Gabriela Garcia Gonzalez Orientação: Isabel Martínez Abascal
Às vezes é vantajoso não estar em lugar nenhum. Julio Cortázar, em Os Autonautas da Cosmopista
As janelas estavam abertas e o barulho do vento formado pela velocida-
de do carro impedia qualquer conversa. Estava sozinha em silêncio no banco de trás, condições perfeitas para a reflexão e observação atenta. Era uma viagem partindo do Rio de Janeiro para Petrópolis e pela primeira vez eu estava de fato conseguindo reparar no que havia nas beiras e além de uma estrada.
As paisagens serranas são impressionantes. Aquela estrada ali na encos-
ta parece perfeita para que a gente se sinta as vezes meio desbravador, ás vezes extremamente pequenos, e - se observarmos aquilo tudo com atenção- certamente emocionados.
É incrível como aquela paisagem gera surpresas. Não sabia o que viria
no fim de cada curva. Tudo parecia ensaiado, as árvores se esquivavam bem nas vistas mais bonitas, voltavam aos seus lugares nos dando sombra quando o sol ofuscava, as poucas nuvens do céu abriam um buraquinho no seu miolo só pra que a luz passasse e saísse com aquele aspecto meio divino do outro lado. Estava tão bonito que chegava a ser cafona. E tudo isso com uma música visual formada pela tríade árvore, sol e velocidade do carro, onde a luz passava por entre as folhas à medida que o deslocamento acontecia. Dava quase pra ouvir aquela melodiazinha sem som. Naquele momento, nada era mais genial do que aquela superfície acinzentada na beira da montanha. Percebi que são poucos os momentos em que sabemos exatamente onde estamos. A prática da estrada consiste em seguir placas ou GPS e acreditar.
E, finalmente, algo que sempre achei muito curioso mas nunca nunca ha-
via pensado com clareza sobre. Lá onde o olho que não chega, nos topos dos morros, no meio da mata, na beira da estrada, sempre tem uma casa. Quem, como eu e como todos aqueles carros indo e vindo feito cardumes, passou por aquela estrada, até mesmo antes dessa estrada ser essa estrada, e ali resolveu se instalar? Como será a vida dos que habitam terras distantes de aglomerados urbanos?
O que fez aquela pessoa ficar ali? Uma casa no meio do nada é um símbo-
lo muito forte de solidão. Será que se sentem sós?
Estimulada por essa curiosidade quase enxerida, decidi desenvolver uma
pesquisa na qual buscarei aleatoriamente pessoas que vivem isoladas e distantes de cidades. Não se trata de colher amostragens representativas, mas sim de relatar diferentes e plurais individualidades de cada pessoa encontrada. A questão de um “outro exótico” em relação a um “nós supostamente idêntico” é interessante, ainda mais tratando-se de um “outro” que não está totalmente incluso em meio a outros “outros”.
A viagem como experiência espacial
A ideia desse trabalho foi procurar conhecer o que existe além do limite
urbano. Para nós que vivemos na cidade, onde teoricamente todos os habitantes tem um motivo para morar onde moram, prós e contras, facilidades e dificuldades, surge um interesse em descobrir como e por que as pessoas vivem no lúdico “meio do nada”.
Todo o conjunto que se coloca fora da urbe, chamei de não-cidade, mes-
mo que o limite entre cidade e não-cidade seja pouco evidente, como veremos no decorrer do trabalho.
Para encontrar essas casas, realizei algumas viagens pelo Sudeste do Bra-
sil e pelo sul da Bahia, e além do registro e da reflexão sobre as pessoas encontradas, esse trabalho tratará de narrar as viagens como uma experiência espacial.
O processo, nesse caso, é fundamental para o objetivo. As três viagens
feitas, foram significativas amostras de como o processo de busca exaustiva é determinante para o encontro do material de pesquisa. Esse tipo de experiência é certamente isolada e individual, mas procurarei obter, por meio da diferença, reflexões úteis para o modo de vida urbano contemporâneo.
Quando se está buscando algo fora do conhecido, é comum uma seqüên-
cia infindável de erros e acertos, que, descritas em forma de narração das viagens, deixará clara a especificidade de cada local e de cada situação em que as casas encontradas estão inseridas. A idéia é, por meio da narração, transformar essas viagens em experiências coletivas, tentando ao máximo inserir o leitor na história.
Nas viagens que descreverei a seguir, estabeleci a princípio um ponto de
chegada. Na primeira, pensei em ir até a cidade de Liberdade, MG. Na segunda, até Borá, SP. Nenhum desses objetivos foi concluído, já que o objeto de estudo principal não é nenhuma cidade. Já na terceira e última viagem, determinei que chegaria até a Bahia, mas o caminho até lá se deu baseado em fatores aleatórios, como hospedagem ou vontade de conhecer alguma região específica, por exemplo.
Algumas das casas que visitei, muitos passam por elas e não as veem,
outras ninguém passa. Há nos percursos comuns de viagem, uma necessidade de esquecer onde está e para onde vai. Sempre esse receio em estar em lugar algum. O que diferenciou a viagens desse trabalho de uma viagem comum, foi justamente não saber para onde estava indo. Muitas vezes nesse meio de caminho, onde já se está distante do início, mas não se sabe exatamente qual será o fim, vive alguém.
Primeira viagem
Não havia programado exatamente em qual fim de semana seria a mi-
nha primeira viagem. Tomada por um siricutíco ansioso de começar logo o documentário, resolvi que já que tinha uma passagem comprada para passar o fim de semana no Rio de Janeiro. Iria até lá, alugaria um carro e partiria para a RJ-159, pequena estrada que liga Rio e Minas. Escolhi ir para lá um pouco aleatoriamente no Google Maps, pretendendo ir até a cidade de Liberdade, MG. Cheguei no Rio à noite.
No dia seguinte, acompanhada de Julia (essa parceria se estenderá por
todas as viagens desse trabalho. E por toda a vida, que sorte a minha) e Scooby (um senhor de 16 anos, filho de Julia que, devido à idade e os maus hábitos fisiológicos, não pôde ser cuidado por amigos nossos e acabou no acompanhando na viagem, que sorte a nossa) fui até o aeroporto pegar o carro. Saímos do Rio por volta das 8h da manhã. Às 10h paramos em Japerí, cidade a 70 km do Rio, para tomarmos café da manhã. Julia e eu comemos na padaria de uma moça muito simpática, Scooby bebeu água e derrubou sua ração na grama. Nos perdemos inúmeras vezes por conta da Iris, o GPS mais desencontrado que já conheci, mas uma grande amiga. Inclusive, por conta dela, demos de cara com a primeira casa interessante. Era uma casa abandonada na beira da estrada, recuada a uns cinco metros da cerca frouxa de arame farpado que delimitava o terreno, e trancada com um cadeado mentiroso. Entramos e tiramos alguma fotos e vídeos. Quase não havia mais telhado, algumas paredes estavam pela metade e o chão estava tomado por restos de piso, terra e uma estranha vegetação que se deu de forma muito bonita e intrigante ali no chão. Sobaram só uma pia linda onde imagino que já foi uma cozinha, e um vaso sanitário inacessível, coberto por plantas.
Ja era quase 1h da tarde quando chegamos em Porto Real, cidade em que
a RJ-159 nasce. Uma pequena volta involuntária na cidade por conta de Iris e lá estávamos nós na estradinha que queríamos chegar, com os olhos arregalados, cantando e procurando qualquer coisa que se assemelhasse à uma construção humana. Após cerca de 10 km (na nossa velocidade parecia ser 100), encontramos
casa abandonada
uma estação ferroviária desativada e paramos pra tirar foto e filmar. Havia algumas pouquíssimas casas em volta formando uma espécie de vilarejo. Vimos algumas crianças brincando na terra, pessoas conversando em frente às casas, mas resolvemos continuar na estrada e se nada encontrássemos, voltaríamos ali.
Seguimos por mais uns 40 km e posteriormente passamos a ir e voltar
nesse trecho estrada, chegamos até a avistar algumas casas, mas nenhuma parecia se encaixar na proposta, eram sítios e chácaras. Em uma dessas voltas, vi à direita uma casa que não me era estranha. Era uma casa que eu ja havia visto no Google Maps durante a minha escolha de destino para a primeira viagem. Reconheci, mas sem a certeza de que eu já tinha visto de fato, alguma coisa estava diferente. De qualquer forma, paramos o carro, ensaiamos uma abordagem delicada e fomos tremendo bater palma na frente da cerquinha de madeira de mais ou menos um metro de altura que protegia a casa. Lá de dentro veio um homem bem magro, de uns 50 anos, que vestia somente uma calça alta - no mínimo dois números maior que ele - presa por um cinto marrom, uma galocha preta e um boné. Era o Seu Jacir, muito tímido e recluso. Apesar de fechado e aparentemente desconfiado, foi receptivo, mas em momento algum nos convidou para entrar. Conversamos em frente ao pequeno galinheiro sem galinhas que havia logo depois da cerquinha. Seu Jacir mora sozinho naquela casa há 8 anos, nasceu em Minas Gerais e mora ali nas redondezas há 25 anos. Ele encontrou a casa já construída e, sozinho, construiu a outra parte com uma técnica totalmente diferente da metade já existente, Seu Jacir é pedreiro. A construção encontrada era uma pequena casa de tijolos, com um telhado de uma água só. Revestiu a parede e estendeu o espaço com uma outra metade feita de madeira.
Questionei se ele tinha amigos, e ele respondeu que sim, afinal, já mora
ali há bastante tempo. Depois de explicar tudo o que havíamos ensaiado, perguntei a ele se aceitava ser filmado, mas ele timidamente negou. Tentamos conversar um pouco mais, deixa-lo à vontade, mas nada parecia fazer efeito. Saí de lá arrasada. Seu Jacir era o personagem perfeito pra começar esse documentário. Em São Paulo, alguns dias depois desse, passeei no Google Street View novamente e confirmei que havia visto a casa dele antes da viagem, mas na foto do Google a casa ainda era só a metade que ele encontrou. O restante estava no começo da obra.
Mas voltemos à RJ-159. Já perto das 17h, seguindo sentido contrário à es-
tação de trem desativada, passamos em frente a uma casa que eu não havia visto ainda. Era branca com janelas azuis, um pouco rebaixada, de modo que a visão de topo a partir da estrada direcionava o olhar a enxergar basicamente só o telhado
quase camuflado na paisagem. Na frente, uma mulher de coluna arqueada e cabelos pendendo ao grisalho acabava de varrer a extensa varanda frontal. Decidimos tentar falar com ela. Fizemos um retorno clandestino, paramos em frente à estação e enquanto ensaiávamos novamente a abordagem delicada, passou um homem muito carismático de bicicleta e acenou para nós. Depois de ensaiadas, voltamos na casa e vimos a bicicleta dele parada ali na porta. Paulo é marido da Catarina. Ele nos recebeu muitíssimo bem, nos convidou pra entrar e sentar. Contou que moram ali há dois anos, mas já moraram em outros muitos lugares, “até em casa de sapê. Sabe casa de sapê?”. Estão instalados naquela casa provisoriamente enquanto não encontram algo mais próximo do trabalho de Paulo, que fica a 12 km dali, na cidade de Porto Real. Paulo vai e volta todos os dias de bicicleta. A casa, relativamente grande para duas pessoas, pertence a um conhecido que aluga por um valor simbólico. Descrevendo os cômodos antes de conhecermos ali dentro, ele precisou contar quantos quartos haviam.
- Tem aquele quarto, aquele outro, três com o de lá. É, são quatro quartos.
Que relação mais incrível com o espaço. Parecia que para ele não havia
paredes ali, ele as quebrou só com o uso. Era como se não importasse o número de quartos, e sim a forma como são utilizados. Nós quebramos as paredes para tornar a casa espaçosa, para tentar aumentar os limites, buscando alguma forma de liberdade construtiva e espacial, quase um manifesto. Paulo faz isso imaginativamente.
Pedimos então para conhecer a casa. Tudo era realmente espaçoso. To-
dos os quartos davam para uma sala central que era dividida em dois. Uma parte, ocupada por duas cadeiras e uma mesa e a outra por um sofá e uma mesa com televisão. Nos fundos estava a cozinha, enorme, com piso em ladrilho hidráulico antigo e depois um banheiro espaçoso, com o mesmo comprimento da cozinha.
