O caderno Urdume
é um programa do Instituto Urdume, que tem por objetivo partilhar, com aqueles que nos acompanham, ensaios, esboços e referências de pesquisas que temos realizado e têm nos acompanhado nos últimos dois anos.
Sempre com foco em um tema específico, os Cadernos chegam para complementar o conteúdo plural que produzimos para a revista, porém com mais argumentação histórica e questionamentos que esbarram nas lacunas existentes na produção teórica na área. Convidamos você, estimado leitor, a adentrar os cadernos e tramá-los conosco.
Boa Leitura!
Ai borda, rica filha, borda borda
Ai borda, rica filha, borda bem
Lá em casa, rica filha, todos bordam
E borda o pai e borda a filha e borda a mãe [e eu também]
- Canção popular da Madeira -
Não é possível localizar precisamente o início da prática do bordado em terras portuguesas. Contudo, referências apontam para a origem do ensino e da divulgação por ordens religiosas, conventos e escolas femininas 1. Bordar era uma técnica praticada e comercializada em todo o país, sendo desenvolvidas peças para o lar (toalhas, colchas, centros de mesa, entre outros) e para vestimentas:
Trabalhos de bordado podem ser encontrados em várias zonas do país: Minho – Bordados de Viana do Castelo e de Guimarães; Douro Litoral – Bordados de Lixa (Amarante) e de Felgueiras (bordados de Filé e Airães); Beira Alta – Bordados de Viseu (Alcafache, Mangualde, Tibaldinho); Beira Baixa – Bordados de Castelo Branco; Alto Alentejo – Bordados de Nisa e Arraiolos; Beira Litoral –Bordados da Figueira da Foz (Buarcos); Estremadura – Bordados das Caldas da Rainha, Açores – Bordados dos Açores. (GARRIDO, 2015, p.71)
Porém, nenhum tipo de bordado englobou as dimensões usufruídas pelo Bordado Madeira, oriundo da Ilha da Madeira, caracterizado como indústria, apesar do seu caráter de atividade manual 2 .
A Ilha da Madeira foi descoberta pelos portugueses em 1419. De formação
vulcânica, ela faz parte de um arquipélago de mesmo nome, situada no Ocea-
1 GOMES, 2019, p. 14
2 GARRIDO, 2015, p.75
no Atlântico, a 500 km da costa africana e a pouco mais de 1000 km de Portugal 3. Luís de Camões chama-a “grande” e a considera a preferida de Vênus, "Passamos a grande ilha da Madeira / que do muito arvoredo assi se chama" 4 . Grande, pois é naturalmente rica e exuberante:
A riqueza da ilha está nela própria e na força das suas gentes. Porque tem o mar à volta. O lugar fica situado numa das curvas do mar. Sentados na boca do vulcão, olhámos para seiscentos anos de História. Ousámos casear o mundo daqui. Cada ponto do nosso bordado foi pegado de espuma pela montanha fora. Foi chão e foi mar. Foi verso de poeta. Foi suor de homens que vieram do mar, abriram rugas na terra, subiram as encostas e plantaram as casas no abraço das vides. Foi arrepio das paredes da serra, quando a água escorre em cascatas e risca os montes de branco. Derramamos o bordado sobre o colo. Embebedamo-nos dos versos dos poetas que nos falam de horizontes, porta de entrada de gente, porta de saída de sonhos. Está lá o mar, a abraçar de azul e futuro o que ainda está por fazer. As marés contam de um mar branco de açúcar, enfunando as velas das caravelas. (ALVES, 2020, p. 165) Na Ilha da Madeira, o bordado é um elemento representante da história, cultura e tradição do seu povo 5. Como descreve o professor Alberto Vieira 6 , coordenador do Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA), "o bordado faz parte da nossa cultura. É uma marca que identifica a ilha, tal como sucede com o vinho. A sua presença suplanta as barreiras da ilha (...)."
Sua origem remonta à povoação da ilha no século XV. Aprendido e ensinado de mãe para filha 7 e agregado a outros costumes e tradições trazidos pela
3 KODJA, 2008, p. 34
4 Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto V.
