Cara feia

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Vict�r Peres e Perez

ilustrações de

Bruna A�is Brasil



Victor Peres e Perez

ilustraçþes de

Bruna Assis Brasil


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Sua mãe move o queixo, pra lá e pra cá, como quem rumina uma ideia. De repente, a boca se abre num estalo de língua dresgrudando do céu da boca. Os lábios secos parecem arranhar os dentes, quando ela diz: — Daria tudo por uma limonada!

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Desde o início da gravidez, a mãe mostrava que sofreria das fortes vontades típicas das gestantes. Jujuba, pêssego com creme de leite, melancia, escondidinho de carne-seca, pudim, ovos mexidos com azeitona, entre outros desejos que, por recomendações médicas, não puderam ser plenamente satisfeitos. E o desejo verdadeiro — aquele de que tratam os livros sagrados e garante público aos confessionários — sempre vem nas horas que a gente menos deseja! Certa vez, lá pelo quarto mês de gravidez, a mãe estava limpando a gaiola do canário quando veio uma vontade absurda de provar o alpiste. Ela gostou tanto que acabou com o almoço do passarinho. Situação lamentável? Sim, mas pior seria deixar de atender algum de seus desejos.

“Mãe com vontade, sem poder comer, imprime seu desejo na cara do bebê!”, dizia ela sempre quando contestada. Assim, quando o menino ouviu o novo pedido da mãe, foi logo tomando as providências para que ela tomasse uma bela limonada! Imagine que catástrofe seria nascer um irmão verde? E ainda mais passar a acompanhá-lo em todo o trajeto de casa à escola? Com apenas um limão, meio copo de água e duas colheres de açúcar se podem evitar trágicos destinos, seja ele o futuro de um bebê ou a reputação de um irmão mais velho quase adolescente.


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Então, ele foi ao armário onde ficavam guardados os mantimentos. Na frente das panelas e tampas, havia um pote com arroz, uma lata de biscoito cheia de saquinhos de tempero, dois pacotes de feijão fechados, latas de óleo e dois potinhos quase idênticos: o vermelho para o sal e o azul para o açúcar. A receita certa pedia duas colheres de açúcar para adoçar bem, mas não havia mais do que uma poeirinha branca no fundo do pote. Acostumado a dar um jeito nas coisas, ele pensou que limonada é mesmo azeda e, sendo assim, podia muito bem colocar a culpa na natureza do limão. A fruta, porém, sendo o essencial da limonada, carregava em si o alvo do desejo materno e da maldição do bebê, demandando muito mais critério na seleção.

“A melhor fruta é aquela que se furta”, outro ditado de sua mãe que não podia ignorar! Sandálias nos pés, bermuda de subir em árvore, estilingue para galhos inalcançáveis e cara de pau. Tudo pronto para sair à rua em busca do mais suculento limão do bairro.

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Começou pela casa da Terezinha, famosa por ter uma mangueira gigante e de fácil acesso para as crianças levadas. Por entre a cerca da mulher, espiou a mangueira e além dela apenas uma pequena pitangueira ainda sem frutas. Nada feito. Correu para o quintal do dr. Paulo, o mais variado em árvores frutíferas e ornamentais. Encontrou fruta-do-conde, papaia, abacate, maçã verde, banana, ameixa, tangerina, maracujá, morango, caqui, cana e até tomate, mas limão que é bom, nada. Passou a andar sem rumo, deixando-se levar pela intuição infantil, até que viu, logo atrás de um portão amarelo, uma recheadíssima jabuticabeira — tudo bem que jabuticaba não estava no plano inicial, mas quem é que não perde o foco diante de uma árvore dessas? E, pra facilitar, o portão de madeira parecia ter o encaixe perfeito para seu pé 36. Com a agilidade que acompanha o gene de todo menino levado, deu dois saltos, um semigiro e já estava agarrado na jabuticabeira.

Acontece que “não se planta jabuticaba sem ter cão de guarda” e, nesse caso, eram dois. Quem olhasse de fora poderia dizer que dois vira-latas magrelos como aqueles seriam incapazes de pôr medo num pardal, mas não se esqueçam de que o maior medo de uma criança montada num pé de jabuticaba não é ser engolida por cachorros e sim ter seu delicioso delito delatado. E com a barulheira dos dois cachorros, não tardou que o vizinho aparecesse com uma vassoura nas mãos e ódio no coração.



