Mesmo sem o objetivo de estabelecer relação entre os projetos que serão apresentados a seguir, é possível notar que as três artistas optaram por explorar signos e o desapego em suas performances. Fabiana Vanz traz o vestido de noiva juntamente com um caminhar cauteloso, porém destrutivo. Paloma Durante faz interferências em livros modificando seu conteúdo até mesmo ao ponto de torna-los ilegíveis, abandonando-os em livrarias e bibliotecas. Amanda Rovai convida pessoas anônimas a construírem bonecas à sua própria imagem, utilizando artigos de valores pessoais, para depois destruí-las. Todas apresentam uma linha de diálogos que permeiam o desapego sem que ele se torne algo destrutivo apenas, mas de certa forma saudoso e até carinhoso. Esta revista tem como compromisso auxiliar na elaboração do projeto de conclusão de curso de três futuras artistas: Fabiana Vanz, Paloma Durante e Amanda Rovai, por meio de indagações sobre os temas abordados e a maneira como o projeto será conduzido, além da indicação de referências artísticas que poderão auxiliar na execução de um trabalho potente.
suMÁrio
04 10
Água de lastro - Paloma Durante
Não é o Seu Maior Mal II - Fabiana Vanz
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Sem Título - Amanda Rovai
Paloma durante
Água de lastro
A
literatura faz parte da vida de Paloma desde pequena. É daquelas pessoas que tem no livro
seu fiel companheiro, amigo de todas as horas, confidente de seus maiores segredos, medos, sonhos e aflições. Entretanto, essa entrega à leitura trouxe a ela uma série de questionamentos, que vêm sendo aos poucos explorados em seus trabalhos. Para Paloma, a literatura permite que aconteçam interpretações que vão além do tempo em que foram concebidas, podendo ser constantemente atualizadas por quem lê e por outras referencias que a pessoa traz. Cada um traz consigo uma bagagem e ela faz a diferença no momento da leitura, da interpretação do que esta sendo lido e isso reflete na forma como a pessoa passa essa história à frente. Pensando nessas constantes atualizações, realizou um primeiro trabalho de intervenção em livros, apresentado para a disciplina de Linguagem Tridimensional III em que deixava bilhetes fictícios no meio de livros. A idéia partiu de um hábito que mantinha desde pequena de guardar bilhetes, dedicatórias e flores secas que encontrava no interior de livros em sebos. Esses bilhetes fictícios contavam histórias inventadas de
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namorados
que
desmancharam
Abaixo foto de um dos livros modificados por Paloma. Como intervenção, Paloma recorte os livros, os cobre de corretivo e até mesmo reescreve por cima do que já havia.
relacionamentos, amigos distantes que se escreviam, cartas de mães para filhos. Depois de um tempo, o forjar histórias passou a incomodar Paloma e ela recorreu a relatos verdadeiros conseguidos de diversas formas. Nesse primeiro trabalho as intervenções ocorreram de forma branda, sutil, sem que houvesse qualquer alteração na estrutura do livro propriamente dito. No trabalho que a artista pretende apresentar esse semestre, a intervenção ocorre de outra forma. Intitulado “agua de lastro”1 , o trabalho consiste em fazer interferências em uma série de livros, pelos quais Paloma tem grande apreço, e devolvê-los para um lugar acessível a outros. Intervir reescrevendo parte destes livros com histórias e observações pessoais, podendo mudar, complementar, agregar ou romper por completo a estrutura narrativa, dando margem a outras interpretações. Em suas próprias palavras: “Quero me apropriar desse espaço do livro, das narrativas, e reescrevê-las como forma de dar corpo à minha presença naquele espaço. Sobreponho as minhas palavras nas de outros, rompo com a estrutura das frases, devolvo de alguma forma o que em mim foi modificado, ou o que se faz ainda atônito.”
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A discussão permeia questões como a noção de autoria, a cisão entre o eu e o outro, a possibilidade de dois corpos ocuparem o mesmo espaço. A ideia é que estes livros sejam deixados em livrarias e bibliotecas anonimamente, perto de outros com o mesmo título – não se sabe ainda se esses livros serão acessados nem ao menos o destino que eles terão. O trabalho de Paloma vem problematizar questões relacionadas ao sujeito autor, como atribuição e de que maneira se da o reconhecimento ou a diluição deste no cenário contemporâneo. A sacralização de determinados autores é algo duvidoso e ao mesmo tempo evidente no meio acadêmico, assim como a necessidade
fotográficos do processo de intervenção
deixam guardados para quando tiverem
de validar autores e textos escritos como
nos livros até a ida ao lugar em que serão
tempo de ler. Esse tempo pode levar 1 mês,
autênticos. Todas essas são questões
deixados e sua inserção na prateleira.