5 GOMES, 2019, p. 15
6 VIEIRA, 2004, p.9. Alberto Vieira (1964-2019) foi um importante professor e historiador madeirense, além de coordenador do Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA). Seu legado para os estudos e registros histórico-sociais da região é imensurável.
7 É interessante mencionar aqui que há relatos de meninos que, na primeira infância, também aprenderam alguns pontos com as bordadeiras de suas famílias.
Bordadeiras da Madeira. Bordadeiras de campo. Fotografia de 1940 (c.). Arredores do Funchal, Ilha da Madeira. (Wikimedia Commons)
população oriunda de várias zonas do país, destacando-se Viana do Castelo a prática do bordado acompanhou as gerações que sucederam-se. Inicialmente, era realizado para consumo pessoal ou para oferta a familiares e amigos, tratado como um bem herdável, devido a seu valor incalculável. Destinava-se desde a decoração do lar, passando pela ornamentação do vestuário e atingia seu ápice no tradicional enxoval de casamento.
O registro mais antigo sobre o Bordado Madeira está presente no livro Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso 9, escrito no final do século XVI, no qual o autor descreve que as mulheres “(...) são estremadas na perfeição deles e em toda as invenções de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores (...)”10.
8 Viana do Castelo é uma cidade portuguesa, capital do distrito de mesmo nome, na região norte do país, e integrada na sub-região do Alto Minho.
9 Gaspar Frutuoso (1522-1591) foi um historiador, sacerdote e humanista açoriano. Destacou-se pela autoria da obra Saudades da Terra, uma detalhada descrição histórica e geográfica dos arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias, para além de múltiplas referências ao de Cabo Verde e a outras regiões atlânticas. Essa abrangência faz de Gaspar Frutuoso um verdadeiro cronista insulano, já que a sua obra interessa ao conhecimento de toda a Macaronésia.
10 VIEIRA, 2004, p.25
Com motivos inspirados na natureza da ilha, o bordado era caracterizado pelo seu desenho livre, da autoria das bordadeiras, desenhado diretamente sobre o tecido e bordado em branco, branco azulado ou castanho. Os tecidos utilizados (o linho, a cambraia e o morim, de cor crua ou clara) eram criados nos teares da ilha. Inicialmente, era realizado por mulheres abastadas, mas com o tempo, popularizou-se por todas as camadas sociais da região.11
Do século XVIII até meados do século XIX, são poucas as referências sobre o Bordado Madeira e a sua comercialização. Salienta-se que este período coincide com o início da revolução industrial.12
Os primeiros registros de exportação e venda de bordado datam da segunda metade do século XIX, possivelmente impulsionadas pela exposição das indústrias madeirenses 13, em abril de 1850, apesar de, na época, a Madeira atravessar um período de crise social e econômica, resultante dos diversos conflitos europeus e da doença das vinhas, que atingiu a produção agrícola da região. O início da exportação para diferentes países influenciou e acrescentou elementos ao bordado. Estas influências dividem-se em três fases consecutivas designadas como Fase Inglesa, de 1850 a 1880; Fase Alemã, de 1880 a 1916; e Fase Síria, de 1916 a 1925 14, cada fase com seus altos e baixos, desdobramentos e personagens muito particulares.
Da Rainha Victoria e seus domínios, passando pelos mercados alemão, italiano, venezuelano, australiano, norte-americano, brasileiro e muitos outros, o Bordado Madeira tornou-se muito popular e uma atividade fundamental para
11 GOMES, 2019, p. 15
12 GOMES, 2019, p. 16
13 Organizada no Funchal por José Silvestre Ribeiro, na época, governador civil e conselheiro do rei, ocorrida no período do ano de maior afluência de estrangeiros na ilha. A exposição foi um sucesso, suscitou o interesse dos britânicos pelo Bordado Madeira e o consequente convite da própria Rainha Victoria para apresentá-lo no ano seguinte na Exposição Universal das Indústrias em Londres.
