O INÍCI O
As estrelas da Ursa Maior estão imóveis no céu.
O momento delas também chegou. No refúgio no meio do gelo, ouve-se um tamborilar nervoso em uma mesa e, em seguida, uma pergunta que fica longamente suspensa no ar cheio de fumaça: – Será que vai chegar? Não há respostas. As janelas de alumínio estão geladas. Neva lá fora. O gelo lança clarões azuis. – Acho que estou ouvindo os lobos... – murmura um dos dois homens, coçando a barba. – Vocês não? – Vamos começar – propõe o outro, cinza e esquelético como uma árvore que sobreviveu a um incêndio. – Não temos muito tempo. A mulher para de tamborilar sobre a mesa, olha para o relógio e concorda: – Tem razão. Vamos começar. Os dois homens abrem os seus caderninhos e começam a folheá-los. – Como estão os meninos? – pergunta o homem de barba. – Continuam crescendo – responde ela. – Em breve, teremos que escolher. Carrega consigo umas vinte fotografias, que mostra aos companheiros. As imagens passam rapidamente de mão em mão. – Com quantos anos eles estão? – pergunta o homem esquelético.
O ANEL DE FOGO
– Oito. O homem de barba está visivelmente inquieto: levanta-se da mesa com um movimento nervoso, encosta o rosto na janela e olha para fora como se conseguisse distinguir alguma coisa em meio àquela imensa tempestade de neve. – Acabei de ouvi-los de novo. Os lobos. O homem esquelético dá uma risada rouca: – Há trinta quilômetros de gelo ao nosso redor. Como você pode ouvir os lobos? O homem de barba fica perto do vidro até embaçá-lo completamente. Depois retorna à sua cadeira e olha para o relógio pela enésima vez. – Talvez fosse melhor se tivéssemos nos encontrado em um lugar mais fácil de chegar. Um jardim, como na outra vez. – Ela não teria vindo mesmo assim. Você sabe como ela é. Melhor... – o homem esquelético mostra a foto de uma menina. – Ela não, tínhamos combinado. A mulher passa um dedo na borda da xícara, depois levanta uma sobrancelha, sem deixar transparecer nenhuma pista sobre o que está pensando. – Mudei de ideia – explica, bebericando o chá. – Não acredito que você tenha simplesmente mudado de ideia. – É o meu dever. – Mas esta menina... – um dedo curto e ossudo aponta para o rosto de cabelos encaracolados e negros. – Ainda é sua sobrinha. – Fala duas línguas melhor do que você. O que mais precisa para convencê-lo? – Você conhece os riscos. – E você sabe os motivos. – Nós tínhamos combinado que não, na última vez. – Na última vez, ela era uma recém-nascida. Há um longo momento de silêncio no qual se ouve apenas a chaleira sobre o fogo e o vento que entra pela chaminé. Pensativos, os homens olham as fotografias sobre a mesa: rostos ocidentais, olhos 4
O INÍCIO
amendoados, cabelos loiros e ruivos, peles claras e escuras. Meninos e meninas muito diferentes entre si, com exceção de apenas um detalhe fundamental, especial. Em breve, saberão qual. As paredes do refúgio gemem sob o peso da neve. No alto, no gélido céu noturno, as estrelas seguem uma lenta procissão. – Não gostaria que você cometesse um erro – repreende o homem esquelético. – Você nunca cometeu erros? – Tento evitá-los. Até porque eu não tenho nada com gente de bem... Você sabe. O homem de barba tosse para induzir os outros a parar de brigar. E diz: – Não vamos nos preocupar demais agora. Ainda está cedo para decidir. Eu só preciso saber para onde devo levar o mapa. – Onde você o escondeu? O homem de barba mostra aos outros uma velha maleta para guardar documentos. – Esta deve passar despercebida... – Espero que sim. Até porque, se alguém se der conta... O homem esquelético para de falar de repente. Escuta alguns barulhos fora do refúgio. Passos sobre a neve. Botas. Cães uivando. Um rugido furioso. Lobos. Os três se levantam imediatamente. – Vocês acreditam agora? – grita o homem de barba, indo rapidamente até a janela. Antes que ele consiga alcançá-la, a porta do refúgio é escancarada com um golpe. Uma pessoa entra na sala. Tem camadas de gelo sobre as botas. Deixa cair no chão uma máscara térmica e um par de luvas. – Desculpem-me o atraso... – diz, com um sorriso apaziguador. 5
O ANEL DE FOGO
Tira do capuz uma longa cabeleira negra. – Mas eu precisava descobrir onde começará. Tira o gelo das botas com um barulho seco. Fecha a porta e deixa o trenó puxado pelos lobos do lado de fora. E diz: – Começará em Roma.
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A A R M ADIL H A
Imóvel na escuridão, Elettra espera.
De pernas cruzadas, com as mãos sobre a cordinha que aciona a armadilha, está perfeitamente parada, imóvel como os velhos armários empilhados ao seu redor em uma série de sombras, uma mais escura do que a outra. Elettra respira lentamente, de modo imperceptível. Deixa que a poeira caia sobre si, ignorando-a. “Saia, saia...”, pensa, apenas movendo os lábios. Agarra os dedos na cordinha e, envolvida pela escuridão, escuta. As caldeiras fazem barulho ao longe, bombeando a água quente nas tubulações dos quartos do hotel. Os relógios fazem tique-taque baixinho. Na adega, domina um silêncio empoeirado. O hotel, a cidade, o mundo inteiro parece tremendamente distante. Não faz frio. É 29 de dezembro. É o início. Mas Elettra ainda não sabe disso. Um barulho fraquinho indica que o rato está se aproximando, zick-zick. Patinhas se movimentam sobre o pavimento, em algum lugar, no escuro.