— O que você quer aqui, moleque? — Nada, não senhor! Estou a procura de um limão para minha mãe grávida. — E, por acaso, nunca viu um limão na vida? O que têm eles em comum com minhas jabuticabas? — Não é isso, não senhor! É que jabuticaba, se não come, logo acaba. — Seu moleque safado! Vou lhe dar uma boa de uma surra quando descer daí. — Me diga onde encontro um limoeiro e vou-me embora bem ligeiro! — Limoeiro, aqui, só conheço um e fica lá no cemitério. Agora suma daqui, se não te mando pra lá de um jeito que você nunca mais vai voltar!


O menino pulou da árvore ainda mais rápido do que havia subido e saiu correndo pela rua, gritando palavras de agradecimento para o pobre vizinho que, pelas cascas jogadas no terreno, calculou um prejuízo de dezessete jabuticabas recém-chupadas.



O cemitério não era assim tão afastado, bastava cortar caminho por uma trilha e subir o morro até doerem as pernas — pelo menos era o que diziam as pessoas que lá foram enterrar os seus e confirmavam os curiosos, pois nunca faltam desses tipos nas cidades pequenas. No caminho, o menino pensou se haveria realmente um limoeiro lá ou se seria apenas uma invenção do vizinho para se vingar da má-criação. Mas ele, como tinha ouvido muitas histórias aterrorizantes de cemitérios sem nunca ter pisado em um, achou que de qualquer maneira a viagem não estaria perdida. Chegando lá, o menino se deparou com um longo muro pintado de cal que cobria praticamente todo seu imaginário de sepulturas, lápides e espíritos moribundos. Apenas algumas cruzes mais exageradas superavam a altura do muro, mostrando seu topo para quem olhava de fora. Fato é que todo cemitério tem seus muros para que, falhando a terra na missão de conter os mortos, os tijolos dificultem o escapar das almas. Por outro lado, servem também para que os vivos não se acostumem a frequentar a morada antes do tempo e assim acabem enjoando da mobília. Para o menino, porém, interessava mesmo encontrar o tal limoeiro, ainda mais agora que a tarde já se ia embora.

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Trepou no muro como pôde e lá estava ele! Entre tantos outros atrativos que só conhecia dos filmes de terror, figurava o limoeiro naquela posição geométrica que só pode ser descrita como “nem tão no canto, nem tão no meio”. Jogou a perna direita para o lado de dentro e o resto do corpo foi junto sem grande esforço. Correu em direção à árvore que estava carregada de limões. Estes, por ironia da natureza, estavam ao mesmo tempo verdes e maduros. O limão mais suculento estava num galho alto e outro não seria bom o suficiente para oferecer a sua mãe. Então subiu num jazigo — coisa que todos sabem que não se deve fazer nunca — e esticou o braço ao máximo, puxando o limão com a ponta dos dedos. O pobre limão bem que tentou resistir agarrando o galho com todas as suas fibras, mas quando se deu conta de que a luta estava perdida, se jogou de uma vez. Caiu fruta pra um lado, menino pro outro.


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Levantou, sacudiu a poeira e enquanto dava a volta por cima do jazigo para apanhar o limão do outro lado, se deparou com a apresentação do defunto em baixo-relevo na lápide:


O que poderia ser algo assustador, virou uma grande piada e, voltando pra casa, sempre que lembrava, dava risada!

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Quase oito da noite e a mãe já rezava um terço, não pelo filho que passara a tarde inteira fora de casa, mas para que Deus tivesse misericórdia do bebê e mantivesse nele a coloração original de seus pais. E mais do que depressa suas orações foram atendidas! O menino apareceu com um copo de limonada estendido para sua mãe e um sorriso de dever cumprido na boca. Desesperada, a mãe tomou o suco num gole só. Quando a última gota desceu pelo copo, todos os pelos da mulher se arrepiaram e ela fez uma careta tão espremida que algumas lágrimas escorreram do seu rosto.

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— Mas que diabo de suco azedo, menino! Não pôs açúcar, não? — Pus o que tinha... Deve ser culpa do limão, mesmo. — De onde vem esse limão? Do inferno? — Não mãezinha, veio lá da casa do sr. João... — Que João, menino? Aqui nenhum João plantou limão! Não era essa a reação que o menino esperava. Depois de tanto trabalho, nem um “obrigado, seu danado”. Abriu um berreiro de vergonha, frustração e medo. Se pôs a chorar, a justificar e a fazer uma leve chantagem emocional — como é de praxe, embora os psicólogos não tenham identificado ainda a origem de tamanha artimanha. — Fui lá no cemitério para arrumar esse limãozinho pra fazer um suco pra senhora... Eu não achei que ia estar azedo desse jeito... Eu só queria que o meu irmãozinho ficasse bem... — E por que você mentiu pra mim? — Eu não menti... — Você acabou de falar que pegou o limão na casa do sr. João, não foi? — E foi mesmo! Na casa eterna do João... o João Manteguinha! — DEUSMILIVRIGUARDI! NOSSASINHÓRA! TISCONJURO, SUCO DO CÃO!

