TERRITÓRIO DA LOUCURA O Complexo Hospitalar do Juquery
TERRITÓRIO DA LOUCURA O Complexo Hospitalar do Juquery
Gabriela Mascarenhas Piccinini Orient. Profa. Dra. Monica Junqueira de Camargo FAU USP - Dezembro / 2016
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, à professora Monica Junqueira pelas longas horas de conversas e orientações tranquilizadoras ao longo desse ano. Às professoras Beatriz Kühl e Sabrina Fontenele, não só por aceitarem o convite de participar da banca deste trabalho, mas também por terem sido fundamentais para minha formação durante esses anos de estudo. A Pier Paolo Pizzolato também pelas informações precisas e por todo o material gentilmente cedido. À Renata Antonialli por toda a ajuda e apoio durante todo o ano. Também a todos meus professores e colegas por terem feito dessa faculdade um lugar tão inspirador. Aos amigos, tanto aqueles que continuarão comigo, como aqueles que já não estão mais, obrigada também por tantas horas de diversão, festas, viagens, trabalhos e também dificuldades. Em especial, obrigada Aninha Mamede, Bruna Dedini, Bruna Sato e Gustavo Wierman por terem me acolhido nessa grande cidade cinzenta e por todos esses anos de amizade inabalável. Sem vocês esses anos não teriam sido os melhores. Já a minhas irmãzinhas Beatriz Alcantara, Mariana Vetrone e Laura De Stefani, que me acolheram em uma outra grande cidade terracota e tiveram um grande papel na formação de muitas ideias para esse trabalho, deixo aqui meu Grazie Mille. A toda minha família, meu irmão, tios, primos e também agregados, obrigada pelo apoio. Mas, sobretudo, agradeço aos meu pais, Carla e Fabio, por esses anos de dedicação e incentivo. Se alguém merece mesmo agradecimentos, são vocês. 5
RESUMO
1. Da Luta Antimanicomial, surge a Reforma Psiquiátrica, que consiste num conjunto de estratégias inclusivas e libertárias que propõem que os sujeitos que sofrem de transtornos sejam incluídos na sociedade, através de ações que redirecionam o modelo assistencial, convocam a extinção dos manicômios e reforçam o cuidado desses pacientes em seu território de vinculação. 2. Desinstitucionalização é uma expressão amplamente utilizada na área da psiquiatria e dos direitos humanos como sinônimo da ação de retirar alguém ou retirar-se de forma permanente de uma instituição de correção, de assistência ou de cuidados de saúde.
A história dos espaços de tratamento da Loucura é marcada por práticas manicomiais abusivas. No Brasil, essas estruturas de controle espalharam-se pelo território a partir do século XIX, difundindo consigo uma tipologia arquitetônica baseada em argumentos científicos de aspirações higienistas. Felizmente, a partir da reforma psiquiátrica1 brasileira e das ações de desinstitucinalização2 do indivíduo, esses grandes conjuntos edificados esvaziaram-se deixando para trás apenas a memória de um passado indesejado. Por outro lado, esses edifícios compõem um registro de uma período histórico importante, mesmo que sombrio, sendo componentes importantes no entendimento das práticas coletivas e da influência da medicina higienista na formação dessa sociedade. Além disso, o desenvolvimento dessas tipologias trouxe grandes inovações e particularidades importantes para a história da arquitetura e do urbanismo, constituindo um patrimônio material significativo. Partindo do pressuposto de que o uso qualificado desses edifícios é vantajoso para a sua conservação, pretende-se discutir o futuro uso dessas estruturas que tornaram-se obsoletas e o seu papel atual como equipamento público, formador de uma memória coletiva.
O Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha, foi escolhido como estudo de caso, por ter se formado como uma instituição exemplar e representar a instalação do modelo científico de tratamento psiquiátrico no estado de São Paulo. Sua grande variedade de edifícios e o fato de ainda estar em funcionamento – mesmo que em processo de desativação – permitem identificar a evolução das intervenções arquitetônicas. O complexo foi também um vetor de urbanização. A cidade de Franco da Rocha surgiu a partir do hospital e da estação de trem ali existente. O hospital tornou-se em primeiro momento um importante espaço de confluência dos cidadãos com os mais diversos perfis. Além disso, as recentes discussões acerca do futuro de seu extenso território são interessantes para a análise da proposta aqui apresentada. Um extrato do conjunto edificado foi tombado recentemente e antes que sejam feitas propostas de ocupação, uma pergunta deve ser respondida: como preservar a memória do espaço asilar e ao mesmo tempo desconstruir o estigma em torno dos transtornos mentais.
SUMÁRIO
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Introdução
18 20 30 40 48 58
A Fazenda Juquery Os primeiros espaços especiaizados O Asilo Colonia O Hospital Psiquiátrico O Depósito Humano O Hospital Tecnológico
72 74 82 88 96
Diagnósticos Os espaços da loucura O estigma da loucura Reconhecimento e Tombamento Mapas de usos atuais
98 102 106 124 132
Uma Proposta Programa Organização Espacial Os Museus da Loucura O Museu da Mente no Juquery
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Considerações Finais
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INTRODUÇÃO
O trabalho desenvolvido, iniciou-se com uma aproximação da problemática que envolve a produção arquitetônica dos espaços de tratamento de saúde mental no estado de São Paulo e seus impactos na sociedade. Por se tratar de um assunto muito amplo, foi necessário entender o que são esses locais e sua representatividade em cada época. A contextualização histórica foi, portanto, o foco dos trabalhos do primeiro semestre. Procurou-se inicialmente uma bibliografia que falasse especificamente de transformações arquitetônicas e, posteriormente, passou-se a tentar compreender as relações políticas que envolvem a adoção de alguns métodos e espaços para o tratamento da loucura. Pode-se perceber que a própria instalação da psiquiatria no Brasil esteve diretamente ligada a princípios higienistas e a políticas sanitaristas. Foi feito um levantamento preliminar das estruturas que seguiam o modelo manicomial e também dos equipamentos que compõem o sistema de saúde mental paulista hoje. Para isso, houve um exame bibliográfico sobre a evolução dessas instituições, citando o texto de Hugo Segawa3 e o doutorado de Pier Paolo Pizzolato.4 Foi usada também bibliografia consagrada sobre a evolução da arquitetura hospitalar, como o livro de Lauro Miquelin,5 além de trabalhos sobre o desenvolvimento urbano paulista, como aqueles de Eudes Campos6 e os de Iná Silva,7 que contemplam o desenvolvimento do Juquery e de Franco da Rocha. Não só os manicômios, mas também outros tipos de equipamentos compuseram uma extensa rede de “saneamento do Brasil”, em que se apostava na medicina para sanar os problemas de de-
3. SEGAWA, Hugo. Casa de Orates, 2002 4. PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. O Espaço Arquitetô-
nico como Elemento Trapêutico: a Função da Ambiência na Recuperação e na Qualidade de Vida do Paciente Internado, 2014
5. MIQUELIN, L.C. Anatomia dos Edifícios Hospitalares. , 1992. 6. CAMPOS, Eudes. Hospitais
paulistanos: do século XVI ao XIX. INFORMATIVO ARQUIVO HISTÓRICO DE SÃO PAULO, 2011. 7. SILVA, Iná Rosa da. Preser-
vação do Juquery: território e arquitetura, 2011
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8. Philippe Pinel foi um psiquiatra francês, considerado o pai da psiquiatria a partir da publicação de
Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie em 1801, em
que defendia a separação dos doentes mentais de outros marginalizados que ocupavam as instituições de saúde e as cadeias públicas. Jean-Étienne Dominique Esquirol foi também um psiquiatra francês. Entre vários outros notáveis trabalhos cunhou o termo “alucinação”. Foi discípulo de Philippe Pinel, sucedendo seu mestre como chefe do Hospital de Salpêtriére em Paris.
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linquência e insalubridade das cidades brasileiras. Durante o século XIX a pratica psiquiátrica se confundiu muito com a arquitetura. O tratamento para doenças mentais se baseava na retirada do doente de seu ambiente, e leva-lo para uma atmosfera completamente higienizada, como se o tratamento moral ali implementado dependesse mais da ação do ambiente do que da presença do alienista. Com o tempo, essa ligação vai se tornando mais complexa, aparecem novos agentes, técnicas e especificidades. Se no século XVIII as instituições de saúde em geral assemelhavam-se a conventos ou a prisões, no século XX passaram a representar máquinas de curar e atualmente buscam a feição de uma casa. Os hospícios passaram por esse mesmo processo de forma um pouco mais conturbada. Enquanto os hospitais de outras especialidades adquirem alta vocação tecnológica, organizando-se através funcionalidade de seus espaços, utilizando-se da praticidade da verticalização, os hospitais psiquiátricos acabam reféns da própria lógica, aquela de reclusão do desajustado, o que resulta na manutenção de práticas manicomiais, até o fim do século XX, momento em que a situação torna-se intolerável. A partir desse panorama, optou-se por um aprofundamento de um estudo de caso, para nortear melhor a pesquisa. Escolheu-se um dos mais importantes representantes desse processo: o Asilo Colônia do Juquery. Fundado em 1889 por Franco da Rocha, cujo patrimônio edificado atualmente faz parte do Complexo Hospitalar do Juquery. O primeiro projeto para o asilo, feito por Ramos de Azevedo, consegue transmitir, não só na organização dos espaços, mas também na estética das construções, o pensamento de Pinel e Esquirol,8 desenvolvedores de teorias alienistas, de que a insanidade seria curada através do trabalho e disciplina.
No entanto, a maior parte da produção arquitetônica do complexo não ocorre durante a direção de Franco da Rocha, mas na de Pacheco e Silva, quando as terapias biológicas são incorporadas à psiquiatria.9 O Juquery alcançou seu apogeu como centro de pesquisa entre os anos 1920 e 1950, estando a produção do espaço subordinada ainda aos dogmas do alienismo. Desde àquela época, a parte construída mantém praticamente a mesma morfologia que tem hoje, mesmo que o uso de suas dependências tenham mudado bastante. Além da pesquisa sobre a arquitetura, foram também levantadas questões relacionadas ao desenvolvimento da psiquiatria e de suas crenças. Ainda que o trabalho não procure versar sobre as práticas terapêuticas individualmente, seria impossível entender o espaço sem que houvesse uma compreensão das atividades que ocorriam e ainda ocorrem dentro dele. O melhor entendimento das práticas manicomiais do começo do século por exemplo foram bastante importantes, além das questões ligadas à evolução do sistema de saúde mental no Brasil.
9. TARELOW, Gustavo Q. Entre febres, comas e
convulsões: as terapias biológicas no hospital do juquery administrado por Pacheco e Silva (1923 – 1937), 2011. Mapa: Foto aerea da Fazenda Juquery e cidade de Franco da Rocha
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A busca por informações nessa fase da pesquisa foi feita através de livros que explicam a Reforma Psiquiátrica, como o Manuel Desviat,10 além de notícias de jornal, periódicos e principalmente de documentos oficiais, sendo fundamental o Censo Psicossocial realizado pela FUNDAP em 2014. Pode-se perceber que psiquiatria passou por um processo de afirmação como ciência médica e novos métodos de tratamento passam a ser discutidos constantemente. Por outro lado, algumas práticas moralizadoras do começo do século continuaram a existir em paralelo a essas inovações, além de o uso do diagnóstico da loucura para validar a retirada de qualquer indivíduo “indesejado” da sociedade, principalmente em épocas de tensão política. Desde então, surgiram movimentos a favor da extinção desses espaços, o que culminou em uma reestruturação do sistema de saúde mental brasileiro. Esse novo modo de pensar evoca uma mudança radical de viés terapêutico, e consequentemente dos espaços destinados aos que sofrem de distúrbios. Os antigos galpões dormitório dão lugar a estruturas de acolhimento espalhadas pela cidade, deixando assim, uma rede de espaços desocupados pertencentes a um conjunto de bens culturais. A intenção do trabalho é não só aprofundar as análises sobre o Juquery, mas também discutir diretrizes para a futura utilização da emblemática estrutura deixada pelo hospício desativado. Por ser um caso paradigmático, existem vários estudos sobre esse imenso território, mas dificilmente as decisões são tomadas com base na manutenção da integridade do Complexo. Para uma análise mais específica do Complexo, a bibliografia utilizada será baseada principalmente em trabalhos de mestrado e doutorado que versam sobre o caso estudado, como os já citados de Iná Silva e de Pier Paolo Pizzolato.
10. DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica, 2015
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A exposição do trabalho foi, então, dividida em três partes. A primeira apresenta o Conjunto edificado estudado e a descrição de sua evolução no espaço. Para entender expor a cronologia de construção dos edifícios, foi feita uma separação por fases das práticas de tratamento, baseada na cronologia desenvolvida por Iná Silva (2011), sendo que essas fases possuem um tipo de produção arquitetônica diferente: 1.O Asilo Colônia: a imposição do tratamento moral 2.O Hospital Psiquiátrico: a adoção das terapias biológicas 3.O Depósito Humano: a superlotação e a desinstitucionalização 4.O Hospital Tecnológico: as tentativas de humanização do tratamento
Já a segunda parte, tomando a primeira como suporte, buscou entender quais são as carências atuais do complexo e expor as questões levantadas durante a pesquisa. Primeiro esclarecemos as questões colocadas pela psiquiatria atualmente e definimos quais são os espaços que correspondem a esses princípios. Discutimos também a questão da formação da memória coletiva através dos estímulos midiáticos, exemplificando brevemente com a produção cinematográfica comercial. Foi feita também uma ponderação sobre o tombamento do complexo e a questão da preservação. Por fim, tentamos responder se é possível que o Complexo Hospitalar do Juquery continue a exercer sua vocação terapêutica e criar um plano de diretrizes para a devolução desse espaço à sociedade como um espaço público. Também pretende-se avaliar as questões ligadas à memória do lugar e à desmistificação do estigma ali existente. Entretanto, não seria possível em um trabalho final de graduação de arquitetura diagnosticar se aquele é o espaço ideal para qualquer pessoa com distúrbios mentais ou não, visto que esse tipo 16
de análise envolve conhecimentos da área da saúde. Responder as questões do tratamento não está na alçada do arquiteto, além de ser um tema que levanta discordâncias entre os próprios profissionais da área da saúde mental. Também não foi feito um trabalho de documentação edifício a edifício, mas utilizou-se, e atualizou-se, aqueles feitos anteriormente por Paolo Pizzolato (2006) – que traz o contexto da construção de cada edifício, além de desenhos técnicos – e também aquele desenvolvido por Iná Silva (2011) – que levanta também o estado de conservação de cada edifício, com objetivo de produzir subsídios para a preservação do complexo.
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A FAZENDA JUQUERY
OS PRIMEIROS ESPAÇOS ESPECIALIZADOS
Os desvios psiquiátricos, historicamente identificados e generalizados como loucura, são fenômenos muito complexos, uma vez que sua interpretação modificou-se de forma não linear ao longo da história. O conceito de loucura nasce como uma construção social definida a partir de padrões culturais e do que é rotulado como anormal, imoral ou perigoso, cujos espaços de tratamento e mesmo de vida foram – e infelizmente permanecem em alguns lugares - as cadeias e instituições religiosas. No final do século XIX, com o florescer da psiquiatria e o aparecimento da figura do alienista, a loucura é assumida como doença e os locais para seu tratamento marcados então como lugares de exclusão em várias partes do mundo, naturalizando o manicômio como o espaço obvio para os diagnosticados instáveis. Frente ao desenvolvimento social das últimas décadas, a condição de isolamento vem sendo substituída pela tentativa de compreensão e de inclusão. Tais mudanças, altamente ligadas à quebra de preconceitos em geral, à conquista dos direitos humanos e também à evolução da psiquiatria e psicanalise, terão reflexo no sistema de saúde mental e também em seus espaços físicos. A partir do século XIX, instalou-se uma ampla rede manicomial no Brasil seguindo os ideais franceses de Pinel e Esquirol. Com a vinda da família real e a transferência da capital da colônia, o Rio de Janeiro recebeu diversos equipamentos públicos, entre eles o primeiro edifício especializado em tratar da saúde mental instalado no Brasil: o Hospital Dom Pedro II em 1842. Fundado pelo próprio imperador e recomendado pela Co-
Foto: Arquivo Ramos de Azevedo. Fonte: brasiliana.com
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11.CLOQUET,
Traité d’architecture, 1900. pp. 506-607.
Gravura: S. A. Sisson (Parte do Album do Rio de Janeiro Moderno).
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missão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, o “palácio dos loucos” era um monumental edifício com elementos neoclássicos, influenciado pela tipologia hospitalar europeia do século XVII. O projeto de Domingos Monteiro, Joaquim Cândido e José Jacinto Rebello conta com uma planta de base retangular simétrica, com distribuição feita a partir de pátios internos. Foi implantado na praia Vermelha para que o afastamento do centro da cidade e a proximidade com mar colaborassem com as condições de isolamento. Os princípios a serem seguidos em sua construção constavam já na regulamentação francesa de dezembro de 1838: a salubridade, o isolamento a estímulos externos, abundancia de água, possibilidade de separação dos pacientes por gênero, idade e doença, locais para isolamento de pacientes especiais e possibilidade de vigilância constante. Assim, elementos típicos de construções carcerárias, como grades, muros e janelas muito altas, grossas paredes e até torres tipo panótipo - para vigiar os internos durante o banho de sol - contrastavam com estruturas hospitalares e enfermarias, além de muito luxo, elementos neoclássicos e cores claras, tudo para passar ao exilado a sensação de tranquilidade e normalidade desejada. Por outro lado, o edifício carioca recebeu muitas criticas negativas logo após sua inauguração. Apesar de ter seguido muito dos dogmas da arquitetura psiquiátrica descrita por Cloquet11, sua configuração em edifício único ia de encon-
tro ao mesmo tratado, que afirmava ser a forma de dispersão radial dos doentes inútil e a vigilância central desnecessária. A distribuição dos doentes deveria ser feita em edificações com formas alongadas, favorecendo a classificação e observação dos doentes. Segundo Hugo Segawa:
12. SEGAWA, Hugo. Casa de Orates. pp.76.
Na realidade, o prédio do Hospício de D. Pedro II foi vítima de seu próprio pioneirismo (...) A Arquitetura também é uma experimentação tanto quanto foi a Psiquiatria no século XIX. Mas se a aferição de dados e formulação de hipóteses científicas obedecem a uma dinâmica volátil, tal velocidade não é compartilhada pelas construções – e, em muitos casos, a arquitetura espelha uma realidade já anacrônica em relação ao desenvolvimento das ideias.12
Outras cidades passaram pelo mesmo processo de formação da sociedade médica, mirando a corte como exemplo. O modelo hospitalar asilar de longa internação popularizou-se e o manicômio entra para a lista de equipamentos públicos essenciais a todas as regiões que pretendessem desenvolver-se. Com os mais variados programas arquitetônicos, os edifícios representaram não só o desenvolvimento do analista mas também da arquitetura manicomial brasileira. O reconhecimento da psiquiatria como ciência torna, portanto, possível a criação desse espaço especializado. Ainda que algumas instituições, como as Santas Casas de Misericórdia acolhessem os insanos já desde o início do período colonial, não se encarava ali a loucura como uma patologia passível de tratamento. Até então, as famílias com mais recursos mantinham seus enfermos presos dentro de casa, enquanto os mais pobres eram confinados em cadeias ou em instituições religiosas, quando não eram largados vagando pelas ruas, sendo que em todas as opções havia maus tratos. Com o aparecimento desses novos conhecimentos médicos, era de se esperar que os doentes deixassem de ser tratados como indesejados, mas o que acontece é o inverso. O diagnóstico da lou23
13. FOUCAULT, Michel.
Microfísica do Poder, 2015. pp. 39
14. PEREIRA, Lygia Maria França. Os primeiros
60 anos da terapêutica psiquiátrica no estado de São Paulo, 2002, pp.35.
cura também passou a ser usado como argumento para legitimar a prisão de todos aqueles que não seguiam o padrão de comportamento da sociedade. Foi a partir do momento em que esse grupo de médicos ganhou autoridade e poder de internação compulsória, que se tornou um instrumento moralizador da sociedade. Foucault alerta que a história das ciências não é linear e que em vários momentos usou-se de certezas médicas para validar alguns pensamentos, ações e instituições: Não é, portanto, uma mudança de conteúdo (refutação de erros antigos, nascimento de novas verdades), nem tampouco uma alteração da forma teórica (renovação do paradigma, modificação dos conjuntos sistemáticos). O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como eles se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente 13
A despeito do arcabouço teórico, e da valorização científica, nem todos que iam parar nos hospícios eram loucos. Todos os indesejados das cidades poderiam ser internados segundo uma lógica higienista. Na cidade de São Paulo, apesar das tentativas de construção de um aparelho nos moldes do hospício do Rio de Janeiro, a sua execução só acontecerá 50 anos depois. A questão da higiene nas ruas é um problema urbano que a cidade não havia enfrentado até a formação tardia de sua elite cafeeira.14 Até os cemitérios a céu aberto chegaram tardiamente em São Paulo, em 1851, mesmo que a teoria dos miasmas já fosse difundida desde o primeiro reinado. De fato, antes da fundação do maior centro de pesquisa em tratamento da loucura no Brasil, o hospital Juquery, houveram outras ocorrências de asilos públicos na cidade. Esses espaços foram, entretanto, adaptados em locais já existentes, apenas para suprir a necessidade com urgência. 24
Em 1856, o arquiteto-medidor alferes José Porfírio de Lima (c.1810-1887) apresentava uma proposta de reforma do hospício. Pela planta até hoje existente, conservada no Arquivo Público do Estado, constatamos que o hospital era basicamente formado por um sobrado e alguns anexos. Uma longa galeria com 16 cubículos assoalhados, de taipa de pilão e pau-a-pique, com entradas protegidas por um alpendre, estava sendo então proposta pelo engenheiro prático Porfírio para a complementação do estabelecimento. Pelo que podemos observar na planta não estava sendo sugerido nada muito distante de uma espécie de senzala.
