PRESTANDO CONTA PRESTANDO CONTA é o título com que resolvi batizar essa comunicação que terei nas edições do BODAU com os colegas Associados da SBU. Fundamento-a na visão que tenho de a SBU ser uma “empresa” com mais de 4 mil “acionistas” (Associados) da qual sou o “Presidente do Conselho Administrador”, eleito pela maioria dos votos dos acionistas.
Modesto Jacobino PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE UROLOGIA
Colega Urologista, 1 ACORDO SBU E AUA
J
ovens urologistas brasileiros em Denver com o incansável Fernando Kim, é a materialização do recente Convênio assinado pela SBU e a AUA na nossa Gestão e do Dr. Datta Wagle. Afirmar a você que este acontecimento traduz FELICIDADE para mim, em particular, não é verdade , pois compartilho do entendimento de que “Felicidade é a única qualidade da vida que jamais pode ser encontrada através da busca” visto que “a maior parte das coisas na vida podem ser encontradas se as buscarmos com suficiente persistência e determinação”. Esta última colocação traduz exatamente o que tenho procurado fazer ao longo dos meus 62 anos de existência: mesmo vindo de um casal de camponeses do alto sertão da Paraíba e do Ceará, decidi ser médico; decidi ser urologista, Professor da Faculdade de Medicina da Bahia/UFBA,Presidente da SBU-Bahia e Presidente da Sociedade Brasileira de Urologia. Com “suficiente persistência e determinação” aliada ao apoio dos colegas de Diretoria, atravessei o Atlântico e em Reunião com o Board da AUA em Baltimore traçamos as diretrizes para o recente Convênio SBU/AUA que muito beneficiará jovens urologistas brasileiros ávidos por aprimoramentos científicos e experiência de vida. 2 PTUNews Com a mesma “suficiente persistência e determinação” e trabalho diuturno do Paulo Palma/D´Ancona, de BODAU BOLETIM DA UROLOGIA
10
ABRIL
MAIO
2011
jovens urologistas e dos nossos colegas colaboradores na SBU, um grande objetivo foi alcançado com muita garra : através do PTUNews, a transmissão dos melhores momentos do Congresso Americano de Urologia proporcionando assim a divulgação democrática do conhecimento para milhares de urologistas brasileiros. A igualdade foi alcançada. 3 85 ANOS de SBU A nossa SBU completou 85 anos. 85 invernos se foram e ela encontra-se com a força e o espírito da juventude, vivendo entre o passado e o futuro. Que venham mais 85 anos. Ela está pronta: sua sede totalmente reformada, modernizada e ampliada com novos segmentos os quais visam beneficiar unicamente o urologista. Por ocasião da comemoração da magna data, a atual Gestão homenageou os Profs. Sérgio Aguinaga, Ronaldo Damião e Giacomo Errico. Diante das realidades acima apresentadas, percebi que existe sim em mim uma alternativa maravilhosa: a ALEGRIA. É tanto que comungo exatamente com a seguinte citação: “Alegria não flutua com os altos e baixos da vida. Ela se eleva acima das circunstâncias. Alegria é um estado de íntimo contentamento e bemestar, e suas exuberantes expressões exteriores”. E mais: “ alegria não pode ser fabricada nem convocada; tampouco pode ser exigida, é um cantar interior que não pode ser silenciado por circunstâncias negativas externas”. Acredito firmemente que “ é o subproduto de um relacionamento saudável e
A n o I I I | N º 6 | A g o s t o d e 2 0 1 1 Uma publicação da Fundação Lauro Campos
E d i ç ã o e s p ecial
A opressão também é ambiental por Paulo Piramba Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade de lutas contra a faxina étnica por Iná Meireles Mulheres negras: duplo preconceito, dupla militância e história única por Luciene Lacerda Racismo e antirracismo: uma abordagem revolucionária por Dennis de Oliveira Resgatar memórias radicais afrodescendentes, semear presentes e cultivar futuros de des/colonialidade e liberação por Agustin Lao Montes “Faxina étnica” ou “limpeza racial”: um novo paradigma de controle racial da população negra no Brasil por Fábio Nogueira, Joselício Júnior, Gilberto Batista Campos e Marco André da Silva Palmares: uma repercussão política de quatro séculos na história brasileira por Carlos Nobre A contribuição do PSOL na luta contra o racismo por Ivan Valente e Hamilton Assis Trabalho, educação e racismo: na luta por igualdade, combater as discriminações! por Paulo Sérgio da Silva Movimento negro e luta de classes no Brasil por Mário Makaíba
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Negra
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NegRa Ano III | Nº 6 | Agosto de 2011
Uma publicação da Fundação Lauro Campos
EdIção EspECIAL
Sumário
Agosto de 2011
Canto dos Palmares. Solano Trindade
4
Apresentação por Fábio Nogueira e Luiz Arnaldo Campos
6
Abdias do Nascimento, O artista da Revista Negra
8
Paulo Piramba por Luciene Lacerda
12
A opressão também é ambiental por Paulo Piramba
13
Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade de lutas contra a faxina étnica por Iná Meireles
15
Mulheres negras: duplo preconceito, dupla militância e história única por Luciene Lacerda
19
Racismo e antirracismo: uma abordagem revolucionária por Dennis de Oliveira
22
Resgatar memórias radicais afrodescendentes, semear presentes e cultivar futuros de des/colonialidade e liberação por Agustin Lao Montes
27
“Faxina étnica” ou “limpeza racial”: um novo paradigma de controle racial da população negra no Brasil por Fábio Nogueira, Joselício Júnior, Gilberto Batista Campos e Marco André da Silva
31
Palmares: uma repercussão política de quatro séculos na história brasileira por Carlos Nobre
35
A contribuição do PSOL na luta contra o racismo por Ivan Valente e Hamilton Assis
42
Trabalho, educação e racismo: na luta por igualdade, combater as discriminações! Por Paulo Sérgio da Silva
43
Movimento negro e luta de classes no Brasil por Mário Makaíba
44
Olorum ÈKÈ. Solano Trindade
48
3
Canto dos Palmares solaNo tRiNdade
Eu canto aos Palmares sem inveja de Virgílio de Homero e de Camões porque o meu canto é o grito de uma raça em plena luta pela liberdade! Há batidos fortes de bombos e atabaques em pleno sol Há gemidos nas palmeiras soprados pelos ventos Há gritos nas selvas invadidas pelos fugitivos... Eu canto aos Palmares odiando opressores de todos os povos de todas as raças de mão fechada contra todas as tiranias! Fecham minha boca Mas deixam abertos os meus olhos Maltratam meu corpo Minha consciência se purifica Eu fujo das mãos Do maldito senhor! Meu poema libertador é cantado por todos, até pelo rio. Meus irmãos que morreram muitos filhos deixaram e todos sabem plantar e manejar arcos; muitas amadas morreram mas muitas ficaram vivas, dispostas para amar seus ventres crescem e nascem novos seres.
4
O opressor convoca novas forças vem de novo ao meu acampamento... Nova luta. As palmeiras ficam cheias de flechas, os rios cheios de sangue, matam meus irmãos, matam as minhas amadas, devastam os meus campos, roubam as nossas reservas; tudo iso, para salvar a civilização e a fé... Nosso sono é tranquilo mas o opressor não dorme, seu sadismo se multiplica, o escravismo é o seu sonho os inconscientes entram para seu exército... Nossas plantações estão floridas, nossas crianças brincam à luz da lua, nossos homens batem tambores, canções pacificas, e as mulheres dançam essa música... O opressor se dirige a nossos campos, seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida, confabula com ricos e senhores, e marcham mais forte, para meu acampamento! Mas eu os faço correr... Ainda sou poeta meu poema levanta os meus irmãos. Minhas amadas se preparam para a luta, os tambores não são mais pacíficos, até as palmeiras tem amor à liberdade... Os civilizados têm armas, e têm dinheiro, mas eu os faço correr... Meu poema é para os meus irmãos mortos. Minhas amadas cantam comigo, enquanto os homens vigiam a Terra. O tempo passa seu número e calendário, o opressor volta com outros inconscientes, com armas e dinheiros, mas eu os faço correr... O meu poema libertador é cantado por todos, até pelas crianças e pelo rio.
Ano III • Número 6
Meu poema é simples, como a própria vida, nascem flores nas covas de meus mortos e as mulheres se enfeitam com elas e fazem perfume com sua essência...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas a grandeza da civilização - a Liberdade Minhas amadas cantam comigo, meus irmãos batem com as mãos, acompanhando o ritmo da minha voz...
Meus canaviais ficam bonitos, meus irmãos fazem mel, minhas amadas fazem doce, e as crianças lambuzam os seus rostos e seus vestidos feitos de tecidos de algodão tirados dos algodoais que nós plantamos.
- É preciso salvar a fé, Diz o tratante opressor...
Não queremos o ouro porque temos a vida! e o tempo passa, sem número e calendário... O opressor quer o corpo liberto, mente ao mundo, e parte para prender-me novamente... - É preciso salvar a civilização. Diz o sádico opressor...
Eu sou o poeta e canto nas matas a grandeza da fé - a Liberdade Minhas amadas cantam comigo, meus irmãos batem com as mãos, acompanhando o ritmo da minha voz!... Saravá! Saravá! Repete-se o canto do livramento, já ninguém segura os meus braços... Agora sou poeta, meus irmãos vêm ter comigo, eu trabalho, eu planto, eu construo, meus irmãos vêm ter comigo...
Minhas amadas me cercam, sinto o cheiro do seu corpo, e cantos místicos sublimam meu espírito! Minhas amadas dançam, despertando o desejo em meus irmãos, somos todos libertos, podemos amar! Entre as palmeiras nascem os frutos do amor dos meus irmãos, nos alimentamos de fruto da terra, nenhum homem explora outro homem... E agora ouvimos um grito de guerra, ao longe divisamos as tochas acesas, é a civilização sanguinária, que se aproxima. Mas não mataram meu poema. Mais forte que todas as forças é a Liberdade... O opressor não pôde fechar minha boca, nem maltratar meu corpo, meu poema é cantado através dos séculos, minha musa esclarece as consciências, Zumbi foi redimido...
(Solano Trindade, Poeta do Povo, São Paulo: Ediouro, 2008, p. 37-39)
Agosto de 2011
5
aPReseNtaÇÃo Por Fábio Nogueira e Luiz Arnaldo Campos
Durante quase quatrocentos anos, entre o fim do século XV e o fim do século XIX, aproximadamente 12,4 milhões de africanos escravizados foram embarcados nos navios negreiros com destino aos portos da América. Este processo que o intelectual e ativista afroamericano W. E. B. Dubois chamou de “o mais grandioso drama dos últimos mil anos da história da humanidade” foi, como bem lembrou o historiador Marcus Rediker, uma tragédia que transformou profundamente a história de nosso continente. Dos nove milhões que se calcula terem sobrevivido à pavorosa travessia do Atlântico, a maior parte foi desembarcada nas costas brasileiras, transformando nosso país no principal depositário da diáspora africana. No Brasil esta imensa legião de trabalhadores forçados seria o principal motor do colonialismo mercantilista e dos albores do capitalismo em nossa terra. Foi sobre a exploração desenfreada de milhões de corpos, mentes e corações negros e indígenas que o capitalismo irrompeu e se tornou o modo de produção dominante do novo mundo e esta constatação, por si mesma é suficiente para se perceber que a questão negra assume para os lutadores sociais americanos um papel estratégico e que não é possível pensar uma revolução anticapitalista no continente americano, em particular no nosso país, sem se enfrentar o terrível legado da escravidão que atende pelo nome de racismo. Como ressalta o
6
sociólogo peruano Aníbal Quijano, nas Américas, a divisão social do trabalho, com a escravização, combinou-se com uma rígida hierarquia baseada no fenótipo, na cor e na inferiorização da cultura dos povos não europeus, derivando uma prática social onde o pertencimento a determinado grupo racial propiciava o acesso ou não a direitos e privilégios assim como a posse de bens materiais e a possibilidade de ascensão na escala social. Desnecessário dizer que esta construção ideológica penetrou profundamente no inconsciente dos dominados que muitas vezes assumiram para si as crenças e valores impostos pelos dominantes. No entanto, apesar da repressão brutal e das muralhas ideológicas, a resistência negra e indígena ao mundo colonial e
racista ocorreu em diversas frentes desde os embates diários do cotidiano, passando pela cultura, a religião, a preservação transformada de tradições milenares até chegar à luta aberta de massas como as rebeliões de Nat Turner no sul escravagista dos Estados Unidos, as guerras cimarrones do Planalto das Guianas, a Revolta dos Malês, a Cabanagem Negra, Palmares e uma infinidade de quilombos no Brasil, que tiveram como ponto maior a Revolução Haitiana, a única rebelião de escravos bem sucedida da história. Estas sagas libertadoras foram fonte de inspiração de lutas independentistas, nacionalistas, socialistas e libertárias de Nuestra América e se fizeram presentes na prática de líderes e movimentos como Zapata, Martí, Bolívar, a Revolução Sandinista, Frei Caneca, a Revolta dos Alfaiates e muitas outras (no Brasil, uma das organizações de combate à ditadura militar chamava-se VAR-Palmares) que reconheceram explicitamente a dívida de gratidão para com os combatentes negros. Apesar disto por muito tempo o racismo foi considerado pela versão dominante do marxismo em nosso continente como uma contradição secundária do sistema capitalista que seria abolida automaticamente com a supressão da exploração e, portanto, a luta antirracista seria igualmente uma luta secundária. Evidentemente não faltou no curso
Ano III • Número 6
da história, pensadores que desafiaram a incompreensão e o reformismo e que através dos seus escritos e prática articularam a luta antirracista como um componente primordial da luta contra o capital. Entre outros podemos citar José Carlos Mariátegui e os primeiros intelectuais do Partido Socialista Peruano, C. R. L. James e G. Padmore no Caribe anglófono, Frantz Fanon, na Martinica, Ângela Davis, nos Estados Unidos, Walter Rodney na Guiana, Waltério Carbonell, em Cuba, Decio Freitas, Vicente Salles e Clóvis Moura, no Brasil. Que estes autores sejam pouco conhecidos e alguns deles sejam considerados “marginais” no interior da esquerda não causa surpresa. Foram considerados “heterodoxos”, tanto por aqueles que seguiam as normativas dos PC como por seus opositores e dissidentes justamente por colocarem no centro de suas análises marxistas o estudo do racismo, da resistência afroindígena e das culturas dos descendentes dos africanos
Agosto de 2011
e indígenas na América. Esta revista é uma forma de homenageá-los. Foi exatamente a partir destes pensadores e principalmente da força política que nos últimos anos os movimentos dos povos originais e afrodescendentes foram conquistando na América Latina e Caribe, que foi se formando no continente americano, inclusive no Brasil, correntes de opinião que buscam resgatar o significado transcendental da luta antirracista para todos aqueles que se dedicam à realização da utopia socialista. Esta publicação – a Revista Negra do PSOL – faz parte deste esforço. Em seu conjunto esta coletânea de artigos persegue alguns objetivos. Em primeiro lugar, demonstrar a transversalidade do racismo na ordem capitalista e as múltiplas formas que se manifesta seja no trabalho, nas relações de gênero, nas políticas públicas ou nas concepções sobre a relação entre a humanidade e a natureza. Buscamos também o resgate
das lutas negras do Brasil, notadamente o Quilombo dos Palmares, primeiro estado soberano a se formar no interior do Brasil, e acima de tudo almejamos contribuir para a elaboração de estratégias de luta que compreendam que não é possível lutar contra a exploração capitalista sem acertar contas com todos os alicerces coloniais, racistas e sexistas sobre os quais se sustenta a nossa sociedade. Contribuir para este debate é a razão de ser desta Revista Negra do PSOL
.
Fábio Nogueira Doutorando em Sociologia na USP e professor assistente do Instituto Multidisciplinar de Saúde da UFBA. Coordenador Nacional do Círculo Palmarino e militante do PSOL/BA. Lu i z A r na ldo Ca mpos D i retor Té c n ic o da Fundação Lauro Campos, membro do Comitê de Articulação do Fórum Social PanAmazônico, Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense.
7
Acervo Abdias Nascimento
Abdias do Nascimento
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Ano III • Número 6
O artista da Revista Negra O filósofo francês Jean Paul Sartre, no auge de sua fama, em visita ao Rio de Janeiro, estranhara a ausência de negros nas conferências que pronunciava e nas recepções que lhe davam acolhida. Aproveitando o mote, numa crônica intitulada “O único negro do Brasil”, que publicou no jornal O Globo de 11 de março de 1968, Nelson Rodrigues provocou: “Gilberto Freire afirma que somos uma democracia racial. Mas está de pé a pergunta de Sartre: ‘E os negros? Onde estão os negros?’ Realmente, ninguém é negro, a não ser o Abdias do Nascimento. ” Pioneiro da causa negra na “democracia
Em 1944, funda o Teatro Experimental
de Leonel Brizola. Formado em economia
racial” brasileira, Abdias do Nascimento
do Negro, entidade que patrocina a
e diplomado pelo ISEB (Instituto Superior
viveu 97 profícuos anos. Nascido em
Convenção Nacional do Negro em 1945-
de Estudos Brasileiros), em seu extenso
Franca, São Paulo, em 14 de março de
46. A Convenção propõe à Constituinte
currículo ostenta os títulos de doutor ho-
1914, Abdias foi o segundo filho de Dona
de 1946 a inclusão de políticas públicas
noris causa da Universidade de Brasília e
Josina, doceira, e de Seu Bem-Bem,
para a população afro-descendente e
de professor benemérito da Universidade
músico e sapateiro. Poeta, pintor, escultor,
um dispositivo constitucional definindo a
do Estado de Nova Iorque (EUA).
ator, escritor, político e, sobretudo, ativista
discriminação racial como crime de lesa-
Abdias do Nascimento, falecido no Rio de
do movimento negro, foi casado quatro
pátria. Foi ainda um dos organizadores do
Janeiro em 24 de maio deste ano, é um
vezes. Com a atriz Léa Garcia , sua terceira
1º Congresso do Negro Brasileiro, em 1950.
dos maiores símbolos da luta negra em
esposa, teve dois filhos; e teve um filho
No período da ditadura militar, foi forçado
todo o continente.
com sua última esposa, a norte-americana
ao exílio. Depois, foi deputado federal,
Elizabeth Larkin.
senador e secretário de estado do governo
Agosto de 2011
9
Abdias Nascimento, Padê de Exu. Acrílico sobre tela, 100 x 150 cm. Rio de Janeiro, 1988
Abdias Nascimento, Oxunmaré Ascende (Buffalo, 1971). Acrílico sobre tela, 102 x 152 cm.
Foto de Lula Rodrigues
Abdias Nascimento, Ideograma Adinkra (Rio de Janeiro, 1992). Acrílico sobre tela, 100 x 150 cm.
Abdias Nascimento, Tema para Léa Garcia: Oxunmaré. Acrílico sobre tela, 102 x 152 cm. Buffalo, NY, EUA, 1971.
Reprodução gráfica de Luiz Carlos Gá
Abdias Nascimento, Exu Dambalah. Acrílico sobre tela, 102 x 51 cm. Buffalo, 1973.
Abdias Nascimento, Okê Oxossi (Buffalo, 1970). Acrílico sobre tela, 61 x 91 cm.
Foto de Lula Rodrigues
Fotografia de Cris Isidoro
Abdias Nascimento, Oxunmaré Ascende. Acrílico sobre tela, 102 x 152 cm. Buffalo, 1971.
Abdias Nascimento, O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade (Buffalo, 1971). Acrílico sobre tela, 102 x 152.
Foto de Lula Rodrigues
Abdias Nascimento, Estandarte (Rio de Janeiro, 1988). Acrílico sobre tela, 60 x 100 cm.
Reprodução gráfica de Luiz Carlos Gá
Abdias Nascimento, Efraín Bocabalístico: Oxossi-XangôOgum. Acrílico sobre tela, 153 x 102 cm. Nova Iorque, 1969.
Foto de Lula Rodrigues
Reprodução gráfica de Luiz Carlos Gá
As obras que ilustram esta revista são de Abdias Nascimento.
Abdias Nascimento, Composição n. 2 (Buffalo, 1971). Acrílico sobre tela, 152 x 102 cm.
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Abdias Nascimento, Riverside 1 (Nova Iorque, 1968). Óleo e acrílico sobre cartão, 53 x 43 cm.
Abdias Nascimento, Xangô n. 2. Acrílico sobre tela, 51 x 102. Buffalo, EUA, 1978.
Ano III • Número 6
Agosto de 2011
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ecossocialista
Paulo Piramba
(1954-2011)
“Eu estarei com qualquer um, não importa a sua cor, desde que você queira mudar a condição miserável que existe nessa terra” Malcolm X (1925 – 1965) por Luciene Lacerda
repousavam seu tamborim – que não largava, camisa da IV, do Salgueiro, faixa do Cacique de Ramos, bandeira
Sim, este ecossocia lista cha ma-
do Flamengo e do PSOL.
do Paulo Piramba, nascido Paulo Roberto Ribeiro Guimarães, de 56
Neste dia, o Flamengo empatou
anos, seria um dos parceiros de Biko,
com o Ceará de seu amigo Alexandre.
com certeza. Sua parceria com os
Estariam, com certeza, trocando
diversos movimentos sociais não
impressões, gozações e catucadas
era silenciosa. Suas defesas intran-
pelo twiter, instrumento que ele
sigentes contra o sexismo, o racismo,
adorava. Mas eis que ontem o
a homofobia tinham a importância
Flamengo deu a volta por cima
que dava ao seu carro chefe, o ecos-
e mostrou um belo, corajoso e
socialismo, até porque estava tudo
tenaz futebol em sua homenagem. 5X4 no Santos!
imbricado nas mesmas lógicas capi-
Foi-se meu querido companheiro, amigo,
talistas. Neste número escreve sobre
amante. Ficam seus escritos sobre o ecosso-
o Racismo Ambiental.
cialismo, sobre uma outra sociedade, sempre
O apelido Paulo Piramba nasceu
explicitado com humor ácido e sincero.
na PUC, quando era estudante de Engenharia, membro do DCE e um dos arti-
Como disse seu ecoamigo João Alfredo
culadores do grupo de teatro. Foi imitando
para o comunicado do PSOL: “honrar sua
em um esquete o James Brown que o apelido
trajetória e memória é empunhar, ainda com
apareceu (“piramba, piroou, piramba...”). Se
mais vigor, as bandeiras que eram de Piramba
formou na área de Informática, sendo depois
e que são do Partido Socialismo e Liberdade:
webdesigner.
o Ecossocialismo, o feminismo, a defesa da diversidade étnica, cultural, racial e de orien-
Piramba era militante da corrente política
tação sexual”.
Enlace, onde era dirigente nacional. Integrante do setorial Ecossocialista, formalizado no I
ele dizia, rubro-negro. Também torcedor do
Encontro Nacional em Curitiba, nos dias 1, 2 e
Boca Juniors e do Barcelona.
3 de abril de 2011, que ajudou a organizar. Membro do Instituto Búzios, militava na Rede Ecossocialista, brasileira e internacional,
Ele se foi como se portou na vida: militando no que acreditava. Eu, Luciene, sou/era sua
Ele amava Fortaleza e seus amigos da terra
companheira há oito anos, desde junho de
das Dunas Brancas. Como ele dizia, era um
2003. Ele deixa um filho de afeto e de orgulho
carioense ou cearioca.
militante, Miguel (29 anos) – seu filho/enteado;
e era um dos representantes da nossa entidade
Ele nos deixou no sábado. Morreu de enfar-
e Luan, meu filho e seu enteado (16 anos). Além
na organização da conferência paralela dos
to do miocardio, tendo sido levado ao Hospital
de amig@s, “guerrilheiros” do twitter – como
movimentos sociais para a Rio + 20. Criou o
Souza Aguiar, mas já chegou lá com parada
ele chamava-, camaradas...
blog Ecossocialismo ou Barbárie, onde publi-
cardíaca. A reanimação foi feita, sem sucesso.
Era isso e mais um pouco deste homem bri-
Nos despedimos dele no domingo, no
lhante, instigante e amável: PAULO PIRAMBA,
Criativo e de humor caústico, dizia que
Rio de Janeiro, cidade que ele amava, com
o meu maior amigo e companheiro. Meu que-
perdia o a migo, mas não perdia a piada.
trechos da nação Iorubá, e a seguir ao som
rido amor e camarada.
Piramba era flamenguista, ou melhor, como
da Internacional socialista. Em seu caixão
cava seus escritos.
12
Paulo Piramba presente!
