adolescentes, Case) “Quando a gente tem filho é algo inexplicável... a gente passa a viver para eles e por eles.” (Adolescentes, Case)

“Melhor dia para mim é o domingo e a quarta.” (Adolescentes, Case) “É, também concordo, o dia da visita.” (Adolescentes, Case) “Gosto muito do dia da visita, mas quando sai, aí vem a tristeza.” (Adolescentes, Case)

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Novas velhas visões de futuro

Ao aprofundar nas perspectivas dos adolescentes quanto ao futuro mais imediato, vinculado ao momento de sair do Case, o que costuma vir à tona é a sensação de liberdade e as boas lembranças que gostariam de reproduzir no futuro. Emerge espontaneamente o desejo de “curtir” a liberdade indo à praia, estando com a família, compartilhando a vida com os irmãos e as brincadeiras com sobrinhos. Enfim, experiências que avivem as relações interpessoais e os vínculos afetivos. Em outros momentos, os socioeducandos expressam o desejo de retomar os prazeres que costumavam vivenciar antes de entrar no Case.

“A minha liberdade, com meus familiares.” (Adolescentes, Case) “A namorada do cara.” (Adolescentes, Case) “Quero levar para o futuro as viagens que a gente fazia com a família da gente para casa de outra família que mora longe. Viajar para a casa de outra família.” (Adolescentes, Case) “Eu brincava com os meus irmãos pequenos, era bom demais, o cara ficava brincando com os irmãos do cara, aí o cara vai crescendo, já vai se afastando e param de brincar.” (Adolescentes, Case)

“Para casa, chegava tomava um banho já arrumava um estudo, começava a trabalhar de carteira assinada e ia construir uma família.” (Adolescentes, Case) “E a gente iria para onde tem que ir, para casa, é só a família que dá apoio para a gente.” (Adolescentes, Case)

“Quando penso em liberdade, penso em casa, e casa para mim significa carinho, atenção, humildade, família.” (Adolescentes, Case) “Liberdade para mim é ficar com minha família, que é o meu apoio... Eu sempre tive carinho em casa, mas não era como agora, não. Agora meus pais têm uma atenção comigo, melhor pra mim.” (Adolescentes, Case)

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“Liberdade para mim é voltar a ter um marido. Eu sonho que Deus coloque um homem na minha vida que eu ame, porque o que eu amava tá morto.” (Adolescentes, Case) “Quero ser livre para sair desse inferno, pra eu criar meu filho. Trabalhar, voltar a possuir meu cargo numa empresa digna, como eu tinha.” (Adolescentes, Case) “Liberdade para sair daquele lugar e me transformar numa pessoa de bem. Pode colocar aí: Funase não ressocializa ninguém, atrapalha a vida de muitos adolescentes.” (Adolescentes, Case)

“É impossível pensar em liberdade ali dentro. É impossível sonhar ali dentro.” (Adolescentes, Case) “Eu sonho e no outro dia eu não lembro mais.” (Adolescentes, Case)

No entanto, quando a pesquisa tratou de aprofundar no sentido da liberdade ou nos projetos de vida, ainda que de curto prazo, os adolescentes parecem silenciar, como se estivessem em suspense, presos a várias lacunas e brechas não inteiramente identificáveis. Primeiramente, o reencontro com a família e os “amigos”47 não deixa de estar marcado por conflitos, mesmo que a consciência desse aspecto apareça de forma parcial. Por outro lado, as amizades nas comunidades em que os adolescentes viviam são mencionadas de forma negativa, por estarem vinculadas à inserção no “mundo do crime”, principalmente no caso dos adolescentes de sexo masculino.

“As drogas, a vender pó, vender crack, vender maconha.” (Adolescentes, Case) “Vender êxtase.” (Adolescentes, Case) “Como é muito difícil o cara ter amigo na vida que o cara estava.” (Adolescentes, Case) “A vida que a gente levava é difícil de ter amigo.” (Adolescentes, Case) “Os amigos da gente é nosso pai e nossa mãe, porque na vida do crime ninguém tem amigo, não; o que tem é uma pessoa que pode ser o braço direito do cara, mas o cara é sozinho com o dinheiro do cara e o revólver do cara para fazer a proteção, o resto já era.” (Adolescentes, Case)

47. Majoritariamente, os adolescentes pesquisados enfatizaram a impossibilidade de se construir amizades verdadeiras “no mundão”, “na faculdade do crime”.

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“Os amigos são os que matam uns aos outros... por causa de ‘cutruca.’” (Adolescentes, Case) “Olho grande, ele acha que a pessoa já está melhor do que ele e já vem para tomar.” (Adolescentes, Case)

“Matam por causa de mulher.” (Adolescentes, Case) “Namoradas, eh, são as piores que tem.” (Adolescentes, Case) “Tem uma que é a pior que tem, porque ela mesma faz o ‘cocó’ para o cara morrer, para o cara virar bolsa.” (Adolescentes, Case) “Pilantragem, elas mesmo arrumam confusão por causa de pequenas coisas.” (Adolescentes, Case) “Pode até ter uma companheira de verdade, mas é muito raro.” (Adolescentes, Case) “Por pequenas coisas já gera uma pilantragem, por coisas pequenas, uma briga, uma discussão.” (Adolescentes, Case) “A família tem que ser unida.” (Adolescentes, Case) “A minha família está sempre me apoiando, sempre que eu preciso.” (Adolescentes, Case) “Mesmo o filho estando errado, a mãe sempre tem que estar apoiando, isso é uma família unida.” (Adolescentes, Case) “Apoia, mesmo estando errado, ela sempre está do nosso lado.” (Adolescentes, Case) “Minha família me apoia, ela não apoia o erro, mas apoia a gente.” (Adolescentes, Case) “Para mim, hoje o meu melhor amigo é Deus e segundo a minha família; eu agradeci muito por ter caído ali dentro porque conheci Deus e hoje a melhor coisa que eu fiz na minha vida foi entregar a minha vida a Deus, porque essa vida que eu estava não tem futuro não.” (Adolescentes, Case)

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Esses textuais deixam perceber que há uma tentativa de preservar os membros da família como “porto seguro”, que, segundo os pesquisados, “devem permanecer unidos”. Observou-se durante todo o processo de pesquisa que, aparentemente, os adolescentes fazem pactos internos para preservar a imagem de sua casa e do relacionamento com os familiares, muito embora a estigmatização que sofrem por parte da comunidade e da sociedade venha à tona. A tentativa de minimizar parcialmente a experiência de um “não lugar” na sociedade ou mesmo de um lugar que, quando existe, parece marcado por estigmas, preconceitos e exclusão, é percebida no esforço dos jovens para esquecer os conflitos familiares, que só apareceram vagamente, de forma latente. As falas muitas vezes trazem o repúdio à sociedade e às suas próprias comunidades, o que muitas vezes foi ilustrado com narrativas de raiva, rancor e ressentimento.

“A gente é mau mesmo. Eu adoro vê o filhinho de papai se borrando de medo. Eles não xingam a gente de cheira cola, trombadinha?” (Adolescentes, Case) “Todo mundo pisa em nós... então depois vê o que é bom pra tosse.” (Adolescentes, Case) “A sociedade não gosta da gente e a gente também não gosta da sociedade.” (Adolescentes, Case) “Lá na minha comunidade ninguém gosta de mim não, tia, eu sou muito ruim, eu sou ‘X9’.” (Adolescentes, Case)

“O preconceito da sociedade é um problema. Para a sociedade, você é um marginal, não serve pra nada.” (Adolescentes, Case) “Depois daqui é que não tem jeito mesmo... Eu acho que eu fiquei pior. Eu já era um pouco ‘baratinada’, só que o Case também mexeu muito com a minha mente e eu acho que eu tô pior. Acho não, tenho certeza. Não vou mentir pra agradar.” (Adolescentes, Case)

Provavelmente, os adolescentes sentem na pele o fato de serem significados pela sociedade, o Estado e a comunidade como “bode expiatório”, como se fossem uma das principais causas dos problemas sociais existentes. Nesse contexto, os jovens parecem ser estigmatizados, marginalizados e penalizados não somente pelos atos infracionais que cometeram, mas simplesmente por existirem. A sociedade tende a discriminar os que foram negligenciados, violados desde a mais tenra idade. A intenção deste artigo não é, com isso, omitir as responsabilidades dos pesquisados pelos atos infracionais, mas sim convidar a sociedade e

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o Estado a olhar para as vidas desses adolescentes de forma mais ampla, contextualizada e complexa, identificando o quanto elas estão profundamente marcadas pela continuidade de inúmeras “rejeições”, “abandonos” e tantas outras violações. Assim como a lembrança do passado gerou desconforto para alguns dos adolescentes pesquisados, pensar sobre o futuro também não foi fácil, pois pode significar a volta a situações não resolvidas do passado – perdas, ódios ou mortes – que alguns afirmam precisar “vingar”, mesmo tendo ciência do risco de morte que isso acarreta. Por outro lado, há adolescentes, tanto do sexo masculino como do feminino, que expressam a necessidade de mudança, de romper com aquele momento de vida e voltar a trabalhar, cuidar dos filhos, de poder se reconhecer como “uma pessoa de bem”.

“Meu maior sonho hoje é sair dali e ir para casa ficar com a minha família e ter a confiança de volta da comunidade.” (Adolescentes, Case) “Trabalhar.” (Adolescentes, Case) “No que aparecer.” (Adolescentes, Case) “Eu desejo trabalhar, estudar, criar meu filho.” (Adolescentes, Case) “Eu desejo ser médica.” (Adolescentes, Case) “E eu juíza.” (Adolescentes, Case) “Eu desejo ser perita criminalista.” (Adolescentes, Case) “Eu desejo ser empresária.” (Adolescentes, Case) “Tem que dizer eu vou mudar.” (Adolescentes, Case) “O negócio é mostrar à sociedade que quer mudar, que saiu da cadeia e quer trabalhar.” (Adolescentes, Case)

“Se for com computador é melhor.” (Adolescentes, Case) “Mecânico de carro.” (Adolescentes, Case) “Doutora, se me chamasse para limpar chão dentro do shopping, eu ia doutora, isso não é vergonha não, vergonha é viver na vida do crime.” (Adolescentes, Case)

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“Vergonha é isso que a gente passa, vergonha é estar passando por isso agora.” (Adolescentes, Case) “Ser gerente de banco também é legal.” (Adolescentes, Case) “Pode trabalhar também capinando mato.” (Adolescentes, Case) “Só basta a gente querer doutora, mas como a gente está lá dentro.” (Adolescentes, Case) “Eu sei que é difícil, não é nada fácil, mas o cara supera.” (Adolescentes, Case)

Esses textuais deixam perceber um desejo profundo de mudança, seja de uma forma mais realista, de acordo com as oportunidades oferecidas nas comunidades da maioria dos pesquisados (“trabalho no que aparecer”, “mecânico de carro”), ou por meio de profissões idealizadas, atreladas ao status e ao poder, que geralmente suscitam orgulho pelo suposto sucesso alcançado, tanto para o profissional como para a família. Considerando essas narrativas, é fundamental perceber que o Estado e a sociedade em geral não tendem a potencializar o anseio por mudança desses adolescentes em conflito com a lei, oferecendo-lhes possibilidades de novos aprendizados e oportunidades no dia a dia. A pesquisa demonstra que os jovens em privação de liberdade, ao sair dos Case, continuam sofrendo o impacto negativo da precariedade das condições de existência de suas famílias e comunidades. Sendo assim, a ausência do Estado e da própria sociedade contribui, de alguma maneira, para a interrupção e a não realização de planos, sonhos e desejos de transformação desses adolescentes. A conflitiva mediação entre passado, presente e futuro tende a vir à tona nos momentos em que os jovens tratam de narrar o seu porvir. Vários elementos estão presentes neste processo. Primeiramente, vem a “vontade de mudar”, “de se transformar”, e, de acordo com isso, emerge o desejo de gerar filhos, de “ter alguém para deixar neste mundo”, “alguém que o ame de verdade”, alguém por quem vale a pena todo o “esforço de mudar de vida”. Isso foi algo que apareceu já na primeira etapa da pesquisa (Groarke, 2012), onde a imagem de um filho foi descrita quase “miticamente” como transformadora e, de certa forma, como um fato transmissor de uma sensação de permanência no mundo.

