Gabriellyn Padilha Uma coletânea de artigos Eliane Brum
O Brasil Da Última Década
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Copyright © Gabriellyn Colaço Padilha, 2019 Produtores editorias: Eliane Brum Diretor de produção gráfica: Gabriellyn Colaço Padilha Gerente de produção gráfica: Vanessa Mezzadri Brudzinski Preparação de texto: Gabriellyn Colaço Padilha Revisão: Camila Kramer de Oliveira e Gabriellyn Colaço Padilha Projeto gráfico: Gabriellyn Padilha Capa: Gabriellyn Padilha Agradeço ao trabalho da jornalista Eliane Brum. Um trabalho executado na disciplina de Produção Gráfica no Unibrasil - Centro Universitário
Padilha, Gabriellyn Colaço, 2019 O Brasil da última década: uma coletânea de artigos editorial do jornal El País - 70 p. Curitiba/Paraná.
1.Editorial 2. Política 3. Atualidade 2
SUMÁRIO 1. Planeta em Chamas........................ 2 2. A Amazônia é o centro do mundo....6 3. Eu+Um+Um+Um.........................20 4. Os “malucos” sapateiam no palco...33 5. O ódio deitou no meu divã.............59
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PLANETA EM CHAMAS Enquanto bombeiros tentam apagar fogo na Europa, no Brasil fazendeiros queimam a AmazĂ´nia
22 de agosto de 2019
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A ativista adolescente Greta Thunberg costuma afirmar, na tentativa de acordar os adultos para a emergência climática: “Nossa casa está em chamas”. No momento, a sueca de 16 anos atravessa o oceano num barco à vela rumo à Conferência da ONU, em Nova York. O que Greta pode não ter imaginado, porém, é ainda mais assustador: fazendeiros e grileiros atearem fogo na floresta, deliberadamente, como manifesto político. É o que aconteceu na Amazônia, em 10 de agosto, segundo foi anunciado no jornal de Novo Progresso. Fazendeiros e grileiros do entorno da BR-163, uma das regiões de maior conflito na Amazônia brasileira, programaram o “Dia do Fogo”. Na data, queimaram áreas de pasto e em processo de desmatamento. Segundo uma das lideranças, entrevistada pelo jornal Folha do Progresso, setores do agronegócio se sentem “amparados pelas palavras de Jair Bolsonaro”, que estimula a abertura das áreas protegidas da floresta para exploração agropecuária e mineração. Disseram também que desejavam mostrar ao presidente do Brasil “que querem trabalhar e o único jeito é derrubando, e para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”. Tudo indica que conseguiram. Anunciaram, pelo jornal, cinco dias antes. 5
E cinco dias depois a Amazônia queimou — mais. Segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, na data marcada Novo Progresso teve um número 300% maior de “queimadas”, com 124 focos de incêndio. No dia seguinte, o número saltou para 203. Em Altamira, as estatísticas mostraram uma realidade ainda mais assustadora: 743% de aumento, com 194 focos de incêndio. No domingo, chegaram a 237. Enquanto Greta Thunberg navega para Nova York, sua frase se literaliza: há incêndios em diferentes partes do planeta, da Gran Canária, na Espanha, a Sibéria, na Rússia. A conexão com a crise climática pode ser mais ou menos direta. Na Europa, os focos apareceram depois do julho mais quente da história. No Ártico, os incêndios recordes criaram um ciclo vicioso: o fogo libera CO2 para a atmosfera e agrava o colapso climático. O trabalho dos bombeiros, em todas as partes, está sendo dificultado pelas ondas de calor e pela falta de umidade. Na América Latina, a Amazônia queima, assim como pedaços da Bolívia e do Paraguai. As más notícias para superaquecer o planeta não param. Diante da explosão do desmatamento no Governo de Bolsonaro, Alemanha e Noruega suspenderam quase 300 milhões de reais destinados à proteção da Amazônia. Bolsonaro respondeu ao 6
Governo alemão: “A Alemanha vai parar de comprar a Amazônia a prestações”. E, aos noruegueses: “Pega a grana e ajude a Angela Merkel a reflorestar a Alemanha”. Bolsonaro não é apenas estúpido — e muito mal educado. As declarações servem para acirrar a paranoia de seus seguidores: o antipresidente e seu clã defendem que a preocupação com a floresta é uma desculpa para tomar a Amazônia do Brasil. O curioso nacionalismo pregado por Bolsonaro amaldiçoa a Europa em nome da soberania e se curva até a cueca aparecer diante dos Estados Unidos de Donald Trump. Para setores do empresariado brasileiro, porém, a única boa notícia no atual governo foi o acordo entre União Europeia e Mercosul, costurado durante 20 anos pelos governos anteriores e hoje ameaçado pela escandalosa destruição da Amazônia. A Europa precisa decidir: se continuar comprando carne de desmatadores e produtos empapados de agrotóxicos, o agronegócio predatório vai continuar se sentindo à vontade para ampliar os dias de fogo, estimulado pelo perverso que hoje lidera o Brasil.
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A AMAZÔNIA É O CENTRO DO MUNDO Eliane Brum apresentou este discurso durante jantar no primeiro encontro do ‘Rainforest Journalism Fund’, em Manaus, em julho
9 de agosto de 2019
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Eu quero começar lembrando onde nós estamos. E quero lembrar que nós estamos no centro do mundo. Essa não é uma frase retórica. Também não é uma tentativa de construir uma frase de efeito. No momento em que o planeta vive o colapso climático, a floresta amazônica é efetivamente o centro do mundo. Ou, pelo menos, é um dos principais centros do mundo. Se não compreendermos isso, não há como enfrentar o desafio do clima. Esta é justamente a razão de colocarmos o nosso corpo aqui, nesta cidade, Manaus, capital do Amazonas, estado do Brasil, país que abriga cerca de 60% da Amazônia. Manaus é tanto uma floresta em ruínas como as ruínas de uma ideia de país. Manaus pode ser vista como a escultura viva de um conflito iniciado em 1500, com a invasão europeia que causou a morte de centenas de milhares de homens e mulheres indígenas e a extinção de dezenas de povos. Neste momento, em 2019, testemunhamos o início de um novo e desastroso capítulo. O Brasil é um grande construtor de ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais desde que começou a ser inventado pelos europeus no século 16. Neste momento, uma forma de vida 9
predatória chamada bolsonarismo assumiu o poder quase total e totalitário no Brasil. O principal projeto do bolsonarismo é justamente construir ruínas com método e com velocidade na floresta amazônica. É por isso que pela primeira vez, desde a redemocratização do país, temos um ministro contra o meio ambiente. Nenhum ministro do meio ambiente dos últimos mais de 30 anos teve a autonomia que já demonstrou ter Ricardo Salles, o ministro contra o meio ambiente. Ele é o office-boy do agronegócio predatório, este que é responsável pela maioria das mortes no campo e na floresta e é também a maior força de destruição do Brasil. Não é que hoje os ruralistas estão no Governo. No governo eles estiveram desde sempre, formalmente ou não. Hoje eles são o Governo. O principal projeto de poder do bolsonarismo é converter as terras públicas que servem a todos, na medida em que garantem a preservação dos biomas naturais e a vida dos povos originários, em terras privadas para lucros de poucos. Estas terras, a maioria delas na floresta amazônica, são as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as terras públicas ocupadas pelos ribeirinhos (população que vive da pesca, da coleta do látex, da castanha e de outros frutos da floresta há mais de um século), e 10
as terras de uso coletivo dos quilombolas (descendentes de escravos rebeldes que conquistaram seu direito aos territórios ocupados pelos antepassados). As disputas entre os vários grupos que ocupam o Governo é constante, inclusive porque o Governo Bolsonaro tem como estratégia simular sua própria oposição, ocupando todos os espaços. A abertura das terras protegidas dos povos indígenas e a abertura das áreas de conservação, entretanto, despontam como consenso. Sobre transformar a maior floresta tropical do planeta em boi, soja e mineração não há briga. Algumas das vozes levemente dissonantes já foram deletadas do Governo. O bolsonarismo vai muito além da criatura que lhe dá nome. Eventualmente, em algum momento, o bolsonarismo pode inclusive prescindir de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo, intimamente conectado à crise global das democracias, está influenciando toda a região amazônica, fazendo com que figuras que se mantiveram nos esgotos por anos, às vezes décadas, estejam hoje emergindo em outros países da América Latina onde também o destino da maior floresta tropical do mundo está sendo decidido. O bolsonarismo, vale repetir, não é uma ameaça apenas para o Brasil, mas para o planeta. Exatamente porque ele destrói 11
a floresta estratégica para o controle do aquecimento global. Como resistir a essa enorme força de destruição, a essa competente força de destruição? Para sermos capazes de resistir nós precisamos nos tornar floresta — e resistir como floresta. Como floresta que sabe que carrega consigo as ruínas, que carrega consigo tanto o que é quanto o que deixou de ser. Me parece que é a esse sentimento político-afetivo que precisamos dar forma para dar sentido à nossa ação. Para isso temos que deslocar algumas placas tectônicas de nosso próprio pensamento. Temos que descolonizar a nós mesmos. O fato de a Amazônia ainda ser vista como um longe e também — ou principalmente — como uma periferia dá a dimensão da estupidez da cultura ocidental branca, de matriz primeiro europeia e depois norteamericana, essa estupidez que molda e dá forma às elites políticas e econômicas do mundo e também do Brasil. E, em parte, também às elites intelectuais do Brasil e do planeta. Acreditar que a Amazônia é longe e que a Amazônia é periferia, quando qualquer possibilidade de controle do aquecimento global só é possível com a floresta viva, é uma ignorância de proporções continentais. A floresta é o perto mais perto que todos 12