Ano III • Número 6
Racismo ambieNtal
A opressão também é ambiental Anotações sobre o racismo ambiental Por paulo piramba
negros. Ou pela precarização sócio ambiental dos locais de moradia
Na sociedade brasileira, pro-
ocupados por negros.
fundamente desigual, era de
Mais recentemente, em 2005,
se esperar que, assim como em
esta forma de racismo ficou eviden-
outros aspectos e contradições,
te no caso do furacão Katrina, seja
a precarização socioambiental
pelo local onde morava a população
atingisse de forma diferenciada
negra, seja pelo tipo de medidas de
os diferentes. De fato, basta um
evacuação diferenciadas, ou ainda
olhar mais atento à forma como
pela ação e omissão do governo Bush
os vários extratos sociais, que
em relação às vítimas da catástrofe
compõem a população do Brasil,
ambiental, em sua maioria, negros.
são afetados pela degradação
No Brasil, têm sido vítimas de
ambiental, para que fique claro
racismo ambiental não somente os
que a discriminação e o pre-
povos indígenas, os remanescentes
conceito também têm um corte
de quilombos, as populações tra-
ambiental.
dicionais – caiçaras, ribeirinhos,
Na discussão sobre Justiça
caipiras e atingidos por barragens –,
Ambiental, em um determina-
mas também as populações negras,
do momento, houve a neces-
nordestinas e pobres das grandes
sidade de, a partir de várias
cidades.
lutas e conflitos, identificá-los
A antiga Aracruz, atual Fibria,
como ma nifestações do que
d e p oi s d e u m a f u s ã o c om a
chamamos Racismo Ambiental.
Votorantim Celulose e Papel, entrou
Percebeu-se que algumas con-
em conflito com povos indígenas
tradições e injustiças sociais e
(tupiniquins e guaranis) e quilom-
ambientais atingiam etnias e
bolas no Espírito Santo, tentando
populações vulneráveis, mesmo
desalojá-los de suas terras. Além
que a intenção racista não fosse
disso, ao poluir as águas e o ar
explícita, como costuma aconte-
devido às dioxinas, subprodutos
cer também em relação a outras
da produção de celulose, a empresa
formas de racismo.
atingiu duplamente estas etnias e
A partir daí, passou-se a con-
populações.
siderar Racismo Ambiental, po-
Nas grandes cidades, as popula-
líticas e práticas que atingissem
ções mais pobres têm sido afastadas
ou trouxessem prejuízo a pessoas
dos lugares onde sempre moraram,
ou comunidades, motivadas por
onde desenvolveram suas culturas e
raça ou cor. Nos EUA, o Racismo
onde estão suas raízes, e realocadas
Ambiental começou a ser perce-
em locais precarizados social e am-
bido a partir de políticas públi-
bientalmente. Essa rearrumação do
cas ligadas ao meio ambiente,
espaço urbano sempre se deu por
diferenciadas para brancos e
conta da especulação imobiliária,
Agosto de 2011
13
Racismo ambieNtal e da necessidade do capitalismo criar novos
ribeirinhos e indígenas, até o crescimento in-
fora da natureza para poder submetê-la e sub-
mercados que reproduzam o lucro.
controlável da população de Altamira, o que
jugá-la, estes povos tradicionais são e estão na
ocasionará, depois da obra, o desemprego, a
natureza. Dela extraem seu sustento, e nela se
favelização e o aumento da violência.
encontram sua cultura e sua religião. O respeito
Mais recentemente, a pretexto de preparar as cidades para megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, estamos assistindo a
O discurso das autoridades, das empresas
à natureza não precisa ser ensinado em cursos
uma limpeza das chamadas áreas nobres das ci-
que compõem o consórcio que vai construir
de educação ambiental. Este respeito é o próprio
dades, com o “exílio”
Belo Monte, e daque-
respeito que eles têm consigo mesmos e com
das populações mais
las que vão se benefi-
seus semelhantes.
pobres para locais
“No Brasil, têm sido vítimas de
ciar de sua energia, é
Este modelo que não vê a natureza como
cada vez mais dis-
racismo ambiental não somente os
de que se trata do ônus
um supermercado onde recursos naturais,
tantes dos seus locais
povos indígenas, os remanescentes de
que se deve pagar pelo
pessoas e outras espécies são tratadas como
de trabalho, e onde,
quilombos, as populações tradicionais –
progresso. E os povos
commodities, mas que se coloca como parte de
além de não conta-
caiçaras, ribeirinhos, caipiras e atingidos
indígenas e as popu-
um todo, não se coaduna com as necessidades
rem com os mais bá-
por barragens –, mas também as
lações ribeirinhas, os
do capitalismo. Por isso ele tem que ser extermi-
sicos equipamentos
populações negras, nordestinas e pobres
ma is prejudicados,
nado, ridicularizado, aculturado ou, na melhor
sociais, ficam expos-
das grandes cidades.”
são t ratados como
das hipóteses, confinado onde não atrapalhe a
tas à v iolência das
entraves ao desenvol-
marcha inexorável do progresso.
milícias e do tráfico.
vimento.
Quando no Rio de Janeiro, com o pretexto
Essas populações deslocadas e afetadas
Sabemos que os ônus do desenvolvimentismo
de construir linhas expressas de ônibus para
profundamente em relação à vida que sempre
não atingem a todos da mesma forma. E, também,
os megaeventos que virão, a Prefeitura escolhe
tiveram, e da relação que construíram com as
que os bônus são apropriados por poucos. O dis-
um percurso que desaloja templos das religiões
cidades, têm raça e cor diferenciadas daquelas
curso de que esta energia é para que o Brasil não
de matriz africana no subúrbio, o discurso é
das elites que as expulsaram. São populações
pare, esbarra no alto custo das linhas de trans-
o mesmo. Estes templos de religiões que têm
negras forçadas a ocupar encostas perigosas, já
missão que precisariam ser construídas para que
uma relação íntima com a natureza, também
que não existe nenhuma política habitacional
a energia saísse da Amazônia. Da mesma forma,
são entraves ao progresso, e por isso devem ser
oferecida pelos governantes. E depois são cul-
o aceno de geração de empregos que beneficia-
desapropriados.
pabilizadas por esta ocupação.
riam os ribeirinhos é uma cortina de fumaça que
Assim, o Racismo Ambiental cumpre um
encobre o desequilíbrio insustentável causado
duplo papel dentro do capitalismo. Por um lado,
São, também, nordestinos forçados a morar em aglomerados ironicamente chamados de jar-
pelo aumento popu-
dins, à beira dos cursos d’água, áreas de várzea
lacional que sempre
ou pântanos, expostos às doenças provocadas
acontece em projetos
pelas frequentes inundações destas áreas.
desta natureza.
Inundações que tendem a estar cada vez mais
Mas a principal
presentes na vida dos moradores das grandes
ma n i festação de
cidades, por conta das mudanças climáticas.
Racismo Ambiental
o papel tradicional do racismo de, a partir das
“Os povos indígenas do Xingu e os
diferenças, construir
ribeirinhos construíram através dos séculos um outro modelo, firmemente baseado na comunhão com a natureza e com os recursos naturais. Ao contrário do modelo capitalista, que se coloca fora
relações de poder entre classes, raças, povos e etnias. Por outro lado, afirmar a superioridade de um modelo
A tentativa do Governo Federal em cons-
presente neste caso
truir a hidrelétrica de Belo Monte na Floresta
é a afirmação da su-
Amazônica é exemplar como caso de racismo
perioridade de um
ambiental. O projeto prevê a construção da
modelo de civiliza-
usina no rio Xingu e remonta ao período da di-
ção sobre outro. Da
tadura militar. Como a vazão do rio no período
afirmação dacivilização capitalista, que não
coisas e espécies pelos que elas são e não pelo
sem chuvas diminui muito, a geração de energia
mede custos para se manter viva. Desta civiliza-
que podem custar. Um modelo que estabelece
– que vai beneficiar principalmente os empreen-
ção que repousa em bases insustentáveis, de um
uma relação harmoniosa entre as pessoas e delas
dimentos de mineração da região – será muito
progresso e de um desenvolvimento ilimitados.
com a natureza
inferior à prevista pelo projeto.
da natureza para poder submetê-la e subjugá-la, estes povos tradicionais são e estão na natureza.”
civilizatório, mesmo que ele esteja em colapso, e negar outro que valoriza pessoas,
.
Os povos indígenas do Xingu e os ribeiri-
Os impactos sócio ambientais vão desde
nhos construíram através dos séculos um outro
Paulo Piramba, 56 a nos, foi membro da
a diminuição da vazão do rio, a inundação
modelo, firmemente baseado na comunhão
Coordenação Nacional do Setorial Ecosso-
permanente de alguns igarapés, a interrupção
com a natureza e com os recursos naturais. Ao
cialista do PSOL e da Rede Ecossocialista
do transporte hidroviário, única opção dos
contrário do modelo capitalista, que se coloca
Internacional.
14
Ano III • Número 6
saúde úde
Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade de lutas contra a faxina étnica “Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.” Boaventura de Souza Santos
Por Iná Meireles
longínquas da África, bem como da violência do colonizador europeu branco
Introdução
que dominou o país.
O Brasil é um país multiétnico e mul-
O impacto deste processo sobre a saúde
ticultural. Esta diversidade, entretanto,
de nosso povo está ainda por ser conheci-
não se reflete nas políticas de educação,
do. Buscar pistas teórico-metodológicas
saúde, mídia etc.
para interpretar a complexa questão da
As diversas formas de pensar, de sentir,
identidade das populações afrodescen-
de viver e de morrer de nossas populações
dentes e seus reflexos sobre a saúde no
não são levadas em conta por nossas elites,
Brasil é um desafio da atualidade.
a visão hegemônica é de uma sociedade branca e europeizada.
saúde da população negra
A escravidão africana no Brasil foi feita
O debate sobre a questão racial no Brasil
do sequestro de homens e mulheres de
tem se acirrado nos últimos anos, e envolve
suas terras, culturas e origens. Depois da
os meios acadêmicos e a mídia. No campo
abolição, adotou-se a visão da sociedade
da Saúde Pública esta discussão também
como preponderantemente branca e de
move corações e mentes, e, mesmo obede-
cultura europeia. Isto trouxe como con-
cendo à “etiqueta” e à linguagem formal da
seqüência o “embranquecimento” como
academia, está longe de ser um debate frio
projeto nacional, executado através de
e desprovido de paixão.
políticas de povoamento e imigração (HASENBALG, 1992).
Na medida em que as posições se referem não apenas a ideias, mas também a
O país não desenvolveu política espe-
intervenções por parte dos governos e de
cífica de integração dos negros recém-
movimentos sociais, as conotações políti-
libertos à sociedade envolvente, o que
ca e ideológica se acentuam e o consenso
fortaleceu as bases das desigualdades
está longe de ser alcançado.
sociais entre brancos e negros que perduram até hoje.
Alguns intelectuais advertem, preocupados, que está sendo criado um campo
O Brasil é um país de todas as cores e
de reflexão e intervenção política com
sabores. Mas esta mestiçagem não é fruto
este tema, o que pode levar à “racializa-
da integração entre os diversos povos que
ção” nas relações sociais.
construíram o país. É decorrente, sim,
Por sua vez, intelectuais comprome-
do estupro das mulheres aborígenes e
tidos com o movimento negro e com a
das escravas africanas vindas de terras
luta antirracista no Brasil vêm adotando
Agosto de 2011
15
saúde posição que considera que a (re)construção de
racistas). Segundo ele, “quase ninguém quer
mesmo tempo em que desenvolvem suas sistematizações e
“raça” como uma categoria serve como uma
políticas especiais para os negros” (p. 187). Ele
análises, exercem pressões políticas sobre as escolas de saúde
base conceitual-analítica que permite articular
cita o surgimento de um número crescente de
e o governo brasileiro (2003, p. 23).
lutas por políticas públicas compensatórias.
“negrófilos”, que contribuem para a construção
A inda que destaquem que raça não é um
de uma imagem do negro como tendo “uma
E constata: “No âmbito dos governos, há
conceito biológico, e que carece de definições
natureza diferente, mais genuína, natural,
conquistas, todavia elas ainda não fazem
precisas ou de consistência científica, demons-
sensual, associada ao corpo” (p. 185). Haveria
parte do cotidiano da população negra em
tram que ela tem sido usada na produção de
“negrófilos” cultos (antropólogos, artistas, in-
forma de assistência à saúde” (2003, p. 23,
desigualdades no Brasil e no mundo. E afirmam
telectuais) e vulgares (mercadores de mulatas,
grifo nosso).
que o conceito político que serviu para a domi-
turistas em busca dos corpos negros etc. ).
É preciso lembrar, ainda, que após a década
nação e inferiorização de diferentes grupos hu-
O que surpreende nesta polêmica é que as
de 1980 os movimentos sociais e partidos de
manos pelos homens brancos ocidentais deve
muitas evidências de que as desigualdades –
esquerda, no Brasil, passam a contar com
provocadas pelo racismo e/ou pelas diferenças
segmentos organizados em torno da questão
socioeconômicas e culturais – têm provocado
racial, rompendo com a tradição da esquerda
desvantagens materiais e simbólicas com re-
marxista. A discussão da “reforma sanitária”
percussões na saúde de parte significativa da
empreendida no país nos anos 1980/1990 não
população brasileira, acabam sendo também
priorizou políticas focais.
contestadas em nome das dificuldades de ela-
O fato é que no Governo de Ferna ndo
boração de conceitos que identifiquem “cien-
Henrique Cardoso (1994-2002) o Brasil passa a
tificamente” esta população.
adotar políticas públicas baseadas no reconhe-
Para Guimarães (2002, p. 50)
cimento da existência de racismo na sociedade e nas instituições nacionais. Em 20 de novem-
‘raça’ não é apenas uma categoria política necessária para
bro de 1995 (300 Anos de Zumbi de Palmares)
organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é também
é criado o Grupo de Trabalho Interministerial
uma categoria analítica indispensável: a única que revela que as
para a Valorização e Promoção da População
discriminações e desigualdades que a noção brasileira de ‘cor’
Negra, através de decreto presidencial, e em
enseja são efetivamente raciais e não apenas de ‘classe’.
1996 se realiza, em Brasília, a “Mesa Redonda sobre a Saúde da População Negra”.
A intenção de construir uma política espe-
Desde esta época, ativistas, cientistas e
cífica na saúde para a população negra ganha
técnicos do Ministério da Saúde têm buscado
expressão nos anos 90 do século passado,
a formulação de políticas específicas na área
ser considerado uma ferramenta importante
principalmente através dos movimentos de
da saúde. O movimento passa a destacar a
na elaboração de soluções para as desigual-
mulheres negras, que denunciavam a precarie-
centralidade que o problema específico do
dades produzidas pelo racismo (WERNECK;
dade com que estas mulheres eram atendidas
racismo – e não apenas das desigualdades de
DOCACH, 2004, p. 9).
nos serviços de saúde, o alto índice de óbito
condições de vida – adquire na produção de
Assim, aqueles que têm sido vítimas de his-
materno, o baixo o número de consultas pré-
agravos à saúde.
tórica exploração e opressão, primeiro através
natal, o raro uso de anestesia durante o parto
Procura-se, inicialmente, dar destaque às
do regime escravista, depois pela exclusão
ou abortamento, o desenvolvimento de hiper-
doenças genéticas, como a anemia falciforme e
socioeconômica no capitalismo e do racismo,
tensão durante a gestação, entre outras.
a deficiência da glicose-6-fosfato-desidrogenase,
hoje são vistos com desconfiança, como pos-
Oliveira (2003) considera que há um campo
que atingem em maior número a população preta
síveis agentes de racismo ao se reivindicarem
de estudos, de pesquisas e de assistência
e parda, mas somente o Programa de Anemia
“negros”, portadores de direitos e com intenção
em construção, citando o documento “Nós,
Falciforme foi considerado prioridade em saúde
de buscarem reparação.
mulheres negras” (2001) que relata que esta
pública, e mesmo assim não obteve recursos do
construção vinha sendo
Ministério e, naquela época, só foi implementa-
Sansone (1996) diz que no Brasil (ou pelo
do em alguns estados e municípios.
menos em Salvador, Bahia) as relações raciais são consideradas “dionisíacas” pelos próprios
realizada a muitas mãos oriundas de diferentes setores: um
Ainda em 1997 o Ministério da Saúde define
sujeitos envolvidos, e somente o movimento
número reduzido de pesquisadores(as) e ativistas anti-racistas
uma “Política de Saúde para a População Negra”.
negro acredita que no país as relações raciais
que se apropriaram de saberes dispersos produzidos nos
É desta época também a inclusão do quesito
são “apolíneas” (polarizadas, conf lituosas,
espaços acadêmicos de diferentes partes do mundo e que, ao
raça/cor nos formulários da Declaração de
16
Ano III • Número 6
saúde Nascidos Vivos e da Declaração de Óbitos, que
Nacional de DST/AIDS e Ministério da Saúde,
A participação dos adeptos de religiões
havia sido retirado, durante a ditadura militar,
que envolve jovens “cotistas” na prevenção de
afrobrasileiras de matriz africana
dos documentos no Brasil, com a justificativa
DST/AIDS. Em março de 2006 é publicado por
O movimento negro e as religiões de ma-
que não havia discriminação racial no país.
estes órgãos o texto Programa Estratégico de
trizes africanas têm histórias diferentes e,
Estas questões ga n ha m ma is v isibi l i-
Ações Afirmativas: População Negra e AIDS
enquanto os movimentos negros se unificam
dade a partir da realização, em 2001, da 3a
(2006, p. 3) cuja introdução inicia-se com o
através da cor, para as religiões isto não se
Con ferência Mu nd ia l cont ra o Racismo,
seguinte parágrafo:
coloca. A noção de axé existente na cosmogo-
Discriminação Racial, Xenofobia e Formas
nia do candomblé não impulsiona a luta por
Correlatas de Intolerância, em Durban, África
O Ministério da Saúde atua em diferentes frentes para assegurar
direitos iguais para todos, e a forma de orga-
do Sul. As denúncias de racismo e das desigual-
que as políticas públicas no setor saúde estejam em consonância
nização dos terreiros não condiciona o acesso
dades raciais adquirem grande repercussão
com as diretrizes de combate à discriminação racial, étnica,
ao candomblé à cor da pele (HOFBAUER, A. ,
e articulam-se as propostas de políticas de
de gênero e de orientação sexual. Consciente desta realidade,
2006). Seus adeptos, entretanto, são em sua
ações afirmativas, entre as quais o sistema de
o Ministério da Saúde assume o compromisso de promover a
maioria afrodescendentes.
cotas raciais.
igualdade por meio de um programa de ações afirmativas.
A partir de 2002 e da eleição de Lula há
Os terreiros sempre foram local de acolhimento, orientação, cuidados e saberes no
ampliação deste debate, com os movimentos
Esta política se torna mais clara e avança.
que se refere à saúde. Na década de 1980/1990
sociais ganhando força. Em 2003 é criada a
Em 10 de novembro de 2006 é aprovada, pelo
começam a surgir trabalhos de prevenção em
Secretaria Especial de Promoção de Políticas
Conselho Nacional de Saúde, a Política Nacional
DST/AIDS entre os adeptos de religiões bra-
de Igualdade Racial (SEPPIR).
de Atenção Integral à Saúde da População
sileiras de matriz africana (Projeto Odo-Yá,
Em 2004 se constitui o Comitê Técnico de
Negra. Em abril de 2008 é realizada a pactuação
realizado pelo Apoio Religioso e Cultural-AIDS
Saúde da População Negra, que conta com
desta política na Comissão Tripartite, a fim de
do Instituto de Estudos das Religiões (ISER,
representantes do Ministério da Saúde e da
dar seguimento à sua implementação.
1991). A entrada destas religiões, de forma or-
SEPPIR. Neste ano realiza-se o I Seminário
Em agosto de 2008 as propostas desta po-
Nacional da Saúde da População Negra, em
lítica são incorporadas, através de emendas,
Brasília. A Apresentação do Caderno de Textos
ao relatório final do Estatuto de Igualdade
Os adeptos destas religiões e seus líderes so-
Básicos (2004, p. 1), que subsidiou os debates,
Racial, na época em tramitação no Congresso
mente há pouco tempo começam a participar
começa dizendo:
Nacional. Nas palavras do relator da Comissão
coletivamente de movimentos políticos, e em
Especial destinada a proferir parecer ao Projeto
geral os pais/mães de santo se consideram res-
A Saúde da População Negra como um campo de estudo especí-
de Lei n. 6.264, de 2005, do Senado Federal que
ponsáveis pelo ritual e pelo terreiro, deixando
fico vem se constituindo nas últimas décadas, no entanto, ainda
institui o Estatuto da Igualdade Racial, depu-
para outros a militância externa. Mas o movi-
não está consolidada como um conjunto firme de diretrizes e
tado Antônio Roberto (2008):
mento que se iniciou com ações de prevenção
metas na Política Nacional de Saúde. Desta forma, a maioria
ganizada, na luta contra o racismo vai se dar através da saúde.
de DST/AIDS cresceu e se consolidou, e hoje se
dos gestores e técnicos da saúde – das três esferas do SUS
A promoção de saúde inserida no Estatuto da Igualdade Racial
organiza em rede, a Rede Nacional de Religiões
– assim como os usuários, ainda conhecem pouco sobre o
significa considerar o combate ao racismo e precisa apontar que
Afro-Brasileiras e Saúde.
assunto (grifo nosso).
o ponto de partida é a promoção: permitir uma sociedade justa,
Criada em março de 2003 durante o II
ambientalmente equilibrada, racialmente eqüitativa, paritária
Seminário Nacional de Religiões Afrobrasileiras
em gênero, que permita à população negra um desenvolvimento
e Saúde, realizado em São Luis, Maranhão,
social e econômico adequado e eqüitativo.
ela tinha como objetivos: lutar pelo direito
Permanece como preocupação o problema da distância entre a elaboração de políticas e
humano à saúde; valorizar e potencializar o
sua compreensão pelos principais interessados E continua destacando o papel do Ministério
saber dos terreiros em relação à saúde; mo-
Em 2006 é criado o Programa Estratégico
da Saúde, que colaborou através da Secretaria
nitorar e intervir nas políticas públicas de
de Ações A f i r mat iva s : Popu laç ão Neg ra
de Gestão Estratégica e Participativa, para que
saúde exercendo o controle social; combater
e A IDS (A f roatitude), em pa rceria com o
os capítulos referentes à saúde estivessem com-
o racismo, sexismo, homofobia e todas as
MEC, SEPPIR (Presidência da República),
patíveis com “as grandes linhas da política de
formas de intolerâncias; legitimar as lideran-
Secretaria Especia l de Direitos Humanos
promoção da igualdade racial”1.
ças dos terreiros como detentores de saberes e
em sua execução.
( P r e s i d ê n c i a d a R e pú b l ic a ) , P r o g r a m a
poderes para exigir das autoridades locais um
1. Relatório do voto do relator, deputado Antônio Roberto, em julho de 2008. Recebi cópia do texto através de informe eletrônico da Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras e Saúde, em julho de 2008.
Agosto de 2011
17
saúde Conclusão
atendimento de qualidade, em que a cultura
este número de consultas. Mostrou que a hi-
do terreiro seja reconhecida e respeitada; es-
pertensão arterial durante a gravidez estava
No passado, o conceito de raça era defi-
tabelecer um canal de comunicação entre os
entre as principais causas de morte materna,
nido em termos de diferenças supostamente
adeptos da tradição religiosa afro-brasileira,
sendo ma is f requente ent re as mu l heres
genéticas entre grupos populacionais. Hoje
os gestores, profissionais de saúde e os conse-
negras. Apontou que o risco de uma criança
a biologia molecular mostra que o paren-
lheiros de saúde (SILVA, 2007, p. 173).
negra morrer antes dos cinco anos por causas
tesco entre populações tradiciona lmente
A Rede conta com mais de 300 organiza-
infecciosas e parasitárias foi 60% maior que
identificadas como raças humanas é muito
ções que formam 23 núcleos, em 12 estados
o risco de uma criança branca, e o risco de
mais próximo do que se pensava. A maioria
do país. Ela tem sido um canal de interlocução
morte por desnutrição foi 90% maior entre
dos geneticistas e antropólogos concorda
entre lideranças da tradição religiosa afrobra-
crianças pretas e pardas que entre as brancas.
acerca da inexistência de raças do ponto de
sileira e os gestores e profissionais de saúde,
Afirma também que o risco de um homem
vista biológico.
propiciando um até pouco tempo impensável
negro morrer por causas externas é 70% maior
diálogo entre a cultura e a visão de mundo dos
quando comparado com um homem branco
terreiros com o SUS.
