Revista nº 6 | Toda negra EDIÇÃO ESPECIAL SOCIALISMO E LIBERDADE | Ano III | Agosto de 2011

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PRESTANDO CONTA PRESTANDO CONTA é o título com que resolvi batizar essa comunicação que terei nas edições do BODAU com os colegas Associados da SBU. Fundamento-a na visão que tenho de a SBU ser uma “empresa” com mais de 4 mil “acionistas” (Associados) da qual sou o “Presidente do Conselho Administrador”, eleito pela maioria dos votos dos acionistas.

Modesto Jacobino PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE UROLOGIA

Colega Urologista, 1 ACORDO SBU E AUA

J

ovens urologistas brasileiros em Denver com o incansável Fernando Kim, é a materialização do recente Convênio assinado pela SBU e a AUA na nossa Gestão e do Dr. Datta Wagle. Afirmar a você que este acontecimento traduz FELICIDADE para mim, em particular, não é verdade , pois compartilho do entendimento de que “Felicidade é a única qualidade da vida que jamais pode ser encontrada através da busca” visto que “a maior parte das coisas na vida podem ser encontradas se as buscarmos com suficiente persistência e determinação”. Esta última colocação traduz exatamente o que tenho procurado fazer ao longo dos meus 62 anos de existência: mesmo vindo de um casal de camponeses do alto sertão da Paraíba e do Ceará, decidi ser médico; decidi ser urologista, Professor da Faculdade de Medicina da Bahia/UFBA,Presidente da SBU-Bahia e Presidente da Sociedade Brasileira de Urologia. Com “suficiente persistência e determinação” aliada ao apoio dos colegas de Diretoria, atravessei o Atlântico e em Reunião com o Board da AUA em Baltimore traçamos as diretrizes para o recente Convênio SBU/AUA que muito beneficiará jovens urologistas brasileiros ávidos por aprimoramentos científicos e experiência de vida. 2 PTUNews Com a mesma “suficiente persistência e determinação” e trabalho diuturno do Paulo Palma/D´Ancona, de BODAU BOLETIM DA UROLOGIA

10

ABRIL

MAIO

2011

jovens urologistas e dos nossos colegas colaboradores na SBU, um grande objetivo foi alcançado com muita garra : através do PTUNews, a transmissão dos melhores momentos do Congresso Americano de Urologia proporcionando assim a divulgação democrática do conhecimento para milhares de urologistas brasileiros. A igualdade foi alcançada. 3 85 ANOS de SBU A nossa SBU completou 85 anos. 85 invernos se foram e ela encontra-se com a força e o espírito da juventude, vivendo entre o passado e o futuro. Que venham mais 85 anos. Ela está pronta: sua sede totalmente reformada, modernizada e ampliada com novos segmentos os quais visam beneficiar unicamente o urologista. Por ocasião da comemoração da magna data, a atual Gestão homenageou os Profs. Sérgio Aguinaga, Ronaldo Damião e Giacomo Errico. Diante das realidades acima apresentadas, percebi que existe sim em mim uma alternativa maravilhosa: a ALEGRIA. É tanto que comungo exatamente com a seguinte citação: “Alegria não flutua com os altos e baixos da vida. Ela se eleva acima das circunstâncias. Alegria é um estado de íntimo contentamento e bemestar, e suas exuberantes expressões exteriores”. E mais: “ alegria não pode ser fabricada nem convocada; tampouco pode ser exigida, é um cantar interior que não pode ser silenciado por circunstâncias negativas externas”. Acredito firmemente que “ é o subproduto de um relacionamento saudável e


A n o I I I | N º 6 | A g o s t o d e 2 0 1 1  Uma publicação da Fundação Lauro Campos

E d i ç ã o e s p ecial

A opressão também é ambiental por Paulo Piramba Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade de lutas contra a faxina étnica por Iná Meireles Mulheres negras: duplo preconceito, dupla militância e história única por Luciene Lacerda Racismo e antirracismo: uma abordagem revolucionária por Dennis de Oliveira Resgatar memórias radicais afrodescendentes, semear presentes e cultivar futuros de des/colonialidade e liberação por Agustin Lao Montes “Faxina étnica” ou “limpeza racial”: um novo paradigma de controle racial da população negra no Brasil por Fábio Nogueira, Joselício Júnior, Gilberto Batista Campos e Marco André da Silva Palmares: uma repercussão política de quatro séculos na história brasileira por Carlos Nobre A contribuição do PSOL na luta contra o racismo por Ivan Valente e Hamilton Assis Trabalho, educação e racismo: na luta por igualdade, combater as discriminações! por Paulo Sérgio da Silva Movimento negro e luta de classes no Brasil por Mário Makaíba

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Negra



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NegRa Ano III | Nº 6 | Agosto de 2011

Uma publicação da Fundação Lauro Campos

EdIção EspECIAL

Sumário

Agosto de 2011

Canto dos Palmares. Solano Trindade

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Apresentação por Fábio Nogueira e Luiz Arnaldo Campos

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Abdias do Nascimento, O artista da Revista Negra

8

Paulo Piramba por Luciene Lacerda

12

A opressão também é ambiental por Paulo Piramba

13

Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade de lutas contra a faxina étnica por Iná Meireles

15

Mulheres negras: duplo preconceito, dupla militância e história única por Luciene Lacerda

19

Racismo e antirracismo: uma abordagem revolucionária por Dennis de Oliveira

22

Resgatar memórias radicais afrodescendentes, semear presentes e cultivar futuros de des/colonialidade e liberação por Agustin Lao Montes

27

“Faxina étnica” ou “limpeza racial”: um novo paradigma de controle racial da população negra no Brasil por Fábio Nogueira, Joselício Júnior, Gilberto Batista Campos e Marco André da Silva

31

Palmares: uma repercussão política de quatro séculos na história brasileira por Carlos Nobre

35

A contribuição do PSOL na luta contra o racismo por Ivan Valente e Hamilton Assis

42

Trabalho, educação e racismo: na luta por igualdade, combater as discriminações! Por Paulo Sérgio da Silva

43

Movimento negro e luta de classes no Brasil por Mário Makaíba

44

Olorum ÈKÈ. Solano Trindade

48

3


Canto dos Palmares solaNo tRiNdade

Eu canto aos Palmares sem inveja de Virgílio de Homero e de Camões porque o meu canto é o grito de uma raça em plena luta pela liberdade! Há batidos fortes de bombos e atabaques em pleno sol Há gemidos nas palmeiras soprados pelos ventos Há gritos nas selvas invadidas pelos fugitivos... Eu canto aos Palmares odiando opressores de todos os povos de todas as raças de mão fechada contra todas as tiranias! Fecham minha boca Mas deixam abertos os meus olhos Maltratam meu corpo Minha consciência se purifica Eu fujo das mãos Do maldito senhor! Meu poema libertador é cantado por todos, até pelo rio. Meus irmãos que morreram muitos filhos deixaram e todos sabem plantar e manejar arcos; muitas amadas morreram mas muitas ficaram vivas, dispostas para amar seus ventres crescem e nascem novos seres.

4

O opressor convoca novas forças vem de novo ao meu acampamento... Nova luta. As palmeiras ficam cheias de flechas, os rios cheios de sangue, matam meus irmãos, matam as minhas amadas, devastam os meus campos, roubam as nossas reservas; tudo iso, para salvar a civilização e a fé... Nosso sono é tranquilo mas o opressor não dorme, seu sadismo se multiplica, o escravismo é o seu sonho os inconscientes entram para seu exército... Nossas plantações estão floridas, nossas crianças brincam à luz da lua, nossos homens batem tambores, canções pacificas, e as mulheres dançam essa música... O opressor se dirige a nossos campos, seus soldados cantam marchas de sangue.

O opressor prepara outra investida, confabula com ricos e senhores, e marcham mais forte, para meu acampamento! Mas eu os faço correr... Ainda sou poeta meu poema levanta os meus irmãos. Minhas amadas se preparam para a luta, os tambores não são mais pacíficos, até as palmeiras tem amor à liberdade... Os civilizados têm armas, e têm dinheiro, mas eu os faço correr... Meu poema é para os meus irmãos mortos. Minhas amadas cantam comigo, enquanto os homens vigiam a Terra. O tempo passa seu número e calendário, o opressor volta com outros inconscientes, com armas e dinheiros, mas eu os faço correr... O meu poema libertador é cantado por todos, até pelas crianças e pelo rio.

Ano III • Número 6


Meu poema é simples, como a própria vida, nascem flores nas covas de meus mortos e as mulheres se enfeitam com elas e fazem perfume com sua essência...

Eu ainda sou poeta e canto nas selvas a grandeza da civilização - a Liberdade Minhas amadas cantam comigo, meus irmãos batem com as mãos, acompanhando o ritmo da minha voz...

Meus canaviais ficam bonitos, meus irmãos fazem mel, minhas amadas fazem doce, e as crianças lambuzam os seus rostos e seus vestidos feitos de tecidos de algodão tirados dos algodoais que nós plantamos.

- É preciso salvar a fé, Diz o tratante opressor...

Não queremos o ouro porque temos a vida! e o tempo passa, sem número e calendário... O opressor quer o corpo liberto, mente ao mundo, e parte para prender-me novamente... - É preciso salvar a civilização. Diz o sádico opressor...

Eu sou o poeta e canto nas matas a grandeza da fé - a Liberdade Minhas amadas cantam comigo, meus irmãos batem com as mãos, acompanhando o ritmo da minha voz!... Saravá! Saravá! Repete-se o canto do livramento, já ninguém segura os meus braços... Agora sou poeta, meus irmãos vêm ter comigo, eu trabalho, eu planto, eu construo, meus irmãos vêm ter comigo...

Minhas amadas me cercam, sinto o cheiro do seu corpo, e cantos místicos sublimam meu espírito! Minhas amadas dançam, despertando o desejo em meus irmãos, somos todos libertos, podemos amar! Entre as palmeiras nascem os frutos do amor dos meus irmãos, nos alimentamos de fruto da terra, nenhum homem explora outro homem... E agora ouvimos um grito de guerra, ao longe divisamos as tochas acesas, é a civilização sanguinária, que se aproxima. Mas não mataram meu poema. Mais forte que todas as forças é a Liberdade... O opressor não pôde fechar minha boca, nem maltratar meu corpo, meu poema é cantado através dos séculos, minha musa esclarece as consciências, Zumbi foi redimido...

(Solano Trindade, Poeta do Povo, São Paulo: Ediouro, 2008, p. 37-39)

Agosto de 2011

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aPReseNtaÇÃo Por Fábio Nogueira e Luiz Arnaldo Campos

Durante quase quatrocentos anos, entre o fim do século XV e o fim do século XIX, aproximadamente 12,4 milhões de africanos escravizados foram embarcados nos navios negreiros com destino aos portos da América. Este processo que o intelectual e ativista afroamericano W. E. B. Dubois chamou de “o mais grandioso drama dos últimos mil anos da história da humanidade” foi, como bem lembrou o historiador Marcus Rediker, uma tragédia que transformou profundamente a história de nosso continente. Dos nove milhões que se calcula terem sobrevivido à pavorosa travessia do Atlântico, a maior parte foi desembarcada nas costas brasileiras, transformando nosso país no principal depositário da diáspora africana. No Brasil esta imensa legião de trabalhadores forçados seria o principal motor do colonialismo mercantilista e dos albores do capitalismo em nossa terra. Foi sobre a exploração desenfreada de milhões de corpos, mentes e corações negros e indígenas que o capitalismo irrompeu e se tornou o modo de produção dominante do novo mundo e esta constatação, por si mesma é suficiente para se perceber que a questão negra assume para os lutadores sociais americanos um papel estratégico e que não é possível pensar uma revolução anticapitalista no continente americano, em particular no nosso país, sem se enfrentar o terrível legado da escravidão que atende pelo nome de racismo. Como ressalta o

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sociólogo peruano Aníbal Quijano, nas Américas, a divisão social do trabalho, com a escravização, combinou-se com uma rígida hierarquia baseada no fenótipo, na cor e na inferiorização da cultura dos povos não europeus, derivando uma prática social onde o pertencimento a determinado grupo racial propiciava o acesso ou não a direitos e privilégios assim como a posse de bens materiais e a possibilidade de ascensão na escala social. Desnecessário dizer que esta construção ideológica penetrou profundamente no inconsciente dos dominados que muitas vezes assumiram para si as crenças e valores impostos pelos dominantes. No entanto, apesar da repressão brutal e das muralhas ideológicas, a resistência negra e indígena ao mundo colonial e

racista ocorreu em diversas frentes desde os embates diários do cotidiano, passando pela cultura, a religião, a preservação transformada de tradições milenares até chegar à luta aberta de massas como as rebeliões de Nat Turner no sul escravagista dos Estados Unidos, as guerras cimarrones do Planalto das Guianas, a Revolta dos Malês, a Cabanagem Negra, Palmares e uma infinidade de quilombos no Brasil, que tiveram como ponto maior a Revolução Haitiana, a única rebelião de escravos bem sucedida da história. Estas sagas libertadoras foram fonte de inspiração de lutas independentistas, nacionalistas, socialistas e libertárias de Nuestra América e se fizeram presentes na prática de líderes e movimentos como Zapata, Martí, Bolívar, a Revolução Sandinista, Frei Caneca, a Revolta dos Alfaiates e muitas outras (no Brasil, uma das organizações de combate à ditadura militar chamava-se VAR-Palmares) que reconheceram explicitamente a dívida de gratidão para com os combatentes negros. Apesar disto por muito tempo o racismo foi considerado pela versão dominante do marxismo em nosso continente como uma contradição secundária do sistema capitalista que seria abolida automaticamente com a supressão da exploração e, portanto, a luta antirracista seria igualmente uma luta secundária. Evidentemente não faltou no curso

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da história, pensadores que desafiaram a incompreensão e o reformismo e que através dos seus escritos e prática articularam a luta antirracista como um componente primordial da luta contra o capital. Entre outros podemos citar José Carlos Mariátegui e os primeiros intelectuais do Partido Socialista Peruano, C. R. L. James e G. Padmore no Caribe anglófono, Frantz Fanon, na Martinica, Ângela Davis, nos Estados Unidos, Walter Rodney na Guiana, Waltério Carbonell, em Cuba, Decio Freitas, Vicente Salles e Clóvis Moura, no Brasil. Que estes autores sejam pouco conhecidos e alguns deles sejam considerados “marginais” no interior da esquerda não causa surpresa. Foram considerados “heterodoxos”, tanto por aqueles que seguiam as normativas dos PC como por seus opositores e dissidentes justamente por colocarem no centro de suas análises marxistas o estudo do racismo, da resistência afroindígena e das culturas dos descendentes dos africanos

Agosto de 2011

e indígenas na América. Esta revista é uma forma de homenageá-los. Foi exatamente a partir destes pensadores e principalmente da força política que nos últimos anos os movimentos dos povos originais e afrodescendentes foram conquistando na América Latina e Caribe, que foi se formando no continente americano, inclusive no Brasil, correntes de opinião que buscam resgatar o significado transcendental da luta antirracista para todos aqueles que se dedicam à realização da utopia socialista. Esta publicação – a Revista Negra do PSOL – faz parte deste esforço. Em seu conjunto esta coletânea de artigos persegue alguns objetivos. Em primeiro lugar, demonstrar a transversalidade do racismo na ordem capitalista e as múltiplas formas que se manifesta seja no trabalho, nas relações de gênero, nas políticas públicas ou nas concepções sobre a relação entre a humanidade e a natureza. Buscamos também o resgate

das lutas negras do Brasil, notadamente o Quilombo dos Palmares, primeiro estado soberano a se formar no interior do Brasil, e acima de tudo almejamos contribuir para a elaboração de estratégias de luta que compreendam que não é possível lutar contra a exploração capitalista sem acertar contas com todos os alicerces coloniais, racistas e sexistas sobre os quais se sustenta a nossa sociedade. Contribuir para este debate é a razão de ser desta Revista Negra do PSOL

.

Fábio Nogueira Doutorando em Sociologia na USP e professor assistente do Instituto Multidisciplinar de Saúde da UFBA. Coordenador Nacional do Círculo Palmarino e militante do PSOL/BA. Lu i z A r na ldo Ca mpos D i retor Té c n ic o da Fundação Lauro Campos, membro do Comitê de Articulação do Fórum Social PanAmazônico, Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense.

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Acervo Abdias Nascimento

Abdias do Nascimento

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O artista da Revista Negra O filósofo francês Jean Paul Sartre, no auge de sua fama, em visita ao Rio de Janeiro, estranhara a ausência de negros nas conferências que pronunciava e nas recepções que lhe davam acolhida. Aproveitando o mote, numa crônica intitulada “O único negro do Brasil”, que publicou no jornal O Globo de 11 de março de 1968, Nelson Rodrigues provocou: “Gilberto Freire afirma que somos uma democracia racial. Mas está de pé a pergunta de Sartre: ‘E os negros? Onde estão os negros?’ Realmente, ninguém é negro, a não ser o Abdias do Nascimento. ” Pioneiro da causa negra na “democracia

Em 1944, funda o Teatro Experimental

de Leonel Brizola. Formado em economia

racial” brasileira, Abdias do Nascimento

do Negro, entidade que patrocina a

e diplomado pelo ISEB (Instituto Superior

viveu 97 profícuos anos. Nascido em

Convenção Nacional do Negro em 1945-

de Estudos Brasileiros), em seu extenso

Franca, São Paulo, em 14 de março de

46. A Convenção propõe à Constituinte

currículo ostenta os títulos de doutor ho-

1914, Abdias foi o segundo filho de Dona

de 1946 a inclusão de políticas públicas

noris causa da Universidade de Brasília e

Josina, doceira, e de Seu Bem-Bem,

para a população afro-descendente e

de professor benemérito da Universidade

músico e sapateiro. Poeta, pintor, escultor,

um dispositivo constitucional definindo a

do Estado de Nova Iorque (EUA).

ator, escritor, político e, sobretudo, ativista

discriminação racial como crime de lesa-

Abdias do Nascimento, falecido no Rio de

do movimento negro, foi casado quatro

pátria. Foi ainda um dos organizadores do

Janeiro em 24 de maio deste ano, é um

vezes. Com a atriz Léa Garcia , sua terceira

1º Congresso do Negro Brasileiro, em 1950.

dos maiores símbolos da luta negra em

esposa, teve dois filhos; e teve um filho

No período da ditadura militar, foi forçado

todo o continente.

com sua última esposa, a norte-americana

ao exílio. Depois, foi deputado federal,

Elizabeth Larkin.

senador e secretário de estado do governo

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9


Abdias Nascimento, Padê de Exu. Acrílico sobre tela, 100 x 150 cm. Rio de Janeiro, 1988

Abdias Nascimento, Oxunmaré Ascende (Buffalo, 1971). Acrílico sobre tela, 102 x 152 cm.

Foto de Lula Rodrigues

Abdias Nascimento, Ideograma Adinkra (Rio de Janeiro, 1992). Acrílico sobre tela, 100 x 150 cm.

Abdias Nascimento, Tema para Léa Garcia: Oxunmaré. Acrílico sobre tela, 102 x 152 cm. Buffalo, NY, EUA, 1971.

Reprodução gráfica de Luiz Carlos Gá

Abdias Nascimento, Exu Dambalah. Acrílico sobre tela, 102 x 51 cm. Buffalo, 1973.

Abdias Nascimento, Okê Oxossi (Buffalo, 1970). Acrílico sobre tela, 61 x 91 cm.

Foto de Lula Rodrigues

Fotografia de Cris Isidoro

Abdias Nascimento, Oxunmaré Ascende. Acrílico sobre tela, 102 x 152 cm. Buffalo, 1971.

Abdias Nascimento, O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade (Buffalo, 1971). Acrílico sobre tela, 102 x 152.

Foto de Lula Rodrigues

Abdias Nascimento, Estandarte (Rio de Janeiro, 1988). Acrílico sobre tela, 60 x 100 cm.

Reprodução gráfica de Luiz Carlos Gá

Abdias Nascimento, Efraín Bocabalístico: Oxossi-XangôOgum. Acrílico sobre tela, 153 x 102 cm. Nova Iorque, 1969.

Foto de Lula Rodrigues

Reprodução gráfica de Luiz Carlos Gá

As obras que ilustram esta revista são de Abdias Nascimento.

Abdias Nascimento, Composição n. 2 (Buffalo, 1971). Acrílico sobre tela, 152 x 102 cm.

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Abdias Nascimento, Riverside 1 (Nova Iorque, 1968). Óleo e acrílico sobre cartão, 53 x 43 cm.

Abdias Nascimento, Xangô n. 2. Acrílico sobre tela, 51 x 102. Buffalo, EUA, 1978.

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Agosto de 2011

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ecossocialista

Paulo Piramba

(1954-2011)

“Eu estarei com qualquer um, não importa a sua cor, desde que você queira mudar a condição miserável que existe nessa terra” Malcolm X (1925 – 1965) por Luciene Lacerda

repousavam seu tamborim – que não largava, camisa da IV, do Salgueiro, faixa do Cacique de Ramos, bandeira

Sim, este ecossocia lista cha ma-

do Flamengo e do PSOL.

do Paulo Piramba, nascido Paulo Roberto Ribeiro Guimarães, de 56

Neste dia, o Flamengo empatou

anos, seria um dos parceiros de Biko,

com o Ceará de seu amigo Alexandre.

com certeza. Sua parceria com os

Estariam, com certeza, trocando

diversos movimentos sociais não

impressões, gozações e catucadas

era silenciosa. Suas defesas intran-

pelo twiter, instrumento que ele

sigentes contra o sexismo, o racismo,

adorava. Mas eis que ontem o

a homofobia tinham a importância

Flamengo deu a volta por cima

que dava ao seu carro chefe, o ecos-

e mostrou um belo, corajoso e

socialismo, até porque estava tudo

tenaz futebol em sua homenagem. 5X4 no Santos!

imbricado nas mesmas lógicas capi-

Foi-se meu querido companheiro, amigo,

talistas. Neste número escreve sobre

amante. Ficam seus escritos sobre o ecosso-

o Racismo Ambiental.

cialismo, sobre uma outra sociedade, sempre

O apelido Paulo Piramba nasceu

explicitado com humor ácido e sincero.

na PUC, quando era estudante de Engenharia, membro do DCE e um dos arti-

Como disse seu ecoamigo João Alfredo

culadores do grupo de teatro. Foi imitando

para o comunicado do PSOL: “honrar sua

em um esquete o James Brown que o apelido

trajetória e memória é empunhar, ainda com

apareceu (“piramba, piroou, piramba...”). Se

mais vigor, as bandeiras que eram de Piramba

formou na área de Informática, sendo depois

e que são do Partido Socialismo e Liberdade:

webdesigner.

o Ecossocialismo, o feminismo, a defesa da diversidade étnica, cultural, racial e de orien-

Piramba era militante da corrente política

tação sexual”.

Enlace, onde era dirigente nacional. Integrante do setorial Ecossocialista, formalizado no I

ele dizia, rubro-negro. Também torcedor do

Encontro Nacional em Curitiba, nos dias 1, 2 e

Boca Juniors e do Barcelona.

3 de abril de 2011, que ajudou a organizar. Membro do Instituto Búzios, militava na Rede Ecossocialista, brasileira e internacional,

Ele se foi como se portou na vida: militando no que acreditava. Eu, Luciene, sou/era sua

Ele amava Fortaleza e seus amigos da terra

companheira há oito anos, desde junho de

das Dunas Brancas. Como ele dizia, era um

2003. Ele deixa um filho de afeto e de orgulho

carioense ou cearioca.

militante, Miguel (29 anos) – seu filho/enteado;

e era um dos representantes da nossa entidade

Ele nos deixou no sábado. Morreu de enfar-

e Luan, meu filho e seu enteado (16 anos). Além

na organização da conferência paralela dos

to do miocardio, tendo sido levado ao Hospital

de amig@s, “guerrilheiros” do twitter – como

movimentos sociais para a Rio + 20. Criou o

Souza Aguiar, mas já chegou lá com parada

ele chamava-, camaradas...

blog Ecossocialismo ou Barbárie, onde publi-

cardíaca. A reanimação foi feita, sem sucesso.

Era isso e mais um pouco deste homem bri-

Nos despedimos dele no domingo, no

lhante, instigante e amável: PAULO PIRAMBA,

Criativo e de humor caústico, dizia que

Rio de Janeiro, cidade que ele amava, com

o meu maior amigo e companheiro. Meu que-

perdia o a migo, mas não perdia a piada.

trechos da nação Iorubá, e a seguir ao som

rido amor e camarada.

Piramba era flamenguista, ou melhor, como

da Internacional socialista. Em seu caixão

cava seus escritos.

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Paulo Piramba presente!