Em 1849 o governo provincial, através da Academia Imperial de Medicina, definiu que a Santa Casa se encarregasse dos loucos, que até então eram confinados em celas na cadeia pública municipal. Com a recusa da Santa Casa de São Paulo em acolher esses doentes, o governo provincial se viu obrigado a solucionar o problema e, em 1852, inaugurou o Hospício dos Alienados, entre as ruas São João e Aurora. Mesmo após diversas reformas, a casa não atendia às exigências de um abrigo para alienados e sofria com a superlotação. Em 1862, o Hospício dos Alienados foi transferido para a sede da Chácara do Fonseca, localizada na borda da cidade. O prédio de taipa ali existente teria sido adquirido pelo governo provincial para receber o Seminário de Educandas da Glória, e sofreu diversas reformas ao longo de sua vida como hospício. Ainda é possível perceber algumas das estruturas inseridas na reforma de 1870, já de forte caráter Neoclássico. Entre essas intervenções, é importante salientar aquela de 1874, de caráter urbanístico e feita com recursos provinciais, no governo do Presiden-
Planta: Acervo do Arquivo Histórico de São Paulo Citação e foto retiradas de: CAMPOS, Eudes. Hospitais paulistanos: do século XVI ao XIX, 2011
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15. Segundo Campos: De fato, desde o tempo do Presidente Fernandes Torres (1857-1860), não se executavam tantas obras públicas em São Paulo. No entanto, as obras de iniciativa municipal custeadas pelo governo da Província no tempo de João Teodoro têm merecido um destaque um tanto exagerado e acrítico por parte dos historiadores. Em estudo recente, tentamos demonstrar que a maioria das obras então encetadas mantinham ainda um ranço de improvisação e incompetência técnica, incompatível com a mentalidade burguesa que aos poucos se constituía. 16. RELATORIO apresentado á Assembléa Legislativa Provincial de S. Paulo pelo exm. sr. dr. João Theodoro Xavier, presidente da provincia, 1875. p.37.
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te João Teodoro Xavier de Matos (1828-1878), em que se abre a Rua do Hospício e um grande largo em frente à construção15, a partir da derrubada do antigo Morro do Saibro ou da Tabatinguera com a justificativa de que a elevação, muito próxima da fachada do manicômio, o tornava insalubre, úmido e sombrio16. É importante notar que por mais que essa região seja hoje parte da região central da cidade, na época representava uma área de chácaras. As teorias miasmáticas, somadas ao repúdio da sociedade, mantinham esses equipamentos longe dos centros urbanos e das vistas da população. O edifício cresceu aos poucos, e chegou a ter duas alas laterais (uma masculina e outra feminina) separadas por um pátio central. Essa setorização é uma característica que será muito presente no futuro Juquery. No entanto, mesmo com essas ampliações, o problema da superlotação continuou a assombrar a instituição, que desde então passa a pensar em uma nova sede. São Paulo era uma cidade que estava crescendo espantosamente, devido principalmente a um movimento migratório intenso, e precisaria de um local mais adequado para abrigar seus doentes. No fim do século XIX, passou-se a haver uma exigência de locais que atendessem também a classe burguesa em ascensão já que as antigas casas de beneficência acolhiam sobretudo os mais pobres ou aqueles que eram deixados ali para convalescer mais dignamente. Tais exigências foram altamente cobradas pela sociedade civil, apoiada também pela imprensa. Não só toda a aparelhagem publica passaria então a receber investimentos da câmara municipal, como também vimos crescer muitos dos investimentos no setor privado.
Na planta da cidades de 1881 o hospicio aparece ainda com apenas a ala esquerda construída. Percebe-se também as características do terreno, localizado nas bordas da cidade e cercado de águas correntes. A primeira construçção possuia apenas um lance Detalhe da planta da cidade de São Paulo, executada pela Companhia Cantareira e Esgotos, datada de 1881. Cópia do século XX. Fonte: <http://www.arquiamigos.org.br/info/info20/i-1881.htm>
A planta de 1987 já mostra a rua do hospício aberta e a cidade avançando e conformando o entorno do que viria a ser o 2º Batalhão de Guardas de São Paulo. Até a construção da ala direita, as mulheres foram negligenciadas no hospício, instaladas em areas adaptadas para elas de modo irregular. Durante a abertura da rua, apreveitou-se também para arrasar o antigo Morro do Saibro ou da Tabatinguera, e abrir um largo no local, com a justificativa de que a elevação, muito próxima da fachada do manicômio, o tornava insalubre, úmido e sombrio. Detalhe da planta da cidade de São Paulo datada de 1897. Fonte: <http://www.arquiamigos.org.br/info/info20/i-1897.htm> 27
Corte de uma enfermaria Nightingale de acordo com as descrições de Casimir de Tollet. A arquitetura gótica, com estrtura em arcos ogivais, colabora no alcance de um maior pé-direito, o que contribui também na ventilação e iluminação. Desenho do livro: MIGNOT, Claude. L’architeture au XIX siècle, 1983. Fonte: www.arquiamigos.com
17. PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. O Espaço Ar-
quitetônico como Elemento Trapêutico: a Função da Ambiência na Recuperação e na Qualidade de Vida do Paciente Internado, 2014. pp. 99
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Paralelamente, a chegada de uma nova forma construtiva: a alvenaria portante será, segundo o historiador Eudes Campos, o fator crucial para a modernização de São Paulo. A alvenaria viria ligada a valores como a impermeabilidade, conforto e durabilidade além de permitir a inclusão das exigências higienistas, mas que ainda não apareciam nos escuros e úmidos edifícios de taipa. A própria Santa Casa de Misericórdia de São Paulo só vai ver a construção de seu edifício sede definitivo em estilo neogótico, em 1885. Segundo Eudes Campos, o estilo está mais ligado ao caráter religioso do que à funcionalidade do edifício, além de representar uma linguagem dissociada do estilo colonial ou barroco que eram sinônimo de atraso naquele momento17. Esse complexo já apresentava distribuição em pavilhões e divisão dos pacientes por sexo e tipo de patologias, tal como nos importantes hospitais europeus. O projeto, entretanto, não previa crescimento da instituição, gerando grandes problemas para o seu futuro. Esse modelo de distribuição dos espaços, em geral, seguia uma lógica de grandes enfermarias com pé direito muito alto e elevado número de leitos dispostos perpendicularmente às paredes. O formato de divisão em alas por tipos de procedimento ficou conhecida como modelo Nightingale, homenagem à sua “criadora” a enfermeira Florence Nightingale. Após retornar da guerra da
Criméia, a enfermeira fez um relatório alegando que algumas melhorias de ambiência e organização poderiam diminuir drasticamente a mortalidade por infecções hospitalares, revolucionando a forma de organização dos hospitais, através da racionalização dos espaços como se fossem várias enfermarias independentes, mas que usufruem de um mesmo núcleo de serviços de apoio. Tal sistema de divisão em pavilhões, foi descrito e consagrado por Casimir de Tollet em 188918, pensando em uma arquitetura com viés terapêutico, com ventilação e iluminação colocadas como elementos essenciais no combate aos temidos miasmas. São dessa mesma época, algumas outras instituições seguindo modelos higienistas, como o Hospital de Isolamento (1892-1894) de Inácio Wallace da Gama Cochrane. Esse hospital surgiu devido ao surto de varíola e abrigava pacientes com doenças altamente contagiosas. Nesse caso o estado teria o dever de conter a ameaça de contágio. Essa forma de combater as epidemias continuaria a se aplicar até metade do século. Em São Paulo se instalou uma Rede de Profilaxia e Tratamento da Hanseníase entre os anos 1920 e 193019. Essa complexa rede contou com diversos tipos de edificações e serviços de atendimento. Houve, assim, a proliferação de instituições ligadas a mecanismos de controle. A criação do manicômio foi justificada não só pela sociedade médica, como também estava revestida de valores morais, transformando o louco em ameaça social e ao mesmo tempo, vítima do ambiente degradante da cidade.
18. TOLLET, Casimir.
Les edificies hopitaliersdepouis leur origine jusq’a nos jours. 10.ed. Paris, 1892.
19. UNGARETTI, Adda A. P.; CAPORRINO, Amanda W. Remanescentes de um passado indesejado: os estudos de tombamento dos exemplares da rede paulista de profilaxia e tratamento da hanseníase. Rev. CPC, São Paulo, n.21 especial, p.119-163, 1. sem. 2016. Foto: Fachada da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, 1884. / Arquivo do Museu Augusto Carlos Ferreira Velloso
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O ASILO COLÔNIA
É nesse contexto que o “Asilo Colônia da Sucursal do Juquery do Hospicio de Alienados de São Paulo” vai nascer em 1889. Convidado por Dr. Francisco Franco da Rocha, o arquiteto Ramos de Azevedo desenvolveu um projeto para um asilo central em modelo pavilhonar e mais três colônias masculinas. Dessa vez seria feito um projeto pensado a partir de exigências específicas em uma gleba devidamente selecionada de acordo com os pré-requisitos estabelecidos pelo alienista: afastamento do centro urbano com fácil acesso através do transporte público; vasta quantidade de terras necessárias tanto ao isolamento, quanto para a aplicação dos trabalhos no campo previstos pelo médico; abundância de vegetação, ar puro e fontes de água. Foram escolhidas, assim, as terras próximas à Villa Juquery, onde havia uma parada de trem da São Paulo Railway. Seguindo a combinação de dois modelos de instituição daquele momento, Franco da Rocha apostou na compra de uma grande porção de terras onde funcionaria uma fazenda apenas para fins manicomiais. A instituição nasce ao mesmo tempo como exemplo e experiência da aplicação do “Tratamento Moral”. A ideia era submeter todos os pacientes ao regime da laborterapia, uma filosofia de tratamento que apostaria nas atividades manuais e na imposição do trabalho como caminho para correção do desajustado, uma vez que a produtividade de um indivíduo seria um dos aspectos de sua “normalidade”20.
20. TARELOW, Gustavo Q.
Entre febres, comas e convulsões: as terapias biológicas no hospital do juquery administrado por Pacheco e Silva (1923 – 1937), 2011. pp13
O tratamento moral abrange um amplo leque de dispositivo institucionais que vão desde a reprodução de um ambiente socialmente saneado 31
21. PEREIRA, Lygia Maria França. Os primeiros
60 anos da terapêutica psiquiátrica no estado de São Paulo, 2002, pp.37. 22. Idem Foto: Arquivo Ramos de Azevedo. Fonte: brasiliana.com
até condutas bastante específicas que visam a determinação das doenças. O controle da agitação psicomotora; a higiene do meio; a promoção de exercícios ao ar livre; a ênfase no trabalho agropecuário e manufatureiro; a possibilidade de usufruir de pequenas regalias por trabalhar; a repressão a quaisquer atividades sexuais; a valorização do bom comportamento; o resguardo do decoro; o cultivo dos bons sentimentos e dos bons hábitos; a importância da firmeza serena do alienista e dos cuidados benevolentes dos enfermeiros – tudo faz parte do instrumental terapêutico que objetiva, em última instancia, o resgate dos valores morais que os doentes perderam.21
As tarefas manuais serviriam tanto para incentivar um “habito social saudável”22, como também ajudar no sustento da própria instituição. Durante sua gestão, Pacheco e Silva (1923-1937)
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relata que para garantir a eficiência do tratamento, cada grupo de pessoas recebia um tipo de atividade: às mulheres eram destinados afazeres domésticos, aos homens do campo, trabalhos com a terra e aos vindos da cidade eram dados trabalhos manuais. Franco da Rocha também defendia a aplicação de atividades recreativas, com intuito de dar ao paciente a impressão de vida extra hospitalar. No caso do Juquery o rigor e disciplina aparecem materializados na linguagem arquitetônica. A simetria e a hierarquização estão presentes em todas as partes do complexo, claramente perceptíveis na implantação dos conjuntos de edifícios. Em contrapartida, o traçado orgânico das estradas se deve tanto ao relevo acidentado, quanto à evocação do alívio das paisagem bucólicas. Para a construção das colônias, Ramos de Azevedo toma como modelo o Asilo-Colônia de
23. SILVA, Iná Rosa da. Preservação do Juquery: território e arquitetura, 2011. pp 67. Foto: Arquivo Ramos de Azevedo. Fonte: brasiliana.com
Alt-Scherbitz (1870), na Alemanha, perto de Leipzig, baseando-se no modelo de chalés, com o intuito de evocar a tranquilidade do ambiente rural. Esse tipo de alojamento era destinado principalmente aos doentes crônicos. A primeira colônia foi o primeiro conjunto a ser terminado. A divisão delas em pequenos pavilhões, para maior controle e fácil manutenção do espaço, funciona como protótipo para a forma de organização dos pavilhões do hospital. Esse mesmo esquema é também mantido posteriormente na construção das colônias 2 a 5: Na implantação das 1ª a 5ª Colônia Masculina valeu-se de traçados ortogonais: ao centro desses conjuntos dispuseram-se os refeitórios, num dos seus eixos, as edificações administrativas e de serviços, e no outro eixo, os pavilhões dormitórios.23
Não só o arranjo das construções foram ensaiados, mas também alguns artifícios, como os modelos de grades dos caixilhos. Para os casos agudos, foi projetado o Asilo Central (1901-03), cujo modelo do Asilo de Sainte-Anne de Paris foi seguido à cartilha. O núcleo central constitui boa parte do que é atualmente considerado patrimônio arquitetônico e conserva ainda seus pavilhões e galerias que remetem ao hospital de Paris logo à primeira vista. O projeto original não foi apenas inspirado nos pavilhões parisienses, mas praticamente um tributo, uma versão local do mesmo projeto se tomarmos por base de comparação as duas plantas de implantação.
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a. Foto da 1ª Coônia masculina Acervo Prof. José Parada b. Foto da 2ª Coônia masculina Acervo Prof. José Parada c. Foto aérea Colonia de Alt-Sherbitz, 1920 Fonte: http://www.volkssolidaritaet-altscherbitz.de/
a
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O panóptipo é, para Fou*cault,o símbolo arquitetôni-
co da sociedade disciplinar. O modelo, desenvolvido por Jeremy Benthan em 1787, consiste em um anel formado por celas que atravessam toda a espessura da construção e uma torre de vigia no centro, da qual pode-se controlar todos os aprisionados no anel. A luz que atravessa as celas permite controlar quem está dentro delas através das sombras projetadas nas paredes. Enquanto a sensação para quem está preso é de total exposiçao, sem nem mesmo saber se há mesmo alguém na torre central.
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Ambos os projetos elevam o conceito de simetria ao extremo, transformando o próprio espaço em símbolo da rigidez e disciplina. Os pavilhões, são agrupados de acordo com o gênero, com edifícios com equipamentos comuns a ambos os sexos formando uma área neutra entre eles: a administração, refeitório e lavanderia. As salas de banho, onde se realizava a moderna hidroterapia, inserem-se junto aos pavilhões dos agitados, nas extremidades de cada ala (masculina e feminina). O edifício da administração funcionava como uma imponente fachada de frente e um local pra recepção. Todos os edifícios são cercados por jardins e interligados por galerias cobertas. Além disso, cada pavilhão possui um pátio ajardinado, designado ao convívio, onde os internos poderiam tomar sol em segurança. O alto rigor de controle aflora quando percebemos que os pátios são murados e as salas tem proporção ideal para que o interno seja sempre observado. A semelhança extrapola até as rotundas dos agitados, tanto na implantação como na forma. Apesar das torres e da forma em ferradura serem uma clara referência à forma do panótipo*, os artifícios dessa estrutura não existem nesse caso. O grande diferencial do Juquery em relação ao Saint Anne está na questão da extensão das terras. Enquanto o exemplo paulistano foi planejado com espaço de sobra para se desenvolver, o Saint Anne foi implantado, ainda que em zona rural, muito próximo à cidade, sendo incorporado a ela conforme seus arredores foram ocupados. Hoje não é mais possível ter a clareza de leitura da época de sua concepção. O Juquery, por outro lado, ainda se mantém circundado por áreas livres, seja por conta da barreira física criada pela rodovia, seja pela grande aquisição de terras ocorridas sequencialmente, ou mesmo pela presença do parque estadual do Juquery instalado hoje em terras da antiga fazenda. A paisagem natural do entorno do núcleo central está ainda bastante conservada, facilitando a leitu-
rotunda masculina
enfermarias masculinas
clínica
lavanderia
cozinha diretoria
clínica
enfermarias femininas
rotunda feminina Concepção da Implantação do Asilo Saint Anne.