(MS, 2005) (SILVA, 2007).
Nas palavras de Maria Inês Barbosa (1998, p. 100)
Segundo o Mapa da Violência – Anatomia
A maioria das doenças que afetam a população negra são as
dos Homicídios no Brasil, que mostra os dados
mesmas da população de um modo geral. O que diferencia a
compreendidos entre 1997 e 2007, divulgado
população negra da população branca é um perfil mais crítico
pelo Instituto Sangari em São Paulo, o risco
de saúde, que é decorrente de diferentes contextos históricos,
São poucos os agravos à saúde que atingem
de jovem negro ser morto é 130% maior que o
decorrência essa que deve ser pautada ao racismo.
principalmente a população negra, como a
de um jovem branco. A desigualdade entre as
doença falciforme e a deficiência de glicose-
duas populações, que já era grande, aumen-
Os indicadores de saúde no Brasil são claros:
6-fosfato desidrogenase. Mas os indicadores
tou significativamente em cinco anos. Em
mortalidade infantil, morte em crianças me-
de saúde mostram diferenças entre brancos e
2002 morria 1,7 negros entre 15 a 24 anos para
nores de cinco anos, mortalidade materna,
negros que não podem ser explicadas apenas
cada jovem branco na mesma faixa etária. Em
diferença na expectativa de vida e perfil de mor-
por diferenças biológicas.
2007 essa proporção saltou para 2,6 para 1.
bidade – todos desfavoráveis para a população
Uma pesquisa rea lizada em 2003 pelo
Houve uma redução neste período no número
parda e preta.
Ministério da Saúde analisou o perfil da po-
de mortes por assassinato entre a população
Podemos concluir, então, que o sistema de
pulação brasileira utilizando o quesito raça/
jovem branca, enquanto entre os negros houve
saúde brasileiro contribui para a faxina étnica
cor e evidenciou, entre outros indicadores,
um aumento de 5,3% das mortes no mesmo pe-
que vem ocorrendo no país
que 62% das mulheres brancas se referem
ríodo. Enquanto o número de vítimas brancas
a sete ou mais consultas de pré-natal, en-
caiu de 18.852 para 14.308, o de negros cresceu
Iná Meireles Médica, mestre em saúde cole-
quanto somente 37% das pardas obtiveram
26.915 para 30.193.
tiva, militante do Círculo Palmarino-RJ
os números Apesar das vitórias alcançadas, a realidade está muito longe das propostas aprovadas.
.
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maio-ago. 2005.
DF, 2004.
de Janeiro, 2004.
18
Ano III • Número 6
mulheRes
Mulheres negras: duplo preconceito, dupla militância e história única “A gente tem que morrer tantas vezes durante uma vida que eu já estou ficando craque em ressurreição. . . ” Elisa Lucinda (1997)
Por Luciene Lacerda
Em 1988 foi organizado o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, marco para a organização nacional de um setor dividido (e/ou multiplicado) entre a luta feminista e antirracista. Neste período se diluía a ditadura e os movimentos sociais estavam a pleno vapor, a partir das mobilizações acontecidas na década de 1970. Simone Beauvoir (1949) já havia afirmado que “ninguém nasce mulher, torna-se”; e Neuza Santos Souza (1990) que “ser negro é tornar-se negro”. E como se juntam e se tornam mulheres negras? Mu lt iplicadas em histórias de dores e prazer, as mulheres negras se apropriam de discussões próprias de um vir a ser do feminismo negro. Lembradas sempre como as que mantiveram vivas as questões do sagrado e da cultura, foram sempre mantidas na penumbra dos movimentos negro e feminista, apenas como exemplo dos casos mais graves de discriminação e preconceito. Limitadas pelas histór ias of icia is que contam e recontam os vultos de um gênero – o masculino e de uma raça – a branca. Também limitadas em seus corpos. Para as mulheres negras, ao contrário, são criadas situações paradoxais: o acesso a centros cirúrgicos, para execução de laqueaduras tubárias, é mais “fácil” que os acessos a insumos e tratamentos contraceptivos realizados em ambulatórios,
Agosto de 2011
19
mulheRes situação denunciada pelo movimento das mu-
Tabela 1 – Mortalidade proporcional segundo idade (em anos) e raça/cor. Brasil, 2005
lheres negras, devido à esterilização em massa
(dados de mulheres negras = pretas + pardas)
que ocorria com a população negra. Foi a partir da década de 1980 que a produção de material sobre mulheres negras se multiplicou, e as histórias destas mulheres tão invisibilizadas passaram a ser contadas. Foi possível expor as bases das ideologias e das políticas de um sistema de dominação sexista e racista perpetuada pelo capitalismo. No capitalismo são os constantes e contínuos aperfeiçoamentos na produtividade do trabalho e nas relações de produção, que transformam coisas, recursos naturais e pessoas em mercadorias. Não à toa, já existiu no SESC o curso de “mulata”, a mais conhecida e
Fonte: Brasil (2005)
explícita formalização de transformação de pessoa em objeto vendido ao turismo exterior
Gráfico 1 – distribuição percentual de óbitos maternos das principais causas diretas de
da pós-escravidão, que chegou a ter consigo
mulheres brancas, pretas e pardas (dados de mulheres negras = pretas + pardas)
outro adjetivo: “tipo exportação”. Segundo Callinicos (1993, p. 8-9): o racismo é um fenômeno moderno. Diz-se freqüentemente que o racismo é tão antigo quanto a natureza humana, e em conseqüência não poderia ser eliminado. Pelo contrário, o racismo tal como o conhecemos hoje desenvolveu-se nos séculos 17 e 18 para justificar o uso sistemático do trabalho escravo africano nas grandes plantações do ‘Novo Mundo’ que foram fundamentais para o estabelecimento do capitalismo enquanto sistema mundial. O racismo, portanto, formou-se como parte do processo através do qual o capitalismo tornou-se o sistema econômico e social dominante. As suas transformações posteriores estão ligadas às transformações do capitalismo
Fonte: SIM/SVS/MS
[. . . ] O racismo é uma novidade histórica, característica das sociedades capitalistas modernas. Esta afirmação é central à
partir desta articulação, é de subordinação
em face do ocidental: a da solidariedade, fun-
análise marxista do racismo.
ao paradigma branco e ocidental, de natureza
dada numa experiência histórica comum.
inferior.
Para Sueli Carneiro, o feminismo negro tem
O racismo é alimentado e retroalimentado
Para Hasembalg (1979) o racismo (bem
como principal eixo articulador o racismo e
pelo capital, em uma sociedade que se estru-
como o sexismo) torna-se parte da estrutura
seu impacto sobre as relações de gênero, uma
tura de forma hierárquica necessária para a
objetiva das relações políticas e ideológicas
vez que ele determina a própria hierarquia de
manutenção do status quo.
capitalistas. Então, a reprodução de uma di-
gênero em nossas sociedades.
O machismo – a expressão mais cotidiana
visão racial (e sexual) do trabalho pode ser
Paula Giddings (1984) também percebe a
do sexismo – é mais antigo, e torna hierárqui-
explicada sem apelar para o preconceito e
importância da experiência e a história para
ca a relação entre os gêneros, subjugando as
elementos subjetivos.
as mulheres negras, acrescentando:
mulheres ao poder dos homens.
Lélia Gonzalez (1984) afirmava que a cons-
A articulação entre o capitalismo e o pa-
trução do feminismo negro se deu a partir das
“Para uma mulher negra, escrever sobre mulheres negras
triarcado é fundamental para a naturalização
discussões sobre seu cotidiano marcado pela
é primeiramente, um objetivo pessoal e obrigatório. É
de uma suposta inferioridade da mulher. A
discriminação racial, e, também, que o femi-
pessoal porque as mulheres cujo sangue corre em minhas
condição de mulheres negras e indígenas, a
nismo negro possui sua diferença específica
veias respira por entre as estatísticas. [. . . ] é também uma
20
Ano III • Número 6
mulheRes tarefa objetiva, porque alguém deve colocar essas ex-
tiveram um rendimento habitual médio
periências em um contexto histórico, encontrar neles
de R$ 1.551,87. Já trabalhadoras pretas e
um significado racional de forma que as forças que
pardas perceberam rendimento médio
moldam suas próprias vidas possam ser entendidas.
de R$ 865,03.
[. . . ] Pois apesar da abrangência e significância da sua história, temos sido percebidas como símbolos
Conclusão
de mulheres em ‘textos negros’ e, como símbolo de
Temos uma história única de lutas e re-
negros em ‘textos feministas’”.
sistências que apesar dos dados e do pouco respeito de “Bolsonaros” (pai e filho),
Todos(as) estes(as) teóricos(os) mos-
mostram a necessidade de políticas mais
tram a história única das mulheres negras,
focalizadas, mas principalmente, de outra
construída por dois fortes e emblemáticos
sociedade, sem hierarquias de gênero e de
pilares: sua raça/cor e seu gênero. Esta es-
raça. Uma sociedade sem classes, que va-
quina mostra os vários horizontes das dis-
lorize as histórias das que fizeram história.
cussões emblemáticas do último período.
Histórias de Dandara, Aquatune, Luíza
Nos dados sobre saúde, questões como
Mahin, Mariana Crioula, Xica da Silva,
o aborto, luta histórica do movimento
Antonieta de Barros, Tia Ciata, Chiquinha
feminista geral, priorizada por nós que
Gonzaga, eu e você
.
somos as que mais morremos, tem sido mu ito d iscut ida. Há u m mov i mento
Luciene Lacerda Milita nte do Fór um
reacionário, que busca retroagir ainda
Estadual de Mulheres Negras do Rio de
mais os tímidos e insuficientes direitos
Janeiro e do Instituto Búzios, integrante
conquistados na lei de abortamento legal.
dos setoriais de Mulheres e de Negros e
Diante da proibição do direito ao próprio
Negras; e do Diretório Nacional do PSOL.
corpo, a ilegalidade do aborto contribui para uma das maiores causas de mortalidade materna entre as mulheres negras no país: No Rio de Janeiro (dados da SMSDC), no período de 2000 a 2006, a taxa de mortalidade
Referências
Em relação às mulheres brancas, 1,8 vezes menor; Em relação aos homens negros. 1,3 vezes menor.
BEAUVOIR, Simone (1980 – reedição) – O segundo sexo, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro SOUZA, Neusa Santos (1990) – “Tornar-se Negro ou
materna total na cidade variou de 60,7 para
Seg u ndo os dados do L aboratór io de
50,4 por 100.000 nascidos vivos. A taxa entre
Análises Econômicas, Históricas, Sociais e
Ascensão Social”- Ed. Graal, Rio de Janeiro
mulheres da cor preta/parda variou de 74,9 a
Estatísticas das Relações Raciais (LAESER)-IE/
MINISTÉRIO DA SAÚDE (2005) – Saúde Brasil 2005, Uma
54,1. E a taxa entre as mulheres da cor branca,
UFRJ, o rendimento médio dos trabalhadores
análise da situação de saúde no Brasil, Brasília
de 51,9 para 34,9.
brancos do sexo masculino no mês de dezem-
GIDDINGS, Paula (1984) – When and Where I Enter.
Além disso, nesta última década e no gover-
bro de 2010 foi de R$ 2.216,59. Na comparação
Bantam Books: New York
no Lula, houve diminuição dos recursos para
com o mês anterior, observou-se valorização
GONZALEZ, Lélia (1984). The black woman’s place in the
implementação de garantias aos direitos sexu-
real de 1,3% e, na comparação com o mesmo
brazilian society. Acesso em 01 de fevereiro, 2006, em
ais e reprodutivos, e, também, para a política de
mês do ano de 2009, valorização de 5,8%. O
www. leliagonzalez. org.br.
saúde integral de mulheres. Como somos nós
rendimento médio dos trabalhadores pretos e
H A SE N B A L G, C a rlos (1979 ) – D i s c r i m i n aç ão e
da população negra as que mais utilizamos o
pardos do sexo masculino, no último mês de
Desigualdades Raciais no Brasil- Graal, Biblioteca de
SUS, e os demais aparelhos públicos, este des-
2010, foi de R$ 1.185,66. Em termos reais, na
Ciências Sociais Vol. nº10, Rio de Janeiro
mantelamento nos atinge, principalmente.
comparação com o mês de novembro de 2010,
PAIX ÃO, Marcelo; ROSSETO, Irene; MONTOVANELE,
As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em
Os dados de rendimento médio, segundo
o rendimento dos trabalhadores deste grupo
Fabiana e CARVANO, Luiz M. (2011) – Relatório Anual das
raça e sexo do IBGE (2010), mostram as dispa-
de cor ou raça e sexo apresentou involução de
Desigualdades Raciais no Brasil; 2009-2010 – LAESER/
ridades salariais entre gêneros e entre raças. As
0,5%. Já na comparação com o mês de dezem-
UFRJ, Ed. Garamond Universitária, Rio de Janeiro
mulheres negras recebem menos pelo trabalho
bro de 2009, ocorreu uma evolução positiva,
CALLINICOS, A, 1993 – Capitalismo e Racismo; tra-
realizado, pois sua renda é:
mais uma vez, de 9,5%.
duzido por Ruy Polly (2000) do livro Race and Class,
Em relação a um homem branco, em média, 2,7 vezes menor;
Agosto de 2011
No cont ingente do sexo feminino, em dezembro de 2010, as trabalhadoras brancas
Bookmarks, Londres, janeiro de 1993; in http://socialista. tripod. com
21
RevoluÇÃ ÇÃo
Racismo e antirracismo: uma abordagem revolucionária Por dennis de oliveira
Estados-nação. Estes discursos construtores da
população, levou todo o projeto republicano de
identidade unificaram as diferenças existentes
nação de então ao racismo praticado contra o
dentro de si, na sua maioria, à força, reprimin-
próprio povo brasileiro. Em outras palavras, a
do os segmentos internos subalternizados. Por
elite seria a regeneradora de um país atrasado
Primeiramente, gostaria de estabelecer
isto, discutir racismo dentro de contextos em
não por fatores políticos ou de uma estrutura
alguns parâmetros para a discussão sobre
que se quer reafirmar um projeto nacional é
social arcaica, mas sim pelas características
extremamente complicado. Em todos os mo-
do seu povo.
Introdução
uma abordagem revolucionária do proble-
mentos em que se reafirma a construção de
Esta ideia teve consequências drásticas. Os
ma do racismo no Brasil. O primeiro deles
projetos nacionais, há uma tendência em negar
regeneradores do rebanho brasileiro introje-
é partir do pressuposto de que o racismo
ou mitigar as diferenças étnicas ou raciais.
taram práticas racistas e discriminatórias em
é um mecanismo socialmente construído
todo o tecido social do país e praticamente
Racismo, capitalismo e liberalismo
excluíram a maioria da população dos direitos
e, portanto, socialmente superável. Ele – o
Entender o fenômeno da exclusão na socie-
mínimos de cidadania e de bem-estar social.
racismo – é um mecanismo potencializador
dade capitalista brasileira é algo que remete,
Os projetos políticos que sinalizavam para
necessariamente, ao estudo dos pilares de
a constituição de um Estado de bem-estar
sustentação da estrutura social brasileira.
social protagonizados pelos movimentos so-
do Brasil, se encontra na gênese do próprio
O fenômeno da exclusão não é algo pontual
ciais e populares e agremiações partidárias
capitalismo dependente. Segundo, que não
e fruto de políticas ocasionais de governos,
de esquerda foram duramente reprimidos. Por
embora estes possam intensificá-la ou não,
esta razão, o projeto regenerador republicano
mas sim resultado do tipo de sociedade que as
nunca vislumbrou a constituição mínima de
individuais e sim como um fenômeno
classes dominantes projetaram e construíram
uma sociedade civil independente do Estado
da estrutura social. Assim, não discutirei
ao longo da história.
ainda que nos moldes clássicos do liberalismo.
da exploração das classes sociais e, no caso
abordarei o racismo a partir das práticas
comportamentos particulares e sim me-
O projeto de nação elaborado pelas classes
As relações entre Estado e população caracteri-
dominantes brasileiras nas décadas finais do
zaram-se pelo misto de repressão e cooptação
canismos sócio-históricos que explicam o
século XIX e início do XX tinha na exclusão de
no sentido clientelista-paternalista. A demo-
grande fosso social constatado hoje entre
parcela da população brasileira um dos pontos
cracia burguesa travestiu-se de tal modo que
centrais. Se algum resquício do passado colo-
o funcionamento das instituições sempre foi
nial e escravista ficou presente no projeto repu-
precário, intermediado por constantes golpes
trabalhar com autores que estudaram a
blicano de nação foi justamente a acumulação
e períodos ditatoriais, responsabilizando-se
problemática racial brasileira a partir de um
de capital de modo predatório. Chamamos de
sempre a rotina de funcionamento democrá-
acumulação de modo predatório esta forma
tico pela instabilidade e as crises constantes
do capital reproduzir-se via, principalmente,
do país.
brancos e negros. E, terceiro, que optei por
viés marxista, como Clóvis Moura, Nelson Werneck Sodré e Florestan Fernandes.
a superexploração da mão-de-obra.
A ideia da incapacidade do povo brasileiro
“No cent ro do projeto republica no de
em se auto-organizar e definir rumos próprios
Além disto, parto do pressuposto também
inspiração liberal estão a grande proprieda-
para a sua nação foi fundamentada com base
que “identidade” é uma construção conceitual
de agrícola, a diversificação da aplicação do
no racismo. O mesmo racismo que legitimou e
e que aponta uma perspectiva política. Discutir
capital e a formação do mercado de trabalho
justificou socialmente a brutalidade da escra-
identidade demonstra a direção política que
com o imigrante europeu”, afirma Bresciani
vidão serviu para legitimar e justificar o auto-
se quer tomar. Stuart Hall (2007) realizou um
(1993). A necessidade de se formar uma elite
ritarismo das elites brasileiras na sociedade
estudo onde demonstra que as identidades
local que conduzisse o país a um desenvolvi-
republicana e de mão-de-obra assalariada. O
nacionais europeias são narrativas construídas
mento firme e linear, rompendo com o atraso
Estado foi privatizado pelas elites e o sentido de
dentro do projeto moderno de constituição dos
que era creditado às características étnicas da
coisa pública deixou de existir em sua acepção
22
Ano III • Número 6
RevoluÇÃo estrita do termo. Grupos revezam-
razão, ao cristalizar esses resquícios
se no poder, na ocupação de cargos
do período escravista, o capitalismo
e na s negociata s com d i n hei ro
no Brasil nasce com uma face extre-
público. Os mecanismos institucio-
mamente conservadora e retrógrada
nais de controle pouco funcionam.
que encontra na associação de forma
Por isto, no desequilíbrio entre os
dependente ao capitalismo mundial
três poderes republicanos, o Poder
a única via de ‘desenvolvimento’
Executivo sobressai-se em detrimen-
enquanto sistema. Por isto, depen-
to do Legislativo uma vez que este
dência, crise social, autoritarismo,
último é o que mais se aproxima de
racismo e acumulação predatória
um espaço público por apresentar
são pilares de sustentação de um
espaços e possibilidades maiores
sistema econômico que já nasce
de representação de correntes de
arcaico no país.
pensamento, apesar de estar cor-
A transição conservadora
roído pelos vícios de autoritarismo e práticas políticas corruptivas que
A formação do capitalismo pres-
dominam o cenário nacional.
supõe que haja uma acumulação
Mas o mais sério de tudo isso é o
de riquezas que se transforme em
tipo de sociedade que se construiu
capital e que haja uma acumulação
ao longo dos anos. Uma sociedade
da força de trabalho separada dos
que exclui sistematicamente parcela
meios de produção – a mão-de-obra
significativa da população; parcela
assalariada.
descendente dos africanos escra-
A acumulação de riquezas que
vizados no período colonial e que,
permitiu que estas se constituíssem
em nenhum momento da história,
em capital foi obtida via a superex-
contou com políticas públicas de in-
ploração da mão-de-obra escrava e
serção no estatuto da cidadania. Pelo
também via relações de caráter mer-
contrário, conforme já vimos, o pro-
cantil com as potências econômicas
jeto republicano das elites concebia
mundiais da época, em especial a
que o lugar de classe trabalhadora
Inglaterra. Percebe-se, então, que
organizada como tal no capitalismo caberia
sistema escravista. Nelson Werneck Sodré
a associação dependente e a superexploração
ao imigrante europeu que
(2005, p. 80) escreve que “o escravismo foi o
foram fatores fundamentais para o tipo de acu-
elemento fundamental no processo de fluxo
mulação primitiva de riquezas que possibilitou
cumpre nos projetos republicanos a função de referência
de renda para o exterior que foi o traço mais
a edificação do capitalismo no Brasil.
para a elaboração de imagem idealizada do homem enquanto
claro da exploração colonial”.
trabalhador e cidadão. Essa estratégia tem seu respaldo mais abrangente na intenção de acelerar o progresso e assegurar a
Mas Sodré (2005, p. 80) vai além e ainda afirma com muita propriedade que o
caminhada no sentido da civilização. Mais tarde, após 1889,
Estes dois fatores se complementam na medida em que o atendimento às demandas externas prioritariamente torna desnecessária a constituição de um mercado interno de certa
o governo republicano assume a tarefa de fazer com que esse
longo predomínio do escravismo respondeu pela degradação
monta, o que demandaria uma acumulação
modelo idealizado coincida com a presença efetiva do imi-
física e moral da população trabalhadora, face a sua selvagem
menos predatória e a garantia de condições
grante e de suas aspirações (BRESCIANI, 1993, p. 125).
exploração, como pela estagnação de técnicas de produção
mínimas de consumo por parte da classe tra-
com a utilização apenas de instrumentos de trabalho os
balhadora. Ora, o escravismo não permite, pela
mais primitivos.
sua própria razão de ser, a sustentação de um
Este foi o resultado da passagem de um
sistema produtivo voltado prioritariamente
sistema econômico sustentado pelo escravismo para um capitalista, porém dependente
É importante ressaltar que esta herança
para a demanda interna. A ruptura com o ca-
e voltado para o atendimento das demandas
do escravismo e do período colonial e impe-
pitalismo central seria, então, condição fun-
externas. Neste sentido, este capitalismo de-
rial não encontrou no projeto republicano
damental para se pensar em um sistema pro-
pendente reforçou uma posição já ocupada
das elites nenhuma resposta que corrigisse
dutivo que atendesse primeiramente o próprio
pelo país quando colônia e sustentado pelo
os rumos do capitalismo brasileiro. Por esta
povo brasileiro, um sistema auto-sustentável.
Agosto de 2011
23
RevoluÇÃo Mas isto não ocorreu, pelo contrário. Ao disse-
escravismo tardio que, segundo ele (1994, p. 104):
resultou num processo brutal de exclusão e ge-
minar a ideia de incapacidade do povo brasi-
“chamamos de escravismo tardio o período em
nocídio contra os negros e seus descendentes.
leiro ser dono do seu próprio destino, as elites
que relações capitalistas desenvolveram-se no
As leis que se seguiram – Lei do Ventre Livre
brasileiras justificavam a manutenção da
seio da sociedade escravista, pondo em cheque
e Lei dos Sexagenários – ao contrário do que
o regime anterior e
poderia se supor, cristalizaram duas práticas
criando bases para um
que permearam toda a história republicana do
novo modo de produ-
país: o descaso com as crianças e com os idosos.