Ano III • Número 6


Racismo ambieNtal

A opressão também é ambiental Anotações sobre o racismo ambiental Por paulo piramba

negros. Ou pela precarização sócio ambiental dos locais de moradia

Na sociedade brasileira, pro-

ocupados por negros.

fundamente desigual, era de

Mais recentemente, em 2005,

se esperar que, assim como em

esta forma de racismo ficou eviden-

outros aspectos e contradições,

te no caso do furacão Katrina, seja

a precarização socioambiental

pelo local onde morava a população

atingisse de forma diferenciada

negra, seja pelo tipo de medidas de

os diferentes. De fato, basta um

evacuação diferenciadas, ou ainda

olhar mais atento à forma como

pela ação e omissão do governo Bush

os vários extratos sociais, que

em relação às vítimas da catástrofe

compõem a população do Brasil,

ambiental, em sua maioria, negros.

são afetados pela degradação

No Brasil, têm sido vítimas de

ambiental, para que fique claro

racismo ambiental não somente os

que a discriminação e o pre-

povos indígenas, os remanescentes

conceito também têm um corte

de quilombos, as populações tra-

ambiental.

dicionais – caiçaras, ribeirinhos,

Na discussão sobre Justiça

caipiras e atingidos por barragens –,

Ambiental, em um determina-

mas também as populações negras,

do momento, houve a neces-

nordestinas e pobres das grandes

sidade de, a partir de várias

cidades.

lutas e conflitos, identificá-los

A antiga Aracruz, atual Fibria,

como ma nifestações do que

d e p oi s d e u m a f u s ã o c om a

chamamos Racismo Ambiental.

Votorantim Celulose e Papel, entrou

Percebeu-se que algumas con-

em conflito com povos indígenas

tradições e injustiças sociais e

(tupiniquins e guaranis) e quilom-

ambientais atingiam etnias e

bolas no Espírito Santo, tentando

populações vulneráveis, mesmo

desalojá-los de suas terras. Além

que a intenção racista não fosse

disso, ao poluir as águas e o ar

explícita, como costuma aconte-

devido às dioxinas, subprodutos

cer também em relação a outras

da produção de celulose, a empresa

formas de racismo.

atingiu duplamente estas etnias e

A partir daí, passou-se a con-

populações.

siderar Racismo Ambiental, po-

Nas grandes cidades, as popula-

líticas e práticas que atingissem

ções mais pobres têm sido afastadas

ou trouxessem prejuízo a pessoas

dos lugares onde sempre moraram,

ou comunidades, motivadas por

onde desenvolveram suas culturas e

raça ou cor. Nos EUA, o Racismo

onde estão suas raízes, e realocadas

Ambiental começou a ser perce-

em locais precarizados social e am-

bido a partir de políticas públi-

bientalmente. Essa rearrumação do

cas ligadas ao meio ambiente,

espaço urbano sempre se deu por

diferenciadas para brancos e

conta da especulação imobiliária,

Agosto de 2011

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Racismo ambieNtal e da necessidade do capitalismo criar novos

ribeirinhos e indígenas, até o crescimento in-

fora da natureza para poder submetê-la e sub-

mercados que reproduzam o lucro.

controlável da população de Altamira, o que

jugá-la, estes povos tradicionais são e estão na

ocasionará, depois da obra, o desemprego, a

natureza. Dela extraem seu sustento, e nela se

favelização e o aumento da violência.

encontram sua cultura e sua religião. O respeito

Mais recentemente, a pretexto de preparar as cidades para megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, estamos assistindo a

O discurso das autoridades, das empresas

à natureza não precisa ser ensinado em cursos

uma limpeza das chamadas áreas nobres das ci-

que compõem o consórcio que vai construir

de educação ambiental. Este respeito é o próprio

dades, com o “exílio”

Belo Monte, e daque-

respeito que eles têm consigo mesmos e com

das populações mais

las que vão se benefi-

seus semelhantes.

pobres para locais

“No Brasil, têm sido vítimas de

ciar de sua energia, é

Este modelo que não vê a natureza como

cada vez mais dis-

racismo ambiental não somente os

de que se trata do ônus

um supermercado onde recursos naturais,

tantes dos seus locais

povos indígenas, os remanescentes de

que se deve pagar pelo

pessoas e outras espécies são tratadas como

de trabalho, e onde,

quilombos, as populações tradicionais –

progresso. E os povos

commodities, mas que se coloca como parte de

além de não conta-

caiçaras, ribeirinhos, caipiras e atingidos

indígenas e as popu-

um todo, não se coaduna com as necessidades

rem com os mais bá-

por barragens –, mas também as

lações ribeirinhas, os

do capitalismo. Por isso ele tem que ser extermi-

sicos equipamentos

populações negras, nordestinas e pobres

ma is prejudicados,

nado, ridicularizado, aculturado ou, na melhor

sociais, ficam expos-

das grandes cidades.”

são t ratados como

das hipóteses, confinado onde não atrapalhe a

tas à v iolência das

entraves ao desenvol-

marcha inexorável do progresso.

milícias e do tráfico.

vimento.

Quando no Rio de Janeiro, com o pretexto

Essas populações deslocadas e afetadas

Sabemos que os ônus do desenvolvimentismo

de construir linhas expressas de ônibus para

profundamente em relação à vida que sempre

não atingem a todos da mesma forma. E, também,

os megaeventos que virão, a Prefeitura escolhe

tiveram, e da relação que construíram com as

que os bônus são apropriados por poucos. O dis-

um percurso que desaloja templos das religiões

cidades, têm raça e cor diferenciadas daquelas

curso de que esta energia é para que o Brasil não

de matriz africana no subúrbio, o discurso é

das elites que as expulsaram. São populações

pare, esbarra no alto custo das linhas de trans-

o mesmo. Estes templos de religiões que têm

negras forçadas a ocupar encostas perigosas, já

missão que precisariam ser construídas para que

uma relação íntima com a natureza, também

que não existe nenhuma política habitacional

a energia saísse da Amazônia. Da mesma forma,

são entraves ao progresso, e por isso devem ser

oferecida pelos governantes. E depois são cul-

o aceno de geração de empregos que beneficia-

desapropriados.

pabilizadas por esta ocupação.

riam os ribeirinhos é uma cortina de fumaça que

Assim, o Racismo Ambiental cumpre um

encobre o desequilíbrio insustentável causado

duplo papel dentro do capitalismo. Por um lado,

São, também, nordestinos forçados a morar em aglomerados ironicamente chamados de jar-

pelo aumento popu-

dins, à beira dos cursos d’água, áreas de várzea

lacional que sempre

ou pântanos, expostos às doenças provocadas

acontece em projetos

pelas frequentes inundações destas áreas.

desta natureza.

Inundações que tendem a estar cada vez mais

Mas a principal

presentes na vida dos moradores das grandes

ma n i festação de

cidades, por conta das mudanças climáticas.

Racismo Ambiental

o papel tradicional do racismo de, a partir das

“Os povos indígenas do Xingu e os

diferenças, construir

ribeirinhos construíram através dos séculos um outro modelo, firmemente baseado na comunhão com a natureza e com os recursos naturais. Ao contrário do modelo capitalista, que se coloca fora

relações de poder entre classes, raças, povos e etnias. Por outro lado, afirmar a superioridade de um modelo

A tentativa do Governo Federal em cons-

presente neste caso

truir a hidrelétrica de Belo Monte na Floresta

é a afirmação da su-

Amazônica é exemplar como caso de racismo

perioridade de um

ambiental. O projeto prevê a construção da

modelo de civiliza-

usina no rio Xingu e remonta ao período da di-

ção sobre outro. Da

tadura militar. Como a vazão do rio no período

afirmação dacivilização capitalista, que não

coisas e espécies pelos que elas são e não pelo

sem chuvas diminui muito, a geração de energia

mede custos para se manter viva. Desta civiliza-

que podem custar. Um modelo que estabelece

– que vai beneficiar principalmente os empreen-

ção que repousa em bases insustentáveis, de um

uma relação harmoniosa entre as pessoas e delas

dimentos de mineração da região – será muito

progresso e de um desenvolvimento ilimitados.

com a natureza

inferior à prevista pelo projeto.

da natureza para poder submetê-la e subjugá-la, estes povos tradicionais são e estão na natureza.”

civilizatório, mesmo que ele esteja em colapso, e negar outro que valoriza pessoas,

.

Os povos indígenas do Xingu e os ribeiri-

Os impactos sócio ambientais vão desde

nhos construíram através dos séculos um outro

Paulo Piramba, 56 a nos, foi membro da

a diminuição da vazão do rio, a inundação

modelo, firmemente baseado na comunhão

Coordenação Nacional do Setorial Ecosso-

permanente de alguns igarapés, a interrupção

com a natureza e com os recursos naturais. Ao

cialista do PSOL e da Rede Ecossocialista

do transporte hidroviário, única opção dos

contrário do modelo capitalista, que se coloca

Internacional.

14

Ano III • Número 6


saúde úde

Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade de lutas contra a faxina étnica “Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.” Boaventura de Souza Santos

Por Iná Meireles

longínquas da África, bem como da violência do colonizador europeu branco

Introdução

que dominou o país.

O Brasil é um país multiétnico e mul-

O impacto deste processo sobre a saúde

ticultural. Esta diversidade, entretanto,

de nosso povo está ainda por ser conheci-

não se reflete nas políticas de educação,

do. Buscar pistas teórico-metodológicas

saúde, mídia etc.

para interpretar a complexa questão da

As diversas formas de pensar, de sentir,

identidade das populações afrodescen-

de viver e de morrer de nossas populações

dentes e seus reflexos sobre a saúde no

não são levadas em conta por nossas elites,

Brasil é um desafio da atualidade.

a visão hegemônica é de uma sociedade branca e europeizada.

saúde da população negra

A escravidão africana no Brasil foi feita

O debate sobre a questão racial no Brasil

do sequestro de homens e mulheres de

tem se acirrado nos últimos anos, e envolve

suas terras, culturas e origens. Depois da

os meios acadêmicos e a mídia. No campo

abolição, adotou-se a visão da sociedade

da Saúde Pública esta discussão também

como preponderantemente branca e de

move corações e mentes, e, mesmo obede-

cultura europeia. Isto trouxe como con-

cendo à “etiqueta” e à linguagem formal da

seqüência o “embranquecimento” como

academia, está longe de ser um debate frio

projeto nacional, executado através de

e desprovido de paixão.

políticas de povoamento e imigração (HASENBALG, 1992).

Na medida em que as posições se referem não apenas a ideias, mas também a

O país não desenvolveu política espe-

intervenções por parte dos governos e de

cífica de integração dos negros recém-

movimentos sociais, as conotações políti-

libertos à sociedade envolvente, o que

ca e ideológica se acentuam e o consenso

fortaleceu as bases das desigualdades

está longe de ser alcançado.

sociais entre brancos e negros que perduram até hoje.

Alguns intelectuais advertem, preocupados, que está sendo criado um campo

O Brasil é um país de todas as cores e

de reflexão e intervenção política com

sabores. Mas esta mestiçagem não é fruto

este tema, o que pode levar à “racializa-

da integração entre os diversos povos que

ção” nas relações sociais.

construíram o país. É decorrente, sim,

Por sua vez, intelectuais comprome-

do estupro das mulheres aborígenes e

tidos com o movimento negro e com a

das escravas africanas vindas de terras

luta antirracista no Brasil vêm adotando

Agosto de 2011

15


saúde posição que considera que a (re)construção de

racistas). Segundo ele, “quase ninguém quer

mesmo tempo em que desenvolvem suas sistematizações e

“raça” como uma categoria serve como uma

políticas especiais para os negros” (p. 187). Ele

análises, exercem pressões políticas sobre as escolas de saúde

base conceitual-analítica que permite articular

cita o surgimento de um número crescente de

e o governo brasileiro (2003, p. 23).

lutas por políticas públicas compensatórias.

“negrófilos”, que contribuem para a construção

A inda que destaquem que raça não é um

de uma imagem do negro como tendo “uma

E constata: “No âmbito dos governos, há

conceito biológico, e que carece de definições

natureza diferente, mais genuína, natural,

conquistas, todavia elas ainda não fazem

precisas ou de consistência científica, demons-

sensual, associada ao corpo” (p. 185). Haveria

parte do cotidiano da população negra em

tram que ela tem sido usada na produção de

“negrófilos” cultos (antropólogos, artistas, in-

forma de assistência à saúde” (2003, p. 23,

desigualdades no Brasil e no mundo. E afirmam

telectuais) e vulgares (mercadores de mulatas,

grifo nosso).

que o conceito político que serviu para a domi-

turistas em busca dos corpos negros etc. ).

É preciso lembrar, ainda, que após a década

nação e inferiorização de diferentes grupos hu-

O que surpreende nesta polêmica é que as

de 1980 os movimentos sociais e partidos de

manos pelos homens brancos ocidentais deve

muitas evidências de que as desigualdades –

esquerda, no Brasil, passam a contar com

provocadas pelo racismo e/ou pelas diferenças

segmentos organizados em torno da questão

socioeconômicas e culturais – têm provocado

racial, rompendo com a tradição da esquerda

desvantagens materiais e simbólicas com re-

marxista. A discussão da “reforma sanitária”

percussões na saúde de parte significativa da

empreendida no país nos anos 1980/1990 não

população brasileira, acabam sendo também

priorizou políticas focais.

contestadas em nome das dificuldades de ela-

O fato é que no Governo de Ferna ndo

boração de conceitos que identifiquem “cien-

Henrique Cardoso (1994-2002) o Brasil passa a

tificamente” esta população.

adotar políticas públicas baseadas no reconhe-

Para Guimarães (2002, p. 50)

cimento da existência de racismo na sociedade e nas instituições nacionais. Em 20 de novem-

‘raça’ não é apenas uma categoria política necessária para

bro de 1995 (300 Anos de Zumbi de Palmares)

organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é também

é criado o Grupo de Trabalho Interministerial

uma categoria analítica indispensável: a única que revela que as

para a Valorização e Promoção da População

discriminações e desigualdades que a noção brasileira de ‘cor’

Negra, através de decreto presidencial, e em

enseja são efetivamente raciais e não apenas de ‘classe’.

1996 se realiza, em Brasília, a “Mesa Redonda sobre a Saúde da População Negra”.

A intenção de construir uma política espe-

Desde esta época, ativistas, cientistas e

cífica na saúde para a população negra ganha

técnicos do Ministério da Saúde têm buscado

expressão nos anos 90 do século passado,

a formulação de políticas específicas na área

ser considerado uma ferramenta importante

principalmente através dos movimentos de

da saúde. O movimento passa a destacar a

na elaboração de soluções para as desigual-

mulheres negras, que denunciavam a precarie-

centralidade que o problema específico do

dades produzidas pelo racismo (WERNECK;

dade com que estas mulheres eram atendidas

racismo – e não apenas das desigualdades de

DOCACH, 2004, p. 9).

nos serviços de saúde, o alto índice de óbito

condições de vida – adquire na produção de

Assim, aqueles que têm sido vítimas de his-

materno, o baixo o número de consultas pré-

agravos à saúde.

tórica exploração e opressão, primeiro através

natal, o raro uso de anestesia durante o parto

Procura-se, inicialmente, dar destaque às

do regime escravista, depois pela exclusão

ou abortamento, o desenvolvimento de hiper-

doenças genéticas, como a anemia falciforme e

socioeconômica no capitalismo e do racismo,

tensão durante a gestação, entre outras.

a deficiência da glicose-6-fosfato-desidrogenase,

hoje são vistos com desconfiança, como pos-

Oliveira (2003) considera que há um campo

que atingem em maior número a população preta

síveis agentes de racismo ao se reivindicarem

de estudos, de pesquisas e de assistência

e parda, mas somente o Programa de Anemia

“negros”, portadores de direitos e com intenção

em construção, citando o documento “Nós,

Falciforme foi considerado prioridade em saúde

de buscarem reparação.

mulheres negras” (2001) que relata que esta

pública, e mesmo assim não obteve recursos do

construção vinha sendo

Ministério e, naquela época, só foi implementa-

Sansone (1996) diz que no Brasil (ou pelo

do em alguns estados e municípios.

menos em Salvador, Bahia) as relações raciais são consideradas “dionisíacas” pelos próprios

realizada a muitas mãos oriundas de diferentes setores: um

Ainda em 1997 o Ministério da Saúde define

sujeitos envolvidos, e somente o movimento

número reduzido de pesquisadores(as) e ativistas anti-racistas

uma “Política de Saúde para a População Negra”.

negro acredita que no país as relações raciais

que se apropriaram de saberes dispersos produzidos nos

É desta época também a inclusão do quesito

são “apolíneas” (polarizadas, conf lituosas,

espaços acadêmicos de diferentes partes do mundo e que, ao

raça/cor nos formulários da Declaração de

16

Ano III • Número 6


saúde Nascidos Vivos e da Declaração de Óbitos, que

Nacional de DST/AIDS e Ministério da Saúde,

A participação dos adeptos de religiões

havia sido retirado, durante a ditadura militar,

que envolve jovens “cotistas” na prevenção de

afrobrasileiras de matriz africana

dos documentos no Brasil, com a justificativa

DST/AIDS. Em março de 2006 é publicado por

O movimento negro e as religiões de ma-

que não havia discriminação racial no país.

estes órgãos o texto Programa Estratégico de

trizes africanas têm histórias diferentes e,

Estas questões ga n ha m ma is v isibi l i-

Ações Afirmativas: População Negra e AIDS

enquanto os movimentos negros se unificam

dade a partir da realização, em 2001, da 3a

(2006, p. 3) cuja introdução inicia-se com o

através da cor, para as religiões isto não se

Con ferência Mu nd ia l cont ra o Racismo,

seguinte parágrafo:

coloca. A noção de axé existente na cosmogo-

Discriminação Racial, Xenofobia e Formas

nia do candomblé não impulsiona a luta por

Correlatas de Intolerância, em Durban, África

O Ministério da Saúde atua em diferentes frentes para assegurar

direitos iguais para todos, e a forma de orga-

do Sul. As denúncias de racismo e das desigual-

que as políticas públicas no setor saúde estejam em consonância

nização dos terreiros não condiciona o acesso

dades raciais adquirem grande repercussão

com as diretrizes de combate à discriminação racial, étnica,

ao candomblé à cor da pele (HOFBAUER, A. ,

e articulam-se as propostas de políticas de

de gênero e de orientação sexual. Consciente desta realidade,

2006). Seus adeptos, entretanto, são em sua

ações afirmativas, entre as quais o sistema de

o Ministério da Saúde assume o compromisso de promover a

maioria afrodescendentes.

cotas raciais.

igualdade por meio de um programa de ações afirmativas.

A partir de 2002 e da eleição de Lula há

Os terreiros sempre foram local de acolhimento, orientação, cuidados e saberes no

ampliação deste debate, com os movimentos

Esta política se torna mais clara e avança.

que se refere à saúde. Na década de 1980/1990

sociais ganhando força. Em 2003 é criada a

Em 10 de novembro de 2006 é aprovada, pelo

começam a surgir trabalhos de prevenção em

Secretaria Especial de Promoção de Políticas

Conselho Nacional de Saúde, a Política Nacional

DST/AIDS entre os adeptos de religiões bra-

de Igualdade Racial (SEPPIR).

de Atenção Integral à Saúde da População

sileiras de matriz africana (Projeto Odo-Yá,

Em 2004 se constitui o Comitê Técnico de

Negra. Em abril de 2008 é realizada a pactuação

realizado pelo Apoio Religioso e Cultural-AIDS

Saúde da População Negra, que conta com

desta política na Comissão Tripartite, a fim de

do Instituto de Estudos das Religiões (ISER,

representantes do Ministério da Saúde e da

dar seguimento à sua implementação.

1991). A entrada destas religiões, de forma or-

SEPPIR. Neste ano realiza-se o I Seminário

Em agosto de 2008 as propostas desta po-

Nacional da Saúde da População Negra, em

lítica são incorporadas, através de emendas,

Brasília. A Apresentação do Caderno de Textos

ao relatório final do Estatuto de Igualdade

Os adeptos destas religiões e seus líderes so-

Básicos (2004, p. 1), que subsidiou os debates,

Racial, na época em tramitação no Congresso

mente há pouco tempo começam a participar

começa dizendo:

Nacional. Nas palavras do relator da Comissão

coletivamente de movimentos políticos, e em

Especial destinada a proferir parecer ao Projeto

geral os pais/mães de santo se consideram res-

A Saúde da População Negra como um campo de estudo especí-

de Lei n. 6.264, de 2005, do Senado Federal que

ponsáveis pelo ritual e pelo terreiro, deixando

fico vem se constituindo nas últimas décadas, no entanto, ainda

institui o Estatuto da Igualdade Racial, depu-

para outros a militância externa. Mas o movi-

não está consolidada como um conjunto firme de diretrizes e

tado Antônio Roberto (2008):

mento que se iniciou com ações de prevenção

metas na Política Nacional de Saúde. Desta forma, a maioria

ganizada, na luta contra o racismo vai se dar através da saúde.

de DST/AIDS cresceu e se consolidou, e hoje se

dos gestores e técnicos da saúde – das três esferas do SUS

A promoção de saúde inserida no Estatuto da Igualdade Racial

organiza em rede, a Rede Nacional de Religiões

– assim como os usuários, ainda conhecem pouco sobre o

significa considerar o combate ao racismo e precisa apontar que

Afro-Brasileiras e Saúde.

assunto (grifo nosso).

o ponto de partida é a promoção: permitir uma sociedade justa,

Criada em março de 2003 durante o II

ambientalmente equilibrada, racialmente eqüitativa, paritária

Seminário Nacional de Religiões Afrobrasileiras

em gênero, que permita à população negra um desenvolvimento

e Saúde, realizado em São Luis, Maranhão,

social e econômico adequado e eqüitativo.

ela tinha como objetivos: lutar pelo direito

Permanece como preocupação o problema da distância entre a elaboração de políticas e

humano à saúde; valorizar e potencializar o

sua compreensão pelos principais interessados E continua destacando o papel do Ministério

saber dos terreiros em relação à saúde; mo-

Em 2006 é criado o Programa Estratégico

da Saúde, que colaborou através da Secretaria

nitorar e intervir nas políticas públicas de

de Ações A f i r mat iva s : Popu laç ão Neg ra

de Gestão Estratégica e Participativa, para que

saúde exercendo o controle social; combater

e A IDS (A f roatitude), em pa rceria com o

os capítulos referentes à saúde estivessem com-

o racismo, sexismo, homofobia e todas as

MEC, SEPPIR (Presidência da República),

patíveis com “as grandes linhas da política de

formas de intolerâncias; legitimar as lideran-

Secretaria Especia l de Direitos Humanos

promoção da igualdade racial”1.

ças dos terreiros como detentores de saberes e

em sua execução.

( P r e s i d ê n c i a d a R e pú b l ic a ) , P r o g r a m a

poderes para exigir das autoridades locais um

1. Relatório do voto do relator, deputado Antônio Roberto, em julho de 2008. Recebi cópia do texto através de informe eletrônico da Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras e Saúde, em julho de 2008.

Agosto de 2011

17


saúde Conclusão

atendimento de qualidade, em que a cultura

este número de consultas. Mostrou que a hi-

do terreiro seja reconhecida e respeitada; es-

pertensão arterial durante a gravidez estava

No passado, o conceito de raça era defi-

tabelecer um canal de comunicação entre os

entre as principais causas de morte materna,

nido em termos de diferenças supostamente

adeptos da tradição religiosa afro-brasileira,

sendo ma is f requente ent re as mu l heres

genéticas entre grupos populacionais. Hoje

os gestores, profissionais de saúde e os conse-

negras. Apontou que o risco de uma criança

a biologia molecular mostra que o paren-

lheiros de saúde (SILVA, 2007, p. 173).

negra morrer antes dos cinco anos por causas

tesco entre populações tradiciona lmente

A Rede conta com mais de 300 organiza-

infecciosas e parasitárias foi 60% maior que

identificadas como raças humanas é muito

ções que formam 23 núcleos, em 12 estados

o risco de uma criança branca, e o risco de

mais próximo do que se pensava. A maioria

do país. Ela tem sido um canal de interlocução

morte por desnutrição foi 90% maior entre

dos geneticistas e antropólogos concorda

entre lideranças da tradição religiosa afrobra-

crianças pretas e pardas que entre as brancas.

acerca da inexistência de raças do ponto de

sileira e os gestores e profissionais de saúde,

Afirma também que o risco de um homem

vista biológico.

propiciando um até pouco tempo impensável

negro morrer por causas externas é 70% maior

diálogo entre a cultura e a visão de mundo dos

quando comparado com um homem branco

terreiros com o SUS.

(MS, 2005) (SILVA, 2007).