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“Eu ia tentar mudar e construir uma família também.” (Adolescentes, Case) “Ter um filho ajeita a pessoa, muda a pessoa.” (Adolescentes, Case) “Ter um filho pra ficar com uma herança na Terra.” (Adolescentes, Case) “Porque eu quero ter filho com 16 anos, dá mais responsabilidade e a gente pensa antes de fazer qualquer coisa, e não tendo a gente não pensa em nada.” (Adolescentes, Case) “Ter um filho, mesmo que os outros me matem.” (Adolescentes, Case) “Porque é um fruto, uma benção que Deus está mandando pra gente e que fica, é algo da gente que permanece mesmo depois de morto.” (Adolescentes, Case) “Se eu morrer hoje eu estou deixando um fruto meu, eu tô deixando alguma coisa boa que eu fiz...” (Adolescentes, Case) “O bom de ter um filho é a gente aprender a valorizar mais a vida de nós e a gente quer dar um futuro melhor pro nosso filho.” (Adolescentes, Case) “Nossa família quer o nosso bem, só depende de nós.” (Adolescentes, Case)

A crença dos adolescentes na possibilidade de mudança não está livre de conflitos e movimentos a favor e contra. Muitos dos entrevistados pareciam não conseguir resgatar relatos esperançosos pelo fato de estarem atrelados a experiências do passado que se expressam por amarguras, traumas, enriquecimento “fácil”, relatos de perseguição ou desejo de vingança. Isso significa que não há consenso sobre as expectativas de futuro: enquanto alguns jovens parecem demonstrar um desejo maior de mudança, o anseio por construir uma família, ter filhos, trabalhar e até mesmo cursar uma faculdade, outros se referem à conquista de cargos elevados e ao sucesso, sem remeter à trajetória de esforços e sacrifícios, chegando a afirmar com aparente convicção que irão ocupar o cargo de juiz ou serão médicos. Houve aqueles que manifestaram o desejo de se tornarem médicos legistas ou de ter cargos vinculados à carreira criminalista e ao Poder Judiciário, possivelmente para alcançar, mesmo que de forma inconsciente, o “lugar” dos que hoje decidem sobre o destino e determinam a liberdade dos jovens em conflito com a lei. Tal pretensão expressa, também, a vontade de fazer “justiça” e libertar os “inocentes” privados de liberdade iniquamente, já que alguns pesquisados sentem que não foram tratados com isenção.

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“A justiça mesmo. A gente quer ser pelo certo, mas a justiça faz que a gente seja pelo errado. Porque muita gente ali, tá ali dentro, mas não era pra tá ali dentro. Muita gente ali tá inocente. Caiu com o monte de maior, tudinho se soltou, só ela que ficou. A justiça daqui é muito errada, por isso que a pessoa ‘baratina’ mesmo.” (Adolescentes, Case) “A pessoa abrir um corpo, estudar os órgãos.” (Adolescentes, Case) “Eu quero ser uma perita criminalística.” (Adolescentes Case) “Porque eu acho interessante a inteligência que determina a hora, as impressões digitais, tudo isso. E pra não colocar gente inocente presa.” (Adolescentes, Case)

Houve, também, jovens que afirmaram ser realistas e não acreditar em processos de mudança, por causa de seu grau de envolvimento com o “mundo do crime”. Além do mais, percebem as oportunidades para egressos da Funase como fechadas e limitadas e que, indubitavelmente, voltarão a ingressar no que chamam de “faculdade do crime”. Outros demonstram desejo de mudar, mas parecem que se punem por sentirem que já não há identificação com o que eram antes da experiência do Case.

“Eu antes era melhor, agora eu sou pior. Antes, eu não fumava maconha, agora, eu fumo. Eu trabalhava, agora eu não trabalho. Eu cuidava do meu filho, agora não cuido. Eu tinha uma forma de dialogar, agora eu falo ‘Tá ligado?!’, ‘Meu irmão’, ‘E aí?’. Agora tá tudo muito louco”. (Adolescentes, Case) “Trabalhava, cuidava do meu filho, não usava droga, não bebia, era uma pessoa que conseguia conversar com uma pessoa normalmente. Agora, falo com gíria, fumo maconha, não cuido do meu filho e não trabalho. Sou uma vadia.” (Adolescentes, Case)

Essa profunda desvalorização foi ilustrada de forma marcante por uma adolescente que, no decorrer do grupo de discussão, disse se sentir “enojada”’ pelo que se havia transformado. Isso levou a pesquisadora a procurar compreender o que estava por trás daquele sentimento de “raiva” de si mesma. A participação das outras socioeducandas ajudou a entender que aquela menina parecia não aceitar o fato de ter vivenciado algumas experiências homoafetivas no Case.

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De acordo com o relatado no grupo, várias socioeducandas vivenciam experiências homoafetivas como forma de confortar-se mutualmente e apaziguar as dores, o que muitas vezes faz com que aflorem paixões e suscite relações sexuais. Por sua vez, os meninos pesquisados mencionam a prática de relações sexuais nos Case, embora a ênfase esteja mais na “troca de favores”, no fato de “receber prazer”, do que na construção de relações homoafetivas. Não é possível dizer, por meio dessa pesquisa, se esse tipo de relação ocorre nas unidades de internação masculinas com a mesma frequência que nas femininas, ainda que tudo leve a crer que é provável que a maioria das adolescentes comece a vivenciar esse tipo de experiência após a internação no Case.

“Passei a fazer sabão.” (Adolescentes, Case) “Aliás, eu e a maioria da casa.” (Adolescentes, Case) “Praticamente todas.” (Adolescentes, Case) “Todas!” (Adolescentes, Case) “De 50, 49, 5 já fez.” (Adolescentes, Case) “Elas duas não faz não, porque elas têm marido que vêm visitar elas.” (Adolescentes, Case) “Lá fora eu já tive uns envolvimentozinhos, mas nunca chegou a florescer, não. Mas depois que eu caí dentro da cadeia, agora que floresceu foi é tudo. Aqui é uma coisa muito comum. A coisa mais comum do mundo é uma menina ter relacionamento com outra menina.“ (Adolescentes, Case) “Não é uma coisa normal, mas lá dentro se tornou normal.” (Adolescentes, Case) “Antigamente, se os ADS vissem as meninas se beijando ou se agarrando, mandava logo uma ir pra longe da outra. Hoje em dia, eles ficam até gostando. Nem liga.” (Adolescentes, Case) “Isso não influencia. Porque tem mulher que na cadeia é um boy e quando o marido chega, coloca um shortinho.” (Adolescentes, Case)

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Nos momentos em que os fragmentos dessas narrativas foram articulados e vieram à tona, identificou-se certo desconforto entre as adolescentes, provavelmente em função do preconceito existente na sociedade com respeito à orientação sexual. Conforme mencionado anteriormente, determinados adolescentes, tanto do sexo feminino como do masculino, demonstraram dificuldade em dar sentido a seus projetos futuros de maneira inovadora, por meio de mudanças positivas efetivas, e acabam remetendo a repetições, a exemplo da reinserção na “faculdade do crime”. Outros manifestaram o desejo de mudar, mas se castigam por não conseguir se identificar com o que eram antes da experiência da internação e se julgam piores após o cumprimento da medida socioeducativa de privação de liberdade.

“Eu não tenho oportunidade para nada, não.” (Adolescentes, Case) “Eu não tenho jeito de mudar, mesmo.” (Adolescentes, Case) “Eu também quero voltar para a faculdade do crime, porque é a maneira de conseguir as coisas. É um dinheiro que vem fácil e vai fácil, mas quanto mais dinheiro a gente ganha, mais a gente quer gastar. Porque a gente sabe que aquilo ali veio fácil e nem liga, vai fácil também.” (Adolescentes, Case) “Isso é a revolta da Fundac que deixa o cara revoltado.”48 (Adolescentes, Case) “Ele acha que não há mais jeito para ele, mas há jeito.” (Adolescentes, Case) “Só dá jeito no caixão.” (Adolescentes, Case) “Comprar arma, comprar droga.” (Adolescentes, Case) “Por que você quer fazer isso?” (Adolescentes, Case) “Porque isso dá mais dinheiro e trabalho é muito ruim. É melhor falar a verdade.” (Adolescentes, Case) “Todo mundo concorda, só não quer concordar.” (Adolescentes, Case) “Se souber fazer a faculdade do crime, dá para levar uma vida agradável. Sabendo fazer sem demonstrar.” (Adolescentes, Case)

48. O próprio adolescente mencionou a Fundac.

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“Se eu tiver um filho, doutora, eu garanto à senhora que essa vida eu nunca mais vou querer voltar, vou só seguir em frente. Se eu tivesse uma filha eu ia para o caminho certo.” (Adolescentes, Case)

“Eu queria mudar, mas as pessoas não querem porque pode ter dez que diga ‘ele mudou’, mas vai ter vinte que vai dizer que ele não mudou, que ele está errado.” (Adolescentes, Case) “Onde tem m... uns pensam em mudar e outros, não.” (Adolescentes, Case) “O principal problema é que eu quero me soltar e voltar para a comunidade sem dever nada a ninguém.” (Adolescentes, Case) “Trabalhar e fazer uma faculdade.” (Adolescentes, Case) “A faculdade do crime de tudo; você aprende nela a matar, roubar, destruir, fazer a pessoa chorar.” (Adolescentes, Case) “... eu ainda quero chegar aos 47, 50 anos, por isso que eu tenho que ir para o caminho certo; se eu for pelo caminho do crime eu não chego a 18 anos, não chego não.” (Adolescentes, Case) “A gente está aqui, mas a gente está triste por dentro.” (Adolescentes, Case) “Nós estamos vindo aqui fazendo graça, mas não é porque a gente está alegre, não, nós estamos vindo aqui para ver se esquece os problema.” (Adolescentes, Case)

Assim, se demonstra que a perspectiva do porvir para os adolescentes pesquisados na Funase parece ser conflitiva e estar mediada por sentimentos de esperança, raiva, vingança e ausência de futuro, permeada por fantasias dissociadas de suas realidades ou por narrativas inter-relacionadas com possibilidades mais “realistas” de transformação. O que se identifica é que, geralmente, as medidas socioeducativas de privação de liberdade na maioria dos Case da RMR não contribuem para o fortalecimento desses adolescentes, seja no que se refere às vivências de suas emoções de forma equilibrada, seja no investimento em processos de capacitação que favoreçam a inserção no mundo laboral e a conquista da autoconfiança.

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E quanto ao porvir?

Neste artigo, foram identificados alguns dos motivos que expõem as inúmeras incongruências existentes na maioria dos centros de atendimento da RMR com relação à Lei 12.594/2012, que instituiu o Sinase. Sabe-se que são recorrentes as situações de abusos sexuais, mortes por homicídios, agressões físicas, consumo de drogas e sexo por troca de favores, entre outros. Entre os 19 estabelecimentos nacionais onde se registraram mortes de adolescentes que cumpriam medida socioeducativa (CNJ, 2012), alguns dos casos limites ocorreram em Pernambuco. Apenas no ano de 201249 foram contabilizadas sete mortes de adolescentes nos Case do Estado. Fica claro, pelo apresentado neste artigo, que alguns dos Case estão longe da conformidade com o Sinase e vão, inclusive, de encontro ao pressuposto no artigo quinto do Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito à vida. É fundamental ressaltar que a construção de cidadania dos adolescentes em cumprimento de qualquer medida socioeducativa, seja ela de semiliberdade, internação ou mesmo em meio aberto, só será eficaz se, ao invés do tratamento “punitivo” e “repressivo” – resquício do código de menores –, os jovens forem tratados como sujeitos de direito. Desse modo, o processo de ressocialização tem sua origem em um engajamento profundo com as necessidades reais do adolescente, o que permite antever a possibilidade de uma mudança efetiva no indivíduo. Portanto, o papel do Estado nesse processo tem que ser de garantidor de direitos e facilitador de transformações, não do “perseguidor” que reforça processos de exclusão por meio de medidas mais punitivas do que socioeducativas. A imagem do adolescente que comete ato infracional fica, assim, cada vez mais vinculada à marginalidade ou a de jovem problemático, ”de má índole” (Brayford et al, 2010). Isso enfatiza a construção de um imaginário negativo por parte da sociedade, em relação aos adolescentes em privação de liberdade, favorecendo debates equivocados, na opinião da pesquisadora, sobre a redução da maioridade penal como forma de assegurar a queda da criminalidade. As medidas socioeducativas, ao invés de reforçar e fazer reviver os históricos de sofrimento, deveriam estar fundamentadas no princípio da universalização dos direitos humanos, com ênfase no direito à liberdade, e potencializar o convívio sociofamiliar e comunitário dos adolescentes. Deveriam, também, contribuir para que os jovens se sintam fortalecidos e possam revisitar suas histórias de vida e reconhecer suas dificuldades e potencialidades, a fim de construir meios que lhes permitam superar a situação de vulnerabilidade na qual se

49. http://especiais.ne10.uol.com.br/por_tras_do_muro/internas/rebeliao.html.

