Um Peixe no Deserto

Page 1


“5960 kms reduzidos a um momento, a um segundo, a uma sensação, a um sorriso. Estávamos mesmo às portas do mítico Lago Rosa.”

Quando nos propomos a atingir um objectivo, um sonho até, seja ele qual for e da maneira que for, e conseguimos chegar lá, não há sensação melhor. E neste caso, falando de uma viagem, e de moto, tudo ganha outro sentido. Apesar de ser uma viagem “em conjunto”, estamos sempre sozinhos, acompanhados mas sozinhos. Sempre em meditação dentro do capacete, quilometro após quilometro, hora após hora. Falamos com nós próprios em muitas ocasiões, motivamo-nos, pensamos no futuro, no passado, nos outros, e passamos a nos conhecer melhor. E ficamos profundamente marcados pelas pessoas que vemos, que conhecemos, com quem

conversamos e trocamos histórias e brincadeiras, por mais que sejam por breves momentos. Foi desta forma que esta aventura mais me marcou, uma viagem de introspecção, onde tentamos absorver tudo que nos rodeia da melhor forma, da forma mais intensa pois é assim que as coisas devem ser vividas, a 100%. Onde aprendemos a lidar melhor conosco, nas mais diversas situações, boas ou más, tão diferentes das que nos rodeiam habitualmente, novos desafios e novos obstáculos. De facto, a vida começa no fim da nossa zona de conforto. Confirma-se.



ETAPA 0

a moto

ETAPA 1

porto-Coruche

ETAPA 2

Coruche-Tanger

ETAPA 3

Tanger-Marrakech

ETAPA 4

Marrakech-Fort Bou Jerif

ETAPA 5

Fort Bou Jerif-Smara

ETAPA 6

Smara-Guelta Zemour

ETAPA 7

Guelta Zemour-Dakhla

ETAPA 8

Dakhla-Bou Lanouar

ETAPA 9

Bou Lanouar-Nouakchott

ETAPA 0

P13

329 kms

P21

547 kms

P29

566 kms

P41

493 kms

399 kms

P57

233 kms

475 kms

435 kms

P49

P79

P101

P113

416 kms

P125


ETAPA 10

Nouakchott-St. Louis

ETAPA 11

St. Louis-Tambacounda

ETAPA 12

Tambacounda-Bafata

ETAPA 13

bafata-bissau

ETAPA 14

Bissau-Kaolack

ETAPA 15

Kaolack-dakar

ETAPA 16

o regresso

113 kms

P251

329 kms

485 kms

256 kms

P199

293 kms

210 kms

P139

P215

P233

P155

P183


Dakar. Para qualquer adepto do “offroad”, sempre que ouvimos este nome pensamos instintivamente em aventura, pistas, navegação e África. Isto é, até alguns anos atrás, antes da mítica prova se mudar para a América do Sul, onde perdeu a parte mais importante da sua essência: o espírito aventureiro que obrigava os seus pilotos a percorrerem centenas de kms na mais vasta solidão africana, dependendo apenas da sua perícia de navegação, com o objectivo comum de chegar ao Lago Rosa. Agora já não é assim, do outro lado do mundo “o Dakar” continua a impressionar pelas suas paisagens, mas todos confessam que já não é a mesma coisa e que em caso de dificuldades, há sempre fãs por perto prontos a ajudar e uma estrada de alcatrão não muito longe. Assim sendo, surgindo a oportunidade de finalmente levar a minha Africa Twin a África, ainda por cima nos moldes que a organização do Dakar Desert Challenge propunha era um sonho tornado realidade. Todos nós sabemos que temos um ‘playground’ sem fim aqui ao lado chamado Marrocos, mas sempre quis ir mais além disso. Passar para o lado de lá do Mediterrâneo e descer mais. Ver deserto, mas também começar a ver alguma savana, mais verde, mais cor, mais vida. E assim foi.

Portugal, Espanha, Marrocos, Mauritânia, Senegal, Guiné-Bissau, Gâmbia, e voltar a entrar no Senegal para “terminar” esta aventura nas margens do Lago Rosa e ainda na praia de Dakar conforme proposto pela organização era bom demais para ser verdade. Recriar numa vertente mais descontraída uma aventura sem os perigos de uma competição como o Dakar, considerada por muitos a prova mais perigosa do mundo, mas passando por locais onde a comitiva da mítica prova já teria passado há uma dezena de anos atrás e fazendo com que o “comum mortal” como eu pudesse sonhar e de alguma forma sentir na pele o que Thierry Sabine criou em 1979, era algo mesmo muito apelativo, por todas as razões. Por isso mesmo, parti em busca do sonho: apoios, patrocínios e muita preparação, tanto da moto como minha. Isto porque desde o início que desafiei a mim próprio e decidi que a cumprir esta aventura, o objectivo teria que passar por conseguir descer, e voltar a subir em duas rodas. Onze mil kms são sempre melhores do que seis mil, e ainda dava uma história melhor para contar aos netos um dia.