Nas palavras de Maria Inês Barbosa (1998, p. 100)

Segundo o Mapa da Violência – Anatomia

A maioria das doenças que afetam a população negra são as

dos Homicídios no Brasil, que mostra os dados

mesmas da população de um modo geral. O que diferencia a

compreendidos entre 1997 e 2007, divulgado

população negra da população branca é um perfil mais crítico

pelo Instituto Sangari em São Paulo, o risco

de saúde, que é decorrente de diferentes contextos históricos,

São poucos os agravos à saúde que atingem

de jovem negro ser morto é 130% maior que o

decorrência essa que deve ser pautada ao racismo.

principalmente a população negra, como a

de um jovem branco. A desigualdade entre as

doença falciforme e a deficiência de glicose-

duas populações, que já era grande, aumen-

Os indicadores de saúde no Brasil são claros:

6-fosfato desidrogenase. Mas os indicadores

tou significativamente em cinco anos. Em

mortalidade infantil, morte em crianças me-

de saúde mostram diferenças entre brancos e

2002 morria 1,7 negros entre 15 a 24 anos para

nores de cinco anos, mortalidade materna,

negros que não podem ser explicadas apenas

cada jovem branco na mesma faixa etária. Em

diferença na expectativa de vida e perfil de mor-

por diferenças biológicas.

2007 essa proporção saltou para 2,6 para 1.

bidade – todos desfavoráveis para a população

Uma pesquisa rea lizada em 2003 pelo

Houve uma redução neste período no número

parda e preta.

Ministério da Saúde analisou o perfil da po-

de mortes por assassinato entre a população

Podemos concluir, então, que o sistema de

pulação brasileira utilizando o quesito raça/

jovem branca, enquanto entre os negros houve

saúde brasileiro contribui para a faxina étnica

cor e evidenciou, entre outros indicadores,

um aumento de 5,3% das mortes no mesmo pe-

que vem ocorrendo no país

que 62% das mulheres brancas se referem

ríodo. Enquanto o número de vítimas brancas

a sete ou mais consultas de pré-natal, en-

caiu de 18.852 para 14.308, o de negros cresceu

Iná Meireles Médica, mestre em saúde cole-

quanto somente 37% das pardas obtiveram

26.915 para 30.193.

tiva, militante do Círculo Palmarino-RJ

os números Apesar das vitórias alcançadas, a realidade está muito longe das propostas aprovadas.

.

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maio-ago. 2005.

DF, 2004.

de Janeiro, 2004.

18

Ano III • Número 6


mulheRes

Mulheres negras: duplo preconceito, dupla militância e história única “A gente tem que morrer tantas vezes durante uma vida que eu já estou ficando craque em ressurreição. . . ” Elisa Lucinda (1997)

Por Luciene Lacerda

Em 1988 foi organizado o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, marco para a organização nacional de um setor dividido (e/ou multiplicado) entre a luta feminista e antirracista. Neste período se diluía a ditadura e os movimentos sociais estavam a pleno vapor, a partir das mobilizações acontecidas na década de 1970. Simone Beauvoir (1949) já havia afirmado que “ninguém nasce mulher, torna-se”; e Neuza Santos Souza (1990) que “ser negro é tornar-se negro”. E como se juntam e se tornam mulheres negras? Mu lt iplicadas em histórias de dores e prazer, as mulheres negras se apropriam de discussões próprias de um vir a ser do feminismo negro. Lembradas sempre como as que mantiveram vivas as questões do sagrado e da cultura, foram sempre mantidas na penumbra dos movimentos negro e feminista, apenas como exemplo dos casos mais graves de discriminação e preconceito. Limitadas pelas histór ias of icia is que contam e recontam os vultos de um gênero – o masculino e de uma raça – a branca. Também limitadas em seus corpos. Para as mulheres negras, ao contrário, são criadas situações paradoxais: o acesso a centros cirúrgicos, para execução de laqueaduras tubárias, é mais “fácil” que os acessos a insumos e tratamentos contraceptivos realizados em ambulatórios,

Agosto de 2011

19


mulheRes situação denunciada pelo movimento das mu-

Tabela 1 – Mortalidade proporcional segundo idade (em anos) e raça/cor. Brasil, 2005

lheres negras, devido à esterilização em massa

(dados de mulheres negras = pretas + pardas)

que ocorria com a população negra. Foi a partir da década de 1980 que a produção de material sobre mulheres negras se multiplicou, e as histórias destas mulheres tão invisibilizadas passaram a ser contadas. Foi possível expor as bases das ideologias e das políticas de um sistema de dominação sexista e racista perpetuada pelo capitalismo. No capitalismo são os constantes e contínuos aperfeiçoamentos na produtividade do trabalho e nas relações de produção, que transformam coisas, recursos naturais e pessoas em mercadorias. Não à toa, já existiu no SESC o curso de “mulata”, a mais conhecida e

Fonte: Brasil (2005)

explícita formalização de transformação de pessoa em objeto vendido ao turismo exterior

Gráfico 1 – distribuição percentual de óbitos maternos das principais causas diretas de

da pós-escravidão, que chegou a ter consigo

mulheres brancas, pretas e pardas (dados de mulheres negras = pretas + pardas)

outro adjetivo: “tipo exportação”. Segundo Callinicos (1993, p. 8-9): o racismo é um fenômeno moderno. Diz-se freqüentemente que o racismo é tão antigo quanto a natureza humana, e em conseqüência não poderia ser eliminado. Pelo contrário, o racismo tal como o conhecemos hoje desenvolveu-se nos séculos 17 e 18 para justificar o uso sistemático do trabalho escravo africano nas grandes plantações do ‘Novo Mundo’ que foram fundamentais para o estabelecimento do capitalismo enquanto sistema mundial. O racismo, portanto, formou-se como parte do processo através do qual o capitalismo tornou-se o sistema econômico e social dominante. As suas transformações posteriores estão ligadas às transformações do capitalismo

Fonte: SIM/SVS/MS

[. . . ] O racismo é uma novidade histórica, característica das sociedades capitalistas modernas. Esta afirmação é central à

partir desta articulação, é de subordinação

em face do ocidental: a da solidariedade, fun-

análise marxista do racismo.

ao paradigma branco e ocidental, de natureza

dada numa experiência histórica comum.

inferior.

Para Sueli Carneiro, o feminismo negro tem

O racismo é alimentado e retroalimentado

Para Hasembalg (1979) o racismo (bem

como principal eixo articulador o racismo e

pelo capital, em uma sociedade que se estru-

como o sexismo) torna-se parte da estrutura

seu impacto sobre as relações de gênero, uma

tura de forma hierárquica necessária para a

objetiva das relações políticas e ideológicas

vez que ele determina a própria hierarquia de

manutenção do status quo.

capitalistas. Então, a reprodução de uma di-

gênero em nossas sociedades.

O machismo – a expressão mais cotidiana

visão racial (e sexual) do trabalho pode ser

Paula Giddings (1984) também percebe a

do sexismo – é mais antigo, e torna hierárqui-

explicada sem apelar para o preconceito e

importância da experiência e a história para

ca a relação entre os gêneros, subjugando as

elementos subjetivos.

as mulheres negras, acrescentando:

mulheres ao poder dos homens.

Lélia Gonzalez (1984) afirmava que a cons-

A articulação entre o capitalismo e o pa-

trução do feminismo negro se deu a partir das

“Para uma mulher negra, escrever sobre mulheres negras

triarcado é fundamental para a naturalização

discussões sobre seu cotidiano marcado pela

é primeiramente, um objetivo pessoal e obrigatório. É

de uma suposta inferioridade da mulher. A

discriminação racial, e, também, que o femi-

pessoal porque as mulheres cujo sangue corre em minhas

condição de mulheres negras e indígenas, a

nismo negro possui sua diferença específica

veias respira por entre as estatísticas. [. . . ] é também uma

20

Ano III • Número 6


mulheRes tarefa objetiva, porque alguém deve colocar essas ex-

tiveram um rendimento habitual médio

periências em um contexto histórico, encontrar neles

de R$ 1.551,87. Já trabalhadoras pretas e

um significado racional de forma que as forças que

pardas perceberam rendimento médio

moldam suas próprias vidas possam ser entendidas.

de R$ 865,03.

[. . . ] Pois apesar da abrangência e significância da sua história, temos sido percebidas como símbolos

Conclusão

de mulheres em ‘textos negros’ e, como símbolo de

Temos uma história única de lutas e re-

negros em ‘textos feministas’”.

sistências que apesar dos dados e do pouco respeito de “Bolsonaros” (pai e filho),

Todos(as) estes(as) teóricos(os) mos-

mostram a necessidade de políticas mais

tram a história única das mulheres negras,

focalizadas, mas principalmente, de outra

construída por dois fortes e emblemáticos

sociedade, sem hierarquias de gênero e de

pilares: sua raça/cor e seu gênero. Esta es-

raça. Uma sociedade sem classes, que va-

quina mostra os vários horizontes das dis-

lorize as histórias das que fizeram história.

cussões emblemáticas do último período.

Histórias de Dandara, Aquatune, Luíza

Nos dados sobre saúde, questões como

Mahin, Mariana Crioula, Xica da Silva,

o aborto, luta histórica do movimento

Antonieta de Barros, Tia Ciata, Chiquinha

feminista geral, priorizada por nós que

Gonzaga, eu e você

.

somos as que mais morremos, tem sido mu ito d iscut ida. Há u m mov i mento

Luciene Lacerda Milita nte do Fór um

reacionário, que busca retroagir ainda

Estadual de Mulheres Negras do Rio de

mais os tímidos e insuficientes direitos

Janeiro e do Instituto Búzios, integrante

conquistados na lei de abortamento legal.

dos setoriais de Mulheres e de Negros e

Diante da proibição do direito ao próprio

Negras; e do Diretório Nacional do PSOL.

corpo, a ilegalidade do aborto contribui para uma das maiores causas de mortalidade materna entre as mulheres negras no país: No Rio de Janeiro (dados da SMSDC), no período de 2000 a 2006, a taxa de mortalidade

Referências

Em relação às mulheres brancas, 1,8 vezes menor; Em relação aos homens negros. 1,3 vezes menor.

BEAUVOIR, Simone (1980 – reedição) – O segundo sexo, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro SOUZA, Neusa Santos (1990) – “Tornar-se Negro ou

materna total na cidade variou de 60,7 para

Seg u ndo os dados do L aboratór io de

50,4 por 100.000 nascidos vivos. A taxa entre

Análises Econômicas, Históricas, Sociais e

Ascensão Social”- Ed. Graal, Rio de Janeiro

mulheres da cor preta/parda variou de 74,9 a

Estatísticas das Relações Raciais (LAESER)-IE/

MINISTÉRIO DA SAÚDE (2005) – Saúde Brasil 2005, Uma

54,1. E a taxa entre as mulheres da cor branca,

UFRJ, o rendimento médio dos trabalhadores

análise da situação de saúde no Brasil, Brasília

de 51,9 para 34,9.

brancos do sexo masculino no mês de dezem-

GIDDINGS, Paula (1984) – When and Where I Enter.

Além disso, nesta última década e no gover-

bro de 2010 foi de R$ 2.216,59. Na comparação

Bantam Books: New York

no Lula, houve diminuição dos recursos para

com o mês anterior, observou-se valorização

GONZALEZ, Lélia (1984). The black woman’s place in the

implementação de garantias aos direitos sexu-

real de 1,3% e, na comparação com o mesmo

brazilian society. Acesso em 01 de fevereiro, 2006, em

ais e reprodutivos, e, também, para a política de

mês do ano de 2009, valorização de 5,8%. O

www. leliagonzalez. org.br.

saúde integral de mulheres. Como somos nós

rendimento médio dos trabalhadores pretos e

H A SE N B A L G, C a rlos (1979 ) – D i s c r i m i n aç ão e

da população negra as que mais utilizamos o

pardos do sexo masculino, no último mês de

Desigualdades Raciais no Brasil- Graal, Biblioteca de

SUS, e os demais aparelhos públicos, este des-

2010, foi de R$ 1.185,66. Em termos reais, na

Ciências Sociais Vol. nº10, Rio de Janeiro

mantelamento nos atinge, principalmente.

comparação com o mês de novembro de 2010,

PAIX ÃO, Marcelo; ROSSETO, Irene; MONTOVANELE,

As Vicissitudes da Identidade do Negro Brasileiro em

Os dados de rendimento médio, segundo

o rendimento dos trabalhadores deste grupo

Fabiana e CARVANO, Luiz M. (2011) – Relatório Anual das

raça e sexo do IBGE (2010), mostram as dispa-

de cor ou raça e sexo apresentou involução de

Desigualdades Raciais no Brasil; 2009-2010 – LAESER/

ridades salariais entre gêneros e entre raças. As

0,5%. Já na comparação com o mês de dezem-

UFRJ, Ed. Garamond Universitária, Rio de Janeiro

mulheres negras recebem menos pelo trabalho

bro de 2009, ocorreu uma evolução positiva,

CALLINICOS, A, 1993 – Capitalismo e Racismo; tra-

realizado, pois sua renda é:

mais uma vez, de 9,5%.

duzido por Ruy Polly (2000) do livro Race and Class,

Em relação a um homem branco, em média, 2,7 vezes menor;

Agosto de 2011

No cont ingente do sexo feminino, em dezembro de 2010, as trabalhadoras brancas

Bookmarks, Londres, janeiro de 1993; in http://socialista. tripod. com

21


RevoluÇÃ ÇÃo

Racismo e antirracismo: uma abordagem revolucionária Por dennis de oliveira

Estados-nação. Estes discursos construtores da

população, levou todo o projeto republicano de

identidade unificaram as diferenças existentes

nação de então ao racismo praticado contra o

dentro de si, na sua maioria, à força, reprimin-

próprio povo brasileiro. Em outras palavras, a

do os segmentos internos subalternizados. Por

elite seria a regeneradora de um país atrasado

Primeiramente, gostaria de estabelecer

isto, discutir racismo dentro de contextos em

não por fatores políticos ou de uma estrutura

alguns parâmetros para a discussão sobre

que se quer reafirmar um projeto nacional é

social arcaica, mas sim pelas características

extremamente complicado. Em todos os mo-

do seu povo.

Introdução

uma abordagem revolucionária do proble-

mentos em que se reafirma a construção de

Esta ideia teve consequências drásticas. Os

ma do racismo no Brasil. O primeiro deles

projetos nacionais, há uma tendência em negar

regeneradores do rebanho brasileiro introje-

é partir do pressuposto de que o racismo

ou mitigar as diferenças étnicas ou raciais.

taram práticas racistas e discriminatórias em

é um mecanismo socialmente construído

todo o tecido social do país e praticamente

Racismo, capitalismo e liberalismo

excluíram a maioria da população dos direitos

e, portanto, socialmente superável. Ele – o

Entender o fenômeno da exclusão na socie-

mínimos de cidadania e de bem-estar social.

racismo – é um mecanismo potencializador

dade capitalista brasileira é algo que remete,

Os projetos políticos que sinalizavam para

necessariamente, ao estudo dos pilares de

a constituição de um Estado de bem-estar

sustentação da estrutura social brasileira.

social protagonizados pelos movimentos so-

do Brasil, se encontra na gênese do próprio

O fenômeno da exclusão não é algo pontual

ciais e populares e agremiações partidárias

capitalismo dependente. Segundo, que não

e fruto de políticas ocasionais de governos,

de esquerda foram duramente reprimidos. Por

embora estes possam intensificá-la ou não,

esta razão, o projeto regenerador republicano

mas sim resultado do tipo de sociedade que as

nunca vislumbrou a constituição mínima de

individuais e sim como um fenômeno

classes dominantes projetaram e construíram

uma sociedade civil independente do Estado

da estrutura social. Assim, não discutirei

ao longo da história.

ainda que nos moldes clássicos do liberalismo.

da exploração das classes sociais e, no caso

abordarei o racismo a partir das práticas

comportamentos particulares e sim me-

O projeto de nação elaborado pelas classes

As relações entre Estado e população caracteri-

dominantes brasileiras nas décadas finais do

zaram-se pelo misto de repressão e cooptação

canismos sócio-históricos que explicam o

século XIX e início do XX tinha na exclusão de

no sentido clientelista-paternalista. A demo-

grande fosso social constatado hoje entre

parcela da população brasileira um dos pontos

cracia burguesa travestiu-se de tal modo que

centrais. Se algum resquício do passado colo-

o funcionamento das instituições sempre foi

nial e escravista ficou presente no projeto repu-

precário, intermediado por constantes golpes

trabalhar com autores que estudaram a

blicano de nação foi justamente a acumulação

e períodos ditatoriais, responsabilizando-se

problemática racial brasileira a partir de um

de capital de modo predatório. Chamamos de

sempre a rotina de funcionamento democrá-

acumulação de modo predatório esta forma

tico pela instabilidade e as crises constantes

do capital reproduzir-se via, principalmente,

do país.

brancos e negros. E, terceiro, que optei por

viés marxista, como Clóvis Moura, Nelson Werneck Sodré e Florestan Fernandes.

a superexploração da mão-de-obra.

A ideia da incapacidade do povo brasileiro

“No cent ro do projeto republica no de

em se auto-organizar e definir rumos próprios

Além disto, parto do pressuposto também

inspiração liberal estão a grande proprieda-

para a sua nação foi fundamentada com base

que “identidade” é uma construção conceitual

de agrícola, a diversificação da aplicação do

no racismo. O mesmo racismo que legitimou e

e que aponta uma perspectiva política. Discutir

capital e a formação do mercado de trabalho

justificou socialmente a brutalidade da escra-

identidade demonstra a direção política que

com o imigrante europeu”, afirma Bresciani

vidão serviu para legitimar e justificar o auto-

se quer tomar. Stuart Hall (2007) realizou um

(1993). A necessidade de se formar uma elite

ritarismo das elites brasileiras na sociedade

estudo onde demonstra que as identidades

local que conduzisse o país a um desenvolvi-

republicana e de mão-de-obra assalariada. O

nacionais europeias são narrativas construídas

mento firme e linear, rompendo com o atraso

Estado foi privatizado pelas elites e o sentido de

dentro do projeto moderno de constituição dos

que era creditado às características étnicas da

coisa pública deixou de existir em sua acepção

22

Ano III • Número 6


RevoluÇÃo estrita do termo. Grupos revezam-

razão, ao cristalizar esses resquícios

se no poder, na ocupação de cargos

do período escravista, o capitalismo

e na s negociata s com d i n hei ro

no Brasil nasce com uma face extre-

público. Os mecanismos institucio-

mamente conservadora e retrógrada

nais de controle pouco funcionam.

que encontra na associação de forma

Por isto, no desequilíbrio entre os

dependente ao capitalismo mundial

três poderes republicanos, o Poder

a única via de ‘desenvolvimento’

Executivo sobressai-se em detrimen-

enquanto sistema. Por isto, depen-

to do Legislativo uma vez que este

dência, crise social, autoritarismo,

último é o que mais se aproxima de

racismo e acumulação predatória

um espaço público por apresentar

são pilares de sustentação de um

espaços e possibilidades maiores

sistema econômico que já nasce

de representação de correntes de

arcaico no país.

pensamento, apesar de estar cor-

A transição conservadora

roído pelos vícios de autoritarismo e práticas políticas corruptivas que

A formação do capitalismo pres-

dominam o cenário nacional.

supõe que haja uma acumulação

Mas o mais sério de tudo isso é o

de riquezas que se transforme em

tipo de sociedade que se construiu

capital e que haja uma acumulação

ao longo dos anos. Uma sociedade

da força de trabalho separada dos

que exclui sistematicamente parcela

meios de produção – a mão-de-obra

significativa da população; parcela

assalariada.

descendente dos africanos escra-

A acumulação de riquezas que

vizados no período colonial e que,

permitiu que estas se constituíssem

em nenhum momento da história,

em capital foi obtida via a superex-

contou com políticas públicas de in-

ploração da mão-de-obra escrava e

serção no estatuto da cidadania. Pelo

também via relações de caráter mer-

contrário, conforme já vimos, o pro-

cantil com as potências econômicas

jeto republicano das elites concebia

mundiais da época, em especial a

que o lugar de classe trabalhadora

Inglaterra. Percebe-se, então, que

organizada como tal no capitalismo caberia

sistema escravista. Nelson Werneck Sodré

a associação dependente e a superexploração

ao imigrante europeu que

(2005, p. 80) escreve que “o escravismo foi o

foram fatores fundamentais para o tipo de acu-

elemento fundamental no processo de fluxo

mulação primitiva de riquezas que possibilitou

cumpre nos projetos republicanos a função de referência

de renda para o exterior que foi o traço mais

a edificação do capitalismo no Brasil.

para a elaboração de imagem idealizada do homem enquanto

claro da exploração colonial”.

trabalhador e cidadão. Essa estratégia tem seu respaldo mais abrangente na intenção de acelerar o progresso e assegurar a

Mas Sodré (2005, p. 80) vai além e ainda afirma com muita propriedade que o

caminhada no sentido da civilização. Mais tarde, após 1889,

Estes dois fatores se complementam na medida em que o atendimento às demandas externas prioritariamente torna desnecessária a constituição de um mercado interno de certa

o governo republicano assume a tarefa de fazer com que esse

longo predomínio do escravismo respondeu pela degradação

monta, o que demandaria uma acumulação

modelo idealizado coincida com a presença efetiva do imi-

física e moral da população trabalhadora, face a sua selvagem

menos predatória e a garantia de condições

grante e de suas aspirações (BRESCIANI, 1993, p. 125).

exploração, como pela estagnação de técnicas de produção

mínimas de consumo por parte da classe tra-

com a utilização apenas de instrumentos de trabalho os

balhadora. Ora, o escravismo não permite, pela

mais primitivos.

sua própria razão de ser, a sustentação de um

Este foi o resultado da passagem de um

sistema produtivo voltado prioritariamente

sistema econômico sustentado pelo escravismo para um capitalista, porém dependente

É importante ressaltar que esta herança

para a demanda interna. A ruptura com o ca-

e voltado para o atendimento das demandas

do escravismo e do período colonial e impe-

pitalismo central seria, então, condição fun-

externas. Neste sentido, este capitalismo de-

rial não encontrou no projeto republicano

damental para se pensar em um sistema pro-

pendente reforçou uma posição já ocupada

das elites nenhuma resposta que corrigisse

dutivo que atendesse primeiramente o próprio

pelo país quando colônia e sustentado pelo

os rumos do capitalismo brasileiro. Por esta

povo brasileiro, um sistema auto-sustentável.

Agosto de 2011

23


RevoluÇÃo Mas isto não ocorreu, pelo contrário. Ao disse-

escravismo tardio que, segundo ele (1994, p. 104):

resultou num processo brutal de exclusão e ge-

minar a ideia de incapacidade do povo brasi-

“chamamos de escravismo tardio o período em

nocídio contra os negros e seus descendentes.

leiro ser dono do seu próprio destino, as elites

que relações capitalistas desenvolveram-se no

As leis que se seguiram – Lei do Ventre Livre

brasileiras justificavam a manutenção da

seio da sociedade escravista, pondo em cheque

e Lei dos Sexagenários – ao contrário do que

o regime anterior e

poderia se supor, cristalizaram duas práticas

criando bases para um

que permearam toda a história republicana do

novo modo de produ-

país: o descaso com as crianças e com os idosos.