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encontram. Para tanto, é necessário que o Estado cumpra com o dever de elaborar e executar políticas públicas que potencializem a autonomia desses sujeitos e instaure o que dispõe o ECA. Quanto ao Sistema Socioeducativo, é preciso que o PIA de cada sujeito seja construído de forma conjunta, com a participação da equipe técnica, da família e do próprio adolescente, de modo a favorecer a implicação e o protagonismo do jovem em cumprimento de medida socioeducativa no seu processo de ressocialização. É importante, também, chamar a atenção para a extrema urgência em se aprimorar a infraestrutura da maioria dos Case, não somente na RMR, mas em todo o Estado. Esses centros devem oferecer condições de vida dignas como, por exemplo, alimentação cotidiana saudável e apreciável, camas e banheiros em número suficiente para todos, salas de aula equipadas, áreas específicas para atividades de lazer e esporte etc. Sem solucionar precariedades desse tipo, fica difícil que os jovens possam reconstruir suas vidas e que se reconheçam como sujeitos de direito. É preciso, também, que se priorizem investimentos para qualificação de técnicos, agentes socioeducativos e outros, desde a perspectiva de formação e valorização desses profissionais, e que se assuma o compromisso de oferecer condições de trabalho adequadas para os mesmos. Vale salientar que o processo de ressocialização dos adolescentes nos Case da RMR exige reelaboração, para que os socioeducandos sejam, de fato, cuidados e motivados. Isso não significa dizer que os jovens deixarão de ser responsabilizados por suas infrações, mas sim que sairão fortalecidos para encontrar outras oportunidades na vida e poder, assim, exercer seus papéis como cidadãos. Diversos programas de ressocialização têm demonstrado a importância de se investir na sensibilização e na valorização dos jovens. A avaliação do impacto positivo dessas iniciativas indica que é preciso adotar atividades e práticas efetivas no cotidiano dos adolescentes em privação de liberdade, que despertem o interesse por novas oportunidades de vida e contribuam, quando executadas no meio aberto, para a redução da taxa de reincidência de atos infracionais. Para isso, um dos elementos centrais é o engajamento dos socioeducandos em atividades e processos de aprendizagem que sejam pessoalmente significativos para eles, de acordo com o salientado previamente neste artigo. Tais processos devem suscitar nos adolescentes motivações que os levem a redescobrir e ressignificar suas vidas (Day et al, 2004). Uma adolescente que participou do grupo de discussão apontou algo semelhante, remontando à sua experiência negativa no cumprimento de medida de prestação de serviço à comunidade, antes de cometer a segunda infração e voltar ao Case:

“Estou aqui, por causa do LA. Era para eu ter prestado serviço, mas era para varrer chão, passar pano, e eu não ia. Eu já faço isso na minha casa, não queria fazer isso, preferi cumprir e não dever mais nada à Justiça.” (Adolescentes, Case) “É serviço, eu também não tive interesse não. É chato e não aprendemos nada.“ (Adolescentes, Case)

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Tomando como referência os programas de ressocialização bem-sucedidos e os fragmentos de narrativa anterior, fica evidente que se os órgãos executores das medidas socioeducativos nos meios aberto e fechado não tratam o jovem com seriedade, não é possível sua ressocialização. Sendo assim, é preciso dar um novo significado à maneira como os socioeducandos assumem as responsabilidades pelos atos infracionais que cometem, ou seja, que devem responder por meio da descoberta de práticas criativas e significativas, que proporcionem transformações de vida. Iniciativas desse tipo são de suma importância no contexto dos Case pesquisados, considerando que a maior parte dos adolescentes não vê sentido nas escassas atividades que realizam nas unidades. Por essa razão, não somente suas vidas nos centros como, também, as expectativas futuras estão marcadas por sensações de “marasmo”, “tédio”, “ausência de sentido” e, em alguns casos, repetições de atos infracionais. Em várias experiências exitosas de processos restaurativos, há massivos investimentos na construção de habilidades, propósitos e valores dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, tanto no meio aberto como no fechado. Isto posto, cabe lembrar que o processo de ressignificação e transformação de vida dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, em particular daqueles em privação de liberdade, é algo lento, gradual e envolve conquistas e retrocessos, o que não implica, necessariamente, desinteresse por parte dos socioeducandos. Em distintos lugares do mundo, os responsáveis pela efetivação de práticas restaurativas para adolescentes em conflito com a lei recomendam que, antes de investir no aprofundamento de conhecimentos, no desenvolvimento intelectual e na profissionalização, seja dada prioridade a um acolhimento integral desses jovens, a fim de aliviar seus sofrimentos e as dores psicossociais. Quando isso não acontece, as tentativas de reinserção na escola ou a participação efetiva em cursos profissionalizantes tendem a falhar (Bercroft, 2006; Burnett &Neil, 2005; Day et.al, 2004; Center for National Policy, 2001). O fracasso normalmente não se deve à irresponsabilidade ou ao descaso dos adolescentes, mas à falta de condições de participar no processo educacional ou no próprio mercado de trabalho, de imediato. Com este artigo, o fundamental foi demonstrar que é preciso ter uma percepção integral dos adolescentes e que o processo de potenciais mudanças e transformações depende do engajamento com suas necessidades reais. A pesquisa indica que é prioritário estar atento ao tipo de suporte adequado e às possibilidades que contribuam para resgatar a autoestima dos jovens. Esse processo se apoiará, indubitavelmente, no equilíbrio entre a exigência disciplinar (regularidades e responsabilidades) e o suporte psíquico-emocional, a fim de que os socioeducandos sintam-se fortalecidos para reelaborar suas perdas e seus lutos, confrontar raivas e rancores, lidar com o uso abusivo de álcool e drogas e, por fim, aprender a identificar seus valores e a se reconhecer como cidadãos, sujeitos com plenos direitos e deveres. Por fim, a pesquisa indica que é prioritário estar atento às políticas públicas que têm a responsabilidade de gerir o Sistema Socioeducativo, avaliando o tipo de proteção e assistência que são oferecidas aos adolescentes. É imprescindível também tornar a gama de medidas construídas em prol do desenvolvimento integral dos adolescentes contextualizadas às reais necessidades dos mesmos, ou seja, em sintonia com as particularidades de suas trajetórias de vida e, por isso, engajadas com vivências socioeducativas efetivamente transformadoras. Vivências essas que os encoragem a reconstruir autoestimas, a superar dores e reconquistar a liberdade de sonhar e acreditar na concretização de desejos e expectativas de vida. Somente dessa forma, de fato, teremos um sistema socioeducativo favorável ao reconhecimento dos adolescentes pela sociedade e por eles mesmos como sujeitos de direitos e deveres, capazes do exercício da cidadania.

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II I E T PAR

FORMAÇÃO PARA QUALIFICAÇÃO DO ATENDIMENTO E DAS AÇÕES DIRIGIDAS A CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS

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1

Propósito e estratégia

O Projeto É de Direito, Proteção e Justiça para Crianças, Adolescentes e Jovens desenvolveu cursos de extensão com o sentido e a estratégia de qualificar as ações que têm como meta lograr melhorias no atendimento, no acompanhamento e na prevenção aos casos de violência contra crianças, adolescentes e jovens – tanto nas instituições de atendimento como no seu ambiente de origem – assim como garantir seus direitos. Buscou-se investir em processos de formação, articulação e formulação de princípios inseridos em um conjunto consensual de conhecimentos, atitudes e práticas que concorram para a realização desses objetivos. Inicialmente, o Projeto previa o desenvolvimento de módulos de capacitação específicos para os quatro grupos-alvo: os profissionais de dez instituições da Região Metropolitana do Recife (RMR) e as crianças e os adolescentes atendidos por elas, os profissionais da área de atendimento e justiça para a infância e juventude de Pernambuco e os membros das comunidades de Jaboatão (Jaboatão dos Guararapes), Peixinhos (Olinda) e Santo Amaro (Recife), incluindo crianças e adolescentes. Nos 36 meses de execução da ação, foram organizadas atividades dirigidas a pessoas dos âmbitos institucional e comunitário, ainda que não tenham se realizado capacitações destinadas exclusivamente a crianças e adolescentes. No entanto, alguns jovens participaram nos cursos de extensão destinados à comunidade. No âmbito institucional, a formação englobou um conjunto de profissionais do sistema de atendimento e justiça na área da infância e juventude das instituições da RMR, além de outros representantes do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). A capacitação ministrada para os membros das três comunidades estava voltada para pessoas que atuassem na área de prevenção à violência nesse meio, tais como professores, conselheiros tutelares, assistentes sociais, ONGs e lideranças comunitárias. As temáticas abordadas nos cursos respondiam às especificidades de cada contexto. Esses processos de qualificação também constituíram um caminho para o fortalecimento de vínculos com aqueles que pudessem contribuir para a sustentabilidade das ações previstas no Projeto. Neste caso, além dos atores-chave das áreas institucional e comunitária, cabe destacar as colaborações estabelecidas entre o Projeto e as diversas instituições que deram o suporte necessário para a realização das atividades: por um lado, a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), através da Escola de Conselhos de Pernambuco, e por outro, o Tribunal de Justiça e a Secretaria Estadual de Educação, por intermédio do Projeto Escola Legal.

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À parte dos cursos de extensão mencionados anteriormente, foi realizada uma ação complementar, o Curso de Facilitação em Círculos de Justiça Restaurativa e de Construção da Paz, ministrado por Kay Pranis – especialista em Círculos de Construção de Paz e uma referência em termos de justiça restaurativa –, destinado a um reduzido grupo de pessoas cuidadosamente escolhidas pela Fundação Abrinq - Save the Children e o Cendhec por representarem distintos segmentos do SGDCA e por seu potencial como agentes multiplicadores em seus âmbitos de atuação.

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Curso de aperfeiçoamento para profissionais das instituições e do sistema de atendimento e justiça na área da infância e juventude

Essa ação tinha como objetivo qualificar a prática dos profissionais que trabalham nos sistemas de atendimento e justiça para a infância e juventude no Estado de Pernambuco, de uma maneira geral, por meio do repasse de informações referentes aos instrumentos nacionais e internacionais para proteção e promoção dos direitos infanto-juvenis, utilizando métodos participativos para provocar mudanças de comportamento em todos os envolvidos.

2.1. Instituições participantes Entre os vários fatores que contribuíram para o estabelecimento de uma colaboração entre a Ufrpe e as organizações parceiras no Projeto É de Direito, vale salientar o encontro de sinergias e a complementaridade de visões, papéis e interesses dessas instituições na busca por cumprir o objetivo comum de contribuir para a transformação social. Para a Universidade significou, por um lado, a possibilidade de instaurar uma participação dialógica e uma relação mais estreita com movimentos da sociedade civil e, por outro, a oportunidade de ampliar o horizonte de atuação da Escola de Conselhos de Pernambuco50. A Escola de Conselhos já era bem conhecida pela Fundação Abrinq - Save the Children e o Cendhec, mas foi por intermédio do Cedca-PE – parceiro no Projeto É de Direito e integrante do grupo gestor que coordena as atividades da Escola – que se abriram as portas para uma cooperação mais estreita, relacionada à ação de formação destinada aos profissionais das instituições de atendimento. O convênio formalizado entre o Projeto É de Direito e a UFRPE, através da Fundação Apolônio Salles de Desenvolvimento Educacional (Fadurpe) deu legitimidade a todo o processo de formação (certificação) e favoreceu a ação com o suporte institucional e acadêmico conferido por essa reconhecida instituição de ensino. Tudo respaldado pela inquestionável seriedade da proposta e idoneidade de cada um dos implicados. 50. A Escola de Conselhos de Pernambuco tem como proposta a formação de indivíduos que atuam na defesa, no controle e na promoção dos direitos da criança e do adolescente. Foi a primeira em oferecer cursos de especialização para operadores de direitos (conselheiros tutelares e conselheiros de direitos). Funciona desde 2008, dentro do âmbito da Pró-reitora de Atividades de Extensão da Ufrpe, através da Fundação Apolônio Salles de Desenvolvimento Educacional. Em 2012 adquiriu a condição de programa, ao ser incorporada como política pública efetiva de formação continuada. A Escola de Conselhos conta com o apoio da Secretaria dos Direitos Humanos/Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedca-PE).