nós aqui temos. E o fato de muitos de nós nos sentirmos longe quando aqui estamos só mostra o quanto o nosso olhar está contaminado, formatado e distorcido. Colonizado. Dias atrás eu conversava com procuradores e defensores públicos que chegaram há pouco em cidades do interior amazônico. Era o primeiro posto deles. Porque essa é a lógica. A Amazônia é o epicentro dos conflitos, mas, para fiscalizar o Estado e defender os direitos dos mais desamparados, as instituições mandam os sem nenhuma experiência. Alguns deles — não todos — interpretam que estão sendo enviados a uma região amazônica como um teste ou mesmo um castigo, um calvário que precisam passar antes de ter um posto “decente”. Parte deles — não todos — não vê a hora de ter o que é chamado de “remoção” e deixar essa bad trip para trás. E não é culpa deles, ou não é só culpa deles, porque essa é a lógica das instituições, este é o olhar para a Amazônia. Felizmente alguns deles percebem a importância do seu papel, aprendem, compreendem, permanecem e se tornam servidores públicos essenciais para a luta pelos direitos em regiões onde os direitos pouco ou nada valem. Lembrei a eles que, como eu, eram privilegiados. Eles estavam justamente no 13
centro do mundo. Eles estavam no melhor lugar para se estar para quem tinha escolhido aquela profissão. Mas teriam que se esforçar muito para superar a sua ignorância, como eu me esforço todos os dias para superar a minha. Era a população local, eram os povos da floresta que teriam de ter enorme paciência para explicar a eles o que precisam saber, já que pouco ou nada sabem quando aqui chegam. O mesmo princípio vale para jornalistas e também para cientistas. Se nós nos reunirmos aqui acreditando que somos especiais por estarmos preocupados com a floresta, não teremos compreendido nada. Se nós compreendermos a nós mesmos — nós jornalistas, nós cientistas, nós brancos para muito além da cor da pele —, como aqueles que deixam o conforto de suas casas em cidades “desenvolvidas” e supostamente com mais opções de lazer e cultura para se solidarizarem com os povos da floresta, também não teremos entendido nada. Se existe uma verdade ela está nas ruínas. A única verdade são as ruínas. Durante mais de duas décadas, eu me desloquei para as diferentes regiões da Amazônia e depois voltei para Porto Alegre, primeiro, depois para São Paulo, onde vivia. Em 2017, me mudei para Altamira, para deixar de ser “enviada especial” à Amazônia, 14
mudar o ponto de vista a partir do qual eu olhava para o Brasil e para o planeta e ser coerente com a convicção de que a floresta é o centro do mundo. Na chegada, tive dificuldades para alugar uma casa. Algumas das que eu gostava pertenciam a grileiros e/ou mandantes de crimes contra povos da floresta e pequenos agricultores. Porque aqui, no centro do mundo, a relação é direta. Não é que os proprietários de casas, apartamentos, hotéis e condomínios de São Paulo sejam mais “limpinhos”, é que a cadeia entre o crime e a ponta é mais longa e tem mais intermediários. Nas grandes cidades do Brasil e do mundo, somos afastados das mortes das quais nossos pequenos atos cotidianos se fazem cúmplices, temos o privilégio de não sermos obrigados a questionar a origem da roupa que vestimos ou a origem da comida que comemos. Aqui, na Amazônia, se você come boi, tem certeza que é boi de desmatamento. Se você compra madeira, sabe que (quase) não existe madeira efetivamente legal no Brasil. Se você compra uma mesa ou um guarda-roupa vai ficar olhando para esses móveis e pensando que muito provavelmente eles foram feitos com madeira arrancada de terra indígena ou de uma reserva extrativista. Aqui, no 15
centro do mundo, a relação com a morte da floresta e dos povos da floresta, assim como com a morte dos agricultores familiares, é direta. É inescapável. E só podemos viver carregando — conscientemente — tanto nossas contradições quanto nossas ruínas. Por isso, temos que enfrentar também a contradição de estarmos aqui, financiados neste evento, por recursos da Noruega. A Noruega também sustenta majoritariamente o Fundo Amazônia, hoje sob ataque do Governo de Bolsonaro. A continuidade do Fundo Amazônia, principal financiador da proteção da floresta, é essencial para barrar, ainda que minimamente, a destruição acelerada do bioma. Este fato não nos absolve, porém, da necessidade de refletir que o Rainforest Journalism Fund é financiado, em grande parte, por dinheiro proveniente do petróleo, já que a Noruega é o maior produtor de petróleo da Europa. A Noruega tem ainda participação em frentes de destruição da Amazônia, como a empresa Hydro Alunorte, que contaminou os rios de Barcarena, no Pará. Só podemos seguir adiante enfrentando todas essas contradições — e não fugindo delas. E exigindo melhores práticas e mais coerência da Noruega. Por caminhos diferentes, penso que nós estamos aqui, e não só os que vieram de 16
fora, mas também os que já se colocaram geograficamente aqui neste território, porque sabemos que nossa vida depende disso. Mesmo que este ainda não seja um sentimento — ou mesmo um pensamento — que todos possam nomear. Não estamos aqui para ajudar os povos da floresta, contando o que está acontecendo aqui para o mundo de lá, mas sim estamos aqui para, humildemente, perguntar se eles nos aceitam ao seu lado na luta. Somos nós que precisamos da ajuda dos povos da floresta. É deles o conhecimento sobre como viver apesar das ruínas. São eles os que têm experiência sobre como resistir às grandes forças de destruição. Para que tenhamos alguma chance de produzir movimento de resistência precisamos compreender que, nesta luta, nós não somos os protagonistas. Sem compreender nosso lugar nessa luta e estarmos dispostos a compartilhar o pouco poder que temos, ou mesmo ceder esse poder, acredito que será muito difícil produzir movimento real. Desta vez, somos nós que precisamos nos deixar ocupar, permitir que nosso corpo seja afetado por outras experiências de ser e de estar neste planeta. Não como uma violência, como foi a colonização da Amazônia e de seus povos, esta que está em processo até hoje, e em 17
processo cada vez mais acelerado. Mas, desta vez, como troca, como mistura, como relação amorosa, como sexo consentido. Reproduzo aqui uma fala do filósofo Peter Pál Pelbart, que faz essa síntese de forma brilhante: “Talvez o desafio seja abandonar a dialética do Mesmo e do Outro, da Identidade e da Alteridade, e resgatar a lógica da Multiplicidade. Não se trata mais, apenas, do meu direito de ser diferente do Outro ou do direito do Outro de ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma oposição. Nem mesmo se trata de uma relação de apaziguada coexistência entre nós, onde cada um está preso à sua identidade feito um cachorro ao poste, e portanto nela encastelado. Tratase de algo mais radical, nesses encontros, de também embarcar e assumir traços do outro, e com isso às vezes até diferir de si mesmo, descolar-se de si, desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada”. Durante muito tempo nós, jornalistas e cientistas brancos ocidentais, e quando me refiro a brancos ocidentais me refiro a muito além da cor da pele, me refiro a um modo de pensar e de habitar esse mundo, usamos os povos da floresta apenas como fontes do nosso trabalho. Cientistas de todas as áreas, e também da área de humanas, fizeram 18
sua carreira a partir do conhecimento dos povos da floresta citando-os nos trabalhos acadêmicos apenas como “informantes”, isso quando os citavam. Embora essa prática ainda seja largamente exercida na produção científica, muitos já começam a compreender que já não é eticamente possível fazer isso. Os povos da floresta precisam ser reconhecidos, no mínimo, como coautores. Os intelectuais, assim como os cientistas, não se restringem à academia. Os intelectuais e os cientistas estão também — e muito — na floresta. É isso que muitos intelectuais indígenas estão dizendo no mundo inteiro neste momento. No Brasil, a obra mais expressiva de coautoria entre um intelectual acadêmico e um intelectual da floresta é A Queda do Céu, resultado de uma parceria efetiva, real, de mútuo respeito e mútuo aprendizado, entre Davi Kopenawa, intelectual yanomami, e Bruce Albert, antropólogo francês. Talvez o debate mais fundamental que precisamos empreender no jornalismo é como esse desafio ético e também estético pode ocupar a produção jornalística neste momento crucial. Como colaborar com os povos da floresta para invadir e ocupar o jornalismo a partir de suas próprias experiências — e não apenas se deixando formatar pelo nosso modelo 19
de imprensa. Esta, me parece, não deve ser apenas uma ocupação de espaço, com indígenas, ribeirinhos e quilombolas fazendo jornalismo. Deve ser também uma transformação do espaço, do próprio fazer jornalístico. Uma das maneiras de começar esse movimento no Rainforest Journalism Fund é estimular a coautoria nos projetos de reportagem porque, a maneira mais efetiva de ocupar os espaços de poder é... ocupando os espaços de poder. E, de novo, devemos aceitar esse desafio não porque somos cool ou por concessão ou por favor — e nem mesmo porque é o mais correto a se fazer —, mas porque precisamos muito aprender e porque podemos ensinar. Precisamos nos inventar de outro jeito se quisermos ter uma chance de enfrentar este momento em que a espécie humana se tornou ela mesma a catástrofe que temia. Bolsonaro não é apenas uma ameaça para a Amazônia. É uma ameaça para o planeta exatamente porque é uma ameaça para a Amazônia. Diante desta força acelerada de destruição que é o bolsonarismo nós, de todas as nacionalidades, precisamos fazer como os africanos escravizados que se rebelaram contra o opressor. Precisamos nos aquilombar. E, como não sabemos fazer isso, teremos que ter a humildade de 20
aprender com quem sabe. O melhor — e o mais potente — do Brasil atual e da Amazônia, em todas as regiões, são as periferias que reivindicam o lugar de centro. Nossa melhor chance é nos somar às forças do real centro do mundo onde a disputa pelo futuro é travada, às vezes a bala. É a esse movimento que nós, jornalistas e cientistas, precisamos humildemente servir. Espero que os povos da floresta possam, depois de tudo o que fizemos contra seus corpos, nos aceitar ao seu lado na luta. Discurso da jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, integrante do comitê fundador, consultivo e julgador do Rainforest Journalism Fund, que financia reportagens na Amazônia e em outras florestas tropicais, em parceria com o Centro Pulitzer. A fala foi realizada em 12 de julho de 2019, em Manaus (Amazonas/Brasil), durante jantar em que participaram os jornalistas reunidos para o primeiro encontro do Rainforest Journalism Fund e cientistas reunidos para o encontro Sciencetelling Bootcamp & Explorer Spotlight, da National Geographic Society.