Paulo abriu a janela do banheiro como quem escondia um truque. Ele ha-
via subido paredes externas, formando um espaço de mais ou menos 1x1 m, onde a janela do banheiro fazia o papel de porta. Três galinhas moravam ali dentro. Perguntamos se podíamos entrevistá-los no dia seguinte e Paulo não só concordou, como nos convidou para tomar café da manhã com eles. Nove da manhã foi o horário combinado. Fomos então procurar alguma cidade para jantar, pensar sobre a entrevista e dormir. Preferencialmente um lugar que suprisse essas três necessidades. Ficamos no único hotel que havia na região, na cidade de Passa-vinte, já em Minas Gerais, onde Paulo e Catarina nasceram. Preparei a entrevista sem muito rigor, afinal a idéia era que aquilo fosse uma conversa fluida e improvisada.
No dia seguinte, partimos no horário combinado e chegando na casa, Ca-
luisa
tarina apareceu na janelinha da porta dizendo que Paulo havia saído. Voltaria, se voltasse, só no fim da tarde. Catarina deve ter achado aquilo tudo uma bobagem e convenceu o Paulo a desistir da entrevista. Não podíamos desanimar. Continuamos procurando pessoas e em mais algumas indas e vindas, acabamos encontrando um casarão em ruínas aparentemente abandonado. Paramos ali para umas fotos de fora, porque havia um portão fechado que estava trancado por um cadeado que exercia muito bem a sua função, diferente daquela primeira casa. Foram pouquíssimas fotos e logo alguém gritou ali de cima perguntando o que queríamos. Tentamos a já famosa abordagem delicada, mas dessa vez aos berros, o homem estava longe. Ele chamou a irmã Luísa, que desceu um morrinho seguida por 5 cachorros e abriu a portão. Novamente expliquei que então, Luisa, eu faço arquitetura e estou desenvolvendo um trabalho pra faculdade e estou aqui desde ontem indo e voltando procurando pessoas que morem um pouco distantes das cidades, sabe como é, não é fácil encontrar. Será que você poderia conversar com a gente uns minutinhos se não for atrapalhar o seu domingo. Sua casa é maravilhosa, a gente estava tirando fotos porque é realmente impressionante.
- Maravilhosa, gente? Essa casa tá caindo aos pedaços. Mas podem en-
trar.
As paredes já não eram mais perpendiculares ao chão. Todo o lado direito
da fachada principal estava tomado por uma planta trepadeira que atravessava a parede por cima, onde não havia mais telhado, espalhando-se também pelo interior da casa. A parede do cômodo que parecia ser a sala, segurava um crucifixo e, deteriorada, revelava o barro e a trama de bambu do pau a pique. No chão, abóboras brotaram espontaneamente, havia vida ali. Não somente pela naturalidade com a qual se deram as vegetações, mas uma cama com lençóis limpos estava instalada no banheiro. Luísa, que antes morava em São Paulo, vive lá há seis anos com quatro irmãos e a mãe. Moram numa outra casa dentro daquele terreno e a ruína centenária fazia parte da fazenda do seu avô, produtor de leite, gado e cachaça. Quando ela nasceu a fazenda já não estava no seu auge, mas ainda funcionava. O avô morreu e a propriedade ficou para o pai, que há 6 anos também faleceu, levando Luísa para lá involuntariamente. Não saberia dizer quantas vezes ela afirmou que não estava satisfeita em morar ali, mas que não podia deixar o lugar abandonado. A família atualmente vende leite e ovos na região e Luísa cuida da parte administrativa. A cozinha da casa em ruínas (única parte em que o telhado estava inteiro) parecia ser utilizada como uma espécie de depósito.
Luisa ama animais, enquanto fotografávamos a casa, ficou com Scooby
no colo pra lá e pra cá contando como seus cinco cães são adoráveis, como é ape-
luisa
paulo e catarina
gada às suas vacas, como eram lindas as capivaras bebês que apareciam por ali, apesar de terem comido um pedaço da cabeça de um dos cachorros, “pelo menos ele não morreu”. Caminha com os bichinhos todos os dias pela beira da estrada de terra que passa em frente à sua casa. Durante a semana, trabalha o tempo todo na rua, senti que Luisa evita ficar dentro de casa. Curioso foi o momento em que ela disse que tudo bem, não era tão ruim assim. Pelo menos ela não morava no meio do nada, passava ônibus ali duas vezes ao dia. “Será que aqui ainda não é o meio do nada?”, pensei.
Perguntei se poderíamos entrevistá-la. Luisa ficou tímida e preferiu que
não fosse naquele momento, mas prometeu pensar quando dissemos que provavelmente voltaríamos para lá no decorrer do ano.
Voltamos para a estação de trem, que nesses dois dias acabou tornando-
se uma espécie de templo. Sempre íamos ali como quem espera uma resposta cósmica, um prenúncio do que fazer. E de fato a resposta estava lá, de bicicleta. Paulo estava entusiasmado com a nossa presença, já havia até contado aos amigos que gravaria uma entrevista para um filme.
Seguiu na frente na bicicleta e o encontramos na porta da casa. Uma rá-
pida conversa regada à água direto da bica que nos foi oferecida e logo pegamos Scooby, equipamentos e começamos a filmagem.
Paulo e Catarina se conheceram há quase trinta anos atrás em Passa-Vin-
te, cidade onde nasceram. Juntos têm cinco filhos, mas todos moram em outras cidades. Antes de se casarem, ele percorreu boa parte do Brasil em busca de trabalho. Depois de casados, também moraram em diversas casas, mas sempre naquela região. Paulo trabalha fazendo pallets em Porto Real e autointitula-se “guerreiro” por ir de bicicleta todos os dias. Consultas médicas e compras no mercado, fazem em Passa-Vinte ou Quatis.
Diferente do que eu imaginava, ele estabelece uma relação forte com
Quatis, a cidade mais próxima. Paulo é dirigente de Joaquim Leite, tinha uma reunião marcada com o prefeito na semana seguinte. Apesar de estar naquela casa provisoriamente enquanto não encontra nada próximo do trabalho, ele está envolvido nas decisões da câmara. Do ponto de vista político, da cidade como um órgão que deve prover algo aos cidadãos, Paulo é muito envolvido na vida urbana, apesar da distância física.
Ele, que no dia anterior precisou contar quantos quartos havia na casa,
confirmou esse uso peculiar que dão àquele espaço quando disse que dorme cada dia em um quarto. De fato ele não vê paredes ali, que rotatividade impressionante. O mais curioso naquela casa certamente é o galinheiro no banheiro e o uso que
ele dá à casa como um todo. A planta é baseada em um perfil familiar já ultrapassado, possui quatro quartos, mas o casal utiliza todos. Adaptaram-se à modificação do perfil familiar e expandiram o uso.
Esse fato me fez pensar que, se a cidade é institucionalizada, então o que
pode acontecer em um lugar onde não existe essa instituição? Num prédio (considerando-o uma amostragem da cidade), os interesses de quem mora ali são diversos e a forma de atender as necessidades de todos, é a padronização, a institucionalização. Não há como não ter regras gerais. Mas em lugares onde isso não acontece, existe consequentemente maior liberdade. Fico pensando se Paulo e Catarina têm vontade de fixarem-se em algum local ou se no fundo gostam dessa espécie de nomadismo que vivem.
- Minha vontade é construir uma piscina aqui pra ficar boiando no domin-
go igual jacaré.
Catarina complementou.
- Ah, a casa eu queria que fosse minha, né?.
O dia estava acabando, tínhamos que voltar para o Rio. Sugeri que trocás-
semos telefones, mas eles não têm, ali não tem sinal.
- Vocês não vão sumir de mim não, hein?
paulo e catarina
Segunda viagem
A idéia inicial dessa viagem era, animada pelo sucesso da primeira, seguir
para algum lugar no centro do estado de São Paulo. Dessa vez pesquisei as menores e menos populosas cidades do Brasil e escolhi seguir até Borá, SP, povoada por cerca de 800 habitantes. Ao entrarmos no carro, procurei a cidade no Google Maps para saber o que mais havia por perto caso nos perdêssemos. Atraída pelo nome mágico, achei que poderíamos mudar o destino e seguir para a cidade de Arco- Íris, próxima a Borá, também no centro do estado.
Saímos de São Paulo às 15h. Já na estrada, a primeira placa que indicava
“Sorocaba” determinou uma mudança necessária na rota. A coxinha da padaria Real em Sorocaba foi por anos seguidos eleita a melhor do Brasil. Desejo resolvido, podíamos continuar. Como já era tarde, optamos por seguir mais um pouco e já pararmos em alguma cidade para dormir e planejar o dia seguinte. Fomos a um hotel em São Manuel, cidade de aproximadamente 30.000 habitantes, próxima a Botucatu. Passamos horas analisando as imagens de satélite dos arredores e tudo em volta parecia ser fazenda. Percebi que talvez fosse melhor seguirmos sem destino certo.
No dia seguinte, partimos por volta de 10h da manhã para qualquer lugar,
não acionamos Iris. Sem saber, a busca aleatória nos levou até Barra Bonita, onde olhando no Google Maps vi que no meio da represa havia uma ilha com uma única construção. Conversamos com os barqueiros, com o moço que vendia passeios de barco, com a mulher da barraca de açaí, e ninguém soube informar como chegar ali ou se alguém morava na ilha. Os passeios de barco tinham roteiros turísticos fixos, não podiam nos levar até lá. Fomos então até o outro lado da represa tentar ver a casa, mas um condomínio fechado alertava bem grande que era proibida a entrada de estranhos. Ficamos as duas estranhas em frente ao portão esperando que passasse alguém que pudesse nos levar para dentro. Mas aparentemente todos os não estranhos já estavam nas suas casas fazendo churrasco ou andando de jet ski. Continuamos buscando casas pelas redondezas de Barra Bonita o dia todo. Arriscamos todo tipo de estrada de terra, explorando cada bifurcação, que dividia-
se em outra e por sua vez em outra, em quatro, em oito, em trezentos e vinte e dois mil caminhos sempre posicionados entre paredes de cana ou milho. Vez ou outra dávamos de cara com uma extensa cerca que nos permitia enxergar lá longe um casarão de fazenda. Além de não ser o interesse do trabalho, não sabíamos como entrar nas fazendas.
Tudo continuava visivelmente loteado. A região é plana demais. Recor-
remos ao Google Maps, padroeiro desse trabalho, para procurar alguma região serrana relativamente próxima, imaginando que a quantidade de fazendas diminuiria em terrenos mais desiguais. Ele nos indicou um caminho que passava por Santa Maria da Serra e chegava na cidade de Torrinha. Fomos até o extremo leste de Torrinha e partimos dali novamente desbravando as estradas de terra. Dessa vez era café e eucalipto. Quilômetro infindáveis da simpáticas arvorezinha de fruto vermelho cujo grão não torrado é azedo, provamos. Os eucaliptos sempre esbeltos e elegantes davam um ar misterioso bem semelhante aqueles filmes de fada e unicórnio que geralmente tendem a me dar sono. Mas estar ali era de fato encantador.
Encantador até eu notar que aquele tipo de paisagem não nos deixava en-
xergar qualquer possível casa que pudesse existir ali. Da maravilha à impaciência: minha vontade era passar um trator em cima daquelas plantações - com cuidado para não derrubar nenhuma casa - sacar um binóculo e procurar qualquer forma minimamente geométrica . E Julia feliz, de vidros abertos, cantando e sorrindo para o pôr do sol. Era hora de parar. Dormimos em Torrinha e no dia seguinte saímos as sete da manhã. Mais um dia de idas e vindas em paisagens bem semelhantes às encontradas nos dias anteriores. Exceto por alguns momentos onde não havia plantações, mas sim um infinito de terra avermelhada que provavelmente estava descansando para receber futuras mudas. (Ou mais alguém se enraiveceu e teve a coragem de passar o meu trator. Mas aparentemente não teve o cuidado de deixar as casas).
