cruzeiro
seixas
cruzeiro seixas
Rigoroso limiar onde vêm doer-se as nuvens as gaivotas a caneta o telefone a tirania da mão que sozinha continua sobre o papel a estender o seu falso arco-íris. Dói um quasi nada de tudo doem-se todas as cidades e o acidente do operário trucidado aos 25 anos. No rigoroso limiar de tudo não está apenas o que posso imaginar e o que conheço mas também a vastidão infinita do que desconheço e talvez nunca exista. Oh este negro biombo contemporâneo escondendo o peso e a medida de geração em geração. Oh sombra indelével sobre que construí a monumentalidade do vácuo e o seu sangue que mancha as minhas mãos. Vê como aterrada treme a paisagem como se agita desastradamente esta ilusão de vida como ela própria chama a si a ilusão de um espelho logo quebrado. Oh como escuro este sol que resta o hálito da noite quando todos nós à sombra de um muro velho a que nascem malfazejas as sombras empalidecemos num estudado contraluz. O meu corpo já saíu de mim e ele é o próprio ar que respiro envenenado de espantos e remorsos. Oh vem da árvore mais alta preserva o azul da criança que passa vem do mar e põe na minha alma o teu moreno sorriso como um búzio sem a dor de uma apenas recordação. Oh Mãe que tive oh céu oh silêncio assassino que iluminas como velas mortas o meu rosto atónito de pavor de vergonha e de nojo. Como a morte canta ao fundo do corredor como chove lá fora como são hipócritas as palavras que coragem me falta para mais um dia. Áfricas, 70
Canto canto como um desesperado! O que julgas tu que faz mil milhões de reflexos na superfície exausta do Tejo? Por certo um desacordo que atinge no coração o sol os peixes a tua visão impressionista. A árvore não dá saborosos frutos apenas porque te ama e a tempestade desepera-se na sua impotência. O amor é uma ilusão Uma excepção ou um excesso? Oh tu homem civilizado julgas-te vivo quando és apenas uma perpétua imitação um vil ressuscitado de mortas civilizações. O sonho é o que te resta mas o seu peso é excessivo para a imensa fragilidade das palavras que são afinal a tua coluna vertebral. Todo o espaço é compacto e tu homem és o oco o vazio. Cruzeiro Seixas
O pequeno rio que nasce nos meus cabelos e desaparece sobre os meus pés abafa todos os gritos, 1946 Cruzeiro Seixas Aguarela e grafite s/ papel 310X240 N. Inv. 1675
No sonho havia nuvens galopando como cavalos selvagens e o meu corpo ainda era feito de mil pedras roladas pelo mar com infinitas gradações de cinzento como que encastoadas em prata e como um sol imaginário ao fundo. Mas na verdadeira metamorfose todos instalados no Scala podiam ver como os caracóis devoravam os violoncelos zoologicamente pútridos ali naquela pátria velha com o espelho entre as pernas mostrando paisagens apodrecidas onde mãos decepadas atacam ainda hoje os passantes com periscópios de clausura Num grande plano do Além Tejo havia dragões domésticos confraternizando encantadoramente com palavras açaimadas enquanto no fundo na palidez da tarde ocorria a história do rapaz esperando a rapariga projecto entusiasta como um acto justiceiro. Alguns espreitavam pela fechadura fumegante surpreendendo algumas peças interessantes sementes para a realização do grande sonho junto ao pacientemente elaborado lago dos suicidas. Sob telhados assentes no vácuo asséptico algumas formas naturais assediam os nascidos no Sagitário. Mas entretanto o bagageiro dormia a sono solto na cela da sua própria prisão e quanto mais nevava mais a torre crescia. Cruzeiro Seixas
Androgenia, 1956 Cruzeiro Seixas Caneta e aguarela s/papel 280X215 N. Inv. 1676
Quero acreditar que os cavalos são eternos e que tu és uma chama ou uma chave justaposta que faz com que se percam na neblina os ratos das grandes cidades. Caminham meus pés pelo espaço tão leves e pesados que não reconheço. Mas é no teu pescoço que começam as tempestades mais puras quando sobre a invencível armada se ouve ainda o tilintar dos rebanhos oh meu amor pálido como aquela fotografia do Infinito adormecido. Natureza morta desces o rio como quem ousa o mais obscuro do corpo inventado por um louco. Cruzeiro Seixas