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EU+UM+ UM+UM A responsabilidade de cada um na luta contra a destruição do Brasil
15 de maio de 2019
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Aprendi com o poeta Elio Alves da Silva. Ele era pescador, mas a hidrelétrica de Belo Monte roubou-lhe o rio. Como pesca o pescador sem rio? Poderíamos estender a pergunta. Como pesquisa o estudante sem bolsa? Como ensina o professor sem condições de trabalho? Como se mantém a universidade sem recursos? Como vive no presente o trabalhador sem perspectiva de futuro por um projeto de previdência que pune os mais pobres? Como os povos da floresta protegem a Amazônia quando o ministro contra o Meio Ambiente destrói o sistema de proteção para arrancar lucro privado de terras públicas? Como se protege a paz quando o antipresidente do país arma uma parte da população para a guerra? Como se salvam os mais frágeis quando Jair Bolsonaro autoriza o assassinato sem punição? Como se defendem os cidadãos quando o grupo no poder estimula o ódio e a divisão do país como estratégia? Como comem as pessoas se o ministério da Agricultura é liderado pela “musa do veneno” e o governo libera, literalmente, quase um novo agrotóxico por dia que vai envenenar nosso corpo e o de nossas crianças? Como vivem os brasileiros diante do desafio da crise climática quando o governo nega a ameaça apontada pelos principais cientistas 23
do mundo, para justificar o avanço de poucos sobre a Amazônia de todos? Como os pais protegem o acesso à educação e à cultura quando os filhos do antipresidente se comportam como “garotos” maus e disseminam informações falsas e burrice calculada? Como os mais pobres podem viver sem a garantia de aumento real do salário mínimo? Como se mantêm vivos aqueles que dependem da saúde pública se o governo vai arruinando as políticas de saúde pública? Como fazem para não morrer aqueles que podem ser vítimas dos matadores absolvidos por estarem “sob forte emoção”, como quer o projeto anticrime que é a favor do crime? Como os brasileiros defendem o Brasil do grupo que em menos de cinco meses destruiu direitos e sistemas de proteção construídos por décadas e ainda há 1326 dias pela frente? Se você só conta como um, para o governa você não conta Elio, o pescador sem rio, me explicou. “Eu, sozinho, não consigo nada. Mas, se eu for ali e chamar mais um, vai ser eu+um. Aí, esse um chama +um. E aí já é eu+um+um...” E, para ter certeza de que foi bem escutado: “Entendeu?”. Mais tarde, eu leria uma conversa entre o sociólogo polonês Zygmunt Bauman e o jornalista italiano Ezio Mauro, publicada 24
em livro. A certa altura, eles falam do cidadão que “só conta como um”. E portanto não conta. “Ele não compreende que, no momento em que sua liberdade se torna assunto privado e ele começa a exercer seus direitos somente como indivíduo, no momento em que liberdade e direitos são ambos incapazes (de construir) qualquer projeto com os outros, ambos se tornam irrelevantes aos olhos do poder, já que perderam sua capacidade de por o que quer que seja em movimento”, diz Mauro. “O Estado sabe que estou estatisticamente presente, mas também sabe que eu só conto como um e não tenho capacidade de me somar aos outros.” O poeta oral, já que analfabeto da escrita, e dois pensadores reconhecidos do mundo acadêmico, com vários livros publicados, chegaram à mesma conclusão por caminhos diferentes. Usaram a filosofia, esse exercício intelectual que parece tanto ameaçar Jair Bolsonaro. E que ameaça porque trata de perguntas e só pode existir na honestidade, ameaça porque não teme as respostas que produzem novas perguntas, ameaça porque persegue as dúvidas e as ama porque elas levam a lugares novos. A filosofia, que o antipresidente tanto teme, e por temer quer acabar com ela junto com todas as humanidades, é maravilhosa porque nos 25
alarga por dentro. Porque nos deixa mais inteligentes e atentos, porque nos ensina a enxergar o que vemos. E está ao alcance de todos os homens e mulheres de coragem. Como Elio, como Zygmunt. E deve estar nas escolas e nas universidades, porque é a linha que costura todos os outros campos do conhecimento. Não dá para terceirizar luta e posição na vida Desculpa, mas não há desculpa. Não basta você ficar no sofá tuitando ou feicibucando enquanto os direitos são apagados e o autoritarismo se instala no Brasil. Não dá para terceirizar luta e posição na vida. O problema também é seu. O que está em curso não acaba em quatro anos. O que se destrói hoje levou décadas para ser construído. As consequências são rápidas, algumas imediatas. Destroem primeiro os mais frágeis, depois (quase) todos. E, a não ser que você concorde com o que o presidente contra o Brasil está fazendo em seu nome, é com você ser +um e chamar +um. Sabe por que é com você? Quem explica é uma filósofa, essa categoria que faz os bolsocrentes tremerem de medo. Sim, eles têm um guru que se autoproclama filósofo, mas ele literalmente fala “bosta” e “merda”. Podemos questionar filosoficamente o porquê dessa obsessão, mas temos 26
questões mais importantes no momento. A alemã Hannah Arendt descreveu muito bem algo que também foi abordado por outros pensadores respeitados e que se chama “responsabilidade coletiva”. Ela explica que somos coletivamente responsáveis pelo que é feito em nosso nome. No passado, mas podemos dizer que também no presente. Se você aceita os benefícios de viver em comunidade, precisa aceitar também a responsabilidade de viver em comunidade Mesmo que você não tenha votado em Jair Bolsonaro, ele foi eleito pelo voto. Isso significa que o que ele faz no poder é da responsabilidade de todos. Significa também que, quando o governante se comporta como déspota, os cidadãos precisam dizer coletivamente que não aceitam o que é feito em seu nome. Isso é tão parte da democracia quanto aceitar o resultado das urnas. E isso não pode ser terceirizado. Se você aceita os benefícios de viver em comunidade, você precisa aceitar também a responsabilidade de viver em comunidade. Isso significa que, se você considera que as universidades são fundamentais para um país e para formar as gerações futuras, você precisa se posicionar contra o Governo que está atacando as universidades, cortando verbas que eram escassas porque já tinham sido amputadas antes e tirando bolsas de 27