Entramos novamente em Torrinha procurando sair por algum outro lado
que ainda não havíamos tentado. Seguimos por uma nova estrada de terra e um pouco depois de uma pequena ponte de madeira que passava por uma cachoeira linda, vimos a primeira casa acessível até o momento. Estacionamos o carro e caminhamos até a casa. Não precisamos bater palma, as mais de vinte galinhas anunciaram a nossa chegada. Zilda veio nos receber. Ela mora na casa há dois anos e juntamente com o marido, trabalham na fazenda da frente. A casa faz parte do terreno da fazenda que é cortado pela estrada de terra. Quando expliquei porque estava ali, ela logo chamou a filha Dani. “Coisa de faculdade é melhor falar
com ela”. Dani tem 16 anos. Os pais já trabalharam em muitas outras fazendas na região. Era domingo de páscoa e Zilda nos deixou conversando lá fora e foi terminar de temperar o frango. Pensamos que podíamos estar atrapalhando e combinamos com Dani de voltar no dia seguinte após o almoço.
Seguimos procurando e tudo continuava igual, talvez minha aflição em
sair de lá sem nenhuma entrevista estivesse piorando a situação. Neste mesmo dia fomos até as redondezas de Santa Maria da Serra, mas pouparei descrições repetidas e me permitirei um salto narrativo que nos conduzirá ao dia posterior. Saímos por volta de 8h da manhã. Passamos em frente à casa de Zilda e Dani, mas ainda era cedo, seguimos entrando aleatoriamente em mais bifurcações. Não é comum vermos placas nas estradas de terra, mas depois de um determinado ponto, algumas apareceram indicando “PCH Três Saltos”. Curiosa, segui as indicações enquanto tentávamos decifrar o que poderia significar PCH. Parque de Concentração de Helicópteros, Padres Casados com Homens, População Comedora de Humanos, até chegarmos em frente ao portão fechado da PEQUENA CENTRAL HIDRELÉTRICA.
Alguns metros antes do terreno da PCH havia um conjunto de três casas.
Ao passarmos em frente, um homem de bigode, com os óculos apoiados na ponta do nariz, nos olhou por cima das lentes com certa curiosidade. Voltamos, paramos o carro e fomos falar com ele. Utilizamo-nos da já frequente abordagem que vinha funcionando bem e ali pude notar como é interessante a forma como cada um reage à ela.
- Claro, vamos conversar.
Logo pegou dois latões vazios de tinta para sentarmos e acomodou-se no
tronco de árvore cortado longitudinalmente ao meio, que conformava um banco. Seu Francisco, com um paquímetro nas mãos a medir uma pequena peça de aço, apresentou-se como artesão. Sua especialidade é a confecção de facas. Sem tirar o olho da pecinha metálica, nos contou que vive pelas proximidades de Torrinha há mais de 40 anos e anteriormente morou muito tempo no Sul, seu apelido é Gaúcho. A casa fazia parte de uma antiga fazenda de 1903, produtora de café, da qual hoje resta somente a casa de Seu Francisco e a casa sede, onde mora um senhor muito idoso, único herdeiro da propriedade. O terreno habitado por Francisco era ocupado por cinco construções e o foi dado em uma espécie de concessão, seus antecessores eram colonos da fazenda. A recente Pequena Central Hidrelétrica utiliza parte de seu terreno, provendo em troca a gratuidade de luz e água para Francisco. Das cinco construções, restaram três - uma utiliza como oficina, outra mora com a esposa e na terceira vivem sua filha e suas duas netas pequenas.
Nos convidou para conhecermos a oficina. Os pregos no batente da porta
de entrada carregavam uma série de ferraduras de cavalo.
- Se desse sorte cavalo não puxava carroça.
Era uma casa conformada por quatro pequenos cômodos, dois de cada
lado, separados por um núcleo mais arejado e iluminado, no qual havia uma bancada do lado direito com equipamentos e outra do lado esquerdo com todas suas ferramentas. Ele explicou detalhadamente todo o processo de execução das facas. Desde a fundição do aço (inox ou carbono) na forja localizada no cômodo à direita, até a aplicação dos cabos, feitos de chifre de boi. As capas das facas também são feitas por ele. Seu filho trabalha em uma confecção de sapatos em Franca e leva para Seu Francisco restos de couro. Perguntamos se poderíamos filma-lo, mas ele recusou imediatamente. Um jornal local foi até lá entrevista-lo quando a PCH foi instalada. Os jornalistas distorceram muitas informações. Publicaram a matéria dizendo que Seu Francisco fazia suas facas com ouro e prata e, mais do que isso, erraram o nome da sua dupla sertaneja favorita. Francisco é um pouco desconfiado, disse que só não reforma a casa para não chamar atenção.
- Aí vão lá e falam que eu trabalho com ouro e prata? Fiquei com medo de
ladrão.
A entrevista o traumatizou, nossa dura insistência de nada serviu. Mas se-
guimos conversando por muito tempo. Era fascinante ouvi-lo contar as histórias do local, sobre o show de forró que fez em Torrinha com seu grupo onde era o sanfoneiro, o seu tio italiano que fazia selas de cavalo e o ensinou a mexer com aço, as pessoas que foram embora morar na cidade e as que moram atualmente trabalhando em fazendas, que não sabem nada sobre o lugar.
- O folclore não tem mais valor, ninguém mais sabe a história daqui. A
história vai sumir.
Seu Francisco contou que conhece toda a região e é muito feliz morando
ali. Tem um apreço enorme pelo seu trabalho. Disse amar ficar sozinho e sossegado trabalhando na sua oficina todos os dias. Algumas das facas ele faz por encomenda, outras os clientes vão até a casa dele e escolhem uma peça dentre as que ele tem prontas. De moto, leva um mostruário até as cidades vizinhas e vende por lá.
Ele não parece ver uma faca como algo ameaçador ou perigoso. Sempre
qualificava-as como “essa é boa pra descascar fruta de casca grossa”, “essa aqui eu vendo muito pra quem gosta de andar à cavalo no meio do mato e precisa cortar a folhagem pra passar”, “o pessoal compra pra por na parede”.
Seu Francisco quer tirar um CNPJ de micro-empresa, gostaria de vender
francisco
suas facas para uma loja. Disse que o processo é demorado e complementou, cabisbaixo, que para fazer isso teria que sair de sua casa. As estradas de terra que uniam sua casa às cidades próximas, chegavam a ficar mais de vinte dias alagadas em épocas de chuva. Era impossível chegar ou sair para fazer as vendas e comprar matériaprima. Para crescer seu negócio ele teria que sair dali.
A sociedade atual, especializada, tercerizada e global, tende a colocar no
passado os que não vivem dessa maneira. Vemos no discurso de Francisco, a cidade colocada como um futuro que acaba por tomar o lugar da vida que ele leva. Como se ela não coubesse mais nas exigências contemporâneas.
Sobre a filmagem, insistimos mais um pouco, mas nada o convenceu. Pre-
cisávamos ir embora, já havia passado da hora que combinamos a conversa com Zilda e Dani, da famíliwa de caseiros.
Batemos palma na porteira e a casa parecia estar vazia. Resolvemos es-
perar um pouco enquanto interagíamos com as sempre divertidas e desesperadas galinhas. Após cerca de vinte minutos, um garoto de moto, namorado de Dani, foi até lá nos avisar que estavam todos trabalhando na fazenda, não podiam parar.
Sabíamos que não encontraríamos mais nada daquele dia, tínhamos que
voltar para São Paulo antes de anoitecer. Depois de um banho de cachoeira, tentamos outros caminhos e era sempre a casa longe, cercada, nunca sabíamos como chegar. Na manhã seguinte comprei um binóculo pela internet enquanto meu chefe não chegava.
francisco
Terceira viagem
Novamente não houve nenhum planejamento quanto ao percurso, ape-
nas pretendíamos chegar até a Bahia. Os preparativos práticos, hoje vejo que refletem claramente o receio em estar no meio do nada, do desconhecido. Julia e eu passamos uma semana elaborando uma lista de tudo o que poderíamos precisar. Para carregar as baterias das câmeras precisaríamos de energia e não imaginávamos como seriam os lugares que encontraríamos. Encomendei pela internet adaptadores para ter tomada no carro, e os incluí, junto à Iris (o GPS), na lista que além de um kit de primeiros socorros, uma corda de varal e um ebulidor para ferver água, elencava outros itens que até então pareciam substanciais. Presentemente percebo como toda a prevenção elaborada retrata um receio em abdicar, mesmo que temporariamente, de um modo de vida - o de hábitos urbanos. Era fundamental que o celular estivesse carregado todos os dias, que o café sem açúcar estivesse sempre ali na garrafa térmica e que o GPS se mantivesse sempre ligado. Passamos um dia todo comprando potes de diversos tamanhos, talheres, canecas, café, meias, mas...esquecemos de tirar dinheiro para viajar. Ao longo dos 35 dias dessa viagem, o celular carregado já não tinha sinal, a energia elétrica para manter Iris ligada de nada adiantava, muitos lugares não eram mapeados e ela se perdia. Pote, talher e café são vendidos em qualquer lugar, mas caixa eletrônico é raridade. Nosso critério havia sido completamente arbitrário quanto aos preparativos.
Poucos dias antes da nossa partida, decidimos procurar alguma hospeda-
gem que já fosse em um lugar afastado e que pudéssemos ficar cerca de dois dias fazendo uma transição temporal e espacial. Além do que os dias anteriores haviam sido corridos, e pensamos que planejar a viagem em um ambiente mais calmo e tranquilo - apesar da ironia presente nisso, já que uma das vertentes deste trabalho é nuancear as polarizações estereotipadas entre cidade e não-cidade - seria proveitoso. Encontramos então, em um site desses de reserva de hotel, uma pousada aparentemente isolada, localizada a 40 minutos da cidade mineira de aproximadamente cinco mil habitantes, Rio Preto. Essa pousada implicou na decisão de
iniciarmos a viagem por Minas Gerais. Rio Preto fica na divisa entre Rio e Minas e a 15 km dali está a Pousada do Tiê. Iris nos levou sem grandes inconvenientes até a cidade, mas não conhecia a região da pousada. Perguntamos na padaria da cidade e nos deram, além de muita simpatia, as indicações que levaram à uma estrada de terra íngreme, que subia beirando a encosta de um morro. Do alto de uma serra, é substituída a visão linear - do ponto de vista de quem está no chão - por uma visão de superfície. Uma outra possibilidade de conhecimento, onde a terra aparece vista do alto quase como um outro planeta. Conseguia ver dali uma série de vales desocupados de topografia bastante acentuada, onde as colinas se findavam em riachos sinuosos que, vistos daquela altura, pareciam estar parados. Aquela paisagem estática, imensurável e intocada, reforça a ideia trivial de que o campo impulsiona maior reflexão interna. Há um encorajamento dos impulsos íntimos e primitivos, onde os limites do racional se alargam para dar lugar a essa reflexão.
Uma tentativa atual de proporcionar esse tipo de paisagem na cidade, é
o condomínio fechado. Mas o impulso à reflexão interna (que pode ser causado também na metrópole), vem muito mais do confronto com o imensurável do que em um local recriado, onde a natureza é domesticada e idealizada. Nas paisagens campestres, assim como nas metrópoles - já que em ambas a imensurabilidade é a mesma - há uma suspensão, onde a dimensão se perde na grandeza. É um confronto do ser humano com algo que é infinitamente maior que ele e esse confronto certamente pode acontecer também na experiência urbana.
Chegamos na pousada no fim da tarde e Leila, a dona, nos recebeu muito
agradecida, como se não visse pessoas novas há muito tempo. E provavelmente não via, a pousada estava vazia. Naquela noite jantamos juntas e contei a ela que estava ali por conta de um trabalho da faculdade e que procurava por pessoas que vivessem em casas isoladas das cidades. Leila se interessou muito pelo tema e logo passou a falar de um livro que estava lendo sobre solidão. Ela foi a primeira pessoa a fazer essa associação entre isolamento e solidão, que para mim sempre foi uma questão presente nesse trabalho desde o início.
No dia seguinte, Leila passou o dia todo na cidade, precisava fazer com-
pras. Julia e eu iniciamos a primeira procura por casas. Rondamos a região denominada Serra do Funil, onde haviam nos dito que existia um vilarejo interessante. Seguimos placas de madeira feitas a mão e não encontramos nada. Vimos algumas poucas casas, mas todas vazias, não cruzamos com nenhuma pessoa sequer durante o dia todo, somente com um pavão colorido de peito estufado, todo cheio de si, e algumas vacas, galinhas e cachorros. Que aliás estiveram presentes durante toda a viagem.