6 meses, 1 ano, alguns anos. Pensando
que a ação da artista pretende discutir -
Porém, se o que a artista quer evidenciar
nisso, a Editora Cadencia, em parceria
a fácil apropriação, alteração e inserção
é a ação, seria interessante pensar no re-
com uma agência de publicidade, lançou
da informação por meio dos veículos de
gistro através do vídeo, que possibilitaria
o livro intitulado “El libro que no puede es-
comunicação. A presença desses textos
a captação do espaço tempo das interfe-
perar”, um livro que se apaga, por com-
que se colocam como verdades no nos-
rências de maneira singular, agregando,
pleto, em sessenta dias. Ele foi impresso
so cotidiano comum e, a maneira como
talvez, uma estética diferente e mais pró-
com uma tinta especial que desaparece
cada texto se torna particular se fará pre-
xima da desejada pela artista.
aos poucos quando entra em contato com
sente nas referências e nas alterações
Num primeiro momento, não se sabe
a luz. O livro é comprado lacrado, em um
se os livros serão acessados. E se forem,
saco plástico e traz um lembrete que diz
De acordo com a artista, o trabalho
pode ser que o “novo proprietário” desse
que após aberto deve ser “consumido” em
“agua de lastro”, será apresentado ao
livro o leve pra casa e só mais tarde per-
até 60 dias, evitando que ele desapareça
público enquanto registro de performan-
ceba que não se trata de um livro comum.
antes do início da leitura. A ideia é que as
ce, possivelmente a partir de registros
Muitas pessoas compram livros e os
pessoas criem o hábito de começar a ler
proporcionadas pela ação da artista.
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o livro logo após a compra e o resultado
“Escolherei alguns lugares para
esperado é uma maior rotatividade nas
inseri-los anonimamente no meio
vendas, possibilitando então a edição de
de outros livros, para que outra
mais e mais livros, ajudando novos autores
pessoa o encontre. Não haverá no
a terem seus livros lançados e até mesmo
livro qualquer assinatura ou algo
reeditados. El futuro no es nuestro: nueva
que possa me tornar identificável
narrativa latino americana foi o primeiro li-
em um primeiro momento. A
vro lançado dessa forma, que reuniu textos
ideia é que haja essa diluição do
de vinte escritores latino-americanos nas-
sujeito autor, ativando a terceira
cidos entre 1970 e 1980, e ficou esgotado
pessoa que encontrará o livro,
no primeiro dia de lançamento, além de ter
que poderá identificar-se com o
recebido milhares de encomendas. A ideia
que está escrito e criar uma nova
também foi premiada este ano no Festival
história - do que aquilo estará
Internacional de Publicidade de Cannes na
fazendo lá e criar novos persona-
categoria lançamento ou relançamento.
gens -, ou considerar aquilo um nada, um incômodo. Há o terceiro fator de risco, que seria o risco de
Água de lastro é a água do mar captada pelo navio para garantir a segurança operacional do navio e sua estabilidade. Em geral, os tanques são preenchidos com maior ou menor quantidade de água para aumentar ou diminuir o calado dos navios durante as operações portuárias. Tem por objetivo aumentar ou diminuir o calado do navio durante a navegação para garantir sua segurança operacional. Além disso, durante a viagem o navio consome combustível e água. Assim, ocorre uma diminuição do seu peso bruto que consiste na redução do seu calado carregado, permitindo que o leme e parte da hélice fiquem fora d’água prejudicando a manobrabilidade e governo do navio. Além disso, a água de lastro tem por objetivo garantir a estabilidade do navio enquanto navegando e durante o processo de carga e descarga. Ou seja, ajuda o navio a se sustentar. 1
ninguém encontrar os livros.” - Paloma Durante
O LIVRO QUE SE APAGA EM DOIS MESES
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Fabiana Vanz
Não é o Seu Maior Mal II
C
omo seria escrever sobre um trabalho que ainda não existe? Será nesse processo que iremos focar
para falar sobre o trabalho da estudante e artista Fabiana Vanz. Ao se propor o desafio de trabalhar a questão do casamento em seus trabalhos, Fabiana parece buscar uma relação ambígua que permeia uma certa admiração do espectador pelos seus atos que ao mesmo tempo se mantém penosos e que enaltecem a própria questão do casamento. Ao acompanhar a trajetória de seus trabalhos podemos notar uma consistência poética que trabalha sempre questões que aparentemente são cotidianas mas que, ao serem destrinchadas pela artista, se demonstram complexas e sutis, possuindo diversas nuances que dentro de uma leitura mais intimista podem se assemelhar à relação de convívio e relacionamento. Segundo Vanz, a utilização de símbolos e códigos em seus trabalhos aconteceu quase que instintivamente e, por isso, começou a se aprofundar nesse campo de pesquisa ao escolher os elementos que representará ou utilizará em suas obras. Em uma de suas pesquisas mais aprofundadas, a artista fez gravuras e pinturas explorando a imagem de um criado mudo como código, representando-o em diversas situações e posições.