alunos e de pesquisadores. Se você considera que proteger a Amazônia e o meio ambiente é obrigatório para o presente e para o futuro, você precisa se posicionar contra o Governo que está destruindo a proteção ambiental e quer abrir as terras protegidas para soja, gado, mineração e grandes obras. Se você considera que matar um outro alegando legítima defesa por estar “sob forte emoção” é autorizar a matança e ampliar os mortos, num país onde já se mata e se morre demais, você precisa se posicionar contra esse projeto a favor do crime. Se você considera que armar a população não é uma medida racional para pacificar um país, você precisa se posicionar. Se você considera que essa não é a reforma da previdência mais justa para a população, você também precisa se posicionar. O que os déspotas mais temem é que você seja +um Junto com os outros. Tudo o que os déspotas temem é que sejamos +um. E tudo o que querem é que sejamos apenas um. O neoliberalismo incutiu nas mentes das pessoas que ser “um” é melhor. Você é um, faz o que quer e todos os outros que se explodam. Essa é a racionalidade que sustenta os atos de Bolsonaro e do seu grupo. Vale o eu, só importa o meu. Ou só importam eu e a minha família. Ou eu e a minha turma. 28
A comunidade que se exploda. O neoliberalismo também infiltrou nas mentes que ser +um é ser desimportante. Porque ser +um é ser junto com o outro, é ser na comunidade, é exercer a solidariedade, é fazer soma para ser mais forte conjugando o coletivo. Ser +um é ser na relação com outro. Já ser um é consumir sem limites, sem se importar com o planeta que todos habitam, é esgotar o hoje sem se importar com o amanhã. Ser um é tão abominável que nem com o futuro dos próprios filhos é capaz de se importar, porque sua satisfação contínua como indivíduo é tudo o que importa. Ser +um é saber que todos os outros importam. O um constrói fronteiras e muros. O +um derruba cercas para alcançar a mão do outro, mas negocia limites mútuos porque sabe que não pode nem quer viver sozinho. Já reproduzi em coluna recente um trecho do livro da Pussy Riot Nadya Tolokonikova. Vou repetir mais uma vez, porque é um diagnóstico preciso da nossa situação e inspirador para o momento: “(O que se rompeu foi a) ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que 29
as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras”. Se você pensa que as redes sociais são ruas onde você protesta e exerce a cidadania, está equivocado E cá estamos nós. Como está uma parte cada vez maior do mundo governada pelos “déspotas eleitos pelo voto” Já escrevi no passado recente que acreditava que as redes sociais eram ruas também. Ruas de bytes era como eu me referia a elas. Percebo que estava equivocada. As redes sociais não são ruas. Para ser rua é preciso corpo. O que se passa nas redes sociais é importante e têm definido nosso cotidiano. O que se passa nas redes sociais têm muitos impactos sobre a vida e sobre a percepção da vida. Já podemos criar uma biblioteca inteira de livros que refletem sobre esse fenômeno. É necessário investigar o que as redes sociais são, em seus múltiplos significados. Tanto quanto saber o que não são. E as redes sociais não são rua. 30
O que se passa nas redes sociais tem efeitos sobre o corpo de cada um. Mas o corpo de cada um não está lá. Ir para a rua, ocupar as ruas, o imperativo ético deste momento, só é possível com encontro. A rua pressupõe encontro real. Pressupõe se arriscar ao outro. Pressupõe conviver de corpo encarnado. Pressupõe negociação de conflitos para dividir o espaço público. A rua é onde estamos com nossos fluidos, enfiados na nossa própria pele, carregando nossas fragilidades diante do outro sem nenhum botão de curtir ou de raiva para acionar. A rua é onde nos arriscamos a nos refletir no olhar do outro e nos reconhecer num corpo que não é o nosso. Nos reconhecer na humanidade e também na diferença. A ânsia de “ir para a rua” protestar contra a tirania que se anuncia com atos de ódio explícito, com gestos de destruição, é também a ânsia de romper com a perversão de uma realidade sem corpo, mas que atinge os corpos. E por que parece que é tão difícil esse “vamos para a rua” justamente quando temos tantos motivos para ocupar as ruas? Justamente quanto já viramos a esquina histórica rumo ao autoritarismo? Há várias hipóteses e algumas razões, uma delas o medo. Da polícia, que em vez de proteger os corpos, destrói os corpos. Outra o medo do contágio, já que o outro 31
foi convertido num inimigo. Mas a melhor hipótese que escutei nestes últimos dias foi proposta pelo jornalista Bruno Torturra, em seu “Boletim do Fim do Mundo”, de 9 de maio. Ele faz uma analogia entre a libido sexual e a libido política. O que faríamos todos, ao despejarmos nossa revolta nas redes sociais, seria uma espécie de masturbação. Não falta material na internet para excitarmos e darmos vazão a essa libido política, como não falta material na internet para darmos vazão à libido sexual 24 horas por dia. Não esgote a sua libido política nas redes, assim como não esgote sua libido sexual na masturbação Nenhum problema moral com isso. A questão é que masturbação não é relação sexual. Não estamos com o outro, com o corpo do outro. Não estamos ali em relação a um outro, nem estamos ali numa relação com um outro que não somos nós. Nas redes sociais, mesmo que estejamos dentro de um espaço com vários falando e desabafando e protestando, não são nossos corpos que estão presentes, mas nossos avatares. Ao final, o que restaria seria um extremo cansaço da ação sem ação. E, sugere Torturra, o sentimento de impotência. Esse gozo masturbatório promove um alívio momentâneo, mas não a satisfação (e também o risco) de uma relação com outro 32
corpo. E, assim, não nos movemos. Nos mantemos permanentemente ocupados com nossa indignação e terminamos o dia esgotados, sem que exista um único toque real de um+um. Que o primeiro protesto de rua significativo contra o governo de Bolsonaro tenha partido das universidades, segundo Torturra, é revelador. É no espaço das universidades que os estudantes, e também os professores e funcionários, convivem com seus corpos, entre corpos. Ali há compartilhamento real, há negociação, há debate. Há conversa. E há, principalmente, relação. E, assim, há também movimento. É também por essa razão que Bolsonaro e seu ministro contra a Educação decidiram usar o poder conferido pelo voto para destruir a universidade e, assim, perverter o poder conferido pelo voto ao perverter a própria democracia. Qual é o projeto de educação dessa antipresidência? O mesmo projeto que busca transformar a floresta em pastagem, lavoura de soja transgênica e cratera de mineração. O projeto neoliberal. O um. É preciso resistir também ao esgotamento da libido política nas redes sociais. Ou, dito de outro modo, é preciso manter seu desejo pulsante para se arriscar ao convívio das ruas. É preciso sair do umbigo de si e alcançar o vasto corpo do outro. É preciso 33
estar junto. Não se dê desculpas. Não custa repetir mais uma vez. Posição e luta não se terceiriza. O que você deixar de fazer não será feito por nenhum outro. Sua ausência será sentida. Você fará falta no combate à tirania que já começou a se instalar no Brasil. Você é +um, mas este um+ que é você só você é. No neoliberalismo que nos governa, o um é sempre substituível. No um+um, cada +um é insubstituível e singular. Mas é preciso um outro que o reconheça, é preciso o + que marca a relação entre dois, entre muitos. Como diz Elio, o poeta nascido da catástrofe: “Com +um a história pode seguir”.