ção. ”
A Lei do Ventre Livre que libertava os filhos de
dependência externa como única forma de desenvolver o país. Desta maneira, a
“Ao disseminar a ideia de incapacidade do povo brasileiro ser dono do seu próprio destino, as elites brasileiras
Foi justamente
escravos nascidos a partir daquela data foi, na
neste período que se
prática, uma forma de tirar a responsabilidade
inicia em 1850, que se
dos senhores de escravos sobre as crianças que
criam as bases para
nasciam na senzala. Acrescente-se a isto a ine-
que a acumulação de
xistência de qualquer tipo de política social que
mudança radical de orientação do desenvolvi-
riquezas no país se transformasse em capital. A
atendesse as demandas daquelas crianças. Data
mento econômico do país. Porém, perpetuou-
Lei Eusébio de Queiroz promulgada neste ano
daí a marginalização de crianças e adolescentes
se a forma de acumulação de riquezas pela via
proibiu o tráfico de escravos. Os recursos que
negros que hoje são chamados pelo discurso
da superexploração do trabalho, a acumulação
eram utilizados no tráfico foram redirecionados
oficial de “menores”.
predatória.
para outros investimentos, entre eles, a criação
O mesmo pode-se dizer da Lei dos
Resultou nisto um país entre os dez maiores
de uma infraestrutura no país que permitisse
Sexagenários que libertava os escravos com
PIB do mundo, mas com uma das piores nações
certo desenvolvimento econômico. Exemplos:
mais de 60 anos de idade. Primeiro, era uma
com distribuição de renda do mundo. Teses
ferrovias, transportes, estradas, serviços pú-
lei quase que inócua, pois eram raríssimos os
como a do ex-ministro da Fazenda do período
blicos urbanos. Além disto, há uma pequena
escravos que chegavam àquela idade (os atuais
da ditadura militar, Delfin Neto, de que é ‘pre-
diversificação dos investimentos que deixam e
defensores da reforma da previdência social
ciso primeiro fazer o bolo crescer para depois
ser exclusivamente voltados para a expansão
que querem estipular uma idade mínima para
poder dividi-lo’ se foram duramente criticadas,
das lavouras para o nascedouro das indústrias.
a aposentadoria tiveram em que se inspirar!).
explicam a natureza da maioria dos planos
O Barão de Mauá é o maior exemplo desta fase
Segundo, que a lei libertava, mas também não
econômicos do país tocados por sucessivos
nascente da indústria brasileira.
garantia nenhum tipo de assistência social que
crise social no país assume um caráter estrutural. A sua resolução passa, ne-
justificavam a manutenção da dependência externa como única forma de desenvolver o país.”
cessariamente, pela
governos. Ao lado disto, tem-se uma constante
Outra mudança, inclusive de caráter simbó-
criminalização do movimento social, tratando
lico, foi a transfor-
qualquer manifestação reivindicatória como
mação da terra em
baderna merecedora de repressão policial.
propriedade privada
atendesse essas pessoas. Mas a maior per-
“É aqui que entra uma singularidade da formação do capitalismo brasileiro:
versidade foi o incentivo à imigração concomitante com
Onde entra o racismo nisto tudo? O racismo
pela Lei de Terras,
foi o mecanismo ideológico que serve para legi-
também de 1850.
timar socialmente esta ascensão da burguesia
Até então, a terra era
ao poder dentro de uma perspectiva arcaica. É
uma concessão da
aqui que entra uma singularidade da formação
Coroa e a riqueza
do capitalismo brasileiro: a classe que ascende
media-se pela posse
ao poder – a burguesia – se legitima socialmente
de escravos. Com
utilizando um mesmo mecanismo ideológico
o fim do tráfico e a
que legitimava o sistema anterior, o escravismo, e
transformação da terra em mercadoria, é a posse
levas de imigrantes – particularmente italianos –
o poder das classes dos senhores de escravos. Por
desta que se transforma no indicador de prestígio
para trabalhar como assalariados. A política ofi-
isto que a ‘revolução burguesa’ brasileira foi con-
e riqueza. Ao mesmo tempo, esta transformação
cial de branqueamento da população brasileira
servadora, manteve intactas estruturas e práticas
da terra em mercadoria praticamente cristalizou
trazia ainda a instituição de políticas de ação
sociais do sistema escravista e consubstanciou-
o latifúndio e impediu a democratização da es-
afirmativa para os imigrantes, como doação
se de forma transitória e não por uma ruptura
trutura fundiária no país.
ou financiamento vantajoso para a compra de
a classe que ascende ao poder – a burguesia – se legitima socialmente utilizando um mesmo mecanismo ideológico que legitimava o sistema anterior, o escravismo, e o poder das classes dos senhores de escravos.”
este processo de abolição controlada. Já a partir de 1870, ainda durante a existência de mão-de-obra de escravizados, começam a chegar as primeiras
Do ponto de vista social, este período foi
terras para estas comunidades, reconhecimento
O sociólogo Clóvis Moura descreve o pe-
marcante por dois motivos: a proibição do
das suas práticas religiosas (durante o segundo
ríodo de transição da mão-de-obra escrava
tráfico de escravos deu início a uma abolição
império, a religião católica era a oficial e seus
para a mão-de-obra assalariada como a fase do
lenta, gradual e controlada da escravidão que
atos litúrgicos de batismo e casamento tinham
com o modelo antigo.
24
Ano III • Número 6
RevoluÇÃo força normativa civil, isto foi estendido também
negros que, se conseguem certa ascensão social
e pela incapacidade deste construir um projeto
às religiões evangélicas dos imigrantes alemães
e econômica, ficam subordinados a um sistema
autônomo de nação. Era necessário o processo
do Sul do país). Era nítida a ação de inclusão
social e político dirigido exclusivamente por
civilizador branco-europeu para colocar o país
social dos imigrantes em detrimento dos afro-
brancos. Assim, se as escolas de samba exal-
nos eixos. A importação da mão-de-obra euro-
descendentes.
tam a cultura negra, elas
peia para tomar
O aparato ideológico para este projeto foi
conseguem visibilidade à
o lugar dos ex-es-
disseminado por várias instituições de pesquisa
medida que se sujeitam às
“Outra mudança, inclusive de caráter
cravos era assim
o que demonstra que houve um empenho de
condições impostas pela
simbólico, foi a transformação da terra
justificada. Da
parcela da intelectualidade brasileira para a sua
indústria cultural dirigida
em propriedade privada pela Lei de
mesma forma
elaboração. Entre estas instituições, estão os
pela classe dominante
Terras, também de 1850. Até então, a
que a importação
museus e os institutos históricos e geográficos.
branca. Além disto, os
terra era uma concessão da Coroa e a
de teorias sociais
O princípio das teorias estudadas e debatidas
lucros obtidos pela dis-
riqueza media-se pela posse de escravos.
formuladas no
nestes espaços era naturalizar as diferenças entre
seminação desta cultura
Com o fim do tráfico e a transformação
contexto europeu
os vários povos que compunham a população
negra são apropriados pela
da terra em mercadoria, é a posse desta
para “explicar” as
brasileira, transformando diferenças criadas
classe dominante branca.
que se transforma no indicador de
causas do atraso
socialmente em características advindas de
O mesmo se pode dizer
prestígio e riqueza.”
do país.
diferenças raciais. Assim, a negação do trabalho
do futebol (tanto os diri-
O branquea-
assalariado ao ex-escravo era justificada por
gentes do futebol como os
mento da popu-
uma incapacidade natural deste em adaptar-
patrocinadores dos clubes que pertencem a estas
lação brasileira foi, então, um projeto político
se a um regime moderno que seria o trabalho
elites brancas) e também da música (as grandes
e ideológico que estava diretamente colado ao
assalariado.
indústrias fonográficas são parte de corporações
modelo de desenvolvimento capitalista de então.
transnacionais). A exaltação do negro no campo
Não foi, portanto, algo isolado e descolado da
Delineia-se a partir de então certa reorientação intelectual, uma
das artes e dos esportes, não obstante o inegá-
estruturação do sistema capitalista – foi, sim,
reação ao Iluminismo em sua visão unitária de humanidade.
vel valor e competência dos seus atores serve
um dos pilares de sustentação, juntamente com
Tratava-se de uma investida contra os pressupostos igualitá-
também como mecanismo de compensação e
o caráter antinacional e dependente e a vocação
rios das revoluções burguesas, cujo novo suporte intelectual
de limitação dos espaços sociais que este grupo
autoritária. Uma nação composta por um povo
concentrava-se na idéia de raça, que em tal contexto cada vez
social deve ocupar que não são os essenciais na
incapaz e etnicamente inferior tanto não poderia
mais se aproximava da noção de povo. O discurso racial surgia,
definição dos rumos do país.
ser soberana como também não poderia funcio-
dessa maneira, como variante do debate sobre a cidadania, já
A ideia de que a culpa da miséria é do próprio
que no interior desses novos modelos discorria-se mais sobre
miserável e que, num sentido maior, gerou um
as determinações do grupo biológico do que sobre o arbítrio do
sentimento de inferioridade étnica no seio da
Das ideias à prática. O branqueamento se ar-
indivíduo entendido como um ‘resultado’, uma reificação dos
própria sociedade brasileira, foi um arcabouço
ticulou não somente com a importação de mão-
atributos específicos de sua raça (SCHWARTZ, 1993, p. 75).
ideológico que legitimou a ideia de que a única
de-obra, mas também com o estabelecimento de
via possível para o desenvolvimento do capi-
políticas voltadas ao extermínio da população
O conceito de raça é discutido inicialmente
talismo brasileiro seria a associação de forma
não branca (negros, indígenas e mestiços) da
no Brasil para naturalizar – e, portanto, cristalizar
dependente ao capitalismo europeu. Schwartz
face do país.
– diferenças construídas social e historicamente e
(1993, p. 30) ainda afirma que:
nar se não fosse conduzida pela mão dos poucos iluminados que levariam o Brasil à redenção.
No início do século XX, alguns governos estaduais proibiam a matrícula em escolas públicas
também para tirar qualquer responsabilidade do [. . . ] recém-saída da desastrosa Guerra do Paraguai e vivendo,
de pessoas portadoras de doenças e que fossem
Além disto, esta naturalização das diferenças
nos últimos anos do império, um período de relativa estabili-
negras. Nos cursos de Direito, vigorou uma
teve um papel fundamental nos processos de
dade econômica motivada pela produção cafeeira, a monarquia
disciplina chamada de Antropologia Criminal.
cooptação dos segmentos sociais colocados na
brasileira tencionava diferenciar-se das demais repúblicas
Vejamos um trecho de artigo da Revista da
base da pirâmide social, ao reservar a estes qua-
latino-americanas aproximando-se dos modelos europeus de
Faculdade de Direito do Recife, publicado em
lidades desenvolvidas em papéis secundários na
conhecimento e civilidade.
1913, citado por Lilian Schwartz (1993, p. 166):
sistema quanto à redução destas diferenças.
“O indivíduo é uma soma das características
estrutura do poder social. A exaltação de qualidades do negro em áreas lúdicas (como esporte
Os ideólogos da época culpavam a forma-
físicas de sua raça, o resultado de sua correlação
e música), ao mesmo tempo em que mascara o
ção étnica do povo brasileiro – composto por
com o meio [. . . ] O fenótipo é entendido como
racismo presente nas práticas sociais das classes
muitos negros, indígenas, mestiços e poucos
o espelho d’alma no qual se refletem as virtudes
dominantes brasileiras, coopta determinados
brancos – como a responsável pelo atraso do país
e vícios. ”
Agosto de 2011
25
RevoluÇÃo Esta visão pode ser repudiada veementemente
personagem negro que faz um discurso de afir-
ideia de discutir a questão racial como um projeto
hoje e estar fora dos manuais do Direito criminal.
mação étnica e de enfrentamento ao racismo
de construção de equidade social, reconhecendo
Porém, as práticas policiais vigentes atualmente,
de brancos é tipificado como vilão da história e
o racismo como um mecanismo ideológico legi-
nas quais vigora a ideia do “tipo suspeito” tem
morto – a protagonista, heroína, reage passiva-
timador e potencializador das diferenças sociais.
esta origem. Quais são os critérios de definição
mente e de forma chorosa ao racismo que enfren-
Assim, o combate ao racismo é passo necessário
dos tais tipos suspeitos? Raciais, conforme se
ta na trama. Esta visibilidade relativa do negro na
para a desconstrução do sistema concentrador de
infere a partir dos dados do número de pessoas
mídia tem um preço a pagar e não significa uma
riquezas. Defendemos, então, como contraponto
negras que são vítimas da violência policial.
mitigação do racismo, mas uma ressemantização
as duas vertentes conservadoras citadas anterior-
A criminalização do ser negro levou à situação
do mesmo. Difere-se, aqui, visibilidade negra e
mente, a concepção do antirracismo abarcando
encontrada hoje de que a maior parte dos assas-
visibilidade do combate ao racismo. Esta é o que
dentro deste conceito “guarda-chuva” todas as
sinados pelas forças de segurança serem negros
chamamos de uma neodemocracia racial .
ações políticas voltadas para a conquista da plena
1
.
e que os mesmos são mais condenados que os
A segunda é tratar a temática racial a partir
equidade social, sejam elas direcionadas para
brancos. Os negros ainda foram criminalizados
de clivagens, negando qualquer ação política e
as políticas públicas generalistas ou de caráter
pelo fato de não estarem inseridos no mercado
transferindo a discussão racial para o gueto. Esta
específico, como as ações afirmativas
formal de trabalho, situação esta criada com a
ação de clivagens parte do pressuposto de uma
política de priorizar a ocupação destes postos
naturalização da diferença racial ao invés de se
Dennis de Oliveira Professor da Escola de
pelos imigrantes. A Lei da Vadiagem punia
trabalhar com o conceito de categoria social-
Comunicações e Artes da USP e Programa de Pós
criminalmente quem estivesse desempregado.
mente construída. Uma vez naturalizada, não há
Graduação em Direitos Humanos da USP. Doutor em
Novamente, a responsabilização cai na própria
como se pensar em superação do racismo, assim
Ciências da Comunicação pela USP. Coordenador
vítima do problema social.
o que se aponta como perspectiva é uma atitude
do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre
Temos, assim, várias medidas que visavam
conservadora – pois não propõe uma ruptura
Cultura e Comunicação (CELACC) e membro do
apagar a digital negra da face da história brasilei-
sistêmica – e voltada unicamente na conquista
Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares
ra. A criminalização das religiões afrobrasileiras,
de espaços no atual sistema de poder.
sobre o Negro Brasileiro (NEINB) – USP. Autor dos
a mestiçagem vista como um branqueamento
Além disto, as clivagens se inserem em um
livros Globalização e racismo no Brasil (Ed. Legítima
e ‘melhoramento’ da raça, o impedimento do
contexto de esvaziamento do espaço público,
Defesa, 2000); Mídia, cultura e violência (CELACC,
acesso aos aparelhos públicos, transformaram
instância necessária para se discutir a equidade
2009), co-autor da coleção Cinema Negro (Ed.
a história do negro e negra no Brasil em duas
social. Conforme afirmou Marx, em passagem
Fiúza). Colunista da Revisa Fórum on line e colabo-
etapas: a primeira como escravizado e a segunda
citada por Bauman (2000, p. 18): “somente as ma-
rador da Agência Latino-Americana de Informação
como excluído. Em ambas, o que prevalece é a
riposas noturnas consideram a lâmpada domésti-
(ALAI-Equador). E-mail: dennisol@usp.br
negação do direito de cidadania.
ca um substituto satisfatório do Sol universal”.
Referências
É assim que esta perspectiva atua no sentido
perspectivas para o debate racial no Brasil
de garantir nacos – e não equidade – na esfera
BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar,
Disto isto, como se encontra o debate racial
pública. A luta por políticas de ação afirmativa
2000.
no país hoje? Está exprimido por duas vertentes
não pode cair na armadilha de se transformar ou
BRESCIANI, Maria Stela. O cidadão da República. Revista
conservadoras. A primeira é um retorno ao mito
em políticas compensatórias ou em parte de uma
USP, São Paulo, n. 17, p. 123-132, abr. /maio 1993. USP
da democracia racial que vai desde a negação
integração sistêmica diferenciada. Nesta batalha
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade.
da existência do racismo em si ou mesmo da sua
com base em clivagens, os únicos ganhos para a
São Paulo: LPM, 2007.
mitigação como fenômeno. O argumento desta
população afrodescendente têm sido no campo
MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo:
corrente se fundamenta num aumento relativo
de um aumento relativo de visibilidade de algu-
Anita, 1994
da visibilidade do negro no espaço midiático-
mas manifestações culturais negras e também a
OLIVEIRA, D. ; PAVAN, M. A. Identificações e estratégias nas
cultural, particularmente na dimensão lúdica.
ascensão de alguns ídolos negros, em geral ligados
relações éticas na telenovela “Da cor do pecado”. Revista de
Há uma criminalização explícita ou não na
ao campo do cultural/lúdico. Esta visibilidade nega
Comunicação e Cultura, Piracicaba: Unimep, n. 1, v. 01, p.
mídia quando do enfrentamento e tipificação
a discussão política do racismo. Por isto, esta pers-
21-33, jun/dez 2007.
do racismo por parte de negros. Na telenovela
pectiva – chamada por alguns de multiculturalismo
SCHWARTZ, L. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia das
“Da cor do pecado”, apresentada pela TV Globo
– é muito mais assimilável para o sistema.
Letras, 1993
como a primeira novela da emissora com uma
Para fugir destas duas correntes – a neodemo-
protagonista negra (a atriz Taís Araújo), o único
cracia racial e o multiculturalismo – defendemos a
SODRÉ, N. W. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 2005.
1. A este respeito ver Oliveira e Pavan (2005).
26
Ano III • Número 6
socialismo
Resgatar memórias radicais afrodescendentes, semear presentes e cultivar futuros de des/colonialidade e liberação Por Agustin Lao Montes
despossuídas, racializadas negativamente (na América Latina majoritariamente afrodescendentes e indígenas); e a desvalorização de
Introdução
nossas memórias e saberes – por isso falamos de racismo epistêmico, até diversas formas de
Este artigo foi escrito a partir de palestra
violência racial – desde a brutalidade da es-
apresentada no painel “O desenvolvimento
cravidão que foi um dos holocaustos maiores da era moderna te situações como a atual na
do socialismo na América Latina e o mo-
Colômbia onde há ao redor de 4 milhões de
vimento afro”, no Encontro Internacional
desabrigados e um sem número de mortes em
pela Consolidação do Ano Internacional dos
uma guerra que afeta desproporcionalmente os afrodescendentes, ao que é importante
Afrodescendentes – 2011, celebrado em
somar a violência racial urbana que sobretudo
Quito, Equador, em 3 e 4 de dezembro de
sofrem jovens afro através das Américas. O racismo institucional que experienciamos
2010, e organizado pela Secretaria dos Povos,
e observamos em todas as instituições, desde
Movimentos Sociais e Participação Cidadã.
o Estado onde consistentemente estamos subrepresentados, o sistema educativo onde se
Começo afirmando o valor simbólico e
excluem nossa história uma vez que nos exclui
a transcendência histórica do momento em
de participar como estudantes e professores, até
que vivemos. Se em 1992 se vitalizaram os
Racismo e colonialidade do poder
as moradias, os serviços de saúde e os mercados
se entendermos os processos de globa-
de trabalho. E finalmente o racismo como expe-
de 500 anos de resistência, em 2011 aos 200
lização em sua larga duração de ao redor
riência cotidiana de discriminação e humilha-
anos das independências que constituíram a
de 500 anos, vemos que no sistema-mundo
ção de diversas maneiras, desde olhares hostis
pátria pequena (os países) e a pátria grande (a
moderno/capitalista prima por um padrão
e insultos, até não ser bem-vindos em lugares
região), hoje com a refundação constitucional
que cha ma mos “colonia lidade do poder”
públicos e casas.
e simbólica de muitos dos estados como plu-
constituída por quatro regimes entrelaçados
Esta condição persistente que o marxismo
rinacionais, multiétnicos e interculturais, há
de dominação: capitalismo, racismo, impe-
negro caracteriza como capitalismo racial
uma necessidade imperativa de realizar uma
rialismo e patriarcado.
implica uma continuidade na dominação et-
movimentos indígenas e afros com a insígnia
reflexão profunda em favor de transforma-
Definimos o racismo como um regime de
nicorracial e opressão econômica dos sujeitos
ções radicais. Vivemos uma era de crise da
dominação que tem três dimensões: racismo
da Africania moderna tanto no continente
civilização ocidental capitalista que requer
estrutural, racismo institucional e racismo
Africano como na Diáspora Afrodescendente. A
respostas contundentes e isso implica assumir
cotidiano.
ideologia racista desde seu início no século XVI
claramente o rol de protagonistas que os afro-
O racismo estrutural afeta os componen-
considerou os sujeitos africanos e afrodescen-
descendentes tivemos nas lutas pela des/colo-
tes principais da história moderna: desde
dentes como não humanos ou menos humanos.
nialidade e libertação! Para isto é necessário
a economia mundial capitalista e a sobre-
Em contraponto, a política afro tem sido uma
calibrar a centralidade do racismo na história
ex ploração e ma rg ina li zação econôm ica
espécie de Humanização que sempre implicou
moderna e no mundo em que vivemos.
das massas traba lhadoras, camponesas e
discursos próprios e profundos de liberdade
Agosto de 2011
27
socialismo e democracia e, portanto, tem sido uma força
foram fundamentais para forjar democracia
África do Sul que lhe deram a liderança política
progressista na história da humanidade. A
não apenas aos afrodescendentes, porém para
contra o racismo e pela igualdade racial na maior
política afro sempre foi uma afirmação de vida
a humanidade em geral.
onda de movimentos anti-sistêmicos que teve o
O segundo momento, nos anos 1920 e 1930,
mundo. Um bom exemplo é como nos Estados
durante a grande de-
Unidos a insígnia do “poder negro” chegou a
pressão, revoluções
traduzir-se em “poder feminista”, “poder verme-
na China, Méx ico e
lho” (significando indígena) e “poder amarelo”
Rússia e g ra ndes
(significando asiático). O movimento negro de
g uer ras ocidenta is,
libertação dos anos 1960-70 nos Estados Unidos
floresceu outra onda
elaborou uma política que vinculou o racismo
global de movimen-
com o capitalismo e o imperialismo que se expres-
tos afro. A chamada
sou não apenas em organizações radicais como
forma e conteúdo ao racismo através de toda a
“questão negra” foi debatida nas Internacionais
os Panteras Negras e a Liga dos Trabalhadores
história moderna.
contra os regimes de terror e morte que confrontamos desde o holocausto da escravidão até a pluralidade de formas de violência racial (econômica, ecológica, epistêmica, cultural, sexual e
“A política afro sempre foi uma afirmação de vida contra os regimes de terror e morte que confrontamos desde o holocausto da escravidão até a pluralidade de formas de violência racial”
política) que deram
Comunistas onde brilharam figuras como o
Negros Revolucionários, assim como, no último
Esta espécie de autoafirmação de nossa hu-
Caribenho CLR James advogando por uma com-
Martin Luther King que ligou a oposição à Guerra
manidade e protagonismo (político, cultural e
binação de organização própria pan-africana
do Vietnã e a luta contra o racismo com protestos
intelectual) sempre foi de caráter não só local
em conjunto com participação afro nos partidos
a favor da democracia econômica. Fanon, quem
senão diaspórico e global. Os pan-africanismos
e em alianças socialistas, nacionais e interna-
foi uma das grandes figuras políticas e intelectu-
históricos surgiram e floresceram em 4 conjun-
cionais. Também foi o momento das lutas contra
ais de sua época defendeu com claridade a relação
turas histórico-mundiais onde os afrodescen-
a intervenção imperialista ocidental na Etiópia,
necessária entre lutar contra o racismo ao mesmo
dentes estivemos a frente das transformações
do movimento de Garvey que reuniu milhões
tempo em que nos mobilizamos pela libertação
históricas pela descolonialidade e libertação.
de afrodescendentes através do mundo, do
nacional e o socialismo.
Cada uma representou épocas de envergaduras
movimento cultural e político da negritude que
No texto curto deste artigo não posso fazer
histórico-mundial, momentos de crises e por
nasceu no mundo francófono e do renascimento
um balanço mínimo em que desembocou aquela
isso de grande intensidade de lutas, de revolu-
do Harlem. Há pouco falava com o intelectual
onda de movimentos sociais, porém considero
ções e mudanças profundas.
afrocubano Fernando Martinez Heredia da
importante dizer que deve ser motivo de reflexão
O primeiro foi o das revoltas de escravizados
necessidade de escrever e estudar a história dos
para nós como os êxitos relativos do movimento
e a quilombagem cujo cume foi a Revolução
afro-latino-americanos e afrocaribenhos na-
negro dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos
Haitiana, a maior revolução social de sua época
quele momento-cha-
que significou a invenção da des/coloniali-
ve dos movimentos
dade e da negritude como identidade política
políticos, culturais e
e projeto de libertação. Ali se assentou uma
intelectuais tanto na
dupla estratégia política afro: por um lado a
história da esquer-
quilombagem – é dizer criar formas e espaços
da em gera l como
próprios de libertação “casa adentro” (para usar
do mundo afro em
o conceito do afroequatoriano Juan Garcia); e
particular. Em geral,
por outro lado a estratégia de democratizar a
apesar das diferenças significativas, por exem-
condições de opressão e desigualdade, ainda
democracia ocidental, demonstrado no fato de
plo, entre DuBois e Garvey, os pan-africanismos
que o racismo siga vivo e forte como mostram os
que Haiti foi a única revolução da época onde
de princípios do século XX se opunham tanto
movimentos de ultradireita contra o presidente
se cumpriu verdadeiramente a Declaração
ao racismo como ao imperialismo. Nem todos
Obama. Muitas pessoas, incluindo Doudou
Universal dos Direitos Humanos do Homem e
eram anticapitalistas e antipatriarcais, porém
Diene quem foi o encarregado oficial de dar se-
Cidadão, de 1789. De aí em diante se assentou
o pan-africanismo radical foi também desde o
guimento à Agenda de Durban, reconhecem que
uma política afro como pilar nas políticas de
princípio uma das fontes maiores das lutas por
a América Latina é a região do mundo onde os
des/colonialidade e libertação por meio de uma
justiça social e equidade de gênero.
princípios e as políticas contra o racismo que se
lograram criar uma
“O movimento negro de libertação dos anos 1960-70 nos Estados Unidos elaborou uma política que vinculou o racismo com o capitalismo e o imperialismo”
classe média e uma classe política afro, ao mesmo tempo em que as maiorias das classes trabalhadoras e setores marginalizados seguem em severas
aprovaram em Durban tiveram maior influência
dupla estratégia: por um lado a quilombagem,
O terceiro momento, o dos anos 1960-70 foi
a criação de espaços próprios de liberdade,
quando começou a crise que vivemos hoje. Aqui
expressão cultural e práticas comunitárias de
se destacam duas grandes lutas antirracistas,
A insurgência de movimentos de afro junto
solidariedade; e, por outro, os movimentos
o movimento de libertação negra nos Estados
com a emergência de política de equidade racial
sociais, políticos e culturais e intelectuais que
Unidos e o movimento contra o Aparttheid na
através da região cuja expressão mais avançada
28
tanto aos movimentos como para os governos.