Serra do Funil
Jantamos com a Leila novamente e contamos sobre o caminho que fi-
zemos durante o dia a procura do vilarejo. Pela nossa descrição, Leila disse que passamos pelo meio do vilarejo e rimos todas ao perceber que nem notamos. Seguimos a conversa e o tema voltou a ser solidão, isolamento, e Leila contou que mora lá há relativamente bastante tempo e somente agora se sente só. Separouse do seu marido há pouco mais de um ano e o fato de estar isolada tem a feito pensar muito sobre essa condição, que a foi posta não só pelo abandono, mas intensificou-se pelo fato de estar distante de uma cidade. Nessa noite, decidi que entrevistar a Leila seria interessante. Pela manhã, perguntei a ela se podíamos entrevistá-la. Ela aceitou e sugeriu que falássemos também com uma outra pessoa que morava na região, a Célia, uma artista plástica. Nos contou que Célia vivia de forma muito peculiar, por opção, não tinha luz elétrica até pouco tempo atrás. Não possui televisão nem geladeira, gela seu alimentos no chão, o piso é frio o suficiente. Célia havia viajado e demoraria alguns dias para voltar, mas saber que ela existe me fez pensar em como há uma imensidão de formas diferentes de habitar.
Antes da entrevista fizemos algumas imagens da pousada. O terreno é
delimitado por um cercado branco de madeira recém pintada. Os quatro chalés alaranjados são interligados por caminhos de pedras dispostos sobre o extenso gramado. A casa dela, parecida com os chalés, com um telhado de duas águas e uma pequena varanda frontal, fica em frente à piscina. Há uma pequena lagoa artificial, habitada por diferentes espécies de peixes e serve de bebedouro para alguns cavalos que passeiam por ali ocasionalmente. Passando a porteira de entrada, a primeira construção que nos recebe, estruturada toda em madeira aparente, é a que abriga a cozinha, a sala de tv, uma mesa de refeições comprida e um bar com uma caixa registradora antiga apoiada sobre o balcão. Há na frente uma varanda com uma rede e duas cadeiras rígidas de madeira, também brancas, que aparentavam ter sido pintadas na mesma leva em que pintou-se a cerca. Da pousada, vê-se apenas as montanhas e o céu.
A entrevista com Leila quase não precisou de perguntas, eu estava fazen-
do um trabalho sobre algo que atualmente tem sido o que ela mais pensa. Seria coincidência? Ou o fato dela ter vindo também de uma cidade grande lhe dava aquele olhar? Iniciou contando que morava no Rio de Janeiro e que sempre quis abrir um negócio próprio. A vontade de ter uma pousada partiu da idealização de tranquilidade e qualidade de vida. Foram onze anos construindo, em companhia do seu ex marido, o que ela chama hoje, com certa ressalva, de sonho. E após a separação, passou a se questionar sobre voltar ou não para a cidade, mas por já ter um envolvimento com o lugar e com aquela forma de viver, preferiu continuar
Leila
ali e tentar aprender a desenvolver formas de sentir-se menos só. Leila foi professora da escola da região e esse envolvimento a faz conhecer a dinâmica dali, ela pensa nas questões daquele local não só sob a sua perspectiva. As crianças vão entusiasmadas para a escola, é o único contato que têm com outras pessoas. Já não sabe mais se conseguiria adaptar-se a vida urbana novamente, apesar de que, para ela, a principal diferença entre a vida no Rio de Janeiro e a vida naquele lugar, é a qualidade da solidão. A solidão na cidade, pode ser amenizada com a presença de vizinhos, ou de pessoas se cruzando e interagindo. No local onde ela vive, não existe a possibilidade de interação, a não ser que ela vá até Rio Preto. Em um prédio, por exemplo, o barulho dos outros moradores a conforta de certa forma. Pelo silêncio do lugar onde vive, contou que por vezes sente que a soltaram na via láctea e que agora está lá flutuando, já chegou a pensar que estava surda.
Essa fala nos faz pensar que a escala, por ser mensurada a partir do ho-
mem, quando o coloca frente tanto à imensidão da natureza quanto a imensidão das grandes cidades, revela a pequenez humana, e faz com que sintamo-nos sós. A sua percepção, frente ao imensurável, quebra de certa forma a racionalidade e aciona a sensação da vertigem do macro, do ilimitado.
No início da pousada, o fluxo de pessoas era grande e Leila sentia neces-
sidade de ter a sua casa delimitada como um espaço só seu. Atualmente começou a espalhar seus pertences por toda a pousada, o limite de casa se estendeu para além das paredes.
- Estou tentando receber as pessoas como se a pousada fosse minha casa.
Tem muitas coisas que eu trouxe porque queria montar pra mim um espaço separado. Agora eu misturei tudo.
Vemos na cidade essa mesma forma de hospedagem acontecer atual-
mente anunciada em sites como Airbnb e Couchsurfing. Há o retorno de uma característica tradicional, da porosidade em receber pessoas em casa, o que é de certa forma contraditório, já que a sociedade que se protege com grades, alarmes e monitoramento 24h, é a mesma que abriga desconhecidos dentro de casa.
Leila sente que a presença de hóspedes, mesmo que seja majoritariamen-
te em finais de semana, ameniza sua solidão. Mas toda vez que vão embora, ela tem vontade de ir também. Apesar da dificuldade em sentir-se só, pude notar nela uma vontade de alcançar uma singularidade, um domínio e uma aceitação sobre si mesma e sobre a solidão que sente. Partimos na manhã seguinte depois do café, com vontade de levar a Leila espremida no banco de trás.
Leila
Decidimos o próximo destino novamente pela hospedagem. Encontra-
mos um camping em Tiradentes, que apesar de ser uma cidade turística, em poucos quilômetros de distância essa característica parecia desaparecer. Logo que chegamos no camping, vimos um trailer clássico, do tipo motorhome, de arestas arredondadas, de cor branca com uma faixa horizontal alaranjada. Na frente, o dono estava sentado na mesa que é acoplada externamente na parede do trailer, tomando seu café, concentrado no computador. Estava acompanhado de seu cão, que partilhava de ainda maior concentração, mas toda voltada ao café da manhã. Em volta do trailer havia uma bicicleta, uma moto, uma caminhonete e toda sorte de cadeiras e mesas dobráveis. Se eu estava achando a minha lista enorme, imagine a dele.
O critério de implantação da nossa barraca foi a curiosidade pelo vizinho.
Nos instalamos ao lado do trailer e, com fome, atrasamos o almoço para observar, fofocar e, confesso, invejar aquele modo de vida. Até então não sabíamos se ele morava no trailer ou se estava lá de férias. Perto das 14h, ele saiu junto com seu cão, sua caminhonete e sua moto. Estávamos liberadas para almoçar.
Procuramos casas por alguns dias e era uma área de muitas plantações,
parecida com a região do interior de São Paulo que visitamos na segunda viagem. Imaginei que fossem fazendas, apesar de não conseguirmos ver as casas. Além de que era final de semana de jogo do Brasil e tudo estava vazio.
Durante os dias em que ficamos em Tiradentes, estava prestes a come-
çar um evento anual de moto na cidade. No camping, repentinamente ganhamos um incontável número de vizinhos, todos estampados com caveiras nas vestes. O local passou a ter heavy metal e roncos de motor como trilha sonora, o que finalmente motivou uma conversa nossa com Ricardo, o dono do trailer. Ele também achou engraçado aquela mudança tão rápida, de um dia para o outro, no sossego do lugar. Ricardo é fotógrafo e paraquedista. Resolveu que durante um ano iria viajar no seu trailer fotografando os lugares em que passava e vendendo as fotos para sites de banco de imagem, já estava viajando há três meses. Não se referiu ao trailer como “casa”, mas por mais que ele considere aquilo tudo uma viagem, era evidente que a apropriação que fazia do espaço do motorhome, o fato de estar com seu cachorro, transformava aquilo numa casa. Talvez a ideia de não estar fixo - ao menos para alguém que já nasceu imerso na vida urbana - muitas vezes anule o sentimento de habitar.
A conversa com Ricardo foi interrompida quando começou o jogo do Bra-
sil e fomos, os três, recrutados pelos motoqueiros para acompanha-los na torcida. Assistimos todos juntos (e éramos muitos) o primeiro tempo na sala de TV do
camping, mas no intervalo trocamos facebook com Ricardo, combinamos de nos encontrar ainda nessa viagem e sorrateiramente desmontamos a barraca. Saímos à francesa e seguimos viagem, não havia nenhuma pressa, mas preferimos adentrar um pouco mais em Minas.
Saímos de Tiradentes sem saber muito para onde estávamos indo, mas
seguindo para o norte. A Estrada Real passa por dentro de muitas cidades, o que faz com que algumas delas, por meio de placas na rodovia, destaque o seu principal atrativo. A cidade de Lagoa Dourada que se apresentava como “a cidade do tradicional rocambole”, nos convenceu a pararmos ali. Compramos um rocambole gigante de meio quilo - e peço que o leitor guarde essa informação. Seguimos até um ponto da estrada em que o sinal da internet do celular começou a diminuir. Paramos no acostamento para procurar um lugar para ficar e encontramos em um site outro camping, em Ouro Preto. Não me preocupava em estar próxima de cidades turísticas, o caráter turístico naquela região parecia sempre ser bem pontual.
Em uma das buscas por casas enquanto estivemos em Ouro Preto, caí-
mos dentro de uma cidade chamada Amarantina, com quase três mil habitantes. Cruzamos a cidade (no tempo de metade de uma música que tocava no rádio) e saímos por uma estrada de terra na qual, passados cerca de 8 quilômetros, havia uma entrada sem portão, mas demarcada por dois troncos esbeltos, um de cada lado, onde na extremidade superior de cada um havia um ventilador de teto preto funcionando como catavento. Em um lugar de aparência tão estática, ver a ação do vento naquela engenhoca era lindo. Até porque geralmente o que há voltado para a estrada é o portão, a placa de propriedade privada, o arame farpado. E ali, aqueles cataventos enormes eram sedutores e convocavam a entrada. E evidentemente entramos. Passando essa maravilha, uma descida nos conduziu até o terreno e ali ficamos batendo palma até que duas mulheres acenaram. Mas não pararam de fazer o que faziam, não foram até nós, não nos convidaram para entrar. Vai ver pensaram que estávamos aplaudindo os cataventos. Não sabíamos se seria invasivo nos aproximarmos, então voltamos para a estrada de terra e descobrimos uma outra entrada para o mesmo terreno. Deixamos o carro na estrada e descemos a pé. No meio da descida, avistamos lá embaixo um senhor de cabelos e barbas esbranquiçados, caminhando todo dobradinho em nossa direção. Era o Seu João, que nos cumprimentou com um aperto de mão e pediu para que entrássemos e sentássemos. Chamou sua mulher, Dona Rita, que assim como ele, tinha também 78 anos e não tirava o sorriso do rosto. Falaram sobre o tempo, sobre o sol, sobre a família, e só depois de uns 10 minutos de conversa solta foi que nos perguntaram o que queríamos. Contei então o de sempre, o que procurava e do
Jo達o
que se tratava a visita. Dona Rita perguntou o que exatamente eu estudava, contei que fazia arquitetura. Os dois balançaram a cabeça, fazendo um sinal afirmativo e Seu João refletiu algum tempo antes de me fazer uma difícil pergunta:
- O que é arquitetura?
Bem, naquele momento de confronto, naquele segundo, eu também não
sabia. Respirei de forma longa e profunda para que tivesse tempo de juntar informações suficientemente didáticas e expliquei, claro. Disse sucintamente o que tinha que dizer em matéria de casa, espaço e cidade. Aquela pergunta revelava muitas outras questões, de forma que a pergunta em si, carecia de importância.
Combinamos de voltar no dia seguinte. Dona Rita não estava lá, tinha
ido visitar uma amiga na cidade. Seu João permitiu que gravássemos imagens de tudo, mas pediu para que evitássemos filmá-lo. A vida toda trabalhou na área rural e aposentou-se em seu próprio terreno, pelo qual aliás é aficionado. Fala da sua terra como se quisesse nos convencer de que o Brasil inteiro é infértil comparado à sua propriedade. Há três construções no terreno, sua casa atual, a casa em que morava anteriormente e a casa de sua nora. Logo que chegamos, nos levou para a casa mais antiga, toda feita de adobe, madeira e pedra. Ele morou ali a maior parte da sua vida e agora aluga para trabalhadores da região. A casa, segundo João, possui 130 anos e já estava lá há muito tempo quando ele adquiriu o terreno - onde moram há 55 anos - por meio de troca de terra por terra. A pintou recentemente e construiu uma varanda de tijolos apoiada sobre seis pilares do mesmo material. Há atrás da casa um paiol, também com 130 anos, erguido em adobe com sua base feita em pedra, assim como a casa. Seu João quer refazer a estrutura do telhado que está muito deteriorada, mas os pedreiros com quem conversou aconselharam que o melhor a fazer seria destruir o paiol e faze-lo de novo.