Concepção de Ramos de Azevedo, em 1889, para Implantação do Asilo Central do Juquery
ra do bem cultural, tanto do ponto de vista de concepção arquitetônica, como das práticas, hábitos e memorias ali vividas. Nota-se que a atual cidade de Franco da Rocha, não existia na data de fundação do hospital sendo os quase 3000 ha de terra destinados unicamente para fins manicomiais. Toda a movimentação urbana teria surgido por conta da construção do complexo e da proximidade com a ferrovia. Iná Silva, em sua tese de doutorado, divide a história da cidade em dois períodos: “Cidade do hospital” e “Hospital da cidade.” A Cidade do hospital corresponde ao período desde a fundação até 1970, quando o crescimento da cidade e a vida da população dependiam inteiramente do hospício. Os primeiros moradores da região foram os funcionários do hospital ou as famílias dos internos. Segundo a autora, cidade e hospital compartilharam de uma mesma infraestrutura durante décadas, sendo que as estruturas da fazenda funcionaram como espaço público durante seus primeiros anos de vida. Em 1944, o Distrito de Franco da Rocha eleva-se à categoria de município, desmembrando-se do município de Juquery.24 Essa estreita relação com os moradores do entorno acabou por perder-se a partir da déca-
24. Decreto n° 14.334, de 30 de novembro de 1944.
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25. SEGAWA, Hugo. Casa de Orates, 2002. pp.76. 26. PEREIRA, Lygia Maria França. Os primeiros 60 anos da terapêutica psiquiátrica no estado de São Paulo, 2002. pp.37. Foto: Galerias Cobertas / Arquivo Ramos de Azevedo. Fonte: brasiliana.com
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da de 1970, quando os movimentos migratórios acarretaram uma população sem nenhum tipo de vínculo com o hospício. Na realidade, Juquery era uma pequena cidade governada pelo médico-chefe com uma população virtualmente condenada em sua liberdade.25
Dentre as diretrizes implantadas por Franco da Rocha está o conceito de regime open-door, podendo ser do tipo parcial (aplicado nas colônias), total (nas fazendas agrícolas dentro da instituição) ou de assistência familiar, em que as famílias da vila com pequenas produções acolhem alguns dos pacientes como trabalhadores. Nesse caso os pacientes se mantém ligados à instituição pelas roupas que dela recebe e pelo salário pago às famílias de sitiantes que os hospedam.26 O modelo disciplinar de Franco da Rocha foi altamente contradito por Juliano Moreira que em 1910 concebe uma linha de pensamento em que o hospital urbano teria um serviço complementar situado nas colônias. O diretor do hospital do Rio de Janeiro defendia que tratamento teria de ser mais humanizado. Na tentativa de revolucionar o papel do hospício, ele tira as grossas grades e derruba os altos muros de separação que irritariam os pacientes. Cria também as colônias de São Bento e Conde de Mesquita, na Ilha do Governador e uma colônia feminina em na ilha do Engenho de
Planta da rotunda dos agitados (masculina). Nessa construção localizavam-se as salas de hidroterapia. Esse tratamento podia der feito tanto por fortes duchas, quanto em imersão em banheiras com água quente para acalmar os agitados, ou a fria para estimular os apáticos. Fonte: Acervo SIOC
Dentro.27 Franco da Rocha rebate as ideias do colega, dizendo ser inviável as ideias de Moreira, já que a disciplina e o tratamento severo seriam algo fundamentais para a manutenção de tratamento adequado a grande número de doentes.28 Ainda assim, já na construção da segunda colônia masculina, Franco da Rocha prevê a supressão das grades nas janelas, para tirar os “ares de cadeia” das construções. Por fim, ambos os médicos acabam por se contradizer. A verdade é que os dois pereceram dentro da lógica asilar. Os asilos criados fora da Cidade do Rio de Janeiro também mantiveram o artifício do afastamento do doente da cidade repetindo a segregação disfarçada defendida por Pinel. O conceito de “regeneração mental”, cada vez mais difundido, fez com que as internações compulsórias aumentassem exponencialmente. A partir do Juquery, outras instituições espalham-se pelo estado, criando uma rede de controle.
27. A Colônia feminina do Engenho de Dentro se transformará mais a frente em pioneira em muitos dos tratamentos humanizados, no Centro Psiquiátrico Nacional, o herdeiro oficial de todo o patrimônio do Hospital Nacional dos Alienados. Personagens famosos passarão também por ali, como a enfermeira Nise da Silveira, cujos trabalhos causaram grande impacto na forma de tratar doentes mentais nos anos 1970. 28. Rocha, Francisco Franco da. Assistência Familiar
aos Alienados.
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O HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
Durante 20 anos, o Asilo Colonia do Juquery funcionou como modelo na aplicação do tratamento moral. Defendeu-se o ambiente terapêutico como talvez o fator primordial no tratamento do desajustado. As práticas psiquiátricas, no entanto, evoluíram durante esse tempo e passaram a exigir novas posturas dos profissionais. O próprio Dr. Franco da Rocha aposenta-se em 1923, deixando sua criação para o então diretor da seção de anatomopatologia Dr. Pacheco e Silva, que assume então com a missão de incrementar a vertente cientifica da instituição. O Asilo dos Alienados passa a chamar Hospital de Juquery, elevando o alienista à categoria de médico e o alienado ao status de doente mental. A medicalização do tratamento faz com que o indivíduo se torne cada vez mais um objeto da psiquiatria, a qual justifica seus atos através do empirismo. Dessa maneira, os estudos passam a basear as causas da loucura em processos fisiológicos. O protagonista deixa então de ser o manicômio e passa a ser o médico. Com a introdução das terapias biológicas, microcirurgias e eletrochoques29, o hospício se aproxima cada vez mais de um hospital comum ou centro de pesquisa. Seu programa de necessidades passa a incluir centros cirúrgicos e salas de recuperação pós-cirúrgicas, e já não depende mais tanto do aparato do manicômio. Outras especialidades também passam a fazer parte do hospital, como a otorrinolaringologia, a oftalmologia, eletro radiologia e a odontologia. Com esses serviços adicionais, dificilmente o paciente precisaria sair da instituição para receber qualquer tipo de tratamento clinico. Essas seções
29. Durante a direção de Pacheco e Silva, são introduzidas nos tratamentos as microcirurgias e as terapias biológicas: a Malarioterapia, Pireoterapia, Convulsoterapia, Coma hipoglicêmico, Lobotomias. São terapias em que através de estímulos é possível tanto acalmar um paciente agitado, quanto estimular alguém apático. Para saber mais, consultar: TARELOW, Gustavo Q. Entre febres, comas e convulsões: as terapias biológicas no hospital do juquery administrado por Pacheco e Silva (1923 – 1937). São Paulo. Dissertação pós-graduação – FFLCH USP, 2011 e PEREIRA, Lygia Maria França. Os primeiros 60 anos da terapêutica psiquiátrica no estado de São Paulo, 2002.
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30. PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. O Juquery:
sua implantação, projeto arquitetônico e diretrizaes para uma nova intervenção, 2008. pp. 90-91
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adicionais serão muito importantes no futuro, tornando-se um Pronto atendimento para a população no final do século. Enquanto a canetada do médico psiquiatra torna-se cada vez mais banal e mais poderosa, o número de pacientes aumenta gradualmente causando superlotação, constituindo um considerável banco de cobaias para os cientistas. Esse período, entre 1923 e 1955, pode ser considerado o apogeu do pensamento higienista e também do Hospital do Juquery, coincidindo com sua maior expansão física, com 2.983, 425 hectares de terra em posse da instituição. A ampla produção arquitetônica teve também como mão de obra os próprios internos. Como expansão do tratamento laboral, Pacheco e Silva institui em 1927 o Serviço de Ergoterapia, cuja direção seria passada à um técnico responsável por coordenar os diversos trabalhos: de obras novas e serviços de manutenção, abastecimento de água, energia elétrica, transportes, oficinas e algumas pequenas indústrias. O primeiro responsável nomeado para administração foi o engenheiro Ralph Pompeo de Camargo, sendo que dentro do setor existia divisões dos serviços em oficina mecânica, oficina de carpintaria e marcenaria, seção de obras, proteção e distribuição de energia elétrica, oficina de pintura, transportes, parques jardins, turmas volantes, estradas, sapataria, tipografia, olaria, colchoaria, saboaria e apiário.30 Segundo o memorial do diretor do hospital, foi construído um edifício para ser sede da administração desses serviços, além de outros galpões para que coubessem as ampliações das oficinas já existentes e também abrigar as novas. Esses edifícios foram construídos fora do perímetro do asilo de tratamento, mas muito próximos à ele, localizando-se ainda dentro do conjunto histórico. Algumas das oficinas estão ainda ativas em 2016 e fazem parte do serviço de manutenção do Complexo Hospitalar.
Provavelmente funcionou dentro desses mesmos edifícios a Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery (década de 1920), fundada pelo crítico de arte, músico e médico paraibano Osório Thaumaturgo Cesar (1895-1979), também importante parceiro de Pacheco e Silva. Com o propósito principal de ensinar um ofício que os pacientes pudessem exercer depois de deixar o hospital, chegou a vender as obras de alguns deles para manter sua escola. Após se aposentar em 1965, o departamento não funcionou por muito mais tempo, sendo fechado na década de 1970. Assim, cada vez menos qualquer pessoa precisaria sair do complexo, pois o avanço das oficinas e a produção de alimentos chegaram a fazer do Juquery uma instituição autossuficiente – além de ser também uma “instituição total” de acordo com os parâmetros já consagrados por Erving Goffman.31
31. Em 1961 Goffman escreve seu livro Manicômio, Prisões e Conventos, onde define Instituição total como a junção das três atividades da sociedade moderna – o dormir, o trabalhar e o bricar – sob a mesma esfera de controle. Tal controle é conseguido, nesse caso, através da disciplina e do destaque dos erros do indivíduo em meio à uniformização do grupo. Foto:Núcleo das oficinas de ergoterapia. Foto da autora
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A produção arquitetônica então se baseará em ampliações de setores antigos, novas construções para atender novos programas e também na reprodução de estruturas já existentes do asilo colônia. O hospício cresce com reavaliações constantes acerca da funcionalidade e organização dos edifícios a partir da lógica manicomial ali instalada. Os novos programas são inseridos no manicômio sempre com o propósito de validar a palavra do médico, sem se questionar a lógica da internação, mas pelo contrário apenas intensificá-la.
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No século XVIII, com a especialização do hospital dos insanos, o lugar exclusivo da loucura se institui. Ao mesmo tempo que ele nasce ele congela no tempo e no espaço, deixando de acompanhar a evolução do hospital, e mantendo para sempre as estruturas e soluções espaciais do século que o havia inventado.32
32. VIECELI, Ana Paula. Lugares da Loucura, 2014. pp. 88
Durante esse período, destacam-se as construções do engenheiro Ralph Pompeo de Camargo, que trabalhou em plena sintonia com Pacheco e Silva. Apesar de muitas vezes repetir soluções do começo do século, é possível também identificar uma experimentação de formas e inovações muito particulares, como a reprodutibilidade dos edifícios e o redesenho na implantação das colônias. Seguindo ainda uma estética de inspiração eclética, algumas edificações demonstrariam uma lógica de construção industrial. A Farmácia, Laboratório de anatomia e Escola, por exemplo, foram construídos com o mesmo modelo de tesouras nos telhados para que se pudesse utilizar uma produção em série. Em alguns desses edifícios é também possível encontrar as sofisticadas janelas desenhadas por Juliano Moreira, que são vistas também em outros lugares associados exclusão. Esse novo modelo tem por objetivo manter a segurança dos internos sem que exista a feição de prisão, substituindo as tradicionais grades por barras de ferro que compõem o caixilho. As 6ª colônia masculina, iniciada em 1930 para abrigar 500 pacientes, também apresentou inovações quanto à disposição do conjunto em forma de semicírculo, que segundo Pacheco e Silva dariam uma ambiência mais alegre ao complexo33, ainda que a rigidez fosse mantida no desenho do edifício. Outros programas também demonstraram o alargamento dos papéis do hospício e a vontade de abrigar todos os personagens da sociedade. A construção do pavilhão escola, em 1929, foi na verdade uma ampliação do Serviço Especial para
durante o período de 19231937. Franco da Rocha: Assistência a Psicopatas,
33. PACHECO E SILVA, A C. A Assistência a psico-
patas no Estado de São Paulo. Breve resenha de trabalhos realizados
1945, p. 13.
Mapa: área da fazenda Juquery em comparação com a cidade em 1940. Desenho baseado no de Regina Shizue/ Lara Melo Souza Fonte: 13. SILVA, Iná Rosa da. Preservação do Juquery: território e arquitetura, 2011.
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1ª Olimpiada Estudantil no campo do hospital. 1977. Foto: acervo prof. José Parada.
34. PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. O Juquery:
sua implantação, projeto arquitetônico e diretrizaes para uma nova intervenção, 2008. pp. 77-78
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Menores Anormais, cujo primeiro pavilhão enfermaria já havia sido construído por Franco da Rocha em 1918, para atender à demanda do Instituto Disciplinar de Menores. O serviço atendia apenas menores do sexo masculino, sendo que as poucas meninas eram acolhidas nos pavilhões femininos adultos, já abarrotados.34 O edifício do Manicômio Judiciario talvez seja uma das peças mais importantes do conjunto. Esse já era um edifício programado por Franco da Rocha, mas sua conclusão se deu apenas em 1933. O edifício traz inovações tanto no vocabulário arquitetônico, com claras referências renascentistas, é organizado em um grande edifício em forma de T, que concentra as estruturas carcerárias, como aqueles hospícios do século XVIII. A separação dos considerados criminosos demonstra uma mudança de hábitos. Ainda hoje ele é usado como estrutura carcerária. Outro pavilhão importante é o de Assistência aos Psicopatas Tuberculosos. Este pavilhão em forma de U possui um sistema de distribuição semelhante ao de Kirkbride, em que toda a administração fica na parte central do edifício e as duas asas laterais são uma feminina e outra masculina.
A Vila Residencial (1934), construída para abrigar médicos e funcionários do hospital, também possui essa disposição mais descontraída, como se formasse uma rua residencial comum. Outra intervenção importante de Pacheco e Silva foi a praça dos esportes, construída a partir do conceito de que atividades ao ar livre fariam bem aos internos, hoje é uma das únicas áreas públicas as quais a população tem acesso. Finalmente, a 7ª colônia ou 1ª colonia feminina, foi construída apenas em 1939. Segundo o próprio diretor, a demora ocorreu por conta de questões sociais da época e também por questões de segurança. No entanto, a necessidade de vagas para mulheres era tanta, que a colônia foi dimensionada para 750 leitos. Nesse mesmo ano, Adhemar de Barros, que havia se tornado interventor do hospital a mando de Getulio Vargas, manda transferir todos os alienados que se encontravam nas cadeias para o Juquery. Isso causou enormes problemas para instituição e é o marco inicial para o período de declínio do modelo assistencial.
Foto: Cortes para a construção do Pavilhão de Tuberculosos, produzida pelo SIOC.
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O DEPÓSITO HUMANO
Já na época em que Adhemar de Barros torna-se interventor federal, é construída a 8ª colônia masculina (1942), que retorna ao formato fechado da época de Franco da Rocha. Nessa época começa a fase de decadência do Juquery que já estava abarrotado de pacientes internos. O complexo sofre diversas alterações e mudanças de uso constantes, sem que novas construções tenham sido planejadas com finalidade especifica ou tenha-se proposto novos traçados. A construção de “puxadinhos” sobrepostos aos edifícios já existentes não só descaracteriza o conjunto arquitetônico original, como também demonstra uma diferença na disponibilidade de recursos e no planejamento estratégico entre as gestões. A partir de 1955 o Juquery sofre também com a divisão das terras da fazenda, o que Iná Silva chama em seu mestrado de período de parcelamento de terras.35
35. ROSA DA SILVA, Iná.
Franco da Rocha nas Terras de Juquery: um hospício, uma cidade, 1995. pp 56-104. 36. ROSA DA SILVA, Iná.
Preservação do Juquery: território e arquitetura, 2011. pp 306.
Nota-se que os usos imputados a cada edificação, até a intervenção adhemarista pouco se alteraram, a partir daí, a mudança de nome e de uso se deram com muita frequência, marcando uma época de superlotação e início de desmantelamento do regime asilar originário.36
Não só o Juquery passa por esse processo, como também outros asilos do Brasil. As perseguições políticas da época das ditaduras também ajudaram a encher cada vez mais os hospícios e transformá-los em depósitos de pessoas. Nesse ponto, as justificativas médicas já não eram nem mais necessárias e os próprios ex internos dessa fase foram em geral os delatores dos maus tratos sofridos nesses locais. 49
37. Apesar de os trabalhos de Osório Cesar terem se iniciado anteriormente, Nise torna-se mais famosa. Os dois médicos podiam ter motivações bastante parecidas, mas acabaram por seguir caminhos bastante diferentes. Osorio Cesar era adepto da psicanálise de Freud e estudioso das anatomopatologias, enquanto Nise opunha-se aos traumáticos tratamentos da época e seguia as teorias analíticas de Carl Jung.
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Na Europa do pós guerra, começam a surgir movimentos e ações oficiais que julgam necessário o fim dos manicômios. Diversas nações passam a discutir o problema e criar ações nacionais, que em geral desenvolvem um novo modelo de atendimento. Já no Brasil, as práticas manicomiais foram reproduzidas durante boa parte do século XX, sem que houvesse um grande movimento contra a institucionalização da loucura. Houveram, no entanto, alguns progressos pontuais que marcaram a história da saúde mental brasileira antes que de fato a reforma psiquiátrica chegasse ao Brasil. As teorias da psicanálise tornam-se cada vez mais frequentes e até subversivas dentro desses espaços de tratamento, trazendo novas experiências e questionando a forma de tratar os pacientes. No Rio de Janeiro, o apelo à humanização desses espaços vem à tona em 1946, ao assumir a seção de terapêutica ocupacional do Hospital do Engenho de Dentro, a psiquiatra alagoana Nise da Silveira começou a desenvolver seu próprio método de tratamento, valendo-se da produção de pinturas e esculturas para promover a reorganização mental dos pacientes. Além da criação de uma instituição que se mantém até hoje, o Museu de Imagens do Inconsciente, a realização de uma exposição com arte produzida dentro dessa instituição no II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique (1957) traz a valorização e o reconhecimento internacional do atelier dentro do hospital como espaço criativo. Os trabalhos desenvolvidos por Nise foram amplamente documentados em livros, documentários e até um filme recentemente lançado Nise – o coração da loucura.37 Juntamente com isso, trabalhos de denúncia como o do fotógrafo mineiro Luiz Alfredo em 1961, em que ele registra os mal tratos ocorridos no manicômio de Barbacena em Minas Gerais, trazem à tona as questões que estiveram acobertadas desde a implantação das instituições asilares, que é o tratamento desumano dado aos ali exilados.
A comoção da população é o pontapé inicial para iniciarem-se transformações no sistema de saúde, uma vez que o olhar da sociedade sobre a loucura discute também os maus tratos dentro das instituições, há uma mudança de comportamento de toda a comunidade, que passa a não tolerar certas posturas. As ações perante o problema da saúde mental passaram a considerar a qualidade do tratamento e parâmetros mínimos para os hospitais psiquiátricos, sem ainda se imaginar que estivesse por vir a erradicação completa do sistema de internação prolongada. Sobre as diversas reformas psiquiátricas em países distintos, o espanhol Manuel Desviat explica:
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1.Ne fintilium quam oractela ina, confina, no. Go et? Haes tabemus etia ad se conius, utem coninimium sedo, cum mus pu
38. DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiatrica, 2015. pp. 29 (tradução de Vera Ribeiro)
As fotografias causaram enorme comoção nacional e vários debates a impressa. Foram posteriormente publicadas no livro Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex, em 2013. O livro venceu o prêmio APCA de melhor livro reportagem do ano e ganhou a adaptação cinematográfica em forma de um documentário de mesmo nome lançado em novembro de 2016.