14 GARRIDO, 2015, p. 26-37
muitas famílias madeirenses, chegando a ser mais rentável que toda a atividade pesqueira da região. Fábricas de bordado foram inauguradas por toda ilha e formalizou-se o processo de produção e certificação das peças bordadas, vigentes até a atualidade, bem como o surgimento de novos profissionais envolvidos na prática — desenhadores, picotadores, agentes, comerciantes — além das próprias bordadeiras, que seguem bordando manualmente até os dias de hoje 15. Além disso, pode-se afirmar que
Foi através da indústria do bordado que a Madeira se tornou pioneira em muitas iniciativas. Foi a primeira região a ter o primeiro têxtil com certificação e selo de origem; foi a primeira a criar legislação específica para uma actividade doméstica, (...) (GARRIDO, 2015, p.38).
Já no século XX, em decorrência à Revolução de 25 de abril de 1974 16, dá-se o fim do Estado Novo e a democracia chega a Portugal trazendo novos avanços. Coloca-se em questão o modelo do Grêmio da Indústria dos Bordados, estabelecido durante o regime autoritário, verificando que não havia promoção à inovação da indústria em si 17. Em 1978, o Grêmio é substituído pelo Instituto de Bordados, Tapeçarias e Artesanato da Madeira (IBTAM) com a finalidade de promover, preservar e valorizar estes três setores. Mais tarde, fundiu-se ao Instituto do Vinho da Madeira, tornando-se finalmente o Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM), ativo até aos dias de hoje.
Aos finais do século XX, a indústria entra em um período lento de colapsos provocados por circunstâncias externas e que acentuaram-se na década de
15 GOMES, 2019, p. 19
16 A Revolução de 25 de Abril de 1974, também conhecida como Revolução dos Cravos, trata-se de um evento histórico de Portugal, resultado do movimento político e social, responsável por depor o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e de iniciar um processo que culminaria na implantação do regime democrático e com a entrada em vigor da nova Constituição em 25 de abril de 1976, marcada por forte orientação socialista.
17 GOMES, 2019, p. 21
1990. A implementação da escolaridade mínima obrigatória, a ampliação da oferta de empregos fora do âmbito doméstico e agrícola na ilha, a introdução do Euro, em 2000, que, pelo seu valor superior ao dólar norte-americano, agravou os preços de comercialização do bordado, diminuindo o lucro das empresas, além do irrompimento da indústria emergente dos países asiáticos — que reproduzem cópias fiéis de tudo, incluindo o bordado, a preços sem concorrência, o que provocou a incapacidade dos industriais locais de competirem com esses mercados 18 — foram algumas das razões pela crise contemporânea do Bordado Madeira, que perdura até os dias de hoje, com sérios riscos de extinção 19 .
Desde o início do século XXI, têm sido realizadas ações promotoras do bordado através de participações em feiras, mostras e delegações sobre o tema, em âmbito nacional e internacional, na intenção de se preservar a atividade. No entanto, o número de bordadeiras e fábricas tem diminuído continuamente, salientando-se que a faixa etária com maior número de bordadeiras situa-se entre os 41 e 50 anos, e, apesar de estarem registradas nove fábricas no website do IVBAM, presume-se que, em 2015, apenas quatro se encontram ativas 20 .
18 GARRIDO, 2015, p.46
19 GOMES, 2019, p. 22
20 Idem et ibidem
Já sobre o processo de produção do Bordado Madeira nas fábricas da ilha, que como dito anteriormente, permanece praticamente o mesmo desde o final do século XIX, nota-se a presença de diferentes etapas e um número considerável de operários envolvidos. Os processos são realizados em partes, respeitando uma sequência e ocorrem tanto na própria fábrica, como nas casas das bordadeiras. As etapas são divididas em: desenho, contagem dos pontos, picotagem, estampagem, envio às bordadeiras pelos agentes, o bordado em si, retorno à fábrica, verificação primária, lavagem, engomagem, tratamentos finais, verificação final e certificação 21. Através da contagem dos pontos é estipulado o valor pago à bordadeira, que não é remunerada por tempo trabalhado, e sim, por quantidade de pontos bordados, sendo, em 2018, 100 pontos industriais equivalentes a 1,98€ 22 .
que refere-se às bordadeiras, não há nomes proeminentes conhecidos ou registrados no decorrer da história. Porém há uma mulher, Maria Ganança 23 , que alcançou certo grau de conhecimento popular, não por sua arte em si, mas como porta voz da luta das bordadeiras por melhores condições de trabalho.