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Por muito tempo, João Manteguinha foi o mais temível bandido da região. Porém, há uns quinze anos que não se ouvia falar do dito cujo. Era um homem tão ruim que cobra não mordia. Roubava mais do que banco e mentia mais que amante. Ninguém sabia ao certo as razões de sua morte. Espalham as más-línguas o legítimo boato de que o safado morreu por praga que a sogra rogou.

— Oh, meu filho... Eu nunca te falei que “onde se enterra ladrão, cresce limão”?

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Três meses depois, nasce o bebezinho e, para alívio de toda família, a cor de sua pele é a mesma do irmão. É saudável e rechonchudo! Porém, há um fato que todos notam, mas ninguém tem coragem de comentar: o pequeno é mal-encarado, quase não dá risada. A mãe teme que tenha saído ruim como o João Manteguinha, enquanto o irmão acredita que só lhe falta um pouco mais de açúcar.


Evoluir, 2018 Este livro atende às normas do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor desde janeiro de 2009. Título original Autor Coord. Editorial Ilustrações Design gráfico Produção gráfica Edição

Cara Feia Victor Peres e Perez Flavia Bastos e Patrícia Monteiro Bruna Assis Brasil Gabriela Ferreira Chico Maciel Elisa Andrade Buzzo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P438c

Perez, Victor Peres e. Cara feia / Victor Peres e Perez ; ilustrações Bruna Assis Brasil. – São Paulo : Evoluir, 2016. 24 p. : il. ; 23 cm. 1. Literatura infantojuvenil brasileira. 2. Folclore na gravidez. I. Brasil, Bruna Assis. II. Título.

cdu 087.5 cdd 028.5

Índices para catálogo sistemático 1. Literatura infantojuvenil brasileira 087.5 Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507

ISBN

978-85-8142-109-4

Fontes Papel capa Papel miolo Gráfica Tiragem

pinto, kitten e founders triplex 300g/m² offset 120g/m² elyon, são paulo/sp 500 exemplares

Impresso em abril de 2018; primeira edição: 2016. 178 x 228 mm; 24 páginas.

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional. Evoluir · FBF Cultural Ltda. Rua Aspicuelta, 329 · São Paulo-SP · CEP 05433-010 | (11) 3816-2121 ola@evoluir.com.br · www.evoluir.com.br


sOBre O autOr

Victor Peres e Perez se formou em Gestão Ambiental mas, diferente do que muitos imaginam, não abraça árvores e, certamente, não salvará o mundo do aquecimento global. Sua contribuição para humanidade são as histórias que inventa para divertir e inspirar crianças e adultos bagunceiros como ele. Pela editora Evoluir, já publicou os títulos Lá onde eu moro em parceria com Babi Dias, A cadelinha russa e Mário, o menino imaginário, todos para quem gosta de um bom e divertido conto! sOBre a ilustradOra

Bruna estudou jornalismo e design gráfio e é pós-graduada em ilustração criativa pela Escola de Disseny i Art de Barcelona. Hoje, tem dezenas de livros publicados. Em 2012 e em 2016, recebeu o prêmio 30 Melhores Livros Infantis do Ano, da revista Crescer. Em 2013, foi indicada ao Prêmio Jabuti, na categoria Ilustração. Em 2015, ilustrou o livro vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura, na categoria “Melhor livro infantil”. Em 2016, recebeu o prêmio FNLIJ na categoria “Melhor livro informativo” por Malala, a menina que queria ir para a escola. Conheça outros trabalhos da Bruna em: brunaassisbrasil.com.br.


Mãe gestante com vontade, sem poder comer, imprime seu desejo na cara do bebê! Diante desta máxima, um menino se aventura pelo bairro explorando quintais, jardins e até um cemitério, para conseguir um limão. O objetivo é satisfazer o desejo de tomar limonada de sua mãe gestante, mas será que ele conseguirá?

978-85-8142-109-4


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