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2.2. Desenvolvimento do processo de formação O curso de extensão foi coordenado de forma colegiada pela Escola de Conselhos, a Fundação Abrinq - Save the Children e o Cendhec. O caráter participativo desse trabalho conjunto permeou todas as etapas, do desenvolvimento à execução da ação, e mereceu destaque de todos os envolvidos, que coincidiram em apontar esse aspecto como um importante diferencial. Da construção da ementa programática ao desenvolvimento e aplicação de instrumentos de monitoramento e avaliação, tudo foi discutido amplamente. Foi um processo orgânico, além de colaborativo, construído à medida que ia sendo desenvolvido, onde havia espaço para os ajustes necessários. Os professores escolhidos, em conformidade com os temas abordados nos módulos de capacitação, eram especialistas e profissionais das respectivas áreas de conhecimento. Obedecendo a este critério, foram convidados a participar os profissionais da própria Universidade e da Escola de Conselhos, da equipe da Fundação Abrinq - Save the Children e do Cendhec, além de outros peritos, compondo um corpo docente marcado pela multidisciplinaridade.

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Conteúdo e metodologia O Projeto É de Direito trabalha com o conceito de violações de direitos em todas as suas facetas e a atividade de formação teve como objetivo proporcionar aos participantes um amplo conhecimento sobre os direitos da criança e do adolescente. A construção dos conteúdos abordados no curso de extensão, realizada pela coordenação colegiada, foi feita a partir dos módulos pensados inicialmente para a capacitação sobre normas, padrões, legislação, tratados nacionais e internacionais e histórico dos direitos da infância e da juventude, tendo sempre o Projeto e suas diretrizes como referência. Com o intuito de nivelar conhecimentos sobre a atividade de formação e contextualizá-la nas ações do Projeto, foram realizadas inúmeras reuniões de estruturação e planejamento pedagógico, consideradas pelos professores como parte essencial no processo de desenvolvimento da mesma. A articulação entre os membros da equipe foi algo intensamente trabalhado, o que propiciou fluidez e sintonia nas relações e facilitou a apropriação da ação por cada um dos implicados. Essa opção por favorecer a intersubjetividade imprimiu um cunho participativo, presente em todos os níveis e etapas do processo, refletido não só no relacionamento entre a equipe técnica e o corpo docente, mas também naquele estabelecido com e entre os alunos dos cursos. Nesse sentido, os professores estavam orientados a identificar e socializar o perfil de cada turma, dando subsídios para a preparação do professor do módulo seguinte, a fim de facilitar a manutenção do ritmo do curso. As dinâmicas e os recursos didáticos utilizados nas aulas tinham como objetivo estimular a troca de ideias e experiências, além de fomentar a reflexão. As vivências dos participantes nas suas distintas áreas de atuação foram fundamentais para o enriquecimento da discussão, assim como suas avaliações indicaram os ajustes necessários. A matriz curricular, de caráter multidisciplinar, tinha uma carga horária de 120 horas distribuídas ao longo de quatro meses. O ritmo era de duas aulas semanais, cada uma com quatro horas de duração, realizadas inicialmente no espaço físico do Centro de Formação de Educadores Professor Paulo Freire (Prefeitura do Recife) e, posteriormente, no auditório do Cendhec.

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O curso foi estruturado em oito módulos, divididos nas seguintes temáticas: MÓDULO I: Marco histórico e conceitual da infância e adolescência no Brasil; MÓDULO II: Desenvolvimento da Criança e do Adolescente. Saúde, aspectos psicológicos, dependência química, direitos sexuais e reprodutivos, gravidez na adolescência e doenças sexualmente transmissíveis; MÓDULO III: Raça, Gênero e Orientação Sexual; MÓDULO IV: Violência contra crianças e adolescentes e formas de prevenção e enfrentamento. A violência em suas distintas manifestações: estrutural, institucional, doméstica, física, psicológica, sexual, policial, tortura, por negligência ou abuso de autoridade; MÓDULO V: Marco Legal. Acordos Internacionais (ONU e OEA); Constituição Federal; ECA; Lei de Adoção; garantias constitucionais asseguradas ao adolescente a quem se atribui o ato infracional; o mito da inimputabilidade penal; apuração do ato infracional atribuído a adolescente; medidas socioeducativas; execução de medidas socioeducativas; MÓDULO VI: Sistema de Garantia de Direitos e a Política de Atendimento. Sistema de Garantias de Direitos, Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, Orientações Técnicas para Serviços de Acolhimento/Sinase; MÓDULO VII: Resolução de Conflitos. Definições de conflitos, alternativas para a administração de conflitos, princípios fundamentais da mediação de conflitos; MÓDULO VIII: Elaboração de Proposta Pedagógica e Planejamento Operativo. PIA e Planejamento Operativo.

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2.3. Perfil dos participantes O Projeto, na sua proposta original, pretendia alcançar um público-alvo de 280 profissionais, entre os que trabalham nas dez instituições escolhidas na RMR (180 pessoas) e aqueles relacionados com o atendimento e a justiça para a infância e juventude no Estado de Pernambuco (100 pessoas). A ação, que buscava qualificar e provocar mudanças na prática profissional desses atores, estava destinada a trabalhadores das instituições de atendimento dos sistemas protetivo e socioeducativo – de gestores a agentes socioeducativos – e a representantes dos diferentes níveis do sistema de atendimento em geral, incluindo juízes, defensores públicos, membros de conselhos, advogados e técnicos, entre outros. Levando em consideração as particularidades inerentes a cada um dos sistemas de atendimento – o dedicado à aplicação de medidas protetivas às crianças e aos adolescentes, e aquele responsável pelas medidas socioeducativas aos adolescentes envolvidos em atos infracionais –, decidiu-se por separar os grupos de acordo com a área de atuação dos participantes. Essa divisão propiciou um maior aprofundamento dos temas abordados segundo as características e necessidades de cada turma. As diferenças são marcadas pela cultura de cada sistema e a própria natureza do serviço prestado, além do grau da valorização dado ao profissional dentro do meio em que trabalha. Isto se reflete no perfil de seus integrantes no que diz respeito ao nível de conhecimento sobre os assuntos abordados pelo curso e à postura frente às questões relacionadas com o atendimento às crianças e aos adolescentes sob sua responsabilidade. Não houve diferenciação quanto ao conteúdo ou à estrutura do curso, mas ficou definido que, metodologicamente, as questões seriam abordadas de maneiras distintas. Entre as 50 vagas disponibilizadas para cada turma, havia algumas reservadas para indivíduos que não estavam ligados diretamente a nenhuma das instituições da RMR incluídas no Projeto, como representantes do Conselho Tutelar, do Poder Judiciário e de outros segmentos do SGDCA. No decorrer da ação, esse número necessitou ser ampliado devido à demanda de profissionais dos sistemas socioeducativo e protetivo cujas instituições não estavam inicialmente contempladas na ação. No caso das turmas do protetivo, houve uma maior disponibilidade de vagas ofertadas em virtude do processo de municipalização, que demandou o fechamento de duas casas de acolhimento, restando apenas quatro das instituições previstas inicialmente. Constatou-se que houve uma baixa adesão aos cursos entre os representantes dos sistemas de justiça e de segurança pública (juízes, promotores de justiça, defensores públicos, delegados e policiais, por exemplo). Assim, considerando como aprendizado para uma futura versão do Projeto, recomenda-se desenhar um formato diferenciado para atender a esse público específico. Foi visto que algo mais compacto – palestras, seminários ou oficinas, com duração entre 8 e 20 horas – seria mais adequado à disponibilidade de tempo e aos interesses desses segmentos. Também é provável que a pouca participação de determinados profissionais esteja relacionada a conflitos institucionais e hierárquicos. 128


Embora não se tenha desenvolvido nenhuma atividade exclusiva para esse tipo de perfil no período de execução do Projeto, o Curso de Facilitação em Círculos de Justiça Restaurativa e de Construção da Paz cumpriu, em parte, com esse propósito, já que contou com a participação de representantes do sistema judiciário e de outros níveis do poder público.

2.4 Avaliações sobre a atividade, resultados e impactos 2.4.1 Capacitações realizadas e público atendido Ano 2011 2012 2013

Sistema Protetivo Socioeducativo Protetivo Socioeducativo Protetivo

Total de participantes Ano 2011 2012

2013 Total de participantes

Sistema Jaboatão dos Guararapes; Peixinnhos (Olinda); Sto.Amaro (Recife) Jaboatão dos Guararapes Peixinnhos (Olinda) Sto.Amaro (Recife) Jaboatão dos Guararapes Peixinnhos (Olinda) Sto.Amaro (Recife)

Participantes 35 76 68 36 34 249 Participantes Não houve atividade na comunidade 28 20 38 24 15 31 156

A concessão de vagas para profissionais de outras instituições da RMR, de municípios fora do Grande Recife (Goiana, Garanhuns e Limoeiro) e de organizações não-governamentais que executam serviços de acolhimento institucional, não previstas inicialmente, ampliou o público beneficiado e deu à ação um alcance maior do que o esperado pelo Projeto. Para receber a certificação como curso de aperfeiçoamento outorgada pela Ufrpe, foi respeitada a diretriz da Universidade de uma frequência mínima de 75%, assim como a realização de um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). 129


2.4.2 Análise da atividade e seus resultados O exercício da escuta, trabalhado exaustivamente nos módulos de capacitação, foi amplamente praticado pela equipe responsável pela coordenação colegiada da atividade. O acompanhamento contínuo do processo de formação, através das avaliações feitas pelos participantes em cada módulo (instrumental de monitoramento aplicado) foi fundamental para realizar os ajustes necessários e atender às demandas apresentadas. Além disso, mostrou ser uma ferramenta valiosa para a análise dos resultados do ponto de vista qualitativo. De uma maneira geral, essa avaliação foi positiva para todos os módulos e para o curso em si, em todos os aspectos: conteúdo e metodologia, corpo docente, coordenação, textos e materiais utilizados (itens de avaliação do instrumento). Também ofereceu indicativos de que a formação alcançou seu objetivo de agregar conhecimentos e provocar o início de um processo de mudanças de atitudes e práticas nos participantes, enquanto profissionais do SGDCA, que venham a violar os direitos infanto-juvenis. Os pontos destacados a seguir, fruto das avaliações aplicadas e da realização de entrevistas estruturadas, confirmam estas e outras conclusões. Dado o grau de exigência para a conclusão de um curso com uma carga horária extensa e considerando o baixo percentual de abandono nas turmas, conclui-se que a atividade teve grande capacidade para responder às demandas, interesses e expectativas dos participantes. A evasão, quando aconteceu, não esteve vinculada à insatisfação, mas a outras variáveis, como, por exemplo, a dificuldade de conciliar atividades profissionais com um curso dessa duração. Foi precisamente a extensão da carga horária que proporcionou o tempo necessário para o aprofundamento dos temas tratados e para afiançar as relações entre todos os envolvidos. Os participantes mostraram uma alta motivação e muitos ressaltaram que o interesse despertado pela atividade compensava o esforço, sendo maior que os empecilhos que poderiam levar à desistência. Também se observou que, ao longo do curso, foi sendo construído um espaço que favoreceu a troca e o relacionamento entre os participantes, dada a neutralidade do terreno – um ambiente acadêmico, fora do contexto de suas instituições. Em muitas ocasiões, isso propiciou momentos daquilo que se poderia chamar como “catarse coletiva” diante dos problemas enfrentados pelos profissionais no seu cotidiano laboral, possibilitando o intercâmbio de ideias sobre alternativas possíveis para melhorar sua prática profissional. A preocupação com a excelência e o cuidado na preparação e execução da atividade foram reconhecidos pelos participantes como fatores importantes para o sucesso do processo de formação. Mereceram destaque a expertise e o compromisso dos professores, a qualidade do conteúdo e da metodologia utilizada e o caráter propositivo da abordagem, que apontava para a superação dos problemas e das dificuldades.