O ANEL DE FOGO
Elettra levanta lentamente a cordinha, pensando, com um sorriso satisfeito: “A irresistível isca de queijo de ovelha.” “Ninguém consegue resistir ao queijo de ovelha.” É o que tia Linda diz sempre quando está na cozinha. Zick-zick. E depois o silêncio. Zick-zick. E novamente o silêncio. O rato fareja, seguindo com prudência o caminho do cheiro. “Está quase caindo na armadilha”, reflete Elettra, esfregando o polegar na cordinha. E pensa: “Mas será que você vai demorar, rato estúpido?” Ela construiu uma armadilha simples: um pedaço de queijo sob uma caixa de sapato pendurada em uma velha vareta de guarda-chuva. Basta um puxão para fazer a caixa cair sobre o rato. A única coisa difícil é perceber, no escuro, quando o rato chegou ao queijo. É preciso confiar no instinto. E o instinto lhe diz que ainda não é o momento. Elettra espera um pouco. E mais um pouco. Zick-zick faz o rato. E depois silêncio. Elettra adora aqueles momentos. São os instantes finais de um plano perfeito, aqueles em que tudo está prestes a terminar bem. Já consegue ver o olhar de admiração de seu pai, quando retornar da sua ida ao aeroporto. E os gritos de horror de tia Linda, quando lhe mostrar o rato, morto e duro, pendurado pelo rabo, do jeito que convém a um rato morto e duro. A outra tia, Irene, simplesmente lhe dirá: “Não desça para brincar na adega. É um labirinto muito perigoso.” E depois vai acrescentar com um ar de esperteza: “Ninguém sabe até onde aquele labirinto leva.” Elettra não desceu para brincar: tem a missão de capturar o rato. É mais do que um jogo. Zick-zick faz o rato. E então... O teto da adega começa a vibrar de repente atingido por uma série 8
A ARMADILHA
de golpes que fazem as garrafas tremerem nas prateleiras de madeira. “Não é possível”, pensa Elettra, olhando para cima. “Não, não agora!” Mas a vibração não para. A poeira começa a se mover inquieta. Os golpes sobre o pavimento ficam mais fortes, transformam-se em uma procissão de passos furiosos e começam a vir acompanhados de uma voz cada vez mais forte que, por fim, fica parecida com uma sirene. – EEELEEEEEETTRAAAAAA! – berra a sirene, escancarando a porta da adega. Uma cascata de luz toma as escadas, os móveis empilhados, as garrafas de vinho, os armários e as estátuas. Elettra olha imediatamente para a frente: o ratinho cinza está ereto sobre as pernas da frente, um centímetro para dentro da caixa de sapato. – Você não me escapa! – diz, puxando a corda. A caixa cai, mas não sobre o rato. – Não! – exclama. No topo da escada, as mãos de tia Linda, após encontrarem os interruptores das luzes com dificuldade, acendem todas elas. Uma dezena de lâmpadas se acende bruscamente e o brilho delas acaba com todos os ângulos de escuridão. Elas estão presas no teto em abajures redondos feitos com garrafas velhas. – Elettra! Mas você estava no escuro? – Maldição! – grita ela, levantando-se. – Ele conseguiu fugir de novo! – Quem fugiu? – pergunta a tia parada na porta. Elettra a examina minuciosamente com a vareta do guarda-chuva na mão. – O que você quer agora? No topo da escadaria, a tia contempla a adega como se a visse pela primeira vez. – Oh, mas que bagunça! – lamenta-se. – Seu pai e eu precisamos dar uma arrumada nisso tudo. Não é possível ter uma adega nessas condições! 9
O ANEL DE FOGO
É como se ela tivesse esquecido completamente a razão pela qual havia descido até ali. Olhando para ela, Elettra sente o rosto arder de tanta raiva. A tia passa graciosamente uma mão na cabeleira cinza, sem entender o dano que provocou. A caixa de sapato jaz inutilmente no chão e a grande adega de pedra esconde um rato ainda perfeitamente saudável. As luzes impiedosas deixaram completamente desolador o labirinto de corredores e salas cheias de objetos. – O que você quer, tia? – grita Elettra pela segunda vez. Sem ter sinal de que a tia vá responder, ela insiste: – TIA! A tia olha para ela com os seus olhões claros. – Elettra, tesouro – diz com toda a calma –, o seu pai ligou do aeroporto. Disse que há um problema com os quartos, um problema enorme. – Que problema? – Ele não quis me dizer. – E onde ele está agora? Tia Linda sorri. – No aeroporto, claro!