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OS “MALUCOS” SAPATEIAM NO PALCO
Aqueles que não eram levados a sério hoje têm poder atômico e também o de destruir a Amazônia
6 de dezembro de 2018
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Nas últimas décadas existiu um consenso de que, diante dos absurdos que eram ditos nas redes e em outros espaços, a melhor estratégia era não responder. Contestar pessoas claramente mal intencionadas e intelectualmente desonestas, em sua busca furiosa por fama, seria legitimá-las como interlocutor, dando crédito ao que diziam. E, assim, servir de escada para que ganhassem mais visibilidade. A frase popular que expressa essa ideia é: “Não bata palmas para maluco dançar”. A eleição de Donald Trump, de outros populistas de extrema-direita e agora de Jair Bolsonaro revelou que este foi um equívoco que vai custar muito caro. O que se deixou de perceber é que, com a internet, os “malucos” já tinham um palco nas redes sociais e no YouTube, assim como a capacidade de multiplicá-lo sem serem perturbados no WhatsApp. As falsas teorias que inventavam eram lidas como se fossem sérias e confiáveis. Os palcos haviam mudado de lugar e os “malucos” dançaram sem serem confrontados com fatos nem incomodados por ideias. As palmas só aumentavam de volume enquanto os ilustrados torciam o nariz ou esboçavam sorrisos de superior ironia. Os “malucos” não só dançaram, como sapatearam. Em seguida, passaram a 36
afirmar seus pensamentos como “verdades” – e verdades únicas. O próximo passo foi conquistar o poder. Hoje os “malucos” não só ocupam os palcos mais centrais como têm o poder atômico de explodir o mundo, como Trump, ou acabar com a Amazônia, como Bolsonaro. Se a eleição de Trump já havia exposto essa realidade, a de Bolsonaro é ainda mais emblemática. No caso de Trump, ao menos se poderia contrapor que o presidente americano é um bem sucedido homem de negócios, algo bastante valorizado no país do “faça-se a si mesmo”, frase usada para encobrir desigualdades decisivas para o destino de cada um. No caso de Bolsonaro, apesar de ele se apresentar e ser apresentado como “capitão reformado”, o presidente eleito passou os últimos 28 anos como um político profissional com pouca ou nenhuma importância para as grandes decisões do Congresso, ganhando espaço no noticiário apenas como personagem burlesco. Conseguiu se eleger sem sequer participar de debates no segundo turno – ou exatamente por isso –, porque dominava os palcos que importavam para ganhar a eleição. Bolsonaro, que é chamado de “mito”, é um mitômano Embora Bolsonaro só assuma 37
oficialmente em janeiro, claramente o governo de Michel Temer acabou em 28 de outubro, quando o deputado se elegeu presidente. Hoje os brasileiros percebem que aquilo que parecia ser um universo paralelo, que só em situações excepcionais cruzava com o real, se tornou o que podemos chamar de realidade. O homem que já governa o Brasil, chamado de “mito” por seus seguidores, é um “mitômano”. O que sabemos até agora é que Bolsonaro venera três figuras masculinas: Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar e torturador da ditadura (1964-85); Olavo de Carvalho, que se apresenta como filósofo e se popularizou na internet depois de ser colunista da grande imprensa, e Donald Trump. Ustra desponta como a referência ética de Bolsonaro, Carvalho como seu guru intelectual e Trump é seu farol como líder. Por enquanto, temos uma trindade. E, neste ponto, Bolsonaro poderia interromper para afirmar que Deus acima de todos, já que Deus passou a ser um ativo na economia política que tem regido o Brasil atual. A trindade de Bolsonaro é composta por um torturador, um guru e... Trump Carlos Alberto Brilhante Ustra já foi amplamente descrito. Ele é reconhecido como torturador pela justiça brasileira e, conforme testemunhos, seria responsável 38
por pelo menos 50 assassinatos. Como torturador, foi capaz de espancar grávidas e de levar crianças para ver o corpo destruído dos pais. Olavo de Carvalho já se manifestou contra campanhas de vacinação, isso num país que assiste a doenças consideradas erradicadas voltarem a ameaçar por baixa cobertura vacinal. Mora nos Estados Unidos desde 2005 e dá cursos de filosofia em vídeos transmitidos pela internet. Em recente entrevista à jornalista Júlia Zaremba, na Folha de S. Paulo, Carvalho assim se manifestou, ao ser perguntado sobre educação sexual nas escolas: “Quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas. No fim, está ensinando criancinha a dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público. Acham que educação sexual está fazendo bem, mas só está fazendo mal. O Estado não tem que se meter em educação sexual de ninguém”. A credibilidade não é mais construída por uma reputação baseada em conhecimentos expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade” A linguagem que o mentor intelectual do novo presidente do Brasil leva para a imprensa formal é a que rege a internet. Não há qualquer base para o que afirma, não há um único caso confirmado de que alguma 39
criança foi ensinada na escola a “dar a bunda, chupar pica, espremer peitinho da outra em público”. Isso até hoje não existe como fato. Mas não importa. As afirmações não precisam estar enraizadas em fatos, basta serem ditas. A verdade foi convertida em autoverdade. E a credibilidade não é construída por uma reputação de conhecimentos postos à prova e expostos ao debate, mas pela percepção emocional de “autenticidade” daquele que a consome. É “verdade” porque Olavo de Carvalho diz que é verdade o que claramente inventou. E é verdade porque, individualmente, cada seguidor de Olavo de Carvalho decidiu que é verdade. E, desde 29 de outubro, dia seguinte ao segundo turno eleitoral, é verdade também porque Olavo de Carvalho é a referência intelectual do presidente da (ainda) oitava economia do mundo. A partir de suas autoverdades, Olavo de Carvalho indicou dois ministros do novo governo: o das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo, e o da Educação, o colombiano radicado no Brasil Ricardo Vélez Rodríguez. Na mesma entrevista, Carvalho conta o processo pelo qual conseguiu emplacar dois ministros para governar o Brasil: “Coloquei no Facebook, creio que coloquei também na área de mensagens 40
do Eduardo Bolsonaro (em rede social). Foi tudo. Eu sei que o Bolsonaro lê as minhas coisas e a gente está vendo que leva bastante a sério. Eu fico muito lisonjeado com isso. (...) Sugeri esses dois simplesmente porque me ocorreu na hora”. A conturbada escolha do ministro da Educação explicitou a forma como o novo governo já começou a operar. O primeiro indicado, Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, foi derrubado pelos evangélicos porque seria “esquerdista”. Em seguida, foi cogitado o procurador Guilherme Schelb, próximo do líder evangélico Silas Malafaia e defensor do “Escola Sem Partido”, projeto que busca censurar conteúdos e professores. Ao sair do encontro com Bolsonaro, Schelb fez a seguinte afirmação à imprensa:”Eu não posso dar tarefa de casa, como tem sido feito, para criança de 8, 9 anos aprender discussão de gênero, o que é sexo grupal, como dois homens transam? O que é boquete? Isso é uma discussão de gênero, é uma violação da dignidade da criança”. Como a autoverdade dispensa os fatos, Schelb não foi incomodado pelo inconveniente de provar o que diz. Como por exemplo: em quais escolas do país e em quantas escolas do país crianças de 8 e 9 anos estão aprendendo sobre o que é boquete e sobre como dois homens transam? Onde 41
está a tarefa de casa em que uma criança de 8, 9 anos precisa descrever um boquete e como dois homens transam? A sociedade é levada a acreditar que as salas de aula são uma suruba permanente enquanto o real problema é empurrado para as sombras Seria preciso perguntar onde isso está acontecendo e em que proporção isso está acontecendo no país. E o procurador precisaria responder. Com provas verificadas. Mas não há necessidade de provar. Basta dizer. Qualquer coisa. E assim vai crescendo no país o número de pessoas que acreditam que o cotidiano das salas de aula brasileiras é uma suruba permanente, quando os reais problemas, o baixo salário dos professores e a comprovada baixa qualidade do ensino ministrado no Brasil, são convenientemente empurrados para as sombras. Dito de outro modo: o problema inventado se torna mais real do que o problema que de fato existe e que condena milhões de brasileiros às consequências de uma educação falha, limitando seu acesso ao mundo e suas possibilidades de uma vida plena. Por fim, Bolsonaro acolheu a indicação de seu guru, Olavo de Carvalho: entre as várias crenças de Vélez Rodríguez, o futuro ministro da Educação, está a de defender 42
que 31 de março de 1964, data do golpe que deu origem a uma ditadura de 21 anos, “é um dia para ser lembrado e comemorado”. Também critica a Comissão da Verdade, que apurou as torturas, sequestros e assassinatos cometidos por agentes de Estado durante o regime de exceção: “A malfadada ‘Comissão da Verdade’ que, a meu ver, consistiu mais numa encenação para ‘omissão da verdade’, foi a iniciativa mais absurda que os petralhas tentaram impor”. Nos próximos meses, a sociedade brasileira descobrirá como será ter a área da educação comandada por alguém que frauda os fatos históricos. O futuro chanceler acusa a esquerda de ser “antinatalista”, mas omite que seu chefe defendeu a esterilização de mulheres para combater a pobreza e o crime Vélez Rodríguez foi o segundo nome emplacado por Olavo de Carvalho. O primeiro foi Ernesto Araújo. As crenças do futuro chanceler já se tornaram piada internacional. Em seu blog chamado “Metapolítica 17” (número de Bolsonaro na cédula eleitoral), criado para apoiar seu futuro chefe, Araújo afirma que mudança climática é uma “ideologia de esquerda”. Também acusa o PT e a esquerda de “criminalizar o desejo do homem pela mulher, os filmes da Disney, a carne vermelha” e “o ar-condicionado”. Chegou a escrever que o PT “quer impedir 43