Ano III • Número 6
socialismo
é o Ministério da Igualdade Racial no Brasil,
capitalismo, o imperialismo e o patriarcado, o
integração regional como a Aliança Bolivariana
criaram o que denomino como um campo po-
tema da política de des/colonialidade e liberta-
das Américas (ALBA), as cúpulas ecológicas e
lítico afrodescendente na América Latina que
ção. Por isso, a Agenda de Durban, mesmo que
pela soberania alimentar e a Marcha Mundial
entrelaça – de formas complexas e muitas vezes
sumamente necessária, não é suficiente porque
de Mulheres. Dois assuntos fundamentais para
contraditórias – movimentos com estados e ins-
a luta contra o racismo tem que se articular com
nós são as gestões para desenvolver relações de
tituições transnacionais de tipo diverso desde as
as lutas contra outras formas de opressão com as
solidariedade e amizade com os povos do con-
ONG como “global rights” até as instituições do
quais está entrelaçada. Dita perspectiva política
tinente africano e a reconstrução do Haiti com
capital transnacional como o Banco Mundial e
tem que recuperar a melhor tradição dos movi-
base nos princípios e nas práticas da irmandade
o Banco Interamericano de Desenvolvimento
mentos emancipadores da África e da Diáspora
afrodiaspórica e a diplomacia dos povos.
(BID) e do estado imperial como United States
Africana. Isto nos leva ao tema da relação entre
Na arena da luta contra o racismo, entendida
Agency for International Development (USAID).
o chamado socialismo do século XXI, o racismo
como prática política de libertação, uma das
Uma maneira de deslindar diferenças na política
e a questão etnicorracial.
tarefas cruciais é construir relações estratégicas
afroamericana norte-sul é descrevê-la como um
A tradição radical afro resplandece por sua
entre o movimento afro e o movimento indígena.
campo de contendas entre diferentes projetos
ausência ou aparece apenas de maneira margi-
Para isso é necessário tanto reconhecer as con-
de solidariedade e poder afroamericano onde
nal nos discursos tanto políticos como intelectu-
dições comuns de opressão racial, social e cul-
competem um pan-africanismo conservador que
ais do socialismo do século XXI. Portanto, uma
tural, como respeitar as diferenças e valorar os
pode servir de ponta de lança aos piores projetos
das tarefas urgentes no que Boaventura de Souza
aportes de cada coletividade histórica. Tocando
de poder imperial (o que Chucho Garcia cataloga
Santos chama de “reinvenção da emancipação”
este tambor na chave afrodescendente, dizemos
como afrodireita); um pan-africanismo neolibe-
é recuperar a memória do pan-africanismo radi-
que se bem é positivo esgrimir posturas contra
ral que advoga por projetos como Tratados de
cal e colocar as lutas contra o racismo e particu-
o capitalismo neoliberal em favor de formas de
Livre Comércio (TLC) e o Plano Colômbia acom-
larmente contra o racismo antinegro no centro
vida material e espiritual indígena que se tradu-
panhados com fundos e programas para os afro
do que chamamos de nova política de des/
zem como Suma Kawsi ou “bem viver”, também
em contraste com um pan-africanismo radical
colonialidade e libertação. É imperativo com-
é necessário afirmar imaginários, linguagens e
que pode trabalhar em favor do surgimento de
bater a amnésia coletiva sobre a tradição racial
práticas análogas na África e na Afroamérica.
um projeto de des/colonialidade e libertação.
afro ou pan-africanismo revolucionário em
Isto implica utilizar e disseminar nossos pró-
Aqui não podemos apresentar com claridade
suas vertentes políticas, intelectuais, culturais.
prios conceitos como Ubuntu que seria um
mínima o espectro de atores, ideologias e pers-
Como bem dizia Francisco Martinez Heredia em
equivalente ao “bem viver” em linguagem sul-
pectivas políticas em jogo, porém a par de as-
uma conferência em Cuba, “Se não se combate
africana, ou Uramba que significa o comunita-
suntos desta índole que são absolutamente per-
o racismo não pode haver socialismo do século
rismo igualitário da grande comarca afropacífica
tinentes a nossa apresentação. Algo importante
XXI” ao que somamos que sem a importância
que abarca Panamá, Colômbia e Equador.
a dizer é que é necessário fazer um balanço de
dos movimentos negros como protagonistas na
êxitos e deficiências das políticas etnicorraciais,
construção histórica da democracia substantiva
as quais é importante reconhecer que ainda
e da justiça social, seguimos sumidos na negação
Encerro este artigo fazendo um convite a
são marginais e que operam em um contexto
construída pelo racismo antinegro ainda que
discutir duas interrogações-chave. A primeira é:
de capitalismo neoliberal que gera cada vez
tenhamos as melhores intenções.
quais são os desafios e perspectivas que temos
Conclusão
mais opressão e desigualdade para as maiorias
Nós, como comunidade afroprogressista,
os afrodescendentes na situação atual de crise
afrodescendentes. Em outras palavras, se não há
temos a maior responsabilidade de pôr em
da civilização ocidental capitalista? A segunda
mudanças de fundo nas estruturas de poder po-
relevo esta tradição enquanto nós nos colo-
é: em vista desta disjuntiva, que queremos e que
lítico e econômico, a eficácia das políticas serão
camos na vanguarda dos espaços e terrenos
podemos conquistar da declaração das Nações
muito limitadas e isto traz de entrada o tema da
de luta mais importantes desta época, como
Unidas de 2011 como o ano internacional dos
relação entre lutar contra o racismo e contra o
são os processos do Fórum Social, processo de
afrodescendentes?
Agosto de 2011
29
socialismo Faço o convite enumerando três dos desafios
convocou a todas e a todos no encontro de
expresso nos lamentos e nos blues, como também
principais que entendo temos para avançar
Quito. Foi claramente uma oportunidade para
na “resistência rasta” de Bob Marley e o hip-hop
simultaneamente nas lutas contra o racismo e
visibilizar e celebrar nossas memórias, histórias,
politizado que se converteu em um movimento
a favor de uma ordem social mais justa e igua-
culturas e subjetividades, como também para
político afrojuvenil em escala global.
litária, são estas:
nos organizar e mobilizar contra o racismo,
Dentro de nossas práticas des/coloniais e
1) Como superar a brecha entre a mudança
a favor da equidade racial e, de maneira mais
libertárias é fundamental destacar o afrofemi-
legislativa (inclusive constitucional) e alcançar
geral em favor do projeto de des/colonialidade
nismo, uma larga tradição que se remontarmos
transformações nas configurações de poder
e libertação que é fundamental tanto para nós
ao século XIX, recordaremos a eloquência de
social com o fim de combater os múltiplos
como para a região e a humanidade em sua
Sojouner Truth que perguntava ironicamente
modos de opressão (de classe, raça, gênero,
plenitude.
ao movimento feminista branco dos Estados
sexualidade) e do dano e destruição (ecologia,
Neste sentido, esta também foi a ocasião para
Unidos “Não sou uma mulher?”, se manifestou
guerra, de saúde física e mental etc. ) que se
o debate, o que implica demarcar diferenças e
com particular eficácia política na liderança do
aprofunda com a crise da civilização ocidental
afirmar com certeza a política afroprogressista
feminismo afro-latino-americano em colocar
capitalista em sua fase neoliberal. Isto também
na melhor tradição do pan-africanismo radical
a relação do racismo e do sexismo a frente da
supõe definir e executar estratégias de como
que supõe uma visão crítica tanto “casa adentro”
Conferência Mundial das Mulheres de 1992, em
conjugar o reconhecimento cultural e etnicor-
como “casa afora”. Sugiro que devemos valorar
Beijing, e cuja força em nossa região se revelou
racial com a redistribuição do poder e da riqueza
as possibilidades que abrem gestos simbólicos
recentemente com grande vigor no impacto
na sociedade.
oficiais como a declaração de 2011 como o Ano
público da recente visita de Ângela Davis à
2) O segundo desafio aqui é como vincular a
Internacional dos Afrodescendentes, ao passo
Colômbia. Também é sumamente importan-
política prática (ou política do possível) com
que não podemos esquecer das vias de mudança
te recordar e ressaltar a memória radical do
uma visão transformadora que nos dê um
sustentadas por iniciativa das instituições do
continente Africano manifesto nos legados de
horizonte de futuro. Como já sugerimos, as
establishment internacional.
figuras políticas como Amílcar Cabral, Patrício
melhores tradições do pan-africanismo ra-
Para isso suponho uma dupla estratégia,
Lumumba, Kwame Kruma e o projeto de Ujama
dical sempre combinaram o pragmatismo do
desde dentro e desde fora de instituições estatais
ou Socialismo Africano que articulou Julius
poder com uma visão utópica de libertação
e multilaterais para, por um lado, abrir espaços
Nyerere na Tanzânia do qual temos que apren-
não apenas para o mundo afro porém para
dentro delas e por outro lado fortalecer o nível
der suas lições tanto positivas como negativas.
a humanidade em geral, um projeto de nova
de organização, autonomia e empoderamento
Para esta espécie de revitalização e visibili-
humanidade que sempre esteve no coração da
dos movimentos e suas redes em nível local,
zação de nossa liderança nos projetos de eman-
política afroprogressista. Isto implica sabedo-
nacional e regional. Em termos institucionais,
cipação é importante organizar eventos grandes
ria no desenho e na implementação de política
o ano de 2011 deve ser um passo em diante aos
e visíveis como o Fórum Social Afrodescendente
a curto, médio e longo prazo, o que supõe saber
objetivos de estabelecer primeiro uma década,
que há planos de se realizar no Brasil em 2011.
distinguir entre reformas neoliberais que
e, em seguida, um fórum permanente de afro-
Como sabiamente dizia C. L. R. James, as lutas
reproduzem o status quo e reformas radicais
descendentes nas Nações Unidas. Obviamente,
e os projetos de libertação da África e os afro-
que busquem desafiar e derrubar a ordem im-
estes são objetivos institucionais-chave que
descendentes sempre foram os eixos centrais
perante da colonialidade do poder.
serão vitórias importantes para empunhar e
da mudança revolucionária no mundo inteiro
3) O terceiro objetivo é desenvolver uma política
realizar a Agenda de Durban contra o racismo e
e 2011 deve ser ocasião de revitalizar o nosso
de alianças e coalizões que permita acionar os
mais além dela.
papel de liderança
.
múltiplos nós de opressão com diversos laços de
Desde a perspectiva dos movimentos e de
libertação, ou combater as cadeias da colonia-
nossas comunidades de base, poderia ser um
Augustin Lao Montes é PhD em Sociologia pela
lidade com os fios da solidariedade para tecer
momento-chave para a educação política, a
Universidade de Nova Iorque e Binghamton.
“todas nossas lutas”, como diz uma insígnia dos
conscientização, a mobilização própria e o desen-
Seu campo de estudos inclui: história mundial
movimentos sociais venezuelanos. Isto implica
volvimento de alianças e coalizões para nos ins-
da sociologia e da globalização, sociologia po-
ver as reivindicações etnicorraciais em relação
talarmos solidamente nesta nova onda de trans-
lítica (especialmente os movimentos sociais
à diversidade de formas de injustiça: sexual,
formações históricas que faz da América Latina
e a sociologia do estado e do nacionalismo),
ecológica, de gênero, cultural, ética, epistêmica
a região mais dinâmica e promissora do planeta.
identidades sociais e desigualdades sociais,
– que se correspondem às diversas dimensões da
Isto significa cultivar nossas melhores tradições
sociologia da raça e etnia, sociologia urbana,
crise da civilização ocidental capitalista.
libertárias que se expressam em todo o tecido
Diáspora Africana e Estudos Latinos, sociologia
A pergunta do que queremos e o que po-
cultural desde os “saberes cantados” (como diz
da cultura e estudos culturais, teoria contem-
demos conquistar em 2011 obviamente nos
o intelectual afrocolombiano Santiago Arboleda)
porânea e crítica pós-colonial.
30
Ano III • Número 6
Racismo
“Faxina étnica” ou “limpeza racial”: um novo paradigma de controle racial da população negra no Brasil Por Fábio Nogueira1 Joselício Júnior2 Gilberto Batista Campos3 Marco André da silva4 Racismo, “capitalismo flexível” e controle racial da população negra O racismo é uma prática social com efeitos perversos na vida de bilhões de seres humanos espalhados pelos cinco continentes do planeta (sejam povos originários, afrodescendentes, árabes, ciganos, judeus, orientais etc. ). A prática do racismo é estrutural e apoiada pelo Estado e por seus aparelhos ideológicos (meios de comunicação, igreja, escola etc. ) no sistema social e político capitalista. Ou seja, o racismo é o efeito da manipulação ideológica da “raça” como uma categoria social, funcional, estruturante e estruturada a partir de práticas sociais com legitimidade e aceitação no interior de nossa sociedade que, com efeito, produz desigualdades funcionais e a reprodução da ordem capitalista. Contrarrestar esta tendência é nos opor ao caráter “racial” do capitalismo e entender a denúncia contra o racismo – para além de
entre classe e raça. O processo de racialização e
nas filas dos hospitais, pela falta de socorro e
uma luta setorial – como parte de um projeto
segregação racial do espaço urbano foi (e ainda
tratamento adequado, nas enchentes e tragé-
mais amplo de luta pela construção de uma
é) extremamente violento e complexo.
dias naturais causadas pela omissão do Estado
nova sociedade socialista, policultural, sem
Em uma de suas frentes, temos a políti-
e da defesa civil, os surtos de dengue e outras
racismo e discriminações. Isso só é possível,
ca de extermínio e genocídio da população
enfermidades que incidem majoritariamente
por sua vez, quando reconhecemos o caráter
negra que nomeamos de extermínio direto
na população negra e pobre.
“racial” e de “classe” da dominação capitalista
e extermínio indireto. O extermínio direto
Em uma segunda frente, o encarceramen-
que, em nossa formação econômico-social,
é materializado nas ações do Estado contra
to em massa da população afrodescendente
mais que se sobrepor, se fundem.
moradores destes territórios. É uma violência
(em enorme desproporção se comparada com
A política de controle racial da “faxina
estatal (ao contrário da social provocada, por
a população branca). As cadeias brasileiras
étnica” ou “limpeza racial” define – para negros,
exemplo, pelo tráfico de drogas). Ela encontra
parecem-se enormes navios negreiros, depó-
pardos, morenos e mulatos – quais são os ter-
legitimidade nas políticas estatais de repressão
sitos de carne humana em que se inscreve na
ritórios em que podem viver e a forma como
ao tráfico de drogas e de contenção da violência
pele negra sua associação necessária com o
devem viver. Favelas, periferias, subúrbios e ala-
urbana, cujo maior exemplo são as Unidades
crime. É impossível fugir ao estigma da raça:
gados são fenômenos que revelam, no território
de Polícia Pacificadora (UPP). O extermínio
a prisão é a instituição consagrada para con-
urbano, a unidade entre capitalismo e racismo,
indireto, por sua vez, ocorre pela morte lenta
trolar a pressão social e racial do proletariado
Agosto de 2011
31
Racismo urbano e rural. Logo, a elite dominante associa
e despejo são manifestações do racismo
estatal e massas subalternizadas e estigmati-
o criminoso ao seu lugar de origem: ele vive na
contemporâneo. A precarização da relação
zadas (negras e indígenas).
favela, tem amigos na favela, se comporta como
de trabalho (com o aumento do número de
O sociólogo Loïc Wacquant ao estudar as
um favelado etc. Raça, território e criminali-
“bicos”, terceirizações, informalidade e reti-
políticas de “tolerância zero” contra pequenos
dade passam a ser
rada de direitos dos
crimes como instrumento de uma repressão
confundidas como
t r a ba l hadore s) e a
mais geral, mostra que a combinação entre o
u ma coisa só : “se
“as políticas de remoção e despejo são
destruição de direi-
aumento do aparato repressivo, a liberalização
é negro e favelado,
outra manifestação do que denominação
tos sociais (moradia,
econômica e o abandono das políticas sociais
necessariamente é
controle racial por uma política estatal
saúde e educação) de-
formam a base de um Estado penal em que o
criminoso”. O en-
de ‘faxina étnica’ ou ‘limpeza racial’.”
finem um novo modus
sistema punitivo tem como finalidade adequar
carceramento, por
operandi na relação
os indivíduos às novas condições econômicas
efeito, contribui na
ent re gover nos e o
que se caracterizam pela degradação das re-
definição dos territórios negros urbanos: trata-
povo negro. O racismo se reorganiza de acordo
lações de assalariamento e a ausência de uma
se de uma malha de ruas, casas e barracos que
a necessidade dos ricos e das elites. Nos dias
rede de proteção social, além de excluir os
unem negros “marginais” ou em processo de
de hoje, a “faxina étnica” ou “limpeza racial”
“indesejáveis” (WACQUANT, 2001). Os Estados
“marginalização”.
manifesta-se no encarceramento em massa,
Unidos e a Inglaterra são os dois modelos de
Por fim, as políticas de remoção e despejo
o extermínio do povo negro e a remoção/des-
Estado penal analisados por Wacquant em que
são outra manifestação do que denomina-
pejo das populações pobres de seus territórios
os alvos desta política repressiva são os negros,
ção controle racial por uma política estatal
urbanos. A nossa luta, portanto, deve ocorrer
hispânicos, turcos, marroquinos e imigran-
de “f a x i n a ét n ic a”
tes em gera l. Seu
ou “limpeza racial”.
principal reflexo são
Se uma coletividade
discursos governa-
negra vive, de forma
ment a i s e de au-
precária, em uma área
toridades técnicas
que passa a ser valo-
em torno das “áreas
rizada pela especula-
sensíveis” nas quais
ção imobiliária ou de
os contingentes po-
um novo empreendi-
pulacionais relati-
mento imobiliário, o
vos a estes grupos
Estado age de forma
são expressivos.
violenta para expulsá-la deste território. Com
em três frentes: contra encarceramento e
Observamos, no caso brasileiro, que entre
isso, empurram os negros para longe do centro
extermínio do povo negro e o atual modelo
1990 e 2010, período que coincide com o início
e dos bairros nobres, de maioria branca, rica e
de estado punitivo; por políticas de acesso à
das contra-reformas neoliberais (governos
de classe média alta, configurando territórios
saúde pública de qualidade para o nosso povo
Collor, Itamar, FHC I e II e Lula I e II), um
“branqueados” que só podem visitar na condi-
e a legalização do aborto e por uma política
enorme salto do número de presos: de 90.000
ção de empregados domésticos ou prestadores
habitacional justa e solidária, contra os des-
para 494.237. Um aumento em escala exponen-
de serviço. O poder público, por sua vez, tem
pejos, o racismo ambiental e pela valorização
cial de 549%! Logo, existe uma correlação entre
um papel fundamental neste processo: ele faz
dos territórios negros urbanos.
a proporção de presos e a retirada da rede de proteção social do Estado brasileiro.
os investimentos em infraestrutura, financia as obras e integra-se à lógica do mercado especu-
Encarceramento em massa
lativo e imobiliário. Os megaeventos – como a
de negros e pobres
Da política de “tolerância zero” contra pequenos crimes se partiu para uma repressão
Copa do Mundo e as Olimpíadas – retratam este
a política de controle racial da “fa xina
geral e indiscriminada: a repressão contra o
movimento em que capital estatal e privado se
étnica” ou “limpeza racial” é, em nosso ponto
povo, a “liberalização” da economia para be-
articulam em torno de novos territórios que –
de vista, a prática social de um racismo que
neficiar os ricos e os poderosos e a ausência de
dentro do processo de valorização capitalista
estrutura o atual quadro de desigualdades do
políticas de educação, saúde, moradia e cultura
– remove violentamente as massas negras e
capitalismo flexível (SENNET, 2006). A pre-
para o povo pobre formam a base de um Estado
pobres de seus territórios urbanos originais.
carização das relações de assalariamento e a
que só quer punir e, desta maneira, fazer com
Portanto, encarceramento em massa, ex-
desconstrução dos direitos sociais universais
que as pessoas aceitem estas condições de vida
termínio da juventude e políticas de remoção
definem um novo tipo de relação entre poder
marcadas pela pobreza, pela discriminação e
32
Ano III • Número 6
Racismo pela violência. Os governos escolhem como
resistência seguidos de morte”, verdadeiras le-
morrem 68 mil mulheres no mundo vítimas
alvos destas políticas as “áreas sensíveis”
galizações do massacre urbano nos territórios
de aborto inseguro, de acordo com o Banco
(favelas, subúrbios, alagados, periferias, co-
negros. O extermínio de nossa juventude leva
Mundial. Em média, a invasão estadunidense
munidades carentes etc. ), onde o povo negro
ao confinamento territorial: é uma política
no Iraque mata 16 mil pessoas por ano. Ou seja,
é maioria absoluta, e procura manter o controle
para manter os negros longe da riqueza da
o aborto inseguro vitima 4 vezes mais do que
do nosso povo na base da violência policial e
burguesia racista.
o conflito armado. Do total, 30 mil mulheres
algumas políticas sociais, poucas e insuficien-
Por outro lado, a população negra é a prin-
são da África. A criminalização do aborto
tes, que não mudam a realidade vivida por nós.
cipal vítima da epidemia de crack que elimina
contribui para nosso extermínio como fruto
O aumento no número de presos não significou
jovens negros e demais usuários. Por ser barata
do racismo institucional, pois são nos bairros
mais segurança e nem redução das desigual-
esta droga é consumida por pessoas de baixa
periféricos e nos hospitais públicos que grande
dades sociais: o Estado brasileiro aprisiona em
renda e, inevitavelmente, leva à morte, seja
parte das mulheres negras morrem por falta
massa, pois não tem política social ou projeto
pelas ações de extermínio das polícias e das
de atendimento referente a aborto ilegal. A
que inclua estas pessoas.
milícias urbanas, pelo próprio tráfico em co-
juventude feminina negra é a maior vítima de
brança de dívidas ou pelas debilidades físicas
morte materna.
Extermínio do povo negro
decorrentes. Esta situação contorna-se apenas
No contexto de uma sociedade de classes,
A política de extermínio do povo negro
com políticas públicas na área de saúde, no
fortemente racista, como a nossa, a política
tem duas faces: o extermínio por meio do as-
sentido da prevenção ao uso e o tratamento
conservadora de criminalização das mulheres
sassinato decorrente da violência policial ou
adequado e humanitário, pelo sistema de
que abortam atinge diretamente as mulheres
dos conflitos urbanos e o deixar morrer das
saúde público, destes dependentes químicos.
da classe trabalhadora, sobretudo as negras
filas dos hospitais e,
e empobrecidas, com
ainda, da não legali-
ba i xa escola ridade.
zação do aborto.
Em Salvador, são as
A pr e s enç a de
jovens negras as maio-
um estado que
res vítimas do aborto
oprime a população
feito de forma ilegal,
negra é constante
insegura e solitária.
em nossa história.