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Imagens dos chinelos feitos de cera por fabiana, o cordão interno, segundo a artista, faria que ele quebrasse, porém, se espalhasse mais pelo espaço.
Quando a artista passa para a performance essas questões se tornam mais diretas e aparentes e essa relação é explicitada quando Fabiana se veste de noiva e se amarra a uma mesa com uma corda vermelha, e em cima dessa mesa há um bolo de casamento que ela corta e entrega aos transeuntes que assistem a ação. Não é o Seu Maior Mal I consegue ser ao mesmo tempo um ato penoso e árduo de carregar o peso da mesa que está presa ao seu corpo, como se a artista carregasse um peso simbólico de passar pelo casamento e com a expressão de esforço oferece o bolo às pessoas num ato de entrega, de um esforço para se fazer passar por aquilo. O ambiente criado em torno da performance pode se assemelhar ao próprio casamento, em que o espectador assiste atento ao desfecho daquela trajetória vendo a ação saudosa sem ter acesso a mais nada além do que se percebe pelo que está sendo visto. Para seu novo projeto, até o momento intitulado Não é o Seu Maior Mal II, a artista pretende realizar um desdobramento de sua primeira performance. Agora, além do vestido de noiva, a performer estará usando chinelos feitos por ela com materiais que se desmancham com o andar (cera, parafina e cerâmica). Alguns pontos ainda estão frágeis até mesmo
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Fabiana cortando um pedaço do bolo. Still da performance realizada pela artista no semestre passado.
para a artista, portanto a partir de agora serão levantados alguns pontos para serem pensados e algumas referências artísticas serão indicadas. O caminhar cauteloso com calçados frágeis remete à história da Cinderela e seu sapatinho de cristal. O fato da performer estar vestida de noiva e os chinelos começarem a se desfazer à medida em que ela caminha e o ato da mesma sempre calçar um novo até que esse se desmanche e assim sucessivamente, levantará questionamentos sobre a fragilidade do casamento/cerimonia em contraponto ao que é passado no conto da Cinderela, que calça sapatos de cristal e corre sem quebrá-los. Fabiana comentou que pretende utilizar microfones em seus tornozelos a
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fim de transmitir e potencializar o som
Ao analisar o que foi produzido
dos chinelos se desfazendo e com isso,
durante os anos de faculdade
aumentar ainda mais o impacto de sua
tenho percebido que, de uma
performance no espectador. O artista
maneira geral, os trabalhos que
plástico Maurício Ianês em Um e Outro
venho desenvolvendo desde os
Silêncio (2011) utiliza um recurso mui-
primeiros meses de graduação
to próximo ao que Fabiana pretende
têm todos um ponto em comum:
utilizar em sua performance. Em uma
uma vontade de trabalhar ele-
Capela no Morumbi o artista se senta
mentos simbólicos e códigos fa-
à frente de um mesa na companhia de
cilmente reconhecíveis, presentes
outra pessoa. Os dois lêem um texto re-
no imaginário coletivo. Trata-se
ligioso que foi reorganizado pelo próprio
de utilizar imagens enquanto
Ianês e, em determinado momento da
elementos que, articulados, cons-
leitura, os dois batem a mão sobre a
tituem uma linguagem simbólica
mesa e um microfone abaixo da mesa
capaz de remeter a memórias in-
propaga o som pela capela com o auxi-
dividuais ou coletivas, apontando
lio de caixas amplificadoras. O ritual, o
talvez para um novo olhar diante
local e o som propagado tornam a per-
destas memórias.
formance ainda mais potente. O ato de construir algo, planejar, projetar e depois destruir, caminhar por sobre, já foi explorado por Márcia X em sua performance/instalação Cair em Si (2002), em que a artista cuidadosamente empilha copos americanos, enche alguns deles com líquido branco e por fim, veste brincos que estão atrelados à correntes ligadas à alguns copos
MAURÍCIO IANÊS
da base da pirâmide, e começa a caminhar. O caminhar da artista faz com que tudo se desmorone, destruindo tudo o que ela havia construído.