MAPA DO TRAJECTO



@ OUED AOREORA


10 km


ETAPA 6

SMARA - GUELTA ZEMOUR 233 kms “Como seria o céu do deserto, à noite?”



Por volta da hora do almoço, começo a ficar mais atento ao conta-quilometros. Os dígitos vão mudando, e rapidamente chego aos 99.999! A malta já queria almoçar de qualquer forma, por isso aproveitamos o momento e paramos. Quer dizer, 1 km mais à frente claro, para o grande momento em que passava a ter uma moto “zero kms”!! Mais uma boa história que fica, uma vez que a esperada passagem aos 100.000 deu-se numa antiga pista do Paris-Dakar: priceless. Ainda tive direito a um shot de celebração, cortesia da “Malta dos Jipes”, em grande!



AFINAL A TERRA SEMPRE É REDONDA

Mais algumas dezenas de kms à frente, e umas filmagens da malta a dar gás na vastidão do deserto, começamos a nos aproximar do que parecia ser a superfície de Marte. O terreno começava a ganhar alguma irregularidade, onde a pista era ladeada por desfiladeiros grandes o suficiente para serem chamados disso mesmo, e pequenos o suficiente para uma tentativa de subida até ao topo de um deles para algumas fotos panorâmicas. Decisão certa, uma vez que a vista era avassaladora, e ficou completa aquando da passagem das motos e alguns jipes. Fantástico.





TEASER, STAGE 9

Frio, muito frio. Foi assim que a Mauritânia nos recebeu. Não sei quantos graus estavam pela manhã, mas lembro-me bem de acordar várias vezes durante a noite a insultar o que eu pensava que era o meu bom saco-cama... adiante. Hoje tínhamos mais um longo dia pela frente, mais de 400 kms dos quais umas largas dezenas eram feitas pela chamada “Praia da Mauritânia.” O problema é que para lá chegar tínhamos que ultrapassar 20 kms (ou dois, já nem me recordo... vão já perceber o porque) de dunas com areia muito fina, sendo que o caminho a percorrer seria todo um trecho ladeado pelas mesmas dunas e demasiada vegetação, que impedia um andamento progressivo e constante. Antes disso, nem uma dúzia de kms depois do arranque, a bomba de gasolina do Bruno quis dar das suas, e com a ajuda do Agostinho e do Sérgio (os

mecânicos) que fechavam a caravana, sem dúvida os nossos melhores amigos, tal como o Nelson tinha previsto durante o briefing geral ainda em Coruche...) lá resolveram o problema, limpando os platinados. Infelizmente, fomos ultrapassados por todos os jipes que com algum esforço já tínhamos conseguido deixar para trás, numa tentativa de conseguir fazer parte do dia sem apanhar os mil e um regos que nos deixavam de presente, sem contar com as nuvens de pó que tínhamos que engolir cada vez que nos aproximávamos e os tentávamos ultrapassar. Ainda assim seguimos a bom ritmo, com algumas dezenas de kms de fantástica condução, com zonas de areia a surgirem mais regularmente, e tendo em conta que a amplitude da pista era imensa, facilmente fugíamos aos regos e era sempre de sorriso estampado na cara, a deixar para trás mil e um desenhos no percurso, perdidos por entre alguns “powerslides” e algum show off para a malta dos jipes... inevitável.


Era preciso avançar depressa, uma vez que tínhamos à volta de duas centenas de kms para fazer antes de chegar às pistas, mas tal era muito difícil de conseguir tendo em conta tudo que havia para ver. Foram muitas as mesquitas em pleno Senegal rural onde tive que parar durante dois minutos para melhor as poder observar, absolutamente fantásticas e, a maioria delas, ao contrário das construções em redor, totalmente imaculadas. Vamos cruzando vilas e pequenas cidades que parecem minimamente organizadas no meio da sua confusão, onde carros, carroças, camiões 3 vezes mais carregados do que deviam, pequenos autocarros e animais lutam por um espaço na estrada. Finalmente fugimos da estrada e começamos a cruzar algumas vilas já em estradões de terra, onde toda a gente acena e corre para a rua para nos verem passar. Uma das coisas que mais pude reparar, inevitavelmente, a partir do Senegal e depois entrando na Guiné-Bissau era a quantidade sem fim de crianças que víamos a toda a hora.