Fernando Melodia fecha rapidamente o celular: a voz gravada da operadora da companhia telefônica acabou de lhe comunicar que os seus créditos acabaram. – Droga – murmura sob o bigode perfeitamente cortado. – O que faço agora? Ao seu lado, está a família Miller, um casal de americanos com um menino de aparência selvagem. Estão tranquilos junto do painel do terminal A, cuidando de uma pilha de malas gigantescas. São menores do que o filho, que é muito alto, magro e despenteado. Ele olha ao redor como se estivesse sendo levado para a forca. Talvez sinta vergonha de como os pais estão vestidos: o pai veste um casaco 10
A ARMADILHA
xadrez e uma gravata-borboleta de bolinhas e a mãe usa um tailleur cor de cáqui... Esses são os Miller, contentes com a chegada. Alugaram o último quarto disponível do hotel para passar o ano-novo em Roma. O professor vai aproveitar a ocasião também para participar de um importante congresso sobre o clima. E a esposa está claramente louca para fazer compras. O filho, por sua vez, parece ter sido levado à força. Fernando suspira. Para ser reconhecido como dono do hotel, carrega um cartaz com a seguinte mensagem: HOTEL DOMUS QUINTILIA BEM-VINDOS! Uma ideia de Elettra. Uma ótima ideia, embora, por alguns longos instantes, Fernando tenha se arrependido de tê-lo levado. Ele mal havia levantado o cartaz e os Miller chegaram sorridentes. Os dois adultos, pelo menos. Aperto de mãos. – O senhor foi muito gentil por ter vindo nos apanhar – agradeceu o senhor Miller, abandonando por um momento o seu amontoado de bagagens. Fernando retribuiu o sorriso de modo incerto e, a partir daquele momento, não parou mais de sorrir da mesma maneira. Um sorriso no qual ele teria se enterrado com prazer. O motivo do seu embaraço é que se encontrava no aeroporto Fiumicino para receber duas pessoas, não três. Duas francesas cujo sobrenome era Blanchard, e não três americanos chamados Miller. Esperava uma mulher com a filha. Elas vinham no voo 808, proveniente do aeroporto Charles de Gaulle, de Paris, que deveria parar no terminal 11
O ANEL DE FOGO
B. A jovem perfumista Cecile Blanchard e a filha Mistral. Queria recebê-las, levá-las até o hotel na van e entregar-lhes as chaves do quarto número 4, aquele com cheirinho de alfazema, banheiro com chuveiro e um delicioso terracinho. O último quarto livre no hotel. Não há nenhum quarto livre para os três americanos, que não param de olhá-lo alegres e tranquilos. Um sinal de que estão convencidos do contrário. Fernando cometeu algum erro com as reservas. Um belo problema, com pouquíssimas soluções. Coloca o celular sem crédito dentro do bolso da calça e espera o telefonema de Elettra. – Algum problema? – pergunta o professor americano. Ele arruma a gravata a todo momento. – Não, não, nenhum – assegura Fernando, tentando encontrar uma solução rápida. E esforçando-se para não pensar que é o final do ano e que Roma está cheia de turistas. – Temos apenas que esperar a chegada de mais duas hóspedes – diz, apontando para o painel onde está marcada a chegada do voo proveniente de Paris. – Chegarão em alguns instantes. Perdendo-se no vaivém de pessoas, carrinhos e bagagens, Fernando tenta se acalmar. “Isso pode ser resolvido”, pensa. Não era a primeira vez, desde a morte de sua esposa, que errava uma reserva. Mas isso nunca havia acontecido com o hotel lotado. O pior é que ele tem a sensação de que a cidade inteira está lotada. Ele pensa na internet. Desde que ativou a possibilidade de reservar quartos on-line, as coisas ficaram muito complicadas. Antes bastava atender ao telefone. Agora é preciso ligar o computador, checar o e-mail, marcar as reservas, escrever os nomes nas fichas e anotar os 16 números do cartão de crédito. Fazer uma reserva se transformou em uma empreitada para contadores. Uma pequena multidão se empurra rumo ao lado de fora do 12
A ARMADILHA
desembarque internacional, sinal de que o voo de Paris já chegou. Fernando ergue com um certo fatalismo o cartaz. Talvez as duas parisienses tenham perdido o avião. Talvez tenham mudado de ideia. Ou talvez ainda haja um quarto livre e ele não esteja lembrado. Mas o fato é que isso é pouco provável em um hotel de apenas quatro quartos. Olha disfarçadamente para o menino americano que parece a única pessoa no mundo mais preocupada do que ele. O celular continua obstinadamente mudo. Mas por que Elettra está demorando tanto a ligar? – O senhor é do Domus Quintilia? – pergunta, naquele exato momento, uma voz masculina. Fernando olha para baixo e vê dois pequenos chineses: um senhor vestido com seda brilhosa e um menino todo alegre, com os olhos azuis e o cabelo cogumelo. Para salientar ainda mais a sua felicidade, o menino mostra os dentes e as gengivas enormes. – Desculpe, o que o senhor disse? – responde Fernando de forma mecânica, enquanto sente um arrepio característico dos momentos imprevisíveis tomar a sua coluna. O homem com a roupa de seda agita na altura do umbigo de Fernando um papel impresso. – Sou o senhor See-Young Wan Ho – apresenta-se. – E este é o meu filho Sheng Young Ho. O senhor foi muito gentil em vir nos buscar. – Des... Desculpe? – gagueja Fernando perplexo. Nesse momento, ele percebe com o canto dos olhos que uma senhora francesa e uma menina que parece ser sua filha estão se aproximando. O senhor See-Young Wan alguma coisa lhe mostra pela segunda vez o papel na altura do umbigo. O seu filho, Sheng, sorri contente. – Reservamos o quarto 4 no seu hotel. O senhor foi muito gentil em vir nos apanhar. O sorriso incerto de Fernando Melodia fica totalmente petrificado. Enquanto isso, a senhora francesa, a perfumista, a única pessoa que ele esperava naquela tarde, avisa a filha: 13
O ANEL DE FOGO
– Olhe, Mistral, o dono do nosso hotel está aqui. Fernando está imóvel, incapaz de decidir o que fazer. Talvez por isso ele não perceba o homem vestido de preto que passa ao seu lado, deixando um forte perfume de violetas.