- Eu não quero desmanchar ele. Eu vou tirar o telhado e pôr três peças de
madeira de fora a fora, colocar mais umas telhas e vou fazer o telhadinho igual está aí. Já durou mais de 130 anos com essa casa e agora dura mais. Não jogando no chão, dura a vida inteira. Só deus é que pode desmanchar ele.
A casa em que vive hoje foi construída e projetada por ele mesmo, 16 anos
atrás. Três quartos e uma cozinha dão em uma sala central dividida em sala de jantar e de estar. O banheiro fica na parte de trás, do lado de fora. Um quarto é de Rita e João, o outro para visitas e o terceiro para o seu neto, que trabalha na cidade. No quarto em que João e Rita dormem, há um fogão novo, nunca usado, que serve de mesa de cabeceira. Há uma escada externa que leva para o segundo piso, que configura uma área aberta delimitada por um guarda corpo. Dalí vê-se todo o montanhoso entorno e, longe, algumas casas da cidade de Amarantina. É um es-
paço de contemplação e convivência, onde bancos feitos com caixa de feira - assim como os que temos visto e feito em matéria de design sustentável - reforçam esse caráter.
João fez a fundação dessa casa um pouco mais profunda do que o ne-
cessário para futuramente subir mais um andar, caso o seu neto se case e queira morar ali também. Ele sabe imensamente o que é arquitetura. Não somente pela sua noção construtiva, mas também pelo valor que dá aos elementos antigos que possui em seu terreno. Das pessoas que conheci, Seu João foi o único a mencionar as construções antigas como relíquias a serem preservadas e fica muito orgulhoso de ser um dos únicos a manter esse tipo de construção naquela região. É um pensamento muito próximo ao nosso.
Nos contou que alguns parentes que moram em São Paulo costumam
visitá-lo e ficam sempre deslumbrados com o local. Tiram foto de tudo e publicam na internet. João não qualifica aquele lugar como algo plácido e tranquilo, já está habituado. Mas da mesma forma que reconhece o valor da casa antiga, reconhece também o valor que as pessoas que vêm de fora dão àquele tipo de cotidiano, que para ele é comum. Tanto que durante a conversa nos mandava tirar foto de tudo. Da jabuticabeira, do mamoeiro, da vaca, da banheira em que a vaca bebe água, da caixa d’água.
- Pode tirar retrato de tudo. O pessoal gosta de ver horta mesmo, né?
O afastamento, em seu caso, não é um problema. Seu neto possuí carro
e leva João e Rita para onde for preciso. O agrada muito viver ali, principalmente porque agora com luz, internet e poço artesiano, há, segundo ele, mais conforto, porém é tudo mais caro. Me perguntou muitas vezes sobre a vida em São Paulo, sempre relacionando-a à riqueza. Ele estava fazendo o mesmo que eu - quando comecei este trabalho idealizando e romantizando a não-cidade - ao deduzir que cidade é sinal de riqueza. João já falava ofegante. Termos andado pelo terreno todo durante mais de uma hora enquanto conversávamos deve ter sido cansativo. Resolvemos então ir embora e deixa-lo descansar.
- Reza uma Ave Maria pra mim lá.
Seguindo para o centro do estado de Minas, decidimos parar em Belo
Horizonte para comprarmos um fogareiro com a intenção de diminuir os gastos com comida na viagem. Logo na noite de estréia do novo utensílio, estranhamente estávamos sem fome. Durante a madrugada - e pouparei descrever de que forma descobrimos isso - entendemos que a falta de fome era resultado de uma intoxicação alimentar causada pelo famoso rocambole de meio quilo da cidade de Lagoa
Jo達o
Dourada, que estragou pela falta de geladeira. Conto esse fato porque me lembro das inúmeras vezes em que comemoramos (internamente, porque não havia muita força para comemorações estrepitosas) por termos ficado doentes justamente em uma cidade com toda a infraestrutura que poderia ser necessária.
Após dois dias de recuperação e um de Inhotim, seguimos para a cidade
de Cardeal Mota, região conhecida como Serra do Cipó, a 100 quilômetros de Belo Horizonte e nos instalamos em um camping onde novamente nosso vizinho era o Ricardo, dono do trailer que conhecemos anteriormente. Ricardo tornou-se um grande amigo nosso, passamos a jantar juntos todas as noites em sua casa móvel para contarmos sobre o dia de cada um.
No caminho para Cardeal Mota, pude notar que a malha urbana de Belo
Horizonte se dissolve muito rápido. Em poucos quilômetros a cidade some completamente e as cidades vizinhas já são bastante menores. A Serra do Cipó fica a 1h30 de BH e já detém um certo caráter de “meio do nada”. Essa característica certamente não é percebida somente em Belo Horizonte, apesar de que no percurso São Paulo/Rio de Janeiro, por exemplo, não é evidente. Mas muitas vezes, os limites físicos e geográficos das cidades são claramente delimitados. Sabe-se até onde a cidade chega, mas não há como medirmos o raio de influência do conceito e do ideal de cidade. Estes, por sua vez, atingem limites abstratos imensuráveis, de forma que a autonomia simbólica da ideia de cidade é independente das limitações físicas. O que fica depois do recorte urbano, muitas vezes ainda carrega os valores da cidade.
Em um dos dias em que procurávamos casas na região da Serra do Cipó,
acabamos caindo em um pequeno vilarejo chamado Curral Queimado, localizado a 15 quilômetros da Serra e a mais 15 da cidade de Santana do Riacho. Seguimos pela estrada de chão e, depois de caminhos emaranhados, uma bifurcação nos levou até uma estrada também de terra, interrompida por um córrego. Não havia espaço para fazer retorno e enquanto analisava se seria possível voltar de ré, um homem que vinha acompanhado de sua família, nos disse que o carro passaria pelo córrego sem problemas. Este carro é um japonês baixinho, mas com alma de jipe. Já havia transposto todo tipo de estrada e afasta-lo dessa tarefa poderia lhe causar problemas de autoestima, portanto arriscamos. Já do outro lado do pequeno córrego, com uma calota a menos, avistamos uma casa cheia de roupas no varal, o que durante as buscas tornou-se motivo de comemoração, significava que havia moradores. Deixamos o carro se recompondo em frente à uma construção abandonada e fomos a pé até a casa. Lá estava Ronaldo, o homem que nos encorajou a atravessar o córrego. Ele e sua esposa estavam com os filhos passando férias na
Ana
Ana
casa de sua sogra, Dona Ana. Ela morou naquela casa a vida toda, que pertencia anteriormente ao seu pai e agora vive lá com seu marido e um dos quatro filhos. Precisou ser convencida por sua filha Leninha a nos dar a entrevista, porque Ana, ressabiada, desconfiava que tivéssemos algum vínculo com o governo.
Voltamos no dia seguinte e para encontrarmos a casa novamente, segui-
mos algumas coordenadas que havíamos determinado anteriormente, como virar a esquerda depois do pinheiro seco, a direita logo antes do buraco, direita novamente no mamoeiro e seguir reto no barulho de água corrente. Sem placas e sem Iris, chegamos.
Metade da casa tinha uma aparência antiga. A construção havia sido du-
plicada, de modo que uma extensão exatamente igual, foi construída geminada àquela já existente.
Coloquei a câmera no tripé e a família inteira - Ana, marido, filha, e três
netos - se movimentaram e começaram ajustar as cadeiras e bancos da cozinha para que todos coubessem no quadro de filmagem.
As estradas de chão ali foram abertas há pouco tempo, anteriormente
só se chegava em sua casa por trilhas. A partir dessa abertura, Ana passou a ter uma série de novas necessidades, como mais ônibus, creche e asilo. Ao aparecer a opção de mobilidade, o conceito mínimo de cidade chegou ali e novas exigências passaram a surgir, já que a mobilidade é uma possibilitadora enorme de novos espaços e necessidades. Os ideais da cidade, que são os ideais da modernidade, estão presentes na perspectiva de quase todos, mesmo de quem nunca viveu em um espaço urbano. Vê-se no local onde Ana vive, uma expansão da cidade, mas não uma expansão física, e sim da cidade como ideia chegando ali.
Lá, as estradas de terra funcionam como ruas, mas não têm caráter públi-
co. São apenas meios de ligação e locomoção, assim como acontece em grande parte das ruas de São Paulo. Não são atrativas às pessoas e não carregam nenhum tipo de carga simbólica ou afetiva. Entendo que nesses lugares afastados do meio urbano, a demanda seja de fato menor, os encontros entre as poucas pessoas ocorrem nas casas. Mas nas cidades é inadmissível que rua ainda seja um conceito atrelado à inospitalidade.
A região do Curral Queimado é pouquíssimo habitada e todos os morado-
res são parentes uns dos outros. O fato de ser uma comunidade de família, faz com que tendam a resolver as questões básicas por eles mesmos. O governo acaba sendo um empecilho, já que sempre resolveram sozinhos os problemas do lugar e agora há certa burocracia.
Vivem na base de trocas e doações ali, de modo que todo o dinheiro de
aposentadoria do marido de Ana, é investido para a construção da outra metade da casa. Já pensaram em vender o excedente da pequena produção que possuem, mas não há como levar os produtos. O transporte público hoje existente, não é suficiente para isso. O trabalho não gera lucro, é para subsistência e diversão, segundo Ana. Fazem, por exemplo, o próprio sabão com uma espécie de coco que plantam no seu terreno. A idade começa a ser um problema, não conseguem plantar tanto quanto antes por já sentem-se velhos.
Ela é analfabeta e sempre que precisa ir visitar alguém ou resolver algo na
cidade, tem de ir acompanhada. Não sabe ler placas e se perde facilmente, o que a faz sentir-se dependente, portanto acaba preferindo não sair dali.
- Eles falam “a senhora tem que passear”. Passear, nada. Eu passeio aqui
no meio do mato, não é?
A cidade acaba por ser um organismo excludente, onde certos pré requisi-
tos são necessários para a sobrevivência urbana. Ana não necessariamente sentese excluída, já que a vida toda viveu em Curral Queimado e está muito satisfeita. Mas pensar que praticamente não existe a possibilidade de alguém que é analfabeto viver na cidade, revela uma série de incoerências.
Depois de comermos mexericas e mamão, fomos embora e as despedi-
das iam ficando cada vez mais difíceis.
Na manhã seguinte, enquanto juntávamos os pertences para continuar-
mos a viagem, a mulher que cuidava do camping, a Val, veio se despedir de nós. Na noite anterior, a ouvimos cantar para Ricardo, o dono do trailer, e comentamos que suas músicas pareciam ser muito bonitas. Pedimos para que cantasse algumas para nós, e Val logo pegou sua pasta com as composições e cantou sua primeira música, O Navegador. Aquilo tudo era muito bonito e resolvi gravar. Durante a gravação, além de cantar, Val contou que fazia parte do Movimento Sem Terra e fez observações que muito se relacionavam com algumas questões que Dona Ana havia colocado no dia anterior. Contou que a luta do MST muitas vezes é incompreendida, não entendem que não é todo mundo que tem formação suficiente para trabalhar nas cidades. Informação, na cidade grande, não basta e assim como Ana que é analfabeta, quem não tem formação o bastante para viver na cidade, deveria ter a opção de trabalhar em sua própria terra em áreas rurais.
- As pessoas precisam de trabalho, não é todo mundo que tem formação.
Informação é fácil, quero ver formação. Não tem. Não tem trabalho para todos. Precisa tirar um pouco das pessoas de São Paulo e Rio de Janeiro, é preciso desafogar.
Val
A cidade é uma espaço de contradição. Ela nega e cria nela mesma a con-
dição de negação, pelo fato de que ela exclui grande parte de seus cidadãos das condições de potencialização que ela própria oferece.