que crianças nasçam” porque, para a esquerda, “todo o bebê é um risco para o planeta porque aumentará as emissões de carbono”. Ao empilhar falsidades, Araújo omitiu uma verdade comprovada e documentada sobre seu candidato e agora chefe: nas últimas duas décadas, Bolsonaro defendeu a esterilização de mulheres e um rígido controle de natalidade como meios para combater a pobreza e a criminalidade. Mas quem se importa com fatos quando seus seguidores acreditam em qualquer mentira que ele disser que é verdade? O problema é que nenhuma das afirmações escritas do futuro chanceler é piada. Ao contrário. É muito sério. Primeiro, porque Bolsonaro e parte de seu entorno manipulam essas mesmas mentiras. Segundo, porque os seguidores do presidente acreditam que são verdades. Terceiro, porque elas já começam a produzir consequências. O Brasil desistiu de sediar a próxima Conferência do Clima, a COP 25, em 2019, uma distinção que o governo brasileiro pediu e, dois meses atrás, Michel Temer (MDB) comemorou. Bolsonaro afirmou ter participado desta decisão e feito uma recomendação ao seu futuro ministro, Ernesto Araújo, para evitar a realização do mais importante evento mundial do clima 44
no Brasil. Está em curso a sexta extinção em massa na trajetória do planeta, a primeira causada pelos humanos A liderança no debate da crise climática é a única que o Brasil teria as melhores condições para disputar, por ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do planeta, estratégica para o controle do aquecimento global. O país é também o mais biodiverso do mundo. Entre 1970 e 2014, a humanidade já destruiu 60% de todos os mamíferos, pássaros, peixes e répteis. Desde que os humanos apareceram na Terra, já desapareceram metade das plantas. O continente sul-americano é um dos que mais rapidamente está perdendo biodiversidade. Está em curso a sexta extinção em massa, a primeira causada pelos humanos Até a eleição de Bolsonaro, o Brasil tinha um papel de protagonista no debate do clima e da biodiversidade, no cenário mundial. Estes são os dois maiores desafios da atualidade, porque afetam todas as outras áreas, inclusive e muito fortemente o agronegócio. Hoje, em Katowice, na Polônia, é realizada a COP 24. Graças às declarações de Bolsonaro e Araújo, o Brasil é má notícia. Como foi má notícia no final de novembro, durante a Conferência Mundial 45
da Biodiversidade. O ataque dos machos brancos Bolsonaro quer entregar a Amazônia A revanche dos ressentidos Ao aceitar o convite para ser o futuro chanceler, Araújo abriu uma conta no Twitter. Como seu chefe, ele quer falar diretamente com os seguidores. Recentemente, escreveu um texto defendendo que sua indicação representaria um “mandato popular” no Itamaraty. Suas crenças supostamente representariam a vontade do povo no cenário externo. Araújo tenta seguir o mesmo caminho de seu padrinho, Olavo de Carvalho. Falando diretamente com os seguidores e desqualificando qualquer mediador, como a imprensa, a academia e mesmo seus pares, Araújo não precisa provar o que diz nem ter suas afirmações confrontadas com os fatos. Fala sozinho. Mas, para isso ser legítimo, como membro de um governo populista, precisa convencer o povo que fala pelo povo. Ou que o povo fala pela sua boca. A certa altura, escreve: “E o povo brasileiro? Vocês não se preocupam com o que o povo brasileiro vai pensar de vocês? Sabem quem é o povo brasileiro? Já viram? Já viram a moça que espera o ônibus às 4 horas da manhã para ir trabalhar, com medo de ser assaltada ou estuprada? A mulher que leva a filha doente numa cadeira de rodas precária, 46
empurrando-a de hospital em hospital sem conseguir atendimento? O rapaz triste que vende panos no sinal debaixo do sol o dia inteiro para mal conseguir comer? A mulher que pede dinheiro para comprar remédio, mas na verdade é para comprar crack e esquecer-se um pouco da vida? O outro rapaz atravessando a rua de muletas, com uma mochila toda rasgada às costas, na qual pregou o adesivo do Bolsonaro, talvez sua esperança de dar dignidade e sentido à sua luta diária? O pai de família com uma ferida na perna que não cicatriza nunca porque ele precisa trabalhar três turnos para poder alimentar os filhos? Aí está o povo brasileiro, não está no New York Times”. Não é porque o chanceler de Bolsonaro não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões de pessoas Como Araújo pretende falar diretamente com “o povo”, mas numa via de mão única, em que ele fala e o povo engole, ele prefere não explicar ao povo que são os mais pobres que sofrerão o maior impacto das mudanças climáticas. As pessoas em regiões de baixa renda têm sete vezes mais chances de morrer quando expostas a riscos naturais do que populações equivalentes em regiões de alta renda. Os mais pobres também têm seis vezes mais chances de serem feridos ou de 47
precisarem se deslocar, abandonando suas terras e casas. O Brasil tem perdido mais de 6,4 bilhões de reais por ano com eventos extremos, como tempestades e inundações, provocados por mudanças climáticas. A crise do clima tanto reflete a desigualdade abissal do Brasil quanto a amplia. São estas mesmas pessoas que Araújo diz conhecer – e seus críticos não – as que vão sofrer mais por ter um chanceler como ele. Não é porque Araújo não acredita em aquecimento global que o planeta vai deixar de aquecer e afetar a vida de milhões também no Brasil. Ao final do texto, o chanceler se trai. Parte do povo, aquela que discorda dele, não entende nada. O chanceler com “mandato popular” diz ao “povo” que ele precisa deixar as decisões para quem sabe e para quem estudou: “Se você repudia a ‘ideologia do PT’, mas não sabe o que ela é, desculpe, mas você não está capacitado para combatêla e retirá-la do Itamaraty ou de onde quer que seja. Ao contrário, você está ajudando a perpetuá-la sob novas formas. Se a prioridade é extrair a ideologia de dentro do Itamaraty, não lhe parece conveniente ter um chanceler capaz de compreender a ideologia que existe dentro do Itamaraty? Alguém que estuda essa coisa nos livros, há muitos anos, e não simplesmente ouviu 48
alguma referência num segmento do Globo Repórter?”. Como tudo pode ser muito pior, o Brasil não tem apenas um chanceler desastroso, mas dois. Na semana passada, o presidente eleito despachou um de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, para bajular Donald Trump, o terceiro personagem de sua trindade. Como ressaltou Matias Spektor, na Folha: “O filho chegou fazendo compromissos numa agenda cara ao governo americano — Cuba, Jerusalém, China e Venezuela. Nada pediu em troca além da deferência americana a Bolsonaro. Como Trump não respeita quem faz concessões unilaterais, a equipe de Bolsonaro desvalorizou o próprio passe. (...) Trata-se de crença irracional que ignora o gosto de Trump por arrancar concessões de seus principais parceiros a troco de nada. (...) Os americanos irão à forra”. Como a Família Bolsonaro pretende conseguir os melhores acordos para o Brasil usando o boné de quem está do outro lado da mesa de negociações? Ao cumprir agenda oficial em Washington, o filho do presidente usou um boné onde estava escrito “Trump 2020”. Talvez a maioria possa compreender como é constrangedor um representante do presidente eleito do Brasil usar um boné defendendo a reeleição do atual presidente 49
americano. É como se o próprio Brasil estivesse usando um boné de Trump 2020. Como se espera negociar os interesses do país em boas condições a partir desta posição de subalternidade explícita, como se fosse um fã vestindo a cabeça com o nome do seu ídolo? O pai não fez melhor durante a visita ao Brasil do assessor de Trump, John Bolton. Como se fosse um subalterno, bateu continência. E não foi correspondido. É isso. Os “malucos” estão dançando no palco e não precisam que ninguém dê palco para eles. Nem precisam das palmas de setores que acreditavam ter o monopólio dos aplausos. Ao dançar, afirmam que os fatos são “fake News” e que a ciência é “fake News”. Como estão em posições de poder, e um deles será o próximo presidente do Brasil, os jornais são obrigados a reproduzir suas falas e sua dança. As universidades serão governadas por eles. A política científica será decidida por eles. A Escola Sem Partido pode virar lei, estabelecendo a censura com a justificativa de combater um problema que não existe. E tudo indica que o SUS poderá ser desmantelado em nome da privatização da saúde. O destino da Amazônia e de seus povos será determinado por aqueles que querem abrir a floresta para exploração. Quando muitos creem no mesmo delírio, 50
o que acontece com a realidade? Ernesto Araújo se tornou uma piada internacional porque suas afirmações são absurdas. Elas não se sustentam quando confrontadas aos fatos. Mas, quando muitos creem no mesmo delírio, o que acontece com a realidade? Esta é uma pergunta crucial neste momento. E um desafio para o qual precisamos construir uma resposta. E rápido. Quando já não há uma base comum de fatos a partir da qual se pode conversar, não há linguagem possível. Por exemplo: nas últimas décadas, religiosos fundamentalistas defendem que a teoria da evolução, de Charles Darwin, deveria ser ensinada nas escolas junto com o “criacionismo”, crença pela qual tudo foi criado por Deus. Segundo eles, as duas se equivalem. A questão é que essa afirmação equivale a dizer que uma cadeira e uma laranja são o mesmo. Não são. A evolução é uma teoria científica, o criacionismo é uma crença religiosa. A primeira foi preciso provar pelo método da ciência. Mesmo se você não acreditar nela, os processos que a teoria da evolução descreve continuarão existindo e agindo. A segunda você pode acreditar ou não e jamais poderá ser provada pelo método científico. As duas não se misturam nem se comparam. Misturá-las faria com que deixássemos de 51