No entanto, não eram apenas as bordadeiras que enfrentavam condições adversas de vida e trabalho. O século XX na Madeira foi marcado por um expressivo processo de emigração. As dificuldades econômicas enfrentadas pelos madeirenses foram consideradas pela historiografia como o mote central para o fato:
21 GOMES, 2019, pp. 26-29. Neste vídeo do IVBAM, é possível ter uma ideia do processo de produção de uma peça certificada: https://www.youtube.com/watch?v=g13rlLMMdHM&t=6s
22 Idem et ibidem
23 Maria Ganança é uma figura histórica da luta sindical e uma das poucas pessoas vivas que participou na denominada “Revolta das Águas”, na Lombada da Ponta do Sol, na Madeira. Uma revolucionária, como gosta de ser descrita, que não hesitou em desafiar a ditadura quando, com apenas 16 anos, fez parte das pessoas que lutaram para que a água de rega roubada aos agricultores da Lombada lhes fosse devolvida. Participou também na luta pelo pagamento justo da cana-deaçúcar. Integrou a Direção do Sindicato dos Bordados e o Conselho Regional da União dos Sindicatos da Madeira. Fez parte de diversas parcerias internacionais, tendo dado formação a bordadeiras na Madeira e em Cabo Verde. Representou sua categoria sindical na Índia, na Turquia e em outros países, onde levou a arte e reputação do Bordado Madeira.
No
Assim sendo, pode-se observar que os madeirenses emigravam por vários motivos, como: poucas oportunidades de trabalho, ganhos baixos e problemas de subsistência, tipo de propriedade e sua exploração, somados [...] ao atraso tecnológico, [...], fugas ao recrutamento militar 24, desigualdades sociais e populacionais; também se fizeram presente nestes processos os desejos de “fazer a América”, a busca por melhores condições de vida e realização de sonhos (FREITAS; MATOS, 2018, p. 304).
Assim, foram madeirenses para todas as partes do Brasil. Vinham mediante a carta de chamada 25. No sudeste, depois do Rio de Janeiro, São Paulo era o estado de maior presença de portugueses em geral, tornando-se um polo de atração, devido às perspectivas geradas pelo desenvolvimento urbano e industrial, que possibilitava trabalho e oportunidades 26. As famílias que chegavam eram acolhidas na casa de parentes ou conterrâneos e as ilhoas, como são chamadas as mulheres provenientes da Madeira, trouxeram consigo todo seu material de trabalho da terra natal: dedais, tesouras e agulhas. No segundo ou terceiro dia após o desembarque, já estavam trabalhando e tendo no bordado, um complemento para as rendas familiares 27:
E foi com aquela garra que caracteriza o povo português, que as ilhoas, ainda com as mãos calejadas pela ajuda no erguimento das casas, retomaram com toda a fé, o tradicional hábito da execução dos bordados da Ilha da Madeira. Era mais uma preciosa fonte de renda para o custeio das despesas do lar. (NASCIMENTO, 1992, p. 14)
24 Nas décadas de 1950 e 1960, Portugal era caracterizado pelo conservadorismo e autoritarismo do governo salazarista, que, entre outras ações, impôs esforços de guerra para preservar as colônias em África, gerando tensões políticas, econômicas e sociais. Tal contexto de dificuldades se encontrava referendado nos relatórios de atividades enviados pelos cônsules brasileiros na Madeira e que, em várias ocasiões, relatavam ser a corrente emigratória “a principal atividade desta repartição consular” (AIRJ, 1953 apud FREITAS; MATOS, 2018, p. 304)
25 São missivas enviadas aos parentes e amigos com o objetivo de “garantir a quem queria partir a existência de acomodação e/ou emprego no local de destino […] sendo anexadas ao processo de pedido de passaporte como garantia de sucesso na passagem. No caso da emigração feminina constituíam, até 1921, um elemento indispensável, sem a qual era quase impossível partir” (VILLAS BÔAS; PADILHA, 2007, p. 125; SILVA, 2007). A obrigatoriedade de sua apresentação no porto de chegada no Brasil foi regulamentada pelo Decreto brasileiro n° 9081 de 3 de novembro de 1911 (FREITAS; MATOS, 2018, p. 305).