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Dentre os módulos da formação, aquele que despertou o maior interesse foi o sétimo, que tratava sobre alternativas para a administração de conflitos e onde se apresentaram distintos tipos de práticas restaurativas como forma eficaz para o enfrentamento de disputas e desentendimentos, com destaque para a mediação de conflitos. A partir daí, os participantes expressaram o desejo de conhecer este recurso com mais profundidade e de aprender as técnicas para sua aplicação. Por outro lado, a boa qualidade das propostas de intervenção apresentadas como TCC no oitavo módulo pode ser considerada como um indicador de êxito da atividade. Muitos participantes assinalaram as mudanças percebidas na sua atitude frente a questões relacionadas com crianças e adolescentes, inclusive na forma de lidar com este público. Para esses profissionais, a formação ampliou as perspectivas sobre seu trabalho e mostrou o alcance que pode chegar a ter, especialmente quando se compreende a inter-relação necessária entre os integrantes de cada instituição, departamento ou área de atuação. Despertou a consciência da importância do trabalho em rede, pelo fato de se operar dentro de um sistema (SGDCA) que extrapola as fronteiras institucionais do ambiente em que atuam, como também da sua corresponsabilidade pela trajetória das crianças e dos adolescentes que atendem. A atividade proporcionou uma visão ampliada do SGDCA e tratou de fomentar o diálogo entre seus componentes, sem incentivar as disputas, mas buscando favorecer o desenvolvimento de um sentido de integralidade e complementaridade. Serviu, também, para abrir um canal de comunicação entre pares e mostrou ser um poderoso meio de articulação – um resultado não previsto no Projeto – ao permitir o encontro dos diferentes atores num mesmo espaço por um determinado período de tempo e em prol de um objetivo comum. Isso é muito importante, tendo em conta que um dos conflitos percebidos durante o processo de formação estava relacionado com o não entendimento sobre quais são as atribuições de cada um, no que diz respeito ao papel que desempenham como profissionais, ou o que corresponde aos diferentes departamentos, instituições e órgãos que compõem esse sistema. O desconhecimento – revelado pela pesquisa CAP – do significado e do funcionamento do SGDCA, dentro do universo macro, é reproduzido em ambientes de menor escala, no interior de cada sistema de atendimento ou mesmo das próprias instituições.

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Curso de extensão escola e comunidade: prevenção da violência e promoção da cultura de paz

Entre as atividades incluídas no plano de ação indicativo do Projeto É de Direito, estava a realização de reuniões mensais nas três comunidades de abrangência – Jaboatão dos Guararapes, Peixinhos e Santo Amaro – para promover o conhecimento e a conscientização de crianças, adolescentes, jovens e suas famílias sobre as distintas formas de prevenção à violência, com a perspectiva de torná-los agentes multiplicadores. Esperava-se, assim, poder diminuir o número de crianças e adolescentes institucionalizados nos sistemas protetivo e socioeducativo nessas três comunidades. Concluiu-se, entretanto, que os efeitos dessas ações isoladas seriam fragmentados e não trariam para o Projeto a abrangência pretendida, por se tratar de eventos pontuais e sem aprofundamento. A partir deste enfoque, foi estruturada uma nova abordagem, nos moldes do curso de aperfeiçoamento oferecido aos profissionais, ou seja, um curso de extensão que pudesse contemplar lideranças locais, educadores e outros profissionais que já desenvolvessem um trabalho voltado para a prevenção à violência, com experiências de mediação de conflitos, no âmbito da comunidade ou da escola. O curso Escola e Comunidade – Prevenção da Violência e Promoção da Cultura de Paz foi organizado para cumprir com o objetivo de fortalecer e qualificar a ação desses atores, abrindo um caminho para o diálogo e fomentando ações em conjunto.

3.1. Instituições participantes A colaboração cogitada inicialmente pela equipe do Projeto para o desenvolvimento e a execução das atividades junto às comunidades era com a Gerência de Prevenção e Mediação de Conflitos (GPMC). Esse programa, vinculado à Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH) e sob a coordenação da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SEDSDH) de Pernambuco, vem instituindo Núcleos de Mediação Comunitária desde o segundo semestre de 2011. Os Núcleos integram as ações do Programa Pacto pela Vida, uma política pública de segurança do Estado de Pernambuco. No entanto, a GPMC, que oferece formação em

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mediação de conflitos para lideranças comunitárias, não mostrou interesse em se envolver com esse processo. A partir da opção de potencializar os esforços existentes para prevenção à violência, adotou-se a estratégia de colocar a escola como corresponsável nessa missão, tratando de estabelecer um diálogo com a comunidade para fomentar ações em conjunto. Identificou-se, então, o alinhamento dessa proposta com a iniciativa do Projeto Escola Legal51 de instaurar comitês de mediação de conflitos no ambiente escolar, que sugeria uma associação entre ambos como o caminho lógico para alcançar metas comuns. Assim, a capacitação de mediadores de conflitos comunitários foi realizada mediante a colaboração estabelecida entre o Projeto É de Direito, o Projeto Escola Legal e os demais órgãos envolvidos – Tribunal de Justiça do Recife e de Jaboatão dos Guararapes, a Secretaria Estadual de Educação e a Secretaria de Educação do município de Jaboatão dos Guararapes.

3.2 Desenvolvimento do processo de formação Assim como ocorreu no desenvolvimento da primeira atividade, o caráter participativo também foi um signo do processo de construção e realização do curso de extensão Escola e Comunidade. Nesta segunda experiência intervieram, além das equipes do Projeto É de Direito e da Escola de Conselhos, os profissionais ligados ao Projeto Escola Legal e à Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, que colaboraram na elaboração dos conteúdos. A experiência acumulada e as lições aprendidas com a realização dos cursos de aperfeiçoamento para profissionais, iniciados no primeiro ano do Projeto, permitiram uma maior agilidade no desenvolvimento e na administração dos cursos destinados às comunidades. Muitos dos professores da capacitação comunitária participavam, também, no processo de formação dos profissionais, com exceção daqueles responsáveis pelos temas tratados exclusivamente no curso de extensão Escola e Comunidade, cuja seleção obedeceu aos mesmos critérios de qualidade e expertise.

51. Esta iniciativa, que se propõe a esclarecer e divulgar o papel do Poder Judiciário nas escolas estaduais e municipais por meio da criação de comitês de mediação de conflitos, é fruto de um convênio entre o TJ/PE, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a Escola Superior de Magistratura de Pernambuco (Esmape) e o Governo do Estado, por intermédio da Secretaria de Educação.

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Conteúdo e metodologia A elaboração dos conteúdos do curso de extensão esteve orientada pela ideia de caracterizar a escola como núcleo “centralizador” – no processo de construção de paz e como cenário para mediação de conflitos – e “irradiador”, a partir do qual se conectam os diferentes segmentos da comunidade. Os princípios que guiaram a definição da ementa programática da primeira formação, dirigida aos profissionais, também nortearam a estruturação do curso para a comunidade, onde se apresentaram alternativas para a prevenção à violência sob a ótica da justiça restaurativa e com a utilização do recurso da mediação de conflitos. A escolha dos temas a serem desenvolvidos durante o curso considerou, pois, a interação e a convivência de crianças, adolescentes e jovens nesses dois espaços – a escola e a comunidade –, com um sentido propositivo em benefício da mudança de atitudes e práticas. O foco estava posto na abordagem dos distintos tipos de violência e na introdução dos conceitos de cultura de paz e justiça restaurativa no ambiente escolar e comunitário, com a aplicação de práticas restaurativas no enfrentamento de conflitos. Por outro lado, a contextualização histórica da infância, da educação e dos direitos da criança e do adolescente permitiu ampliar a compreensão da complexidade que envolve essas questões. A ação, iniciada em agosto de 2012, foi realizada ao longo de seis semanas, aos sábados, utilizando os espaços cedidos por escolas instaladas nas comunidades de Jaboatão dos Guararapes, Peixinhos e Santo Amaro. No sétimo sábado, os participantes das três comunidades reuniram-se para o evento de encerramento, um seminário “integralizador” com palestra de Kay Pranis, formadora e facilitadora em círculos de construção de paz. Durante o evento, foram apresentadas as propostas de intervenção elaboradas pelos alunos como Projeto de Boas Práticas. No primeiro ano, a atividade foi realizada de forma concomitante nas três comunidades, com a apresentação sequencial dos módulos começando por Jaboatão dos Guararapes, seguido por Peixinhos e, depois, incorporando a comunidade de Santo Amaro. Entretanto, as dificuldades operacionais encontradas pela equipe do Projeto e as avaliações (instrumento de monitoramento) feitas pelos alunos indicaram a necessidade de ajustes nessa dinâmica. Assim, foram efetuadas mudanças no segundo ano da atividade, onde se optou por realizar o curso de forma completa, com uma comunidade de cada vez. A inadequação da estrutura e dos recursos físicos das escolas também levou à decisão estratégica de concentrar as aulas num só lugar, de modo que foram transferidas para um espaço cedido pela UFRPE. Houve também um aumento na carga horária, que passou de 35 para 56 horas (oito horas por módulo), com o fim de atender à demanda expressada pelos participantes – via monitoramento de processo –, que sentiram a necessidade de um tempo maior para o aprofundamento nos temas abordados. Acrescentou-se, igualmente, uma oficina de noções básicas de elaboração

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de projetos para orientar os alunos na preparação das propostas de fim de curso e sobre a participação no edital de boas práticas, pois os trabalhos apresentados nos três cursos iniciais não estavam em consonância com o proposto pelo Projeto, no tocante a iniciativas que contemplassem práticas restaurativas como forma de mediar e prevenir conflitos na escola e na comunidade. Além disso, a oficina buscava estimular os participantes dos cursos a investir em novas experiências no cenário do seu cotidiano laboral. O curso foi dividido em seis módulos, com a realização de uma oficina no último, onde foram tratadas as seguintes temáticas: MÓDULO I: História, Direitos Humanos e Escola. A Infância no Brasil: da caridade à assistência; história da institucionalização do ensino e da violência institucional; concepções acerca das práticas educacionais construídas ao longo da história brasileira; MÓDULO II: Escola e Cultura de Paz. Os conflitos e suas possibilidades de aceitação, prevenção e solução: fundamentos e práticas da comunicação não violenta; MÓDULO III: Gestão de Conflitos Escolares por meio de uma Justiça Restaurativa. O conflito e a violência na escola; comunicação e facilitação de diálogos apreciativos; a prática dos encontros e dos círculos restaurativos na escola; MÓDULO IV: Escola e Cotidiano: Retratos da Violência. Função social da escola; conceito e contexto sociocultural da violência; possibilidades de prevenir a violência escolar; MÓDULO V: Escola, Família e Comunidade. Representações sobre a relação família e escola; reflexão da família a partir das trajetórias dos indivíduos e do histórico de suas relações sociais; MÓDULO VI: Escola: Lugar das Diferenças. A diversidade humana presente na escola; gênero e sexualidade; preconceitos que geram violência; OFICINA: Conceitos e Roteiros de Elaboração de Projetos.

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3.3 Perfil dos participantes Em razão da realidade vivenciada atualmente no ambiente escolar, onde a violência é um problema cotidiano, ficou decidido que se destinaria uma parte importante das vagas do curso de extensão para pessoas vinculadas às escolas públicas, entre gestores, professores e outros profissionais. Em principio, cada turma de 30 pessoas seria composta por 15 indivíduos desse coletivo e 15 participantes da comunidade (líderes comunitários, representantes de organizações da sociedade civil e moradores). Quando se estabeleceu a parceria com o Tribunal de Justiça (TJ) e a Secretaria de Educação, em 2012, o número de vagas em cada comunidade foi ampliado para 35, agregando cinco vagas para professores da Secretaria de Educação que atuassem dentro das instituições do Sistema Socioeducativo. Ao final de cada ano, esperava-se formar um total de 105 pessoas entre Jaboatão dos Guararapes, Peixinhos e Santo Amaro. O processo de identificação de lideranças e de atores-chave nas comunidades foi levado a cabo pela equipe do Projeto É de Direito, com o levantamento dos indivíduos ou organizações que já atuavam na área de prevenção à violência e conflitos ou que desenvolviam algum trabalho junto a famílias, crianças, adolescentes ou jovens. Por intermédio do Projeto Escola Legal, a Secretaria de Educação assumiu inteiramente a responsabilidade de divulgar o curso nas escolas da rede pública localizadas nas três comunidades trabalhadas, além de convocar a participação e de coordenar a inscrição de gestores, técnicos e professores. Problemas operacionais impediram o pleno cumprimento dessa tarefa e o número de inscritos ficou muito abaixo do esperado. A baixa adesão dos representantes do âmbito escolar exigiu ajustes importantes, a começar pelo preenchimento dessas vagas por pessoas relacionadas com a comunidade, o que provocou uma quebra no equilíbrio desejado. No segundo ano da atividade, procurou-se compensar essa desproporção com a ampliação do número de vagas para a escola, que passou para 20, enquanto dez ficaram para a comunidade. Isso foi feito depois que o Projeto Escola Legal reiterasse o interesse pela ação e se comprometesse em fazer com que a participação dos representantes da rede de ensino pública fosse realmente significativa.