Palavras à procura de destino, Julho 2005 Cruzeiro Seixas Aguarela e caneta s/ papel 260X190 N. Inv. 1677
Até ao fim esticado o infinito de uma palavra uma única palavra com seus dentes ferozes rasgando continentes. Em equilíbrio na cúpula a arquitectura de uma mão ali esquecida pelos amantes quando ainda eram gaivotas Falo da sombra de um cavalo-aqueduto mãe de gumes incandescentes esmagando centopeias de todas as cores poliglotas como um simples marinheiro louro que encontrei lançado ao mar pela tripulação amotinada na madrugada. Tanta metafisica meu amor louro para construir sólidas muralhas fechadas até ao infinito. Cruzeiro Seixas
Num Diário de Noticias, 1971 Cruzeiro Seixas Técnica mista s/papel 180X150 N. Inv. 1678
Todo o processo criador deste artista nos conduz a outro processo de comunicação intercorporal no reino da ambiguidade, com o único fluxo e refluxo da paixão. Tal é, neste sentido, a expressão plástica e poética com que nos encontramos na sua homenagem ao corpo como força motriz da natureza. Um processo que nos conduz a esse jogo de mundos contrapostos, mas ao fim ao cabo complementares, que propiciam uma realidade enigmática e por isso diferente, mas que nos aproxima do descobrimento de uma harmonia de sensações oníricas. Algo que não deve confundir-se com o fantástico, pois para Seixas o fantástico é algo que não lhe pertence, nem defende. Um processo que está definitivamente sustentado na imaginação do artista, que é algo muito diferente. A imaginação. (…) E a imaginação, com efeito, é o território da luz e das sombras. (…) Cruzeiro Seixas, a quem consideramos como o maior expoente do surrealismo português – injustamente desconhecido em grande medida fora do seu país – é um arquitecto de imagens que (…) levanta o edifício do seu universo criador sobre os elementos da poesia – a poesia da pintura e do verso -, com um grau de automatismo tal que liberta os conteúdos mais íntimos e autênticos do ser humano. E todo na mais estreita inter-relação entre o espaço corporal e o universo. Poesia plástica, poderíamos acrescentar, que nos proporciona a visão de um mundo em constante metamorfose, não como um espelho stendhaliano da vida, e sim como uma aventura do conhecimento. Uma aventura que nos conduz prazenteiramente a esse universo habitado por seres que convivem amorosamente no caleidoscópio dos impulsos que regem a natureza. (…) A sua obra é a expressão de uma atitude perante a vida. E é essa atitude, tão própria do surrealismo militante, apoiada no triângulo granelliano da liberdade, do amor e da poesia, a chave que nos leva a penetrar no seu planeta tão rico de sugestões e de evocações prodigiosas. Em suma, um universo mais feliz. Daí que a sua poesia pictórica ou literária seja muito mais do que uma metáfora. Paco López-Barxas
Palomas, 1972 Cruzeiro Seixas Técnica mista s/ papel e linho 230X300 N. Inv. 1679
Cruzeiro Seixas, de nome completo, Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas é um homem que pinta e poeta português que nasceu a 3 de Dezembro de 1920 na Amadora. Frequentou a escola António Arroio, onde fez amizade com Mário Cesariny, Marcelino Vespeira, Júlio Pomar e Fernando Azevedo. No início aproximando-se do Neorrealismo mas logo se afastando e aderindo ao Surrealismo, Integrando o Grupo Surrealista de Lisboa. Com Cesariny, António Maria Lisboa, Carlos Calvet, Pedro Oom e Mário-Henrique Leiria. Participa na 1ª Exposição dos Surrealistas, Lisboa, em 1949.
Sou um tipo que faz coisas Cruzeiro Seixas
Um agradecimento ao Galerista José Sacramento
Ficha Técnica: Curadoria: Vieira Duque, Conservador e Membro da Comissão Executiva Edição: Fundação Dioníso Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro Design: Joel Almeida Fotografia de autor: Lauren Maganete Fotografias das obras: Lauren Maganete Textos: Cruzeiro Seixas Paco López-Barxas
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