ção. ”

A Lei do Ventre Livre que libertava os filhos de

dependência externa como única forma de desenvolver o país. Desta maneira, a

“Ao disseminar a ideia de incapacidade do povo brasileiro ser dono do seu próprio destino, as elites brasileiras

Foi justamente

escravos nascidos a partir daquela data foi, na

neste período que se

prática, uma forma de tirar a responsabilidade

inicia em 1850, que se

dos senhores de escravos sobre as crianças que

criam as bases para

nasciam na senzala. Acrescente-se a isto a ine-

que a acumulação de

xistência de qualquer tipo de política social que

mudança radical de orientação do desenvolvi-

riquezas no país se transformasse em capital. A

atendesse as demandas daquelas crianças. Data

mento econômico do país. Porém, perpetuou-

Lei Eusébio de Queiroz promulgada neste ano

daí a marginalização de crianças e adolescentes

se a forma de acumulação de riquezas pela via

proibiu o tráfico de escravos. Os recursos que

negros que hoje são chamados pelo discurso

da superexploração do trabalho, a acumulação

eram utilizados no tráfico foram redirecionados

oficial de “menores”.

predatória.

para outros investimentos, entre eles, a criação

O mesmo pode-se dizer da Lei dos

Resultou nisto um país entre os dez maiores

de uma infraestrutura no país que permitisse

Sexagenários que libertava os escravos com

PIB do mundo, mas com uma das piores nações

certo desenvolvimento econômico. Exemplos:

mais de 60 anos de idade. Primeiro, era uma

com distribuição de renda do mundo. Teses

ferrovias, transportes, estradas, serviços pú-

lei quase que inócua, pois eram raríssimos os

como a do ex-ministro da Fazenda do período

blicos urbanos. Além disto, há uma pequena

escravos que chegavam àquela idade (os atuais

da ditadura militar, Delfin Neto, de que é ‘pre-

diversificação dos investimentos que deixam e

defensores da reforma da previdência social

ciso primeiro fazer o bolo crescer para depois

ser exclusivamente voltados para a expansão

que querem estipular uma idade mínima para

poder dividi-lo’ se foram duramente criticadas,

das lavouras para o nascedouro das indústrias.

a aposentadoria tiveram em que se inspirar!).

explicam a natureza da maioria dos planos

O Barão de Mauá é o maior exemplo desta fase

Segundo, que a lei libertava, mas também não

econômicos do país tocados por sucessivos

nascente da indústria brasileira.

garantia nenhum tipo de assistência social que

crise social no país assume um caráter estrutural. A sua resolução passa, ne-

justificavam a manutenção da dependência externa como única forma de desenvolver o país.”

cessariamente, pela

governos. Ao lado disto, tem-se uma constante

Outra mudança, inclusive de caráter simbó-

criminalização do movimento social, tratando

lico, foi a transfor-

qualquer manifestação reivindicatória como

mação da terra em

baderna merecedora de repressão policial.

propriedade privada

atendesse essas pessoas. Mas a maior per-

“É aqui que entra uma singularidade da formação do capitalismo brasileiro:

versidade foi o incentivo à imigração concomitante com

Onde entra o racismo nisto tudo? O racismo

pela Lei de Terras,

foi o mecanismo ideológico que serve para legi-

também de 1850.

timar socialmente esta ascensão da burguesia

Até então, a terra era

ao poder dentro de uma perspectiva arcaica. É

uma concessão da

aqui que entra uma singularidade da formação

Coroa e a riqueza

do capitalismo brasileiro: a classe que ascende

media-se pela posse

ao poder – a burguesia – se legitima socialmente

de escravos. Com

utilizando um mesmo mecanismo ideológico

o fim do tráfico e a

que legitimava o sistema anterior, o escravismo, e

transformação da terra em mercadoria, é a posse

levas de imigrantes – particularmente italianos –

o poder das classes dos senhores de escravos. Por

desta que se transforma no indicador de prestígio

para trabalhar como assalariados. A política ofi-

isto que a ‘revolução burguesa’ brasileira foi con-

e riqueza. Ao mesmo tempo, esta transformação

cial de branqueamento da população brasileira

servadora, manteve intactas estruturas e práticas

da terra em mercadoria praticamente cristalizou

trazia ainda a instituição de políticas de ação

sociais do sistema escravista e consubstanciou-

o latifúndio e impediu a democratização da es-

afirmativa para os imigrantes, como doação

se de forma transitória e não por uma ruptura

trutura fundiária no país.

ou financiamento vantajoso para a compra de

a classe que ascende ao poder – a burguesia – se legitima socialmente utilizando um mesmo mecanismo ideológico que legitimava o sistema anterior, o escravismo, e o poder das classes dos senhores de escravos.”

este processo de abolição controlada. Já a partir de 1870, ainda durante a existência de mão-de-obra de escravizados, começam a chegar as primeiras

Do ponto de vista social, este período foi

terras para estas comunidades, reconhecimento

O sociólogo Clóvis Moura descreve o pe-

marcante por dois motivos: a proibição do

das suas práticas religiosas (durante o segundo

ríodo de transição da mão-de-obra escrava

tráfico de escravos deu início a uma abolição

império, a religião católica era a oficial e seus

para a mão-de-obra assalariada como a fase do

lenta, gradual e controlada da escravidão que

atos litúrgicos de batismo e casamento tinham

com o modelo antigo.

24

Ano III • Número 6


RevoluÇÃo força normativa civil, isto foi estendido também

negros que, se conseguem certa ascensão social

e pela incapacidade deste construir um projeto

às religiões evangélicas dos imigrantes alemães

e econômica, ficam subordinados a um sistema

autônomo de nação. Era necessário o processo

do Sul do país). Era nítida a ação de inclusão

social e político dirigido exclusivamente por

civilizador branco-europeu para colocar o país

social dos imigrantes em detrimento dos afro-

brancos. Assim, se as escolas de samba exal-

nos eixos. A importação da mão-de-obra euro-

descendentes.

tam a cultura negra, elas

peia para tomar

O aparato ideológico para este projeto foi

conseguem visibilidade à

o lugar dos ex-es-

disseminado por várias instituições de pesquisa

medida que se sujeitam às

“Outra mudança, inclusive de caráter

cravos era assim

o que demonstra que houve um empenho de

condições impostas pela

simbólico, foi a transformação da terra

justificada. Da

parcela da intelectualidade brasileira para a sua

indústria cultural dirigida

em propriedade privada pela Lei de

mesma forma

elaboração. Entre estas instituições, estão os

pela classe dominante

Terras, também de 1850. Até então, a

que a importação

museus e os institutos históricos e geográficos.

branca. Além disto, os

terra era uma concessão da Coroa e a

de teorias sociais

O princípio das teorias estudadas e debatidas

lucros obtidos pela dis-

riqueza media-se pela posse de escravos.

formuladas no

nestes espaços era naturalizar as diferenças entre

seminação desta cultura

Com o fim do tráfico e a transformação

contexto europeu

os vários povos que compunham a população

negra são apropriados pela

da terra em mercadoria, é a posse desta

para “explicar” as

brasileira, transformando diferenças criadas

classe dominante branca.

que se transforma no indicador de

causas do atraso

socialmente em características advindas de

O mesmo se pode dizer

prestígio e riqueza.”

do país.

diferenças raciais. Assim, a negação do trabalho

do futebol (tanto os diri-

O branquea-

assalariado ao ex-escravo era justificada por

gentes do futebol como os

mento da popu-

uma incapacidade natural deste em adaptar-

patrocinadores dos clubes que pertencem a estas

lação brasileira foi, então, um projeto político

se a um regime moderno que seria o trabalho

elites brancas) e também da música (as grandes

e ideológico que estava diretamente colado ao

assalariado.

indústrias fonográficas são parte de corporações

modelo de desenvolvimento capitalista de então.

transnacionais). A exaltação do negro no campo

Não foi, portanto, algo isolado e descolado da

Delineia-se a partir de então certa reorientação intelectual, uma

das artes e dos esportes, não obstante o inegá-

estruturação do sistema capitalista – foi, sim,

reação ao Iluminismo em sua visão unitária de humanidade.

vel valor e competência dos seus atores serve

um dos pilares de sustentação, juntamente com

Tratava-se de uma investida contra os pressupostos igualitá-

também como mecanismo de compensação e

o caráter antinacional e dependente e a vocação

rios das revoluções burguesas, cujo novo suporte intelectual

de limitação dos espaços sociais que este grupo

autoritária. Uma nação composta por um povo

concentrava-se na idéia de raça, que em tal contexto cada vez

social deve ocupar que não são os essenciais na

incapaz e etnicamente inferior tanto não poderia

mais se aproximava da noção de povo. O discurso racial surgia,

definição dos rumos do país.

ser soberana como também não poderia funcio-

dessa maneira, como variante do debate sobre a cidadania, já

A ideia de que a culpa da miséria é do próprio

que no interior desses novos modelos discorria-se mais sobre

miserável e que, num sentido maior, gerou um

as determinações do grupo biológico do que sobre o arbítrio do

sentimento de inferioridade étnica no seio da

Das ideias à prática. O branqueamento se ar-

indivíduo entendido como um ‘resultado’, uma reificação dos

própria sociedade brasileira, foi um arcabouço

ticulou não somente com a importação de mão-

atributos específicos de sua raça (SCHWARTZ, 1993, p. 75).

ideológico que legitimou a ideia de que a única

de-obra, mas também com o estabelecimento de

via possível para o desenvolvimento do capi-

políticas voltadas ao extermínio da população

O conceito de raça é discutido inicialmente

talismo brasileiro seria a associação de forma

não branca (negros, indígenas e mestiços) da

no Brasil para naturalizar – e, portanto, cristalizar

dependente ao capitalismo europeu. Schwartz

face do país.

– diferenças construídas social e historicamente e

(1993, p. 30) ainda afirma que:

nar se não fosse conduzida pela mão dos poucos iluminados que levariam o Brasil à redenção.

No início do século XX, alguns governos estaduais proibiam a matrícula em escolas públicas

também para tirar qualquer responsabilidade do [. . . ] recém-saída da desastrosa Guerra do Paraguai e vivendo,

de pessoas portadoras de doenças e que fossem

Além disto, esta naturalização das diferenças

nos últimos anos do império, um período de relativa estabili-

negras. Nos cursos de Direito, vigorou uma

teve um papel fundamental nos processos de

dade econômica motivada pela produção cafeeira, a monarquia

disciplina chamada de Antropologia Criminal.

cooptação dos segmentos sociais colocados na

brasileira tencionava diferenciar-se das demais repúblicas

Vejamos um trecho de artigo da Revista da

base da pirâmide social, ao reservar a estes qua-

latino-americanas aproximando-se dos modelos europeus de

Faculdade de Direito do Recife, publicado em

lidades desenvolvidas em papéis secundários na

conhecimento e civilidade.

1913, citado por Lilian Schwartz (1993, p. 166):

sistema quanto à redução destas diferenças.

“O indivíduo é uma soma das características

estrutura do poder social. A exaltação de qualidades do negro em áreas lúdicas (como esporte

Os ideólogos da época culpavam a forma-

físicas de sua raça, o resultado de sua correlação

e música), ao mesmo tempo em que mascara o

ção étnica do povo brasileiro – composto por

com o meio [. . . ] O fenótipo é entendido como

racismo presente nas práticas sociais das classes

muitos negros, indígenas, mestiços e poucos

o espelho d’alma no qual se refletem as virtudes

dominantes brasileiras, coopta determinados

brancos – como a responsável pelo atraso do país

e vícios. ”

Agosto de 2011

25


RevoluÇÃo Esta visão pode ser repudiada veementemente

personagem negro que faz um discurso de afir-

ideia de discutir a questão racial como um projeto

hoje e estar fora dos manuais do Direito criminal.

mação étnica e de enfrentamento ao racismo

de construção de equidade social, reconhecendo

Porém, as práticas policiais vigentes atualmente,

de brancos é tipificado como vilão da história e

o racismo como um mecanismo ideológico legi-

nas quais vigora a ideia do “tipo suspeito” tem

morto – a protagonista, heroína, reage passiva-

timador e potencializador das diferenças sociais.

esta origem. Quais são os critérios de definição

mente e de forma chorosa ao racismo que enfren-

Assim, o combate ao racismo é passo necessário

dos tais tipos suspeitos? Raciais, conforme se

ta na trama. Esta visibilidade relativa do negro na

para a desconstrução do sistema concentrador de

infere a partir dos dados do número de pessoas

mídia tem um preço a pagar e não significa uma

riquezas. Defendemos, então, como contraponto

negras que são vítimas da violência policial.

mitigação do racismo, mas uma ressemantização

as duas vertentes conservadoras citadas anterior-

A criminalização do ser negro levou à situação

do mesmo. Difere-se, aqui, visibilidade negra e

mente, a concepção do antirracismo abarcando

encontrada hoje de que a maior parte dos assas-

visibilidade do combate ao racismo. Esta é o que

dentro deste conceito “guarda-chuva” todas as

sinados pelas forças de segurança serem negros

chamamos de uma neodemocracia racial .

ações políticas voltadas para a conquista da plena

1

.

e que os mesmos são mais condenados que os

A segunda é tratar a temática racial a partir

equidade social, sejam elas direcionadas para

brancos. Os negros ainda foram criminalizados

de clivagens, negando qualquer ação política e

as políticas públicas generalistas ou de caráter

pelo fato de não estarem inseridos no mercado

transferindo a discussão racial para o gueto. Esta

específico, como as ações afirmativas

formal de trabalho, situação esta criada com a

ação de clivagens parte do pressuposto de uma

política de priorizar a ocupação destes postos

naturalização da diferença racial ao invés de se

Dennis de Oliveira Professor da Escola de

pelos imigrantes. A Lei da Vadiagem punia

trabalhar com o conceito de categoria social-

Comunicações e Artes da USP e Programa de Pós

criminalmente quem estivesse desempregado.

mente construída. Uma vez naturalizada, não há

Graduação em Direitos Humanos da USP. Doutor em

Novamente, a responsabilização cai na própria

como se pensar em superação do racismo, assim

Ciências da Comunicação pela USP. Coordenador

vítima do problema social.

o que se aponta como perspectiva é uma atitude

do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre

Temos, assim, várias medidas que visavam

conservadora – pois não propõe uma ruptura

Cultura e Comunicação (CELACC) e membro do

apagar a digital negra da face da história brasilei-

sistêmica – e voltada unicamente na conquista

Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares

ra. A criminalização das religiões afrobrasileiras,

de espaços no atual sistema de poder.

sobre o Negro Brasileiro (NEINB) – USP. Autor dos

a mestiçagem vista como um branqueamento

Além disto, as clivagens se inserem em um

livros Globalização e racismo no Brasil (Ed. Legítima

e ‘melhoramento’ da raça, o impedimento do

contexto de esvaziamento do espaço público,

Defesa, 2000); Mídia, cultura e violência (CELACC,

acesso aos aparelhos públicos, transformaram

instância necessária para se discutir a equidade

2009), co-autor da coleção Cinema Negro (Ed.

a história do negro e negra no Brasil em duas

social. Conforme afirmou Marx, em passagem

Fiúza). Colunista da Revisa Fórum on line e colabo-

etapas: a primeira como escravizado e a segunda

citada por Bauman (2000, p. 18): “somente as ma-

rador da Agência Latino-Americana de Informação

como excluído. Em ambas, o que prevalece é a

riposas noturnas consideram a lâmpada domésti-

(ALAI-Equador). E-mail: dennisol@usp.br

negação do direito de cidadania.

ca um substituto satisfatório do Sol universal”.

Referências

É assim que esta perspectiva atua no sentido

perspectivas para o debate racial no Brasil

de garantir nacos – e não equidade – na esfera

BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar,

Disto isto, como se encontra o debate racial

pública. A luta por políticas de ação afirmativa

2000.

no país hoje? Está exprimido por duas vertentes

não pode cair na armadilha de se transformar ou

BRESCIANI, Maria Stela. O cidadão da República. Revista

conservadoras. A primeira é um retorno ao mito

em políticas compensatórias ou em parte de uma

USP, São Paulo, n. 17, p. 123-132, abr. /maio 1993. USP

da democracia racial que vai desde a negação

integração sistêmica diferenciada. Nesta batalha

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade.

da existência do racismo em si ou mesmo da sua

com base em clivagens, os únicos ganhos para a

São Paulo: LPM, 2007.

mitigação como fenômeno. O argumento desta

população afrodescendente têm sido no campo

MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo:

corrente se fundamenta num aumento relativo

de um aumento relativo de visibilidade de algu-

Anita, 1994

da visibilidade do negro no espaço midiático-

mas manifestações culturais negras e também a

OLIVEIRA, D. ; PAVAN, M. A. Identificações e estratégias nas

cultural, particularmente na dimensão lúdica.

ascensão de alguns ídolos negros, em geral ligados

relações éticas na telenovela “Da cor do pecado”. Revista de

Há uma criminalização explícita ou não na

ao campo do cultural/lúdico. Esta visibilidade nega

Comunicação e Cultura, Piracicaba: Unimep, n. 1, v. 01, p.

mídia quando do enfrentamento e tipificação

a discussão política do racismo. Por isto, esta pers-

21-33, jun/dez 2007.

do racismo por parte de negros. Na telenovela

pectiva – chamada por alguns de multiculturalismo

SCHWARTZ, L. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia das

“Da cor do pecado”, apresentada pela TV Globo

– é muito mais assimilável para o sistema.

Letras, 1993

como a primeira novela da emissora com uma

Para fugir destas duas correntes – a neodemo-

protagonista negra (a atriz Taís Araújo), o único

cracia racial e o multiculturalismo – defendemos a

SODRÉ, N. W. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 2005.

1. A este respeito ver Oliveira e Pavan (2005).

26

Ano III • Número 6


socialismo

Resgatar memórias radicais afrodescendentes, semear presentes e cultivar futuros de des/colonialidade e liberação Por Agustin Lao Montes

despossuídas, racializadas negativamente (na América Latina majoritariamente afrodescendentes e indígenas); e a desvalorização de

Introdução

nossas memórias e saberes – por isso falamos de racismo epistêmico, até diversas formas de

Este artigo foi escrito a partir de palestra

violência racial – desde a brutalidade da es-

apresentada no painel “O desenvolvimento

cravidão que foi um dos holocaustos maiores da era moderna te situações como a atual na

do socialismo na América Latina e o mo-

Colômbia onde há ao redor de 4 milhões de

vimento afro”, no Encontro Internacional

desabrigados e um sem número de mortes em

pela Consolidação do Ano Internacional dos

uma guerra que afeta desproporcionalmente os afrodescendentes, ao que é importante

Afrodescendentes – 2011, celebrado em

somar a violência racial urbana que sobretudo

Quito, Equador, em 3 e 4 de dezembro de

sofrem jovens afro através das Américas. O racismo institucional que experienciamos

2010, e organizado pela Secretaria dos Povos,

e observamos em todas as instituições, desde

Movimentos Sociais e Participação Cidadã.

o Estado onde consistentemente estamos subrepresentados, o sistema educativo onde se

Começo afirmando o valor simbólico e

excluem nossa história uma vez que nos exclui

a transcendência histórica do momento em

de participar como estudantes e professores, até

que vivemos. Se em 1992 se vitalizaram os

Racismo e colonialidade do poder

as moradias, os serviços de saúde e os mercados

se entendermos os processos de globa-

de trabalho. E finalmente o racismo como expe-

de 500 anos de resistência, em 2011 aos 200

lização em sua larga duração de ao redor

riência cotidiana de discriminação e humilha-

anos das independências que constituíram a

de 500 anos, vemos que no sistema-mundo

ção de diversas maneiras, desde olhares hostis

pátria pequena (os países) e a pátria grande (a

moderno/capitalista prima por um padrão

e insultos, até não ser bem-vindos em lugares

região), hoje com a refundação constitucional

que cha ma mos “colonia lidade do poder”

públicos e casas.

e simbólica de muitos dos estados como plu-

constituída por quatro regimes entrelaçados

Esta condição persistente que o marxismo

rinacionais, multiétnicos e interculturais, há

de dominação: capitalismo, racismo, impe-

negro caracteriza como capitalismo racial

uma necessidade imperativa de realizar uma

rialismo e patriarcado.

implica uma continuidade na dominação et-

movimentos indígenas e afros com a insígnia

reflexão profunda em favor de transforma-

Definimos o racismo como um regime de

nicorracial e opressão econômica dos sujeitos

ções radicais. Vivemos uma era de crise da

dominação que tem três dimensões: racismo

da Africania moderna tanto no continente

civilização ocidental capitalista que requer

estrutural, racismo institucional e racismo

Africano como na Diáspora Afrodescendente. A

respostas contundentes e isso implica assumir

cotidiano.

ideologia racista desde seu início no século XVI

claramente o rol de protagonistas que os afro-

O racismo estrutural afeta os componen-

considerou os sujeitos africanos e afrodescen-

descendentes tivemos nas lutas pela des/colo-

tes principais da história moderna: desde

dentes como não humanos ou menos humanos.

nialidade e libertação! Para isto é necessário

a economia mundial capitalista e a sobre-

Em contraponto, a política afro tem sido uma

calibrar a centralidade do racismo na história

ex ploração e ma rg ina li zação econôm ica

espécie de Humanização que sempre implicou

moderna e no mundo em que vivemos.

das massas traba lhadoras, camponesas e

discursos próprios e profundos de liberdade

Agosto de 2011

27


socialismo e democracia e, portanto, tem sido uma força

foram fundamentais para forjar democracia

África do Sul que lhe deram a liderança política

progressista na história da humanidade. A

não apenas aos afrodescendentes, porém para

contra o racismo e pela igualdade racial na maior

política afro sempre foi uma afirmação de vida

a humanidade em geral.

onda de movimentos anti-sistêmicos que teve o

O segundo momento, nos anos 1920 e 1930,

mundo. Um bom exemplo é como nos Estados

durante a grande de-

Unidos a insígnia do “poder negro” chegou a

pressão, revoluções

traduzir-se em “poder feminista”, “poder verme-

na China, Méx ico e

lho” (significando indígena) e “poder amarelo”

Rússia e g ra ndes

(significando asiático). O movimento negro de

g uer ras ocidenta is,

libertação dos anos 1960-70 nos Estados Unidos

floresceu outra onda

elaborou uma política que vinculou o racismo

global de movimen-

com o capitalismo e o imperialismo que se expres-

tos afro. A chamada

sou não apenas em organizações radicais como

forma e conteúdo ao racismo através de toda a

“questão negra” foi debatida nas Internacionais

os Panteras Negras e a Liga dos Trabalhadores

história moderna.

contra os regimes de terror e morte que confrontamos desde o holocausto da escravidão até a pluralidade de formas de violência racial (econômica, ecológica, epistêmica, cultural, sexual e

“A política afro sempre foi uma afirmação de vida contra os regimes de terror e morte que confrontamos desde o holocausto da escravidão até a pluralidade de formas de violência racial”

política) que deram

Comunistas onde brilharam figuras como o

Negros Revolucionários, assim como, no último

Esta espécie de autoafirmação de nossa hu-

Caribenho CLR James advogando por uma com-

Martin Luther King que ligou a oposição à Guerra

manidade e protagonismo (político, cultural e

binação de organização própria pan-africana

do Vietnã e a luta contra o racismo com protestos

intelectual) sempre foi de caráter não só local

em conjunto com participação afro nos partidos

a favor da democracia econômica. Fanon, quem

senão diaspórico e global. Os pan-africanismos

e em alianças socialistas, nacionais e interna-

foi uma das grandes figuras políticas e intelectu-

históricos surgiram e floresceram em 4 conjun-

cionais. Também foi o momento das lutas contra

ais de sua época defendeu com claridade a relação

turas histórico-mundiais onde os afrodescen-

a intervenção imperialista ocidental na Etiópia,

necessária entre lutar contra o racismo ao mesmo

dentes estivemos a frente das transformações

do movimento de Garvey que reuniu milhões

tempo em que nos mobilizamos pela libertação

históricas pela descolonialidade e libertação.

de afrodescendentes através do mundo, do

nacional e o socialismo.

Cada uma representou épocas de envergaduras

movimento cultural e político da negritude que

No texto curto deste artigo não posso fazer

histórico-mundial, momentos de crises e por

nasceu no mundo francófono e do renascimento

um balanço mínimo em que desembocou aquela

isso de grande intensidade de lutas, de revolu-

do Harlem. Há pouco falava com o intelectual

onda de movimentos sociais, porém considero

ções e mudanças profundas.

afrocubano Fernando Martinez Heredia da

importante dizer que deve ser motivo de reflexão

O primeiro foi o das revoltas de escravizados

necessidade de escrever e estudar a história dos

para nós como os êxitos relativos do movimento

e a quilombagem cujo cume foi a Revolução

afro-latino-americanos e afrocaribenhos na-

negro dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos

Haitiana, a maior revolução social de sua época

quele momento-cha-

que significou a invenção da des/coloniali-

ve dos movimentos

dade e da negritude como identidade política

políticos, culturais e

e projeto de libertação. Ali se assentou uma

intelectuais tanto na

dupla estratégia política afro: por um lado a

história da esquer-

quilombagem – é dizer criar formas e espaços

da em gera l como

próprios de libertação “casa adentro” (para usar

do mundo afro em

o conceito do afroequatoriano Juan Garcia); e

particular. Em geral,

por outro lado a estratégia de democratizar a

apesar das diferenças significativas, por exem-

condições de opressão e desigualdade, ainda

democracia ocidental, demonstrado no fato de

plo, entre DuBois e Garvey, os pan-africanismos

que o racismo siga vivo e forte como mostram os

que Haiti foi a única revolução da época onde

de princípios do século XX se opunham tanto

movimentos de ultradireita contra o presidente

se cumpriu verdadeiramente a Declaração

ao racismo como ao imperialismo. Nem todos

Obama. Muitas pessoas, incluindo Doudou

Universal dos Direitos Humanos do Homem e

eram anticapitalistas e antipatriarcais, porém

Diene quem foi o encarregado oficial de dar se-

Cidadão, de 1789. De aí em diante se assentou

o pan-africanismo radical foi também desde o

guimento à Agenda de Durban, reconhecem que

uma política afro como pilar nas políticas de

princípio uma das fontes maiores das lutas por

a América Latina é a região do mundo onde os

des/colonialidade e libertação por meio de uma

justiça social e equidade de gênero.

princípios e as políticas contra o racismo que se

lograram criar uma

“O movimento negro de libertação dos anos 1960-70 nos Estados Unidos elaborou uma política que vinculou o racismo com o capitalismo e o imperialismo”

classe média e uma classe política afro, ao mesmo tempo em que as maiorias das classes trabalhadoras e setores marginalizados seguem em severas

aprovaram em Durban tiveram maior influência

dupla estratégia: por um lado a quilombagem,

O terceiro momento, o dos anos 1960-70 foi

a criação de espaços próprios de liberdade,

quando começou a crise que vivemos hoje. Aqui

expressão cultural e práticas comunitárias de

se destacam duas grandes lutas antirracistas,

A insurgência de movimentos de afro junto

solidariedade; e, por outro, os movimentos

o movimento de libertação negra nos Estados

com a emergência de política de equidade racial

sociais, políticos e culturais e intelectuais que

Unidos e o movimento contra o Aparttheid na

através da região cuja expressão mais avançada

28

tanto aos movimentos como para os governos.

