revista arquipélago

arquipélago sm. ‘agrupamento de ilhas em determinado ponto do oceano’; ‘mar principal’; ‘mar chefe’ Dicionário Etimológico, de Antônio Geraldo da Cunha (ed. Nova Fronteira, 2ª ed., 1998)

Afasta de mim esse cale-se

O

revista arquipélago projeto experimental de jornalismo | cásper líbero, 2018 contato: revistaarquipelago@gmail.com corpo editorial e reportagem ana beatriz fidelis brenda zacharias gabriel nunes de azevedo julia gravalos benini colaboraram nesta edição bruno ascari (texto) bárbara fender bucker (ilustração) projeto gráfico e diagramação anna giulia petrosino logotipo renato freddi

período eleitoral de 2018 revelou a falácia de um país em harmonia com a diversidade de seu povo. O ódio às populações negra e indígena, às mulheres e à comunidade LGBT+ contamina nosso território desde a invasão portuguesa, chamada de “descobrimento do Brasil”. Neste ano, o preconceito contra esses grupos sociais legitimou-se enquanto estratégia de debate, a partir de falas do 38º presidente eleito Jair Messias Bolsonaro.

A ascensão do pensamento conservador de extrema direita, a perda de confiança nas instituições democráticas e a polarização de posicionamentos políticos — que desde meados de 2013 é fomentada — evidenciam a construção de um diálogo somente entre aqueles que compartilham o mesmo pensamento. É necessário, no entanto, compreender nosso país sob o signo da pluralidade.

Dessa forma, a revista arquipélago pretende ouvir e narrar histórias sobre diversas manifestações artísticas e sociais, partindo da noção de que o Brasil é estruturado como um arquipélago cultural.

O título da publicação vem do termo criado pelo crítico literário Clodomir Vianna Moog no ensaio “Uma interpretação da literatura brasileira: um arquipélago cultural”. A tese do gaúcho parte do princípio de que não

existe uma característica específica que torne a produção literária nacional uma “unidade homogênea e definida”. De acordo com Vianna Moog, a cultura brasileira seria, portanto, formada a partir de conjuntos de “ilhas”, marcadas por particularidades regionais.

No mês da consciência negra e do lançamento da arquipélago, a revista aborda a expressão da cultura afro-brasileira por meio da música, da dança e da literatura. Caso da reportagem “Memória via corpo”, em que o jongueiro Odeir Santos reflete sobre a preservação da sua ancestralidade cultural através da dança. Ou então em “O ato negro de escrever”, na qual tratamos do lançamento do Volume 40 dos Cadernos Negros e da importância dessa publicação para a literatura nacional. O objetivo da seção verbete desta edição é resistir às tentativas de silenciamento dos discursos não hegemônicos. Para isso, reconhecemos os privilégios que temos em nossos lugares de fala e ouvimos aqueles(as) a quem o silêncio é imposto.

A primeira edição traz, também, outras perspectivas sobre o silêncio, além do silenciamento. Como em “Perda e permanência”, perfil do fotógrafo paulistano Mário Luiz Thompson, ou na narrativa “Cartas do silêncio”, sobre o ato da psicografia na religião espírita. Nas seções à margem, gastronomia e acervo, as reportagens são relacionadas à proposta da revista de preservar a memória cultural brasileira.

Há uma travessia a ser percorrida para refletir sobre a arte enquanto meio de manifestação de perspectivas sobre o mundo.

Por isso, é dever da arquipélago lutar pelos valores democráticos e pela liberdade de se expressar e de existir. Somente a arte é o grito e o silêncio capazes de calar a si mesmos.

novembro | 2018

34

número 1

9

12

à margem_elogio ao simples editora quelônio resgata técnicas tipográficas em busca de inovação estéticaexperiências gráficas

“a gente nunca foi silêncio, você é que não ouviu”: a arte enquanto resistência ao silenciamento de gênero e raça

perfil_perda e permanência

vida e acervo de mário luiz thompson, um dos principais fotógrafos da MPB, são colocados em foco