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A P O EIR A
O pátio do hotel está completamente silencioso. Elettra o atravessa
rapidamente, passando perto do poço e dos troncos contorcidos das trepadeiras, que sobem majestosamente até a varanda. O corrimão que dá acesso ao terraço tem quatro estátuas com expressão indecifrável. Elettra se aproxima do pé da escada e mostra a língua para a grande máscara de pedra que se encontra sobre o arco da entrada. Em seguida, sobe dois degraus de cada vez até chegar ao quarto de sua outra tia: Irene. Bate na porta, mas abre sem esperar uma resposta. O quarto da tia é iluminado por uma luz brilhante que entra pela grande janela que conduz ao terraço. O teto possui afrescos de cor verde e o pavimento é revestido por azulejos brancos e pretos. – Tia?! – exclama Elettra. – Estamos de novo com aquele problema com os quartos! Tia Irene está paralisada na cadeira de rodas no fundo do quarto. Está lendo sob um cone de luz de uma luminária com forma de garça. Apoia o livro sobre os joelhos e olha para Elettra por cima dos óculos, inclinando ligeiramente o olhar. É uma mulher muito magra, com cabelos brancos presos por uma graciosa presilha de tartaruga. Quando jovem, antes do acidente que a paralisou, era muito bela. – Não me diga! – responde, como se já conhecesse perfeitamente o
O ANEL DE FOGO
problema. – Seu pai conseguiu de novo? Elettra atravessa correndo o último trecho do quarto. Uma de suas típicas corridas que acabam com um pulinho. Ajoelha-se sobre o tapete na frente da tia e a faz rir com uma careta. – Acho que sim. Mas desta vez ele caprichou. – Como assim? – Três quartos em um – explica Elettra. – Está voltando do aeroporto com duas francesas, três americanos e dois chineses... todos convencidos de terem reservado o quarto de número 4. – Por favor, diga que está brincando – geme a velha senhora. – Claro que não! Acabei de falar com ele pelo telefone. – Mas não é possível! – exclama Irene, deixando cair o livro no chão. – Será que é assim tão difícil anotar três reservas? Se sua mãe estivesse aqui, ela lhe daria um belo sermão! – Tia... A mulher bate as palmas das mãos sobre os braços da cadeira de rodas. – O fato é que seu pai está sempre com a cabeça nas nuvens. Se não fosse por minha irmã e eu, o hotel já teria fechado! – Papai não quer se ocupar do hotel – diz Elettra, tentando defender o pai. – Ele está escrevendo... – Está escrevendo! – ri nervosamente a tia. – Certo! O seu famosíssimo livro de espionagem... Há quantos anos está para terminá-lo? Cinco? Dez? Elettra não insiste sobre aquela velha questão e olha para o relógio. – Temos menos de vinte minutos para encontrar uma solução. Tia Irene suspira: – Qual? Elettra encolhe os ombros: – Pânico geral? – Vá chamar sua tia Linda – decide a velha senhora. – É preciso juntar três mulheres para consertar o estrago feito por um homem! – Mas é muito simples – decide Linda alguns momentos depois, 16
A POEIRA
com muita calma. – Basta dizer que não há lugar e mandá-los embora. – Não podemos fazer isso! – protesta Elettra. – Então temos que arranjar outro lugar para acomodá-los às nossas custas. – Exato: esta é a primeira coisa a ser feita – concorda Irene. Elettra começa a telefonar, mas, após algumas tentativas frustradas, desliga o telefone desconsolada: – Não é tão simples assim. Até mesmo o Astoria está lotado. Tia Irene dá uma olhada na relação de hotéis e pensões que está apoiada sobre seus joelhos. Dita mais um número para a sobrinha e reclama: – Maldição esse ano-novo e todos esses turistas. Linda mede a passos largos o quarto da irmã. Para em frente a uma bola de vidro de sua coleção, levanta-a e passa o dedo sob ela. – Ácaros – sentencia, observando a ponta dos dedos. – É necessário que você faça uma boa limpeza neste quarto. Não é saudável viver no meio desta poeira toda. Especialmente considerando sua situação. – Linda! – estoura Irene, prevendo que está por começar um dos ataques de higiene da irmã. – Minhas pernas é que estão paralisadas, não o meu cérebro! E um pouco de poeira nunca matou ninguém. Longe de se deixar convencer, Linda gira a bola de vidro com uma expressão de reprovação. De dentro da bola, começam a cair delicados flocos brancos. – Horrível! – decreta, recolocando rapidamente a bola em seu lugar. – É o tipo de coisa que só serve para causar desordem. – Pouco me importa se você gosta ou não! Além disso, não se esqueça de que este quarto é meu e sou eu quem decide como decorá-lo. – E todos esses horríveis quadros decrépitos? – continua implacável, a irmã. – E aqueles armários velhos, com o cheiro de mofo típico dos armários velhos? Eles vão acabar estragando toda sua roupa, estou avisando. Você deveria comprar armários novos, como aqueles que coloquei no meu quarto. E espalhar perfume de baunilha. Um pacotinho em cada gaveta e toda sua roupa ficará com cheirinho de... – De baunilha? Sim, posso imaginar! – diz tia Irene quase aos gritos. 17
O ANEL DE FOGO
– Por que você não se concentra no problema dos quartos em vez de pensar em esterilizar a minha vida? Elettra desliga o telefone pela quinta vez. – Não consegui nada no Hilton. Parece que a cidade inteira está lotada como uma lata de sardinhas. – Nenhuma surpresa – diz Linda. – E, por falar em sardinhas, o que vamos comer hoje à noite? Eu poderia preparar um pouco de polenta com molho de carne ou... um peixe. Podemos prepará-lo ao forno com batatas e salsinha... Elettra a ignora e faz uma sexta tentativa. Nada. A sétima tentativa também é malsucedida. – Tudo lotado – diz por fim. – Então... – suspira tia Irene. – Só nos resta colocar em prática o plano B. – Nem pensar! – diz Linda, já com as mãos em movimento à sua frente. – Eu não dou o meu quarto a estranhos! – Linda, não temos outra... – E, além do mais, meu quarto está uma bagunça, uma bagunça total. E vocês pensam que vou permitir que eles entrem no meu quarto de sapatos? Você sabe muito bem que no meu quarto ninguém entra de sapatos! De jeito nenhum! E o banheiro? É preciso desinfetá-lo. E quando eles forem embora? Nunca mais poderei usá-lo! Eles vão trazer germes desconhecidos, vírus para os quais eu não tenho anticorpos. Nem vocês! Há doenças que resistem ao vapor a cem graus centígrados! Disseram isso na televisão! Como aquele caso do turista que levou o vírus do frango para a Turquia, vocês não ficaram sabendo? – Linda! – interrompe Irene, segurando-a pelo pulso. – Preste bastante atenção: no seu quarto, podemos colocar as duas mulheres. A senhora francesa e a filha. Ouça bem o que estou dizendo: mulheres. Ela é uma estilista. Limpa, perfumada. E, além disso, deve permanecer apenas duas noites. A irmã resmunga, sem se deixar convencer completamente: – E onde vamos colocar o senhor chinês? – No quarto do Fernando. 18