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3.4 Avaliações sobre a atividade, os resultados e os impactos 3.4.1 Capacitações realizadas e público atendido Entre os anos de 2012 e 2013 foram realizados seis cursos de extensão Escola e Comunidade. O total de concluintes no primeiro ano foi de 124 pessoas e, no segundo, 109. Os participantes do curso receberam certificado de conclusão concedido pela UFRPE. Para isto, era preciso cumprir com um mínimo de 75% de frequência às aulas.

3.4.2 Análise da atividade e seus resultados Assim como ocorreu com o processo de formação para profissionais, as avaliações indicaram que, em termos qualitativos, a ação atingiu grande parte dos objetivos propostos e que, de uma maneira geral, o curso foi muito bem valorado pelos participantes. No entanto, é preciso mencionar algumas das dificuldades significativas apontadas pela equipe do Projeto. Apesar de que o Tribunal de Justiça e a Secretaria de Educação afirmassem que o trabalho de prevenção à violência no meio escolar era realizado por intermédio do Projeto Escola Legal, constatou-se que ele não vinha sendo executado como o previsto e, ao mesmo tempo, era praticamente desconhecido pela maioria das escolas das três comunidades. O problema maior foi verificado em Peixinhos, onde o projeto é executado pelo Tribunal de Justiça de Recife e não pelo de Olinda, município ao qual a comunidade pertence. De certa forma, é possível que, no início, essas circunstâncias tenham dificultado o estabelecimento – via Escola Legal – de uma relação mais estreita entre o Projeto É de Direito e as escolas nas comunidades onde ele deveria atuar. Uma vez contornada essa dificuldade, surgiu outra, gerada pela baixa adesão de representantes da rede de ensino público nos três primeiros cursos. Como a atividade estava estruturada levando em conta a articulação entre a escola e a comunidade – onde a primeira teria um papel centralizador como câmara de mediação – a falta desses atores deixou um grande vazio. Os grupos estavam compostos, majoritariamente, por participantes vindos das comunidades e a ausência daqueles que seriam seus interlocutores fundamentais não permitiu que se estabelecesse o diálogo previsto. Considera-se, também, que a elevada evasão por parte dos professores inscritos pode ser atribuída ao fato do curso acontecer aos sábados, já que a participação dos profissionais na formação durante a jornada laboral, conforme previsto incialmente, não foi liberada pela Secretaria Estadual de Educação. Com o intuito de minimizar tais efeitos, buscou-se que o Projeto Escola Legal e a Secretaria de Educação assumissem, de fato, um compromisso maior com a ação, e no segundo ano da

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atividade verificou-se uma melhora na adesão – independentemente dos cursos permanecerem aos sábados – de professores e profissionais da rede de ensino público, mas não de gestores. A atuação da Secretaria Municipal de Educação de Jaboatão dos Guararapes, parceira do Projeto É de Direito, foi fundamental para o êxito do segundo curso, oferecido àquela comunidade no primeiro semestre de 2013. Com relação aos temas dos módulos, uma vez mais, aquele que despertou maior interesse entre os participantes foi o de mediação de conflitos, com uma demanda para que se dedicasse mais tempo ao aprendizado de técnicas próprias desse recurso e suas aplicações. O primeiro módulo – História, Direitos Humanos e Escola – também foi bem avaliado, por ajudar na contextualização das questões e dos problemas que afetam as crianças e os adolescentes. O Projeto deu um passo importante ao incluir a percepção da comunidade sobre a violência que afeta crianças, adolescentes e jovens, oferecendo condições e ferramentas para que ela se integrasse efetivamente no processo de mudança proposto. É extremamente positivo um cenário de “comunidade educativa”, aonde se percebe a escola e sua comunidade em sinergia e conexão. Pode-se concluir que a insuficiente ou inadequada integração entre ambas torna ainda mais difícil encontrar um caminho para enfrentar as causas e as consequências da situação de violência e de violação de direitos vivenciada nesses ambientes, com efeitos negativos sobre sua população de crianças e adolescentes. Depois de ressaltados os aspectos que se referem exclusivamente à formação para a comunidade, vale dizer que a maioria das análises feitas anteriormente, relativas ao curso de aperfeiçoamento para profissionais, são pertinentes para o curso de extensão Escola e Comunidade, assim como os resultados e impactos observados. Merece destaque o papel que esses processos de formação desempenharam como facilitadores da articulação entre distintos atores e segmentos, bem como o estímulo que significou a aplicação das boas práticas, pela possibilidade de gerar transformações efetivas no cotidiano da escola e da comunidade. São aspectos estratégicos que devem ser considerados no escopo de futuros projetos que sigam essa mesma linha.

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Mecanismos de avaliação dos processos de formação

Foi estabelecido, para todos os processos de formação, um sistema de avaliação por módulos (fichas de avaliação) para efetuar um monitoramento próximo e contínuo da atividade e seus impactos, como forma de garantir a qualidade e os bons resultados da ação. As informações colhidas por meio de avaliações feitas pelos participantes serviram de base para efetuar ajustes e atender às demandas expressadas. Utilizou-se um instrumental reduzido do estudo sobre conhecimentos, atitudes e práticas (CAP) no início e no final do curso (Marco Zero e Marco Final) que permitiu uma análise qualitativa sobre o perfil dos participantes e constatar se houve, efetivamente, uma mudança nesse sentido. No segundo ano do Projeto, foram desenvolvidas outras ferramentas para mensurar quantitativamente os resultados da formação e aferir em que medida os objetivos foram alcançados52. Ao final de cada curso foi empregada uma ficha de avaliação global. Para completar o processo, procedeu-se a uma verificação de resultados seis meses após o término das formações.

52. Trabalho desenvolvido conjuntamente com a consultora externa Amy Merritt , Save the Children Reino Unido.

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Implementação de Boas Práticas

Um dos princípios norteadores do Projeto era o enfrentamento dos fatores inter-relacionados que impactam nas vidas de crianças e adolescentes. Por um lado, propunha-se uma imersão em conceitos, concepções, informações e, por outro, buscava-se provocar a mobilização por meio de ações concretas e da viabilização de mudanças duradouras. A implementação de boas práticas pedagógicas inscreve-se nesta lógica. Nesta perspectiva, ambos os processos de formação incluíram a elaboração de uma proposta que contemplasse a prevenção à violência e permitisse a aplicação concreta, tanto no cotidiano institucional como no comunitário, dos conhecimentos adquiridos durante o curso. Foi assim com o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), para os profissionais dos sistemas de atendimento e justiça, e com o projeto final do curso escola e comunidade. As boas práticas levaram as pessoas a pensarem propostas de acordo com essa lógica – um exercício normalmente inexistente para a maioria dos participantes. Com o Edital de Boas Práticas, proposto e apresentado aos participantes, o Projeto ofereceu a oportunidade de efetivar iniciativas dessa natureza pela via da premiação de propostas, com disponibilidade de apoio financeiro e operacional. A possibilidade de realizar ações transformadoras por meio da aplicação de boas práticas pedagógicas funcionou com um poderoso estímulo para os alunos de ambas as atividades. Os projetos classificados pelo edital serão desenvolvidos nas instituições participantes – duas do Sistema Protetivo e duas do Sistema Socioeducativo –, assim como nas três comunidades incluídas. Para sua seleção, deveriam obedecer, principalmente, aos seguintes critérios: Promoção da participação das crianças e dos adolescentes atendidos; Desenvolvimento de atividades que permitam a assimilação, por parte desse público, de conhecimentos sobre seus direitos e sobre prevenção à violência de toda natureza; Inclusão de práticas restaurativas e ações de mediação de conflitos. Em virtude do retraso na elaboração e lançamento do Edital de Boas Práticas, atribuído a entraves burocráticos e demora no repasse dos recursos pelo financiador do Projeto, postergou-se a ação para o último ano de execução. Estes percalços impedem que sejam listadas as ações contempladas pelo Edital. O Cendhec assumiu o compromisso de executar o monitoramento da efetivação das propostas escolhidas, como contrapartida do Projeto. 140


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Aspectos diferenciais e inovadores das atividades de formação

As apreciações dos diferentes atores que, de alguma maneira, estiveram envolvidos na atividade – equipe do Projeto, professores, alunos –, coincidem na hora de apontar os aspectos mais relevantes e significativos da experiência vivida. Isto é válido para ambos os processos de formação realizados, com diferenciais e inovações a salientar.

Metodologia É possível afirmar que a adoção de uma metodologia participativa e vivencial desempenhou um papel preponderante para uma percepção global positiva sobre a ação. Essa opção favoreceu o surgimento de uma dinâmica diferenciada, fazendo com que os indivíduos se reconhecessem como parte de um processo onde era possível intervir.

A prática como conteúdo A experiência cotidiana e imediata trazida pelos participantes estabeleceu um diálogo entre a teoria e a prática, fonte de enriquecimento mútuo para professores e alunos.

Espaço de reflexão Por meio do processo de formação, foram dados os instrumentos e as condições para uma reflexão pessoal e coletiva, que permite, entre outras coisas, a revisão de posturas e conceitos, além do reconhecimento das limitações, das fragilidades e das dificuldades que são comuns a todos. Esse exercício traz como resultado a descoberta de novas perspectivas para o exercício profissional e a atuação comunitária.

Espaço de articulação O espaço integrador proporcionado pelas formações foi considerado como um dos principais aportes do Projeto, um resultado não previsto inicialmente, estimulando o diálogo e gerando

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reconhecimento mútuo para os distintos atores, favorecendo a interação interpessoal, intrainstitucional e interinstitucional. Profissionais das instituições de ambas as áreas de atendimento (protetiva e socioeducativa) e outros representantes do SGDCA ressaltaram a heterogeneidade na composição dos grupos, que propiciou uma aproximação inédita entre os integrantes de um mesmo sistema e possibilitou o compartilhamento de experiências, pontos de vista e ideias, além do despertar para a importância do pensamento e da ação coletivos. O mesmo se deu para os participantes do curso de extensão Escola e Comunidade, que valorizaram a oportunidade de interagir com representantes dos distintos segmentos que, de alguma maneira, interferem na vida da comunidade e na de suas crianças, adolescentes e jovens.

Boas práticas A adoção de boas práticas como meio para iniciar um processo de mudança efetivo no cotidiano institucional, nos espaços de trabalho e nas comunidades.

Justiça restaurativa e práticas restaurativas A introdução do conceito de justiça e práticas restaurativas, incluído no processo de formação, foi apontada como uma inovação trazida pela ação. Apesar de ser do conhecimento de alguns, representava uma novidade para a maioria. O destaque foi para a abordagem dada à mediação de conflitos e sua aplicação como recurso para a prevenção à violência e o enfrentamento de situações de conflito. Os processos de formação desenvolvidos e executados dentro do âmbito do Projeto É de Direito vêm se tornando uma referência na capacitação e no aperfeiçoamento de profissionais e atores do SGDCA. A equipe executora do Projeto foi convidada a ministrar palestras em outros âmbitos, fora do contexto dos cursos, dirigidas a grupos específicos de profissionais. De acordo com o estudo CAP realizado com integrantes do SGDCA, a formação continuada era uma demanda quase unânime entre os profissionais das instituições de atendimento a crianças e adolescentes, que viam como essa carência refletia de forma negativa em seu trabalho. Os participantes da formação oferecida pelo Projeto É de Direito indiciaram que há o desejo e a necessidade de uma formação e capacitação continuadas. A interrupção de uma iniciativa como essa põe em risco os resultados do esforço já realizado para a mudança de cultura proposta pelo Projeto.

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Curso de facilitador em círculos de justiça restaurativa e de construção da paz

Segundo definição da Organização das Nações Unidas (ONU), Cultura de Paz “é um conjunto de valores, atitudes, comportamentos e modos de vida que rejeitam a violência e previnem os conflitos, atacando suas causas para resolver os problemas através do diálogo e negociação entre indivíduos, grupos e nações”.53 Essa é base sobre a qual se pautam as iniciativas incluídas no conceito de justiça restaurativa. Neste contexto, os Círculos Restaurativos possibilitam um olhar sobre a injustiça social: o que o crime revela, na verdade, são os danos resultantes de uma situação de desigualdade. Um dos aspectos essenciais do Círculo é a responsabilização individual e de grupo. Por esta razão, sua aplicação com crianças e adolescentes é altamente positiva, já que eles são muito abertos a assumir responsabilidades em conjunto e entendem que o comportamento individual afeta o coletivo.