80

gastronomia_o sabor do esperar a importância de

22

verbete_silêncio

respeitar o tempo dos alimentos para preparar uma receita

36

entrevista_existência preta psicóloga Samanta Santos da Fonseca fala sobre a identidade negra em uma sociedade de padrões brancos

memória_a vida em luz mínima vinte anos sem orides fontela, poeta e ourives do silêncio

88 26 98

acervo_colcha de retalhos

com cerca de 40 mil peças, acervo no centro de são paulo se dedica a catalogar a história da moda brasileira e internacional

sinapses_tristeza companheira tinta negra: rodrigo petronio explica de que forma a melancolia pode ser uma força transformadora

diretoras negras marcam presença no cinema nacional 34 anos depois de longa pioneiro

48 o ato negro de escrever

o que os 40 anos de cadernos negros representam para a literatura brasileira

narrativas_cartas do silêncio uma travessia pelas veredas do espiritismo e pelo ato de psicografar

40 não é espaço em branco

54 a pequena voz do mundo

a literatura infantil como reconhecimento da identidade para crianças negras

66 música de silêncio

itamar assumpção e a estética silenciosa

60 no topo da prateleira

quadrinista traduz a luta contra a escravidão no brasil em novelas gráficas

70 memória via corpo

a manifestação da ancestralidade africana por meio do jongo

elogio ao simples Editora Quelônio fornece novas experiências estéticas a partir da recuperação da técnica tipográfica por gabriel nunes de azevedo e julia gravalos benini foto gabriel nunes de azevedo

novembro • 2018

7

à margem

A

metade de um triciclo colorido e um túnel de plástico surgem à frente das paredes roxas e verdes. Uma folha sulfite rosa descreve em letras azul-marinho o evento que começou há vinte minutos. Aguardamos na rampa discreta que traz a rua para a casa e leva a casa para a rua. Sílvia nos recebe quase envergonhando-se ao nos reconhecer: “É para vocês que estamos devendo aquelas respostas, não é?”. Clara, a anfitriã de três anos de idade, interrompe a conversa estalando os pés descalços no quintal enquanto corre da cozinha até nós. Com o contorno dos lábios manchado de chocolate, anuncia para Bruno: “Papai, seus amigos chegaram!”.

Não fosse pela folha presa ao portão anunciando o evento, a Editora Quelônio passaria despercebida aos olhos distraídos de quem estivesse pela rua Venâncio Aires, na Vila Pompeia. Administrada pelo editor Bruno Zeni e pela diretora de arte Sílvia Nastari, a Quelônio opera desde 2017, quando foi instalada na garagem do casal, mas sua existência remonta ao ano de 2013.

Ao percorrer o corredor sem teto, sobre o qual está suspenso um cordão de luzes amarelas, chega-se à tipografia. É “o coração da editora”, como Bruno gosta de se referir.

O local é separado do restante da casa por

8

novembro • 2018

um portão de vidro, sobre o qual está escrito, em letras brancas e angulosas, Tipografia Quelônio. Assim que nos cumprimentamos, a explicação sobre a não-resposta às nossas perguntas pareceu urgente ao editor: “Essa semana foi muito corrida, com o lançamento e tudo mais. A Sílvia e eu estávamos muito atarefados”, diz o dono da editora, fazendo referência ao evento de lançamento do poema-livro Alforria Blues, de Júlia de Carvalho Hansen.

Segurando uma cerveja, Bruno apresenta aos outros visitantes o maquinário da editora, aberto devido à ocasião. O espaço é ocupado por três equipamentos robustos, com engrenagens e roldanas, além de uma máquina de costurar e algumas estantes repletas de peças metálicas e latas de tintas. Em um misto de nostalgia

e perplexidade, as pessoas debruçam-se sobre os aparelhos, cheias de perguntas a respeito de seu mecanismo.

Pouco a pouco somos familiarizados com o maquinário e aprendemos a diferenciá-lo: este é um linotipo, onde os textos são compostos; aquela é uma impressora, de onde as páginas vão sair da forma como foram organizadas com as linhas de chumbo e os tipos móveis; a outra é uma guilhotina, onde o conjunto de folhas escritas e coloridas adquirem formato de livro. Segundo Bruno, os equipamentos foram comprados de uma gráfica no Brás e são operados há quase cinquenta anos pelos mesmos funcionários, o impressor e tipógrafo João Darc Morais e o linotipista George Dimitrov Assis. “A máquina tipo-

gráfica é uma tecnologia relativamente recente, do século 19, enquanto os tipos são do século 16”, explica o editor. “Ela acelerou o processo de impressão, mas ainda assim é um trabalho bem artesanal”, diz, destacando também o processo de intercalação, dobra e costura das páginas, executado por Júlia Estronioli.