A POEIRA
– E o Fernando? – No sofá da sala de estar. – Aquele sofá é muito delicado! – protesta Linda. – Você sabe muito bem que Fernando destrói tudo o que toca. E ainda por cima ele é sonâmbulo! – Olhe só quem fala... – intervém Elettra. – Você também é sonâmbula. – Eu não sou sonâmbula – exclama a tia. – Acontece que algumas vezes... falo um pouco enquanto durmo. – Um pouco? – zomba a sobrinha. Irene tenta pôr fim à discussão: – Colocamos os americanos no quarto 4. A francesa dorme no seu quarto, você vem dormir aqui comigo – recapitula. – O chinês dorme no quarto do Fernando. – O Fernando não pode dormir naquele sofá – insiste Linda. – Então dormirá embaixo do sofá. – Não se pode dormir no chão. É sujo. – Escute, Linda – interrompe a irmã –, um dos motivos pelo qual nosso hotel está sempre cheio é que não existe lugar mais limpo e perfumado em todo o planeta. Portanto... Fernando dormirá no chão, você e Elettra deverão arrumar os quartos para acomodar esses hóspedes. As duas acabam se convencendo. De repente, porém, Linda expressa uma dúvida: – Desculpem, mas... mesmo fazendo tudo isso, ainda faltam três camas. Uma para o filho do chinês, outra para... – Então vamos fazer assim: colocamos os meninos nos beliches do quarto de Elettra. – Você só pode estar brincando! – Não: eles se divertirão muitíssimo. Elettra fala inglês melhor do que nós duas juntas. O quarto dela é perfeito. – Sim, mas... – Mas o quê? – interrompe logo a menina, balançando o emaranhado de cachos negros. – É uma ótima ideia! Talvez a única. Vamos, tia. Nós vamos conseguir!
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O ANEL DE FOGO
– Senhor Mahler? – pergunta a menina no aeroporto. Ela está de pé em frente ao portão de saída dos voos internacionais. Ao redor dela, há uma luz alaranjada. É magra, com longas e sutis sobrancelhas e mãos bonitas. Usa um casaco risca-de-giz, jeans justo e um par de botas altas de couro verde. O homem a quem ela se dirigiu não parou. Continua caminhando e finge observar a fila para pegar táxi. Está vestido de preto, é magro, de cabelos brancos e lisos. As maçãs do rosto são altas e o nariz é fino como uma chave de fenda. Tem olhos pequenos e uma boca tão fina que parece uma rachadura. Carrega uma anônima maleta preta de viagem e segura nas mãos uma estranha capa de violino. – O senhor por acaso se chama Mahler? – repete a menina, aproximando-se. Começam a cair os primeiros flocos de neve. O homem mantém sua expressão firme e murmura: – É possível. – Eu me chamo Beatrice – apresenta-se a menina. – Vim buscá-lo. – Isso é claro. A menina morde os lábios. – O senhor pode me seguir? – Você veio de carro? – Isso é claro – responde ela zangada. Finalmente o homem se volta, seu olhar é frio e distante: – Bem – diz. – Sei que o aeroporto fica longe do centro. E eu estou realmente muito cansado. – Joe Vinile me pediu para levá-lo a um restaurante... – Não nesta noite – retruca o homem. – Só preciso de uma cama e de um chuveiro. Beatrice o conduz ao longo da calçada. – Belo violino! – comenta, abrindo a porta de seu carro amarelo. – Não é um violino – responde ele, apertando imperceptivelmente a capa do violino. 20
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OS QUATRO
Neva quando a van de Fernando Melodia chega ao pátio interno
do Domus Quintilia, no coração antigo do bairro de Trastevere. Os hóspedes desembarcam debaixo de flocos de neve e correm para se proteger sob o velho terraço coberto de madeira. O motorista entra rapidamente na recepção. Enquanto os hóspedes começam a descarregar as malas, Fernando retorna à van, explica rapidamente o problema das reservas, fala da solução encontrada pelas mulheres da casa e, sem esperar resposta, desaparece de novo no interior do hotel. Entre os hóspedes, começa uma furiosa discussão. Ao redor deles, flocos de neve cada vez mais grossos caem em trajetórias que lembram espirais. O professor americano permanece parado ao lado da entrada do hotel com uma expressão furiosa: – Isso é uma indecência! – reclama. – Nunca fui tratado dessa maneira! Sua mulher o agarra pela gola do paletó e, de vez em quando, o puxa como se estivesse segurando um cão pela coleira. – George... acalme-se... – Acalmar-me? – explode ele, apontando para o antigo pátio do Domus Quintilia e para os degraus que levam até a recepção. – E como faço para me acalmar? Reservamos um quarto triplo e nos dão um
O ANEL DE FOGO