Já havíamos ultrapassado a metade do tempo que poderíamos passar
viajando e ainda estávamos longe da Bahia. Queríamos acelerar um pouco o processo para chegarmos logo no litoral e tentarmos procurar alguém que vivesse na praia ou em alguma situação diferente das já encontradas. Partimos da Serra do Cipó em direção à Diamantina e chegamos à cidade no fim da tarde. Dormimos lá e na manhã seguinte, saímos em direção da cidade de Araçuaí, localizada a 324 km de Diamantina, já na região do Vale do Jequitinhonha.
Boa parte do trajeto foi por estradas de terra batida e, quando asfalta-
das, buracos imensos obrigavam desvios perigosos que somados à seca extrema da região, aumentavam o drama daquela paisagem, que inclusive abrigava uma grande possibilidade estética. Não há uma beleza em si, mas a associação à dimensão estética é sempre possível nesse tipo de paisagem. Paramos para alguma fotos e em uma dessas paradas, um caminhoneiro perguntou se estava tudo bem com o carro. Disse que sim, que estava apenas tirando fotos e ele logo alertou que saíssemos de lá o quanto antes, porque a região é muito perigosa. Sem saber se era exagero do caminhoneiro ou não, decidimos seguir suas orientações e fomos sem mais paradas até a cidade de Araçuaí.
Na manhã seguinte continuamos em direção à Bahia, e dessa vez progra-
mamos Iris para nos levar até Almenara, cidade média ainda em Minas Gerais, mas muito próxima à divisa. O caminho continuava muito semelhante, tudo extremamente seco e placas indicavam a existência de córregos e rios, mas todos haviam secado, por baixo das pontes havia só lodo e lama. Quando enfim chegamos à Bahia (e comemoramos ouvindo toda a sorte de cantores baianos que tínhamos disponível), passamos pela cidade de Eunápolis e seguimos para Trancoso para tirarmos um dia de descanso. Depois fomos até Caraíva, que, novamente, apesar de turística, imaginei que poderia encontrar algo interessante nos arredores. Um morador de lá nos contou que havia um homem que morava sozinho na praia e que a única forma de chegar até sua casa, era atravessando o rio de barco e caminhando cerca de uma hora pela areia.
Fomos até lá sem equipamentos para conhecermos o homem e ver se
seria possível uma entrevista. O barqueiro nos levou para o outro lado do rio e no caminho até a casa do Seu Saturnino, a praia era deserta, vi apenas um lote enorme, cercado e demarcado por placas de propriedade privada, mas, ao menos naquele dia, estava desabitado. Após cruzarmos um córrego vindo da mata fechada
Vale do Jequitinhonha
Saturnino
de coqueirais, uma falésia avermelhada fazia sombra em um conjunto de pedras, e depois de atravessa-las, vi pequenas construções dispersas. Ali é o terreno do Seu Saturnino. A praia leva o seu nome, Praia do Satu, assim como a lagoa localizada 100 metros adiante. Saturnino vive ali a mais de 40 anos e possui um bar. Sua casa fica no caminho para a famosa Praia do Espelho e no verão serve de passagem para uma grande quantidade de turistas. Ele é índio nascido em uma das aldeias de Caraíva e nos contou que mais ou menos 20 anos atrás, um grupo de trinta pessoas chegou na região e passou a freqüenta-la com certa constância, instruindo aos moradores que comprassem coisas básicas para revender ao grupo a cada vez que voltassem ali. Estavam preparando os moradores para o turismo, e até então, Saturnino achava que turismo tratava-se de uma lei.
Depois desse episódio, ele que antes vivia de trabalhos rurais e pesca,
passou a viver de comércio e abriu o bar, onde vende bebidas e biscoitos. Combinamos a entrevista para dois dias depois dessa primeira visita e fomos avisadas para que saíssemos cerca de 10h da manhã, o horário em que a maré começa a baixar.
O terreno de Saturnino, situado em uma tira de um barranco de frente
para o mar, é composto por cinco construções, sendo uma delas o bar, a outra sua casa atual, a terceira a casa em que morou 25 anos, de pau a pique, e as outras duas são casas onde viviam seus filhos antes de mudarem- se para a cidade. A casa onde vive, na cota mais alta do terreno, é formada por uma sala, cozinha, dois quartos e um banheiro. Por não possuir luz elétrica, construiu as paredes internas da casa com altura inferior à dimensão total do pé direito, para que poucas velas dêem conta de iluminar a casa toda. Comunica-se com a família pelo celular, o qual, para carregar a bateria, tem de ir até a casa de sua filha.
Saturnino, quando jovem, morava em uma fazenda próxima dali com sua
família e quando conseguiu juntar dinheiro o suficiente, comprou um pedaço de terra vizinho à dos seus pais. Naquela época, amigos seus estavam indo para Rondônia trabalhar com gado e sugeriram que ele fosse junto. Saturnino que sempre sonhou em trabalhar com animais, vendeu sua terra para ir embora. Perto da partida, sua mãe, lastimada, pediu para que ele desistisse da viagem e é por esse motivo que ele mora nesse terreno. Para ficar perto da mãe, que há três anos faleceu, o que fez com que Saturnino sinta-se, de certa forma, abandonado e sozinho. Seus filhos foram morar na cidade e sua esposa faleceu recentemente. Pude perceber que Seu Saturnino sente-se preso àquele lugar, principalmente pela memória, mas também pelo fato de ter ido parar ali por vontade de outra pessoa, assim como Leila, a dona da pousada. Coincidentemente ou não, foram as duas pessoas
que entrevistei que mais falaram sobre solidão. Ele pensa em mudar-se para a cidade porque alega estar ficando velho para aquele modo de vida.
- Que que eu vou ficar fazendo aqui, minha filha? Já cansado, ficando ve-
lho, não dá. Eu tenho que sair pra junto da cidade. Não nasci pra cidade. Eu nasci pra floresta, sou homem do campo. Então no campo eu sei o que fazer. Na cidade eu não sabia e não sei, mas pelo menos gente eu vejo, né? Na hora do aperto, quem vem me acudir aqui? Na cidade, não. Na cidade, sentiu uma dor na unha, tem a tesoura ali na frente que corta.
O local anteriormente não era tão isolado, mas muitos dos moradores
de lá foram embora por conta do aumento do valor das terras devido ao turismo, dando lugar para grandes propriedades. A fazenda vizinha ao terreno de Saturnino fechou doze quilômetros de acesso à praia, impossibilitando que ele se locomova até a cidade, tendo, para isso, que pagar uma taxa cada vez que sai dali e agora está aguardando o resultado do processo que fez contra a fazenda. Saturnino não sente que é produtivo trabalhando com turismo, mas ao mesmo tempo é muito satisfeito por conhecer gente do mundo todo no verão. Se ele não vai até a cidade porque o privaram de mobilidade, a cidade vai até ele vestida de turista. Diferente de Luisa, a dona da casa em ruínas que conheci na primeira viagem. Ela vai para a cidade como forma de escape. Já ali, a cidade vai até a praia tomar sol.
Existe, nesses lugares que conheci, se comparados à cidade, uma diferen-
ça de escala brutal. Nas cidades, a escala caminha em etapas. Vai da célula mínima da habitação ao edifício, do edifício à rua, da rua ao bairro, do bairro à cidade e estes saltos poderiam continuar ou subdividirem-se quase que infinitamente. No meio não urbano, a passagem da célula mínima para o macro é imediata, e consequentemente menos hierárquica. No local onde Saturnino vive, esse salto é ainda mais evidente por conta do mar, e aliás ele já nem escuta mais o som de suas ondas.
A maré começava a subir, precisávamos voltar. Foi o caminho de volta
mais bonito. No começo, com um pé na água e um na areia, e a medida que nos distanciávamos da casa de Saturnino, a faixa de areia se estreitava. Na beira do rio, acenamos para o barco com a água só até a canela, mas com a sensação de que chegamos ali flutuando.
Saturnino
Já estava próxima a data em que estipulamos para voltar, e apesar do ímã
que a Bahia tem, no dia seguinte seguimos descendo no sentido do Espírito Santo. Logo após a placa que aponta a divisa dos estados, havia um pedágio. Os celulares começaram a apitar e Iris se manifestou. Até então, já fazia semanas que todos os eletrônicos que precisavam de sinal não estavam funcionando bem e o último pedágio pelo qual passamos havia sido na divisa entre Rio e Minas. Um sentimento de encerramento começava a aparecer.
Paramos na cidade de São Mateus e passamos um dia procurando ca-
sas nos arredores. Encontramos algumas, mas não chegamos a tentar nada, eram muito similares aos perfis já encontrados.
Para a execução desse trabalho não há outro recurso que não a exaustão
da busca somada a um elemento intuitivo. No Espírito Santo, não conseguia falar de outro assunto que não fosse sobre as entrevistas já feitas. Se o elemento intuitivo fundamental já começava a se dissolver, era hora de voltar.
A [não] cidade
A ideia desse trabalho partiu da curiosidade em tentar descobrir o que fica
depois do limite das cidades e como é a vida de quem habita locais que a princípio imaginei que não sofressem influência do modo de vida urbano. E a grande questão que apareceu durante a pesquisa, foi a percepção de que esse limite é muito mais intangível, ou ao menos muito mais distante do que eu imaginava à priori.
A não-cidade apareceu primeiramente como sinônimo de isolamento, ao
menos físico, das relações sociais. Sabia que a não-cidade não seria necessariamente o vilarejo ou as pequenas comunidades, e sim, por exemplo, as casas que vemos no meio de uma montanha ao passarmos pela estrada. Essas situações de isolamento, para nós que estamos acostumados com a dinâmica urbana, nos coloca um questionamento sobre por que e como alguém foi parar justamente ali. Se a cidade é uma aglomeração teoricamente funcional e pensada (seja ela grande ou pequena); a não-cidade é, dentro dos princípios de funcionalidade e planejamento, aleatória.
Ao longo das viagens percebi que as casas isoladas em topos de monta-
nha, só parecem aleatórias se vistas de longe. Ao chegar mais perto, vemos que por mais isoladas que estejam, fazem parte de algum contexto. Todos tem uma história e motivo para estarem aonde estão e não há porque deduzirmos que a aglomeração das cidades é menos arbitrária do que os isolamentos da não-cidade. Perguntar “por que aqui?” para essas pessoas, acaba nos forçando a perguntar “por que aqui?” para nós mesmos.
1. Cidade e modernidade
Se queríamos mapear esse lugar-nenhum, ou essa não-cidade, encontra-
mos de fato lugares com diferentes gradações de urbanização nada homogêneas. Um sem luz, nem telefone, nem estrada, mas lotado de turistas no verão, outros com com telefone, luz e água, mas com grandes problemas de assistência do governo. Alguns fazendeiros pequenos extremamente engajados na vida rural, outros praticando o mínimo da plantação de subsistência e que não se identificam
com a vida da roça. Chamo então de não-cidade, todo esse conjunto que se coloca fora da urbe - mesmo que esse limite seja pouco evidente.
Os conceitos de “modo de vida contemporâneo” e “modo de vida urbano”
são intrinsecamente relacionados. Em sua obra “As consequências da Modernidade”(1990), Anthony Giddens descreve o período que ele chama de modernidade tardia, que se desenvolve a partir da desilusão com o modelo da sociedade industrial (moderna). Algumas características fundamentais desse período, para o autor, são a liberação das tradições locais em prol de um pensamento mais global e o desenvolvimento de mecanismos de desencaixe: As fichas simbólicas (como por exemplo o dinheiro), e os sistemas peritos (setorização e especialização do conhecimento). Os mecanismos de desencaixe são ferramentas que dispõe de uma confiança a priori por parte dos indivíduos. Essa confiança permite “alongar” as trocas (de informação, mercadoria, serviços), isso significa que a confiança na modernidade tardia se desloca do local da tradição e das relações pessoais diretas, para meios de legitimação universais, abstratos e independentes do sujeito.
O interesse de inserir aqui, ainda que superficialmente, certos aspectos
dessa análise de Guiddens é demonstrar que essa caracterização da modernidade tardia, da contemporaneidade, é mais claramente evidente não apenas na cidade, mas na metrópole. Descrever a contemporaneidade, seus mecanismos e requisitos é, muitas vezes descrever a metrópole. As outras formas de organização no espaço, como as pequenas comunidades, as tribos, o vilarejo, a vida no campo e a vida em lugares isolados, não é levada em conta nessa caracterização do contemporâneo. Diante dessa descrição da modernidade, as outras formas de ocupar o espaço aparecem como resquícios de um passado fadado a acabar. Os locais que o tempo presente ainda não alcançou.