53. Resoluções da ONU A/RES/52/13: Cultura de Paz e A/RES/53/243, Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz.

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Os Círculos começaram a ser aplicados em determinados âmbitos do sistema judiciário brasileiro desde o ano 2000. Nos Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, os círculos restaurativos e de mediação funcionam como estratégia para a diminuição de casos de internação de adolescentes que cometeram ato infracional, e em Pernambuco já há profissionais que utilizam essas práticas. O objetivo da formação era introduzir os Círculos Restaurativos entre indivíduos com capacidade multiplicadora em seus âmbitos de atuação e fazer do curso um embrião para estimular a adoção de práticas restaurativas nestes meios, levando as pessoas a pensarem em formas de redução da violência nos espaços públicos, sociais e comunitários. Buscava, também, o fortalecimento da capacidade desses indivíduos para desenvolverem práticas que se contrapusessem à visão meramente punitiva do adolescente em conflito com a lei.

7.1 Conteúdo e metodologia Os Círculos partem do princípio de que cada pessoa tem igual valor, dignidade e direito a voz. A intenção é encontrar uma solução adequada para todos os membros do grupo, a partir do que cada indivíduo possa oferecer para resolver diferenças, melhorar relacionamentos ou enfrentar problemas. A abordagem dos conflitos é feita a partir de valores e diretrizes consensuais e se fundamenta na aceitação, no acolhimento, no respeito e no reconhecimento do outro. É, portanto, um poderoso exercício de liderança compartilhada. O curso, com uma carga de 28 horas, foi realizado de forma intensiva durante quatro dias, no mês de outubro de 2012. Durante os dias de duração da atividade, os participantes foram reunidos em um espaço que oferecia as condições necessárias de silêncio, tranquilidade e isolamento para potenciar a aprendizagem das técnicas do Círculo através da vivencia direta de sua prática. O processo foi conduzido pela norte-americana Kay Pranis54, especializada em Círculos de Construção da Paz e uma referência na área de Justiça Restaurativa. A metodologia empregada por Pranis é extremamente eficaz em trabalhos que utilizam práticas de diálogo horizontal com o objetivo de restaurar danos, superar traumas, reconstruir vínculos ou mesmo para desenvolver processos educativos diversos.

54. Kay Pranis é especializada em Círculos de Construção da Paz e uma referência na área de Justiça Restaurativa. Começou sua atuação no sistema judiciário do estado de Minnesota, Estados Unidos, onde trabalhou como coordenadora de Justiça Restaurativa para o Departamento de Correções do Estado, entre 1994 e 2003. Também atuou como diretora dos serviços de investigação no Conselho de Cidadania sobre Crime e Justiça, por seis anos. Tomou contato com as práticas circulares na sua atividade no sistema judiciário e realizou uma formação específica no Canadá, com o juiz Barry Stuart. Desde então, desenvolve seu trabalho com foco nessa prática. Estendeu a utilização dos Círculos para os mais distintos âmbitos, como o enfrentamento de situações conflituosas, o estabelecimento de relações entre indivíduos e comunidade ou responsabilização por atos e suas consequências, entre outros. Desde 1996, vem ajudando a implantar os Círculos nos sistemas de justiça para jovens e adultos, nos âmbitos escolar, familiar e laboral, junto a entidades de serviços sociais e em distintos tipos de comunidade, órgãos governamentais, universidades e entidades sem fins lucrativos. Publicou vários trabalhos sobre Círculos de Construção da Paz e Justiça Restaurativa, difundidos em países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão.

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7.2. Perfil dos participantes A metodologia dos Círculos de Paz é aplicável a diferentes contextos e propósitos e os Círculos Restaurativos merecem destaque entre as distintas iniciativas que aplicam o princípio de justiça restaurativa. Baseada nisso, a organização do evento escolheu os participantes de forma criteriosa. O grupo estava composto por 25 representantes de órgãos e entidades governamentais e não-governamentais que operam nas áreas de justiça, educação e de serviços social e comunitário relacionados, em sua maioria, com a temática de crianças e jovens em situação de risco e/ou conflito com a lei.

7.3 Análise da atividade e seus resultados As avaliações sobre o curso iam sendo feitas à medida em que a atividade acontecia. O próprio processo fomentava que as pessoas expressassem seus pensamentos e opiniões, assim que os ajustes eram realizados de forma imediata e decididos de comum acordo. A dinâmica utilizada – a experimentação direta e intensiva da prática do Círculo e seus efeitos – funcionou como disparador para que os participantes refletissem sobre a aplicação dos conceitos aprendidos nos seus contextos pessoais e profissionais. As pessoas observaram a sintonia que existia entre o conteúdo do curso e a prática no ambiente de trabalho, por exemplo. O aprendizado foi resultado da vivência do processo, da reflexão conjunta e da sua apropriação. Como resumo, vale destacar o seguinte: Percepção do outro e respeito pelo aporte de cada um; Valorização da oportunidade de participar, contribuir e ser reconhecido pelo grupo; A riqueza da experiência de trabalhar com um grupo heterogêneo; o aprendizado coletivo de lidar com os conflitos que vão surgindo, ainda que se produzam momentos de tensão; Possibilidade de uma construção coletiva, mesmo quando parece que as diferentes tentativas indicam que não haverá acordo; Compreensão de que a predisposição a mudanças abre portas interessantes; o surgimento de novos modelos, tão bons ou melhores quanto os anteriores, mostra as diferentes possibilidades de construção; Aprendizagem da liderança compartilhada; Compromisso e engajamento no processo; A interconexão, um dos pilares do processo circular, oferece uma visão de mundo onde a exclusão não é possível, pois o vínculo permanece mesmo que não se tenha consciência de sua existência. É preciso que a comunidade entenda este conceito: o que afeta a um de seus membros, impacta em todos os demais; Interação com os profissionais das diferentes áreas de ação e a busca de meios para promover um trabalho com mais intencionalidade em favor de crianças, adolescentes, jovens, familiares e comunidades. 145


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Os caminhos apontados pela experiência dos processos de formação

As recomendações apresentadas aqui são resultado de um processo de avaliação e escuta atenta das apreciações, sugestões e comentários de todos aqueles que participaram no processo de formação. Nesse sentido, é preciso enfatizar que boa parte do sucesso da ação é resultado da dialógica estabelecida entre o Projeto e a Rede de Proteção, com diversos segmentos e atores do SGDCA, governamentais e não-governamentais. A participação ativa de todos os envolvidos agregou saberes e experiências para a construção de uma rede alimentada pelo conhecimento e novas práticas, que precisa ser continuamente revisitada e fortalecida. Trabalhar pela articulação e o bom funcionamento da Rede de Proteção é fundamental para a efetivação e a consolidação da proposta do Projeto É de Direito. Estas recomendações consistem em uma síntese das principais considerações que refletem a análise complexa, crítica e situada da experiência, realizada continuamente pela equipe do Projeto, professores e participantes do curso. I) Sobre o público-alvo da formação continuada É de extrema relevância a oferta/realização de formação continuada para os diversos atores do SGDCA – profissionais das instituições de atendimento e proteção, operadores de direito e pessoas que residem e atuam nas comunidades, incluindo crianças e adolescentes, bem como aqueles que cumprem medidas socioeducativas em meio fechado. Mesmo considerando o desafio que significa criar e manter esse tipo de ação, é preciso investir fortemente na criação de espaços de formação onde haja a interação entre grupos heterogêneos, que possibilitam a troca, a (re)significação de estereótipos e de pré-conceitos, a mediação de possíveis tensões e conflitos que tendem a fazer parte do imaginário e cotidiano desses indivíduos, bem como a construção de uma visão mais ampla, porém não menos específica, sobre a realidade de trabalho nos diferentes âmbitos e na práxis profissional. Recomenda-se, sobretudo, que seja proporcionada formação continuada aos adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa em meio fechado, principalmente sobre a temática da mediação de conflitos e das práticas restaurativas, não apenas para capacitá-los, mas também minimizar as tensões e conflitos vivenciados no espaço coletivo de privação de liberdade.

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II) Sobre a metodologia da formação continuada A formação continuada é uma ferramenta estratégica para qualificar e fortalecer o SGDCA. Mais ainda quando prioriza uma metodologia participativa e horizontal, que considera o conhecimento dinâmico, político e contextualizado produzido a partir da interação e da reflexão coletiva, favorecendo a troca de experiências e saberes entre todas as pessoas envolvidas. Essa ação deve priorizar a abordagem de temas na área de direitos humanos, com conteúdos consistentes e uma metodologia que propicie o desenvolvimento de habilidades e competências para trabalhar com o público em questão, bem como ofereça oportunidades para o fomento à construção da cidadania de crianças, adolescentes e seus familiares.

III) Sobre as instituições parceiras e os profissionais que conduzirão a formação continuada Deve-se cuidar para que as instituições realizadoras da formação continuada e seus respectivos profissionais identifiquem-se e atuem dentro do marco da garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, especialmente no que se refere a temas considerados “polêmicos”, tais como a defesa e a proteção dos direitos dos adolescentes que cometem ato infracional ou a não redução da maioridade penal, entre outros. Ademais, é preciso assegurar de que a formação seja conduzida por profissionais comprometidos, ética e politicamente, com a garantia de direitos humanos. Acredita-se, ainda, que os profissionais que exercitam a autoanálise e que sabem estabelecer relações empáticas tendem a ser mais abertos ao encontro e à escuta com o outro. Assim, podem chegar a desenvolver ferramentas e dinâmicas que estimulem e sensibilizem os demais a dar significação ou mesmo a reverem seus valores, revisitarem suas práticas cotidianas e a assumirem o compromisso com um processo de transformação social que valorize uma cultura de paz e o desenvolvimento de pessoas livres, diversas, singulares, solidárias, empreendedoras e autônomas. IV) Sobre a formação continuada nas comunidades Recomenda-se dar continuidade e ampliar a experiência de capacitação nas comunidades por meio de cursos de extensão, a fim de contribuir para a construção, o restabelecimento e o fortalecimento dos vínculos afetivos e solidários das crianças, dos adolescentes e dos jovens com suas famílias e com a comunidade, além de prepará-los para protagonizarem suas histórias de vida com base em valores éticos e solidários. O Projeto É de Direito, por intermédio do Cedca/PE, construiu uma sólida parceria com a UFRPE/Escola de Conselhos de Pernambuco. Aproveitando essa experiência, considera-se que é relevante que seja a própria Universidade, na qualidade de instituição de ensino pública, que dê continuidade aos trabalhos de extensão e pesquisa que potencializem o desenvolvimento das comunidades por meio da formação de pessoas e profissionais que ali residem e atuam, para melhorar a interação e qualificar o atendimento dado a suas crianças, adolescentes e jovens.

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V) Sobre outros parceiros responsáveis pela oferta e realização da formação continuada Considera-se de grande relevância que a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco inclua e priorize na grade de formação de seus professores as temáticas da mediação de conflitos e das práticas restaurativas. Igualmente, que a Secretaria Estadual da Criança e da Juventude desenvolva de forma sistemática a qualificação de profissionais do SGDCA de Pernambuco em temas como direitos humanos e relações comunitárias e familiares. Ao Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, também fica a recomendação de continuar trabalhando para a instauração de medidas alternativas à internação na prática da justiça juvenil. VI) Sobre o processo de planejamento, monitoramento e avaliação da formação continuada É muito importante que o processo de formação continuada contemple uma política e uma prática de planejamento, monitoramento e avaliação sistemática que permita a análise contínua dos conteúdos debatidos, da metodologia e da didática utilizadas pelos professores, da logística e dos recursos materiais utilizados, entre outros aspectos. É fundamental, pois, que sejam elaborados e utilizados instrumentais que, além de garantir a coleta e a análise dessas informações, facilitem a reflexão sobre a capacidade da formação de contribuir para a mudança de concepções, atitudes e práticas dos profissionais, bem como de agregar valores a todos os participantes.