Dezenas e dezenas de meninos e meninas dos 0 aos 14 anos em todo o lado. E por falar em crianças, aproveito: notei uma grande diferença entre as crianças de Marrocos pré e pós atlas, das crianças da Mauritânia, Senegal e Guiné-Bissau, mas principalmente destes últimos dois. Aqui vi, convivi e ofereci material a crianças que não tinham qualquer malícia, e quando não tínhamos nada para oferecer apenas queriam ficar ali conosco e tentar falar conosco e perceber que raio estávamos ali a fazer e que armaduras estranhas eram aquelas que usávamos, entre outras coisas. Além disso, estar a almoçar no meio do nada alguns enlatados acompanhado de meia dúzia de crianças, oferecer as últimas duas salsichas da lata a uma delas fazendo sinal para que seja para dividir por todos, e ela caminhar meia dúzia de metros até encontrar os outros e dividir com elas o pouco que lhe foi oferecido não se esquece tão cedo, nem tão pouco é uma coisa que vemos acontecer normalmente por aqui com as “nossas” crianças.






Terminada a aventura da autonomia, começava a aventura de colocar a gasolina. A preço inflacionado, obviamente, e num bidão que mais parecia ter água de tão translúcido e incolor que era o líquido, lá me passam para a mão o funil enferrujado mas com uma muito útil rede na ponta para filtrar as impurezas (!!) e explicam-me que a caneca utilizada pelo senhor correspondia a um litro de gasolina. Não me parece, mas tudo bem... quem é que ia reclamar fosse do que fosse ali no meio, e tendo em conta que tinham acabado de nos salvar o dia? “un litre... deux... trois...” num espaço de mais de um quarto de hora. Problema resolvido, hora de arrancar. Agora sim podíamos aproveitar a 100% as pistas.



TEASER, STAGE 12

Para hoje, mais duas centenas e meia de kms feitos quase na sua totalidade por alcatrão, onde entrávamos em antigo território português, Guiné-Bissau. O dia amanhecia confuso, com mais uma busca matinal por uma caixa multibanco onde conseguisse levantar mais algum dinheiro, numa cidade que tinha aspecto de ter algumas caixas disponíveis.

Mais uma oportunidade de rodar sozinho por um quarto de hora pela cidade de Tambacounda, perdido pelo meio de mais uma habitual confusão. Aprendi que consegue ser bastante difícil rodar por uma cidade que não conhecemos, sem grandes regras de trânsito, com carroças e motorizadas a surgirem do nada, à procura de algo que não sabemos onde está.




FRONTEIRA SENEGAL / GUINÉ BISSAU

Atrasados como sempre, avançamos a bom ritmo apesar das grandes dificuldades que o mau (péssimo) estado da estrada nos impunha. Era muito complicado seguir a mais do que 40 km/h de tantos buracos dos quais tínhamos mesmo que fugir, tentando pelo meio evitar os carros e camiões que seguiam igualmente lentos tanto em sentido contrário como em slalom de um lado para o outro. Com algum esforço, e depois de entrarmos novamente em estradões de terra batida, onde me cruzei com alguns macacos, conseguimos chegar à fronteira, algo que acontece assim muito de


“MACACOS ME MORDAM! HÁ MACACOS NA ESTRADA!”

repente, uma vez que seguimos por um estradão pelo meio de algumas construções bastante precárias, coisa que foi aumentando ainda mais gradualmente conforme nos fomos aproximando e entrando por Guiné-Bissau. Mais um momento peculiar, uma vez que a fronteira (saída do Senegal) resumia-se a uma corrente esticada a cortar a estrada, e uma barraca tapada com uma placa ondulada de zinco, e lá dentro um simpático (not!) senhor que a muito custo me carimbou o passaporte.



“ELI”


PARÓQUIA DE NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS, DIOCESE DE BAFATÁ