(Fontes: IMAIS 2008)
Ela se ma n ifesta
Para completar este
n o s “c a v e i r õ e s ”,
quadro de extermínio
no Bope (Batalhão
“indireto”, obser va-
de
mos o aprofundamen-
Operações
Especiais) e nas ocupações de morros e fave-
A criminalização do aborto extermina
to de destruição do Sistema Único de Saúde. O
las. De acordo com o IPEA, 77,4 jovens negros
as mulheres negras. Segundo pesquisa do
estado burguês e racista deixa morrer, nas filas
a cada 100 mil são assassinados violentamente
Instituto Mulheres pela Atenção Integral à
dos hospitais, sem atendimento de qualidade,
pelo Estado brasileiro a cada ano. O Estado
Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
o povo negro, indígena e mestiço. Afinal, para
constrói uma imagem de que os jovens assas-
(IMAIS), sobre a realidade do aborto inseguro
os que detêm a riqueza e o controle do Estado
sinados são indivíduos que não tiveram uma
na Bahia, a prática de aborto clandestino é
para que cuidar da saúde do povo negro? É
postura correta: são transgressores da ordem,
um grave problema de saúde pública. O Jornal
preciso, para as elites, eliminar os “descartá-
bandidos, vagabundos. Além disso, tais ações
Brasil de Fato, de 07 a 13 de maio de 2009,
veis”. É por isso que lutamos, pois queremos
se baseiam no procedimento de “autos de
apresentou números alarmantes: anualmente
viver e sonhar!
Contra os despejos, Tabela 1 – Óbito materno por grupo de causas,
o racismo ambiental e pela valorização
raça/cor no ds Cabula/Beirú (salvador-BA), 2000 a 2004
dos territórios negros urbanos
OBSTÉTRICAS DIRETAS
OBSTÉTRICAS INDIRETAS
As forças racistas e capitalistas através da
ABORTO
Branca
Negra
IGN*
Branca
Negra
IGN
Branca
Negra
IGN
01
10
0
0
1
0
0
3
1
Fonte: Distrito Sanitário Cabula/Beirú. In: Dossiê A Realidade do Aborto Inseguro na Bahia (2008) *Ignoradas
repressão estatal a serviço dos interesses da burguesia aceleram e aprofundam o racismo ambiental e a segregação nas cidades brasileiras: querem confinar o povo negro ao gueto, à
. Agosto de 2011
33
Racismo favela, à periferia ou subúrbio. Em Salvador, o
ambulantes, moradores em situação de rua,
Por tudo isso é necessário falar em “faxina
governo propôs o Plano Diretor (PDDU) para
mototaxistas, moradores de favelas e cortiços
étnica” e em “limpeza racial”. Como radicais,
apoiar a fragmentação da cidade para que
tornaram-se alvo do governo. Este exemplo se
denominamos o fenômeno pelo nome, na raiz
grandes empresários escolham as partes a
repete em outras capitais: despejos e remoções
do problema. Entendemos, evidentemente, que
serem vendidas e expulsar o povo negro dos
violentas da população negra são os principais
o capitalismo brasileiro combinou as opres-
seus territórios tradicionais. Querem limpar
instrumentos desta política. Este cenário tende
sões de raça e gênero e a exploração de classe.
as cidades brasileiras e expulsam o povo
a se agravar com os megaeventos como a Copa
É, portanto, um fenômeno singular de uma
do Mundo e as Olimpíadas. Por sua vez, o racis-
realidade singular. Denunciar e combater um
mo cultural ajuda demarcar territórios raciais:
dos mores da dominação burguesa é dever de
o preconceito ao funk e o hip hop (em que se
todos os que se identificam com o povo negro
desclassifica a cultura, de forma racista, como
e suas aspirações de liberdade e reconheci-
de “preto favelado”, logo, sem “qualidade” e de
mento coletivo.
“marginais”) justifica a prática de todo tipo de violência e racismo.
Ao combate da faxina étnica é necessário um conjunto de políticas públicas que tenham
As populações quilombolas, por sua vez,
como marco uma cidade racialmente mais justa
sofrem uma série de agressões, físicas e men-
e integrada. Se, nos centros urbanos de nosso
tais, nos territórios em disputa, numa situação
país, pequenas faixas do território urbano, de
de absoluta vulnerabilidade. Os atores em con-
maioria branca ou totalmente branca, mono-
flito são de um lado as populações quilombolas
polizam os equipamentos públicos (melhores
totalmente fragilizadas, e do outro latifundi-
escolas, hospitais, centros de comércio, lazer,
ários e seus capangas, a guarda armada das
recreação, produção e difusão cultural) em
grandes empresas do agronegócio (a exemplo
detrimento da enorme massa negra desassis-
da Aracruz, entre outras) e as polícias estadu-
tida e esparramada em territórios em que o
ais. Em total desvantagem estas populações
único equipamento público é uma unidade da
estão desaparecendo seja pela expulsão de suas
polícia, isto é sinal de que ainda estamos muito
terras e pela desestruturação do universo cul-
longe de modificar esta realidade
.
tural, prejudicando, entre outros, a afirmação da identidade afrodescendente.
Fábio Nogueira Doutorando em Sociologia na USP e professor assistente do Instituto
Considerações finais
Multidisciplinar de Saúde da UFBA.
Estamos convencidos que, nos dias atuais,
Joselício Júnior Jornalista e pós-graduando
de desindustrialização da economia e recolo-
em Comunicação e Cultura do Centro de
nização do pensamento social brasileiro, em
Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e
que o imperialismo penetra com mais força
Comunicação.
e violência em nossa sociedade, o racismo –
Gilberto Batista Campos Historiador.
fenômeno associado à ordem social burguesa
Marco André da Silva Grêmio Recreativo
– manifesta-se com toda sua intensidade no
Escola de Samba Canários das Laranjeiras,
território urbano.
Rio de Janeiro.
A vanguarda social combativa do movinegro para cada vez mais longe dos centros
mento negro, dos movimentos populares e
Referências
das capitais.
das forças progressistas contribui para poli-
INSTITUTO MULHERES PELA ATENÇÃO INTEGRAL À
A política racista do Choque de Ordem, no
tizar o conceito de território negro urbano:
SAÚDE, DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS.
Rio, é expressão do processo de faxina étnica
ele pode ser uma ferramenta poderosa de
Dossiê “A realidade do aborto inseguro na Bahia: a ilegali-
contra os territórios negros. Seu alvo era, no
afirmação dos afrodescendentes que vivem
dade da prática e seus efeitos na saúde das mulheres em
começo, o proletariado negro formado por
nestas á reas com o objet ivo de fa zer um
Salvador e Feira de Santana”. Salvador: IMAIS, dez. 2008.
vendedores ambulantes que têm as suas mer-
contraponto às representações racistas que
SENNET, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de
cadorias – meio de sustento – saqueadas por
associam o território em que vivem à crimi-
Janeiro: Record, 2006.
agentes do estado burguês e racista. Hoje avan-
nalidade, ao vício e à ausência de produção
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro:
çou seu aparato de violência: trabalhadores
artística e cultural.
Jorge Zahar, 2001.
34
Ano III • Número 6
histó istóRia
Palmares: uma repercussão política de quatro séculos na história brasileira Por Carlos Nobre
Assim, Palmares, em algumas especulações teóricas, passou a ser a “Tróia Negra” do Brasil
A África e suas diásporas incomodam quando
devido à resistência de seus integrantes em não
começam a lutar pela defesa de suas digni-
quererem mais ser escravos nas plantações de cana-de-açúcar dos engenhos nordestinos que
dades e liberdade humanas; quando reivin-
então começavam a ser explorados em grande
dicam a igualdade de tratamento, das opor-
escala pelos colonialistas2.
tunidades e do respeito de suas diferenças
Partindo deste pressuposto, Pa lmares,
culturais e identitárias. Incomodam quando
então, por suas dimensões estruturais, duração e organização interna, era natural que esta
tentam mais do espaço de inferioridade a
sociedade antagônica ao colonialismo provo-
elas predestinado para participar igualmente
casse estudos amplos e aprofundados sobre a
da distribuição do produto social, da estrutura
resistência afro e como este “reino negro”, como acentuou um historiador, no final dos anos
de poder e de todos os mecanismos simbóli-
1950, pôde se constituir como tal no Nordeste.
cos de superioridade, reservados ao segmen-
Mas não é essa disposição investigativa
to social eurodescendente da sociedade. Os
que encontramos na historiografia brasileira.
africanos e seus descendentes incomodam
Existem, de fato, apenas seis livros fundamentais sobre Palmares, alguns já esgotados
quando começam a buscar a recuperação de
e raros. Não à toa que militantes afro não
sua humanidade negada, sua história e a sua cultura destruída durante os séculos de escravização e colonização. Incomodam quando assumem, com orgulho, sua negritude e a
conseguem localizar obras sobre Palmares Há especialistas que afirmam que Palmares
nas bibliotecas, nos centros culturais ou nas
era um conjunto de 11, ou até 20 cidades ou
faculdades devido à raridade de obras a res-
mocambos, distantes um do outro até 30 qui-
peito deste quilombo colonial 3.
lômetros. Ali se engendrou uma sociedade livre
Então, por que inexistem obras com va-
reivindicam com cabeça erguida para sair da
da escravidão que enfrentou uma das nações
riadas linhas de pesquisa sobre este “reino
dependência cultural ocidental alienante e
mais poderosas do planeta naquela conjuntura
negro”? Por que os historiadores dão meia volta
histórica.
e evitam Palmares, se , de fato, na história colo-
da inferiorização contra eles forjada.
A sociedade palmarina, neste contexto, se
nial brasileira, este foi o grande ato político dos
Kabenguele Munanga, no prefácio do livro
tornou na história brasileira realmente um
marginalizados da época, isto é, a construção
“A África que incomoda”, de Carlos Moore (2008).
exemplo de grande significado, pois, construiu,
de outra sociedade, antagônica àquela, ibérica,
ao longo de quase um século e meio, uma res-
branca, voltada para o escravismo e ostentan-
peitável trajetória de enfrentamento ao colo-
do sofisticados aparatos penais para submeter
Nas Américas, inexiste mito ou saga igual
nialismo, com batalhas memoráveis, exibição
os escravizados (NOBRE, 2008)?
a Pa lma res, a mplo território na serra da
de artefatos bélicos e táticas de guerra capazes
Barriga, entre Alagoas e Pernambuco, que, de
de rivalizar com exércitos bem equipados de
1596 a 1716, segundo alguns pesquisadores,
outras sociedades da época.
Introdução
2. Ver as obras de Carneiro (1966) e Freitas (1988).
Em geral, poucos grupos afros têm acesso à história de
se transformou numa grande aglomeração
3.
de escravos fugidos colonialismo português.
Palmares devido a esta deficiência histórica de falta de mate-
Os palmarinos empreenderam uma das sagas
1. Neste caso, consultar as seguintes obras: Peret (1955), Carneiro
rial didático. Como frisamos, os livros sobre o assunto estão
negras mais dramáticas e transformadoras da
(1966), Freitas (1988), Freitas (1978), Alves Filho (1988), Gomes
esgotados e não são reeditados. Assim, a história de Palmares é
história continental.
(2005), Funari e Carvalho (2005).
somente do conhecimento de pequenos grupos afro.
Agosto de 2011
35
históRia Caso tivéssemos obras variadas a respeito
para ser explorada. Assim, a Corte acaba intro-
tráfico entre o porto de Recife e os entrepostos
deste tema, neste caso, Palmares mostraria o
duzindo a mão-de-obra escrava originária da
africanos avançava a cifra de 15.430 escravos.
lado protagonista de certa cultura africana no
África em terras nordestinas, vinda em grande
Assim, a presença de escravos da etnia jaga era
enfrentamento com a sociedade “europeia”. E
monta, antes do término do século XVI.
tão forte nos primeiros momentos do quilombo
não é por falta de documentos, pois, trata-se
Desse modo,
de um fato amplamente documentado pelos
começa o surgir o
colonialistas e pelos seus representantes nas
Nordeste açucareiro.
antigas capitanias do Nordeste da época .
Este novo sistema
4
que Palmares era cha-
“Caso tivéssemos obras variadas a respeito deste tema, neste caso, Palmares mostraria o lado protagonista de certa
mada de Angola Jaga ou Angola Pequena” (GOMES, 2005). Assim, em fins do
É de se notar que em cada um dos seis livros
exploratório institui
existentes sobre Palmares, cada historiador
novas regras, mo-
trouxesse documentos/fatos novos em relação à
delos, prog ra mas,
guerra dos escravos encastelados em Palmares.
padrões, tendo a vio-
Ou seja, ao se olhar para Palmares, surgem di-
lência estatal como pano de fundo para o suces-
num grande engenho do sul de Pernambuco.
versas linhas interpretativas para sua existência
so do negócio. Assim, o novo modelo, expresso
Armados de foices, chuços e paus, atacaram e
tal a força documental existente no Brasil, em
por meio de normas autoritárias, fortalece o
dominaram os feitores e os donos e escravos.
Portugal, na Holanda e até na Inglaterra 5.
controle penal do escravo através do uso da
Como perceberam que se permanecessem no
violência que se torna regra, e esta provoca a
engenho seriam atacados pelas tropas colonia-
reação do oprimido, por meio de diversos me-
listas, se embrenharam mata adentro, buscando
Após se apropria r do Brasi l, em 1500,
canismos como as fugas em grupos ou indivi-
povoações distantes do alcance dos senhores.
Portugal, então uma das maiores potências ma-
duais para regiões distantes dos engenhos ou
Assim, chegaram a uma região montanho-
rítimas da época, ao lado de Espanha, Inglaterra
ataques diretos aos senhores e seus prepostos
sa, fechada, áspera, conhecida apenas como
e Holanda, se preocupou inicialmente com a
(NOBRE, 2008).
Palmares, que começava na parte superior do
Nascimento de palmares
cultura africana no enfrentamento com a sociedade ‘europeia’.”
século XVI – 1596 ou 1597 –, ao redor de 40 escravos se revoltaram
exploração do pau-brasil por meio da mão-de-
Segundo Gomes (2005), em 1583, existiam
rio São Francisco e ia terminar sobre o sertão
obra de colonos. A valorização, por conseguinte,
66 engenhos somente em Pernambuco com dois
do Cabo de Santo Agostinho. Era uma região
do açúcar, no mercado mundial da época, muda
mil escravos, sendo que os índios perfaziam
cheia de árvores, rica em todo tipo de vegeta-
o panorama do modo de produção português,
dois terços desta força de trabalho empregada
ção, rios, montanhosa, onde nunca os portu-
que passa a explorar o novo produto com mais
na produção de açúcar, que, na América portu-
gueses chegaram a explorar, localizada entre
ímpeto, a partir de meados do século XVI.
guesa, se tornara na principal cultura monocul-
Serinhaém (Pernambuco) e Viçosa (Alagoas)
Para tal empreendimento, o sistema de ex-
tora. Entre 1583 e 1585, o número de engenhos
FREITAS (1978).
ploração colonial necessitava de mão-de-obra
dá um salto extraordinário no Brasil, oscilando
Assim, esse grupo de fugitivos – escravos da
em larga escala, pois, a cana-de-açúcar, com
entre 108 e 128 propriedades, mais da metade
etnia jaga, de Angola – começa a estabelecer a
valor elevado no mercado internacional, neces-
deles fincados em Pernambuco. Percebam,
primeira povoação. Mais à frente, os historiado-
sitava de longas faixas de terras e de muito braço
neste sentido, como este estado nordestino
res iriam chamar de Palmares, a terra dos es-
vem se tornando um concentrador de escra-
cravos. Deste local, os fugitivos pensaram mais
4. Santos (2006), ao discorrer sobre a personalidade de Zumbi,
vos. Estes, por seu turno, em sua maioria, de
longe: construir um modo de vida alternativo
mostra que existe farta documentação para se ampliar o entendi-
acordo com Gomes, são originários de Angola.
ao mundo colonial, onde, aliados à cultura que
mento do quilombo de Palmares. Aliás, existe sempre uma tradi-
Este historiador mostra que o tráfico vindo de
traziam da África, puderam permanecer livres
ção portuguesa de produção de vasta produção documental.
Angola injetou entre 1600 e 1625 ao redor de 150
da perseguição colonial e instaurar os primeiros
5. Os arqueólogos Funari e Carvalho (2005) mostram que
mil escravos, e 50 mil de 1625 a 1670. Levando
modos de vida organizada no mato por meio
Palmares era uma sociedade sofisticada, que mantinha relações
em conta também o contrabando de “almas
da criação de choças, do cultivo de mandioca e
com outros grupos étnicos ou europeus ou africanos. Assim, era
negras”, o número era outro, ou seja, entre
frutas, da pesca e da caça (CARNEIRO, 2000).
uma sociedade aberta para o mundo. Sustentam eles: “a identidade
1650 a 1700, na verdade, segundo Gomes, entre
Cinco anos depois da fuga dos 40 escravos,
palmarina ter-se-ia consolidado através de contatos e da fusão de
360 e 500 mil africanos de Angola entraram
o governador-geral de Pernambuco ordenou
diferentes culturas coloniais, européias e africanas” (p. 51).
no Brasil. “De 1620 a 1623, o volume anual do
a um colaborador, Bartolomeu Bezerra, que
36
Ano III • Número 6
históRia marchasse contra “os negros alevantados de
vista disso, não se preocuparam somente em
metodológico. Segundo ele, Palmares era cons-
Palmares”. A empreitada, no entanto, não deu
se defender, mas estabelecer um novo modelo
tituída de nove mocambos ou cidades distintas,
certo, pois os palmarinos se tornavam “invi-
organizacional de rebeldes ao então sistema
às vezes um deles ostentando o nome do chefe
síveis” no mato. Alguns “alevantados” foram
colonial. Assim, na serra da Barriga pontuava,
do microquilombo, os quais eram distantes
presos, é certo, mas a existência de Palmares
em termos populacionais, um sincretismo
ou próximos de Macaco, a capital do estado
se propagou pela região.
étnico onde se podia encontrar africanos, afro-
negro. Os demais mocambos eram Amaro,
brasileiros, mamelucos (filhos de brancos com
Andalaquituche, Acotirene, Tabocas, Zumbi,
Assim, mais escravos fugiam para Palmares, que engrossa sua população e logo os portugue-
índios), índios, bran-
ses perceberam que os antigos cativos estavam
cos pobres e mestiços
construindo um novo tipo de sociedade, com
em geral.
apoio de táticas de guerrilha, que crescia e desafiava o sistema colonial.
No entanto, este mesmo contingente
Osenga, Subpi ra,
“logo os portugueses perceberam que os antigos cativos estavam construindo um novo tipo de sociedade, com apoio de táticas de guerrilha, que crescia e
Dambraganga. G omes, por seu turno, durante o período de ex istência palmarina, destacou
Esta primeira fase palmarina (1596 a 1630)
populacional, contra-
teve duas expedições repressivas contra eles e
ditoriamente, podia
cerca de seis ataques dos negros às povoações
ser visto engrossando
próximas, segundo a perspectiva metodológica
também as tropas colonialistas encarregadas
tituíam o quilombo de Palmares. Subupira, por
de Alves Filho (1988, p. 13). Gomes (2005), por sua
de acabar com o quilombo e recuperar os fu-
exemplo, era a cidade onde os jovens apren-
vez, detalha que antes de Palmares já havia mo-
gitivos. Ou seja, a Coroa portuguesa também
diam a arte da guerra e os ferreiros produziam
cambos na Bahia e em Sergipe, mas nada igual
manipulava os sentimentos de liberdade e as-
as armas de combate (foices, machados, arcos,
aos acampamentos negros da serra da Barriga.
censão dos diversos grupos étnicos dos baixos
lanças, flechas etc. ). Documentos coloniais
O crescimento do território apropriado pelos
estratos de Pernambuco e Alagoas, prometendo
calculavam a população de Palmares entre 20 a
palmarinos também foi expressivo porque
a estes terras dominadas pelos negros (as mais
30 mil fugitivos. Segundo Alves Filho, Palmares
Pernambuco vinha sendo atingido por várias
férteis das duas capitanias), caso Palmares se
estava organizado em quatro instituições,
epidemias entre 1630 e 1660. “Fugir das plan-
extinguisse. Assim, terços, milícias ou grupos
quais sejam:
tações e dos engenhos em direção aos mocam-
de homens pobres (índios, mamelucos, crioulos,
a) Aparelho administrativo – incubia-se de
bos poderia ser também uma estratégia para
mestiços etc. ) também lutavam contra homens
coletar, à maneira de impostos, os excedentes
escapar da morte”, conta Gomes (2005, p. 53),
que tinham o mesmo status social que eles,
agrícolas destinados à troca com habitantes
detalhando uma das causas do surgimento dos
ou seja, os ex-escravos. Só que estes fugitivos
dos vilarejos coloniais. Como os palmarinos
mocambos em Pernambuco. Assim, durante
resolveram enfrentar diretamente as elites da
eram policultores, tinham mais capacidade
todo o processo de luta palmarina (1596-1716),
época, enquanto os demais se acomodaram em
produtiva para se abastecer e ter excedentes de
quase um século e meio, teria havido 66 expe-
servir ao senhor português.
troca, enquanto as capitanias viviam na misé-
desafiava o sistema colonial.”
ter havido cerca de 20 mocambos que cons-
dições repressivas ao quilombo e 31 revides
Os casos mais notórios dos estratos pobres
ria, expostas às epidemias e tendo alto grau de
das forças palmarinas aos povoados coloniais
inimigos dos palmarinos eram o Terço de
insalubridades nos povoados. Neste sentido, os
(ALVES FILHO, 1988, p. 11).
Crioulos ou Terço dos Henriques, montado
colonos dos vilarejos tinham nos palmarinos
pelo negro liberto Henrique Dias, e o exército
como “parceiros” expressivos para seus negó-
de silvícolas do índio Felipe Camarão, chamado
cios de abastecimento agrícola.
Estrutura palmarina Já é consenso entre os novos historiadores
de Terço de Camarão, que atuaram contra a in-
b) Aparelho judiciário – por meio de um
que se debruçaram sobre o fenômeno palma-
vasão holandesa e se destacaram em combater
conselho de quilombolas, aplicava a legislação,
rino que a serra da Barriga não só acomodava
os rebeldes da serra da Barriga (ALVES FILHO,
principalmente no que se refere à punição
um ajuntamento de negros fugidos e resistentes
1988).
dos delitos cometidos pelos que viviam nos
ao colonialismo. Ao contrário, o crescimento
Alves Filho é considerado um dos mais per-
mocambos. Este aparelho teve destacada
de Palmares demonstrou que os fugitivos cria-
cucientes estudiosos de Palmares. Neste sentido,
atuação durante o período em que Zumbi go-
ram um estado negro ou uma sociedade negra
para demonstrar a complexidade da sociedade
vernou Palmares (1678-1695), quando, alguns
com características bem definidas, e que, em
palmarina, vamos nos valer de seu esquema
historiadores alegam que o líder palmarino
Agosto de 2011
37
históRia instaurou uma espécie de “ditadura”, com leis
colocação de fossos com estrepes, antes das
e fortes com o território em guerra e eram ca-
draconianas para quem cometesse “crime” ou
grandes cercas que protegiam os quilombos.
pazes de oferecer resistência incomum aos “in-
desertasse.
Estes fossos com estrepes via regra matavam
vasores”. No entanto, não só de vitórias viveu
ou aleijavam os inimigos.
o quilombo. Em diversas ocasiões, mocambos
c) Aparelho militar – era hierarquizado e permanente. Estava assim estruturado:
Os chefe s pa l-
inteiros fora m des-
comandante-em-chefe, general das armas,
ma r i nos, por seu
truídos pelas tropas
oficiais, soldados. Algumas tarefas da esfera
t u r no, mont a ra m
“Assim, durante pelo menos 120 anos, o
da ordem, centenas
militar – formação de milícias e treinamento
ainda uma rede es-
quilombo de Palmares se tornou o maior
de homens/mulheres
da população para a defesa – envolviam a mo-
pionagem onde os
problema para o colonialismo português
foram mortos e muitos
bilização de todos. O mocambo de Subpira, no
colonos da s cida-
no Brasil e também uma sociedade
retornaram reescravi-
alto da serra da Barriga, era a cidade- militar,
des e vilarejos – em
antagônica ao modelo dominante da
zados a Pernambuco.
onde os guerreiros se formavam e treinavam
troca dos produtos
época poucas vezes vista nas Américas.”
para a defesa de Palmares.
da policultura dos
d) Aparelho político – assembleias elegiam
No entanto, o problema é que mesmo destruídos por alguma
mo c a m b o s e p or
os chefes militares de cada quilombo. Não
pedaços de terras palmarinas – informavam
expedição, os quilombos renasciam em outros
havia meio de saber em que circunstâncias
antecipadamente aos ex-escravos sobre a ida
pontos da serra, e tornavam cada vez mais
se realizavam as reuniões ordinárias ou se
de expedições punitivas.
penosa sua demolição pelos portugueses.
elas eram instituições permanentes. Mas, nas
A lém disso, as a lianças pa lmarinas se
Assim, durante, pelo menos 120 anos, o qui-
emergências, assembleias gerais eram convo-
estendiam até altas figuras da colônia, que
lombo de Palmares se tornou o maior proble-
cadas. Nelas, toda a população adulta tinha
mantinha secretamente transações com os
ma para o colonialismo português no Brasil e
direito a fala e votar nas decisões. O principal
chefes dos quilombos. Aliada a isto, havia no-
também uma sociedade antagônica ao modelo
dirigente palmarino era eleito por uma assem-
tável corrupção entre as elites de Pernambuco,
dominante da época poucas vezes vista nas
bleia de chefes de quilombos.
e as expedições muitas vezes eram montadas
Américas.
visando altos lucros que teriam com a recupe-
Táticas palmarinas Por que Palmares durou mais de um século?
ração dos escravos e das terras dos palmarinos (FREITAS, 1978).