Essa perspectiva primitivista expõe, certamente, um ponto cego no pen-
samento sobre o contemporâneo. A experiência da cidade - e mais especificamente da metrópole - é o default, o ponto de vista neutro, a experiência da modernidade em si. Todo resto é um ponto fora da curva, o exotismo, o transitório.
O que justifica pressupor que todos os povos tendem nessa mesma dire-
ção?
2. A não-cidade e o passado
Se a cidade é a expressão ou o produto direto da modernidade, a não-
cidade acaba se tornando o passado. Na fala de Francisco, o artesão de facas, ele opõe claramente o lugar onde mora à cidade. Vemos no seu discurso a cidade
como um futuro (deliberado ou compulsório) que acaba tomando o lugar da vida que ele leva, como se ela não coubesse mais nas exigências contemporâneas. Suas histórias são exemplos muito claros do que mencionei acima sobre a relação inseparável entre o atual modelo de cidade e a vida contemporânea. Francisco se classifica como o último dos habitantes originais do lugar. O único cuja família esteve lá desde sua época colonial, o único detentor da memória local. Os demais foram embora para a cidade e em breve vai chegar sua vez de ir também, por mais que ele não queira. Existem grandes problemas de locomoção no local onde mora. O alagamento frequente da estrada de terra nas estações de chuva o impossibilita de sair para vender suas facas, já chegou a ficar mais de vinte dias sem poder sair de lá. E atualmente, o único local que consegue vender seu produto, é na cidade.
Para Francisco, sua mudança para a cidade implica na desaparição de uma
cultura inteira que vai embora junto com ele, que já não cabe mais no presente.
A melancolia de Francisco é muito familiar para nós da cidade. A real não-
cidade, “autêntica”, que não sofre influência alguma do meio urbano, ainda tem espaço para existir?
O que somos forçados a nos perguntar, entretanto, é o que significa essa
autenticidade? Ela existe na prática, ou é um modelo ideal? Nas origens da região onde mora Francisco, o papel da cidade como provedor era ocupado pela casa grande e agora está falido e vazio. Aquele espaço se construiu em torno de um centro que já não existe mais. A terra fazia parte de um engenho de café, que, ao longo dos anos que seguiram a decadência do modelo escravocrata latifundiário, foi sendo dividido em lotes e reduzido em tamanho, poder e capacidade de centralização. Sua casa não ficava originalmente “no meio do nada” e sim ao lado da casa grande. Ela fazia parte de um modelo de infra-estrutura muito bem estabelecido.
Em que medida é possível pensar em resgatar sua existência original?
O que eu penso é que talvez não seja. Acredito que nunca deve ter sido
possível fazer uma distinção clara entre o que é a cidade e o que absolutamente não é a cidade, mas, o que posso afirmar é que, no presente e nos locais por onde passamos, essa linha de divisão não é clara. Colocar a não-cidade como um modelo do passado é ignorar e simplificar o modo de vida de uma parcela da população brasileira - a que não está nas grandes cidades.
3. Limite ideológico da cidade
A dificuldade de traçar os limites claros da cidade, se deve, em parte, pelo
fato da cidade não ser apenas um local, mas um símbolo que representa e modela o pensamento contemporâneo. Sua influência não se restringe aos seus limites físicos.
A cidade também é a civilização. Seu Saturnino, que mora na praia, des-
creve o desenvolvimento que ocorreu nas proximidades da sua casa a partir da implementação do turismo como “a civilização feita pelo pessoal da cidade”. Atualmente nos arredores existem serviços básicos de educação e saúde, além dos turistas que visitam o local no verão. A junção de todos esses elementos que, para Saturnino, caracterizam a chegada da civilização, partiram do homem da cidade e atingiram o homem do campo, de forma que o caráter “civilizado” chegou ali também. Saturnino diz que “o índio mesmo, autêntico, não existe mais, agora são todos civilizados”.
Se nas grandes cidades o limite físico de suas fronteiras já é bastante flui-
do (os subúrbios, pequena e grande São Paulo, as cidades satélites, etc) o limite da influência simbólica do modelo de pensamento da cidade - que muitas vezes se aproxima da idéia de civilização - é impossível de ser traçado.
O mais impressionante sobre a influência da cidade/modernidade é que
ela consegue expandir até para os que estão fora dela, essa percepção de que o futuro, de fato, é a modernização urbana. Pressupõe- se que existe um modelo único de civilização que deve vir sempre da cidade. E que existe um sentindo no qual se deve progredir.
4. A não-cidade
Surge desta percepção, a dificuldade em nomear a situação dos sujeitos
dessa pesquisa; não se trata exclusivamente de moradores do campo, nem do ambiente rural; e sim de tudo que não é a cidade, mesmo que não saiba traçar linhas fixas sobre o que isso significa. Decidi abrir mão da possibilidade de uma não-cidade “autêntica” e tentar, a partir da experiência empírica, entender o que se pensa sobre como é morar nesses outros contextos. Levando em conta tanto o que os aproxima da nossa perspectiva quanto o que se distancia dela.
5. Cidade institucionalizada x não-cidade orgânica
A cidade tem uma gerência, um planejamento geral, possui normas de
funcionamento. A infra-estrutura oferecida, assim como as práticas, são institucionalizadas, impessoais e maiores do que os indivíduos. Fora da cidade, ou cada indivíduo se ocupa de sua propriedade, ou as comunidades se organizam entre si para se auto-gerenciarem.
Paulo mora em Joaquim leite há pouco tempo e pretende sair daquela
casa assim que encontrar alguma outra mais próxima do trabalho, mas ao mesmo tempo é dirigente do vilarejo. Tem um envolvimento importante com a cidade. Do ponto de vista político, da cidade como um órgão que deve prover algo aos cidadãos, Paulo é muito envolvido na vida urbana. Ele tem encontros periódicos com o prefeito local e pleiteia suas necessidades através do aparelho estatal. O transporte escolar, a construção de um viaduto sobre a linha de trem, a realocação de um centro de tratamento para dependentes químicos.
A comunidade da Ana, por outro lado, não tem um representante. Du-
rante muito tempo resolveram em conjunto, de forma orgânica, problemas como água encanada e transporte de compras. Quando o Estado começou a se fazer mais presente com a chegada do ônibus para transporte escolar e um novo sistema de encanamento de água, isso apareceu de certa forma como um conflito. Se a água para de funcionar, os moradores não sabem mais o que tem de fazer para concerta-la, pois prefeitura é muito lenta em seus procedimentos e impede que os próprios moradores cuidem da situação.
Segundo o tipo de organização comunitária já existente, as influências do
governo tem um impacto diferente. Já no caso da Leila e do Francisco, ambos parecem viver, para fins de organização local, de forma bastante isolada dos seus vizinhos, não pensam em recorrer nem a comunidade local, nem ao Estado para tentar resolver problemas cotidianos de transporte e acesso a serviços.
6. Arquitetura da intuição e da necessidade
A planta residencial é pensada a partir do modelo padrão de família.
Quantos quartos e banheiros necessitam, quantos cômodos e quais as funções específicas de cada um. Numa cidade, os interesses dos habitantes são diversos. Tudo é constantemente normatizado e vigiado na tentativa de conciliar os diferentes interesses de uma enorme quantidade de moradores aglomerados em um
espaço restrito.O que acontece nas formas de habitar quando não há os constrangimentos impostos pela cidade?
Fora da cidade esses constrangimentos funcionais são menos presentes.
Ao mesmo tempo, isso não significa que não existam idéias fixas sobre “como fazer”, “como ocupar o espaço” e “como morar”.
Muitas vezes se impõe formas tradicionais ou intuitivas. Dona Ana, por
exemplo, quando decidiu ampliar sua casa, construiu uma extensão geminada à casa antiga. A nova construção é muito semelhante à antiga no que diz respeito às aberturas e à forma externa. Construíram a casa baseada em como viram que uma casa é feita.
Saturnino construiu as paredes de sua casa sem que encostassem no teto,
porque é assim que sempre se construiu uma casa quando não se pode contar com a eletricidade, isso economiza velas. Ao mesmo tempo, por estes não serem modos especializados de projetar, e sim formas que partem dos conhecimentos do próprio indivíduo/morador, há mais espaço para que surjam maneiras intuitivas e diversas de construir e utilizar determinados espaços. Paulo e Catarina, que moram numa casa com muitos cômodos - todos com camas - dormem cada dia em um quarto. Construíram um galinheiro na janela do banheiro, o que evita que as galinhas sejam roubadas e não exige maiores reformas. Na oficina do seu Francisco, tudo é feito a partir das suas necessidades específicas, desde as ferramentas para manipular o couro - que ele mesmo produz - ao ventilador feito com a engrenagem de uma máquina de lavar que ele montou por precisar de um vento muito potente para retirar a poeira produzida no processo de polimento dos cabos das facas.
As adaptações que pude ver nas casas visitadas, partem de uma intuição
muito descompromissada e sensível. O modo de planejar e utilizar os espaços são específicos e subjetivos para a necessidade de cada morador, o que me fez questionar vez ou outra a funcionalidade que nós arquitetos tanto prezamos. Não são condições perfeitamente funcionais do ponto de vista arquitetônico, mas funcionam muito bem. Nas minhas anotações, chamei as peculiaridades que encontrei nas casas de “adaptações”. Hoje vejo que esse não é o nome correto. Essas pessoas não estão sobrevivendo à condições adversas as quais precisam se adaptar. Apenas seguem uma linha de raciocínio distinta onde o institucionalizado, a palavra do especialista, não é uma moeda de troca tão recorrente. Pensar a partir das necessidades pessoais, das manufaturas possíveis, da tradições ou dos costumes locais, parece mais óbvio do que pensar a partir dos padrões de funcionalidade.
7. Cidade e convivência
A cidade responde a uma vontade e a uma necessidade de aglomeração.
É teoricamente planejada para a convivência e a troca entre seus habitantes em espaços públicos de convivência. A não-cidade, por não ser gerenciada ou planejada, não responde a essa pergunta. Uma estrada, mesmo de terra, não tem intuito de ser espaço de convivência, é apenas meio de passagem. Isso não significa que não existam espaços de convivência na não-cidade, mas são espaços com finalidades específicas: o bar, a escola e a igreja. Percebi que esses três espaços são os únicos que conseguem existir independentes da proximidade com qualquer cidade.
Leila, que já foi professora na Serra do Funil, vilarejo localizado a 15 km de
sua pousada, contou que as crianças de lá gostam muito de ir a escola porque é o momento que elas têm para conviver com outras crianças e com outras pessoas que não a família.
Ao mesmo tempo sabemos que, nas cidades, apesar de todo planejamen-
to, nem todo espaço público consegue ser tornar de fato um espaço de convivência. Mais do que isso, vemos surgir diversos projetos de auto-exclusão e auto-segregação, como os condomínios residenciais fechados. Esse movimento contrário ao princípio de convivência da cidade, leva a pensar que talvez essa proximidade intensa das outras pessoas e da vida pública surja também, em alguns indivíduos, um desejo de demarcar de forma cada vez mais firme o seu espaço privado.
8. Público - Privado
Do quarto de dormir, para o restante do apartamento. Do apartamento,
para o andar. Do andar, para o prédio, para a quadra, a vizinhança, o bairro, a zona, a cidade. A transição do privado para o público nas cidades é gradual, impessoal e pré-estabelecida. Na não-cidade, nada força essa demarcação de limite. O fim do seu espaço próprio não é necessariamente o início do espaço do outro. Não literalmente, já que o limite de terras é um problema concreto, como no caso de Saturnino, que está em conflito com os fazendeiros que privatizaram os caminhos que ligam sua propriedade à estrada mais próxima. Ou o caso da Val, que faz parte do MST e almeja um pedaço de terra.
A diferença está na percepção de quão rígido é o limite entre o público e
o privado, o que pode ser feito em um e no outro. Talvez o isolamento encoraje uma flexibilização desses limites: Leila conta que no início da pousada ela se pre-
ocupava muito em ter um espaço que fosse só dela, em deixar a sua própria casa o mais confortável e completa possível. A medida que começou a se sentir só em um lugar isolado, teve o impulso de desmontar sua casa e espalhar os móveis pela pousada. Começou a querer que o terreno inteiro fosse sua moradia. “Quando a gente se sente só, acaba que a gente se dá mais”.