BISSAU, CAPITAL

Finalmente tínhamos chegado cedo, e mais ou menos rapidamente pudemos arrumar as tralhas no quarto e relaxar um pouco no restaurante do hotel, sempre atentos às motos que ficaram à porta. Jogando obviamente pelo seguro e não facilitando, disseram-nos que à noite quando o restaurante fechasse poderíamos guardar as motos lá dentro na entrada, que ficaria fechada por uma grade. Pareceu-nos uma boa opção, pelo menos não ficavam na rua, uma vez que todo aquele interesse pelas motos e pela compra das mesmas não deixou de nos colocar em modo paranóico Contudo, o cansaço ia sempre acumulando ao final do dia, e todo aquele relaxe fez com que eu e o Bruno nos fossemos deitar relativamente cedo, sem nos lembrarmos da questão das motos. Eis que nos levantamos às 3 da manhã, e o Bruno decide ir à varanda espreitar a ver se estava tudo bem... e infelizmente apenas as nossas duas motos ficaram na rua, e para nosso espanto, estava um fulano a lavar as motos. Sim, às 3 horas da madrugada, de balde e esponja na mão. Por momentos incrédulos com a situação, e um pouco frustrados tendo em conta que estávamos apaixonados pela nova cor das duas motos, lá descemos julgo eu que ainda em cuecas para tirar satisfações com o senhor. Rapidamente, uma situação que nos deixou bastante transtornados rapidamente passou a cómica. Estavam a lavar-nos as motos às 3 da manhã, não havia como não rir! Principalmente quando tentava explicar ao pobre senhor que queria a moto suja pelo motivo anteriormente descrito, e notava na cara dele que simplesmente não conseguia perceber. Coitado do senhor, não aguentei e no dia seguinte quando o vi dei-lhe algum dinheiro. Acabou por ser vantajosa a lavagem, uma vez que tendo em conta toda a chuva que apanhei no regresso, tinha sido uma grande nojeira lavar todo aquele pó e terra vermelha com água da chuva...


10 km


ETAPA 15

Kaolack - dakar 210 kms “O céu abre-se, as árvores desaparecem, o terreno muda e surge do nada o Oceano Atlântico à distância de 500 metros, e a grande extensão de praia a perder de vista. Agora sim.”




DIFÍCIL CONTER A EXCITAÇÃO, DURANTE OS PRIMEIROS 15 MINUTOS DE UM LADO PARA O OUTRO, NA MÍTICA PRAIA DE DAKAR

Para além de estar certo, superou todas e quaisquer expectativas. 5960 kms reduzidos a um momento, a um segundo, a uma sensação, a um sorriso. Um grande sorriso, por sinal. Passado o local escolhido para o descanso daquela noite, às portas do lago e da praia, avanço mais uns metros por onde o GPS me manda, mas principalmente para onde vejo outros companheiros de viagem a afluírem. Já nem olhava para o GPS nem nada, tanta era a emoção. Ainda sem ver a praia, fazem-me sinal para avançar “por ali”. “Ali” era o início de um amplo caminho em areia em perfeitas condições, portanto foi encher o peito de vontade, corpo para trás, rodar punho e vamos lá. Que delícia, só via areia à minha volta com o arvoredo ao fundo, e acima de tudo sem regos gigantes de mil e um jipes, tempo de aproveitar o momento e “brincar na

areia”. Tentando decifrar o caminho por onde seguir, a convergência do amplo espaço para um trilho mais apertado a subir não deixa dúvidas, deve ser por aqui. O trilho vai subindo, não sei o que me espera ali à frente, os regos vão aumentando de número mas o ritmo continua o correcto, e de repente... o céu abre-se, as árvores desaparecem, o terreno muda e surge do nada o Oceano Atlântico à distância de 500 metros, e a grande extensão de praia a perder de vista. Agora sim. Obrigado a parar, para absorver todo aquele sentimento que foi crescendo em mim durante 15 dias e que agora era libertado. Não perdi nenhuma lágrima, mas foi deveras emocionante. Memorável.




o regresso


HÁ DIAS EM QUE TEMOS MESMO SORTE

Melhor, seria difícil. Entre fotos a camiões e carros modificados, entre eles um Carocha pronto a enfrentar as maiores das dunas, e motos cuja mecânica e pormenores poderia ter ficado horas a observar, chega a altura de carimbar o passaporte, já do lado Mauritano. Enquanto estou no cubículo pouco ventilado, entre carimbos e assinaturas, vejo pela janela um buggy azul a aproximar-se e a parar. Tal como supus, eis que entra o Sr Africa Eco-Race, Jean Louis Schlesser. Mesmo apesar de certas situações menos felizes em que se envolveu em passadas edições do Paris-Dakar, não deixa de ser a

figura que é, ainda assim um momento para recordar. “Ça va? Ça va bien...” diz ele para os guardas fronteiriços, e também para mim. Nada como ser o “patrão” daquilo tudo, e poder passar por cima das normas e das esperas... Trâmites resolvidos, fui obviamente babar mais um pouco enquanto me preparava para arrancar. E passado alguns minutos, tal como esperava (ou ansiava), vejo ao longe chegar o camião azul da Elisabete Jacinto. Não podia faltar a foto com a senhora dos camiões.