Em primeiro lugar, há um clima social que permite e, em alguns casos, exige a conscientização e a denúncia da situação manicomial, com a abertura de um processo de consenso técnico, político e social que possibilita a elaboração de objetivos alternativos. Em segundo lugar, existe um momento de legitimação administrativa, certo compromisso, geralmente ambíguo, pelo menos nessa ocasião, e um grupo de técnicos qualificados e decididos a levar adiante o processo de reforma – sem que falte, nas experiências mais sustentadas e inovadoras, um líder mais ou menos carismático que encabece esse esforço.38
Iniciativas dispersas de descentralizar o poder do hospital psiquiátrico passaram a aparecer no quadro brasileiro. Quanto ao Juquery, pode-se afirmar que a década de 1970 representa a entrada em uma nova fase, pois é quando inicia-se a drástica diminuição do número de internações: em torno de 11.000 pacientes em 1973, para 6.900 em 1974, mediante o convênio com hospitais privados, com prioridades para aqueles que apresentavam probabilidades de regresso social e também com programas de assistência social às famílias, visando à reintegração de seus entes. Outra questão importante para o fim da instituição total é a ruptura entre hospício e cidade. Segundo Iná Silva, nos anos 1970, a “Cidade do Hospital” se torna cidade dormitório de São Paulo, atraindo uma população sem relação nenhuma
com o complexo. A população que antes usava a fazenda como local público passa a ter seu acesso restrito, afirmando esse caráter de isolamento da estrutura total em si, transformando o Juquery no “Hospital da Cidade”. Em contrapartida, Franco da Rocha, que crescia rapidamente, também carecia muito de uma infraestrutura que nunca foi construída tamanha era a dependência dela com o complexo. Na década de 1980, a partir da revisão das secretarias promovida por Franco Montoro, se coloca em prática o início da desinstitucionalização dos pacientes e a transformação da psiquiatria ganha força. Isso representou uma grande reorganização nos espaços Juquery, que teve todo o seu sistema revisto, ainda que não se tenha havido grandes alterações em questão de metragem construída. Além disso, a superlotação é novamente um fator importante. Nesse momento o hospital teria que atender sozinho toda a população das 5 cidades da região: Franco da Rocha, Caieiras, Mairiporã, Francisco Mourato e Cajamar. Com a inserção do ERSA14, o Juquery vira o principal polo de saúde da região e deve implantar estruturas de atendimento clínico. Assim, dentre essas alterações promovidas na década de 1980, a antiga Diretoria de Saúde de Pacientes Internos (DSPI) – que seria um pequeno hospital geral para atender aos internos do Juquery – é ampliada para receber o Hospital Estadual de Franco da Rocha. Partes do conjunto histórico incluindo alguns dos antigos pavilhões femininos, os quais estavam vazios por conta da drástica diminuição do número de pacientes, passam a fazer parte desse equipamento de saúde improvisado. O arquiteto Siegbert Zanettini, na época, tentou evitar ao máximo a demolição do conjunto de Ramos de Azevedo, com o intuito de aproveitar os pátios internos, muito interessantes para a ambiência do hospital.
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39. WADI, Yonissa Marmitt.
Uma história da loucura no tempo presente: os caminhos da assistência e da reforma psiquiátrica no Estado do Paraná. Revista
Tempo e Argumento, vol. 1, n. 1, p.68-98, jan./jun. 2009. 40. http://curaredolorem. blogspot.com.br/2016/07/ sobre-ser-louco-ser-internado-e-voltar.html
A implementação desse hospital em um espaço que não foi concebido para receber esse tipo de função causa problemas. A circulação através das galerias abertas que não ajudam na prevenção de infecções e o acesso de pessoas debilitadas aos pavimentos superiores feito exclusivamente por escadas, são apenas alguns fatores que evidenciam a inadequação do espaço e a incompatibilidade com o modelo pavilhonar. A partir da implementação do SUS, o serviço de pronto-socorro deveria passar para o município. Na prática isso não ocorreu e o hospital estadual, que deveria funcionar em regime de portas fechadas, funcionava também como pronto atendimento. Ademais, já em 1989 surge o projeto de Lei nº 3.657, do sociólogo e então deputado federal, Paulo Delgado (PT/MG), no qual ele propunha que os manicômios fossem progressivamente extintos, dando lugar a outros tipos de assistência; a proposta também desejava a regulamentação das internações psiquiátricas compulsórias. O projeto, entretanto, foi sancionado apenas em 6 de abril de 2001, na forma da Lei nº 10.216 e, apesar de todas as modificações sofridas – a parte do texto que visava à extinção dos manicômios, por exemplo, não foi inserida no projeto final.39 Com essa lei, o Brasil passou a trabalhar com uma Política de Saúde Mental que buscará o tipo de tratamento que a comunidade terapêutica, muitos anos antes, já almejava. Conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, ela vai possibilitar que as pessoas portadoras de sofrimento psíquico não sejam mais impelidas exclusivamente a uma internação, que as isolaria do seu convívio social e familiar. Percebe-se e passa-se a trabalhar por um tratamento que se adeque ao máximo ao cotidiano desses pacientes, que passarão a se chamar usuários.40
Atualmente não se admite mais que um indivíduo seja resumido a um diagnóstico, mas que seja considerado como um sujeito de direitos. Como 54
em outras áreas do conhecimento, o tratamento da saúde mental deixou de ser incumbência de um só tipo de profissional, o alienista ou o psiquiatra. Para tratar de alguém que sofre qualquer tipo de distúrbio mental é preciso haver uma equipe que envolve profissionais de diversas áreas. Analogamente, os espaços que acolhem esses indivíduos também diversificaram-se e espalharam-se pelo território, com o fim de devolver a cidade a esses cidadãos. Por mais que hajam, locais referenciais para o tratamento laborial, reabilitação ou reintegração social, acolhimento do doente e de seus familiares, atividades terapêuticas ou outros tipos de iniciativa, é cada vez mais difícil distingui -los ou evidenciar uma arquitetura especifica. Diferentemente do que acontecia no século XIX, o espaço de tratamento não possui mais uma cartilha. O arquiteto deixa assim de estar subordinado ao método de tratamento.
O primeiro grupo de pacientes a deixar o hospital foi formado por 200 pacientes em 1972. Foto: Ruy Costa Fonte: Arquivo doEstado de São Paulo
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Deve-se pensar espaços que respeitam os direitos da pessoa portadora de transtorno mental conforme a lei 10.216: I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. No caso do Juquery, a legislação só veio para reforçar o fenômeno que já estava em andamento: a desinstitucionalização. Desde a década de 1970, com maior intensificação após 1990, houve um grande esforço para localizar as famílias dos pacientes, sendo que existem hoje ali em torno de 120 internos já em idade avançada, que ocupam uma parte da Colônia Feminina e não tiveram suas famílias localizadas ou não têm condição para serem reinseridos na sociedade. Esse número tende a diminuir com o tempo, sendo que quando um desses pacientes morre, o leito é fechado permanentemente. O objetivo é de fato a desativação completa do antigo hospício.
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Fotos hospital das clínicas de Franco da Rocha, instalado no complexo das antigas clínicas especializadas, nos anos 1980 e desativado nos anos 2000. Os edifícios dessa área representam mutações na ordem construtivas e demonstram a falta de planejamento na tentativa de suprir a demanda da superlotação do hospial e também da própria cidade de Franco da Rocha
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O HOSPITAL TECNOLÓGICO
Além de conter ainda algumas das instalações do modelo assistencial anterior, o espaço construído do Juquery foi constantemente dividido desde a decisão de desativar hospital. O desmembramento das partes da fazenda iniciam-se na década de 1950. Já na década de 1980, a grande queda do número de pacientes faz com que as colônias fossem progressivamente esvaziadas, sendo que apenas as mais próximas do núcleo central ou com ligação direta para o centro urbano permaneceram sendo utilizadas - para fins manicomiais ou com outras funções. Construído onde era o antigo hospital de tuberculosos, o Centro de Atenção Integral à Saúde Mental (CAISM) do Hospital das Clínicas de Franco da Rocha representa a ala psiquiatra do novo Complexo Hospitalar do Juquery. A construção tem problemas a serem apontados quanto à questão da preservação: a instalação de um anexo exatamente no meio do vazio onde existia os jardins impede completamente a leitura do antigo pavilhão em forma de U. Ainda assim, o projeto tem influencias diretas do CAISM da Santa Casa, instalado no edifício do antigo Manicômio da Vila Mariana. É interessante notar que esse tipo de hospital se adapta bem ao sistema pavilhonar dos antigos edifícios. As reformas, em ambos os casos, consistiram em trazer a modernidade para dentro do hospital, com salas de exame e todo tipo de apetrechos. Há, assim, o abandono do caráter terapêutico do local, com o fim de estabelecer um hospital tecnológico. 59
41. SÃO PAULO (Estado). Decreto Nº 36.859, de 5 de junho de 1993, cria o Parque Juquery. Disponível em: http://www. jusbrasil.com.br/legislacao/177932/decreto-3685993-sao-paulo-sp.
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A grande distância entre as colônias e a divisão de terras fez com que cada um dos conjuntos acabassem por ser administrados por uma instituição ou secretaria diferente, sendo que cada uma foi tratada de uma maneira quanto ao espaço construído. Várias secretarias do estado já ocuparam os mais variados edifícios, sendo que a área de estudo – o núcleo histórico principal - está sob responsabilidade da Secretaria de Estado da Saúde. Além disso, 1927,70 hectares de terra das terras do Juquery atualmente fazem parte do Parque Estadual do Juquery. O parque foi estabelecido em 1993,41 e reconhecido como patrimônio por conta de suas várias nascentes imperativas, fauna e flora típicas de cerrado. A área pertencente ao hoje denominado Complexo Hospitalar do Juquery é muito próximo ao território de sua primeira fase, aquela de concepção. A situação em que se encontra o conjunto estudado é preocupante, sendo que muitos deles estão hoje sem uso ou mesmo abandonados. Alguns dos edifícios encontram-se em ruínas. Algumas tentativas de repensar o espaço foram efetuadas, assim como trabalhos acadêmicos que defendem a valorização dos edifícios históricos, a reinserção do Juquery na sociedade como equipamento de qualidade, ou mesmo a recuperação da memória e história da saúde através da salvaguarda do espaço construído e também de documentos. Em 1985, a historiadora da arte Maria Heloisa Correa de Toledo Ferraz participou do resgate de 2.258 trabalhos realizados na antiga Escola Livre de Artes Plasticas do Juquery e da organização do Museu Osório Cesar, instalado na antiga casa do diretor. Hoje a casa está fechada e parte do acervo do museu está exposto em um dos dormitórios do 1º pavilhão feminino. No mesmo edifício estão sendo realizados trabalhos de tratamento e catalogação de todos os objetos que fazem parte do acervo do Complexo. Essas peças estão sendo
a.Pavilh達o Escola no Antigo Pavilh達o de Tuberculosos, 1972. Foto: Ruy Costa Fonte: Arquivo do Estado de S達o Paulo. http://www. arquivoestado.sp.gov.br/site/ acervo/repositorio_digital/acervo_iconografico b.CAISM instalado no Antigo Pavilh達o de Tuberculosos, 2016. c. Hospital Estadual Francisco Franco da Rocha Sobrinho, 2016.
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guardadas em vários dos pavilhões, esperando o dia em que serão expostas em instalações apropriadas, mas por enquanto ocupam provisoriamente quartos sem condições adequadas para armazenamento de acervos. Infelizmente, uma grande parte desse acervo já foi perdida ao longo do tempo. Em 2005 houve um incêndio que destruiu o pavilhão da administração e também todo o material ali armazenado. Foi destruído todo o conteúdo de uma biblioteca ali instalada, assim como grande parte dos prontuários de antigos pacientes e outros documentos de fonte primária. Esse tipo de sinistro não foi o primeiro ocorrido no complexo. O 3º pavilhão feminino já havia sido desativado por conta de um incêndio em 1999. Esse pavilhão, entretanto, ainda mantém bastante das estruturas originais como telhado e caixilhos. E, finalmente, o último representante do conjunto de ruínas é o pavilhão japonês, o qual foi esvaziado por conta de abalos estruturais apenas alguns anos após sua construção.
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O incêndio de 2005 serviu de alerta para a necessidade da elaboração de um plano de ação, que contemplasse a questão da relação do espaço construído do Juquery com os serviços de saúde ali desempenhados. Assim, em 2006, foi divulgado o primeiro Plano Diretor do Complexo Hospitalar do Juquery, documentado cuidadosamente na tese de mestrado de Pier Paolo Pizzolato.42 Esse projeto, desenvolvido por uma equipe e coordenado pelo arquiteto e professor Silvio Sawaya, propôs a modernização do hospital, visando “nortear as necessidades físicas do serviço de saúde e balizar as possíveis transferências de terra para a implantação de novos usos”.43 A reorganização funcional visava um controle do conjunto de modo a evitar um loteamento do solo de modo isolado, sem compromisso como o todo. De fato, já naquele momento, as terras da fazenda estavam dividas em várias secretarias de estado independentes, sem que houvesse uma articulação entre elas. O Plano Diretor era, portanto, extremamente necessário como elemento de união entre todos esses agentes.
42. PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. O Juquery: sua implantação, projeto arquitetônico e diretrizes para uma nova intervenção, 2008. 43. PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. Questões sobre o plano diretor para o complexo hospitalar do Juquery. Cad. hist. ciênc. [online]. 2010, vol.6, n.1, pp. 157-178. ISSN 1809-7634. 44. Idem
A gestão das áreas manterá íntegra a fazenda Juquery de tal forma que as questões centrais de saúde, meio ambiente e vida social possam ser tratadas de maneira una, providenciando-se as transições necessárias entre as atividades de forma a preservar e desenvolver os objetivos últimos das mesmas.44
Concluído às vésperas da inauguração do CAISM, o projeto foi orientado a partir dos atuais preceitos que regem o sistema de saúde brasileiro: a instalação de assistência extra hospitalar e a criação de ambulatórios especializados. Analisando mais atentamente as ações para a área de estudo, esse primeiro plano diretor estruturou-se a partir de quatro diretrizes: 1.construção de um novo prédio com função hospitalar 2.recuperação das construções da antiga 1ª Colônia Feminina para um Hospital de Retaguarda; 63
45. ROSA DA SILVA, Iná. Preservação do Juquery: território e arquitetura, 2011. pp. 32
3.instalação de um espaço de ensino superior, junto da criação de um Memorial da Saúde no conjunto do antigo asilo central; 4.implantação da vila terapêutica na área da 1ª Colônia Psiquiátrica, atualmente conhecida como Azevedo Soares;
A maior parte delas, entretanto, sofreu modificações ao longo dos anos, devido à adaptação às novas demandas da secretaria de saúde, por falta de viabilidade financeira ou simplesmente pela própria revisão de projeto. A construção de um novo edifício com funções hospitalares foi a única dessas diretrizes realmente concluída. Nos primeiros estudos, entretanto, o hospital teria uma forma completamente diferente, que seguia a simetria do conjunto. Com a desativação do antigo (e inadequado) Pronto Socorro, a construção de uma estrutura nova, vertical, e com sistemas de ponta tornou-se prioridade. O edifício que abriga o Hospital Estadual Dr. Albano da Franca Rocha Sobrinho, implantado entre o asilo central e a 1ª colônia feminina, foi então concluído em 2010. Esse hospital já havia aparecido no Plano Diretor do Complexo Hospitalar do Juquery de 2006 com a denominação de Hospital Quartenário, mas foi completamente reformulado para se tornar um Hospital de Traumas. A implantação do edifício de gabarito muito maior que o resto do complexo em meio à Colônia Feminina causa também muitos problemas quanto à preservação e à compreensão da paisagem. A justificativa de se construir ali foi o fácil acesso à cidade. Construiu-se também novo equipamento regional, o Hospital Estadual de Franco da Rocha “Dr. Albano da Franca Rocha Sobrinho”, construção vertical, entre as obras de Ramos de Azevedo e Ralph de Camargo, ingerência que também pecou pela falta de distanciamento entre as unidades históricas, não por sua arquitetura, mas pela sua implantação naquele lugar.45 64
Nesse plano, a ala psiquiátrica – ou o Novo Juquery – foi baseada na reinterpretação do tratamento, a partir da criação de uma Vila Terapêutica na área da 1ª Colonia Masculina. Essa alternativa espacial foi uma saída recorrente na tentativa de humanizar o tratamento dos usuários, entretanto, após alguns anos de reforma psiquiátrica, essas vilas terapêuticas de usos múltiplos dentro de um mesmo espaço passaram a ser questionadas. O modelo considerado ideal e utilizado atualmente é o de residenciais terapêuticos incorporados à área urbana. A Vila Terapêutica, projetada em 2006, foi, portanto, abandonada nos planos futuros para o Complexo Hospitalar. Houve ainda, mas sem sair do papel, uma reforma pensada em 2012, também por Paolo Pizzolato, para ocupar as casas da Vila Médica com um tipo de espaço terapêutico de caráter transitório, servindo como um estágio na desinstitucionalização dos pacientes. Esse Plano Diretor ainda previa reformas nas casas da Vila Médica para abrigar uma hospedaria, para acomodação da comunidade profissional e universitária, gerando um fluxo muito maior de pessoas para a região. Essa premissa é bastante interessante e pode ser ampliada para servir a todo o complexo. A ideia da construção de um hospital de retaguarda foi também revisitada por Pizzolato, em seu doutorado. Se em 2006, esse novo hospital ocupava o espaço da 1ª Colônia Feminina, em 2012, ele foi projetado para ocupar parte do Asilo Central. Em negociação e em análise pelos órgão de preservação, o hospital Desenho do Plano Diretor CHJ de 2006. Desenho: Equipe do prof. Silvio Sawaya. Fonte: PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. Questões sobre o plano diretor para o complexo hospitalar do Juquery. Cad. hist. ciênc. [online]. 2010, vol.6, n.1, pp. 157-178. ISSN 1809-7634.
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ocupará os edifícios das antigas clínicas especializadas, aproveitando a existente divisão em salas menores, que poderiam acomodar os quartos individuais do hospital de retaguarda. A base de tal proposta é um estudo de viabilidade visando uma menor intervenção no patrimônio do que aquela que seria feita na colônia feminina, não em relação ao custo, que não há como estimar, mas na facilidade de modulação. Essa menor alteração do patrimônio vem, no entanto, de um juízo questionável sobre a importância dos edifícios. Ao mesmo tempo que justifica-se a partir da preservação de alguns edifícios, prevê a demolição de outros que são importantes no entendimento da evolução da instituição, além de cercar todo o espaço destinado ao projeto, impedindo a circulação no eixo principal do complexo central, alterando também a percepção do espaço. Essa intervenção, no entanto, vai de encontro às diretrizes do plano diretor inicial, pois atingiria uma área não prevista como hospitalar. Isso pode não ser um problema, já que o plano diretor pode ser constantemente revisto, mas essas ações agora empregadas estão deixando de ter uma unidade espacial. Considerando esse projeto como ainda não construído, para as diretrizes aqui
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descritas essa intervenção será considerada como tendo de ser revista. A implantação de um Memorial do Tratamento Psiquiátrico e de uma faculdade com cursos básicos na área da saúde, a serem instalados nos edifícios históricos localizados na área central junto à Biblioteca Central, prevendo também a recuperação dos jardins, são as áreas de cultura e educação. O Memorial seria composto por um jardim vertical formado pelas ruínas do pavilhão incendiado da administração, acrescido a um museu que abrigaria os acervos do Museu Osório César e do Museu do Cérebro. Contudo, nenhuma dessas diretrizes se consolidou. Recentemente uma nova parceria com a prefeitura foi feita e a casa do diretor será restaurada para abrigar um novo equipamento cultural da cidade de Franco da Rocha. A prefeitura, entretanto ainda não tem uma programação definida, mas o restauro da casa está programado para começar e finalizar em 2017. Por hora serão usadas algumas peças do acervo do Juquery, o que pode ser interessante como uma solução temporária, mas pensa-se futuramente em converter esse espaço para um equipamento mais ligado ao Centro Histórico de Franco da Rocha em si. A Universidade, ocuparia os pavilhões enfermaria da área central, estabelecendo a ligação entre a área cultural e a área hospitalar.