compreender uma parte da Ciência que faz esse mundo funcionar – e faria também com que a dimensão mítica dos textos religiosos se perdesse naquilo que têm de mais poético. O mesmo vale para a mudança climática provocada por ação humana. Não é uma questão de crença ou de fé. Está provado pelos melhores cientistas do mundo. É tão evidente que a maioria já pode perceber mesmo numa investigação empírica, na sua própria experiência cotidiana. Se o futuro chanceler do Brasil acredita que o aquecimento global é uma “ideologia de esquerda”, o planeta não vai deixar de aquecer por conta da sua crença. Só crianças muito pequenas acreditam que algo vai deixar de existir se elas fingirem que não existe. Como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar? Mas, ao tratar fatos como crença – ou como “ideologia” –, tanto Araújo como o presidente eleito podem impedir que o Brasil faça o que precisa para reduzir as emissões de CO2, as principais responsáveis pelo aquecimento global, assim como impedir que o Brasil tome medidas de adaptação ao que está por vir. Temos apenas 12 anos para impedir que o planeta aqueça mais de 52
1,5 graus Celsius. Se passar disso, os efeitos serão catastróficos. É grave que, nestes 12 anos, em pelo menos quatro o Brasil terá no poder pessoas que confundem fatos com crenças. Ou, para seu próprio interesse, afirmam que aquilo que é fato é a “ideologia” dos outros. A segunda pergunta crucial neste momento é: como restabelecer a linguagem, de forma que possamos ter uma base mínima comum a partir da qual possamos voltar a conversar? Também precisamos construir uma resposta. E rápido. A terceira é como devolver o significado às palavras. Por exemplo: uma laranja. De novo. Eu e você precisamos concordar que uma laranja é uma laranja. Se eu disser que uma laranja é uma cadeira, como vamos conversar? Podemos discutir qual qualidade de laranja é melhor, como melhorar a produção de laranjas, de que forma ampliar o acesso de todos ao consumo de laranjas etc etc, mas não podemos discutir se a laranja é uma cadeira ou uma laranja, do contrário não avançaremos em nenhuma das questões importantes sobre a laranja. Tudo o que é relevante, como seu valor nutricional e a evidência de que os mais pobres não têm possibilidade de comprar ou plantar laranjas, ficará bloqueado pelo impasse de o interlocutor insistir que a laranja é cadeira. 53
Não é uma questão de opinião a laranja ser laranja – e não cadeira. Também não há fatos alternativos. Há fatos. E não há alternativa de a laranja ser uma cadeira. Atualmente, porém, o truque de tratar laranjas como cadeiras para impedir o debate é amplamente utilizado Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido, os temas que afetam a vida das pessoas são decididos sem participação popular Se as palavras são esvaziadas de significado comum, não há possibilidade de diálogo. É o que está acontecendo com a palavra “comunismo”, entre muitas outras. Não há uma base mínima de entendimento sobre o que é comunismo. Então, tudo o que os seguidores de Bolsonaro não gostam ou são estimulados a atacar é chamado de “comunismo”, assim como todos aqueles que eles consideram seus inimigos são chamados de “comunistas”. O significado de comunismo, porém, foi quase totalmente perdido. E assim a conversa está interditada, porque o que é laranja virou cadeira para uma parte da sociedade brasileira. Enquanto metade da sociedade brasileira é chamada de “comunista” sem nunca ter sido ou querer ser, os temas que afetam diretamente a vida das pessoas 54
estão sendo decididos sem debate nem participação popular, como, por exemplo, a reforma da previdência. Os “malucos” que hoje dançam em todos os palcos não são tão malucos assim. Ou, se são, também parecem bem espertos. É claro que há alguns deles que acreditam que, por exemplo, crise climática é “climatismo” ou uma “ideologia de esquerda”, como diz Araújo. Mas a maioria deles sabe que afirmar isso é quase tão estúpido quanto dizer que a Terra é plana. Então, depois de fazer bastante alarme com isso, eles vão para a próxima etapa do roteiro. Qual é? Enquanto a turma de Bolsonaro faz a dancinha da invasão estrangeira, a Amazônia vai sendo tomada por seus amigos Afirmar que, sim, é claro que o aquecimento global é um fato, mas “os países ricos já destruíram todas as suas riquezas naturais e agora usam a crise climática para manipular países como o Brasil”. Basta acompanhar as declarações recentes de Bolsonaro e outros do seu entorno para constatar que a estratégia usada para manter os seguidores alinhados será reavivar a falsa acusação de que os indígenas e as ONGs internacionais querem tomar a Amazônia do Brasil. A mentira da ameaça à soberania nacional nunca deixou de se manter ativa na disputa da Amazônia. Mas, em tempos 55
de WhatsApp, pode atingir muito mais gente disposta a acreditar. Já começou. Enquanto parte dos brasileiros se distrai com a dança dos “malucos”, os ruralistas vão tentar avançar no seu propósito de abrir as terras indígenas para exploração. Não custa lembrar, mais uma vez, que as terras indígenas são de domínio da União. Os indígenas têm apenas o usufruto exclusivo sobre elas. Quando Bolsonaro compara os indígenas em reservas com “animais num zoológico” e diz que os indígenas “querem ser gente como a gente”, querem poder vender e arrendar as terras, ele não está sendo apenas racista. Ele também está manipulando. A sua turma quer que as terras públicas sejam convertidas em terras privadas, que possam ser vendidas e arrendadas e exploradas. Enquanto fazem a dancinha da invasão estrangeira, a floresta vai sendo tomada por dentro. O nacionalismo da turma de Bolsonaro bate continência não só para os Estados Unidos, mas também para os grandes latifundiários e para as corporações e mineradoras transnacionais. No futuro bem próximo assistiremos ao que acontece quando um delírio coletivo, construído a partir de mentiras persistentes apresentadas como verdades únicas, é confrontado com a realidade. Às vezes 56
parece que Bolsonaro acredita que tudo vai acontecer apenas porque ele está dizendo que vai. Ele diz, depois se desdiz, aí diz que inventaram que ele disse o que disse. Em resumo: ele diz qualquer coisa e o seu oposto. Em alguns sentidos, Bolsonaro parece uma criança extasiada com o sucesso que faz no mundo dos adultos, com bonés e figurinhas de seus ídolos. Parte do seu entorno, que não é burra, acredita que pode controlar a criança mimada e voluntariosa – e convencêla a agir conforme seus interesses. Veremos. Em algum momento, o seguidor de Bolsonaro vai descobrir que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira O confronto das promessas com o exercício do poder já começou. Como explicar que serão mais de 20 ministérios e não os 15 prometidos? Ou como explicar as consequências de transferir a embaixada para Jerusalém, desrespeitando parceiros comerciais importantes como os árabes? Como lidar com a China, grande importador dos produtos brasileiros, batendo continência para Trump em meio a uma guerra comercial entre as duas grandes potências? Como lidar com os impactos que tudo isso terá na economia e na vida dos mais pobres? Como justificar que postos de saúde poderão ficar sem médicos porque os cubanos foram embora e os brasileiros não 57
querem ocupar os lugares mais difíceis e com menos estrutura? Como lidar com o possível aumento de gestações na adolescência, assim como de Aids e DSTs por falta de políticas públicas de prevenção e educação sexual nas escolas? A realidade é irredutível. É quando o seguidor descobre que não pode sentar na laranja – nem comer a cadeira. Bolsonaro e sua turma já começaram a experimentar esse confronto. A compreensão ainda não atingiu seus seguidores. Mas atingirá. Quem se anima com essa ideia, porém, deveria se envergonhar. Quem sofre primeiro e sofre mais numa sociedade desigual são os mais pobres. Se os “malucos” estão dançando no palco é também porque a maioria da população brasileira foi excluída da conversa mesmo na maior parte do período democrático e mesmo na maior parte dos governos do PT. Ainda que Bolsonaro tenha conseguido unir as pessoas em torno não de um projeto, mas de um afeto, o ódio, seu grande número de seguidores se sentiu parte de algo. Desde 2013 já havia ficado muito claro que havia um anseio da sociedade brasileira por maior participação. Durante parte de sua permanência no poder, o PT também investiu mais nos afetos do que na construção de um projeto junto com as pessoas. Parou de conversar, não 58
achou que precisasse mais das ruas e foi expulso delas em 2013. Depois da corrupção do PT no poder, e não me refiro apenas à corrupção financeira, a esquerda se mostrou incapaz de criar um projeto capaz de unir as pessoas. Isso não é culpa de Bolsonaro. Não adianta acusar o outro de ter um projeto de destruição. É preciso lidar com as próprias ruínas e apresentar um projeto de reconstrução e reinvenção do Brasil que convença as pessoas porque junto com elas. Se alguém ainda não compreendeu, é o seguinte: para disputar uma ideia de Brasil será preciso, primeiro, ter uma ideia; segundo, convencer a maioria dos brasileiros que este é o melhor projeto para melhorar suas vidas; terceiro, tentar voltar a dançar no palco para recompor a linguagem, restabelecer a importância dos fatos e devolver substância às palavras. Não vai ser fácil. A maior vitória de Bolsonaro é quando seu opositor fala como ele Nestas eleições, o Brasil foi esgarçado até quase rasgar. Em alguns pontos, rasgou. Talvez o maior triunfo de Bolsonaro tenha sido interditar qualquer possibilidade de diálogo. Esse processo não foi iniciado por ele nem ele é o maior responsável. Mas, sem bloquear o diálogo, Bolsonaro possivelmente não ganharia a eleição. Hoje, de um lado e 59
outro, as pessoas só sabem desqualificar – e destruir. Aqueles que denunciam Bolsonaro não compreenderam que, ao adotar o mesmo vocabulário e a mesma sintaxe, apenas em sentido oposto, tornam-se iguais. E dão ao seu opositor a maior vitória que ele pode ter. Neste sentido, o do ódio, Bolsonaro unificou o país. Todos odeiam. Não há complemento nesta gramática. Odiar esgota-se no próprio verbo, mas o substantivo destruído é o corpo dos mais frágeis. Quem quer resistir à redução do Brasil, em tantos sentidos, precisa primeiro resistir na linguagem. Diferenciar-se, também para poder acolher. O único jeito de voltar a conversar é voltar a conversar. Mesmo que para isso tenhamos que falar sobre laranjas e cadeiras.