FUTURAS ALTERAÇÕES AO CÓDIGO DA ESTRADA

Tendo em conta que tinha à minha espera para o dia de hoje cerca de 800 kms de viagem, já me começava a “preocupar”. Fazia kms e kms e kms, e não apanhava ninguém. “Será que estou no caminho certo? Tenho que estar, no GPS não há mais nenhuma estrada.” Nestas situações tudo nos passa pela cabeça, até as probabilidades mais remotas. De qualquer forma, por mais que tenha sido um prazer rodar por diversas horas sozinho, apenas me cruzando com um ou outro veículo em sentido contrário, é bastante tranquilizante finalmente ver caras conhecidas novamente, numa qualquer paragem para abastecer. De notar também duas situações no mínimo peculiares, reservadas para o dia de hoje. No meio desta imensidão sem fim de nada, de nenhures para a frente e lado nenhum para trás, de terra seca, inóspita e nenhum sinal de vida durante kms e kms, dou por mim a conduzir distraído a aproveitar a minha música, quando de repente me cumprimentam e julgo ter visto uma miragem. Sou forçado a olhar para trás, e de facto acabei de me cruzar com um ciclista, com malas à frente e atrás, aqui, no meio de nenhures. E com certeza que já tinha feito um par de centenas de quilometros para trás, quilometros totalmente vazios e desprovidos do que seja o que for, direção essa que o ciclista tomava. Foi tudo tão rápido que mais alguns metros à frente passei por mais um, naquelas bicicletas em que a posição quase deitada para trás permite um conforto um pouco melhor, também sorridente da vida a acenar. Inacreditável, é preciso ter mesmo muito espírito para

cobrir tantos kms de vazio numa bicicleta. Igualmente interessante foi um par de horas mais à frente, tal como já havia acontecido cerca de meia dúzia de vezes nestes últimos 18 dias, cruzei-me com mais um companheiro de viagem, que seguia em sentido contrário numa BMW F800GS. Como sempre, um agradável aceno rápido como é costume nestas andanças das duas rodas, prontamente correspondido, sendo que bem mais à frente, a malta do resto da comitiva veio ter comigo a perguntar se vi a moto que passou: “tinha matrícula portuguesa, acreditas!” Não bastava cruzar-me com alguém de moto em viagem, ainda pior cima era português. “Foi pena não ter parado, pensei.” Mas nunca paramos nestas situações... Mas o mundo, de tão pequeno que é, tem destas coisas. Já de volta a casa, e após um post no Facebook através do grupo F800GS Portugal sobre a minha garrafa/ souvenir com areia da Mauritânia e Dakar, recebo um comentário que nunca esperaria receber: “Muito bom Gabriel, creio que nos cruzamos na estrada entre Nouackchott e Nouadhibou quando regressavas, eu seguia para Sul numa F800 naquele território brutal. Abraço” Inacreditável. Tal como ele próprio disse depois, “o mundo é uma casquinha, sobretudo para aqueles que vão um bocadinho mais longe.” Confirma-se! Thumbs up para o Bruno, que fez toda uma viagem desta envergadura sozinho, desde Lisboa até Dakar.




E foi assim. Quando nos propomos a atingir um objectivo, um sonho até, seja ele qual for e da maneira que for, e conseguimos chegar lá, não há sensação melhor. E neste caso, falando de uma viagem, e de moto, tudo ganha outro sentido. Apesar de ser uma viagem “em conjunto”, estamos sempre sozinhos, acompanhados mas sozinhos. Sempre em meditação dentro do capacete, quilometro após quilometro, hora após hora. Falamos com nós próprios em muitas ocasiões, motivamo-nos, pensamos no futuro, no passado, nos outros, e passamos a nos conhecer melhor. E ficamos profundamente marcados pelas pessoas que vemos, que conhecemos,

com quem conversamos e trocamos histórias e brincadeiras, por mais que sejam por breves momentos. Foi desta forma que esta aventura mais me marcou, uma viagem de introspecção, onde tentamos absorver tudo que nos rodeia da melhor forma, da forma mais intensa pois é assim que as coisas devem ser vividas, a 100%. Onde aprendemos a lidar melhor conosco, nas mais diversas situações, boas ou más, tão diferentes das que nos rodeiam habitualmente, novos desafios e novos obstáculos. De facto, a vida começa no fim da nossa zona de conforto. Confirma-se.

VIVA TODAS ESTAS EXPERIÊNCIAS UM POUCO MAIS DE PERTO, AQUI



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.