26 FREITAS; MATOS, 2018, p. 305
27 KODJA, 2008, p. 44
Um grupo de bordadeiras destacou-se logo nos primeiros anos em terras paulistas. Eram elas moradoras do Morro São Bento, na cidade de Santos. Intrépidas, colocaramse a trabalhar assim que chegaram e, logo, tornaram-se conhecidas pela cidade e em suas adjacências. Até a década de 1960, não havia, na cidade de Santos, quem não soubesse da existência dessas artesãs 28. Com o tempo e por conta dos processos de industrialização dos produtos têxteis, as bordadeiras foram perdendo espaço no mercado. Até que em 1982, um projeto de resgate realizado pelo pesquisador Francisco Ribeiro do Nascimento, juntamente com o professor e folclorista Albino Luiz Caldas e a prefeitura
As bordadeiras madeirenses imigrantes, Maria e Beatriz, com a família já em São Paulo, 1940. (Acervo Gabriela Ferreira)
de Santos, resultou na criação da União das Bordadeiras do Morro de São Bento, organizada e gerida pelas próprias mulheres, que, na época, contava com artesãs entre 24 a 65 anos, sendo aproximadamente 70% delas naturais da Ilha da Madeira e 30% entre suas descendentes e outras brasileiras que aprenderam o ofício.
Já na capital, os madeirenses estabeleceram-se principalmente no Imirim e bairros próximos ao Horto Florestal (Zona Norte) e em Santo Amaro (Zona Sul), sendo ainda possível localizá-los na Zona Norte através da sede da Casa Ilha da Madeira 29 de São Paulo 30. Pela região, também é possível encontrar resquícios do Bordado Madeira e quem muito luta por sua preservação e divulgação.
28 KODJA, 2008, p. 30
29 Uma das mais tradicionais entidades luso brasileiras, a Casa Ilha da Madeira foi fundada em 1952, como “Sociedade Amigos Ilha da Madeira”, uma sociedade civil, cultural, beneficente e recreativa, sem fins lucrativos, para divulgação dos costumes, tradições, cultura e folclore da Ilha da Madeira.
30 FREITAS; MATOS, 2018, p. 305
Uma dessas pessoas é a pesquisadora Maria Vieira Sardinha Gonçalves 31 , conselheira da Diáspora Madeirense no Brasil, colaboradora do Museu da Imigração, mestra de saberes tradicionais e guardiã de inúmeras histórias, depoimentos e registros de diversos e/imigrantes madeirenses de São Paulo e de outras regiões do Brasil. Maria organiza oficinas de Bordado Madeira, em parceria ao Museu da Imigração, além de coordenar um grupo de bordadeiras na Zona Norte de São Paulo, contribuindo largamente na perpetuação das manifestações culturais madeirenses no Brasil.