Ano III • Número 6


socialismo

é o Ministério da Igualdade Racial no Brasil,

capitalismo, o imperialismo e o patriarcado, o

integração regional como a Aliança Bolivariana

criaram o que denomino como um campo po-

tema da política de des/colonialidade e liberta-

das Américas (ALBA), as cúpulas ecológicas e

lítico afrodescendente na América Latina que

ção. Por isso, a Agenda de Durban, mesmo que

pela soberania alimentar e a Marcha Mundial

entrelaça – de formas complexas e muitas vezes

sumamente necessária, não é suficiente porque

de Mulheres. Dois assuntos fundamentais para

contraditórias – movimentos com estados e ins-

a luta contra o racismo tem que se articular com

nós são as gestões para desenvolver relações de

tituições transnacionais de tipo diverso desde as

as lutas contra outras formas de opressão com as

solidariedade e amizade com os povos do con-

ONG como “global rights” até as instituições do

quais está entrelaçada. Dita perspectiva política

tinente africano e a reconstrução do Haiti com

capital transnacional como o Banco Mundial e

tem que recuperar a melhor tradição dos movi-

base nos princípios e nas práticas da irmandade

o Banco Interamericano de Desenvolvimento

mentos emancipadores da África e da Diáspora

afrodiaspórica e a diplomacia dos povos.

(BID) e do estado imperial como United States

Africana. Isto nos leva ao tema da relação entre

Na arena da luta contra o racismo, entendida

Agency for International Development (USAID).

o chamado socialismo do século XXI, o racismo

como prática política de libertação, uma das

Uma maneira de deslindar diferenças na política

e a questão etnicorracial.

tarefas cruciais é construir relações estratégicas

afroamericana norte-sul é descrevê-la como um

A tradição radical afro resplandece por sua

entre o movimento afro e o movimento indígena.

campo de contendas entre diferentes projetos

ausência ou aparece apenas de maneira margi-

Para isso é necessário tanto reconhecer as con-

de solidariedade e poder afroamericano onde

nal nos discursos tanto políticos como intelectu-

dições comuns de opressão racial, social e cul-

competem um pan-africanismo conservador que

ais do socialismo do século XXI. Portanto, uma

tural, como respeitar as diferenças e valorar os

pode servir de ponta de lança aos piores projetos

das tarefas urgentes no que Boaventura de Souza

aportes de cada coletividade histórica. Tocando

de poder imperial (o que Chucho Garcia cataloga

Santos chama de “reinvenção da emancipação”

este tambor na chave afrodescendente, dizemos

como afrodireita); um pan-africanismo neolibe-

é recuperar a memória do pan-africanismo radi-

que se bem é positivo esgrimir posturas contra

ral que advoga por projetos como Tratados de

cal e colocar as lutas contra o racismo e particu-

o capitalismo neoliberal em favor de formas de

Livre Comércio (TLC) e o Plano Colômbia acom-

larmente contra o racismo antinegro no centro

vida material e espiritual indígena que se tradu-

panhados com fundos e programas para os afro

do que chamamos de nova política de des/

zem como Suma Kawsi ou “bem viver”, também

em contraste com um pan-africanismo radical

colonialidade e libertação. É imperativo com-

é necessário afirmar imaginários, linguagens e

que pode trabalhar em favor do surgimento de

bater a amnésia coletiva sobre a tradição racial

práticas análogas na África e na Afroamérica.

um projeto de des/colonialidade e libertação.

afro ou pan-africanismo revolucionário em

Isto implica utilizar e disseminar nossos pró-

Aqui não podemos apresentar com claridade

suas vertentes políticas, intelectuais, culturais.

prios conceitos como Ubuntu que seria um

mínima o espectro de atores, ideologias e pers-

Como bem dizia Francisco Martinez Heredia em

equivalente ao “bem viver” em linguagem sul-

pectivas políticas em jogo, porém a par de as-

uma conferência em Cuba, “Se não se combate

africana, ou Uramba que significa o comunita-

suntos desta índole que são absolutamente per-

o racismo não pode haver socialismo do século

rismo igualitário da grande comarca afropacífica

tinentes a nossa apresentação. Algo importante

XXI” ao que somamos que sem a importância

que abarca Panamá, Colômbia e Equador.

a dizer é que é necessário fazer um balanço de

dos movimentos negros como protagonistas na

êxitos e deficiências das políticas etnicorraciais,

construção histórica da democracia substantiva

as quais é importante reconhecer que ainda

e da justiça social, seguimos sumidos na negação

Encerro este artigo fazendo um convite a

são marginais e que operam em um contexto

construída pelo racismo antinegro ainda que

discutir duas interrogações-chave. A primeira é:

de capitalismo neoliberal que gera cada vez

tenhamos as melhores intenções.

quais são os desafios e perspectivas que temos

Conclusão

mais opressão e desigualdade para as maiorias

Nós, como comunidade afroprogressista,

os afrodescendentes na situação atual de crise

afrodescendentes. Em outras palavras, se não há

temos a maior responsabilidade de pôr em

da civilização ocidental capitalista? A segunda

mudanças de fundo nas estruturas de poder po-

relevo esta tradição enquanto nós nos colo-

é: em vista desta disjuntiva, que queremos e que

lítico e econômico, a eficácia das políticas serão

camos na vanguarda dos espaços e terrenos

podemos conquistar da declaração das Nações

muito limitadas e isto traz de entrada o tema da

de luta mais importantes desta época, como

Unidas de 2011 como o ano internacional dos

relação entre lutar contra o racismo e contra o

são os processos do Fórum Social, processo de

afrodescendentes?

Agosto de 2011

29


socialismo Faço o convite enumerando três dos desafios

convocou a todas e a todos no encontro de

expresso nos lamentos e nos blues, como também

principais que entendo temos para avançar

Quito. Foi claramente uma oportunidade para

na “resistência rasta” de Bob Marley e o hip-hop

simultaneamente nas lutas contra o racismo e

visibilizar e celebrar nossas memórias, histórias,

politizado que se converteu em um movimento

a favor de uma ordem social mais justa e igua-

culturas e subjetividades, como também para

político afrojuvenil em escala global.

litária, são estas:

nos organizar e mobilizar contra o racismo,

Dentro de nossas práticas des/coloniais e

1) Como superar a brecha entre a mudança

a favor da equidade racial e, de maneira mais

libertárias é fundamental destacar o afrofemi-

legislativa (inclusive constitucional) e alcançar

geral em favor do projeto de des/colonialidade

nismo, uma larga tradição que se remontarmos

transformações nas configurações de poder

e libertação que é fundamental tanto para nós

ao século XIX, recordaremos a eloquência de

social com o fim de combater os múltiplos

como para a região e a humanidade em sua

Sojouner Truth que perguntava ironicamente

modos de opressão (de classe, raça, gênero,

plenitude.

ao movimento feminista branco dos Estados

sexualidade) e do dano e destruição (ecologia,

Neste sentido, esta também foi a ocasião para

Unidos “Não sou uma mulher?”, se manifestou

guerra, de saúde física e mental etc. ) que se

o debate, o que implica demarcar diferenças e

com particular eficácia política na liderança do

aprofunda com a crise da civilização ocidental

afirmar com certeza a política afroprogressista

feminismo afro-latino-americano em colocar

capitalista em sua fase neoliberal. Isto também

na melhor tradição do pan-africanismo radical

a relação do racismo e do sexismo a frente da

supõe definir e executar estratégias de como

que supõe uma visão crítica tanto “casa adentro”

Conferência Mundial das Mulheres de 1992, em

conjugar o reconhecimento cultural e etnicor-

como “casa afora”. Sugiro que devemos valorar

Beijing, e cuja força em nossa região se revelou

racial com a redistribuição do poder e da riqueza

as possibilidades que abrem gestos simbólicos

recentemente com grande vigor no impacto

na sociedade.

oficiais como a declaração de 2011 como o Ano

público da recente visita de Ângela Davis à

2) O segundo desafio aqui é como vincular a

Internacional dos Afrodescendentes, ao passo

Colômbia. Também é sumamente importan-

política prática (ou política do possível) com

que não podemos esquecer das vias de mudança

te recordar e ressaltar a memória radical do

uma visão transformadora que nos dê um

sustentadas por iniciativa das instituições do

continente Africano manifesto nos legados de

horizonte de futuro. Como já sugerimos, as

establishment internacional.

figuras políticas como Amílcar Cabral, Patrício

melhores tradições do pan-africanismo ra-

Para isso suponho uma dupla estratégia,

Lumumba, Kwame Kruma e o projeto de Ujama

dical sempre combinaram o pragmatismo do

desde dentro e desde fora de instituições estatais

ou Socialismo Africano que articulou Julius

poder com uma visão utópica de libertação

e multilaterais para, por um lado, abrir espaços

Nyerere na Tanzânia do qual temos que apren-

não apenas para o mundo afro porém para

dentro delas e por outro lado fortalecer o nível

der suas lições tanto positivas como negativas.

a humanidade em geral, um projeto de nova

de organização, autonomia e empoderamento

Para esta espécie de revitalização e visibili-

humanidade que sempre esteve no coração da

dos movimentos e suas redes em nível local,

zação de nossa liderança nos projetos de eman-

política afroprogressista. Isto implica sabedo-

nacional e regional. Em termos institucionais,

cipação é importante organizar eventos grandes

ria no desenho e na implementação de política

o ano de 2011 deve ser um passo em diante aos

e visíveis como o Fórum Social Afrodescendente

a curto, médio e longo prazo, o que supõe saber

objetivos de estabelecer primeiro uma década,

que há planos de se realizar no Brasil em 2011.

distinguir entre reformas neoliberais que

e, em seguida, um fórum permanente de afro-

Como sabiamente dizia C. L. R. James, as lutas

reproduzem o status quo e reformas radicais

descendentes nas Nações Unidas. Obviamente,

e os projetos de libertação da África e os afro-

que busquem desafiar e derrubar a ordem im-

estes são objetivos institucionais-chave que

descendentes sempre foram os eixos centrais

perante da colonialidade do poder.

serão vitórias importantes para empunhar e

da mudança revolucionária no mundo inteiro

3) O terceiro objetivo é desenvolver uma política

realizar a Agenda de Durban contra o racismo e

e 2011 deve ser ocasião de revitalizar o nosso

de alianças e coalizões que permita acionar os

mais além dela.

papel de liderança

.

múltiplos nós de opressão com diversos laços de

Desde a perspectiva dos movimentos e de

libertação, ou combater as cadeias da colonia-

nossas comunidades de base, poderia ser um

Augustin Lao Montes é PhD em Sociologia pela

lidade com os fios da solidariedade para tecer

momento-chave para a educação política, a

Universidade de Nova Iorque e Binghamton.

“todas nossas lutas”, como diz uma insígnia dos

conscientização, a mobilização própria e o desen-

Seu campo de estudos inclui: história mundial

movimentos sociais venezuelanos. Isto implica

volvimento de alianças e coalizões para nos ins-

da sociologia e da globalização, sociologia po-

ver as reivindicações etnicorraciais em relação

talarmos solidamente nesta nova onda de trans-

lítica (especialmente os movimentos sociais

à diversidade de formas de injustiça: sexual,

formações históricas que faz da América Latina

e a sociologia do estado e do nacionalismo),

ecológica, de gênero, cultural, ética, epistêmica

a região mais dinâmica e promissora do planeta.

identidades sociais e desigualdades sociais,

– que se correspondem às diversas dimensões da

Isto significa cultivar nossas melhores tradições

sociologia da raça e etnia, sociologia urbana,

crise da civilização ocidental capitalista.

libertárias que se expressam em todo o tecido

Diáspora Africana e Estudos Latinos, sociologia

A pergunta do que queremos e o que po-

cultural desde os “saberes cantados” (como diz

da cultura e estudos culturais, teoria contem-

demos conquistar em 2011 obviamente nos

o intelectual afrocolombiano Santiago Arboleda)

porânea e crítica pós-colonial.

30

Ano III • Número 6


Racismo

“Faxina étnica” ou “limpeza racial”: um novo paradigma de controle racial da população negra no Brasil Por Fábio Nogueira1 Joselício Júnior2 Gilberto Batista Campos3 Marco André da silva4 Racismo, “capitalismo flexível” e controle racial da população negra O racismo é uma prática social com efeitos perversos na vida de bilhões de seres humanos espalhados pelos cinco continentes do planeta (sejam povos originários, afrodescendentes, árabes, ciganos, judeus, orientais etc. ). A prática do racismo é estrutural e apoiada pelo Estado e por seus aparelhos ideológicos (meios de comunicação, igreja, escola etc. ) no sistema social e político capitalista. Ou seja, o racismo é o efeito da manipulação ideológica da “raça” como uma categoria social, funcional, estruturante e estruturada a partir de práticas sociais com legitimidade e aceitação no interior de nossa sociedade que, com efeito, produz desigualdades funcionais e a reprodução da ordem capitalista. Contrarrestar esta tendência é nos opor ao caráter “racial” do capitalismo e entender a denúncia contra o racismo – para além de

entre classe e raça. O processo de racialização e

nas filas dos hospitais, pela falta de socorro e

uma luta setorial – como parte de um projeto

segregação racial do espaço urbano foi (e ainda

tratamento adequado, nas enchentes e tragé-

mais amplo de luta pela construção de uma

é) extremamente violento e complexo.

dias naturais causadas pela omissão do Estado

nova sociedade socialista, policultural, sem

Em uma de suas frentes, temos a políti-

e da defesa civil, os surtos de dengue e outras

racismo e discriminações. Isso só é possível,

ca de extermínio e genocídio da população

enfermidades que incidem majoritariamente

por sua vez, quando reconhecemos o caráter

negra que nomeamos de extermínio direto

na população negra e pobre.

“racial” e de “classe” da dominação capitalista

e extermínio indireto. O extermínio direto

Em uma segunda frente, o encarceramen-

que, em nossa formação econômico-social,

é materializado nas ações do Estado contra

to em massa da população afrodescendente

mais que se sobrepor, se fundem.

moradores destes territórios. É uma violência

(em enorme desproporção se comparada com

A política de controle racial da “faxina

estatal (ao contrário da social provocada, por

a população branca). As cadeias brasileiras

étnica” ou “limpeza racial” define – para negros,

exemplo, pelo tráfico de drogas). Ela encontra

parecem-se enormes navios negreiros, depó-

pardos, morenos e mulatos – quais são os ter-

legitimidade nas políticas estatais de repressão

sitos de carne humana em que se inscreve na

ritórios em que podem viver e a forma como

ao tráfico de drogas e de contenção da violência

pele negra sua associação necessária com o

devem viver. Favelas, periferias, subúrbios e ala-

urbana, cujo maior exemplo são as Unidades

crime. É impossível fugir ao estigma da raça:

gados são fenômenos que revelam, no território

de Polícia Pacificadora (UPP). O extermínio

a prisão é a instituição consagrada para con-

urbano, a unidade entre capitalismo e racismo,

indireto, por sua vez, ocorre pela morte lenta

trolar a pressão social e racial do proletariado

Agosto de 2011

31


Racismo urbano e rural. Logo, a elite dominante associa

e despejo são manifestações do racismo

estatal e massas subalternizadas e estigmati-

o criminoso ao seu lugar de origem: ele vive na

contemporâneo. A precarização da relação

zadas (negras e indígenas).

favela, tem amigos na favela, se comporta como

de trabalho (com o aumento do número de

O sociólogo Loïc Wacquant ao estudar as

um favelado etc. Raça, território e criminali-

“bicos”, terceirizações, informalidade e reti-

políticas de “tolerância zero” contra pequenos

dade passam a ser

rada de direitos dos

crimes como instrumento de uma repressão

confundidas como

t r a ba l hadore s) e a

mais geral, mostra que a combinação entre o

u ma coisa só : “se

“as políticas de remoção e despejo são

destruição de direi-

aumento do aparato repressivo, a liberalização

é negro e favelado,

outra manifestação do que denominação

tos sociais (moradia,

econômica e o abandono das políticas sociais

necessariamente é

controle racial por uma política estatal

saúde e educação) de-

formam a base de um Estado penal em que o

criminoso”. O en-

de ‘faxina étnica’ ou ‘limpeza racial’.”

finem um novo modus

sistema punitivo tem como finalidade adequar

carceramento, por

operandi na relação

os indivíduos às novas condições econômicas

efeito, contribui na

ent re gover nos e o

que se caracterizam pela degradação das re-

definição dos territórios negros urbanos: trata-

povo negro. O racismo se reorganiza de acordo

lações de assalariamento e a ausência de uma

se de uma malha de ruas, casas e barracos que

a necessidade dos ricos e das elites. Nos dias

rede de proteção social, além de excluir os

unem negros “marginais” ou em processo de

de hoje, a “faxina étnica” ou “limpeza racial”

“indesejáveis” (WACQUANT, 2001). Os Estados

“marginalização”.

manifesta-se no encarceramento em massa,

Unidos e a Inglaterra são os dois modelos de

Por fim, as políticas de remoção e despejo

o extermínio do povo negro e a remoção/des-

Estado penal analisados por Wacquant em que

são outra manifestação do que denomina-

pejo das populações pobres de seus territórios

os alvos desta política repressiva são os negros,

ção controle racial por uma política estatal

urbanos. A nossa luta, portanto, deve ocorrer

hispânicos, turcos, marroquinos e imigran-

de “f a x i n a ét n ic a”

tes em gera l. Seu

ou “limpeza racial”.

principal reflexo são

Se uma coletividade

discursos governa-

negra vive, de forma

ment a i s e de au-

precária, em uma área

toridades técnicas

que passa a ser valo-

em torno das “áreas

rizada pela especula-

sensíveis” nas quais

ção imobiliária ou de

os contingentes po-

um novo empreendi-

pulacionais relati-

mento imobiliário, o

vos a estes grupos

Estado age de forma

são expressivos.

violenta para expulsá-la deste território. Com

em três frentes: contra encarceramento e

Observamos, no caso brasileiro, que entre

isso, empurram os negros para longe do centro

extermínio do povo negro e o atual modelo

1990 e 2010, período que coincide com o início

e dos bairros nobres, de maioria branca, rica e

de estado punitivo; por políticas de acesso à

das contra-reformas neoliberais (governos

de classe média alta, configurando territórios

saúde pública de qualidade para o nosso povo

Collor, Itamar, FHC I e II e Lula I e II), um

“branqueados” que só podem visitar na condi-

e a legalização do aborto e por uma política

enorme salto do número de presos: de 90.000

ção de empregados domésticos ou prestadores

habitacional justa e solidária, contra os des-

para 494.237. Um aumento em escala exponen-

de serviço. O poder público, por sua vez, tem

pejos, o racismo ambiental e pela valorização

cial de 549%! Logo, existe uma correlação entre

um papel fundamental neste processo: ele faz

dos territórios negros urbanos.

a proporção de presos e a retirada da rede de proteção social do Estado brasileiro.

os investimentos em infraestrutura, financia as obras e integra-se à lógica do mercado especu-

Encarceramento em massa

lativo e imobiliário. Os megaeventos – como a

de negros e pobres

Da política de “tolerância zero” contra pequenos crimes se partiu para uma repressão

Copa do Mundo e as Olimpíadas – retratam este

a política de controle racial da “fa xina

geral e indiscriminada: a repressão contra o

movimento em que capital estatal e privado se

étnica” ou “limpeza racial” é, em nosso ponto

povo, a “liberalização” da economia para be-

articulam em torno de novos territórios que –

de vista, a prática social de um racismo que

neficiar os ricos e os poderosos e a ausência de

dentro do processo de valorização capitalista

estrutura o atual quadro de desigualdades do

políticas de educação, saúde, moradia e cultura

– remove violentamente as massas negras e

capitalismo flexível (SENNET, 2006). A pre-

para o povo pobre formam a base de um Estado

pobres de seus territórios urbanos originais.

carização das relações de assalariamento e a

que só quer punir e, desta maneira, fazer com

Portanto, encarceramento em massa, ex-

desconstrução dos direitos sociais universais

que as pessoas aceitem estas condições de vida

termínio da juventude e políticas de remoção

definem um novo tipo de relação entre poder

marcadas pela pobreza, pela discriminação e

32

Ano III • Número 6


Racismo pela violência. Os governos escolhem como

resistência seguidos de morte”, verdadeiras le-

morrem 68 mil mulheres no mundo vítimas

alvos destas políticas as “áreas sensíveis”

galizações do massacre urbano nos territórios

de aborto inseguro, de acordo com o Banco

(favelas, subúrbios, alagados, periferias, co-

negros. O extermínio de nossa juventude leva

Mundial. Em média, a invasão estadunidense

munidades carentes etc. ), onde o povo negro

ao confinamento territorial: é uma política

no Iraque mata 16 mil pessoas por ano. Ou seja,

é maioria absoluta, e procura manter o controle

para manter os negros longe da riqueza da

o aborto inseguro vitima 4 vezes mais do que

do nosso povo na base da violência policial e

burguesia racista.

o conflito armado. Do total, 30 mil mulheres

algumas políticas sociais, poucas e insuficien-

Por outro lado, a população negra é a prin-

são da África. A criminalização do aborto

tes, que não mudam a realidade vivida por nós.

cipal vítima da epidemia de crack que elimina

contribui para nosso extermínio como fruto

O aumento no número de presos não significou

jovens negros e demais usuários. Por ser barata

do racismo institucional, pois são nos bairros

mais segurança e nem redução das desigual-

esta droga é consumida por pessoas de baixa

periféricos e nos hospitais públicos que grande

dades sociais: o Estado brasileiro aprisiona em

renda e, inevitavelmente, leva à morte, seja

parte das mulheres negras morrem por falta

massa, pois não tem política social ou projeto

pelas ações de extermínio das polícias e das

de atendimento referente a aborto ilegal. A

que inclua estas pessoas.

milícias urbanas, pelo próprio tráfico em co-

juventude feminina negra é a maior vítima de

brança de dívidas ou pelas debilidades físicas

morte materna.

Extermínio do povo negro

decorrentes. Esta situação contorna-se apenas

No contexto de uma sociedade de classes,

A política de extermínio do povo negro

com políticas públicas na área de saúde, no

fortemente racista, como a nossa, a política

tem duas faces: o extermínio por meio do as-

sentido da prevenção ao uso e o tratamento

conservadora de criminalização das mulheres

sassinato decorrente da violência policial ou

adequado e humanitário, pelo sistema de

que abortam atinge diretamente as mulheres

dos conflitos urbanos e o deixar morrer das

saúde público, destes dependentes químicos.

da classe trabalhadora, sobretudo as negras

filas dos hospitais e,

e empobrecidas, com

ainda, da não legali-

ba i xa escola ridade.

zação do aborto.

Em Salvador, são as

A pr e s enç a de

jovens negras as maio-

um estado que

res vítimas do aborto

oprime a população

feito de forma ilegal,

negra é constante

insegura e solitária.

em nossa história.

(Fontes: IMAIS 2008)

Ela se ma n ifesta

Para completar este

n o s “c a v e i r õ e s ”,

quadro de extermínio

no Bope (Batalhão

“indireto”, obser va-

de

mos o aprofundamen-

Operações

Especiais) e nas ocupações de morros e fave-

A criminalização do aborto extermina

to de destruição do Sistema Único de Saúde. O

las. De acordo com o IPEA, 77,4 jovens negros

as mulheres negras. Segundo pesquisa do

estado burguês e racista deixa morrer, nas filas

a cada 100 mil são assassinados violentamente

Instituto Mulheres pela Atenção Integral à

dos hospitais, sem atendimento de qualidade,

pelo Estado brasileiro a cada ano. O Estado

Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos

o povo negro, indígena e mestiço. Afinal, para

constrói uma imagem de que os jovens assas-

(IMAIS), sobre a realidade do aborto inseguro

os que detêm a riqueza e o controle do Estado

sinados são indivíduos que não tiveram uma

na Bahia, a prática de aborto clandestino é

para que cuidar da saúde do povo negro? É

postura correta: são transgressores da ordem,

um grave problema de saúde pública. O Jornal

preciso, para as elites, eliminar os “descartá-

bandidos, vagabundos. Além disso, tais ações

Brasil de Fato, de 07 a 13 de maio de 2009,

veis”. É por isso que lutamos, pois queremos

se baseiam no procedimento de “autos de

apresentou números alarmantes: anualmente

viver e sonhar!