quarto duplo! Onde dormirá nosso pobre Harvey? Ao ouvir o seu nome, o “pobre Harvey” lança um olhar desgostoso em torno de si. – Vamos embora daqui – sugere o jovem. Ele dá um passo para evitar as gigantescas malas escocesas do senhor See-Young Wan Ho. O senhor chinês também demonstra aborrecimento, e o seu terno de seda brilhosa não é suficiente para melhorar seu humor. – E eu? Que coisa posso dizer? Reservei um quarto duplo, aquele que foi cedido a vocês... e me dão um quarto individual! E eu também tenho um filho. Mas, ao contrário do “pobre Harvey”, o menino chinês corre despreocupadamente debaixo da neve como um grilo enlouquecido e comenta em voz alta tudo aquilo que vê: o terraço de madeira, as quatro estátuas da entrada, a cavernosa escada da entrada com uma máscara zombeteira, o poço no meio do pátio, a van do hotel. As duas hóspedes francesas permanecem num canto e não parecem dispostas a participar da polêmica. Assemelham-se como duas gotas de água, vestem-se de modo idêntico: roupas leves de cor indefinida, como seus cabelos lisos. Quando o senhor Miller lhes pergunta o que acham da situação, a senhora Blanchard se limita a observar: – Evidentemente aconteceu algum problema com as reservas. – É uma indecência! – volta a reclamar o americano nada satisfeito com aquela situação. – Vamos embora – insiste seu filho sério. – Esperem... – sugere o senhor See-Young Wan Ho, olhando para a entrada do hotel. – Acho que está acontecendo alguma coisa. “Ah”, pensa o filho, parando de repente debaixo da neve. Elettra acaba de chegar. Seu rosto é oval, contornado por uma montanha de cabelos negros encaracolados. Os olhos são escuros e determinados. Está acompanhada 22
OS QUATRO
por uma senhora igualmente bela, de rosto fresco, olhos claros e cabelo grisalho cortado na altura dos ombros. Ambas estão sorridentes e confiantes, como se tivessem a solução para qualquer problema. – Sentimos muitíssimo... – diz a senhora. – Mas vocês podem ficar tranquilos porque vamos dar um jeito de resolver tudo. Elettra os convida a entrar: – Podemos conversar num lugar mais quente, se vocês quiserem. Hipnotizado pelos olhos de Linda, o professor americano muda radicalmente de expressão. Solta a gola do paletó das garras da mulher e responde com um inesperado e conciliador: – É claro. Até mesmo o “pobre Harvey” parece demonstrar certo interesse pelo assunto. O senhor See-Young Wan Ho aceita o convite com uma reverência. As duas francesas permitem que Fernando, extremamente embaraçado, passe ao lado delas para pegar a bagagem e seguem Elettra até uma bonita sala de jantar com teto baixo e quadros luminosos nas paredes, onde há cinco pequenas mesas que acabam de ser arrumadas. Ali são esperados por uma mulher idosa sentada em uma cadeira de rodas. – Meu nome é Irene – apresenta-se a mulher com um sorriso calmo. – Sinto muito pelo que aconteceu. O professor americano esboça um gesto de protesto, mas, imediatamente, como se se lembrasse de alguma coisa, se dispõe a escutar. – Não há justificativas para o erro que cometemos – continua a mulher. – Mas acreditamos que a proposta que oferecemos seja aceitável: a cidade está repleta de turistas e vocês não conseguiriam encontrar uma acomodação melhor. Acreditem em mim: os quartos em que vocês serão acomodados são provavelmente os mais acolhedores do hotel. – No meu quarto, porém, falta uma cama para minha filha... – interrompe a senhora francesa. 23
O ANEL DE FOGO
– Isso não é problema – responde Elettra. – No meu quarto há dois beliches. Se... Mistral, certo? A jovem francesa concorda timidamente. – Se Mistral aceitar, pode dormir no meu quarto. Os meninos podem dormir no outro beliche. Assim vamos conseguir acomodar todo mundo. Mistral olha para a mãe na expectativa de um sinal de aprovação. Sheng exclama convicto: – Hao! E procura inutilmente o olhar de Harvey, que está olhando para baixo, completamente envergonhado. O casal de americanos conversa rapidamente. O senhor Wan Ho observa impassível a velha senhora sobre a cadeira de rodas. A primeira a tomar uma decisão é a mãe de Mistral, que encolhe os ombros e conclui: – Minha filha está acostumada a ser independente. Se ela concordar, para mim não há problema. – A senhora gostaria de olhar o quarto? – pergunta Elettra. – Não, não. É muito distante do meu quarto? – Dois lances de escada. As duas trocam um sorriso divertido e logo aceitam a proposta. – Muito bem – aprova tia Irene satisfeita. – Realmente é muito tarde – intervém o senhor Wan Ho, alisando o paletó. – Nossa viagem foi muito longa. Se o meu filho concordar, eu também aceito essa solução. Tia Irene, então, se volta para os dois americanos: – Faltam apenas vocês, senhores. O homem cruza as mãos sobre o peito. A senhora se inclina para tirar um cacho rebelde da testa do filho, que prontamente se afasta. – Você aceita, Harvey? Caso contrário... – Para mim, não tem problema – responde. Ele para por um instante de olhar para a ponta dos próprios pés e acaba cruzando o olhar com o de Elettra. Intimidado, ele se vira de 24
OS QUATRO
repente para pegar a bagagem. Após alguns instantes, a sala de jantar do Domus Quintilia se esvazia. Irene agarra as rodas da cadeira e começa a se dirigir para o elevador. Uma portinha se abre imperceptivelmente na parede atrás dela. – Agora você pode sair, Coração de Leão – diz ela, dirigindo-se à portinha. – O perigo já passou. Fernando Melodia entra na sala de jantar depois de se assegurar que todos os hóspedes tinham saído. Carrega nos braços uma montanha de roupas, toalhas e pijamas. – Como você descobriu que era eu? – Percebi seu sentimento de culpa no ar. – Eu... As rodas da cadeira gemem sobre o chão. Do lado de fora da janela, o perfil de uma estátua observa o céu esbranquiçado. – Tente tomar cuidado com o sofá – zomba a velha tia. – Prefiro dormir no chão. – Acho melhor, considerando a possível reação de Linda. – Droga! – O que foi? Fernando observa a escada por onde acabou de descer: – Esqueci meu livro no quarto. Talvez seja melhor ir buscá-lo. Nesta noite eu poderia... – Deixe para lá, Fernando – suspira a velha. – Acho que nosso amigo chinês não deve ter intenção de roubar a sua obra-prima. Em vez disso, ajude-me com esta cadeira. Fernando apoia as roupas sobre uma poltrona e empurra Irene até o elevador. – Foi difícil convencê-los? – pergunta. – Não mais do que de costume – responde ela. As portas de ferro se abrem com um suspiro metálico. Fernando Melodia inclina levemente as rodas emborrachadas para empurrar, com um golpe, a cadeira para dentro do elevador. 25
O ANEL DE FOGO
– Está nevando – suspira. – Fazia muito tempo que não nevava em Roma... – Vamos subir até o sótão então – propõe tia Irene. – Não podemos perder a vista da cidade coberta de branco.