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56

IA

AF R G O BLI

BI

56. Esta publicação utilizou como fonte de referência todo o material produzido pela equipe coordenadora e executora do Projeto É de Direito durante seus três anos de execução, bem como os documentos elaborados por consultores externos, a saber: a) Relatórios de acompanhamento anuais; b) Relatórios de pesquisas e monitoramento; c) Relatórios de sistematização dos eventos realizados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Baudrillard, Jean (1995). A Sociedade de Consumo. Rio de Janeiro: Elfos. Bercroft, A J (2006). Alternative Approaches to Sentencing. CMJA Triennial Conference, Toronto, Canada. Fonte: http://www.justice.govt.nz/courts/youth/publications-and-media/speeches/alternative-approaches-to-sentencing. Brayford, J, Cowe, F, Deering, John (eds.) (2010). What Else Works? Creative Work with Offenders. Devon and Portland: Willan. Burnett & McNeill (2005). Center for National Policy (2001). New Programs for Youth Offenders: A search for effective national models. http://www.public-works.org/documents/CNPYouthReport.Pdf. CNJ-Conselho Nacional de Justiça e IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2011). Justiça Infanto Juvenil: Situação Atual e Critérios de Aprimoramento, Relatório de Pesquisa. Brasília. Fonte: http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/2011-08-10-19-36-05. CNJ – Conselho Nacional de Justiça (2012). Panorama Nacional: A execução das Medidas Socioeducativas de Internação. Brasília. Fonte: http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/2011-08-10-19-36-05. Day, Andrew, Howells, Kevin and Rickwood, Debra (2004). ‘Current Trends in Rehabilitation of Juvenile Offenders. Trends & Issues in crime and criminal justice. N.284. Australian Institute of Criminology. Da Silva, Márcia Nogueira e Silva, Anália dos Santos. Violência Institucional no Sistema Socioeducativo: Alguns dados sobre as adolescentes do sexo feminino. Fonte: http://mpdft.gov.br/senss/anexos/Anexo_7.24_-_Marcia_e_Analia_2.pdf. Dourado, Ana Cristina (2012). ‘Quando o isolamento não é a resposta: Experiência de Atendimento a Adolescentes em Conflito com a lei a partir de princípios da Justiça Restaurativa, in Sandro Sayão e Marcelo Pelizzoli (orgs.). Fragmentos Filosóficos: Direitos Humanos e Cultura de Paz. Recife: UFPE. Groarke, Ana Maria Maciel (2004). Refiguring Aspirations: Young People in Brazil and England. Tese de Doutorado, The Nottingham Trent University. Groarke, Ana Maciel (2012). Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente: Configurações a partir do olhar de profissionais dos órgãos executores, deliberativos e de controle e dos adolescentes privados de liberdade. Relatório de Pesquisa. Recife: Fundação Abrinq/Save the Children (mimeo). Haraway, Donna (1988) ‘Situated knowledges: the science question in feminism as a site of discourse on the privilege of partial perspective’. Feminist studies, 14(3): 575-599. Haraway, Donna (1991) Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge. Holloway, Wendy and Jefferson, Tony (2000). Doing Qualitative Research Differently: Free association, Narrative and the interview method. London, Thousand Oaks and New Delhi: Sage. Ricoeur, Paul (1988). Time and Narrative, (vol.3). Chicago: University of Chicago Press. Ricoeur, Paul (1992). Oneself as Another. Translated by K. Blamey. Chicago: University of Chicago Press. Sales Júnior, Vitor; Lino, Tayane; Freitas, Rafaela (2011). “Sexualidade entre grades”: Gênero e Diversidade Sexual de Jovens em Cumprimento de Medida Socioeducativa em Minas Gerais. Fonte: http://www.encontro2011.abrapso.org.br/trabalho/view?ID_ TRABALHO=703.

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Maddern, Kerra (2010). ‘Creative Approach helps to get young offenders back on track’. Tes Newspaper. London. Fonte: http://www. tes.co.uk/article.aspx?storycode=6056945. Maloney, D and Holcom, D (2001). In Pursuit of Community Justice: Deschutes County, Oregon. Youth & Society, 33(2), pp.296-313. Mattar, Laura (2008). Exercício da Sexualidade por Adolescentes em ambientes de privação de liberdade. Caderno de Pesquisa, v. 38, n.133, pp.61-95. Fonte: http://www.scielo.br/pdf/cp/v38n133/a04v38n133.pdf. Nogueira Neto, Wanderlino (2012). ‘Antagonismo entre a responsabilização jurídica especial dos adolescentes em conflito com a lei e a chamada psiquiatrização na aplicação e na execução das medidas socioeducativas’. Vozes: que pensam os/as adolescentes sobre os atos infracionais e as medidas socioeducativas. Terre des hommes. O´Connor, C (2008). What research tells us about effective interventions for juvenile offenders. What works, Wisconsin Fact Sheet, Madison, WI: University of Wisconsin – Madison/Extension). Zapata, Fabiana Botelho (2012). Construindo as bases para um plano integrado de monitoramento do sistema socioeducativo. Recife: Fundação Abrinq/Save the Children (mimeo).

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LISTA DE SIGLAS PARA PUBLICAÇÃO ABMP; Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude ACONTEPE; Associação de Conselheiros e Ex-Conselheiros Tutelares de Pernambuco

GAJOP; Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares GPMC; Gerência de Prevenção e Mediação de Conflitos

Alepe; Assembleia Legislativa de Pernambuco

IASC; Instituto de Assistência Social e Cidadania

Case; Centro de Atendimento Socioeducativo

MP; Ministério Público

CaseM; Casa de Semiliberdade

MPPE; Ministério Público de Pernambuco

Cedca; Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente

OAB; Ordem dos Advogados do Brasil

Cendhec; Centro Dom Hélder Câmara de Estudos e Ação Social

ONU; Organização das Nações Unidas

OEA; Organização dos Estados Americanos

CENIP; Centro de Internação Provisória

PIA; Plano Individual de Atendimento

CNJ; Conselho Nacional de Justiça

Renade; Rede Nacional de Defesa dos Direitos do Adolescente em Conflito com a Lei

Comdica; Conselho Municipal dos Direitos da Criança CONANDA; Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente Craur; Comunidade Rodolfo Aureliano CREAS; Centros de Referência Especializados da Assistência Social DPCA; Delegacia de Polícia da Criança e do Adolescente

SCJ; Secretaria da Criança e da Juventude SGDCA; Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente Sinase; Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo Sipia; Sistema de Informações para a Infância e a Adolescência

ECA; Estatuto da Criança e do Adolescente

SNPDC; Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente

EIDHR; European Instrument for Democracy and Human Right

TJ; Tribunal de Justiça

FADURPE; Fundação Apolônio Salles de Desenvolvimento Educacional

UFPE; Universidade Federal de Pernambuco

TJPE; Tribunal de Justiça de Pernambuco

Fórum Estadual DAC; Fórum Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente

Ufrpe; Universidade Federal Rural de Pernambuco

Fórum Municipal DAC; Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente

UNIBAN; Universidade Bandeirante de São Paulo

Funase; Fundação de Atendimento Socioeducativo

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FUNDAC; Fundação da Criança e do Adolescente

UNIAI; Unidade de Atendimento Inicial


ÓRGÃOS, INSTITUÇÕES E ENTIDADES QUE PARTICIPARAM EM REUNIÕES OU EVENTOS DO PROJETO É DE DIREITO ÓRGÃOS FEDERAIS Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República; Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDC) ÓRGÃOS ESTADUAIS Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe): Comissão de Cidadania e Direitos Humanos Fórum Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco Polícia Civil (Departamento de Perícia Criminal) Secretaria da Criança e da Juventude de Pernambuco Secretaria de Defesa Social de Pernambuco: Projeto URBAL de Políticas Locais de Prevenção da Violência Secretaria de Educação de Pernambuco: Projeto Escola Legal; Grupo Estadual de Direitos Humanos (GEDH) Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos de Pernambuco (SEDSDH): Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura; Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDH) Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco: Gerência de Prevenção e Mediação de Conflitos (GPMC); Programa de Proteção a Criança e Adolescente Ameaçados de Morte (PPCAAM)

ÓRGÃOS DO SISTEMA DE JUSTIÇA Defensoria Pública do Estado de Pernambuco Ministério Público de Estado de Pernambuco (MPPE): Centro de Apoio Operacional às Promotorias da Infância e da Juventude (CAOP-IJ) Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco: Vara da Infância e da Juventude da Capital; Coordenadoria da Infância e da Juventude: Núcleo de Apoio ao Trabalho de Apuração dos Processos de Conhecimento (NAPC); Tribunal de Justiça do Amazonas: Núcleo de Justiça Restaurativa da Região Norte do Brasil, 2ª Vara da Comarca de Manacapuru; Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Tribunal de Justiça de São Paulo Ouvidoria Externa da Defensoria Pública da Bahia Defensora Pública do Estado de São Paulo ÓRGÃOS DOS SISTEMAS PROTETIVO E SOCIEDUCATIVO Fundação do Estado de Pernambuco para o Atendimento Socioeducativo (Funase) Instituto de Assistência Social e Cidadania (IASC) Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS)

ÓRGÃOS MUNICIPAIS

ÓRGÃOS PÚBLICOS ATÔNOMOS

Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco (DCA)

Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes; Núcleo de Mediação de Conflitos Secretaria de Saúde de Jaboatão dos Guararapes: Programa de Saúde da Família Secretaria de Assistência Social de Olinda (CREAS)

Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente Conselho Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica) do Recife Conselho Tutelar dos Municípios do Recife, Jaboatão dos Guararapes e de Olinda 153


Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (FEDCA/CE) Mecanismo independente de Prevenção e Combate à Tortura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ).

Centro Poliesportivo de Barra de Jangada, Jaboatão dos Guararapes Centro de Referência Especializado em Assistência Social, Jaboatão dos Guararapes Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA/CE)

Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco

Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM)

ASSOCIAÇÕES E CONSELHOS PROFISSIONAIS

Grupo Comunidade Assumindo Suas Crianças (GCASC)

Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP)

Núcleos de Mediação e Arbitragem de Faculdades (Caruaru e Jaboatão dos Guararapes)

Conselho Regional de Psicologia (CRP)

ONG Aldeias SOS

Conselho Regional de Serviço Social (CRESS) Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção Pernambuco

ONG Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP)

Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Olinda

ONG Grupo Adolescer

Instituições religiosas para crianças do município de Jaboatão dos Guararapes

ONG Tortura Nunca Mais INSTITUIÇÕES DE ENSINO Escola Estadual Saturnino de Brito

Pastoral do Menor da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Faculdade dos Guararapes

Rede Nacional de Defesa dos Direitos do Adolescente em Conflito com a Lei (Renade)

Universidade Federal de Pernambuco; Comissão de Direitos Humanos

Instituto Tacaruna Social

Universidade Federal Rural de Pernambuco; Escola de Conselhos de Pernambuco; Observatório da Família

COMUNIDADES

UNIBAM (SP) - Mestrado em Adolescentes em Conflito com a Lei

Peixinhos, município de Olinda Prazeres, município de Jaboatão dos Guararapes Santo Amaro, município do Recife

REPRESENTANTES DA SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA Associação Estadual de Conselheiros e Ex-Conselheiros Tutelares de Pernambuco (ACONTEPE) Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Anced) Associação Olindense Dom Vital de Ensino Superior (FOCCA)

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UR11, município do Recife


Equipe do Projeto, consultores contratados e professores dos cursos promovidos pelo Projeto: Equipe Fundação Abrinq – Save the Children Coordenação PED Miguel Benjamin Minguillo Neto (2013) Ana Cristina Dubeux Dourado (2011/2013) Nara Menezes (2010/2011)

Professores curso extensão Escola e Comunidade Ana Cristina Dubeux Dourado Carlos Eduardo de Vasconcelos Humberto Miranda Marcelo Pelizolli Maria das Mercês Cavalcanti Cabral Miguel Benjamin Minguillo Neto Raquel de Aragão Uchôa Fernandes Vera Lúcia Braga

Equipe Daniela Resende Florio Douglas Souza Stéfany Terceiro do Santos Equipe Cendhec Coordenação PED Luzinete Virginia Airola da Silva (2013) Eduardo Paysan Gomes (2010/2013) Equipe Aryanne Vasconcelos Cristinalva Quintino Santos de Lemos Janaina Pedroza Manoela Poliana Eleuterio de Souza Milena Raiter Telma Low Vanja de Melo Cintra Valenç Consultores Ana Maria Maciel Groarke Bernadete Zimmerle Fabiana Botelho Zapata Francisco Carlos de Figueiredo Mendes Humberto Miranda Laudicena Maria Pereira Barreto Renato Roseno de Oliveira)

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Escritório São Paulo Av. Santo Amaro, 1.386 | 1º andar Vl. Nova Conceição | 04506-001 | São Paulo/SP 55 11 3848-8799

Rua Ernesto Paula Santos, 1.260 | 4º andar Boa Viagem | 51021-330 | Recife/PE 55 81 3033-1282

www.fundabrinq.org.br

/fundabrinq

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@FundacaoAbrinq

ISBN: 978-85-88060-57-9

Escritório Pernambuco


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