Contra os despejos, Tabela 1 – Óbito materno por grupo de causas,

o racismo ambiental e pela valorização

raça/cor no ds Cabula/Beirú (salvador-BA), 2000 a 2004

dos territórios negros urbanos

OBSTÉTRICAS DIRETAS

OBSTÉTRICAS INDIRETAS

As forças racistas e capitalistas através da

ABORTO

Branca

Negra

IGN*

Branca

Negra

IGN

Branca

Negra

IGN

01

10

0

0

1

0

0

3

1

Fonte: Distrito Sanitário Cabula/Beirú. In: Dossiê A Realidade do Aborto Inseguro na Bahia (2008) *Ignoradas

repressão estatal a serviço dos interesses da burguesia aceleram e aprofundam o racismo ambiental e a segregação nas cidades brasileiras: querem confinar o povo negro ao gueto, à

. Agosto de 2011

33


Racismo favela, à periferia ou subúrbio. Em Salvador, o

ambulantes, moradores em situação de rua,

Por tudo isso é necessário falar em “faxina

governo propôs o Plano Diretor (PDDU) para

mototaxistas, moradores de favelas e cortiços

étnica” e em “limpeza racial”. Como radicais,

apoiar a fragmentação da cidade para que

tornaram-se alvo do governo. Este exemplo se

denominamos o fenômeno pelo nome, na raiz

grandes empresários escolham as partes a

repete em outras capitais: despejos e remoções

do problema. Entendemos, evidentemente, que

serem vendidas e expulsar o povo negro dos

violentas da população negra são os principais

o capitalismo brasileiro combinou as opres-

seus territórios tradicionais. Querem limpar

instrumentos desta política. Este cenário tende

sões de raça e gênero e a exploração de classe.

as cidades brasileiras e expulsam o povo

a se agravar com os megaeventos como a Copa

É, portanto, um fenômeno singular de uma

do Mundo e as Olimpíadas. Por sua vez, o racis-

realidade singular. Denunciar e combater um

mo cultural ajuda demarcar territórios raciais:

dos mores da dominação burguesa é dever de

o preconceito ao funk e o hip hop (em que se

todos os que se identificam com o povo negro

desclassifica a cultura, de forma racista, como

e suas aspirações de liberdade e reconheci-

de “preto favelado”, logo, sem “qualidade” e de

mento coletivo.

“marginais”) justifica a prática de todo tipo de violência e racismo.

Ao combate da faxina étnica é necessário um conjunto de políticas públicas que tenham

As populações quilombolas, por sua vez,

como marco uma cidade racialmente mais justa

sofrem uma série de agressões, físicas e men-

e integrada. Se, nos centros urbanos de nosso

tais, nos territórios em disputa, numa situação

país, pequenas faixas do território urbano, de

de absoluta vulnerabilidade. Os atores em con-

maioria branca ou totalmente branca, mono-

flito são de um lado as populações quilombolas

polizam os equipamentos públicos (melhores

totalmente fragilizadas, e do outro latifundi-

escolas, hospitais, centros de comércio, lazer,

ários e seus capangas, a guarda armada das

recreação, produção e difusão cultural) em

grandes empresas do agronegócio (a exemplo

detrimento da enorme massa negra desassis-

da Aracruz, entre outras) e as polícias estadu-

tida e esparramada em territórios em que o

ais. Em total desvantagem estas populações

único equipamento público é uma unidade da

estão desaparecendo seja pela expulsão de suas

polícia, isto é sinal de que ainda estamos muito

terras e pela desestruturação do universo cul-

longe de modificar esta realidade

.

tural, prejudicando, entre outros, a afirmação da identidade afrodescendente.

Fábio Nogueira Doutorando em Sociologia na USP e professor assistente do Instituto

Considerações finais

Multidisciplinar de Saúde da UFBA.

Estamos convencidos que, nos dias atuais,

Joselício Júnior Jornalista e pós-graduando

de desindustrialização da economia e recolo-

em Comunicação e Cultura do Centro de

nização do pensamento social brasileiro, em

Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e

que o imperialismo penetra com mais força

Comunicação.

e violência em nossa sociedade, o racismo –

Gilberto Batista Campos Historiador.

fenômeno associado à ordem social burguesa

Marco André da Silva Grêmio Recreativo

– manifesta-se com toda sua intensidade no

Escola de Samba Canários das Laranjeiras,

território urbano.

Rio de Janeiro.

A vanguarda social combativa do movinegro para cada vez mais longe dos centros

mento negro, dos movimentos populares e

Referências

das capitais.

das forças progressistas contribui para poli-

INSTITUTO MULHERES PELA ATENÇÃO INTEGRAL À

A política racista do Choque de Ordem, no

tizar o conceito de território negro urbano:

SAÚDE, DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS.

Rio, é expressão do processo de faxina étnica

ele pode ser uma ferramenta poderosa de

Dossiê “A realidade do aborto inseguro na Bahia: a ilegali-

contra os territórios negros. Seu alvo era, no

afirmação dos afrodescendentes que vivem

dade da prática e seus efeitos na saúde das mulheres em

começo, o proletariado negro formado por

nestas á reas com o objet ivo de fa zer um

Salvador e Feira de Santana”. Salvador: IMAIS, dez. 2008.

vendedores ambulantes que têm as suas mer-

contraponto às representações racistas que

SENNET, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de

cadorias – meio de sustento – saqueadas por

associam o território em que vivem à crimi-

Janeiro: Record, 2006.

agentes do estado burguês e racista. Hoje avan-

nalidade, ao vício e à ausência de produção

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro:

çou seu aparato de violência: trabalhadores

artística e cultural.

Jorge Zahar, 2001.

34

Ano III • Número 6


histó istóRia

Palmares: uma repercussão política de quatro séculos na história brasileira Por Carlos Nobre

Assim, Palmares, em algumas especulações teóricas, passou a ser a “Tróia Negra” do Brasil

A África e suas diásporas incomodam quando

devido à resistência de seus integrantes em não

começam a lutar pela defesa de suas digni-

quererem mais ser escravos nas plantações de cana-de-açúcar dos engenhos nordestinos que

dades e liberdade humanas; quando reivin-

então começavam a ser explorados em grande

dicam a igualdade de tratamento, das opor-

escala pelos colonialistas2.

tunidades e do respeito de suas diferenças

Partindo deste pressuposto, Pa lmares,

culturais e identitárias. Incomodam quando

então, por suas dimensões estruturais, duração e organização interna, era natural que esta

tentam mais do espaço de inferioridade a

sociedade antagônica ao colonialismo provo-

elas predestinado para participar igualmente

casse estudos amplos e aprofundados sobre a

da distribuição do produto social, da estrutura

resistência afro e como este “reino negro”, como acentuou um historiador, no final dos anos

de poder e de todos os mecanismos simbóli-

1950, pôde se constituir como tal no Nordeste.

cos de superioridade, reservados ao segmen-

Mas não é essa disposição investigativa

to social eurodescendente da sociedade. Os

que encontramos na historiografia brasileira.

africanos e seus descendentes incomodam

Existem, de fato, apenas seis livros fundamentais sobre Palmares, alguns já esgotados

quando começam a buscar a recuperação de

e raros. Não à toa que militantes afro não

sua humanidade negada, sua história e a sua cultura destruída durante os séculos de escravização e colonização. Incomodam quando assumem, com orgulho, sua negritude e a

conseguem localizar obras sobre Palmares Há especialistas que afirmam que Palmares

nas bibliotecas, nos centros culturais ou nas

era um conjunto de 11, ou até 20 cidades ou

faculdades devido à raridade de obras a res-

mocambos, distantes um do outro até 30 qui-

peito deste quilombo colonial 3.

lômetros. Ali se engendrou uma sociedade livre

Então, por que inexistem obras com va-

reivindicam com cabeça erguida para sair da

da escravidão que enfrentou uma das nações

riadas linhas de pesquisa sobre este “reino

dependência cultural ocidental alienante e

mais poderosas do planeta naquela conjuntura

negro”? Por que os historiadores dão meia volta

histórica.

e evitam Palmares, se , de fato, na história colo-

da inferiorização contra eles forjada.

A sociedade palmarina, neste contexto, se

nial brasileira, este foi o grande ato político dos

Kabenguele Munanga, no prefácio do livro

tornou na história brasileira realmente um

marginalizados da época, isto é, a construção

“A África que incomoda”, de Carlos Moore (2008).

exemplo de grande significado, pois, construiu,

de outra sociedade, antagônica àquela, ibérica,

ao longo de quase um século e meio, uma res-

branca, voltada para o escravismo e ostentan-

peitável trajetória de enfrentamento ao colo-

do sofisticados aparatos penais para submeter

Nas Américas, inexiste mito ou saga igual

nialismo, com batalhas memoráveis, exibição

os escravizados (NOBRE, 2008)?

a Pa lma res, a mplo território na serra da

de artefatos bélicos e táticas de guerra capazes

Barriga, entre Alagoas e Pernambuco, que, de

de rivalizar com exércitos bem equipados de

1596 a 1716, segundo alguns pesquisadores,

outras sociedades da época.

Introdução

2. Ver as obras de Carneiro (1966) e Freitas (1988).

Em geral, poucos grupos afros têm acesso à história de

se transformou numa grande aglomeração

3.

de escravos fugidos colonialismo português.

Palmares devido a esta deficiência histórica de falta de mate-

Os palmarinos empreenderam uma das sagas

1. Neste caso, consultar as seguintes obras: Peret (1955), Carneiro

rial didático. Como frisamos, os livros sobre o assunto estão

negras mais dramáticas e transformadoras da

(1966), Freitas (1988), Freitas (1978), Alves Filho (1988), Gomes

esgotados e não são reeditados. Assim, a história de Palmares é

história continental.

(2005), Funari e Carvalho (2005).

somente do conhecimento de pequenos grupos afro.

Agosto de 2011

35


históRia Caso tivéssemos obras variadas a respeito

para ser explorada. Assim, a Corte acaba intro-

tráfico entre o porto de Recife e os entrepostos

deste tema, neste caso, Palmares mostraria o

duzindo a mão-de-obra escrava originária da

africanos avançava a cifra de 15.430 escravos.

lado protagonista de certa cultura africana no

África em terras nordestinas, vinda em grande

Assim, a presença de escravos da etnia jaga era

enfrentamento com a sociedade “europeia”. E

monta, antes do término do século XVI.

tão forte nos primeiros momentos do quilombo

não é por falta de documentos, pois, trata-se

Desse modo,

de um fato amplamente documentado pelos

começa o surgir o

colonialistas e pelos seus representantes nas

Nordeste açucareiro.

antigas capitanias do Nordeste da época .

Este novo sistema

4

que Palmares era cha-

“Caso tivéssemos obras variadas a respeito deste tema, neste caso, Palmares mostraria o lado protagonista de certa

mada de Angola Jaga ou Angola Pequena” (GOMES, 2005). Assim, em fins do

É de se notar que em cada um dos seis livros

exploratório institui

existentes sobre Palmares, cada historiador

novas regras, mo-

trouxesse documentos/fatos novos em relação à

delos, prog ra mas,

guerra dos escravos encastelados em Palmares.

padrões, tendo a vio-

Ou seja, ao se olhar para Palmares, surgem di-

lência estatal como pano de fundo para o suces-

num grande engenho do sul de Pernambuco.

versas linhas interpretativas para sua existência

so do negócio. Assim, o novo modelo, expresso

Armados de foices, chuços e paus, atacaram e

tal a força documental existente no Brasil, em

por meio de normas autoritárias, fortalece o

dominaram os feitores e os donos e escravos.

Portugal, na Holanda e até na Inglaterra 5.

controle penal do escravo através do uso da

Como perceberam que se permanecessem no

violência que se torna regra, e esta provoca a

engenho seriam atacados pelas tropas colonia-

reação do oprimido, por meio de diversos me-

listas, se embrenharam mata adentro, buscando

Após se apropria r do Brasi l, em 1500,

canismos como as fugas em grupos ou indivi-

povoações distantes do alcance dos senhores.

Portugal, então uma das maiores potências ma-

duais para regiões distantes dos engenhos ou

Assim, chegaram a uma região montanho-

rítimas da época, ao lado de Espanha, Inglaterra

ataques diretos aos senhores e seus prepostos

sa, fechada, áspera, conhecida apenas como

e Holanda, se preocupou inicialmente com a

(NOBRE, 2008).

Palmares, que começava na parte superior do

Nascimento de palmares

cultura africana no enfrentamento com a sociedade ‘europeia’.”

século XVI – 1596 ou 1597 –, ao redor de 40 escravos se revoltaram

exploração do pau-brasil por meio da mão-de-

Segundo Gomes (2005), em 1583, existiam

rio São Francisco e ia terminar sobre o sertão

obra de colonos. A valorização, por conseguinte,

66 engenhos somente em Pernambuco com dois

do Cabo de Santo Agostinho. Era uma região

do açúcar, no mercado mundial da época, muda

mil escravos, sendo que os índios perfaziam

cheia de árvores, rica em todo tipo de vegeta-

o panorama do modo de produção português,

dois terços desta força de trabalho empregada

ção, rios, montanhosa, onde nunca os portu-

que passa a explorar o novo produto com mais

na produção de açúcar, que, na América portu-

gueses chegaram a explorar, localizada entre

ímpeto, a partir de meados do século XVI.

guesa, se tornara na principal cultura monocul-

Serinhaém (Pernambuco) e Viçosa (Alagoas)

Para tal empreendimento, o sistema de ex-

tora. Entre 1583 e 1585, o número de engenhos

FREITAS (1978).

ploração colonial necessitava de mão-de-obra

dá um salto extraordinário no Brasil, oscilando

Assim, esse grupo de fugitivos – escravos da

em larga escala, pois, a cana-de-açúcar, com

entre 108 e 128 propriedades, mais da metade

etnia jaga, de Angola – começa a estabelecer a

valor elevado no mercado internacional, neces-

deles fincados em Pernambuco. Percebam,

primeira povoação. Mais à frente, os historiado-

sitava de longas faixas de terras e de muito braço

neste sentido, como este estado nordestino

res iriam chamar de Palmares, a terra dos es-

vem se tornando um concentrador de escra-

cravos. Deste local, os fugitivos pensaram mais

4. Santos (2006), ao discorrer sobre a personalidade de Zumbi,

vos. Estes, por seu turno, em sua maioria, de

longe: construir um modo de vida alternativo

mostra que existe farta documentação para se ampliar o entendi-

acordo com Gomes, são originários de Angola.

ao mundo colonial, onde, aliados à cultura que

mento do quilombo de Palmares. Aliás, existe sempre uma tradi-

Este historiador mostra que o tráfico vindo de

traziam da África, puderam permanecer livres

ção portuguesa de produção de vasta produção documental.

Angola injetou entre 1600 e 1625 ao redor de 150

da perseguição colonial e instaurar os primeiros

5. Os arqueólogos Funari e Carvalho (2005) mostram que

mil escravos, e 50 mil de 1625 a 1670. Levando

modos de vida organizada no mato por meio

Palmares era uma sociedade sofisticada, que mantinha relações

em conta também o contrabando de “almas

da criação de choças, do cultivo de mandioca e

com outros grupos étnicos ou europeus ou africanos. Assim, era

negras”, o número era outro, ou seja, entre

frutas, da pesca e da caça (CARNEIRO, 2000).

uma sociedade aberta para o mundo. Sustentam eles: “a identidade

1650 a 1700, na verdade, segundo Gomes, entre

Cinco anos depois da fuga dos 40 escravos,

palmarina ter-se-ia consolidado através de contatos e da fusão de

360 e 500 mil africanos de Angola entraram

o governador-geral de Pernambuco ordenou

diferentes culturas coloniais, européias e africanas” (p. 51).

no Brasil. “De 1620 a 1623, o volume anual do

a um colaborador, Bartolomeu Bezerra, que

36

Ano III • Número 6


históRia marchasse contra “os negros alevantados de

vista disso, não se preocuparam somente em

metodológico. Segundo ele, Palmares era cons-

Palmares”. A empreitada, no entanto, não deu

se defender, mas estabelecer um novo modelo

tituída de nove mocambos ou cidades distintas,

certo, pois os palmarinos se tornavam “invi-

organizacional de rebeldes ao então sistema

às vezes um deles ostentando o nome do chefe

síveis” no mato. Alguns “alevantados” foram

colonial. Assim, na serra da Barriga pontuava,

do microquilombo, os quais eram distantes

presos, é certo, mas a existência de Palmares

em termos populacionais, um sincretismo

ou próximos de Macaco, a capital do estado

se propagou pela região.

étnico onde se podia encontrar africanos, afro-

negro. Os demais mocambos eram Amaro,

brasileiros, mamelucos (filhos de brancos com

Andalaquituche, Acotirene, Tabocas, Zumbi,

Assim, mais escravos fugiam para Palmares, que engrossa sua população e logo os portugue-

índios), índios, bran-

ses perceberam que os antigos cativos estavam

cos pobres e mestiços

construindo um novo tipo de sociedade, com

em geral.

apoio de táticas de guerrilha, que crescia e desafiava o sistema colonial.

No entanto, este mesmo contingente

Osenga, Subpi ra,

“logo os portugueses perceberam que os antigos cativos estavam construindo um novo tipo de sociedade, com apoio de táticas de guerrilha, que crescia e

Dambraganga. G omes, por seu turno, durante o período de ex istência palmarina, destacou

Esta primeira fase palmarina (1596 a 1630)

populacional, contra-

teve duas expedições repressivas contra eles e

ditoriamente, podia

cerca de seis ataques dos negros às povoações

ser visto engrossando

próximas, segundo a perspectiva metodológica

também as tropas colonialistas encarregadas

tituíam o quilombo de Palmares. Subupira, por

de Alves Filho (1988, p. 13). Gomes (2005), por sua

de acabar com o quilombo e recuperar os fu-

exemplo, era a cidade onde os jovens apren-

vez, detalha que antes de Palmares já havia mo-

gitivos. Ou seja, a Coroa portuguesa também

diam a arte da guerra e os ferreiros produziam

cambos na Bahia e em Sergipe, mas nada igual

manipulava os sentimentos de liberdade e as-

as armas de combate (foices, machados, arcos,

aos acampamentos negros da serra da Barriga.

censão dos diversos grupos étnicos dos baixos

lanças, flechas etc. ). Documentos coloniais

O crescimento do território apropriado pelos

estratos de Pernambuco e Alagoas, prometendo

calculavam a população de Palmares entre 20 a

palmarinos também foi expressivo porque

a estes terras dominadas pelos negros (as mais

30 mil fugitivos. Segundo Alves Filho, Palmares

Pernambuco vinha sendo atingido por várias

férteis das duas capitanias), caso Palmares se

estava organizado em quatro instituições,

epidemias entre 1630 e 1660. “Fugir das plan-

extinguisse. Assim, terços, milícias ou grupos

quais sejam:

tações e dos engenhos em direção aos mocam-

de homens pobres (índios, mamelucos, crioulos,

a) Aparelho administrativo – incubia-se de

bos poderia ser também uma estratégia para

mestiços etc. ) também lutavam contra homens

coletar, à maneira de impostos, os excedentes

escapar da morte”, conta Gomes (2005, p. 53),

que tinham o mesmo status social que eles,

agrícolas destinados à troca com habitantes

detalhando uma das causas do surgimento dos

ou seja, os ex-escravos. Só que estes fugitivos

dos vilarejos coloniais. Como os palmarinos

mocambos em Pernambuco. Assim, durante

resolveram enfrentar diretamente as elites da

eram policultores, tinham mais capacidade

todo o processo de luta palmarina (1596-1716),

época, enquanto os demais se acomodaram em

produtiva para se abastecer e ter excedentes de

quase um século e meio, teria havido 66 expe-

servir ao senhor português.

troca, enquanto as capitanias viviam na misé-

desafiava o sistema colonial.”

ter havido cerca de 20 mocambos que cons-

dições repressivas ao quilombo e 31 revides

Os casos mais notórios dos estratos pobres

ria, expostas às epidemias e tendo alto grau de

das forças palmarinas aos povoados coloniais

inimigos dos palmarinos eram o Terço de

insalubridades nos povoados. Neste sentido, os

(ALVES FILHO, 1988, p. 11).

Crioulos ou Terço dos Henriques, montado

colonos dos vilarejos tinham nos palmarinos

pelo negro liberto Henrique Dias, e o exército

como “parceiros” expressivos para seus negó-

de silvícolas do índio Felipe Camarão, chamado

cios de abastecimento agrícola.

Estrutura palmarina Já é consenso entre os novos historiadores

de Terço de Camarão, que atuaram contra a in-

b) Aparelho judiciário – por meio de um

que se debruçaram sobre o fenômeno palma-

vasão holandesa e se destacaram em combater

conselho de quilombolas, aplicava a legislação,

rino que a serra da Barriga não só acomodava

os rebeldes da serra da Barriga (ALVES FILHO,

principalmente no que se refere à punição

um ajuntamento de negros fugidos e resistentes

1988).

dos delitos cometidos pelos que viviam nos

ao colonialismo. Ao contrário, o crescimento

Alves Filho é considerado um dos mais per-

mocambos. Este aparelho teve destacada

de Palmares demonstrou que os fugitivos cria-

cucientes estudiosos de Palmares. Neste sentido,

atuação durante o período em que Zumbi go-

ram um estado negro ou uma sociedade negra

para demonstrar a complexidade da sociedade

vernou Palmares (1678-1695), quando, alguns

com características bem definidas, e que, em

palmarina, vamos nos valer de seu esquema

historiadores alegam que o líder palmarino

Agosto de 2011

37


históRia instaurou uma espécie de “ditadura”, com leis

colocação de fossos com estrepes, antes das

e fortes com o território em guerra e eram ca-

draconianas para quem cometesse “crime” ou

grandes cercas que protegiam os quilombos.

pazes de oferecer resistência incomum aos “in-

desertasse.

Estes fossos com estrepes via regra matavam

vasores”. No entanto, não só de vitórias viveu

ou aleijavam os inimigos.

o quilombo. Em diversas ocasiões, mocambos

c) Aparelho militar – era hierarquizado e permanente. Estava assim estruturado:

Os chefe s pa l-

inteiros fora m des-

comandante-em-chefe, general das armas,

ma r i nos, por seu

truídos pelas tropas

oficiais, soldados. Algumas tarefas da esfera

t u r no, mont a ra m

“Assim, durante pelo menos 120 anos, o

da ordem, centenas

militar – formação de milícias e treinamento

ainda uma rede es-

quilombo de Palmares se tornou o maior

de homens/mulheres

da população para a defesa – envolviam a mo-

pionagem onde os

problema para o colonialismo português

foram mortos e muitos

bilização de todos. O mocambo de Subpira, no

colonos da s cida-

no Brasil e também uma sociedade

retornaram reescravi-

alto da serra da Barriga, era a cidade- militar,

des e vilarejos – em

antagônica ao modelo dominante da

zados a Pernambuco.

onde os guerreiros se formavam e treinavam

troca dos produtos

época poucas vezes vista nas Américas.”

para a defesa de Palmares.

da policultura dos

d) Aparelho político – assembleias elegiam

No entanto, o problema é que mesmo destruídos por alguma

mo c a m b o s e p or

os chefes militares de cada quilombo. Não

pedaços de terras palmarinas – informavam

expedição, os quilombos renasciam em outros

havia meio de saber em que circunstâncias

antecipadamente aos ex-escravos sobre a ida

pontos da serra, e tornavam cada vez mais

se realizavam as reuniões ordinárias ou se

de expedições punitivas.

penosa sua demolição pelos portugueses.

elas eram instituições permanentes. Mas, nas

A lém disso, as a lianças pa lmarinas se

Assim, durante, pelo menos 120 anos, o qui-

emergências, assembleias gerais eram convo-

estendiam até altas figuras da colônia, que

lombo de Palmares se tornou o maior proble-

cadas. Nelas, toda a população adulta tinha

mantinha secretamente transações com os

ma para o colonialismo português no Brasil e

direito a fala e votar nas decisões. O principal

chefes dos quilombos. Aliada a isto, havia no-

também uma sociedade antagônica ao modelo

dirigente palmarino era eleito por uma assem-

tável corrupção entre as elites de Pernambuco,

dominante da época poucas vezes vista nas

bleia de chefes de quilombos.

e as expedições muitas vezes eram montadas

Américas.

visando altos lucros que teriam com a recupe-

Táticas palmarinas Por que Palmares durou mais de um século?

ração dos escravos e das terras dos palmarinos (FREITAS, 1978).