O carro amarelo corre veloz no meio do trânsito do Grande Anel Rodoviário de Roma. Os pequenos limpadores lutam contra a neve que se deposita sobre o vidro. O rádio toca uma delicada música sinfônica. Pendurado no espelho retrovisor, balança um crânio de pelúcia. – Ouvi muitas histórias a seu respeito, senhor Mahler – diz Beatrice, ultrapassando a van branca de um hotel, cujas luzes vermelhas brilham como vaga-lumes entre os flocos de neve. – E como eram essas histórias? – Terminavam todas do mesmo modo – sorri a menina, avançando entre dois carros. – Você gostava delas? – Muito. – Você gosta de histórias tristes. – Às vezes, a tristeza é fascinante. – Na maioria das vezes, é só triste mesmo. Os dois permanecem calados por alguns instantes, observando o limpador de para-brisa. – Acho que você não entendeu exatamente a natureza do meu trabalho – diz o homem com o violino. – Joe Vinile fala do senhor como se fosse uma espécie de lenda. – Não sei quem é esse tal de Joe Vinile. Uma lenda de quê? – Do crime. O homem de cabelos brancos sacode levemente a cabeça. – Viu? O que acabei de dizer? Você se enganou. – Não é verdade? 26
OS QUATRO
– Eu diria que sou um eficiente realizador de expectativas alheias – insiste o homem. – É uma questão de ponto de vista. – Não existem pontos de vista. – O que existe então? – Aquilo que sabemos fazer e aquilo que não sabemos fazer. – Entendo. O trabalho, portanto – Beatrice segura a direção com as duas mãos. – Joe me disse que esta é uma missão por conta de... Jacob Mahler levanta a mão com a velocidade de um raio. O seu dedo já está apontado contra o nariz de Beatrice quando seus lábios sussurram um murmúrio ameaçador: – Psiu! Não pronuncie aquele nome. Beatrice continua com as mãos na direção. Finge não perceber o dedo apontado contra seu nariz e dá uma risadinha de surpresa: – Por que não? Estamos sozinhos dentro do carro. – Não pronuncie nunca aquele nome – repete o homem com o violino, recolhendo a mão. – É um conselho de amigo. – Então somos amigos? – Você quer outro conselho? Pare de fazer perguntas. Beatrice encolhe os ombros. E, por um instante, coloca a mão direita no câmbio, depois aumenta o volume do rádio. O carro amarelo desliza sobre o asfalto brilhante. Neva cada vez mais forte.
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C OI
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N C ID Ê N C I A S
– Entre – diz Elettra em voz alta, fechando a torneira da pia. Ela
teve a impressão de que alguém bateu na porta. – Entre! – repete em inglês, elevando ainda mais a voz. O quarto está quase completamente escuro, com exceção da luz que penetra pelas grades da janela. É uma luz fraca e quente que vibra por causa da neve. A porta que dá para o corredor se abre o necessário para que Mistral, a jovem francesa, consiga entrar. Elettra a cumprimenta e lhe mostra o beliche. – Acho melhor você dormir na parte de cima do beliche – aconselha Elettra, com a boca ainda cheia de pasta de dente. – Assim, no outro beliche colocamos Harvey e... – ela não consegue se lembrar do nome do rapaz chinês. – Sheng – completa Mistral. Ela carrega uma bolsa florida de cor lilás, pijama, uma muda de roupas, escova e creme dental. É muito alta, mais alta do que Elettra, delicadamente bela, tem cabelos curtos e olhos muito grandes, perfeitamente redondos e azuis. Sobre o pescoço magro, o rosto triangular lembra uma ave, um flamingo atento e tranquilo. Ela se movimenta devagar, prestando bastante atenção para não tocar em nada, com uma timidez que quase a deixa imóvel.