Porém, ainda há informações acerca da trajetória do Bordado Madeira na cidade de São Paulo que precisam ser investigadas e registradas. Uma delas é a questão das fábricas de bordado que existiam pela cidade durante a segunda metade do século XX:
As mulheres da Ilha da Madeira bordavam para compradores particulares. Mas, a partir dos anos 1950, com a instalação de fábricas de bordado em São Paulo, o artesanato foi perdendo força e valor. [...] Em geral, elas não saíam para comercializar seus produtos. As fábricas de São Paulo mandavam intermediários, que distribuíam e recolhiam os bordados. (KODJA, 2008, p. 38-45)
31 Maria Vieira Sardinha Gonçalves nasceu na década de 1960 em São Paulo, filha de imigrantes madeirenses chegados ao Brasil nos anos 1950. Inicia suas pesquisas relacionadas com a Cultura Madeirense e madeirenses no Brasil a partir dos anos 1980, identificando algumas lacunas importantes nos registros históricos e a necessidade de se aprofundar em algumas questões sobre o assunto. Nos anos 2000, orientada pelo professor Dr. Alberto Vieira, percebendo a necessidade de mais pesquisas e registros da ligação histórica do Brasil com a Ilha da Madeira, apresentou alguns trabalhos em diversas instituições da cidade e atualmente colabora com o Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA) com depoimentos de madeirenses no Brasil. Tem colaborado com o Museu da Imigração em São Paulo desde a 3ª Festa do Imigrante. A convite da Drª Sônia Maria de Freitas aprofundou-se no universo da história oral, auxiliando na identificação e contribuindo com as necessidades dos madeirenses no Brasil. Também é membro da Comissão Paulista de Folclore, enquanto Mestra de Saber Tradicional e com a vivência do Grupo de Folclore fundado em 1985. Tem colaborado com trabalhos acadêmicos (TCCs, mestrado, doutorado e pós-doutorado), sendo uma referência no Brasil e na Madeira no âmbito da pesquisa e do estudo da Diáspora Madeirense no Brasil. Para além das pesquisas, identificação e dos registros que colhe por toda parte, também desenvolve alguns projetos com a comunidade relacionando os valores da Cultura, Gastronomia e Artesanato da Ilha da Madeira com madeirenses de primeira, segunda, terceira e até mesmo quarta geração.
Bordado representando um vilão –nome que se dá ao homem camponês da Madeira – com um cacho de bananas. (Acervo Maria Sardinha)
Já em uma entrevista cedida a pesquisadoras da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2015, Dona Rita, umas das bordadeiras da Zona Norte de São Paulo, resgata suas memórias sobre o assunto:
Em São Paulo: as primas lá todas bordavam, foi indicando bordados. Pra essas lojas que tinha naquela época, deixa eu ver, tinha o Maison Blanche. Então tinha aquela, ah, fulana dona Maria dos bordados. Iam lá, pegavam os bordados, traziam pra casa, bordavam, depois iam entregar, recebia o dinheirinho, era assim, né. E a mulher fazia o resto. Depois ensinaram a minha mãe que aqui na avenida Tucuruvi tinha um senhor que tinha loja de bordados. Era um madeirense, ai eu não me lembro do nome dele (Rita, 2015, entrevista em FREITAS; MATOS, 2018, p. 311).
Diversas bordadeiras afirmam que vendiam seus trabalhos para as "fábricas de São Paulo", mas muito pouco sabem dizer sobre elas. Muito possivelmente porque não compareciam às fábricas em si, mas lidavam diretamente com seus agentes, ou seja, funcionários da fábrica que iam até suas casas entregar os materiais para a confecção de peças predeterminadas e retirá-las quando prontas. Há poucas informações concretas sobre esses funcionários também:
Os bordados passaram a ser comercializados através de intermediários (agenciadores) das grandes lojas e oficinas da cidade de São Paulo e de Santos. Eles traziam e ainda trazem as encomendas já definidas: tipos de pontos, tecido, linha, riscado e com preço de mão-de-obra pré-estabelecido, não permitindo assim, qualquer
Além das fábricas e dos seus agentes, havia distribuidores e todo um mercado consumidor do Bordado Madeira na cidade de São Paulo. Há muito o que se contar ainda acerca de sua história na região e de suas exímias executoras. Porque foi precisamente o bordado que trouxeram de sua terra, e que souberam tão bem defender de distorções, que tornaram-se parte de uma nova sociedade, que fez com que a cidade soubesse da sua existência e reconhecesse o seu valor 32 .
Compreender a importância e a dimensão das diversas memórias ainda não registradas e espalhadas pela cidade e do consequente processo do resgate da oralidade no decorrer da História é imprescindível. Entender as práticas artesanais como ferramentas indispensáveis à existência humana e a necessidade de registrá-las e protegê-las dentro do âmbito dos bens culturais imateriais é urgente.