46. PIZZOLATO, Pier Paolo Bertuzzi. Questões sobre o plano diretor para o complexo hospitalar do Juquery. Cad. hist. ciênc. [online]. 2010, vol.6, n.1, pp. 157-178. ISSN 1809-7634.
A instalação de uma FATEC no momento inicial e a posterior implantação de uma Universidade, que será estabelecida nas cotas mais altas no relevo do terreno, exercerá uma força catalisadora de todo o arranjo a ser feito, criando e re-propondo a importância do Juquery tanto localmente quanto regionalmente, constituindo, assim, nova referência na metrópole.46
A entrada e os corredores principais de circulação não seriam mais no eixo norte-sul, e sim no leste-oeste, com a justificativa de não existir 67
Foto:Colônia Feminina, atualmente Hosital de Reabilitação / Acervo Pessoal.
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mais a entrada opressora pela parte inferior da instituição. Esse acesso, no entanto, é exatamente a imagem mais icônica do antigo hospício. O edifício da antiga administração – hoje em ruínas devido ao incêndio de 2005 – foi concebido para ser o portal de ingresso da instituição. Mudar o eixo de circulação transformaria completamente a compreensão do espaço projetado por Ramos de Azevedo, o entendimento da simetria, hierarquia e disciplina do espaço. O acesso pela lateral poderia de fato ser aberto, mas como uma passagem secundaria, mantendo o eixo do conjunto ainda legível. Por outro lado, um grande avanço para o reconhecimento do patrimônio é a aprovação do tombamento do núcleo central pelo CONDEPHAAT, que iniciou-se em 1986 e concluiu-se a partir da resolução SC-13 de 9 de março de 2011. Ficam assim tombados em nível estadual os edifícios do hospital central, além das 1ª, 4ª e 8ª colônia masculina e 1ª colônia feminina. O que sobrou do antigo manicômio foram as construções, o patrimônio natural, os testemunhos das práticas psiquiátricas, as histórias e as memórias daqueles pacientes por muito tempo cancelados. Entretanto, a carência por serviços e
equipamentos públicos levou o foco dos esforços da administração do Juquery para a construção das novas instalações. As instalações psiquiátricas foram substituíd-as por um novo complexo clínico, muito mais apropriado dentro dos parâmetros atuais, mas que ainda precisa de muitas intervenções. Dessa maneira, o Juquery perde cada vez mais a vocação de tratamento de saúde mental exclusivamente, para atender a população como um todo. Construindo aos poucos a imagem de equipamento público voltado para a cidade. Além disso, os estudos realizados apontam também a acessibilidade à região como um fator importante para a urgente implantação do núcleo hospitalar. O Vale do Juquery é apontado como base sul do triangulo norte da Metrópole Expandida, localizado em um potencial vetor de conurbação, atraindo muito investimento do sistema rodoviário, que, segundo Pier Paolo Pizzolato, criaria acessibilidade equivalente para todo o território, conferindo à fazenda Juquery um caráter articulado. A passagem de vias metropolitanas por Franco da Rocha cria uma inversão na dinâmica de crescimento da cidade, que passaria a ter um novo núcleo o qual valoriza a urbanização na fronteira com Francisco Morato. A construção do férreo-anel atrairia mudanças nas dinâmicas sociais da região.
Foto:Escadaria principal / acervo Prof. José Parada
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A partir dessa análise das antigas propostas se discutirá uma nova reorganização e projeto para o Juquery. A existência de um plano fez com que as intervenções feitas durante essa nova fase fossem mais ordenadas e conscientes no sentido de dimensionar o sistema de saúde e renovar o complexo dentro dos parâmetros vigentes. É inegável o avanço do Juquery em relação ao atendimento da população. Ainda assim, muitas das diretrizes tomadas há dez anos devem ser repensadas, analisadas do ponto de vista do que o Complexo representa atualmente, considerando também as mudanças que ocorreram na cidade de Franco da Rocha. A necessidade de adequar o sistema de saúde e também de suprir o déficit de unidades de atenção básica, que deveriam ser responsabilidade do município, fizeram com que as obras emergenciais passassem por cima das questões da preservação da paisagem e do redesenho do espaço público. Assim, a busca por tipologias que atendam aos novos usos talvez tenha sido exatamente o que os célebres arquitetos que passaram pelo Juquery tentaram fazer por anos, sem que tenha sido possível se desvencilhar na verdade de um modelo preestabelecido. As reformas ocorridas desde a decisão de desativar o antigo hospital foram feitas com o objetivo de criar espaços que agora fossem compatíveis com as características de aparelhos hospitalares de última geração. O espaço do antigo hospício, uma vez já tão significativo para a cidade, está claramente em busca de oferecer esses serviços mais dignos e de qualidade, agora para toda a população. A necessidade por esses aparelhos, entretanto, ofuscam muitas vezes a preservação. A situação de abandono em que se encontra a maior parte dos edifícios históricos é alarmante e só pode ser revertida a partir do planejamento estratégico, a começar pelo estabelecimento de diretrizes.
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DIAGNÃ&#x201C;STICOS
OS ESPAÇOS DA LOUCURA
Para entender os princípios hoje adotados para os espaços de tratamento, é preciso compreender a formação desse processo de desconstrução. O rompimento do paradigma psiquiátrico e a desinstitucionalização não ocorreram como um fenômeno universal ou contido em si mesmo. Sujeito às precondições sanitárias de cada país, esse processo teve diferentes abordagens espalhadas pelo mundo, ainda que todas ela tenham se movido com uma premissa em comum: a busca de alternativas ao manicômio. Outro fator é que todas as iniciativas aconteceram em momentos de forte sensibilização popular e reconstrução social. Se na Europa a reforma psiquiátrica tomou corpo após a segunda grande guerra, na América Latina ela só aconteceu após um longo período de alta instabilidade política. Seu momento inaugural foi em 1990 com a assinatura da Declaração de Caracas, que proclamou a necessidade de promover recursos terapêuticos e um sistema de tratamento que garantisse os direitos dos usuários. Depois disso vários dos países latino-americanos promoveram encontros nacionais multissetoriais para se debater o formato da reforma em cada um. Segundo Desviat, antes da reforma os setores psiquiátricos se caracterizavam pela duplicação de serviços escassos, ou seja, pela reprodução de manicômios. Outro dado importante é que dentre os pacientes internados apenas 10%, em média, se tratavam realmente de casos de psicopatologia de fato, comprovando que os hospitais psiquiátricos haviam se convertido em refúgio para quem necessitava de abrigo. 74
A partir do aparecimento desses números nos jornais, junto das denúncias de maus tratos já estampadas nas manchetes, houve um movimento popular e também profissional que resultou na II Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em 1992 em Brasília. Essa conferencia gerou uma modificação na distribuição de recursos para os hospitais psiquiátricos e também algumas exigências de conduta e adaptações no espaço. Ficaram proibidas, por exemplo, as celas de isolamento e a violação das correspondências. Assim, a primeira tentativa tomada em praticamente todos os hospitais psiquiátricos foi a reformulação do hospital para torna-lo em ambiente terapêutico. O que aconteceu, no entanto foi uma réplica da vida cotidiana, agora dentro dos muros do hospital. A reprodução de uma liberdade controlada novamente. Isso acabou por ser questionado pela sociedade médica e também civil, que apesar de verem aparecer números não sentiram, de fato, a abertura do espaço de saúde mental. Assim, o assunto continuou a ser discutido em conferencias como parte de um processo participativo inovador se comparado com as reformas na Europa. Segundo Desviat (1994? Ou 2015?) :
47. DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica, 2015. pp. 148-149
Os diferentes atores envolvidos na reforma tiveram uma participação que não se reduziu a um mero apego a fórmulas, uma vez que a comissão teve um poder diretamente proveniente do Conselho Federal da Saúde, órgão dependente do Congresso. (...) O debate da lei, com riscos que uma legislação específica sempre acarreta, transcendia a norma legal e propunha um modelo de atenção à saúde e um modelo de organização dos serviços sociossanitários; daí sua relevância. A originalidade brasileira está na forma de integrar no discurso civil, na consciência social, a trama de atuações que um programa comunitário deve incluir. E também na forma de inventar novas fórmulas de atendimento, com base na participação dos diversos agentes sociais.47 75
Foto: CAISM Santa Casa, antigo manicômio da Vila Mariana.
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Em 2001, essas ações finalmente se concretizaram com a assinatura da lei 10.216, que define o fechamento de todas as instituições psiquiátricas de modelo asilar como precondição para a reforma e proclama o direito à assistência para todos. A mudança na questão espacial é, portanto, um passo bastante significativo para a Reforma Psiquiatrica. Partiu-se do pressuposto que o espaço do hospital, com muitas pessoas alojadas em um único lugar, inevitavelmente acaba por institucionalizar o paciente. Por conta do alto teor de sistematização das atividades, as pessoas passam a perder a noção de tempo, espaço, individualidade. As grandes instituições com longas internações, portanto, devem ser substituídas por uma ampla rede de locais que visem acolher o usuário e sua família. A ideia é similar ao modelo do SUS, de capilarização do atendimento. Para tentar compreende-los fez-se um breve levantamento de quais seriam as estruturas de tratamento, públicas e privadas. Para fins didáticos, nesse trabalho dividiu-se os mecanismos de tratamento em espaços de caráter médico e espaços de caráter social. Espaços de caráter médico: são aqueles em que há a presença do psiquiatra. Esses locais se destacam não só pela especialização das salas, mas também pelo caráter tecnológico. Faz parte desse time os CAISM, que são Centros de Atenção Integral à Saúde Mental, ou seja, hospitais para casos agudos e os HospitaisDia, que funciona como um ambulatório. Dentre
os princípios da reforma, instituiu-se a abertura de leitos psiquiátricos em hospitais gerais ao invés da construção ou adaptação do hospital psiquiátrico. Espaços de caráter social: são aqueles em que não há necessariamente a presença do psiquiatra. Esses locais variam muito e devem configurar uma rede para que funcionem. Fazem uso da lógica ampliada de redução de danos, realizando o acompanhamento do usuário durante a vida cotidiana e também diversas atividades de caráter cultural, social, educativo, profissionalizante ou recreativo. A rede de saúde mental no geral tem como seu maior representante os Centros de Apoio Psicossocial, os CAPS. Eles possuem classificação dependendo do tipo de usuários que recebe ali, sendo que apenas o CAPS III e o CAPS de álcool e drogas (CAPSad) funcionam 24h e possuem leitos, para que o paciente em crise passe até três noites. Esse tipo de instituição também funciona como um serviço ambulatorial, sendo que após a consulta o paciente é encaminhado para o tratamento de acordo com suas necessidades. Esse tipo de tratamento varia muito de acordo com o usuário e também a frequência com que ele deve participar das atividades do CAPS. Para aqueles que necessitam de um acompanhamento psicológico também dentro de casa ou mesmo não tem possibilidade de suporte familiar em todos os períodos do dia, existem os residenciais terapêuticos. Esse tipo de assistência pode ser pública ou particular e se assemelha a uma pensão ou residência estudantil com uma equipe de psicólogos e acompanhantes terapêuticos de plantão. Apesar do usuário, nesse caso, viver no espaço de tratamento, é completamente o oposto do sistema de internação, pois os residenciais são, em geral, localizados em centros urbanos, instalados em casas comuns e os moradores continuam a exercer suas tarefas diárias. A equipe de profissionais não está ali para impor um modo de vida, mas de supervisionar desde a tomada de medicação, até a elaboração de um projeto terapêutico com 77
a equipe e familiar que o acompanham em outros momentos. Assim, o intuito da reforma psiquiátrica é a promoção de outros espaços, que sejam da ordem da reinserção social, de modo que o usuário esteja desperto, desenvolvendo suas atividades cotidianas. Esse trabalho não deve se restringir à mudança no espaço de tratamento apenas. Há também toda a mudança de pensamento e hábitos de uma sociedade. Anteriormente, as pessoas viam na instituição psiquiátrica o único local a se recorrer em caso de um surto psicótico ou qualquer tipo de problema. No caso do Juquery, a legislação só veio para reforçar o fenômeno que já estava em andamento: a desinstitucionalização. A instalação do CAISM foi já um grande avanço e talvez só tenha ocorrido por conta da influência do Juquery nas cidades vizinhas e da visibilidade que gera por conta de sua extensa propriedade territorial. O Complexo, no entanto, tem potencial para abrigar também outros tipos de atendimento. O número de pacientes que obtiveram alta da instituição e que se mantiveram nas bordas do hospital faz com que haja uma grande demanda de serviços de atenção à saúde mental na região. O fechamento dessa instituição que chegou a abrigar 14.000 pessoas possibilitou que muitos internos pudessem retornar a sua liberdade, mas também isentou o estado dos cuidados dessas pessoas prejudicadas por anos de confinamento. Essa responsabilidade passou a ser dividida então pelas famílias e pelo município, que está ainda em processo de estruturação. Os espaços físicos que deveriam ser preparados para receber essas pessoas está ainda bastante defasado. Não é objetivo dessa pesquisa apontar se esses instrumentos são eficientes ou não do ponto de vista médico, entretanto pode-se levantar algumas questões acerca das discussões que ocorrem atualmente e que envolvem geralmente a falta de 78
espaços de internação de pacientes em surto psicótico. Com o movimento contra os manicômios, passou-se a negar o espaço de tratamento terapêutico. A forte polarização dos argumentos faz com que qualquer tipo de ajuda médica seja vista como institucionalização por aqueles que lutam contra o sistema assistencial. Isso cria uma negação da produção de espaços de qualidade para o acolhimento e assistência ao usuário e a sua família. Esse receio pode explicar porque há uma negação em utilizar o conjunto edificado do Juquery para a assistência psicossocial. O que se vê claramente no sistema de saúde mental hoje instalado, é uma defasagem entre a prática e o discurso. Quando se formula a ideia dos CAPS e dos hospitais dia prevê-se também a criação de residenciais terapêuticos. A questão é que nenhuma das estruturas citadas acima foi criada em quantidade e com a qualidade prevista. A substituição de um sistema absurdo (a rede manicomial) por um sistema que funciona só na ideia (o sistema atual) não resolve o problema e ainda aumenta a polarização das discussões. Além disso, a alta demanda de locais adequados faz com que o “controle de qualidade” deles não seja feito, correndo-se o risco de entrarmos de novo no problema dos maus tratos sem superFoto: Área de lazer Residencial Terapêutico Vila São Paulo. O residencial é um serviço particular e funciona como um serviço de pensão
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visão. Alguns dos CAPS existentes hoje possuem espaços muito precários. Em conversas com profissionais da área da psicologia e da psiquiatria as reclamações acerca do atendimento são basicamente as mesmas: onde não existem recursos, coloca-se uma televisão e uma mesa e já se chama de CAPS, sem que haja qualquer tipo de profissional para acompanhar as atividades; em outros casos, os espaços estão bem distribuídos e o quadro de especialistas é bem formado, mas falta treinamento da equipe que deveria receber e fazer a triagem desses usuários, os quais muitas vezes têm dificuldade de se comunicar, barram-nos ainda na porta. Essa falta de sensibilidade ao receber o usuário pode ser proporcionalmente associada à falta de conhecimento popular sobre os transtornos mentais. Há uma forte tendência da sociedade de associar qualquer transtorno ao retardo, à incapacibilidade. Assim, temos de deixar de pensar que os problemas que cercam o sistema de saúde mental é apenas um assunto de saúde pública, resolvida a partir de questões exclusivamente técnicas. Para que haja um avanço tecnológico nos espaços de tratamento é preciso também um desenrolar do pensamento. Segundo Foucault, arquitetura e sociedade são intimamente interligadas: a configuração espacial é consequência do pensamento social e ao mesmo tempo agente de transformação. A construção social é um problema que pode ser combatido a partir de iniciativas de conscientização. Para que elas ocorram, no entanto, precisamos de um envolvimento de diversas camadas da sociedade.
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O ESTIGMA DA LOUCURA
Os objetivos desse trabalho envolvem não só a preservação de um patrimônio histórico ou o reconhecimento de um passado conturbado, mas também a discussão acerca das potencialidades de um local como o Juquery e a sua missão como bem cultural e equipamento público. A preservação de um bem é também um ato político, pois a presença, ausência e forma que se apresentam no imaginário da sociedade podem mudar completamente a interpretação coletiva sobre determinado assunto. O que permitiu aos hospícios tomarem-se instituições totais foi a naturalização do conceito de loucura criado pela psiquiatria do século XIX e a aceitação do manicômio como estrutura disciplinar básica. Mesmo que os princípios do tratamento da saúde mental tenham mudado bastante, ainda convivemos com a imagem estereotipada do manicômio enraizada. O reconhecimento desse bem e sua apropriação pelo usuário esbarram no imaginário do louco construído por séculos. O medo da loucura e a caracterização do local opressor incentivam a negação desses locais como bens culturais. Essa rejeição é frequente quando se trata de situações polêmicas ou traumáticas, como os manicômios, leprosários ou campos de concentração nazistas. Paradoxalmente, o caráter de abandono, somado à grandiosidade e à arquitetura rigorosa desses edifícios incentivam ainda mais a reprodução dos mistérios que os cercam. O Hospital psiquiátrico do Juquery representa um inegável patrimônio arquitetônico, histórico, cultural e ambiental que ainda vive sob o
Foto: Sala de cirurgia recém inaugurada no pavilhão tuberculosos. Avelino Ginjo, 1973. Fonte: Arquivo do Estado de São Paulo
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48. GOFFMAN, Erwing. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, 1988. pp.5 49. FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica, 1997.
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estigma das práticas que ali ocorreram. Essa imagem negativa não só prejudicam o reconhecimento do patrimônio como também corroboram com a continua marginalização dos que sofrem algum tipo de transtorno mental. Erwing Goffman48 define estigma como a diferença, sempre de caráter depreciativo, entre a as expectativas sobre algo a partir de um estereotipo pré-definido (identidade social virtual) e seus verdadeiros atributos (identidade social real). Esse é, portanto, um conceito relativo, pois um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem. A palavra estigma é uma invenção dos gregos que faziam marcas no corpo de um indivíduo para identificá-lo como ritualmente poluído. Na Era Cristã, a palavra passou a ter dois significados: referir-se a marcas religiosas ou marcas corporais de distúrbios físicos. “Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal.” Foucault reconstrói o pensamento medieval em a história da loucura,49 esclarecendo sobre a tentativa de explicar os delírios a partir de crenças religiosas e associar qualquer tipo de atitude anormal às práticas diabólicas ou simplesmente à punição ao pecado. Isso ocorre desde a antiguidade e vem se arrastando até os dias atuais como um eco. As manifestações artísticas, e as mídias audiovisuais têm importante papel na construção da memória coletiva, devido a seu rápido alcance e sua facilidade de comunicação, consistindo uma rica fonte de análise para a compreensão da sociedade em certo período. Na alta idade média o louco era constantemente expulso da cidade, visto como um ser impuro, castigado por Deus. Analisando peças de teatro referenciais a partir da baixa idade média podemos perceber que o parvo passa a ser interpretado como a vítima, desprovido de pensamentos pecaminosos, já que vive preso em seus delírios.