A pa r t i r de agora, va mos enu mera r
A crise entre Ganga-Zumba e Zumbi Em 1678, Ganga-Zumba era a autoridade
Q u e r d i z e r, o s
máxima em Palmares, era o Grande Chefe ou
exércitos colonialis-
o Grande Senhor, segundo a hierarquia pal-
tas não tinham foco
marina. Ele era um negro da etnia arda, alto,
esquematicamente,
“nas emergências, assembleias
a lg umas ra zões de
gerais eram convocadas. Nelas, toda a
deter m i nado pa r a
forte, corajoso e destemido. Naquele momento
per ma nênc ia pa l-
população adulta tinha direito a fala e
combater o inimigo.
delicado, Palmares estava fragilizada, pois,
marina entre os sé-
votar nas decisões. O principal dirigente
Out ro fato favorá-
embora se mantivesse em pé, as expedições
culos X V II e X V III.
palmarino era eleito por uma assembleia
vel: depois de dias de
portuguesas enfraqueceram o sistema defen-
marcha, as tropas re-
sivo palmarino. Muitos quilombos eram obri-
Portugal nunca teve
escravizadoras che-
gados a mudar de posição geográfica, tendo os
um exército organi-
gavam estropiadas ao
inimigos em seu encalço.
Em primeiro lugar,
de chefes de quilombos.”
zado e estável para combater os quilombolas.
alvo – os quilombos – e facilitavam os ataques
As milícias reescravistas eram formadas, em
dos ex-escravos.
O então governador-geral de Pernambuco, Pedro de Almeida, percebeu a situação, mas
geral, por índios, crioulos, presidiários, colo-
Outro fato pouco abordado pela historio-
sabia que não tinha condições de acabar
nos, mamelucos e sempre havia indisciplina e
grafia é que Palmares, pelo menos, teve três
com Palmares. Vários chefes retornavam a
deserções. Em segundo lugar, os palmarinos
gerações de homens e mulheres que nasceram
Pernambuco alegando que tinham destru-
desenvolveram diversas táticas de guerrilha.
nos mocambos – como é o caso de Zumbi – e
ído o quilombo e este ressurgia das cinzas.
Não enfrentavam diretamente o inimigo e
que cresceram sem conhecer a escravidão.
Almeida, então, envia um emissário do terço
os atraía para armadilhas mortais, como a
38
Neste sentido, tinham identificações amplas
dos Henriques a Macaco, capital palmarina,
Ano III • Número 6
históRia e propõe um acordo com Ganga-Zumba, ou
observação na orla das matas. Despachou agentes para reu-
Zumbi. Velho não desistiu e recebeu mais
seja, que os palmarinos fiquem na região co-
nirem armas e munições. Reforçou fortificações de Macaco
reforços vindos de Pernambuco e de Alagoas.
nhecida como Cacaú, sob a proteção real, onde
a ponto de torná-la quase inexpugnável. Finalmente, decretou
Os exércitos mercenários, juntamente com os
poderiam cultivar a terra. O acordo incluía
a lei marcial: os que tentassem desertar para Cacaú seriam
terços de negros e índios, já formavam cerca
também:
passados pelas armas.
de 9.000 homens.
a) Liberdade para os negros
Na segunda investida, em 1694, as tropas A partir dali, o nome de Zumbi passou a
colonialistas conseguem construir uma cerca
b) Os palmarinos poderiam continuar
frequentar com assiduamente a documentação
em torno de Palmares durante a noite e ins-
mantendo trocas comerciais
colonial com os portugueses oram lhe rogando
talam seis canhões de frente para paliçadas.
com taberneiros, comerciantes
assinatura de propostas de paz, ora o amaldi-
Perplexos, os palmarinos percebem que os
e vendeiros da região.
çoando, outras vezes, o elogiando. Ao contrário
inimigos, agora, estão mais perto deles. Zumbi
c) As terras de Cacaú seriam
da gestão de Ganga-Zumba, que se valia bas-
ordena resistência máxima. Mas os tiros de
demarcadas pela Coroa.
tante das mudanças territoriais do quilombo
canhão abrem os flancos nas cercas e as colu-
d) Novos cativos que fugissem para
para desaparecer das vistas das tropas colonia-
nas inimigas avançam para dentro de Macaco.
Palmares deveriam ser devolvidos
listas (quilombo-móvel), na gestão de Zumbi o
Velho, mais tarde, conta que, nos primeiros
para as autoridades coloniais.
enfrentamento era direto (quilombo-fixo). Por
combates, cerca 200 palmarinos foram degola-
e) A partir da assinatura do acordo, os
17 anos, então, Zumbi venceu todas as batalhas
dos. Zumbi, por seu turno, com alguns de seus
palmarinos passariam a ser vassalos do rei.
contra as tropas portuguesas. Isto fez com que
homens de confiança, consegue fugir do cerco,
a população nordestina acreditasse que ele
mas Macaco cai nas mãos inimigas e 519 pes-
fosse imortal (FREITAS, 1978).
soas são presas, a maioria mulheres e crianças.
nascidos em Palmares.
Ganga-Zumba foi a Recife, ratificou o acordo e foi nomeado oficial do Exército português. Ele
A morte de Zumbi
e seu grupo migram para Cacaú, mas Zumbi,
É o prenúncio do fim da cidadela negra.
importante liderança militar, o general-das-
Por volta de 1693, Caeta no de Melo e
O grupo de Zumbi, por conseguinte, se
armas de Palmares, ignora o acordo e opta por
Castro assumiu o Governo de Pernambuco,
esconde na serra Dois Irmãos, próxima da
permanecer em Macaco, a capital palmarina.
com ordens para acabar definitivamente com
serra da Barriga, onde, dali, pensa em refazer
Assim, surgiu a grande divergência no qui-
Palmares. Além de muito dinheiro, ele trouxe
Palmares. Para sustentar sua segurança, Zumbi
lombo. Zumbi atraía para suas fileiras grande
de Portugal farto material bélico. Enquanto
anda sempre com 10 a 15 homens. As autorida-
número de aliados, e assim, acaba se tomando
crescia a miséria e as
o lugar de Ganga-Zumba, se tornando, por con-
secas em Pernambuco,
seguinte, no novo Grande Senhor de Palmares.
a fertilidade dos solos
Este, por seu turno, preso na armadilha por-
da ser ra da Ba r r iga
tuguesa, vê o tratado sendo boicotado por fa-
prog redia. Isso mo-
zendeiros, comerciantes e donos de engenho.
t ivou Melo e Cast ro
Enfraquecido e sem capacidade de recompor
a instigar o ódio dos
suas milícias, Ganga-Zumba morre envene-
colonos contra os pal-
nado por partidários de Zumbi, infiltrados em
marinos e a contratar o bandeirante Domingos
Em setembro de 1695, os moradores de
Cacaú. Com a confirmação de Zumbi como
Jorge Velho para comandar as maiores emprei-
Penedo, em Alagoas, numa ação de vigilância
Grande Senhor, este toma medidas rigorosas
tadas que dali para frente demandou contra
nas redondezas da cidade, capturam o mulato
para o reestabelecimento de Palmares.
Palmares.
Antonio Soares, um dos principais auxiliares
des militares ficam
“Em setembro de 1695, os moradores de Penedo, em Alagoas, numa ação de vigilância nas redondezas da cidade, capturam o mulato Antonio Soares, um dos principais auxiliares de Zumbi.”
sabendo que os negros pretendem retomar a construção de Palmares e voltam a intensificar as rondas nas duas serras.
Na primeira tentativa contra o quilombo,
de Zumbi. Os moradores pretendem levá-lo
as tropas de Velho foram repelidas pelos pal-
a Pernambuco, mas no meio do caminho
marinos, que, segundo os atacantes, conta-
topam com a coluna comandada pelo paulista
Deslocou povoações inteiras para lugares remotos. Incorporou
ram com a ajuda de um general mouro para
Furtado de Mendonça, que decide ficar com o
às milícias e submeteu o adestramento intensivo todos
construir as cercas e os estrepes de Macaco.
prisioneiro, que, após torturas, revela o escon-
os homens válidos. Multiplicou os postos de vigilância e
Esse mouro se tornara assessor militar de
derijo de Zumbi.
Vejamos como foi isso segundo Alves Filho (1988, p. 124):
Agosto de 2011
39
históRia os milicianos decidem ir ao novo mocambo
Os empresários da Federação das Indústrias
percebido que o número de adesões ao feriado tendia aumentar.
Naquela ocasião, Zumbi estava acompanhado
do estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) recorre-
apenas de seis guardas. Antonio Soares se destaca
ram da decisão da Câmara Municipal na jus-
Em 2009, ao vir ao Rio de Janeiro para inau-
do grupo e vai em direção a Zumbi. Ele esfaqueia
tiça, pois, alegaram que havia feriados demais
gurar o monumento ao marinheiro negro João
o líder palmarino, dando sinal para o avanço das
na cidade. E que a
tropas de Furtado de Mendonça. Os soldados se
nov a pa r a l i s aç ão
lançam sobre Zumbi, alguns são mortos e feri-
comemorativa iria
dos pelo palmarino, que, no entanto, devido à
provoca r g ra ndes
desvantagem numérica, não resiste e morre. Era
perdas na economia
20 de novembro de 1695. Zumbi é degolado e sua
fluminense.
Candido, na Praça XV,
“Era 20 de novembro de 1695. Zumbi é degolado e sua cabeça levada para Recife e exibida num poste. Era o recado das autoridades portuguesas para explicar a população que Zumbi não era imortal.”
o ent ão presidente da Repúbl ic a, Lu i z Inácio Lula da Silva, declarou que o 20 de novembro deveria se t ra nsfor ma r em fe-
cabeça levada para Recife e exibida num poste.
O autor da pro-
Era o recado das autoridades portuguesas para
posição honorífica
explicar a população que Zumbi não era imortal.
perde nas primeiras instâncias e o caso vai
ao crescimento de adesões municipais à data
No entanto, Palmares, através de novos quilom-
pa ra r nos t ribuna is superiores. Assim, o
comemorativa.
bos, persistiu até 1716, em outras serras da região,
Supremo Tribunal Federal (STF), mais tarde,
Para se ter uma ideia da influência/repre-
por meio de novos seguidores de Zumbi.
garante que o chamado feriado de Zumbi –
sentação que o monumento de Zumbi da Praça
como havia sido chamado na ocasião – não
Onze teve ao longo destes 25 anos, no estado do
afeta a Constituição.
Rio de Janeiro, existem, hoje, em bairros e ci-
Zumbi/palmares como símbolo
riado nacional devido
E m 1986, o ent ão gover nador do R io
Adiante, em 2002, a então governadora do
dades, mais seis monumentos ou bustos home-
de Janeiro, Leonel Brizola, atendendo aos
Rio de Janeiro, Benedita da Silva (PT) sancio-
nageando Zumbi, nos seguintes locais: Ponto
apelos do movimento negro do PDT, ergueu,
na outro projeto idêntico – da então deputada
Chic, bairro de Padre Miguel, na zona oeste;
na avenida Presidente Vargas, próximo da
estadual Cida Diogo (PT) – estabelecendo o 20
calçadão de Duque de Ca xias, na Baixada
Central do Brasil, o Monumento a Zumbi dos
de novembro como feriado estadual. Assim,
Fluminense; Centro, em Volta Redonda; Praça
Palmares. Era uma homenagem ao guerreiro
dali em diante, o feriado de Zumbi atingia os
Central, em São Fidelis; em Búzios, no quilom-
palmarino que enfrentara e vencera durante
97 municípios fluminenses.
bo de Búzios; e em Petrópolis, no Centro.
17 anos as tropas coloniais portuguesas. Era
Desse modo, os a f rodescendentes do
também o primeiro monumento brasileiro
Rio de Janeiro se tornaram os protagonistas
dedicado a um líder
Desse modo, Zumbi é o grande herói nacional para os negros fluminenses.
em relembrar o qui-
Mas também ex istem homenagens em outros estados. Em Salvador, foram erguidos
negro dos marginali-
“Uma das grandes confirmações
lombo de Palmares/
zados coloniais cujo
de Zumbi como vulto histórico afro
Zu mbi, ao lado de
dois monumentos em homenagem a Zumbi.
nome /aç õe s er a m
aconteceu após a passeata organizada
seus representantes
No interior de São Paulo, algumas cidades têm
desconhecidas pela
pela militância negra, em 1995,
no Legislativo mu-
homenagens idênticas. Em Maceió, o princi-
maioria da popula-
em Brasília, quando os afrodescendentes
nicipa l e estadua l.
pal aeroporto do estado chama-se Zumbi dos
ção brasileira.
prestaram homenagem aos 300 anos
Este fato – origina-
Palmares. E muitos bairros e cidades brasileiras
da morte do grande líder palmarino.”
do numa cidade que
foram homenageados com o nome de Zumbi.
Da ndo prosse-
tradiciona lmente é
Uma das grandes confirmações de Zumbi
de Zumbi como grande herói negro nacional,
a caixa de ressonância nacional – impactou o
como vulto histórico afro aconteceu após a
em 1997, o então prefeito César Maia, a con-
Brasil negro em diversos caminhos.
passeata organizada pela militância negra, em
guimento à revisão
tragosto, sancionou o projeto de lei do então
Assim, mais tarde, em 2010, a Secretaria
1995, em Brasília, quando os afrodescendentes
vereador Edson Santos (PCdoB) – depois de
Especial de Promoção de Igualdade Racial
prestaram homenagem aos 300 anos da morte
aprovado por ampla maioria na Câmara dos
(SEPPIR) do Governo Federal identifica cerca
do grande líder palmarino.
Vereadores do Rio de Janeiro – instituindo o
de 1.200 municípios brasileiros que declararam
O movimento chegou próximo do Palácio
20 de novembro (dia da morte de Zumbi) como
o 20 de novembro como feriado, seguindo o
do Planalto e o então presidente Fernando
feriado municipal.
exemplo pioneiro f luminense. Também foi
Henrique Cardoso (PSDB) acabou recebendo
40
Ano III • Número 6
históRia uma comissão de militantes. Também lhe foi
Parque Nacional de Zumbi dos Palmares, na
______. O quilombo de Palmares. Rio de Janeiro: Civilização
entregue um documento formatado pelos líde-
cidade de União dos Palmares.
Brasileira, 1966.
res da manifestação. Antes desta manifestação,
No enta nto, a const r ução do m ito de
em 1988, os negros fluminenses organizaram
Pa lmares/Zumbi parece que começou no
Paulo: Graal, 1978.
uma passeata “contra a farsa” dos 100 anos
início do século X X. Segundo Gomes, após
FREITAS, Mário Martins de. Reino negro de Palmares. Rio de
da abolição, que foi barrada pelo Exército,
a abolição, Zumbi transformara-se em tema
Janeiro: Bibliex, 1988.
quando milhares de negros passavam pela
da militância política. As associações ope-
FUNARI, Pedro Paulo; CARVALHO, Aline Vieira de. Palmares:
porta do antigo Comando Militar Leste, ao
rárias, os partidos comunistas e a chamada
ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
lado da Central do Brasil. Nesta passeata, os
“imprensa negra” retoma ra m em títulos,
GLASGOW, Roy. Nzinga. São Paulo: Perspectivas, 1982.
manifestantes traziam cartazes com a frase:
inscrições e pequenos textos nas décadas de
GOMES, Flávio. Palmares. São Paulo: Contexto, 2005.
“Valeu, Zumbi”.
1920 e 1930, o que se chamou de ‘Epopeia de
KEITH, Henry H. ; EDWARDS, S. F. Conflito e continui-
Zumbi” (2005, p. 33).
dade na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização
Depois da manifestação dos 300 anos de
FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. São
Zumbi, em Brasília, FHC criou o Grupo de
No final da década de 1920, Palmares seria
Trabalho Interministerial (GTI) destinado a
evocado por Astrogildo Pereira na obra “A
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à
coordenar políticas de promoção da igualdade
classe operária”, jornal do Partido Comunista
história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.
racial entre os ministérios tucanos, que, mais
do Brasil (PCB). Em 1935, Aderbal Jurema,
LANDMANN, Jorge. Tróia negra: a saga de Palmares. São
tarde, virou Secretaria Especial de Políticas de
outro intelectual comunista, dedicaria algu-
Paulo: Mandarim, 1998.
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no
mas páginas do seu livro “Insurreições negras”
MACEDO, José Rivair (org. ). Desvendando a história da África.
primeiro governo Lula da Silva.
para falar de Palmares.
Porto Alegre: UFRGS, 2008.
Brasileira, 1971.
Em sí ntese : por que Pa l ma res/Zu mbi
Antes, o personagem também surgiu no
MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problema-
provoca tanto fervor militante que resultam
roma nce histór ico de Jay me A ltav i l la “O
tização do legado africano no cotidiano brasileiro. Belo
em homenagens a ele, com monumentos edi-
qui lombo de Pa lma res”, seg undo Gomes
Horizonte: Nandayala, 2008.
ficados pelo poder público de diversas cores
(2005, p. 34). Nos anos 1960, os guerrilheiros
NOBRE, Carlos. O controle penal do escravo: crime e polícia
ideológicas pelo Brasil? Em parte porque os
de esquerda que lutaram contra a ditadura
no Rio de Janeiro. Revista IMES, São Caetano do Sul, v. 9, n.
militantes negros encontraram um represen-
militar (1964-1985) criaram o grupo “VAR
14, p. 93-106, 2008
tante simbólico à altura, vencedor de diversas
Palmares”, numa homenagem a Zumbi e ao
PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravi-
batalhas contra as tropas coloniais, rico em
quilombo
dão. Brasília: Thesaurus, 2000.
metáforas de resistência e grande guerreiro
.
PERET, Benjamin. O quilombo de Palmares. São Paulo: Fenda
Carlos Nobre Professor da PUC-Rio e Mestre
Edições, 1955.
O “mito” palmarino para os militantes
em Ciências Penais pela Universidade Cândido
SANTOS, João Felício dos. Ganga Zumba. São Paulo: Circulo
negros ficou mais claro, em 1978, quando o
Mendes (UCAM). Autor de cinco livros, entre
do Livro, 1985.
Movimento Negro Unificado (MNU) foi criado,
eles, “O negro na Polícia Militar: cor, crime e
SANTOS, Joel Rufino dos. Na rota dos tubarões: o tráfico ne-
em São Paulo, que, em seguida, se espalhou
carreira” (2010), “Mães de Acari: uma história de
greiro e outras viagens. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
por outros estados do Brasil. Naquela ocasião,
protagonismo social” (2005) e “Sêmen celestial”
______. Zumbi. São Paulo: Global, 2006.
depois de congressos internos, os militantes
(2003). Coordenador da Coleção Personalidades
SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória d’ África: a
negros decretaram o 20 de novembro como
Negras, da Editora Garamond.
temática africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007.
das causas dos marginalizados.
SILVA, Alberto da Costa. A África explicada aos meus filhos.
o “Dia Nacional da Consciência Negra”, em homenagem a morte de Zumbi, em 1695.
Referências
Rio de Janeiro: Agir, 2008.
ALVES FILHO, Ivan. Memorial dos Palmares. Rio de
______. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.
porte médio, o 20 de novembro é saudado por
Janeiro: Xenon, 1988.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
shows, atos públicos, manifestações, lança-
BOURDOUKAN, Georges. A incrível e fascinante história
______. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500
mentos de livros, seminários e congressos. Na
do capitão Mouro. São Paulo: Sol e Chuva, 1997.
a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
serra da Barriga, organiza-se extensa progra-
CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Rio de
SILVA, Fernando Correia. Os libertadores. São Paulo:
mação, com milhares de pessoas visitando o
Janeiro: Ediouro, 2000.
Cultrix, 1991.
Hoje, em todas as capitais e em cidades de
Agosto de 2011
41
P sol
A contribuição do PSOL na luta contra o racismo Apesar de jovem, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) tem dedicado, em sua atuação institucional e partidária, especial atenção à luta dos afrodescendentes contra o racismo e a discriminação racial. Desta forma, a relação entre as aspirações do movimento negro e dos descendentes de africanos e o PSOL tem se orientado pelo respeito e diálogo mútuos. Como partido e no parlamento, o PSOL vem denunciando o racismo em suas diferentes formas como o extermínio da juventude negra, a intolerância com as religiões de matriz africana, as tentativas de atacar e atuado na defesa dos valores e tradições afrobrasileiros. Por Ivan Valente e Hamilton Assis
mais harmonizados com as práticas concretas dos
Presidência Plínio de Arruda Sampaio e, na vice, o
que se insubordinam contra a ordem dominante
pedagogo, sindicalista e militante do movimento
Tradicionalmente, a relação entre os partidos polí-
e, por fim, contribuir para a consolidação de uma
negro, Hamilton Assis. O PSOL foi o único parti-
ticos e a comunidade negra foi pautada por relações
identidade política própria. Malgrado a pequena
do, dos principais que concorreram à presidência,
fisiológicas e de clientelismo em que “lealdades” e
presença institucional do PSOL, podemos afirmar
que denunciou o caráter racial de nosso sistema
“compromissos” se formam e desfazem de acordo
que ele vem contribuindo de maneira ímpar para
prisional e a discriminação contra os negros. A
com os interesses dos políticos profissionais. Como
visibilizar, no Congresso Nacional, e através das
crescente onda de intolerância contra as religiões
também pela ineficácia dos partidos de esquerda
candidaturas do partido, a necessidade de um radi-
de matriz africana – apoiada e financiada por
entenderem e incorporarem as questões raciais em
cal programa de superação do racismo e de repara-
religiosos extremistas e intolerantes – tem-nos
sua estratégia revolucionária. O intérprete Bezerra
ções ao povo negro que foi vítima do racismo.
obrigado sistematicamente a enfrentar este tipo de mentalidade retrógada e conservadora e rea-
da Silva imortalizou em música a figura do político
Os mandatos de Ivan Valente (PSOL/SP), Chico
Caô-Caô – conhecido pelos discursos inflamados,
Alencar (PSOL/RJ) e Jean Willys (PSOL/RJ) – na
em suas demonstrações exageradas de afeição à
Câmara – e Marinor Brito (PSOL/PA) e Randolfe
Por fim, tivemos uma postura – como partido
população pobre e favelada, em sua maioria negra
Rodrigues (PSOL/AP) – no Senado Federal – têm
– de frontal oposição ao processo de esvaziamen-
– que, depois de eleito dá as costas ao povo e o
tentado contribuir para dar “voz aos que não têm
to do Estatuto da Igualdade Racial que foi apro-
ignora. Esta prática originalmente ligada a políticos
voz” (aqui em uma alusão ao programa de rádio
vado com base em um “acórdão” envolvendo o
conservadores, da direita brasileira, espraiou-se no
que o pantera negra Mumia Abu Jamal, no cárcere,
PT e o DEM e retirou do texto original conquistas
espectro político brasileiro e assumiu diferentes
mantém aos seus ouvintes nos Estados Unidos). Na
e garantias imprescindíveis para o povo negro.
colorações. Hoje, infelizmente, partidos como o
defesa das minorias – o geógrafo Milton Santos pre-
Evidentemente precisamos ainda avançar muito.