De William Morris, passando por Mário de Andrade, às instituições culturais contemporâneas, existe, há tempos, um consenso sobre a importância da pesquisa e do registro dos saberes artesanais de diferentes culturas, desde seus contextos histórico-sociais, à realização prática de seus produtos. Mesmo que academicamente fora do rol das belas artes, os saberes artesanais são uma importante ferramenta de identificação, representação e manutenção de diferentes povos ao redor do planeta. Trazê-los à tona, estudá-los, escutar e aprender de seus mestres e registrá-los, para que as próximas gerações possam conhecê -los e valorizá-los, é praticamente um dever social.
Nas diversas entrevistas de bordadeiras madeirenses coletadas até hoje, é claro o medo da extinção de seu ofício e a vontade que possuem em mantê-lo respirando:
espaço à criatividade, desestimulando ainda mais o interesse das bordadeiras, de transmitirem às filhas a sua técnica, adquirida por quando muito crianças, de avós e mães. (NASCIMENTO, 1992, p. 16) 32 KODJA, 2008, p. 71
O grupo, de forma geral, queria falar sobre a sua atuação na comunidade, o seu papel na cultura local e a influência que exerceram no país que escolheram para morar. Sabem que, como bordadeiras, correm o risco de serem esquecidas e, por isso, demonstram profundo interesse em deixar um registro para as próximas gerações (KODJA, 2008, p. 102).
É por meio do exercício da memória que um grupo social qualquer pode refletir sobre sua trajetória, sobre suas transformações, alargando no tempo e no espaço a sua compreensão sobre si mesmo. A memória, estruturada coletivamente, possibilita que se firmem laços capazes de perdurar por gerações.
As últimas bordadeiras que residem atualmente no Morro São Bento afirmaram saber que o Bordado Madeira vai embora com elas e dizem que "a vida é assim, que é preciso andar para a frente" 33 .
Porém, "andar para frente" poderia ser interpretado como a não estagnação de um saber tão antigo. "Andar para frente" junto às próximas gerações, sendo conhecido, valorizado, praticado e, até mesmo, encarado como uma maneira possível de geração de renda. "Andar para frente" é a chave da questão, afinal, como bem conclui o poeta e
33 KODJA, 2008, p.72
de Machico e Camacha, respectivamente, em atuação com o Grupo de Folclore e Etnografia em São Paulo, em 2008. (Acervo Maria Sardinha)
Maria Vieira e Clara Baptista, bordadeiras madeirenses naturaiscantor uruguaio, Jorge Drexler, em sua emocionante canção
Movimiento: "Lo mismo con las canciones, los pájaros, los alfabetos. Si quieres que algo se muera, déjalo quieto…"
O Bordado Madeira possui uma história longa, complexa, interessante, cheia de meandros, personalidades, reviravoltas e contextos. Como apresentado aqui, uma grande parte já foi registrada por diversos apreciadores de tempos passados. Cabem aos apreciadores do nosso tempo continuar seguindo seus passos, seja de lá tão longe, quanto aqui ao lado, pois é de extrema importância para sua sobrevivência e perpetuação.
Máscara produzida durante a pandemia, pelo grupo de bordadeiras da Zona Norte de São Paulo, coordenado por Maria Sardinha. Essas bordadeiras, que chegaram ao Brasil ainda crianças, hoje em dia são avós e detentoras de todo um patrimônio. Se antes bordavam por necessidade e obrigação, hoje o fazem por gosto ou recordação.
ALVES, G. Um canto à ilha da Madeira. In: CHAVES, Duarte Nuno (coord). Questões de Identidade Insular na Macaronésia. S. Jorge: Santa Casa da Misericórdia das Velas &CHAM – Centro de Humanidades. pp. 161-166, 2020.
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Urdume IN s
redação: Gabriela Ferreira e Maria Sardinha
revisão: Paula Melech e Estefania Lima
diagramação: Nathália Abdalla
Ilustrações: Gustavo Seraphim