Desde a criação do cinema, é usual encontrar reportagens, documentários e até filmes de ficção que recriam um ambiente sombrio e um quadro que fetichiza tanto a doença como também os hospitais psiquiátricos. Possivelmente são agentes influentes na difusão do estigma da loucura na atualidade, os filmes de terror ou suspense que corriqueiramente usam os hospitais psiquiátricos como cenário. Atualmente documentários e séries de televisão revisitam os edifícios dos manicômios fechados pela reforma psiquiátrica ao redor do mundo, ou para falar de personagens ilustres que passaram por ali, ou para procurar fantasmas das almas atormentadas vagando pelo edifício abandonado. A partir da década de 1970, a cinematografia de ficção teve uma larga produção de filmes sobre o controle moral e a privação da liberdade exercida nos hospitais psiquiátricos principalmente. A figura do manicômio então consagrou-se como essa espécie de campo de concentração moral, em que a estrutura disciplinar faz o papel de vilão, o hospício geralmente ganha destaque no filme como um organismo vivo, os enfermeiros perdem o papel de personagens e tornam-se componentes do hospício, inerentes a ele. Quanto à produção nacional, filmes com esse tipo denuncia passam a ser comuns na década de 1990 e desenvolvem o personagem do doente mental através dessa visão mais humanizada. O premiado longa “Bicho de sete cabeças” (2001) se passa no Hospital Psiquiátrico Espírita de Bom O longa A Cova das Serpentes (1948) é um dos primeiros a denunciar os abusos ocorridos dentro das paredes do hospício. Essa maneira de expor o manicômio não só coloca o ambiente terapêutico como determinante para a psiquiatria, como também sutilmente aponta a culpa da sociedade em saber da existência dos maus-tratos e mesmo assim deixar que eles continuem. 85
a. Cena do filme Bicho de Sete Cabeças (2001) b. Cena do filme Nise - O Coração da Loucura. A cena mostra o ateliê montado pela enfermeira. c. O set de filmagem de Ilha do Medo (2010) sendo montado no Complexo do Medfield State Hospital, Massachusetts. O complexo é registrado no National Register of Historic Places e foi reaberto em 2014 como um parque público.
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Retiro, em Curitiba, e apresenta as práticas abusivas ocorridas ali em pleno ano da lei da reforma psiquiátrica. Em 2016, o tema voltou às grandes telas com o filme Nise – o coração da loucura, que trata da trajetória de Nise da Silveira e da fundação do Museu das Imagens do Inconsciente. Sobre o Juquery, não há ainda nenhum longa metragem produzido, mas há muitos documentários, exposições, artigos e livros. Essa produção de material de qualidade é fundamental para que o complexo seja objeto de ações educacionais. Recentemente, peça chamada “Juquery, memórias de quase vidas”, montada a partir de relatos dos próprios internos, esteve em cartaz na antiga rotunda feminina. Iniciativas desse tipo demonstram essa vontade de se apropriar do espaço, que também faz parte dessa memória. Segundo Pierre Nora,50 lugares de memória são aqueles que não dependem de importante significância arquitetônica, mas que a sociedade dotou de significado por acontecimentos ali ocorridos ou por serem importantes para um grupo social ou formação ideológica. O Complexo do Juquery não só é um lugar dotado de múltiplos significados, como também possui uma arquitetura simbólica que deve ser usada para a construção da identidade dessa memória. O imaginário coletivo é construído através de diversos estímulos. É preciso contar e recontar essa história para que a consciência social surja. Há ainda várias reportagens sensacionalistas sobre o complexo, que tendem a aparecer com menos frequência conforme a instituição abre as portas, se aproxima do hospital tecnológico e cria um espaço de cultura. O grande desafio das escolhas a serem feitas está em fazê-las de modo a valorizar o espaço construído sem que a “memória da loucura” se perca. O Juquery é mais um dos espaços asilares que passam pelo mesmo problema: como preservar a memória do lugar e ao mesmo tempo desconstruir o conceito de loucura vigente.
50. NORA, Pierra. Entre
história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, 1993.
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RECONHECIMENTO E TOMBAMENTO
A. Asilo Central B. 1ª Colônia Feminina C. 1ª Colônia Masculina, incluindo a 1ª Colônia Agrícola (Chácara) D. 4ª Colônia Masculina E. 8ª Colônia – Colônia Adhemar de Barros F. Sede da Fazenda Cresciúma G. Antigo Manicômio Judiciário
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Uma parte dos edifícios do Complexo Hospitalar do Juquery foi tombada em 09 de março de 2011, segundo a resolução SC13, a partir das justificativas: O Complexo Hospitalar do Juquery a) Constitui iniciativa pioneira na assistência asilar aos alienados no Estado de São Paulo, tendo como mentor e seu primeiro dirigente o médico, Dr. Francisco Franco da Rocha (1864 – 1933); b) Representa um marco histórico da medicina no Brasil, em particular da psiquiatria e das políticas de saúde pública;
51. Resolução SC n.º 13, de 09/03/2011, publicado no DOE de 31/03/2011, pag. 203 (Republicado em 17/05/2011, pag. 37, com mapa) 52. SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Condephaat – Parecer Técnico UPPH NºGEI-7-2009. Estudo de tombamento do Hospital do Juquery (conjunto arquitetônico, acervo documental e área verde existente) – Franco da Rocha. In: Sessão Ordinaria 1605ª. Condephaat, 29 de nov. 2009.
c) É exemplar de relevante valor arquitetônico, implantado e construído segundo o projeto inicial do escritório do engenheiro arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851 - 1928), considerando-se a área de implantação do conjunto, na qual se destaca a harmonia das edificações, paisagismo e jardins remanescentes.51
A partir desse trecho da resolução e também dos mapas apresentados, percebemos que a seleção dos edifícios para o tombamento é restrita às primeiras fases do conjunto. Segundo Iná Silva, é discutível essa seleção , uma vez que enfraquece o caráter de bem cultural daqueles que ficaram de fora dessa lista. Além disso, foram desconsiderados alguns dos edifícios citados no Estudo de tombamento do Hospital do Juquery.52 A medida regulamentar não tomou a Fazenda Juquery como uma unidade territorial, tratando -a de forma fragmentada, interferindo assim na interpretação relativa a sua organização espacial, em suas composições arquitetônicas que articulam aquele espaço, como também na relação cidade-hospício.53
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EDIFÍCIOS TOMBADOS Área Envoltória área Tombada Edifícios tombados 1. Prédio da Administração (remanescente), incluindo a estátua do busto de Franco da Rocha, no estado em que se encontra após o incêndio de 2006; 2. 1º Pavilhão Masculino; 3. 2º Pavilhão Masculino; 4. 3º Pavilhão Masculino; 5. 4º Pavilhão Masculino; 6. Rotunda Masculina; 7. 1º Pavilhão Feminino 8. 2º Pavilhão Feminino 9. 3º Pavilhão Feminino 10. 4º Pavilhão Feminino 11. Rotunda Feminina 12. Cozinha e Torre que a encima, bem como o Sino e o Relógio nela existentes; 13. Lavanderia 14. Pavilhão de Menores Anormais 15. 5º Pavilhão Feminino 16. Oficinas da seção de ergometria 17. Garagem 18. Escola Pacheco e Silva 19. Conjunto Lavanderia Central 20. Pavilhão Tuberculosos 21. Necrotério 22. Pavilhão de Observação (Gêmeos) 23. Clínicas Especializadas 24. Serviço de Ergoterapia 25. Farmácia b) Hospital Central (Dispersos) 26. Residência do diretor 27. Pérgola e vestiários do Campo de futebol 28. Vila residencial com sete edificações para médicos e funcionários. c) Colônias 29. 1ª Colônia Feminina 91
53. ROSA DA SILVA, Iná.
Preservação do Juquery: território e arquitetura,
2011, pp 321.
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O conjunto edificado, portanto, deve ser considerado como um todo, onde cada edifício da estrutura montada para servir o hospício tinha seu valor funcional e estético, sendo que todos os espaços, da sala de cirurgia, à casa da subfrota fazem parte do desempenho preciso dessa instituição como um todo. Preservar um elemento ou outro é o mesmo que negligenciar toda a estrutura arquitetônica e todo o cuidado tomado para a construção desse ambiente terapêutico que tanto influenciou e participou dos métodos de tratamento desde a fundação do Juquery. É possível perceber a valorização unicamente do conjunto inicial projetado por Ramos de Azevedo. Ainda que a 1ªcolônia feminina, 4ª e 8ª masculina e mais alguns edifícios construídos pelo serviço de ergoterapia tenham sido selecionados no tombamento, o nome de Ralph Pompeo de Camargo não foi citado. De fato, o envolvimento de um arquiteto famoso facilita a aproximação e o interesse dos órgãos em proteger aquela arquitetura. Os poucos conjuntos com características asilares tombados em nível estadual são notáveis pela sua arquitetura. O Sanatório Vicentina Aranha foi inaugurado em 1924 como hospital de tuberculosos. Projetado pelo escritório Ramos de Azevedo, foi tombado em nível estadual em 2001, e hoje tornou-se um parque para a cidade de São José dos Campos. Quando falamos sobre bem cultural é comum vir à mente, imediatamente, as palavras “patrimônio arquitetônico”. As políticas de proteção brasileiras, ao selecionarem bens para salvaguardar, por muito tempo privilegiaram tipos arquitetônicos específicos, considerando valores estéticos e feitos grandiosos em detrimento de outros valores que são atualmente reconhecidos. Assim, ainda que a constituição de 1988 tenha alargado a definição de bem cultural54, ainda temos dificuldades de estabelecer proximidades e
Parque Vicentina Aranha em São José dos Campos. Vista de um edifício do entorno. Fonte: http://www.sjc.sp.gov.br/
valorizar certos objetos, principalmente quando envolve o traumático. No caso das instituições asilares, a arquitetura ganha aqui maior destaque por ter sido fator determinante no tratamento de doenças mentais ao longo da história. A questão estética é também importante, mas não deve sobrepor-se aos valores históricos, funcionais e até à carga emotiva, que são indissociáveis da arquitetura. Se existem conjuntos arquitetônicos que transparecem todos seus ideais através de sua própria materialidade, são eles os manicômios. As instituições asilares representaram um papel importantíssimo no desenvolvimento da dinâmica social brasileira, mas ainda pouco do seu patrimônio histórico é documentado e salvaguardado. Pudemos presenciar nas últimas décadas um crescente interesse nesses bens que representam memorias difíceis. Talvez por consequência do distanciamento histórico ou mesmo da consciência social emergente a qual nos referimos até agora, estudos e pesquisas mais recentes têm possibilitado uma avaliação crítica das condutas passadas com sugestões de nova abordagem ao problema. Prova disso é o estudo de Adda Ungaretti e Amanda Caporrino para o tombamento dos remanescentes da Rede Paulista de Profilaxia e
54. Segundo o artigo 216 da constituição brasileira: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
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Tratamento da Hanseníase. Como os hospitais psiquiátricos, os leprosários foram tipologias de conjuntos isolados e autossuficientes, atrelados às correntes higienistas no país. O grande avanço desse estudo para outros anteriormente feitos, foi a forma de atacar o problema, considerando um caráter de rede para essas instituições ao invés de estudá-las isoladas. Não por coincidência, esses locais possuem uma arquitetura muito similar àquela encontrada no juquery: estilo eclético, muito ligado ao religioso e a noção de ordem e simetria. Alguns deles também apresentaram até mesmo as galerias abertas como modo de circulação entre os pavilhões. Outro ponto a ser levantado é a relação entre o estado de conservação dos edifícios e sua utilização atual. O Juquery se destaca por apresentar muito do seu patrimônio material conservado, ainda que tenham havido muitas alterações nas edificações ao longo desse mais de um século de vida. Quanto aos seus acervos, muito foi perdido no incêndio de 2005, mas ainda existe grande parte guardada no complexo, incluído o acervo do museu Osório Cesar e também do Museu de Anatomia. A partir do inventário feito por Iná Silva (2011), pudemos levantar alguns pontos acerca da materialidade de cada edifício e de seu estado de conservação, sobre o qual estruturamos nosso projeto.
Um exemplo de antigo leprosário, que hoje funciona como instituição de saúde é o Hospital Geriátrico de Convalescentes D. Pedro II, antigo Asilo dos Inválidos da Av. Guapira (1885), também projeto de Ramos de Azevedo. Nota-se aqui também a semelhança na concepção das galerias. Fonte: Acervo Santa Casa de Misericórdia. 94
Conforme observamos, os edifícios ocupados mantém-se mais bem conservados que os vazios, condição essa que pode não ser determinante para a salvaguarda dos edifícios, mas serve sim de motivação para fazê-lo.55 Segundo Iná Silva: deve ser pensado no âmbito do planejamento local o “arrolamento dos principais problemas e potencialidades da Fazenda Juquery, inerentes a sua paisagem e arquitetura, no sentido de adequar as suas novas funções sem descaracterizar o patrimônio.”56
Isto é, as novas ocupações devem ser compatíveis com a estrutura física do edifício. A destinação do bem a um novo uso não deve sobreporse ao edifício e nem aos seus valores atribuídos. Segundo as indicações da Carta de Veneza de 1964: Art 5º - A conservação do monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é portanto, desejável, mas não pode nem deve conceber e se pode autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes.57
Todo e qualquer edifício a ser adaptado a um novo uso deve antes passar por uma avaliação criteriosa de danos e por ações conservativas, respeitando os princípios do restauro-crítico abordados por Giovanni Carbonara58. É importante salientar que por mais que tenhamos uma diretriz norteadora e certos critérios gerais de manutenção, cada edifício tem sua história, arquitetura e relação com o ambiente que está inserido e, portanto, devemos identificar as peculiaridades de cada um e fazer escolhas adequadas, respeitando seus valores históricos, formais, estéticos e afetivos.
55. KÜHL, Beatriz, Anais do Museu Paulista. v. 18. n.2. jul.- dez. 2010. 56. ROSA DA SILVA, Iná.
Preservação do Juquery: território e arquitetura, 2011. pp.28
57. Carta de Veneza, 1964. Documentos digitais disponíveis no portal do IPHAN. http://portal.iphan.gov.br/ uploads/ckfinder/arquivos/ Carta%20de%20Veneza%201964.pdf 58. CARBONARA, Giovanni. Avvicinamento al restauro, 1997.
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USOS ATUAIS ADMINISTRAÇÃO DO COMPLEXO 1. Diretoria Técnica 2. Núcleo de Atividades Complementares (NAC) 3. Núcleo de Acervos 4. Setor de Apoio Técnico e Administrativo - Faturamento 5. Arquivo 6. Ouvidoria
APOIO 7. Almoxarifado 8. Depósito de materiais 9. Zeladoria e gerenciamento de resíduos 10. GCEFRO 11. Manutenção predial
ANTIGO JUQUERY 20. SAME 21. Setor de nutrição 22. Farmácia hospitalar e CME 23. Setor de RH 24. Farmácia 25. Centro de Atendimento à mulher 26. Hospital de Reabilitação
OUTRAS SECRETARIAS 27. Hospital Estadual de Franco da Rocha 28. CAISM 29. Arquivo do Hosp. Brigadeiro 30. Arquivo do Hosp. Dante Pazzanese de cardiologia
12. Grupo gerador
31. Arquivo Central do DRSI
13. Setor de hidráulica
32. Arquivo Central do DPME
14. Oficinas de apoio
33. KGAYHFGF
15. Agrnomia e Chefia do setor de jardins
34. CEFOR
16. Setor de Jardins 17. Subfrota 18. Adm. subfrota 19. Capela
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USOS ATUAIS RUÍNAS SEM USO
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UMA PROPOSTA
PROGRAMA
59. O Centro Formador de Pessoal para a Saúde de Franco da Rocha foi criado em 1959 como Centro Estadual Interescolar do Departamento Psiquiátrico II. A escola, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, está localizada no Complexo Hospitalar do Juquery. O CEFOR faz parte da Rede de Escolas Técnicas do SUS, que oferece cursos técnicos descentralizados em mais 65 municipios do estado de São Paulo.
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A pesquisa iniciou-se com o intuito de compreender a evolução dos espaços de tratamento da saúde mental e discutir como esses espaços poderiam ser traduzidos no Novo Complexo Hospitalar do Juquery. Inicialmente pensou-se que poderíamos projetar um espaço adequado dentro dos atuais conceitos da psiquiatria. Essa hipótese foi quebrada no momento em que percebemos que a questão dos tratamentos psiquiátricos não podem se resumir a modelos predefinidos, não apenas pela complexidade da doença, mas pelas multifaces do indivíduo. Chegamos assim, no entendimento de que ao invés de se pensar espaços de extrema especialização deve-se propor locais em que grupos vindos de diferentes áreas do conhecimento possam conviver. Se o Juquery tornou-se patrimônio estadual por conta de sua importância em diversas áreas do conhecimento, essa pluralidade e possibilidade de entendimento deve ser mantida. Optou-se por seguir com o tripé estipulado anteriormente no Plano Diretor de 2006: saúde-cultura-educação. Propomos um programa hibrido, colocando lado a lado institutos complementares, que possam suprir tanto a demanda por serviços de saúde, como também trazer reflexões acerca do passado. O Complexo do Juquery manteria então sua vocação técnico-cientifica, com o desenvolvimento de pesquisas na área da saúde, memória e história.
Considerando a importância do patrimônio juqueriense para a historiografia da saúde e os vastos acervos que estão ali guardados, propomos que esse material receba um espaço onde possa ser exposto e estudado. Prevemos, assim, a construção não apenas de um memorial, como o do Plano de 2006, mas um centro de memória, com atividades que visem a conservação desse patrimônio e que possam ter um papel importante na desconstrução do estigma que envolve ainda os transtornos mentais. Como dito anteriormente, às vezes precisamos de ajuda e estímulos externos para a formulação de uma ideia. A memória é algo construído pela sociedade e nós utilizamos do artificio material para montar os fatos dentro de uma linha do tempo. A implantação de um “museu da mente” será a chave para a aproximação do público não só com a história do complexo, mas também com os princípios da psiquiatria. Ligada a esse centro deve haver a instalação de uma instituição que possibilite estudar, expor, e discutir essa historicidade. A historiografia da saúde foi deixada de lado durante muito tempo não só no Brasil, mas no mundo todo. Esse fenômeno se agrava quando entramos na questão da psiquiatria que tem sido até mesmo negada como ciência nas últimas décadas. Esse tema, felizmente, está entrando cada vez mais em pauta no cenário mundial. A Casa de Oswaldo Cruz (COC), uma instituição ligada à Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), é a pioneira no país em iniciativas de pesquisa em preservação do patrimônio da saúde no Brasil, além de ações educacionais que atingem desde o público escolar, até pesquisadores em geral. A COC é a única que promove um programa de pós-graduação em história das ciências da saúde no brasil e também de preservação do patrimônio da saúde. Com a pretensão de formar pesquisadores.