COINCIDÊNCIAS
Elettra a examina com o olho clínico de quem tem o hábito de julgar as pessoas com base em poucos detalhes. É um defeito típico de quem está acostumado a encontrar dezenas e dezenas de pessoas que mal se diferenciam umas das outras. O seu primeiro veredicto é negativo. Mistral é lenta. Jamais poderá ser amiga dela. Elettra costuma se movimentar com agilidade e segurança, enquanto Mistral, para usar uma expressão impiedosa, parece uma compridona estabanada. E Elettra não gosta disso. Especialmente por se tratar de uma menina bonita e muito mais alta do que ela. – Seu quarto é muito bonito – diz Mistral em inglês, com um sotaque muito diferente. O tom doce de sua voz e a expressão de seu rosto fazem Elettra se arrepender na mesma hora de seu primeiro julgamento. – Você está falando sério? – pergunta. – Sim. É esplêndido – Mistral coloca a bolsa florida de cor lilás sobre a cama, abre-a e pega um par de chinelos de pano e uma toalha branca. – Tem um perfume bom. E é muito organizado. – Questão de sobrevivência, pode acreditar – brinca Elettra. – Tia Linda me obriga a manter tudo em seu devido lugar. Tudo tem que estar arrumado nos mínimos detalhes. Venha comigo, vou mostrar o banheiro. Mistral se encanta ao avistar um espelho circundado por diversas luzes. Passa as mãos sobre as lâmpadas acesas e murmura: – Sempre sonhei com um espelho assim. Ela se olha no espelho com uma expressão sonhadora. Parada na porta, Elettra a observa e sorri feliz por poder compartilhar aquela pequena emoção. – E pensar que eu o uso tão pouco... – diz. – Por quê? – Eu não me dou muito bem com espelhos – sorri Elettra. – Quanto mais os uso, mais... eles perdem o brilho e se tornam opacos. Mistral sorri também. – Você deve estar brincando. 29
O ANEL DE FOGO
– Não. E isso não é tudo: queimo lâmpadas e estrago aparelhos elétricos em geral com muita facilidade. Portanto, para mim, um espelho cheio de lâmpadas ao redor é uma espécie de... campo minado. Mistral, demonstrando curiosidade, começa a fazer perguntas, rindo daquela estranha característica. O seu rosto triangular refletido no espelho entre as lâmpadas é o símbolo da tranquilidade. Elettra, por sua vez, sente grande prazer em responder às perguntas, apagando aos poucos aquela impressão de compridona estabanada e substituindo-a por outra bem mais positiva: a de sonhadora romântica. – Em que você está pensando? – pergunta-lhe a jovem francesa, apoiando as mãos sobre a pia. Elettra acorda de seus pensamentos. – O quê? – Você me colocou sob uma espécie de lente de aumento... ou estou enganada? – Oh, não, desculpe. É que faz muito tempo que... – Elettra prende os cabelos entre as mãos e os deixa cair sobre as costas. – Que não trago uma amiga ao meu quarto. Mistral sorri, fazendo um gesto vago com a mão. – É você que tem que me desculpar. Por causa do trabalho de minha mãe, geralmente eu também fico sozinha. E, quando estou com alguém, tenho a sensação de estar sendo julgada. – Juro que não tinha a menor intenção de fazer um julgamento ruim de você. Pelo contrário. – Faça de conta que eu não disse nada. – O.k. – interrompe Elettra. – Que tipo de trabalho sua mãe faz? – Ela trabalha com perfumes – relata Mistral. – Quero dizer, ela fabrica perfumes. – Fabrica perfumes? Como assim? – Oh, é uma coisa que eu também gostaria de fazer quando crescer. É preciso ir para uma escola. A que eu gostaria de ir se chama International Flavors & Flagrances. – Você quer dizer que existem escolas de perfumes? 30
COINCIDÊNCIAS
– Na França, sim. – E onde fica essa escola onde você gostaria de estudar? – Em um vilarejo da Costa Azul que se chama Grasse, onde são fabricados perfumes há centenas de anos. Não é uma coisa fácil, acredite: é preciso estudar muitíssimo. É necessário ser capaz de classificar as diversas essências em suas categorias: há perfumes da cabeça, do coração, do espírito, que são os mais leves e vaporosos, e os perfumes da terra, que são aqueles com efeitos mais duradouros. Há perfumes agudos, doces, arenosos, naturais, químicos... É só dar asas à imaginação! – Caramba – murmura Elettra estupefata. – Eu não sabia que existem pessoas que... estudam para fabricar perfumes. Enquanto as duas meninas estão falando sobre essências de lavanda e sobre os grandes tonéis usados na preparação das rosas, alguém bate na porta. É Sheng, já de pijama. O rapaz chinês, com seu cabelo cogumelo que mais parece uma tigela de cabeça para baixo, veste um alegre conjunto de listras azuis combinando com um par de tênis vermelho. – Eu me esqueci de trazer os chinelos – justifica-se prontamente, antecipando-se à perplexidade das meninas. Elettra começa a fechar a porta, mas Sheng avisa que Harvey, o americano, também está descendo. – Eu o ouvi caminhando no corredor atrás de mim. De fato, após alguns instantes, aparece Harvey. Apesar da sua altura, está todo recolhido sobre si mesmo, como se carregasse nas costas uma tonelada de problemas. E tem o cabelo caído sobre os olhos, como se não quisesse olhar para nada além dos próprios pés. – Eu não tenho pijama – diz, contemplando Sheng. – Tem algum problema nisso? – E como você dorme, se não tem pijama? – De camiseta e cueca – responde, ficando completamente vermelho, de costas para as meninas. 31
O ANEL DE FOGO
– Nós não nos preocupamos – responde Elettra, piscando para a jovem francesa. – Não é mesmo? Mistral dá uma risada cristalina, mas é interrompida pelo movimento brusco de Harvey para subir no beliche. – Eu durmo aqui em cima, certo? – O.k., hao – murmura Sheng. – Eu sempre quis dormir embaixo... Harvey se enrijece, como se tivesse percebido uma ponta de ironia na resposta de Sheng: – Por acaso, eu disse alguma coisa errada? Você prefere dormir em cima? Você decide – e, sem esperar uma resposta, agarra sua bolsa e a coloca sobre o colchão da parte baixa do beliche. – Eu durmo aqui embaixo. – Oh! O que você está fazendo? – rebate Sheng muito tranquilo. – Dormindo – responde Harvey, desaparecendo na sombra do beliche. Sheng, calçando seu par de tênis, lança um olhar divertido para as duas meninas, com uma expressão que demonstra todo o seu espanto. Harvey parece um tipo um tanto difícil, alguém que quer demonstrar ser durão. Elettra percebe no ar um certo tom de desafio e decide imediatamente aceitá-lo. Apoia-se no beliche dos meninos e, inclinando-se para olhar para o americano, que ainda está com a calça jeans e com o par de tênis, pergunta: – Você também costuma dormir de tênis? Harvey arregala os olhos desconcertado: – O que você disse? Elettra repete: – Eu perguntei se você dorme de camiseta, cueca, jeans e tênis na sua casa nos Estados Unidos. Só então Harvey se dá conta de que ainda está completamente vestido. 32