A pa r t i r de agora, va mos enu mera r

A crise entre Ganga-Zumba e Zumbi Em 1678, Ganga-Zumba era a autoridade

Q u e r d i z e r, o s

máxima em Palmares, era o Grande Chefe ou

exércitos colonialis-

o Grande Senhor, segundo a hierarquia pal-

tas não tinham foco

marina. Ele era um negro da etnia arda, alto,

esquematicamente,

“nas emergências, assembleias

a lg umas ra zões de

gerais eram convocadas. Nelas, toda a

deter m i nado pa r a

forte, corajoso e destemido. Naquele momento

per ma nênc ia pa l-

população adulta tinha direito a fala e

combater o inimigo.

delicado, Palmares estava fragilizada, pois,

marina entre os sé-

votar nas decisões. O principal dirigente

Out ro fato favorá-

embora se mantivesse em pé, as expedições

culos X V II e X V III.

palmarino era eleito por uma assembleia

vel: depois de dias de

portuguesas enfraqueceram o sistema defen-

marcha, as tropas re-

sivo palmarino. Muitos quilombos eram obri-

Portugal nunca teve

escravizadoras che-

gados a mudar de posição geográfica, tendo os

um exército organi-

gavam estropiadas ao

inimigos em seu encalço.

Em primeiro lugar,

de chefes de quilombos.”

zado e estável para combater os quilombolas.

alvo – os quilombos – e facilitavam os ataques

As milícias reescravistas eram formadas, em

dos ex-escravos.

O então governador-geral de Pernambuco, Pedro de Almeida, percebeu a situação, mas

geral, por índios, crioulos, presidiários, colo-

Outro fato pouco abordado pela historio-

sabia que não tinha condições de acabar

nos, mamelucos e sempre havia indisciplina e

grafia é que Palmares, pelo menos, teve três

com Palmares. Vários chefes retornavam a

deserções. Em segundo lugar, os palmarinos

gerações de homens e mulheres que nasceram

Pernambuco alegando que tinham destru-

desenvolveram diversas táticas de guerrilha.

nos mocambos – como é o caso de Zumbi – e

ído o quilombo e este ressurgia das cinzas.

Não enfrentavam diretamente o inimigo e

que cresceram sem conhecer a escravidão.

Almeida, então, envia um emissário do terço

os atraía para armadilhas mortais, como a

38

Neste sentido, tinham identificações amplas

dos Henriques a Macaco, capital palmarina,

Ano III • Número 6


históRia e propõe um acordo com Ganga-Zumba, ou

observação na orla das matas. Despachou agentes para reu-

Zumbi. Velho não desistiu e recebeu mais

seja, que os palmarinos fiquem na região co-

nirem armas e munições. Reforçou fortificações de Macaco

reforços vindos de Pernambuco e de Alagoas.

nhecida como Cacaú, sob a proteção real, onde

a ponto de torná-la quase inexpugnável. Finalmente, decretou

Os exércitos mercenários, juntamente com os

poderiam cultivar a terra. O acordo incluía

a lei marcial: os que tentassem desertar para Cacaú seriam

terços de negros e índios, já formavam cerca

também:

passados pelas armas.

de 9.000 homens.

a) Liberdade para os negros

Na segunda investida, em 1694, as tropas A partir dali, o nome de Zumbi passou a

colonialistas conseguem construir uma cerca

b) Os palmarinos poderiam continuar

frequentar com assiduamente a documentação

em torno de Palmares durante a noite e ins-

mantendo trocas comerciais

colonial com os portugueses oram lhe rogando

talam seis canhões de frente para paliçadas.

com taberneiros, comerciantes

assinatura de propostas de paz, ora o amaldi-

Perplexos, os palmarinos percebem que os

e vendeiros da região.

çoando, outras vezes, o elogiando. Ao contrário

inimigos, agora, estão mais perto deles. Zumbi

c) As terras de Cacaú seriam

da gestão de Ganga-Zumba, que se valia bas-

ordena resistência máxima. Mas os tiros de

demarcadas pela Coroa.

tante das mudanças territoriais do quilombo

canhão abrem os flancos nas cercas e as colu-

d) Novos cativos que fugissem para

para desaparecer das vistas das tropas colonia-

nas inimigas avançam para dentro de Macaco.

Palmares deveriam ser devolvidos

listas (quilombo-móvel), na gestão de Zumbi o

Velho, mais tarde, conta que, nos primeiros

para as autoridades coloniais.

enfrentamento era direto (quilombo-fixo). Por

combates, cerca 200 palmarinos foram degola-

e) A partir da assinatura do acordo, os

17 anos, então, Zumbi venceu todas as batalhas

dos. Zumbi, por seu turno, com alguns de seus

palmarinos passariam a ser vassalos do rei.

contra as tropas portuguesas. Isto fez com que

homens de confiança, consegue fugir do cerco,

a população nordestina acreditasse que ele

mas Macaco cai nas mãos inimigas e 519 pes-

fosse imortal (FREITAS, 1978).

soas são presas, a maioria mulheres e crianças.

nascidos em Palmares.

Ganga-Zumba foi a Recife, ratificou o acordo e foi nomeado oficial do Exército português. Ele

A morte de Zumbi

e seu grupo migram para Cacaú, mas Zumbi,

É o prenúncio do fim da cidadela negra.

importante liderança militar, o general-das-

Por volta de 1693, Caeta no de Melo e

O grupo de Zumbi, por conseguinte, se

armas de Palmares, ignora o acordo e opta por

Castro assumiu o Governo de Pernambuco,

esconde na serra Dois Irmãos, próxima da

permanecer em Macaco, a capital palmarina.

com ordens para acabar definitivamente com

serra da Barriga, onde, dali, pensa em refazer

Assim, surgiu a grande divergência no qui-

Palmares. Além de muito dinheiro, ele trouxe

Palmares. Para sustentar sua segurança, Zumbi

lombo. Zumbi atraía para suas fileiras grande

de Portugal farto material bélico. Enquanto

anda sempre com 10 a 15 homens. As autorida-

número de aliados, e assim, acaba se tomando

crescia a miséria e as

o lugar de Ganga-Zumba, se tornando, por con-

secas em Pernambuco,

seguinte, no novo Grande Senhor de Palmares.

a fertilidade dos solos

Este, por seu turno, preso na armadilha por-

da ser ra da Ba r r iga

tuguesa, vê o tratado sendo boicotado por fa-

prog redia. Isso mo-

zendeiros, comerciantes e donos de engenho.

t ivou Melo e Cast ro

Enfraquecido e sem capacidade de recompor

a instigar o ódio dos

suas milícias, Ganga-Zumba morre envene-

colonos contra os pal-

nado por partidários de Zumbi, infiltrados em

marinos e a contratar o bandeirante Domingos

Em setembro de 1695, os moradores de

Cacaú. Com a confirmação de Zumbi como

Jorge Velho para comandar as maiores emprei-

Penedo, em Alagoas, numa ação de vigilância

Grande Senhor, este toma medidas rigorosas

tadas que dali para frente demandou contra

nas redondezas da cidade, capturam o mulato

para o reestabelecimento de Palmares.

Palmares.

Antonio Soares, um dos principais auxiliares

des militares ficam

“Em setembro de 1695, os moradores de Penedo, em Alagoas, numa ação de vigilância nas redondezas da cidade, capturam o mulato Antonio Soares, um dos principais auxiliares de Zumbi.”

sabendo que os negros pretendem retomar a construção de Palmares e voltam a intensificar as rondas nas duas serras.

Na primeira tentativa contra o quilombo,

de Zumbi. Os moradores pretendem levá-lo

as tropas de Velho foram repelidas pelos pal-

a Pernambuco, mas no meio do caminho

marinos, que, segundo os atacantes, conta-

topam com a coluna comandada pelo paulista

Deslocou povoações inteiras para lugares remotos. Incorporou

ram com a ajuda de um general mouro para

Furtado de Mendonça, que decide ficar com o

às milícias e submeteu o adestramento intensivo todos

construir as cercas e os estrepes de Macaco.

prisioneiro, que, após torturas, revela o escon-

os homens válidos. Multiplicou os postos de vigilância e

Esse mouro se tornara assessor militar de

derijo de Zumbi.

Vejamos como foi isso segundo Alves Filho (1988, p. 124):

Agosto de 2011

39


históRia os milicianos decidem ir ao novo mocambo

Os empresários da Federação das Indústrias

percebido que o número de adesões ao feriado tendia aumentar.

Naquela ocasião, Zumbi estava acompanhado

do estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) recorre-

apenas de seis guardas. Antonio Soares se destaca

ram da decisão da Câmara Municipal na jus-

Em 2009, ao vir ao Rio de Janeiro para inau-

do grupo e vai em direção a Zumbi. Ele esfaqueia

tiça, pois, alegaram que havia feriados demais

gurar o monumento ao marinheiro negro João

o líder palmarino, dando sinal para o avanço das

na cidade. E que a

tropas de Furtado de Mendonça. Os soldados se

nov a pa r a l i s aç ão

lançam sobre Zumbi, alguns são mortos e feri-

comemorativa iria

dos pelo palmarino, que, no entanto, devido à

provoca r g ra ndes

desvantagem numérica, não resiste e morre. Era

perdas na economia

20 de novembro de 1695. Zumbi é degolado e sua

fluminense.

Candido, na Praça XV,

“Era 20 de novembro de 1695. Zumbi é degolado e sua cabeça levada para Recife e exibida num poste. Era o recado das autoridades portuguesas para explicar a população que Zumbi não era imortal.”

o ent ão presidente da Repúbl ic a, Lu i z Inácio Lula da Silva, declarou que o 20 de novembro deveria se t ra nsfor ma r em fe-

cabeça levada para Recife e exibida num poste.

O autor da pro-

Era o recado das autoridades portuguesas para

posição honorífica

explicar a população que Zumbi não era imortal.

perde nas primeiras instâncias e o caso vai

ao crescimento de adesões municipais à data

No entanto, Palmares, através de novos quilom-

pa ra r nos t ribuna is superiores. Assim, o

comemorativa.

bos, persistiu até 1716, em outras serras da região,

Supremo Tribunal Federal (STF), mais tarde,

Para se ter uma ideia da influência/repre-

por meio de novos seguidores de Zumbi.

garante que o chamado feriado de Zumbi –

sentação que o monumento de Zumbi da Praça

como havia sido chamado na ocasião – não

Onze teve ao longo destes 25 anos, no estado do

afeta a Constituição.

Rio de Janeiro, existem, hoje, em bairros e ci-

Zumbi/palmares como símbolo

riado nacional devido

E m 1986, o ent ão gover nador do R io

Adiante, em 2002, a então governadora do

dades, mais seis monumentos ou bustos home-

de Janeiro, Leonel Brizola, atendendo aos

Rio de Janeiro, Benedita da Silva (PT) sancio-

nageando Zumbi, nos seguintes locais: Ponto

apelos do movimento negro do PDT, ergueu,

na outro projeto idêntico – da então deputada

Chic, bairro de Padre Miguel, na zona oeste;

na avenida Presidente Vargas, próximo da

estadual Cida Diogo (PT) – estabelecendo o 20

calçadão de Duque de Ca xias, na Baixada

Central do Brasil, o Monumento a Zumbi dos

de novembro como feriado estadual. Assim,

Fluminense; Centro, em Volta Redonda; Praça

Palmares. Era uma homenagem ao guerreiro

dali em diante, o feriado de Zumbi atingia os

Central, em São Fidelis; em Búzios, no quilom-

palmarino que enfrentara e vencera durante

97 municípios fluminenses.

bo de Búzios; e em Petrópolis, no Centro.

17 anos as tropas coloniais portuguesas. Era

Desse modo, os a f rodescendentes do

também o primeiro monumento brasileiro

Rio de Janeiro se tornaram os protagonistas

dedicado a um líder

Desse modo, Zumbi é o grande herói nacional para os negros fluminenses.

em relembrar o qui-

Mas também ex istem homenagens em outros estados. Em Salvador, foram erguidos

negro dos marginali-

“Uma das grandes confirmações

lombo de Palmares/

zados coloniais cujo

de Zumbi como vulto histórico afro

Zu mbi, ao lado de

dois monumentos em homenagem a Zumbi.

nome /aç õe s er a m

aconteceu após a passeata organizada

seus representantes

No interior de São Paulo, algumas cidades têm

desconhecidas pela

pela militância negra, em 1995,

no Legislativo mu-

homenagens idênticas. Em Maceió, o princi-

maioria da popula-

em Brasília, quando os afrodescendentes

nicipa l e estadua l.

pal aeroporto do estado chama-se Zumbi dos

ção brasileira.

prestaram homenagem aos 300 anos

Este fato – origina-

Palmares. E muitos bairros e cidades brasileiras

da morte do grande líder palmarino.”

do numa cidade que

foram homenageados com o nome de Zumbi.

Da ndo prosse-

tradiciona lmente é

Uma das grandes confirmações de Zumbi

de Zumbi como grande herói negro nacional,

a caixa de ressonância nacional – impactou o

como vulto histórico afro aconteceu após a

em 1997, o então prefeito César Maia, a con-

Brasil negro em diversos caminhos.

passeata organizada pela militância negra, em

guimento à revisão

tragosto, sancionou o projeto de lei do então

Assim, mais tarde, em 2010, a Secretaria

1995, em Brasília, quando os afrodescendentes

vereador Edson Santos (PCdoB) – depois de

Especial de Promoção de Igualdade Racial

prestaram homenagem aos 300 anos da morte

aprovado por ampla maioria na Câmara dos

(SEPPIR) do Governo Federal identifica cerca

do grande líder palmarino.

Vereadores do Rio de Janeiro – instituindo o

de 1.200 municípios brasileiros que declararam

O movimento chegou próximo do Palácio

20 de novembro (dia da morte de Zumbi) como

o 20 de novembro como feriado, seguindo o

do Planalto e o então presidente Fernando

feriado municipal.

exemplo pioneiro f luminense. Também foi

Henrique Cardoso (PSDB) acabou recebendo

40

Ano III • Número 6


históRia uma comissão de militantes. Também lhe foi

Parque Nacional de Zumbi dos Palmares, na

______. O quilombo de Palmares. Rio de Janeiro: Civilização

entregue um documento formatado pelos líde-

cidade de União dos Palmares.

Brasileira, 1966.

res da manifestação. Antes desta manifestação,

No enta nto, a const r ução do m ito de

em 1988, os negros fluminenses organizaram

Pa lmares/Zumbi parece que começou no

Paulo: Graal, 1978.

uma passeata “contra a farsa” dos 100 anos

início do século X X. Segundo Gomes, após

FREITAS, Mário Martins de. Reino negro de Palmares. Rio de

da abolição, que foi barrada pelo Exército,

a abolição, Zumbi transformara-se em tema

Janeiro: Bibliex, 1988.

quando milhares de negros passavam pela

da militância política. As associações ope-

FUNARI, Pedro Paulo; CARVALHO, Aline Vieira de. Palmares:

porta do antigo Comando Militar Leste, ao

rárias, os partidos comunistas e a chamada

ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

lado da Central do Brasil. Nesta passeata, os

“imprensa negra” retoma ra m em títulos,

GLASGOW, Roy. Nzinga. São Paulo: Perspectivas, 1982.

manifestantes traziam cartazes com a frase:

inscrições e pequenos textos nas décadas de

GOMES, Flávio. Palmares. São Paulo: Contexto, 2005.

“Valeu, Zumbi”.

1920 e 1930, o que se chamou de ‘Epopeia de

KEITH, Henry H. ; EDWARDS, S. F. Conflito e continui-

Zumbi” (2005, p. 33).

dade na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização

Depois da manifestação dos 300 anos de

FREITAS, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. São

Zumbi, em Brasília, FHC criou o Grupo de

No final da década de 1920, Palmares seria

Trabalho Interministerial (GTI) destinado a

evocado por Astrogildo Pereira na obra “A

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à

coordenar políticas de promoção da igualdade

classe operária”, jornal do Partido Comunista

história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.

racial entre os ministérios tucanos, que, mais

do Brasil (PCB). Em 1935, Aderbal Jurema,

LANDMANN, Jorge. Tróia negra: a saga de Palmares. São

tarde, virou Secretaria Especial de Políticas de

outro intelectual comunista, dedicaria algu-

Paulo: Mandarim, 1998.

Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no

mas páginas do seu livro “Insurreições negras”

MACEDO, José Rivair (org. ). Desvendando a história da África.

primeiro governo Lula da Silva.

para falar de Palmares.

Porto Alegre: UFRGS, 2008.

Brasileira, 1971.

Em sí ntese : por que Pa l ma res/Zu mbi

Antes, o personagem também surgiu no

MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problema-

provoca tanto fervor militante que resultam

roma nce histór ico de Jay me A ltav i l la “O

tização do legado africano no cotidiano brasileiro. Belo

em homenagens a ele, com monumentos edi-

qui lombo de Pa lma res”, seg undo Gomes

Horizonte: Nandayala, 2008.

ficados pelo poder público de diversas cores

(2005, p. 34). Nos anos 1960, os guerrilheiros

NOBRE, Carlos. O controle penal do escravo: crime e polícia

ideológicas pelo Brasil? Em parte porque os

de esquerda que lutaram contra a ditadura

no Rio de Janeiro. Revista IMES, São Caetano do Sul, v. 9, n.

militantes negros encontraram um represen-

militar (1964-1985) criaram o grupo “VAR

14, p. 93-106, 2008

tante simbólico à altura, vencedor de diversas

Palmares”, numa homenagem a Zumbi e ao

PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravi-

batalhas contra as tropas coloniais, rico em

quilombo

dão. Brasília: Thesaurus, 2000.

metáforas de resistência e grande guerreiro

.

PERET, Benjamin. O quilombo de Palmares. São Paulo: Fenda

Carlos Nobre Professor da PUC-Rio e Mestre

Edições, 1955.

O “mito” palmarino para os militantes

em Ciências Penais pela Universidade Cândido

SANTOS, João Felício dos. Ganga Zumba. São Paulo: Circulo

negros ficou mais claro, em 1978, quando o

Mendes (UCAM). Autor de cinco livros, entre

do Livro, 1985.

Movimento Negro Unificado (MNU) foi criado,

eles, “O negro na Polícia Militar: cor, crime e

SANTOS, Joel Rufino dos. Na rota dos tubarões: o tráfico ne-

em São Paulo, que, em seguida, se espalhou

carreira” (2010), “Mães de Acari: uma história de

greiro e outras viagens. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.

por outros estados do Brasil. Naquela ocasião,

protagonismo social” (2005) e “Sêmen celestial”

______. Zumbi. São Paulo: Global, 2006.

depois de congressos internos, os militantes

(2003). Coordenador da Coleção Personalidades

SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória d’ África: a

negros decretaram o 20 de novembro como

Negras, da Editora Garamond.

temática africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007.

das causas dos marginalizados.

SILVA, Alberto da Costa. A África explicada aos meus filhos.

o “Dia Nacional da Consciência Negra”, em homenagem a morte de Zumbi, em 1695.

Referências

Rio de Janeiro: Agir, 2008.

ALVES FILHO, Ivan. Memorial dos Palmares. Rio de

______. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.

porte médio, o 20 de novembro é saudado por

Janeiro: Xenon, 1988.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

shows, atos públicos, manifestações, lança-

BOURDOUKAN, Georges. A incrível e fascinante história

______. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500

mentos de livros, seminários e congressos. Na

do capitão Mouro. São Paulo: Sol e Chuva, 1997.

a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

serra da Barriga, organiza-se extensa progra-

CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro. Rio de

SILVA, Fernando Correia. Os libertadores. São Paulo:

mação, com milhares de pessoas visitando o

Janeiro: Ediouro, 2000.

Cultrix, 1991.

Hoje, em todas as capitais e em cidades de

Agosto de 2011

41


P sol

A contribuição do PSOL na luta contra o racismo Apesar de jovem, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) tem dedicado, em sua atuação institucional e partidária, especial atenção à luta dos afrodescendentes contra o racismo e a discriminação racial. Desta forma, a relação entre as aspirações do movimento negro e dos descendentes de africanos e o PSOL tem se orientado pelo respeito e diálogo mútuos. Como partido e no parlamento, o PSOL vem denunciando o racismo em suas diferentes formas como o extermínio da juventude negra, a intolerância com as religiões de matriz africana, as tentativas de atacar e atuado na defesa dos valores e tradições afrobrasileiros. Por Ivan Valente e Hamilton Assis

mais harmonizados com as práticas concretas dos

Presidência Plínio de Arruda Sampaio e, na vice, o

que se insubordinam contra a ordem dominante

pedagogo, sindicalista e militante do movimento

Tradicionalmente, a relação entre os partidos polí-

e, por fim, contribuir para a consolidação de uma

negro, Hamilton Assis. O PSOL foi o único parti-

ticos e a comunidade negra foi pautada por relações

identidade política própria. Malgrado a pequena

do, dos principais que concorreram à presidência,

fisiológicas e de clientelismo em que “lealdades” e

presença institucional do PSOL, podemos afirmar

que denunciou o caráter racial de nosso sistema

“compromissos” se formam e desfazem de acordo

que ele vem contribuindo de maneira ímpar para

prisional e a discriminação contra os negros. A

com os interesses dos políticos profissionais. Como

visibilizar, no Congresso Nacional, e através das

crescente onda de intolerância contra as religiões

também pela ineficácia dos partidos de esquerda

candidaturas do partido, a necessidade de um radi-

de matriz africana – apoiada e financiada por

entenderem e incorporarem as questões raciais em

cal programa de superação do racismo e de repara-

religiosos extremistas e intolerantes – tem-nos

sua estratégia revolucionária. O intérprete Bezerra

ções ao povo negro que foi vítima do racismo.

obrigado sistematicamente a enfrentar este tipo de mentalidade retrógada e conservadora e rea-

da Silva imortalizou em música a figura do político

Os mandatos de Ivan Valente (PSOL/SP), Chico

Caô-Caô – conhecido pelos discursos inflamados,

Alencar (PSOL/RJ) e Jean Willys (PSOL/RJ) – na

em suas demonstrações exageradas de afeição à

Câmara – e Marinor Brito (PSOL/PA) e Randolfe

Por fim, tivemos uma postura – como partido

população pobre e favelada, em sua maioria negra

Rodrigues (PSOL/AP) – no Senado Federal – têm

– de frontal oposição ao processo de esvaziamen-

– que, depois de eleito dá as costas ao povo e o

tentado contribuir para dar “voz aos que não têm

to do Estatuto da Igualdade Racial que foi apro-

ignora. Esta prática originalmente ligada a políticos

voz” (aqui em uma alusão ao programa de rádio

vado com base em um “acórdão” envolvendo o

conservadores, da direita brasileira, espraiou-se no

que o pantera negra Mumia Abu Jamal, no cárcere,

PT e o DEM e retirou do texto original conquistas

espectro político brasileiro e assumiu diferentes

mantém aos seus ouvintes nos Estados Unidos). Na

e garantias imprescindíveis para o povo negro.

colorações. Hoje, infelizmente, partidos como o

defesa das minorias – o geógrafo Milton Santos pre-

Evidentemente precisamos ainda avançar muito.

PT substituem o apoio às reivindicações dos mo-

feria o termo “minoridades” – formada por negros,

É necessário que o debate sobre a natureza da

vimentos sociais e, por extensão, do movimento

mulheres, homossexuais e afro-religiosos. Por sua

questão racial e a luta contra o racismo tenham

negro, por acordos “por cima” e de bastidores que

vez, tem atuado em defesa da liberdade de expres-

uma maior centralidade entre nossa militância

desestimulam a mobilização de “baixo para cima”,

são e de um debate público sobre a legalização da

e reverbere com mais intensidade entre nossos

por dentro e contra a ordem dominante.

maconha em nossa sociedade quando são conheci-

quadros e dirigentes. Para isso, entendemos que

Na contracorrente desta desideologização dos

dos os rastros de violência, dor e terror deixado pela

a formação de um Setorial de Negras e Negros

partidos – que hoje, com algumas exceções, se as-

atual política de “guerra das drogas” – apoiada pelo

é uma ferramenta indispensável na consolida-

semelham mais a grupos de interesses privados e

imperialismo norte-americano – nos territórios

ção deste processo. É necessário afirmarmos,

lobistas – o PSOL reafirma sua identidade política

negros das grandes cidades de nosso país. Também

na prática, na coerência e no compromisso

e programática travando a luta cotidiana, junto

é importante destacar a ação do deputado estadual

cotidiano um projeto partidário plural, negro

com o povo e os setores combativos do movimento

Marcelo Freixo (PSOL/RJ), na defesa dos direitos

e socialista

sindical, popular, negro, de mulheres, LGBTT e

humanos e na luta contra os “autos de resistência”

indígena. Para o PSOL, seja no parlamento ou na

que mascaram a prática do extermínio desenvol-

Ivan Valente Deputado federal (PSOL-SP).

ação partidária propriamente dita, a incorporação

vida pelo aparato de repressão policial.