Saturnino que também tem várias construções dentro do seu terreno,
apesar de morar em apenas uma das casas, diz que se sente tão à vontade no bar, quanto na sua casa. Nada demarca a divisão entre seu terreno e a praia pública. Nos locais que conheci, a ausência de um exterior dinâmico, faz com que os moradores sintam menos necessidade de reforçar as divisões entre público e privado. O exterior imediato passa a ser uma extensão da casa.
9. Cidade excludente
As aptidões exigidas de um morador da cidade são diferentes daquelas
exigidas de um morador do meio não urbano. Dona Ana, que mora na mesma casa desde que nasceu, não consegue fazer nada sozinha na cidade por não saber ler as placas nem os números dos ônibus. Isso faz com que precise sempre de um acompanhante a cada vez que tem que ir para a cidade. Para evitar o sentimento de dependência, Ana prefere não sair da sua vizinhança.
Se foi estabelecida a idéia de que a cidade é o futuro, que tipo de possibi-
lidade de futuro ela oferece para essas pessoas?
Na realidade, da mesma forma que dona Ana fica perdida na cidade, por-
que ela não aprendeu as aptidões teoricamente necessárias para morar e sobreviver no espaço urbano, os habitantes dos centros urbanos em sua grande maioria também não aprenderam as aptidões necessárias para a vida na não-cidade. Não sabem, por exemplo, que uma espécie de coco muito abundante nas árvores do centro de Minas serve para comer, fazer gordura, óleo e sabão - como Dona Ana faz. Não sabem escolher um terreno como o seu Franciso, que tem muito orgulho de ter a melhor terra da região, apesar de ser um dos menores fazendeiros.
Entretanto, da própria valorização da cidade e desvalorização da não-ci-
dade se desdobra uma hierarquização desses dois tipos de saber. O saber da cidade é O Saber oficial, enquanto o saber do campo é uma técnica específica. Aprender a cidade é sinal de civilização, de capacitação; enquanto o conhecimento sobre o campo não é nem mesmo concebido como um processo de aprendizagem, mas como algo que acontece naturalmente àquelas pessoas pelo contato com o meio.
Não deter o saber da cidade é motivo de desvalorização do indivíduo. Val,
a entrevistada que faz parte do MST, expõe essa questão quando diz que é preciso desafogar as grandes cidades, pelo fato delas não darem oportunidade justas às pessoas que não possuem formação.
10. A não-cidade excludente
Ao mesmo tempo, a cidade oferece uma infra-estrutura (serviços públi-
cos, transporte, etc) responsável por gerar diversas possibilidades que faltam na não-cidade. Dona Ana, por exemplo, menciona que não existe em seu vilarejo, nem nas duas pequenas cidades próximas, creches ou asilos públicos. Percebemos questões semelhantes de falta de infra-estrutura que acaba gerando exclusão, também no exemplo do Francisco, que não tem como vender suas facas devido a problemas de mobilidade. Dona Ana, que apesar de ter excedentes na sua produção de leite, queijo e ovo, pela falta de acesso ao transporte, não pode vende-los nas cidades vizinhas.
Ouvindo as histórias dos entrevistados, é difícil não pensar que a não-ci-
dade precisa de mais auxílio e mais infra-estrutura. E que, principalmente do ponto de vista político, faz parte das obrigações do Estado chegar até esses lugares. A questão é que esse pensamento desvaloriza toda estrutura existente nessas não-cidades, suas formas de organização e os conjuntos de saber que vigoravam anteriormente à intervenção estatal.
Os habitantes de Curral Queimado, local onde Ana mora, vivem até hoje
de trocas. Os moradores trabalham uns para os outros utilizando as diárias de serviço como moeda de troca. Mas a partir do momento em que começou a chegar luz, a água, as antenas de telefone (com suas contas no fim do mês), o dinheiro passou a ser fundamental - e o contato com a cidade e seus empregos assalariados também.
Isso não quer dizer que a chegada dos serviços básicos de infra-estrutura
tenha sido negativa, é claro. Para a maior parte dos entrevistados, e principalmente para Ana e para Saturnino, a vida nos últimos anos melhorou bastante. Entretanto, nesse processo de “civilização”, de expansão da forma de viver urbana, das escolas públicas pautadas no conhecimento acadêmico e na formação de futuros habitantes da cidade, se reforça também a desvalorização dos recursos que já existiam nesses lugares. A expansão da infra-estrutura poderia ser acompanhada de uma preocupação com a pluralidade de necessidades e valores.
Novamente podemos relacionar essa questão com a fala da Val sobre a
saturação das cidades e a necessidade de levar pessoas para o campo. Valorizar
o trabalho no campo e redistribuir a terra, são ideais que fazem parte uma luta muito coerente do MST, pautada na percepção de que as cidades não dão conta de alcançar todos os seus habitantes com a formação necessária para se sobreviver dentro dela.
11. Velhice e afastamento da cidade
Remetendo à questão da oposição entre a infra-estrutura institucional da
cidade e a estrutura mais comunitária dos lugares afastados, a velhice ocupa um papel um pouco diferente no campo. Tanto no que diz respeito a percepção mais acentuada da perda de capacidade física em um contexto de trabalho majoritariamente braçal, mas também no que diz respeito ao desamparo pela falta de saúde.
A companhia, as relações, são fundamentais para que a pessoa continue
levando a vida num lugar afastado depois da velhice. Dona Ana, por exemplo, almeja permanecer em sua casa até morrer. Mora com o marido e um dos filhos, em uma comunidade que é quase inteiramente familiar, onde todos servem de apoio e suprem suas necessidades de segurança e saúde.
Já Saturnino, que vive em uma região onde não há uma comunidade local
forte e presente, mora sozinho em sua casa e entende que está fadado a ir para a cidade, diz não ter mais idade para viver naquele local. “Que que eu vou ficar fazendo aqui, minha filha? Vou fazer o que? Já cansando, ficando velho, aí não dá. Eu tenho que sair pra junto da cidade (...)Que a dificuldade, a dificuldade é a doença. (...) Uma hora que der um aperto que eu vou dar no telefone, quem vem me acudir na hora aqui? Deve de ter uma pessoa nem pra fazer pelo menos um chá pra acabar de matar o bicho. Num é mesmo? E na cidade não. Na cidade sentiu uma dor na unha tem a tesoura alí na frente que corta. Ein? Aqui é difícil.”
12. Isolamento e solidão
Esse último ponto, tange uma questão que me interessou desde o prin-
cípio do trabalho, antes mesmo de fazer as viagens. Uma casa no meio do nada é um símbolo muito forte da solidão. Será que se sentir sozinho em meio a cidade é a mesma coisa que se sentir sozinho em um lugar isolado? A condição do isolamento físico, aumenta a sensação de solidão?
Como já foi explicitado, percebi que há uma diferença bastante concreta e
pragmática no que diz respeito a dependência que se tem do outro (em questões de saúde e outras necessidades básicas) quando as instituições são menos pre-
sentes. Entretanto, não foi apenas nesse campo mais concreto que percebi essa diferença. Os dois entrevistados que moram sozinhos em suas casas: Saturnino na beira do mar e Leila em sua pousada na Serra do Funil, deram descrições interessantes sobre o sentimento de solidão e a relação com o espaço em torno de si.
Saturnino, que passou a viver sozinho depois que seus filhos saíram de
casa e sua esposa faleceu, passa o dia todo sozinho quando é baixa temporada. “Quando a pessoa é acostumada a criar filho, tem aquele tanto de gente é de manhã, é meio dia, é de tarde, é toda hora cheio de gente, aí ficar sozinho dá um pouco de pavor na pessoa (...) Ô meu deus! De noite, menina, ninguém vem, só vê o mar zoar. Se prestar atenção não tem, só vê o mar zoar. For botar sentido nesse barulho ele num pára, hora nenhuma. Pra mim parece que nem existe. É, parece que num tá nada zoando nos ouvidos. Que não tem nada.”
Leila, que pensa muito sobre a questão da solidão, percebe uma diferença
muito clara entre o tipo de solidão que sentia na cidade e a que sente ali. “Porque as pessoas falam pra mim que ficam só: “Ah, eu também fico só”. E de repente batem na porta pedindo um pouquinho de leite pra fazer um purê. Então isso não é estar sozinho, né? Você tem companhia. Você desce, você vê gente. E aqui você tá realmente só .(...) Eu achava que tava surda. Porque aqui realmente, assim, eu tinha essa sensação de que alguém me deixou assim perdida no espaço, que eu não ia ver ninguém.“
13. Confrontamento com a Imensidão
Acredito que haja alguma relação entre a forma como as pessoas que co-
nheci descrevem a solidão e o fato de estarem sozinhos em meio a natureza. Ser constantemente confrontado com essa imensidão gera uma percepção distinta do espaço e de si. Se por um lado concluímos que a não-cidade não é aleatória, nem perdida em meio a “lugar-nenhum”, por outro, percebemos que nessas descrições subjetivas do sentimento de solidão aparece justamente a sensação de se estar no meio do nada.
A imensidão da paisagem apareceu em alguns momentos no que diz res-
peito a solidão, mas também, de forma menos opressiva, como incentivo à contemplação e à reflexão. Paulo, por exemplo, olhando para o céu e o sol atrás de uma nuvem, começou a descrever a sensação que lhe causava olhar aquela paisagem. “Uma tarde...a tarde é que é legal. Quando vocês chegam, assim...eu gosto de chegar numa tarde. Eu sento, eu gosto. Eu morava numa casa, morava na roça. Tinha uma pedreira. Então eu ficava assim na tarde vendo aquela paisagem até ela
sumir. Mas que lindo que é, não é? Porque você fica sossegado, sem perturbação nenhuma. Em um lugar assim a memória vai...vai entrando.”
Mais do que o sossego e o silêncio, parece ser a imensidão do entorno
que cria esse estado de espírito, que envolve ao mesmo tempo uma sensação de impotência, prazer e calma. O confrontamento com um espaço imediatamente exterior a casa, de extrema força e amplitude, proporciona um sentimento de apreciação que coloca o espectador num estado de espírito distinto consigo mesmo e com o espaço. Essa experiência foi o que me pareceu mais marcante e poderoso durante o percurso da viagem.
Essa relação com o espaço que é tão provocativa para o indivíduo, seria
uma exclusividade da não-cidade?
14. Cidade como segunda natureza
Cabe aqui introduzir uma outra idéia sobre a metrópole, a idéia de que
ela funciona como uma segunda natureza. Como na lógica do criador e da criatura, onde a partir de um certo ponto passa ser papel do criador adaptar-se à sua criação, as cidades, principalmente as de grande porte, acabaram por atingir um tamanho nível de autonomia, simbólica e pragmática, que as tornam organismos com vida própria. Se a princípio a cidade foi um produto consequente das necessidades de sobrevivência (econômica, física, social) do homem, ela transbordou esse propósito e hoje se apresenta como um ecossistema independente. Uma segunda natureza, que, como a primeira, é ao mesmo tempo hostil e frutífera ao homem, e muito maior do que ele, a qual ele precisa se adaptar como meio sobrevivência.
15. Similaridade dos extremos.
Se partirmos dessa visão da metrópole como um organismo indepen-
dente, em certa medida, de seus habitantes, compreendemos que uma paisagem urbana pode parecer tão incomensurável, forte e incontrolável quanto uma paisagem natural. E um observador pode se sentir tão impotente face a paisagem proporcionada pelo vão do MASP, por exemplo, vendo a imensidão dos prédios onde mora uma imensidão de gente a se multiplicar ao infinito, quanto face a um mar tempestuoso e incontrolável. O impacto da escala e o confronto com a imensidão vêm da mesma ordem nesses dois exemplos aparentemente opostos.
Talvez o momento em que a metrópole mais se aproxime do campo seja
aquele em que ela é mais opressivamente uma metrópole. O momento em que ela é capaz de representar na paisagem toda sua qualidade de organismo independente, cujas dinâmicas são inalcançáveis e inapreensíveis pelo indivíduo que nela habita. É aí que a paisagem urbana, como a natural, faz espelhar no homem que observa, a sua pequenez e sua individualidade.
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