O gosto pelas experimentações não se limita à produção gráfica. É visível, na seleção feita por Bruno, a valorização de gêneros literários não muito vinculados às demandas do mercado editorial. “Procuramos explorar formatos menores e mais simples”, aponta o editor, fazendo referência aos títulos de poesia e prosa experimental publicados pela Quelônio, dispostos em

“

Não queria que a Quelônio ficasse conhecida como uma editora de fetiche, mas como uma editora que resgata o simples.” novembro • 2018

9

à margem Inventada por Ottmar Mergenthaler, na Alemanha, a máquina de linotipo é composta de um teclado, bastante semelhante ao da máquina de datilografar. A função do equipamento é fundir em blocos cada linha de caracteres tipográficos, em vez de separar cada frase em letras, como era feito anteriormente. Montada a página, o texto é levado para a impressora e em seguida para a guilhotina, onde recebe o acabamento necessário: “Melhor do que cortar no estilete”, brinca Bruno

Plaquetes com os poetas que participaram do circuito de leituras Vozes, Versos

mostradores fluorescentes. Em média, os livros editados têm cerca de 150 páginas.

A opção pelos “gêneros limítrofes” e pelos “formatos menores”, como Bruno se refere, acontece também por uma questão prática: difícil imaginar um Os Sertões (Euclides da Cunha), no alto de suas mais de quinhentas páginas, sendo montado em linotipo e costurado em uma máquina Singer.

Outra faceta da editora é a feitura dos plaquetes (livretos com menos de cem páginas) do Vozes, Versos, ciclo de leituras de poemas originais e traduções, idealizado pelos poetas Heitor Ferraz e Tarso Melo. Os plaquetes são impressos em tipografia, com regularidade, e vendidos nos encontros. Sem qualquer financiamento, a editora arca com os custos e com o trabalho de edição, projeto e impressão. De 10

novembro • 2018

acordo com Bruno, os autores e organizadores também não recebem nada: “Trabalham e leem seus poemas por acreditar na importância do projeto”.

Bruno pede licença para receber as visitas. “Acho que já podemos começar a leitura”, diz Sílvia cruzando o corredor carregando uma cadeira em direção à tipografia, onde Júlia lerá o poema Alforria-blues. As pessoas se reúnem ao redor da poeta paulistana. Ela segura o livro recém-editado — o qual ganhou cerca de 400 cópias — e espera até que todos estejam a postos para ouvi-la.

Quando começa a falar, sua voz é entrecortada pelo som da turbina de um avião que passa sobre a casa, o que a leva um recomeço. “Estou muito feliz com o resultado do objeto-livro. Foi um texto que nasceu no meio digital [ela tem um blog com o mes-

“

A máquina tipográfica é uma tecnologia relativamente recente. Ela acelerou o processo de impressão, mas ainda assim é um trabalho bem artesanal.”

mo nome, no qual publica contos e poemas] e que veio parar na tipografia.” A realização de eventos como esse, bem como a presença da editora em feiras de publicação e leituras como as do Vozes, Versos, é uma das maneiras de distribuição e divulgação do trabalho realizado por Bruno e Sílvia.

Recuperar a técnica tipográfica cria um paradoxo: equipamentos e funcionários antigos são responsáveis por produzir obras que inovam nas narrativas e no formato. “Nós conseguimos variar tipos de papel, de tinta e de famílias tipográficas, dando aos nossos livros esse caráter experimental. Apesar disso, prezamos sobretudo a legibilidade e a experiência da leitura, o que as técnicas tradicionais de impressão proporcionam com muita qualidade”, diz o editor. Esse paradoxo, por sua vez, confere à editora ares de oficina-laboratório, na qual questões como “novo” e “tradicional” confundem-se para criar uma marca própria. Apertado entre a guilhotina e a impressora, Bruno arremata: “Não queria que a Quelônio ficasse conhecida como uma editora de fetiche, mas como uma editora que resgata o simples.”