PT substituem o apoio às reivindicações dos mo-
feria o termo “minoridades” – formada por negros,
É necessário que o debate sobre a natureza da
vimentos sociais e, por extensão, do movimento
mulheres, homossexuais e afro-religiosos. Por sua
questão racial e a luta contra o racismo tenham
negro, por acordos “por cima” e de bastidores que
vez, tem atuado em defesa da liberdade de expres-
uma maior centralidade entre nossa militância
desestimulam a mobilização de “baixo para cima”,
são e de um debate público sobre a legalização da
e reverbere com mais intensidade entre nossos
por dentro e contra a ordem dominante.
maconha em nossa sociedade quando são conheci-
quadros e dirigentes. Para isso, entendemos que
Na contracorrente desta desideologização dos
dos os rastros de violência, dor e terror deixado pela
a formação de um Setorial de Negras e Negros
partidos – que hoje, com algumas exceções, se as-
atual política de “guerra das drogas” – apoiada pelo
é uma ferramenta indispensável na consolida-
semelham mais a grupos de interesses privados e
imperialismo norte-americano – nos territórios
ção deste processo. É necessário afirmarmos,
lobistas – o PSOL reafirma sua identidade política
negros das grandes cidades de nosso país. Também
na prática, na coerência e no compromisso
e programática travando a luta cotidiana, junto
é importante destacar a ação do deputado estadual
cotidiano um projeto partidário plural, negro
com o povo e os setores combativos do movimento
Marcelo Freixo (PSOL/RJ), na defesa dos direitos
e socialista
sindical, popular, negro, de mulheres, LGBTT e
humanos e na luta contra os “autos de resistência”
indígena. Para o PSOL, seja no parlamento ou na
que mascaram a prática do extermínio desenvol-
Ivan Valente Deputado federal (PSOL-SP).
ação partidária propriamente dita, a incorporação
vida pelo aparato de repressão policial.
Ha mi lton A ssis Pedagogo, m i l it a nte da
das plataformas de luta dos movimentos sociais é
Nas eleições de 2010, o PSOL apresentou uma
uma forma de afinar seus instrumentos, torná-los
chapa presidencial que teve como candidato à
42
firmar a laicidade do Estado brasileiro.
.
Intersindical e do Círculo Palmarino e candidato a vice-presidência pelo PSOL em 2010.
Ano III • Número 6
educaÇÃ ÇÃo
Trabalho, educação e racismo: na luta por igualdade, combater as discriminações! Quando falamos sobre a relação entre racismo e trabalho devemos ter em mente como este processo se desenvolve a partir das dificuldades enfrentadas pela população negra (desde a entrada no mercado de trabalho até casos em que sofre assédio moral). Entender estas diferentes etapas é importante para que possamos desenvolver políticas públicas e diminuir os obstáculos e as dificuldades que se interpõem a esta grande parcela da população formada por afrodescendentes.
Por paulo sérgio da silva desigualdades raciais no mercado de trabalho
fácil analisar diversas categorias de trabalha-
É comum os(as) trabalhadores(as) negros(as)
dores no Brasil e notar um “branqueamento”,
sofrerem assédio moral e permanecerem gran-
principalmente nas áreas de gerência, super-
des períodos estacionados em suas carreiras
visão e liderança.
profissionais.
A primeira dificuldade é o acesso à forma-
De acordo com os dados do INEP/MEC
ção profissional. Se partirmos do princípio
dos for mados que f i zera m o provão em
de que a população negra é a de menor poder
2000 nos cursos de Administração, Direito,
O grande desafio é provar que a sociedade
aquisitivo (e automaticamente a que depende
Medicina Veterinária, Odontologia, Medicina,
brasileira é racista. Por consequência, este
de um maior investimento em políticas públi-
Jornalismo e Psicologia, dentre outros, mais
racismo também está presente nas relações de
cas de educação), temos, logo, uma enorme
de 80% é constituído por brancos (respecti-
trabalho e reproduz a visão da classe dominan-
disparidade dado que os melhores cursos de
vamente, 83,3%, 84,1%, 84,9%, 85,9%, 81,6%,
te desde os meios de comunicação, educação e
formação profissional dependem de investi-
81,5% e 83,3%). Nos mesmos cursos, os negros
político. Para isso, a sociedade brasileira deve
mento financeiro individual. Seja no campo da
aparecem com os seguintes percentuais: 1,6%,
se unificar para combater o preconceito e a
educação pública – através das universidades
2,0%, 1,1%, 0,7%, 1,0% 2,9% e 1,6% compro-
discriminação racial dos locais de trabalho
e escolas técnicas – ou na formação superior
vando a baixa oportunidade para os negros
(empresas, fábricas e repartições públicas).
ou técnica privada – o negro deve dispor de re-
na universidade.
Devemos seguir o exemplo do governo e do
Conclusão
cursos, materiais e culturais, que – caso tenha
Outro ponto crucial refere-se à situação
povo cubanos que se uniram na construção de
conseguido acumular – foi resultado de muito
da mulher negra que – além de sofrer o pre-
uma sociedade justa e socialista e hoje forma
esforço e sacrifício individual ou familiar. Ele
conceito por ser negra – vê recair sobre si a
os melhores médicos (de todas as raças e cores)
tem que superar barreiras e estigmas raciais
questão de gênero. Logo, a mulher negra tra-
que atuam, por exemplo, de forma heróica em
que marcam de forma indelével sua trajetória.
balhadora sofre um duplo preconceito e em
apoio ao povo haitiano1
Este processo não se desenvolve – pelo menos
muitos casos é ainda responsável por manter
com a mesma intensidade – entre brancos
a renda familiar.
.
Paulo Sérgio da Silva Diretor do Sindicato dos
Portanto, o negro e a negra no mercado de
Aeroviários de Porto Alegre, presidente do
Quando consegue se qualificar, o negro
trabalho, no Brasil, precisam o tempo todo
PSOL Canoas-RS e militante do movimento
enfrenta outro problema: encontra uma nova
provar “algo mais” para serem contratados, não
negro gaúcho.
barreira na seleção entre outros candidatos.
basta a formação, não basta a experiência.
pobres ou em posição remediada.
Referências
Existe uma resistência de alguns empresários
Por último, o problema da ascensão profis-
capitalistas e dos setores de recrutamento e de
sional. Hoje cada vez mais as empresas criam
1 “Médicos cubanos lideram combate à cólera e mantêm
recursos humanos na contratação de candida-
barreiras e dificuldades à promoção dos tra-
prestígio no Haiti”. Opera Mundi. Disponível em: em:<http://
tos negros. Isto é reflexo de nossa sociedade
balhadores e estabelecem, para isso, um sem
operamundi. uol. com.br/entrev istas_ver.
que é racista, mas não se assume como tal. É
número de pré-requisitos a serem cumpridos.
php?idConteudo=142>. Último acesso: 07/07/2011.
Agosto de 2011
43
movimeNto
Movimento negro e luta de classes no Brasil (Um resumo histórico) Por Mário Makaíba
dos movimentos negros organizados (assim como a recomposição do movimento sindical e
Introdução
das organizações políticas de esquerda, como o
A trajetória do movimento negro no Brasil
PCB), mas sem o poder de aglutinação da Frente
veio se forjando num processo de re-elaboração
Negra Brasileira. Dessa época, um dos princi-
estratégica de construção de um movimento de
pais agrupamentos foi o Teatro Experimental
massa, em cada conjuntura histórica da luta de
do Negro (TEN), fundado no Rio de Janeiro, em
classes, desde a abolição (1888) até os nossos
1944, e que tinha em sua direção o militante
dias. Nesse processo foram criadas várias
Abdias do Nascimento (1914-2011). O TEN foi
organizações com base na identidade racial,
responsável por divulgar no Brasil as propostas
com alguns de seus setores fazendo alianças e
do movimento político dos negros franceses,
assumindo compromissos com diversas forças
que posteriormente serviu de base ideológica
políticas e ideológicas, da “direita” à esquerda
para a luta de libertação nacional dos países
marxista. Entre essas tantas organizações
africanos. O grupo de Abdias foi praticamente
destacaremos aqui, por suas características de
extinto dois anos após o golpe militar de 1964,
movimento de massa e perfis ideológicos opos-
quando mais uma vez todas as organizações do
tos, a Frente Negra Brasileira e o Movimento
movimento dos trabalhadores e popular foram
Negro Unificado.
suprimidas pela força da ditadura.
A Frente Negra:
MNU: A unificação do Movimento Negro
por deus, pátria, Raça e Família
e a síntese raça e classe
A década de 30 do século passado foi um
Foi no ano de 1978 – a partir do debate
período agitado na história da luta de classes
travado entre os movimentos negros sobre o
no Brasil. Começou com uma revolução cons-
que fazer, no dia 13 de maio, data da abolição
titucionalista, viu surgirem movimentos de
da escravatura – que aconteceu a unificação
esquerda, como a intentona comunista, e de
do movimento negro no Brasil. O processo de
direita, como a ação integralista, e terminou
construção dessa unidade durante boa parte
com um golpe de estado em 1937 – o Estado
partido em 1936, com intenções de participar
dos anos 1970 sofreu forte influência do mo-
Novo populista de Getúlio Vargas. Foi no meio
do processo eleitoral. Mas, suas pretensões
vimento “Black Power”: o nacionalismo negro
dessa conjuntura de fogo cruzado que se deu
foram abortadas com a instauração da ditadu-
dos EUA (que defendia a ideia de uma “iden-
a fundação da Frente Negra Brasileira, em
ra varguista, em 1937, que extinguiu todas as
tidade coletiva negra” acima das divisões de
1931. Como toda frente política, a FNB abrigou
organizações políticas da época. No período de
classes). 1978 também foi o ano em que, tendo
diversas tendências, não sem conflitos – onde,
duração da ditadura estadonovista (1937-1945),
à frente a classe trabalhadora, cresceram no
inclusive, se encontravam monarquistas com
foi impossível organizar qualquer movimento
movimento sindical, estudantil e popular as
simpatias pelo fascismo. Mas, todos frentene-
contestatório, fosse de classe ou de raça. Nessa
lutas democráticas contra a ditadura – iniciadas
grinos se enquadravam na ideologia conser-
fase, a luta antirracista negra se limitou à afir-
com o golpe militar de 1964 que foi planejado e
vadora nacionalista de “Deus, pátria, raça e
mação racial no culto à Mãe-Preta em defesa
apoiado pelo imperialismo estadunidense. Daí
família”, subtítulo do jornal da Frente, “A Voz
da “segunda abolição”.
que, para a esquerda marxista brasileira da-
da Raça”. Apenas no termo “raça”, é que o lema
Do fim da ditadura varguista até o golpe mi-
quela época, a unificação do movimento negro
da frente se diferenciava do movimento inte-
litar de 1964, abriu-se um período de conjuntura
sob a influência do “Black Power” significava
gralista. A frente chegou a transformar-se em
democrática, que possibilitou o ressurgimento
a submissão da luta antirracista dos negros
44
Ano III • Número 6
movimeNto brasileiros ao colonialismo do império ianque.
dos movimentos sociais contra a ditadura e
O fato é que, se por um lado, na prática, isola-
pela volta da democracia ao país. É que para
do, o fenômeno da unificação do movimento
a necessidade de sobrevivência de todo movi-
negro – com a sua vanguarda sob a influência
mento social, o gueto é um suicídio político.
de um nacionalismo negro importado – ainda
Pelo seu instinto de luta contra a opressão que
seguia a lógica de contestação pura e simples
comprime e a exploração que esvazia, todo
de tudo o que fosse “branco”, inclusive a teoria
movimento social tende ao sentido de sua
marxista revolucionária da luta de classes, vista
expansão. Do contrário, será asfixiado pela ca-
como “eurocêntrica”, por outro lado, até aquele
pitulação, assimilação e cooptação de sua mi-
momento a síntese raça-e-classe não fazia parte
litância. E para que esse destino trágico não se
da formação teórica clássica e classista da es-
cumpra, é necessário encontrar aliados contra
querda brasileira.
o inimigo comum. Esse foi o caminho daquela
O nacionalismo negro importado dos EUA
nova vanguarda de militantes negros que com
cumpriu o papel importante de resgatar a
muito esforço ingressaram na classe operária
dignidade de raça aos negros brasileiros. Ao
e no meio da intelectualidade “progressista” e
exacerbar a negritude, dando visibilidade ao
de esquerda como Lélia Gonzáles, Hamilton
indivíduo negro, não só junto aos brancos, mas
Cardoso e o veterano Abdias do Nascimento,
também entre os próprios negros, tornou pal-
que ao lado de lideranças mestiças, indígenas
pável para as lideranças negras reivindicações
e brancas combinaram, pela primeira vez no
econômicas e de poder. Emergiu daí uma van-
Brasil, na prática a luta antirracista com a luta
guarda negra de classe média que assumindo
de todos os trabalhadores contra o capital na-
sua afrodescendência, confrontou-se com o
quele período.
orgulho que tem de sua origem étnica os indiví-
Mas o “giro” dessa militância negra para
duos brancos da pequena e da grande burguesia
escapar do isolamento, não foi por acaso.
brasileira. Dessa classe média negra emergente
Do processo de unificação do movimento
surgiram novas lideranças que junto às anti-
negro no Brasil surgiu o Movimento Negro
gas, foram depois – nos anos 1980 – acolhidas
Unificado (MNU), fundado naquele mesmo
por partidos criados
ano de 1978 por um
dentro de uma con-
grupo de militantes
juntura política da luta de cla sses de redemocrat i zação da sociedade brasileira com trânsito no movimento sindical
“A entrada de militantes do movimento negro nos recém criados partidos políticos de perfis sindical e popular foi determinada pela nova realidade da luta de classes pós 1978”
e popular, como o PT e o PDT.
negros da organização marxista-trotskista, Convergência Socialista (Hamilton Ca rdoso, Fláv io Carrança, Vanderlei José Ma r ia, Mi lton
Barbosa, Rafael Pinto, Jamu Minka e Neuza
A entrada de militantes do movimento negro
Pereira). Na concepção desses militantes, o
nos recém criados partidos políticos de perfis
capitalismo era o sistema que alimentava e se
sindical e popular foi determinada pela nova
beneficiava do racismo. Assim, só com a ruptura
realidade da luta de classes pós 1978, que se
revolucionária com esse sistema e a instauração
deu sob uma conjuntura de ascenso das lutas
do socialismo a partir de um governo de todos
da classe trabalhadora brasileira que naquele
os trabalhadores seria possível a superação do
período, do final dos anos 1970 até meados
racismo. A política que conjugava raça e classe
dos anos 1980, foi a vanguarda de toda luta
na formação desses militantes negros cumpriu
Agosto de 2011
45
movimeNto um papel decisivo na fundação do Movimento
com a finalidade de organizar a luta contra a
modo algum o deslocamento da mesma. Mas
Negro Unificado. Dali por diante as posturas
opressão racial e a exploração do capital.
a repressão à marcha não se limitou a impedir
táticas e ideológicas adotadas pelo MNU passa-
Dez anos depois da fundação do MNU,
a passeata dos manifestantes. Horas antes
ram a influenciar a luta antirracista e suplantar
a sua síntese política de raça e classe para a
do início da marcha, os militares cercaram
a postura conformista e assimilacionista predo-
unificação dos movimentos negros no Brasil in-
e puseram abaixo o palanque montado em
minantes na história do movimento negro em
fluenciou também no espírito e na forma de or-
frente à Central, enquanto a polícia reprimia e
geral desde a abolição até a data de conclusão
ganização da I Marcha contra o Racismo, ocor-
prendia vários militantes que saíam dos trens
de sua unificação.
rida em 11 de maio de 1988, no Rio de Janeiro.
com faixas e cartazes, chegando do subúrbio
A criação do MNU tornou-se um marco na
Principalmente na formação dos “comitês” de
e da baixada Fluminense para a concentração
história do movimento negro no Brasil, porque
mobilização e na articulação dos apoios do
da marcha no início da Presidente Vargas na
tinha como estratégia, além de propor a unifi-
movimento comunitário, estudantil e sindi-
Candelária, onde já havia um grande número
cação da luta de todos
cal. Já a exposição de
de policiais. Diante dessa situação, mesmo com
os grupos e organi-
bandeiras e outros
a disposição dos militantes para enfrentar o
“A criação do MNU tornou-se um marco
sí mbolos que sig-
cerco repressivo, no intuito de evitar um con-
em u m mov i mento
na história do movimento negro no
n i f ica ssem a pre-
fronto com a repressão que pusesse em perigo
nacional, objetivava
Brasil, porque tinha como estratégia,
sença de pa r t idos
os participantes da marcha, o comando da ma-
também, combinar a
além de propor a unificação da luta
dentro da marcha,
nifestação orientou os militantes a seguirem
luta desse movimento
de todos os grupos e organizações
f or a m “e v it a do s”
com a passeata somente “até onde o racismo
unificado com a de
antirracistas em um movimento
pelo coma ndo do
deixar”. E a marcha parou antes de completar
todos os oprimidos
nacional, objetivava também, combinar
evento que preferiu
o seu percurso, impedida por uma “muralha”
da sociedade. Em seu
a luta desse movimento unificado com a
dar àquela mobiliza-
de policiais. Mesmo assim, a maioria dos
programa de ação de-
de todos os oprimidos da sociedade.”
ção um caráter “não
participantes da Marcha contra o Racismo
partidário”- mesmo
comemorou o sucesso daquela manifestação
que muitos de seus
que teve uma cobertura da imprensa nacional
zações antirracistas
fendia as seg uintes reiv indicações “mí-
e estrangeira.
nimas”: desmistificação da democracia racial
militantes fossem também filiados as organi-
brasileira, organização política da população
zações políticas. A Marcha contra o Racismo
negra, transformação do movimento negro
contou com mais de 20 mil participantes e teve
o projeto lulista de conciliação de classes
em um movimento de massas, formação de
o objetivo político de se contrapor aos festejos
e a morte ideológica do MNU
um amplo leque de alianças na luta contra o
oficiais do centenário da abolição.
Os efeitos positivos dessa unificação dos mo-
racismo e a exploração dos trabalhadores, or-
Com a orientação do I Comando Militar do
vimentos negros ficaram evidentes, também,
ganização dos trabalhadores negros e pobres
Leste foi montado um forte aparato repressivo
na Constituição de 1988 quando o racismo
para enfrentar a violência policial, organização
com militares das Forças Armadas e da força
passou a ser enquadrado nos termos da lei como
nos sindicatos e partidos políticos, luta pela
policial do Estado para impedir o deslocamen-
um crime inafiançável. Antes era apenas uma
introdução da História da África e do Negro
to da marcha contra a farsa da abolição, pro-
contravenção. Porém, como todo o movimento
no currículo escolar e a busca de apoio inter-
gramada para seguir o percurso da Candelária
social do final dos anos 80 do século passado
nacional contra o racismo no Brasil. Uma carta
à Central do Brasil, sob a alegação de que os
até hoje em 2011, a construção dessa unificação
aberta foi distribuída à população e lida em
manifestantes causariam danos à estátua
sofreu a erosão política, resultante do refluxo
praça pública no largo do Paisandu, em São
de Caxias (que fica na Presidente Vargas, em
da luta da classe trabalhadora no Brasil e do
Paulo, em 13 de maio de 1978, entre faixas e
frente à sede do I CML). O governador do estado
pacto social promovido e posto em prática nos
cartazes que questionavam a abolição da escra-
na época, Moreira Franco, do PMDB (atual
dois mandatos de Lula. Boa parte dos militan-
vatura e denunciavam a brutalidade policial,
ministro de Assuntos Estratégicos da “presi-
tes negros filiados aos principais partidos que
chamando os negros a formarem “centros de
denta” Dilma), designou o próprio secretário
compõe a base do “lulismo” – PT, PCdoB, PDT e
luta” (no estilo dos sovietes) nos bairros, nas
de polícia civil do seu governo, Hélio Sabóya,
PMDB – foi cooptada e aderiu ao projeto político
vilas, nas prisões, nos terreiros de candomblé e
para informar oficialmente ao comando da
ideológico de conciliação de classes que define
umbanda, nos locais de trabalho e nas escolas
marcha que a polícia não iria permitir de
essa frente partidária. Como consequência
46
Ano III • Número 6
dessa adesão da maioria das lideranças negras
Igualdade Racial que só serve para dissimular
ao projeto de conciliação de classes lulista, veio
os verdadeiros interesses de classe da elite
a degeneração da unidade do movimento negro
branca capitalista brasileira e de seus sócios
e o retrocesso da consciência, da estratégia e
internacionais. Uma elite de novos senhores
das táticas de lutas. Praticamente, a degene-
de escravos que sob o manto de uma hipóc r it a “de mo c r a c i a
ração e o retrocesso decretaram a morte ideológica do MNU. A prova evidente da degeneração e do ret rocesso é o Estat uto da Igualdade Racial em v igor desde o a no passado, depois de tramitar 10 anos pelo
racial” corroborada
“A derrota do Estatuto da Igualdade
agora pelo estatuto
Racial repõe na ordem do dia
em v igor, a r ra njou
a necessidade de se recompor a unidade do movimento negro no Brasil, retomando o ponto de partida
racial com lideranças negras governis-
da estratégia da unidade necessária de todos os oprimidos e explorados pelo capital: a unidade inter-racial da classe trabalhadora brasileira.”
u m pac to p ol ít ic o
tas, como o fez com lideranças de outros setores do movimento social e dos trabalhadores através do
C ong re s so. A s si m que o estatuto foi aprovado pelo Senado, em
governo Lula, para garantir a manutenção da
16 de junho de 2010, setores do movimento
política de conciliação de classes, promovida
negro protestaram e se posicionaram contra a
pelo lulismo com continuidade no governo de
sanção pelo presidente Lula. O protesto desses
Dilma Rousseff.
setores era contra a retirada do Estatuto das
Conclusão
reivindicações históricas do movimento, que foram debatidas, acumuladas e sistematiza-
A derrota do Estatuto da Igualdade Racial
das durante todo o processo de unificação
repõe na ordem do dia a necessidade de se
como: a demarcação dos territórios quilombo-
recompor a unidade do movimento negro
las, as disposições relacionadas a medidas de
no Brasil, retomando o ponto de partida da
fato no campo da saúde, educação e políticas
estratégia da unidade necessária de todos os
de cotas. Já as lideranças negras do campo
oprimidos e explorados pelo capital: a unidade
lulista saíram em defesa do estatuto aprovado
inter-racial da classe trabalhadora brasileira.
sob a alegação de que ele significava o avanço
Do ponto de vista da esquerda marxista revo-
possível na promoção da igualdade racial no
lucionária, a luta contra o racismo não pode ser
Brasil. Porém, o “possível” foi mais uma, de
menosprezada e encarada apenas como uma
tantas outras manobras políticas utilizadas
obscenidade moral, como é de fato. Mas, uma
pelos representantes da elite branca capitalis-
organização política que pretenda se inserir na
ta brasileira no Congresso Nacional e em todo
classe trabalhadora brasileira e não enfrentar
o aparelho do Estado desde a abolição, para
de fato o racismo que existe nesse país, não
impedir, ou no mínimo, dificultar a criação
vai conseguir dirigir a totalidade da classe e
de uma legislação específica e políticas de
derrotar o capital por meio de uma revolução,
reparação compensatória que removam as
porque no Brasil está a segunda maior popula-
barreiras sociais reforçadas pela discrimina-
ção de negros do mundo, ficando atrás apenas
ção racial nesse país.
da África. Eis porque tornou-se necessário en-
Referências
.
Não foi por acaso, que todos os cortes no
tendermos que a luta contra a opressão racial
BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira (depoimentos).
texto original do estatuto foram efetivados
é parte indispensável do projeto socialista
São Paulo: Quilombhoje, 1998.
pelo senador direitista Demóstenes Torres
revolucionário
CALLINICOS, Alex. Racismo e capitalismo. Cadernos
do DEM com o aval do senador “negro” do
Socialistas. Edição Revolutas, Junho de 2004.
PT Paulo Paim, apresentador no Congresso
Má rio Ma ka í ba M i l ita nte da CST, f i l ia-
CARDOSO, Hamilton. “História recente: dez anos de mo-
do estatuto original. Todo o esvaziamento no
do ao PSOL-RJ, e colaborador do Círculo
vimento negro”. Revista Teoria e Debate, n. 2, São Paulo:
conteúdo original resultou em um Estatuto da
Palmarino.
março de 1988.
Agosto de 2011
47
Olorum ÈKÈ solaNo tRiNdade
Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Eu sou poeta do povo Olorum ÈkÈ A minha bandeira É de cor de sangue Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Da cor da revolução Olorum ÈkÈ
48
Ano III • Número 6
Meus avós foram escravos Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Eu ainda escravo sou Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Os meus filhos não serão Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ (Solano Trindade, Poeta do Povo, São Paulo: Ediouro, 2008, p.47)
Agosto de 2011
49
R
e
v
i
s
t
a
Negra Ano III | Nº 6 | Agosto de 2011 Uma publicação da Fundação Lauro Campos
E d i ç ã o e s p ecial
Expediente
FUNDAÇÃO LAURO CAMPOS
Organizadores Fábio Nogueira e Luiz Arnaldo
Diretoria
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