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amanda rovai
Sem título
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A arte popular ou artesanato é uma
trabalho, Amanda propõe a algumas pes-
técnica bastante presente nos trabalhos
soas que construam uma boneca de
de Amanda Rovai. Em sua performance
trapos baseadas em si mesmas. Cada
apresentada no sexto semestre, Amanda
pessoa constrói sua boneca individual-
teceu uma espécie de casulo e, depois de
mente, com pedaços de tecido que te-
pronto, vestiu-o e aos poucos foi desfazen-
nham em casa e, podem também incluir
do a trama de fios, dos pés até a cabeça.
objetos pessoais no interior da boneca.
Essa performance se relaciona com o
Nas palavras de Amanda: “Para a cria-
projeto aqui apresentado na medida em
ção do personagem é necessário uma
que trabalha a técnica da arte popular,
busca por seu autoconhecimento para
ainda que de forma diferente. Neste
conseguir se projetar na idealização, o
Bonecas realizadas dentro do projeto da artista
criador escolhe os materiais que se igualem a seu gosto pessoal e suas vivencias. Ao se projetar no personagem, é como uma tentativa vã de criar um ser gêmeo, mas ao tentar modelá-lo e direcioná-lo, com a técnica se transforma em outro ser, desvinculado e independente de seu criador, com sua própria personalidade.” Partindo da criação dessas bonecas, a apresentação do trabalho acontece da seguinte forma: Depois de pronta, a boneca é entregue pessoalmente para Amanda que convida a pessoa a dar um depoimento, contando sobre como foi a construção da boneca, o porque da utilização de cada material, enfim, para contar sobre sua experiência no processo como um todo. A pessoa, quando entrega a boneca para Amanda, sabe que a mesma será destruída e que isso é o que constitui a ação – o trabalho da artista. A ação acontece em uma sala, onde todas as bonecas estão dispostas (de alguma forma ainda não especificada por Amanda). O som dos depoimentos preenche a sala enquanto Amanda, sentada, desmancha-as, uma a uma, separando o material nelas utilizado: tecidos, linhas, enchimentos e o que mais compuser as bonecas. A ação acontece repetidamente, boneca por boneca, até
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Imagem de parte da performance anterior da artista onde ela adentra a trama criada por ela mesma e depois a destrói
restarem apenas resíduos, ou seja, nada além do material, e esses resíduos da performance acabam por compor uma nova instalação. Crítica A boneca reflete um objeto afetivo e, nesse caso, artístico, um elemento presente no cotidiano de crianças e adultos, na formação pessoal e coletiva, nas mais diversas sociedades. Confeccionar bonecas com adultos ou apenas falar sobre elas, traz sempre grandes recordações, mexendo com a memória afetiva de cada um. A performance que parte de uma instalação e se transforma em outra instalação é interessante e forte. Pedir para alguém construir uma boneca, um “ser”, um filho e depois se desfazer dele, destruir essa magia e união de tecidos criada, pode acabar trazendo interpretações voltadas para questões como o aborto ou destruição da intimidade, da infância, dando uma leitura mais pesada à aura do trabalho. Talvez não seja esse o rumo pretendido por Amanda em sua performance, pois o que está em foco é a prática do desapego e que a boneca volte a ser apenas matéria prima. Para enfatizar essa direção talvez fosse interessante disponibilizar à sua frente, quando sentada
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desmanchando uma boneca, plaquinhas
O trabalho foi motivado pela ten-
ou caixas com escritos como: “tecidos”,
tativa de materializar a discussão
“fios”, “enchimento”, “botões”, “ou-
e a crítica sobre a relação de
tros”... por exemplo, ressaltando o mate-
domínio da técnica do artesanato
rial na performance.
que prende e modela tanto seu
A reprodução do áudio durante o des-
idealizador quanto o material. As
manche das bonecas proporciona para
técnicas artesanais foram criadas
o espectador uma proximidade com a
pela necessidade do homem e
obra, pois qualquer um ali assistindo
foram passadas às suas futuras
poderia ser um a realizar a boneca e a
gerações como a passagem de
dar seu depoimento. Entretanto, o que
um “rito”, como a pretensão,
deve ser considerado pela artista é se a
ainda que em vão, de que fosse
repetição do mesmo áudio é necessária
seguida fielmente.
ou não. Ouvir o áudio referente à boneca que está sendo desmanchada é interessante e agrega bastante ao trabalho – contudo, como serão várias bonecas dentro da mesma sala, talvez seja importante considerar a possibilidade dos depoimentos serem reproduzidos em sequência, enquanto a ação acontece com todas as bonecas sem necessidade de vinculação depoimento – boneca. Sendo assim, não encontramos referenciais artísticos seguros, de artistas que lidam com essa questão da performance e da boneca, acreditamos assim que a artista necessita trabalhar a partir das próprias referencias do artesanato, dando enfoque aos aspectos artísticos de construção, não só afetiva e emocional, mas também cultural.
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