Ha mi lton A ssis Pedagogo, m i l it a nte da

das plataformas de luta dos movimentos sociais é

Nas eleições de 2010, o PSOL apresentou uma

uma forma de afinar seus instrumentos, torná-los

chapa presidencial que teve como candidato à

42

firmar a laicidade do Estado brasileiro.

.

Intersindical e do Círculo Palmarino e candidato a vice-presidência pelo PSOL em 2010.

Ano III • Número 6


educaÇÃ ÇÃo

Trabalho, educação e racismo: na luta por igualdade, combater as discriminações! Quando falamos sobre a relação entre racismo e trabalho devemos ter em mente como este processo se desenvolve a partir das dificuldades enfrentadas pela população negra (desde a entrada no mercado de trabalho até casos em que sofre assédio moral). Entender estas diferentes etapas é importante para que possamos desenvolver políticas públicas e diminuir os obstáculos e as dificuldades que se interpõem a esta grande parcela da população formada por afrodescendentes.

Por paulo sérgio da silva desigualdades raciais no mercado de trabalho

fácil analisar diversas categorias de trabalha-

É comum os(as) trabalhadores(as) negros(as)

dores no Brasil e notar um “branqueamento”,

sofrerem assédio moral e permanecerem gran-

principalmente nas áreas de gerência, super-

des períodos estacionados em suas carreiras

visão e liderança.

profissionais.

A primeira dificuldade é o acesso à forma-

De acordo com os dados do INEP/MEC

ção profissional. Se partirmos do princípio

dos for mados que f i zera m o provão em

de que a população negra é a de menor poder

2000 nos cursos de Administração, Direito,

O grande desafio é provar que a sociedade

aquisitivo (e automaticamente a que depende

Medicina Veterinária, Odontologia, Medicina,

brasileira é racista. Por consequência, este

de um maior investimento em políticas públi-

Jornalismo e Psicologia, dentre outros, mais

racismo também está presente nas relações de

cas de educação), temos, logo, uma enorme

de 80% é constituído por brancos (respecti-

trabalho e reproduz a visão da classe dominan-

disparidade dado que os melhores cursos de

vamente, 83,3%, 84,1%, 84,9%, 85,9%, 81,6%,

te desde os meios de comunicação, educação e

formação profissional dependem de investi-

81,5% e 83,3%). Nos mesmos cursos, os negros

político. Para isso, a sociedade brasileira deve

mento financeiro individual. Seja no campo da

aparecem com os seguintes percentuais: 1,6%,

se unificar para combater o preconceito e a

educação pública – através das universidades

2,0%, 1,1%, 0,7%, 1,0% 2,9% e 1,6% compro-

discriminação racial dos locais de trabalho

e escolas técnicas – ou na formação superior

vando a baixa oportunidade para os negros

(empresas, fábricas e repartições públicas).

ou técnica privada – o negro deve dispor de re-

na universidade.

Devemos seguir o exemplo do governo e do

Conclusão

cursos, materiais e culturais, que – caso tenha

Outro ponto crucial refere-se à situação

povo cubanos que se uniram na construção de

conseguido acumular – foi resultado de muito

da mulher negra que – além de sofrer o pre-

uma sociedade justa e socialista e hoje forma

esforço e sacrifício individual ou familiar. Ele

conceito por ser negra – vê recair sobre si a

os melhores médicos (de todas as raças e cores)

tem que superar barreiras e estigmas raciais

questão de gênero. Logo, a mulher negra tra-

que atuam, por exemplo, de forma heróica em

que marcam de forma indelével sua trajetória.

balhadora sofre um duplo preconceito e em

apoio ao povo haitiano1

Este processo não se desenvolve – pelo menos

muitos casos é ainda responsável por manter

com a mesma intensidade – entre brancos

a renda familiar.

.

Paulo Sérgio da Silva Diretor do Sindicato dos

Portanto, o negro e a negra no mercado de

Aeroviários de Porto Alegre, presidente do

Quando consegue se qualificar, o negro

trabalho, no Brasil, precisam o tempo todo

PSOL Canoas-RS e militante do movimento

enfrenta outro problema: encontra uma nova

provar “algo mais” para serem contratados, não

negro gaúcho.

barreira na seleção entre outros candidatos.

basta a formação, não basta a experiência.

pobres ou em posição remediada.

Referências

Existe uma resistência de alguns empresários

Por último, o problema da ascensão profis-

capitalistas e dos setores de recrutamento e de

sional. Hoje cada vez mais as empresas criam

1 “Médicos cubanos lideram combate à cólera e mantêm

recursos humanos na contratação de candida-

barreiras e dificuldades à promoção dos tra-

prestígio no Haiti”. Opera Mundi. Disponível em: em:<http://

tos negros. Isto é reflexo de nossa sociedade

balhadores e estabelecem, para isso, um sem

operamundi. uol. com.br/entrev istas_ver.

que é racista, mas não se assume como tal. É

número de pré-requisitos a serem cumpridos.

php?idConteudo=142>. Último acesso: 07/07/2011.

Agosto de 2011

43


movimeNto

Movimento negro e luta de classes no Brasil (Um resumo histórico) Por Mário Makaíba

dos movimentos negros organizados (assim como a recomposição do movimento sindical e

Introdução

das organizações políticas de esquerda, como o

A trajetória do movimento negro no Brasil

PCB), mas sem o poder de aglutinação da Frente

veio se forjando num processo de re-elaboração

Negra Brasileira. Dessa época, um dos princi-

estratégica de construção de um movimento de

pais agrupamentos foi o Teatro Experimental

massa, em cada conjuntura histórica da luta de

do Negro (TEN), fundado no Rio de Janeiro, em

classes, desde a abolição (1888) até os nossos

1944, e que tinha em sua direção o militante

dias. Nesse processo foram criadas várias

Abdias do Nascimento (1914-2011). O TEN foi

organizações com base na identidade racial,

responsável por divulgar no Brasil as propostas

com alguns de seus setores fazendo alianças e

do movimento político dos negros franceses,

assumindo compromissos com diversas forças

que posteriormente serviu de base ideológica

políticas e ideológicas, da “direita” à esquerda

para a luta de libertação nacional dos países

marxista. Entre essas tantas organizações

africanos. O grupo de Abdias foi praticamente

destacaremos aqui, por suas características de

extinto dois anos após o golpe militar de 1964,

movimento de massa e perfis ideológicos opos-

quando mais uma vez todas as organizações do

tos, a Frente Negra Brasileira e o Movimento

movimento dos trabalhadores e popular foram

Negro Unificado.

suprimidas pela força da ditadura.

A Frente Negra:

MNU: A unificação do Movimento Negro

por deus, pátria, Raça e Família

e a síntese raça e classe

A década de 30 do século passado foi um

Foi no ano de 1978 – a partir do debate

período agitado na história da luta de classes

travado entre os movimentos negros sobre o

no Brasil. Começou com uma revolução cons-

que fazer, no dia 13 de maio, data da abolição

titucionalista, viu surgirem movimentos de

da escravatura – que aconteceu a unificação

esquerda, como a intentona comunista, e de

do movimento negro no Brasil. O processo de

direita, como a ação integralista, e terminou

construção dessa unidade durante boa parte

com um golpe de estado em 1937 – o Estado

partido em 1936, com intenções de participar

dos anos 1970 sofreu forte influência do mo-

Novo populista de Getúlio Vargas. Foi no meio

do processo eleitoral. Mas, suas pretensões

vimento “Black Power”: o nacionalismo negro

dessa conjuntura de fogo cruzado que se deu

foram abortadas com a instauração da ditadu-

dos EUA (que defendia a ideia de uma “iden-

a fundação da Frente Negra Brasileira, em

ra varguista, em 1937, que extinguiu todas as

tidade coletiva negra” acima das divisões de

1931. Como toda frente política, a FNB abrigou

organizações políticas da época. No período de

classes). 1978 também foi o ano em que, tendo

diversas tendências, não sem conflitos – onde,

duração da ditadura estadonovista (1937-1945),

à frente a classe trabalhadora, cresceram no

inclusive, se encontravam monarquistas com

foi impossível organizar qualquer movimento

movimento sindical, estudantil e popular as

simpatias pelo fascismo. Mas, todos frentene-

contestatório, fosse de classe ou de raça. Nessa

lutas democráticas contra a ditadura – iniciadas

grinos se enquadravam na ideologia conser-

fase, a luta antirracista negra se limitou à afir-

com o golpe militar de 1964 que foi planejado e

vadora nacionalista de “Deus, pátria, raça e

mação racial no culto à Mãe-Preta em defesa

apoiado pelo imperialismo estadunidense. Daí

família”, subtítulo do jornal da Frente, “A Voz

da “segunda abolição”.

que, para a esquerda marxista brasileira da-

da Raça”. Apenas no termo “raça”, é que o lema

Do fim da ditadura varguista até o golpe mi-

quela época, a unificação do movimento negro

da frente se diferenciava do movimento inte-

litar de 1964, abriu-se um período de conjuntura

sob a influência do “Black Power” significava

gralista. A frente chegou a transformar-se em

democrática, que possibilitou o ressurgimento

a submissão da luta antirracista dos negros

44

Ano III • Número 6


movimeNto brasileiros ao colonialismo do império ianque.

dos movimentos sociais contra a ditadura e

O fato é que, se por um lado, na prática, isola-

pela volta da democracia ao país. É que para

do, o fenômeno da unificação do movimento

a necessidade de sobrevivência de todo movi-

negro – com a sua vanguarda sob a influência

mento social, o gueto é um suicídio político.

de um nacionalismo negro importado – ainda

Pelo seu instinto de luta contra a opressão que

seguia a lógica de contestação pura e simples

comprime e a exploração que esvazia, todo

de tudo o que fosse “branco”, inclusive a teoria

movimento social tende ao sentido de sua

marxista revolucionária da luta de classes, vista

expansão. Do contrário, será asfixiado pela ca-

como “eurocêntrica”, por outro lado, até aquele

pitulação, assimilação e cooptação de sua mi-

momento a síntese raça-e-classe não fazia parte

litância. E para que esse destino trágico não se

da formação teórica clássica e classista da es-

cumpra, é necessário encontrar aliados contra

querda brasileira.

o inimigo comum. Esse foi o caminho daquela

O nacionalismo negro importado dos EUA

nova vanguarda de militantes negros que com

cumpriu o papel importante de resgatar a

muito esforço ingressaram na classe operária

dignidade de raça aos negros brasileiros. Ao

e no meio da intelectualidade “progressista” e

exacerbar a negritude, dando visibilidade ao

de esquerda como Lélia Gonzáles, Hamilton

indivíduo negro, não só junto aos brancos, mas

Cardoso e o veterano Abdias do Nascimento,

também entre os próprios negros, tornou pal-

que ao lado de lideranças mestiças, indígenas

pável para as lideranças negras reivindicações

e brancas combinaram, pela primeira vez no

econômicas e de poder. Emergiu daí uma van-

Brasil, na prática a luta antirracista com a luta

guarda negra de classe média que assumindo

de todos os trabalhadores contra o capital na-

sua afrodescendência, confrontou-se com o

quele período.

orgulho que tem de sua origem étnica os indiví-

Mas o “giro” dessa militância negra para

duos brancos da pequena e da grande burguesia

escapar do isolamento, não foi por acaso.

brasileira. Dessa classe média negra emergente

Do processo de unificação do movimento

surgiram novas lideranças que junto às anti-

negro no Brasil surgiu o Movimento Negro

gas, foram depois – nos anos 1980 – acolhidas

Unificado (MNU), fundado naquele mesmo

por partidos criados

ano de 1978 por um

dentro de uma con-

grupo de militantes

juntura política da luta de cla sses de redemocrat i zação da sociedade brasileira com trânsito no movimento sindical

“A entrada de militantes do movimento negro nos recém criados partidos políticos de perfis sindical e popular foi determinada pela nova realidade da luta de classes pós 1978”

e popular, como o PT e o PDT.

negros da organização marxista-trotskista, Convergência Socialista (Hamilton Ca rdoso, Fláv io Carrança, Vanderlei José Ma r ia, Mi lton

Barbosa, Rafael Pinto, Jamu Minka e Neuza

A entrada de militantes do movimento negro

Pereira). Na concepção desses militantes, o

nos recém criados partidos políticos de perfis

capitalismo era o sistema que alimentava e se

sindical e popular foi determinada pela nova

beneficiava do racismo. Assim, só com a ruptura

realidade da luta de classes pós 1978, que se

revolucionária com esse sistema e a instauração

deu sob uma conjuntura de ascenso das lutas

do socialismo a partir de um governo de todos

da classe trabalhadora brasileira que naquele

os trabalhadores seria possível a superação do

período, do final dos anos 1970 até meados

racismo. A política que conjugava raça e classe

dos anos 1980, foi a vanguarda de toda luta

na formação desses militantes negros cumpriu

Agosto de 2011

45


movimeNto um papel decisivo na fundação do Movimento

com a finalidade de organizar a luta contra a

modo algum o deslocamento da mesma. Mas

Negro Unificado. Dali por diante as posturas

opressão racial e a exploração do capital.

a repressão à marcha não se limitou a impedir

táticas e ideológicas adotadas pelo MNU passa-

Dez anos depois da fundação do MNU,

a passeata dos manifestantes. Horas antes

ram a influenciar a luta antirracista e suplantar

a sua síntese política de raça e classe para a

do início da marcha, os militares cercaram

a postura conformista e assimilacionista predo-

unificação dos movimentos negros no Brasil in-

e puseram abaixo o palanque montado em

minantes na história do movimento negro em

fluenciou também no espírito e na forma de or-

frente à Central, enquanto a polícia reprimia e

geral desde a abolição até a data de conclusão

ganização da I Marcha contra o Racismo, ocor-

prendia vários militantes que saíam dos trens

de sua unificação.

rida em 11 de maio de 1988, no Rio de Janeiro.

com faixas e cartazes, chegando do subúrbio

A criação do MNU tornou-se um marco na

Principalmente na formação dos “comitês” de

e da baixada Fluminense para a concentração

história do movimento negro no Brasil, porque

mobilização e na articulação dos apoios do

da marcha no início da Presidente Vargas na

tinha como estratégia, além de propor a unifi-

movimento comunitário, estudantil e sindi-

Candelária, onde já havia um grande número

cação da luta de todos

cal. Já a exposição de

de policiais. Diante dessa situação, mesmo com

os grupos e organi-

bandeiras e outros

a disposição dos militantes para enfrentar o

“A criação do MNU tornou-se um marco

sí mbolos que sig-

cerco repressivo, no intuito de evitar um con-

em u m mov i mento

na história do movimento negro no

n i f ica ssem a pre-

fronto com a repressão que pusesse em perigo

nacional, objetivava

Brasil, porque tinha como estratégia,

sença de pa r t idos

os participantes da marcha, o comando da ma-

também, combinar a

além de propor a unificação da luta

dentro da marcha,

nifestação orientou os militantes a seguirem

luta desse movimento

de todos os grupos e organizações

f or a m “e v it a do s”

com a passeata somente “até onde o racismo

unificado com a de

antirracistas em um movimento

pelo coma ndo do

deixar”. E a marcha parou antes de completar

todos os oprimidos

nacional, objetivava também, combinar

evento que preferiu

o seu percurso, impedida por uma “muralha”

da sociedade. Em seu

a luta desse movimento unificado com a

dar àquela mobiliza-

de policiais. Mesmo assim, a maioria dos

programa de ação de-

de todos os oprimidos da sociedade.”

ção um caráter “não

participantes da Marcha contra o Racismo

partidário”- mesmo

comemorou o sucesso daquela manifestação

que muitos de seus

que teve uma cobertura da imprensa nacional

zações antirracistas

fendia as seg uintes reiv indicações “mí-

e estrangeira.

nimas”: desmistificação da democracia racial

militantes fossem também filiados as organi-

brasileira, organização política da população

zações políticas. A Marcha contra o Racismo

negra, transformação do movimento negro

contou com mais de 20 mil participantes e teve

o projeto lulista de conciliação de classes

em um movimento de massas, formação de

o objetivo político de se contrapor aos festejos

e a morte ideológica do MNU

um amplo leque de alianças na luta contra o

oficiais do centenário da abolição.

Os efeitos positivos dessa unificação dos mo-

racismo e a exploração dos trabalhadores, or-

Com a orientação do I Comando Militar do

vimentos negros ficaram evidentes, também,

ganização dos trabalhadores negros e pobres

Leste foi montado um forte aparato repressivo

na Constituição de 1988 quando o racismo

para enfrentar a violência policial, organização

com militares das Forças Armadas e da força

passou a ser enquadrado nos termos da lei como

nos sindicatos e partidos políticos, luta pela

policial do Estado para impedir o deslocamen-

um crime inafiançável. Antes era apenas uma

introdução da História da África e do Negro

to da marcha contra a farsa da abolição, pro-

contravenção. Porém, como todo o movimento

no currículo escolar e a busca de apoio inter-

gramada para seguir o percurso da Candelária

social do final dos anos 80 do século passado

nacional contra o racismo no Brasil. Uma carta

à Central do Brasil, sob a alegação de que os

até hoje em 2011, a construção dessa unificação

aberta foi distribuída à população e lida em

manifestantes causariam danos à estátua

sofreu a erosão política, resultante do refluxo

praça pública no largo do Paisandu, em São

de Caxias (que fica na Presidente Vargas, em

da luta da classe trabalhadora no Brasil e do

Paulo, em 13 de maio de 1978, entre faixas e

frente à sede do I CML). O governador do estado

pacto social promovido e posto em prática nos

cartazes que questionavam a abolição da escra-

na época, Moreira Franco, do PMDB (atual

dois mandatos de Lula. Boa parte dos militan-

vatura e denunciavam a brutalidade policial,

ministro de Assuntos Estratégicos da “presi-

tes negros filiados aos principais partidos que

chamando os negros a formarem “centros de

denta” Dilma), designou o próprio secretário

compõe a base do “lulismo” – PT, PCdoB, PDT e

luta” (no estilo dos sovietes) nos bairros, nas

de polícia civil do seu governo, Hélio Sabóya,

PMDB – foi cooptada e aderiu ao projeto político

vilas, nas prisões, nos terreiros de candomblé e

para informar oficialmente ao comando da

ideológico de conciliação de classes que define

umbanda, nos locais de trabalho e nas escolas

marcha que a polícia não iria permitir de

essa frente partidária. Como consequência

46

Ano III • Número 6


dessa adesão da maioria das lideranças negras

Igualdade Racial que só serve para dissimular

ao projeto de conciliação de classes lulista, veio

os verdadeiros interesses de classe da elite

a degeneração da unidade do movimento negro

branca capitalista brasileira e de seus sócios

e o retrocesso da consciência, da estratégia e

internacionais. Uma elite de novos senhores

das táticas de lutas. Praticamente, a degene-

de escravos que sob o manto de uma hipóc r it a “de mo c r a c i a

ração e o retrocesso decretaram a morte ideológica do MNU. A prova evidente da degeneração e do ret rocesso é o Estat uto da Igualdade Racial em v igor desde o a no passado, depois de tramitar 10 anos pelo

racial” corroborada

“A derrota do Estatuto da Igualdade

agora pelo estatuto

Racial repõe na ordem do dia

em v igor, a r ra njou

a necessidade de se recompor a unidade do movimento negro no Brasil, retomando o ponto de partida

racial com lideranças negras governis-

da estratégia da unidade necessária de todos os oprimidos e explorados pelo capital: a unidade inter-racial da classe trabalhadora brasileira.”

u m pac to p ol ít ic o

tas, como o fez com lideranças de outros setores do movimento social e dos trabalhadores através do

C ong re s so. A s si m que o estatuto foi aprovado pelo Senado, em

governo Lula, para garantir a manutenção da

16 de junho de 2010, setores do movimento

política de conciliação de classes, promovida

negro protestaram e se posicionaram contra a

pelo lulismo com continuidade no governo de

sanção pelo presidente Lula. O protesto desses

Dilma Rousseff.

setores era contra a retirada do Estatuto das

Conclusão

reivindicações históricas do movimento, que foram debatidas, acumuladas e sistematiza-

A derrota do Estatuto da Igualdade Racial

das durante todo o processo de unificação

repõe na ordem do dia a necessidade de se

como: a demarcação dos territórios quilombo-

recompor a unidade do movimento negro

las, as disposições relacionadas a medidas de

no Brasil, retomando o ponto de partida da

fato no campo da saúde, educação e políticas

estratégia da unidade necessária de todos os

de cotas. Já as lideranças negras do campo

oprimidos e explorados pelo capital: a unidade

lulista saíram em defesa do estatuto aprovado

inter-racial da classe trabalhadora brasileira.

sob a alegação de que ele significava o avanço

Do ponto de vista da esquerda marxista revo-

possível na promoção da igualdade racial no

lucionária, a luta contra o racismo não pode ser

Brasil. Porém, o “possível” foi mais uma, de

menosprezada e encarada apenas como uma

tantas outras manobras políticas utilizadas

obscenidade moral, como é de fato. Mas, uma

pelos representantes da elite branca capitalis-

organização política que pretenda se inserir na

ta brasileira no Congresso Nacional e em todo

classe trabalhadora brasileira e não enfrentar

o aparelho do Estado desde a abolição, para

de fato o racismo que existe nesse país, não

impedir, ou no mínimo, dificultar a criação

vai conseguir dirigir a totalidade da classe e

de uma legislação específica e políticas de

derrotar o capital por meio de uma revolução,

reparação compensatória que removam as

porque no Brasil está a segunda maior popula-

barreiras sociais reforçadas pela discrimina-

ção de negros do mundo, ficando atrás apenas

ção racial nesse país.

da África. Eis porque tornou-se necessário en-

Referências

.

Não foi por acaso, que todos os cortes no

tendermos que a luta contra a opressão racial

BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira (depoimentos).

texto original do estatuto foram efetivados

é parte indispensável do projeto socialista

São Paulo: Quilombhoje, 1998.

pelo senador direitista Demóstenes Torres

revolucionário

CALLINICOS, Alex. Racismo e capitalismo. Cadernos

do DEM com o aval do senador “negro” do

Socialistas. Edição Revolutas, Junho de 2004.

PT Paulo Paim, apresentador no Congresso

Má rio Ma ka í ba M i l ita nte da CST, f i l ia-

CARDOSO, Hamilton. “História recente: dez anos de mo-

do estatuto original. Todo o esvaziamento no

do ao PSOL-RJ, e colaborador do Círculo

vimento negro”. Revista Teoria e Debate, n. 2, São Paulo:

conteúdo original resultou em um Estatuto da

Palmarino.

março de 1988.

Agosto de 2011

47


Olorum ÈKÈ solaNo tRiNdade

Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Eu sou poeta do povo Olorum ÈkÈ A minha bandeira É de cor de sangue Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Da cor da revolução Olorum ÈkÈ

48

Ano III • Número 6


Meus avós foram escravos Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Eu ainda escravo sou Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ Os meus filhos não serão Olorum ÈkÈ Olorum ÈkÈ (Solano Trindade, Poeta do Povo, São Paulo: Ediouro, 2008, p.47)

Agosto de 2011

49


R

e

v

i

s

t

a

Negra Ano III | Nº 6 | Agosto de 2011  Uma publicação da Fundação Lauro Campos

E d i ç ã o e s p ecial

Expediente

FUNDAÇÃO LAURO CAMPOS

Organizadores Fábio Nogueira e Luiz Arnaldo

Diretoria

Assistente editorial Dion Monteiro Projeto gráfico, editoração e direção de arte Fernando Braga Revisão Albano Rita Gomes Produção executiva Silvia Mundstock Endereço Av. Rio Branco, 185 – Sala 1525 – Centro Rio de Janeiro – RJ CEP 20.040-007 Fone (21) 2215 2491

Presidente de honra Oraida Policena de Andrade Campos

Membros titulares Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho Ewerson Claudio de Azevedo Ema Regina Greber Carneiro Breno de Souza Rocha Antonio Jacinto Filho

DIRETORIA EXECUTIVA Diretor Presidente Carlos Roberto de Souza Robaina Diretor Técnico Luiz Arnaldo Dias campos

Membros suplentes Israel Pinto Dornelles Dutra Juliano Medeiros Honório Luiz de Oliveira Rego CONSELHO FISCAL

Diretor Administrativo-Financeiro Rodrigo da Silva Pereira

Presidente Antonio Carlos de Andrade

CONSELHO DE CURADORES

Membros titulares Alexandre Varela Luciana Gomes de Araújo

Presidente Mário Agra Junior Vice-presidente José Enrique Morales Bicca

Membros suplentes Jaqueline Teresa Aguiar João Batista Oliveira de Araújo




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