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“O ÓDIO DEITOU NO MEU DIVÔ
Relatos de psicanalistas revelam a violência que cresce e se infiltra no Brasil com a possibilidade de Jair Bolsonaro chegar à presidência da República
11 de outubro de 2018
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Ele entra sem dizer uma palavra e logo começa a chorar. Pergunto o que aconteceu e ele me diz, assustado, que foi abordado por um cara da faculdade, com as seguintes palavras: – E aí, seu viadinho de merda, já viu as pesquisas? Vai aproveitando até o dia 28 pra andar de mãozinha dada, porque, quando o mito assumir, acabou essa putaria e você vai levar porrada até virar homem. Depois, é a menina que já entra chorando e me diz: — Sil, me ajuda... não sei o que fazer... você não vai acreditar no que aconteceu comigo hoje... Eu estava na escola e fui pegar um livro no meu armário... Tinha uma folha de papel... Aí ela me mostra uma foto no celular, porque entregou a tal folha na diretoria, com esta mensagem aqui: – Achou mesmo que era só sair gritando #elenão pra parar o bolsomito, feminazi??? Perdeu, escrota!! E daqui a pouco você vai ter motivo pra gritar de verdade!!! O relato, feito pelas redes sociais, é da psicanalista Silvia Bellintani, pouco antes do primeiro turno das eleições. Devidamente autorizada pelos pacientes, ela conta o que escutou de dois deles no seu consultório, numa mesma tarde: ele, homossexual, 19 62
anos; ela, heterossexual, 17 anos, feminista. Nos últimos dias, começaram a circular posts de psicanalistas e psicólogos que decidiram levar para o debate público o que escutam no seu consultório. Sem expor os pacientes, mas apontando o que vem acontecendo na sociedade brasileira apenas pela possibilidade, bastante grande, de um homem como Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, da tortura e da violência, assumir a presidência do país. “Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos” Em um post intitulado “Ser analista sob o ódio”, Ilana Katz escreveu: “Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como fake news o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro, e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro. Essas não são conversas de WhatsApp. Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra 63
e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula. Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos”. “Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar” Várias instituições de psicanálise fizeram manifestos pela democracia –e contra a opressão representada pela candidatura de extrema direita. Entre elas, a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano: “A política da psicanálise se associa à ética do bem-dizer e nos leva a fazer frente ao discurso do ódio ao outro, em pleno Estado democrático. O discurso do analista deve circular na pólis e, quando nos dirigimos ao mundo, o silêncio do ‘terror conformista’ não nos cabe”. Psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise também posicionaram-se, propondo “um movimento de circulação de breves relatos do que tem sido escutado nas ruas do país sobre os efeitos nefastos que a ameaça do fascismo é capaz de provocar”. Em texto veiculado nas redes, afirmam: “Quando o valor das palavras é banalizado, a ponto de o pior poder ser dito por um candidato à presidência da República, como se fossem apenas palavras 64
ao ar, perdemos a noção de que estamos escrevendo, com elas, nossa história. Perdemos a noção de que palavras se cravam na história, nos ouvidos e nos corpos de um país. Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar. E nunca se sabe ao certo, de antemão, onde será. Não será sem consequências nos fazermos de surdos para o pior. Escutemos, pois”. Em seguida, enumeram alguns relatos escutados nas ruas do Brasil nos últimos dias: “Uma amiga estava amamentando seu filho, que tem menos de um ano, em uma padaria próxima à sua casa, quando passaram dois caras e um deles gritou, olhando pra ela: ‘Quando ele ganhar, essas vagabundas não vão mais poder fazer isso!’”; “Um casal de meninas anda na rua e ouve de um passante: ‘Aproveita, porque o 17 vem aí!’”; “Depois de uma longa conversa com alguém, na tentativa de argumentar contra o que representa o ‘Coiso’, o alguém perde os argumentos e enuncia a verdade velada. ‘Ah, quer saber, foda-se se ele defende a tortura. Comunista pode ser torturado!’”; “Meu enteado andando na rua com camiseta da faculdade (UERJ) ouviu de cinco 65
homens passando de carro: isso vai acabar quando o mito ganhar, você estuda nessa merda e nunca vai ganhar dinheiro”; “Minha filha, ontem, na saída da escola, foi abordada por um cara, que, por conta do adesivo do Haddad, que ela trazia colado na camisa, mandou essa: ‘Fica esperta que eu sou do exército Bolsonaro que esfola comunista’”. A crise no Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra Tenho escrito há anos que a crise do Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra. Quando tudo pode ser dito, nada mais diz. As palavras, no Brasil, se tornaram palavras fantasmas, porque nada movem. Essa realidade ficou explícita quando Jair Bolsonaro, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores da ditadura, responsável pela morte de pelo menos 50 pessoas e pela tortura de centenas –e nada aconteceu. Nesta eleição, seus filhos e apoiadores vestiram camisetas com o rosto do torturador e as palavras “Ustra vive!” – e, mais uma vez, nada aconteceu. Enquanto isso, mães ainda choram por seus filhos assassinados por Ustra – e mulheres torturadas por ele, que levaram choques elétricos nos seios e 66
vaginas e tiveram baratas e ratos enfiados nos seus corpos, ainda acordam gritando à noite. Se as palavras se tornam cartas extraviadas, cartas que não chegam ao seu destino, o diálogo é interditado, e o ódio se instala. O fenômeno Bolsonaro pode ser compreendido também a partir do esvaziamento das palavras. É uma resposta possível para o fato de que quase 50 milhões de brasileiros foram capazes de votar em alguém que diz o que Bolsonaro diz. Muitos deles, inclusive assistindo a vídeos em que ele diz o que diz, negam que ele disse o que diz. Veem, mas não veem. Ouvem, mas não escutam. Sem diálogo, as palavras perfuram os corpos. É urgente que as palavras voltem a dizer no Brasil –ou elas serão cada vez mais balas perdidas. E sabemos que balas perdidas acham corpos. É este o movimento dos psicanalistas que escolheram não se omitir neste momento de tanta gravidade para o Brasil, certamente o momento mais grave da história recente do país, talvez o momento mais grave desde o golpe de 1964. Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país O ódio ao PT, explicação dada por parte dos que votam em Bolsonaro e por muitos que pretendem votar em branco ou anular 67
o voto ou se abster de votar não é a doença, mas o sintoma. Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país. É no divã dos psicanalistas, em que a palavra tem espaço e carne, que essa escuridão emerge em todo o seu horror. Ao iniciar o seu relato, Silvia Belintani afirma: “Eu poderia dizer que estou sem palavras para descrever o que testemunhei hoje no meu consultório. Mas tive o dever de encontrá-las, para não deixar que algo assim, gravíssimo, fique sem registro”. E, mais adiante: “O cenário das eleições sequer foi definido, mas já encoraja o sadismo e promete ser palco do terror. Fico imaginando o que vem pela frente”. Em seu post, Ilana Katz faz uma análise profunda sobre o papel de um analista também neste momento (abaixo reproduzo o post). E afirma: “O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz? E termina: “Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio. Para 68
que os odiadores e os odiados possam seguir se deslocando de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim”.
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Este trabalho foi elaborado a partir de matérias publicadas no jornal El País. O projeto faz parte da disciplina de Produção Gráfica, ministrada pela professora Vanessa Mezzadri Brudzinski, no Unibrasil - Centro Universitário.
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