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A FioCruz, recriada em 1980, é uma instituição brasileira referência em pesquisas na área da saúde e microbiologia. Em seu Campus sede, em Manguinhos, traz um exemplo bem sucedido de um conjunto de edifícios históricos em bom estado de conservação, com grande variedade de serviços à população. Além da sede de Manguinhos, outros conjuntos históricos fazem parte do patrimônio da fundação, como parte da antiga Colonia Juliano Moreira, onde localiza-se hoje o Campus Mata Atlântica. Usando essa instituição como modelo, foram levantados alguns programas que poderiam ser implantados na área central do complexo. Demandas já descritas aqui também foram levadas em conta, como a necessidade de abrigar divisões da Secretaria de Saúde estadual, além de programas já implantados no conjunto, que são de extrema relevância e poderiam ser ampliados a partir de uma reorganização do complexo, como por exemplo o Centro Formador de Pessoal para a Saúde de Franco da Rocha (CEFOR). Tal programa poderia encontrar a oportunidade de se desenvolver no Juquery, senão como uma instituição independente, como um braço da própria FioCruz ou uma unidade atrelada à FMUSP, por exemplo. Com a grande quantidade e variedade de espaços disponíveis no Juquery é possível acomodar mais de um instituto tranquilamente, desde que esses institutos sejam colocados sob uma administração única, principalmente na questão do gerenciamento espacial. Prevemos, assim, uma interligação de públicos e a formação de uma referência estadual de pesquisa na área da saúde em geral, com grande enfoque na área da saúde mental.
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Educação
Pesquisa
Saúde
- Consulta ao arquivo histórico. - Consulta ao arquivo de documentação administrativa. - Cursos e assessoria técnica em gestão de documentos e arquivos. - Cursos de pós graduação com a intenção de formar pesquisadores. - Cursos profissionalizantes: a) formação de profissionais de enfermagem e outras funções ligadas ao cotidiano hospitalar; b) capacitação em conservação de bens culturais; c) cursos técnicos voltados para a população
- Museu da Mente (com visita aberta ou guiada.) - Biblioteca de história das ciências da saúde. - Biblioteca de Educação e divulgação científica. - Apresentações e exibições cinematográficas
- Centro de Atenção Integral à Saúde Mental - Hospital Estadual Francisco Franco da Rocha Sobrinho - Laboratórios ambulatoriais - Farmácia - Centro de Apoio Psicossocial II
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ORGANIZAÇÃO ESPACIAL
A partir do programa apresentado, serão feitas considerações acerca das diretrizes usadas na preservação dos edifícios e paisagem estudados, traçando um plano preliminar de distribuição das funções e das instituições dentro do território da fazenda. Para estabelecermos as premissas a serem utilizadas, tomamos por base principalmente os dois trabalhos sobre o território do Juquery anteriormente citados. Iná Silva pensou políticas de gestão e estabeleceu algumas diretrizes a partir das teorias sobre a conservação dos edifícios, das quais muitas serão aqui abordadas e reinterpretadas. Reforça-se assim nossa escolha em discutir um plano diretor e esboçar o planejamento estratégico de uma área do Complexo, ao invés de escolher apenas um edifício para intervenção. Ainda no início da pesquisa, foi possível perceber que muitos dos problemas enfrentados pelo Juquery estavam ligados à segregação de suas terras e à falta de uniformidade administrativa. Primeiramente, é importante considerar que a possibilidade de preservação e do desenvolvimento consciente do espaço construído da Fazenda Juquery, é necessária a adoção de uma gestão única pelo menos em relação à administração territorial. Ainda que o território permaneça sendo utilizado pelas diversas secretarias e prefeitura, é fundamental que haja uma comissão interdisciplinar que vise garantir a preservação dos edifícios, da paisagem natural e centralize o gerenciamento e a fiscalização das propostas de alteração espacial.
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Assim, se os objetivos iniciais do trabalho incluíam o entendimento das ferramentas arquitetônicas agentes do tratamento em saúde mental, não caberia analisar apenas um aspecto do Juquery ou um edifício isolado. Para reportar-se às questões territoriais, importa elucidar que o bem patrimonial juqueriense é produto de ação cultural, e, sendo assim, as medidas de preservação, de sua paisagem natural e paisagem construída, devem considerar o seu contexto, pois se trata de monumento inseparável da história de que é testemunho e do meio em que está inserido.60
Por outro lado, se essa unidade territorial é importante no âmbito da preservação, ela não é necessária na questão dos usos, que podem ser múltiplos desde que não sejam conflitantes entre si ou com a arquitetura. No caso do programa da Fiocruz abordado anteriormente, a conversa entre a área da saúde e as ciências da preservação estão intimamente interligadas, e mesmo com grande variedade de serviços e formas de utilização, os institutos mantém uma conversa linear. A escolha de um recorte para trabalhar a questão da concordância dos usos vem de uma impossibilidade metodológica e temporal de se arriscar a tratar de todo o território. O núcleo central (asilo central e 1ª colônia feminina) foi escolhido como objeto de intervenção pelo isolamento das outras colônias que se encontram espalhadas pelo território e são administradas por outras secretarias do estado. Devido à multiplicação de funções em cada um dos conjuntos, cada qual com um núcleo de serviço e lazer, estes podem ser considerados independentes entre si. Exceto pela 1ª colônia feminina, cuja proximidade e configuração volumétrica estabelecem uma relação direta com o asilo central. Outro aspecto importante, foi a abordagem da questão da intenção arquitetônica de cada edifício e valores do complexo serem resgatados a partir da implantação de um novo programa. A 107
recuperação e reapropriação do espaço como bem público estadual, e superação do estigma relacionado às doenças mentais são os objetivos principais para a definição dos usos propostos ao conjunto, que poderão também garantir a sua conservação e a sua manutenção. A primeira questão a ser enfrentada, então, diz respeito aos acessos do Juquery, de um lado está cercado por um parque estadual e de outro pela linha férrea, tampouco possui um sistema eficiente de circulação e transporte público. A proximidade com a estação da CPTM, localizada na antiga estação Juquery, pode interligar o Complexo com a região metropolitana, levandonos a propor aberturas de novas vias e a criação de novas portarias para o complexo, além de sugestões de linhas circulares de transporte público. Em segundo lugar, definimos eixos de percurso para o conjunto de edifícios centrais. Os deslocamentos entre os edifícios é de livre escolha do usuário, mas alguns desses trajetos são destacados como principais e importantes para a compreensão da paisagem, da concepção espacial. O já comentado eixo de simetria do asilo central representa o deslocamento mais importante, pois além de recriar a sensação de ordem a partir dos edifícios geminados, também possibilita a compreensão do que foi a convivência dentro do asilo. O destaque das galerias cobertas como principais caminhos de circulação é importante também para o entendimento do conjunto histórico. Ao redor delas ficam destinadas as áreas que envolvem lazer, contemplação, estar e reflexão, ou seja, com um fluxo mais lento que possibilita um olhar atento ao patrimônio. As estradas que circundam o conjunto histórico possibilitam já a circulação por automóveis e também por transporte público. O caminho à direita do conjunto leva o visitante diretamente para a área de pesquisa, atividades acadêmicas e 108
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de ações educacionais, enquanto o lado direito cria um acesso direto ao corredor da saúde, trazendo uma separação de fluxos clara, com a intenção de otimizar o funcionamento do conjunto. Um desafio, no entanto, está na questão da acessibilidade universal dentro do complexo. A circulação entre os edifícios periféricos do núcleo histórico pode ser garantida com adaptações simples nos acessos dos edifícios e modificações no calçamento, mas entre os pavilhões e galerias do projeto de Ramos de Azevedo deve haver um maior cuidado na hora da adaptação às normas de acessibilidade. Uma alternativa possível às escadas entre as galerias, é a duplicação do fluxo com a criação de acessos adaptados nos edifícios anexos aos pavilhões tombados, construídos como refeitórios e ampliação dos banheiros. Assim, foi possível dividir o espaço em macro zonas, que acabam por sobrepor-se exatamente devido à ligação intima que há entre algumas funções do complexo.
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Eixo de acolhimento Contém a área esportiva e faz a ligação e distribuição para todas as outras áreas. É também a área mais ligada ao acolhimento do público, podendo ser usada como área livre, de lazer pelos habitantes da região. Corredor da saúde A área da saúde concentra-se nos edifícios que estão próximos ao hospital Francisco Franco da Rocha Sobrinho. Por ser uma área de fácil acesso e com a possibilidade de manter o acesso independente, concentra todos os laboratórios e edifícios ligados ao serviço da saúde.
Área da memória Compreende a entrada pelo antigo pavilhão da administração e segue pela ala direita do asilo. Abriga o museu da mente e outras atividades ligadas à história do complexo. Área de pesquisas e cursos ligados à área da saúde Onde estão concentradas as atividades ligadas a atividade acadêmica. Núcleos de apoio operacional Estão espalhados pelo complexo. São os espaços destinados apenas aos funcionários e abrigam setores de manutenção e apoio a todos os tipos de atividade.
O EIXO DE ACOLHIMETO O que chamamos de eixo de acolhimento não é exatamente um espaço definido, mas a conjunção de áreas livres. Os jardins do conjunto principal, juntamente com a área esportiva, formam um interessante corredor verde que adentra o núcleo central do complexo e conforma os pátios entre os pavilhões. As áreas verdes são muito presentes, garantindo ao complexo a evocação da tranquilidade que tornam todo o espaço agradável e convidativo. As áreas verdes em geral são muito bem mantidas pelo setor de manutenção de jardins do próprio complexo, que existe desde a sua concepção no século XIX. Fazendo uma transição bem clara entre a área aberta e o espaço mais reservado do núcleo central, podemos descrever esse eixo a partir do norte em direção ao sul: área esportiva e parque do Rio Juquery, escadaria de entrada, Pavilhão de Recepção, jardim interno e área de alimentação (antigas cozinha, lavanderia e clinicas especializadas). Recentemente foi acordado com a prefeitura de Franco da Rocha uma parceria de compartilhamento de uso da porção norte do complexo (área esportiva, margem do rio, portaria e casa do diretor). No entanto, a única proposta feita até agora é o restauro da Casa do Diretor, sendo que não existe então qualquer definição para as áreas livres. Com a finalidade de complementar o sistema de equipamentos públicos que está sendo estabelecido pela prefeitura (paço municipal, parque esportivo e praça da saúde), propomos então a recuperação da área esportiva do Juquery, que compreende o campo de futebol, vestiários e pergolado, além da reconstrução da antiga pista de atletismo. Ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, a reconstrução da pista de atletismo não representa a formulação de um falso histórico e nem uma simples tentativa de mimetizar o passado. A pista deve 112
ser feita a partir das normas esportivas atuais e com novos materiais, assim como os vestiários que deverão ser adaptados às necessidades atuais. A sua instalação ali onde era a primeira não interferirá na percepção do território. Com a instalação desses equipamentos, eventos oficiais poderiam voltar a acontecer no território do Juquery, o que atrairia o público e facilita a identificação do espaço como parque. As escadarias foram concebidas originalmente como um convite à entrada, ao mesmo tempo que o enquadramento do conjunto a partir dela afirma a imponência e monumentalidade do conjunto asilar. As escadas que levam ao conjunto esportivo são divididas em duas fileiras de escadas com 4 lances cada e platôs intermediários onde existem bancos e áreas de estar. O pavilhão de entrada é o edifício mais simbólico do Juquery, razão pela qual prevemos o tratamento das ruínas existentes para usá-las como base para um pavilhão de recepção e pequenas exposições. Jardins internos Praça de convívio
Pavilhão de recepção
Escadaria principal Área esportiva
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Quanto aos jardins internos, deve ser feito um projeto paisagístico considerando a flora ali existente hoje e também as suas configurações passadas, que podem ser recuperadas a partir do extenso acervo fotográfico existente no Juquery. Esse equilíbrio entre o antigo e o atual é importante para a criação de áreas interessantes de estar, com referências ao jardim francês, que possam ser utilizadas para atividades diversas. A recuperação do apiário é também recomendada.
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Como ponto de chegada desse eixo principal e fazendo as vezes de núcleo de convívio presume-se a instalação de uma praça de alimentação. Presume-se que a área seja um polo agregador para todos os públicos. Esse núcleo é um dos mais complicados em termos de projeto, por conta do espaço bastante subdividido, mas acreditamos que os pequenos pateos formados pelos edifícios e as varandas formadas pelas galerias podem ajudar na criação de espaços de convívio que mantem um ar mais intimistista que os dos outros grandes jardins.
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CORREDOR DA SAÚDE Os serviços de atenção básica à saúde foram por muito tempo realizados pelo Juquery, desde a década de 1980, dada sua ausência na cidade de Franco da Rocha. Com esses serviços aos poucos se municipalizando, o Complexo Hospitalar deixa de realiza-los e tenderá, a partir de agora, a focar seus esforços em suprir “demandas estaduais”. Serviços existentes, como por exemplo, o Centro de Atendimento à Mulher tem previsão de sair do Juquery até 2017. Sob gerencia do estado de São Paulo ficam então serviços mais complexos ou que estão diretamente ligados às atribuições do estado, como o CAISM e o Hospital Estadual.
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A área destinada ao atendimento à saúde é então delimitada pela influência desses dois equipamentos. A futura instalação de outros serviços poderia complementar o que nós chamamos de corredores da saúde. Como uma estratégia de planejamento, delimitamos essa área beirando os espaços destinados ao público, como uma possibilidade de integrá-la às áreas de convívio. Um núcleo mais ao sul com fácil acesso à portaria abrigando os grandes hospitais (CAISM, hospital de traumas e hospital de retaguarda) e uma rua mais aberta à circulação cotidiana com os serviços de consulta, ambulatórios em geral e até um CAPS (mediante a uma possível associação com a prefeitura). Os serviços ambulatoriais sempre existiram, mas estão atualmente defasados. Alguns dos laboratórios foram fechados na época em que a Santa Casa administrava os serviços de saúde do Juquery com a intenção de se serem reabertos e reformulados. Quando a Santa Casa deixou de administrar o Juquery, esses serviços simplesmente deixaram de existir. Contudo, a administração do Complexo hospitalar do Juquery tem a vontade de restaurar esses serviços. A instalação de um CAPS II teria de ser mais bem estudada pelos órgãos de saúde responsável, mas essa ideia poderia extrapolar as propostas de espaço de tratamento psicossocial, utilizando de toda uma estrutura de parque, pesquisa e oficinas, aberta a todos os públicos. Uma possível conversa também com cursos específicos e atividades ligadas à área de preservação é uma proposta a ser estudada. Essa dinâmica teria de ser observada e reavaliada depois de alguns anos de implantação. Sugerimos a instalação desse equipamento ou instituição com missão semelhante no edifício conhecido como “prédio H”, pela sua proximidade com o conjunto das oficinas e ateliês, onde pretende-se ministrar a maior parte dos cursos técnicos. Outro pavilhão bastante interessante para atividades terapêuticas e educativas é o antigo galpão de apoio à lavanderia central, hoje usado como deposito.
Corredor de ambulatórios Hospital de Retaguarda e adminstração
CAISM
Hospital Estadual CAPS Ii
IML
SETORES DE APOIO
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As áreas de apoio estão espalhadas pelo complexo. As áreas desenhadas no mapa são as que apresentam uma grande concentração de edifícios com essas funções, mas isso não impede que existam espaços destinados a esses setores espalhados também por toda a área do complexo. Os edifícios designados para almoxarifado e depósitos estão em geral nas bordas do complexo, enquanto aqueles que envolvem serviços de manutenção poderão estar mais ligados às áreas centrais. Muitos desses setores já existem e possuem construções específicas, como a garagem e o setor de jardinagem, outros podem ser criados nos mais diversos lugares ou também serem reformulados para incorporar as atividades educacionais, como no caso da marcenaria, que fazia parte do setor de ergoterapia.
Administração central
Almoxarifado Garagem
Jardins
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NÚCLEO DA MEMÓRIA
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O núcleo da memória localiza-se na parte leste do conjunto central.Com a intenção de fazer o público circular pelas galerias e identificar a arquitetura da concepção inicial do asilo, os três primeiros pavilhões femininos e a rotunda feminina servirão de área para o museu da mente, que será detalhado mais a frente. Como parte de um programa integral de conservação de acervos, um núcleo de laboratórios voltado para a recuperação de documentos deve ser implantado no 4º pavilhão feminino. Nesse pavilhão também devem existir salas para a consulta a esses acervos mais raros e também salas de aula para cursos e palestras diretamente ligados a esses laboratórios. Um local para a guarda temporária dos acervos que passarem pelos laboratórios é também essencial. O 5º Pavilhão feminino fica com a reserva técnica do museu, tanto pela posição estratégica entre o museu e os laboratórios de restauração de acervos, quanto pela possibilidade de aproximação de pequenos caminhões pelo estacionamento, já que é comum que uma parte do acervo seja transportado para outros lugares, em exposições itinerantes. Por fim, o antigo pavilhão escola, ou 6º pavilhão feminino, deve ser adaptado para receber acervo administrativo. As estruturas dele são bastante resistentes para receber esteiras rolantes e há ali também a possibilidade de instalação de pequenas salas de consulta.
Pavilhão de recepção Acervos administrativos
Acervo histórico Museu da Mente
Conservação de acervos
ÁREA DA PESQUISA Para concentrar os locais de ensino e pesquisa, foi designada a ala oeste do complexo, por conta de sua variedade e quantidade de edifícios, além da facilidade de acesso e distribuição das vias. Essa área engloba também o núcleo das oficinas que devem ser restauradas para abrigar ateliês e salas de aula para laboratório. Esses edifícios foram construídos com uma lógica industrial, com grandes vão e pé direito alto, sendo perfeitos para abrigar esse tipo de atividade. É recomendado, aí, que se renove a marcenaria e o ateliê de pintura para que sirvam os cursos práticos de conservação, as atividades do CAPS e também os serviços de manutenção e conservação do edifício.
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Outro laboratório sugerido é o de fotografia e restauração de documentos. Apesar de ser usado para cursos práticos, seus setores estão mais atrelados à área de acervos, no núcleo da memória. A biblioteca e áreas de estudo e consulta ocupam os pavilhões de internação masculinos, que ligam-se com o pavilhão de recepção e ao museu da mente através das passarelas cobertas e jardins internos. O uso de um dos pátios dos pavilhões como área de leitura deve ser incentivado, enquanto outro pode ser pensado como acesso técnico, com pequeno estacionamento, por exemplo. As funções de cada edifício dessa área oeste não serão detalhadas, pois isso exigiria um aprofundamento na questão do programa da instituição, ou mesmo do núcleo de institutos a serem instalados ali. O que fica indicado aqui é a variedade de tipologias que existem nessa área, incluindo também as casas da Vila Residencial. Uma ideia para esses edifícios a ser revistada, é a criação de uma hospedaria para estudantes e pesquisadores, ou mesmo para pessoas da região que podem vir de todo o estado. Existiram já algumas propostas feitas por dirigentes locais e estaduais para a instalação de uma instituição de ensino no Complexo Histórico do Juquery. Os cursos citados entram como sugestão de temática, sendo que para a instalação deles deve-se considerar também disponibilidades e demanda. Os cursos de enfermagem e radiologia do CEFOR é um ponto de continuidade com o existente. Sua sede seria mantida no pavilhão de observação, que precisa de apenas alguns reparos, mas está em bom estado de conservação.
Ateliês Biblioteca Científica
Núcleos de pesquisa Sede do CEFOR
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OS MUSEUS DA LOUCURA
Com os avanços na área da psiquiatria e a necessidade discuti-los de modo mais amplo e transdisciplinar, um novo programa cultural aparece em diversos lugares do mundo: os espaços culturais da loucura. O esvaziamento dos hospitais psiquiátricos faz com que eles tornem-se os lugares ideais para as discussões propostas até aqui. Esses locais espalham-se com diferentes enfoques e demonstram que iniciativas de conscientização podem partir de diferentes maneiras de apropriação dos espaços da loucura. Na casa de Dona Yayá, a instalação do Centro de Preservação Cultural da USP (CPC-USP) fez parte de uma estratégia de recuperação do patrimônio e também da instalação de um local de cultura e extensão universitária em local estratégico. A mudança do imaginário construído sobre a história de Dona Yayá mudou significativamente a partir dessa ação. A propriedade, quando abandonada, era conhecida por “a casa da louca”, sendo hoje chamada de “a casa da USP”. Não existe mais associação imediata com o estigma da loucura, o que interessa bastante para a instituição ali instalada, cujas ações culturais, extrapolam a figura de Dona Yayá e estão muito associadas também com a produção artística do próprio bairro do Bixiga, onde se localiza. Ainda assim, existe uma preocupação constante em se discutir as memorias da antiga moradora - que evocam também discussões acerca da desigualdade de gêneros e intolerâncias em geral – mas essa conversa é uma em tantas outras que a instituição propõe. Contar a história
Imagem usada na divulgação da exposição Histórias da Loucura: Desenhos do Juquery, em 2015 no MASP. Autor: Albino Braz, Sem título (homem vestido com retrato na parede)/Acervo MASP Fonte: http://masp.art.br/
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de Dona Yayá, é algo importante para gerar discussão, acender a faísca. O sucesso do projeto de restauro talvez esteja em conservar as adaptações feitas para a acomodar a interdita e ainda alocar instalações para exposições temporárias exatamente nesses espaços. Assim, mesmo que estejam acontecendo outros tipos de atividades, os detalhes arquitetônicos que remetem à questão da internação estarão sempre presentes, acompanhados de pequenas placas explicativas, para quem quiser entender melhor a história da casa. No caso do Oregon State Hospital, a visibilidade gerada após ter servido de cenário para o consagrado longa metragem Um Estranho no Ninho (1975) fomentou a curiosidade do público, trazendo muitos visitantes para o local. Esse hospital é um dos muitos exemplares dos asilos construídos segundo o Plano Kirkbride durante o final do século XIX e portanto reconhecido pelo seu caráter monumental. Às vésperas da demolição do antigo asilo para a construção de um novo hospital estadual em 2009, um grupo de preservacionistas da cidade de Salem gerou uma campanha para proteger o edifício. Após um processo relativamente curto, não só o edifício construído pelo famoso alienista Kirkbride, mas também toda a área do campus do asilo foi aceita no Registro Nacional de Lugares Históricos do Estados Unidos em 15 de janeiro de 2008, inviabilizando sua demolição e exigindo cuidadosa atenção às transformações que o conjunto exigia. As obras foram completadas em 2012, quando foi inaugurado o Museum of Mental Health localizado em parte do edifício monumental, ao qual foi acoplada a nova ala hospitalar construída. Esse novo equipamento passou a ter um importante papel na questão da preservação da memória da instituição. O acervo conta com objetos usados nos tratamentos psiquiátricos ao longo dos anos, fotografias, relatos de pacientes, funcioná126
Thomas Story Kirkbride foi um importante defensor do Tratamento Moral e do asilo como participante ativo da terapia. Desenvolveu um conjunto de princípios para essas construções, que ficou conhecido como Plano Kirkbride, implantado em todo o território dos Estados Unidos. Seus conjuntos possuiam um bloco central administrativo e duas asas com enfermarias diferenciadas, facilitando a segregação hierárquica dos internos de acordo com gênero e sintomas da doença. Imagem: Planta asilo de Denver, de Gordon Loyd, 1885. Fonte: http://www.oobject.com/ category/insane-asylum-plans/
rios e textos explicativos. A recriação de muitos ambientes da época do antigo asilo reforça a compreensão do funcionamento do modelo asilar e, em geral, serve para impressionar o visitante. Esse artifício, apesar do caráter didático, é questionável, pois não só cria um falso histórico de certa forma, como também não é certo que colabore para a desconstrução do estigma em torno do paciente internado. Dessa maneira, o fato de ter-se reconhecido todo o sítio como importante para a memória nacional não quer dizer que o patrimônio tenha sido considerado em todas as suas fases. O projeto de restauro, talvez por julgar valores estéticos, estilísticos ou distorcer questões de originalidade, apostou na reconstrução da imagem do manicômio no período de sua concepção, é uma abordagem recorrente, mas equivocada do ponto de vista do restauro crítico. As fachadas de tijolos vermelhos foram recriadas após terem passado décadas cobertas por tinta branca e algumas construções posteriores/menores demolidas, para que fosse feita a ligação entre a parte histórica e as novas instalações.
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Foto: Obra exposta no mueu de Barbacena. Fonte: Reportagem G1: http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2016/05/ museu-da-loucura-e-reaberto-com-objetivo-de-conscientizar-sociedade.html
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Por outro lado, esse exemplo é bastante interessante por dois motivos: o primeiro é o fato de ter conciliado um museu bastante frequentado com equipamentos de saúde de qualidade; o segundo é o reconhecimento desse bem cultural ter partido dos próprios habitantes da cidade, mesmo com a existência do estigma da internação ainda muito forte. Esses exemplares arquitetônicos começaram a ficar obsoletos nos anos 1950, por conta das mudanças nos tratamentos e também pela ineficiência e monumentalidade de suas estruturas, passando por longos períodos de abandono ou por demolições. Atualmente sua importância para a história da saúde, da arquitetura e da sociologia são mais facilmente reconhecidos por estudiosos norte-americanos e esse processo passa pela sociedade, sim. Outro caso interessante é o do já citado hospital Colônia, em Barbacena, maior manicômio brasileiro e também famoso pela crueldade com que eram tratados seus internados. Esse local foi denunciado em 1961 e chocou a população da época, mas continuou funcionando durante pelo menos mais duas décadas até que fossem feitas reais ações de desinstitucionalização dos pacientes. Atualmente, o antigo torreão do hospital abriga o Museu da Loucura. Aberto em 1996, nasceu de uma parceria entre a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) e a Fundação Municipal de Cultura de Barbacena(Fundac). O edifício passou por uma segunda revitalização recentemente, que recuperou as estruturas já existentes, fez adaptações para acessibilidade universal e também instalou novas estruturas para abrigar equipamentos audiovisuais, e reinaugurou em maio de 2016. A entrada é gratuita e a exposição é pequena, mas consegue traduzir a história da psiquiatria no Brasil e faz o visitante refletir diante de fotografias relatos e antigos objetos. É como se o museu fosse uma tentativa de reparação das atrocidades ocorridas ali, um memorial, como relata Edson
Fachadas dos museus: a. Oregon State Hospital Museum of Mental Healthprovides b. Museu da Loucura em Barbacena c. Benthlen Museum of Mind
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Brandão, responsável pelo projeto museológico e curador da exposição: Nosso objetivo é tratar de forma crua e com respeito pelas pessoas que viveram e morreram no Hospital Colônia. É um memorial e um ambiente respeitoso às memórias de quem foi submetido a tratamento no local. Uma forma simples, mas bastante eficiente de recuperar e mostrar esta história.
O mais recente e inovador “museu da loucura”, entretanto, talvez seja o Bethlen Museum of Mind, nos arredores de Londres. O edifício onde fica o museu é parte do terreno do Benthlen Royal Hospital, instituto derivado da antiga instituição, conhecida por St Mary Bethlehem, Bethlehem Hospital ou somente Bedlam. Instalado no edifício que ficou conhecido como o primeiro manicômio do mundo e também famoso mundialmente por conta dos absurdos que ali ocorreram, sendo a maior fonte de inspiração para filmes, livros de terror séries de televisão, além de documentários e reportagens sobre manicômios. A fundação da instituição data de 1247 e desde 1930 as internações dos pacientes com transtornos mentais passaram a ser feitas em um outro edifício ao sul de Londres e permanecem ainda acontecendo ali. Apesar da fama, a ideia do museu é exatamente quebrar a imagem do hospital psiquiátrico convencional. Visitantes que esperam encontrar As antigas estátuas que ladeavam o portão do Hospício de Bentlhen hoje dão boas vindas ao visistante no salão de entrada do museu. As estátuas de Caius Gabriel Cibber são conhecidas como a Melancolia e a Insanidade. Fonte: http://museumofthemind.org.uk/
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camisas de força e aparelhos de lobotomia expostos vão se decepcionar, já que a exposição apresenta toda a questão a partir de intervenções artísticas e até em forma de sátira, respeitando, é claro a memória daqueles que sofreram ou sofrem de transtornos mentais. Para Mike Jay um dos curadores da exposição, “cada era em Bethlem começou com grande otimismo, mas terminou em fracassos, ganhando essa reputação por negligência.” Há também um cuidado em descrever as histórias e os conceitos médicos por épocas. Para quebrar a ideia de câmara de horrores, extrapola a própria instituição e fala sobre o tratamento da loucura em outros lugares do mundo, além de tratamentos alternativos à psiquiatria tradicional que aconteceram paralelamente ao desenvolvimento dos manicômios. Assim, a quantidade de instalações para expor o assunto demonstra a necessidade da nova organização social de discutir a questão da loucura e de combater seus estigmas. A partir desses exemplos, é possível identificar linhas de abordagem sobre os hospitais psiquiátricos e perceber também que elas estão extremamente ligadas ao caráter da instituição. O Museu da Loucura de Barbacena, por exemplo, é claramente uma tentativa de reconciliação do passado e acaba tornando-se um memorial de si mesmo. Essa abordagem é completamente voltada para a história do que aconteceu naquele lugar específico, e talvez não sirva para mais lugar nenhum. Usá-la para um memorial no Juquery pode ser o mais fácil a se fazer, pois existe material para encher pavilhões apenas com a história do complexo, mas somente contar uma história fica aquém do potencial que o local possui. Não existe, portanto, um “modo correto” de expor essas memórias de práticas ultrapassadas e esse é um desafio colocado para todas as pessoas que se envolvem com essa problemática. Desafio esse que vem sendo enfrentado há algum tempo pela direção do Juquery. 131
O MUSEU DA MENTE NO JUQUERY
A criação do Museu Osório Cesar foi o primeiro passo na tentativa de quebrar o estigma. A exposição valoriza o paciente internado e o aproxima do visitante, no sentido de trazer visibilidade ao trabalho e não à doença. A escolha de colocar essa exposição na Casa do Diretor, nos anos 1980, tinha os seus motivos: a casa é bastante próxima do portão de acesso e afastada o suficiente do asilo central que ainda funcionava como instituição asilar. O plano proposto, no entanto, tem o objetivo de trazer o público para dentro dos edifícios históricos. Assim, o museu passaria a fazer parte do complexo, trazendo também a referência arquitetônica do espaço de tratamento como parte integrante da exposição. Assim como na Casa de Dona Yayá, esses elementos podem se manter ao fundo e serem destacados durante a exposição, com placas informativas ou mesmo com instalações artísticas. (Foto da instalação no solário da yaya??) Além disso, essas provocações podem sugerir uma exposição similar ao modelo de Benthlen, um tipo de abordagem mais conveniente na tentativa de desmistificar a loucura. É importante pontuar que o objetivo não é defender as práticas médicas ou então esconder a parte dolorosa da história, mas talvez seja necessária a desconstrução de um conceito para que se reconstrua outro. Esse museu, associado a um centro de pesquisa apenas tem a agregar no sentido de poder trazer em primeira mão o que está sendo debatido dentro das cúpulas medicas. Discutir o futuro, nesse caso, é tão importante quanto expor o passado.
Obra pertencente ao Museu Osório Cesar. Escultura de Maria Aparecida Dias. © MUSEU OSÓRIO CESAR / ACERVO JUQUERY / REPRODUÇÃO EDUARDO CESAR Fonte: http://revistapesquisa. fapesp.br/
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a. Parte dos acervos do Museu Osório Cesar e Museu de Anatomia. Hoje algumas peças são usadas em exposições externas e esperam uma sede própria. b. Intervenção no solário da Casa de Dona Yayá em junho de 2013. A intervenção trazia a reflexão a a partir da arquitetura, denunciando a liberdade controlada em que vivia Dona Yayá. c.Instalação nas escadas do Museu de Barbacena
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É interessante também se utilizar das duas coleções já consolidadas pertencentes ao Juquery: a do Museu Osório Cesar, com trabalhos de antigos pacientes; e a do Museu de Peças Anatômicas; além de outras obras e artefatos que possam ser utilizados. Por outro lado, mais importante que a exposição desse acervo permanente, é a montagem de ações temporárias, com intuito de incentivar a rotatividade de público e, assim, conscientizar um maior número de pessoas. Por isso é importante que haja uma equipe de curadoria e expografia que trabalhe constantemente a questão do material exposto, criando novas abordagens. Para discutir essas ideias acerca do desenvolvimento da psiquiatria de modo didático e profundo é necessário também a criação de um setor educativo atrelado diretamente às atividades do museu. Tanto para as áreas internas quanto as externas aos pavilhões podem ser usadas nas montagens dessas atividades. Pensando na organização dessas áreas e no dimensionamento do museu como um todo, foram feitos ensaios com uma divisão preliminar das funções desse museu. Os pavilhões previstos para esse uso são os 1º, 2º e 3º Pavilhões Femininos e a Rotunda Feminina, além do antigo edifício da administração que servirá de porta de entrada a todo o complexo. Essa vontade de transformar o Juquery em lugar de memória apareceu no plano diretor de 2010, como um memorial da saúde, concebido em forma de um jardim vertical no espaço em ruínas. A ideia da manutenção do prédio arruinado segue a linha da conservação total, onde as marcas do incêndio seriam completamente preservadas. Essa visão, no entanto, está equivocada no que diz respeito à necessidade de manter as ruínas para preservar as marcas do incêndio. O aspecto da ruína vem sendo explorado em projetos de arquitetura nas últimas décadas, e possibilita que eventos traumáticos deixem suas marcas sem que inutilizem
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LEGENDA 1.Pavilhão de recepção 2.Entrada e estacionamento setor técnico e equipe do museu 3.Administração museu, e outros setores internos (educativo, expografia, curadoria, divulgação) 4.Torre de circulação e locais de apoio (chapelaria, sanitários) 5.Jardins e áreas livres 6.Exposição 7.Salas de recreação e outras atvidades 8.Pequeno auditório 9.Setor de conservação, laboratórios e cursos 10.Reserva Técnica do museu e consulta a peças raras 11.Estacionamentos públicos 12.Guarda de acervos primariose administrativos com pequena sala para consulta
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Circulação Museu Recepção e eventos Área reservada
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30m
Varanda do 1º Pavilhão Feminino Entrada do setor técnico
Anexo
2º Pavilhão Feminino
Guarda volumes,e Circulação
Área expositiva
Galeria e Rotunda Feminina
3º Pavilhão Feminino
Área expositiva e recreativa
Anfiteatro e salas recreativas
Galerias cobertas
62. MARTÍNEZ, Ascensíon Hernández. Léstetica del deterioramento e dell’imperfezione: uma tendenza in crescita nel restauro architettonico, 2013.
edifícios para sempre. Essa ideia possibilita que os espaços de memória se insiram no cotidiano das pessoas. O projeto de Linazaroso para a biblioteca do Centro Culturale Escuelas Pías em Lavapiés, em Madrid, ocupa as ruínas da antiga capela do complexo das Escuelas Pías de San Fernando para criar um ambiente perfeito para o estudo, com iluminação cenográfica. Segundo Hernandez,62 espaços com aspecto de ruína vem sendo cada vez mais associados à arte em geral, mas principalmente à arte abstrata. Cada vez mais a arte vem se aproximando do espectador e intervenções no espaço estão mais presentes nos museus. O projeto de Ricardo Carvalho e Joana Vilhena para o Museu do Design e da Moda (MUDE), em Lisboa , por exemplo, mantém o caráter de ruína de uma antiga estrtura industrial e usa seus grandes vãos livres para criar um espaço expositivo interessante. Esse pavilhão então deverá manter as marcas do incêndio e ainda sim, voltar a servir de porta de entrada para o complexo. A proposta é que as marcas deixadas na parede sejam visíveis, sem que seja feito o reboco interno. Os assoalhos do segundo pavimento também não seriam reconstruídos, sendo perceptíveis apenas por algumas partes remanescentes. Centro Culturale Escuelas Pías en Lavapies instalada na antiga capela das Escuelas Pías, em Madird. Foto: Carlos Garmendia Fernández Fonte: http://hicarquitectura. com/
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Para que o edifício possa ser utilizado como um local de abrigo, mesmo, sugere-se a colocação de uma cobertura com estrutura metálica, que possa lembrar a forma das antigas tesouras de madeira, mas que seja facilmente distinguível na sua materialidade. Como já dito anteriormente, o maior desafio para essa parte do Complexo é a questão da acessibilidade universal. Para as áreas expositivas e de atividades abertas ao público em geral, foram designados os três pavilhões que estão em nível, no mesmo platô do projeto de Ramos de Azevedo. Ainda que os pavilhões enfermaria possuam dois andares, que deverão ser vencidos por meio de um projeto de elevador, segundo as normas de acessibilidade, a circulação entre eles poderá ser feita mais livremente. O jardim com a galeria coberta entre os três pavilhões serve de espaço de distribuição e garante a versatilidade de percursos importante para o funcionamento de um museu, já que a rotatividade das exposições acarreta também no fechamento ao público de algumas áreas em certos períodos. No 1º pavilhão feminino poderão concentrar-se as áreas administrativas, bem como os setores de divulgação, educativo, curadoria. O acesso ao pátio desse pavilhão diretamente pela rua é também uma vantagem para a separação de fluxos entre a equipe do museu e o público. O 3º pavilhão feminino, também possui partes de sua estrutura incendiadas. Nesse pavilhão, é estudada a possibilidade de usar a ala direita do edifício, onde não existe mais o assoalho do 2º pavimento, para a criação de um pequeno auditório usando toda a altura do edifício.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim concluo essa pesquisa e exponho aqui minhas inquietações. Durante toda a minha formação na FAU aprendi que o passado tem papel fundamental na formação do imaginário coletivo, concebido a partir de ideias que agem diretamente na construção e entendimento do espaço. No entanto, nem sempre os resultados de uma corrente de pensamento é positivo e por isso temos de manter-nos sempre aprimorando e repensando nossas construções sociais. Isso vale não apenas para o campo da arquitetura, mas também outros ramos de atuação. Usamos dos bens materiais para reconstruir uma história e por mais que mudemos a forma de conta-la, o edifício estará ali ainda de registro para nos lembrar e fazer pensar. No caso dos hospitais psiquiátricos e principalmente do Juquery, a arquitetura foi não só testemunho de muitas histórias, mas também protagonista. Segundo Foucault, é impossível dissociar sociedade da arquitetura. Desde a concepção de Pinel, o papel da arquitetura asilar sobrepunha-se ao do próprio alienista. Assim, o arquiteto teve tanta influência na construção do conceito de manicômio que conhecemos hoje, quanto o médico psiquiatra e, portanto, tem também a missão de repensar os locais de tratamento e também cuidar da memória daqueles que por muitos anos foram exilados.
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É ainda comovente a força afetiva que o Juquery carrega, tanto para as pessoas que amam quanto para as que repudiam. E depois de tantas transformações e formas de encarar a loucura, o hospício chegou onde hoje está com diferentes versões de uma mesma história. As diretrizes aqui colocadas tem muito ainda a serem discutidas e poderão fazer parte de um conjunto de ações que buscam a melhor versão do Complexo. Um próximo capitulo está sempre para ser escrito e também temos diversas maneiras de fazê-lo. O asilo colônia do Juquery, portanto, não se tornará, com mais de um século de vida, o coadjuvante da própria história, mas deverá usar de seu espaço para atender uma população local e também servir de consciência para gerações futuras. O hospital da cidade hoje representa um estigma social, mas promessas que se tem sobre renovação do território podem ajudar a mudar essa visão.
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