11

novembro • 2018

perda e permanência Com um dos maiores acervos fotográficos da MPB e da cultura brasileira, o fotógrafo Mário Luiz Thompson reflete sobre aquela que é considerada a “arte do arquivo” por gabriel nunes de azevedo

13

novembro • 2018

per fil

P

retérito mais-que-perfeito Mário atravessa a porta da sala. Com a mão que não segura a bengala, busca apoio no ar conforme se aproxima de uma poltrona.

Ensaia sentar-se, mas se deixa distrair por uns instantes. Os olhos negros no rosto rosado percorrem o aposento, onde paredes brancas foram preenchidas ao longo dos anos com retratos e fac-símiles de cartas emoldurados. Cartas e dedicatórias de Luiz Melodia, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, João Gilberto, Gal Costa e Gilberto Gil. Algumas das originais foram perdidas em uma infiltração; outras, com o tempo.

Entre elas, há um depoimento, de 1985, escrito à mão por Caetano Veloso: “Nós o apelidamos de Mário Astral no início dos [anos] setenta e agora eu quero chamá-lo de fotógrafo mágico. Cada foto dele tem ao mesmo tempo a instantânea força zen e a longa conversa sem fim da lenda.” O fotógrafo observa as paredes. Aos 73 anos, Mário Luiz Thompson contempla passado e presente confundirem-se nas imagens entre as molduras. Inclina-se sobre a bengala e, em um movimento brusco, deixa o corpo cair sobre a poltrona. Pinça de dentro de um maço de Hollywood Original um cigarro e o leva à boca. “O isqueiro”, balbucia com o cigarro entre os lábios. Hernan, sobrinho e espécie de assistente e assessor

14

novembro • 2018

dele, vasculha os bolsos em busca do objeto. Mário fuma devagar: traga, inspira e espera com a fumaça presa no peito. Fuma como se cumprisse uma tarefa automática dentro de um ritual cujo começo ele não seria capaz de remontar. Os olhos desprendem-se dos retratos e vagueiam pelo ar: “Antes aqui tinha muita vida, hoje é só um silêncio.”

Hernan liga a vitrola. O ruído grave e abrupto da agulha tocando o vinil escapa dos alto-falantes como se em algum lugar da sala uma folha de papel fosse amassada.

O disco gira vagamente no aparelho até que surge a melodia cadenciada de um violão dedilhado. Ouve-se a voz de Gilberto Gil: “Se o presente não está bom, o amanhã será melhor.” Mário traga o cigarro.

Inspira. Espera. Coloca para fora a fumaça acumulada no peito e então diz: “A letra foi a minha mãe quem fez. Eu costumava acordar com ela tocando piano”. Mãe de Mário, Íris Thompson de Carvalho estudou e se formou no Conservatório Musical de São Paulo, onde teve aulas de História da Música com Mário de Andrade. Foi também escultora, poeta e professora primária. Aprendeu o ofício da escultura com a artista Elisabeth Nobling e chegou a expor uma de suas obras na 1ª Bienal de Artes de São Paulo, em 1951. Intitulada Torso, a

escultura foi premiada com a medalha de bronze no Salão Paulista de Belas Artes e no Salão Nacional de Belas Artes, realizado na capital fluminense. A escultura encontra-se atualmente na porta de entrada da casa onde vive Mário, entre uma gaiola de papagaio e um busto do autor de Pauliceia Desvairada, também feito por Íris.

Se a mãe foi responsável por instigar o lado musical do filho, como ele recorda, seu pai foi quem o apresentou a fotografia. “Ele adorava fotografar, apesar de não trabalhar com isso. Ele era moldureiro.”

Respirando pesadamente, o cigarro entre os dedos, Mário relembra que seu pai — cujo nome também era Mário — deu a ele a primeira câmera fotográfica, uma Polaroid.

A menção ao pai surge como uma nota de rodapé em meio à fumaça e à voz rouca que sai da boca do velho fotógrafo. Ele sempre retorna à mãe, cuja memória parece habitar todos os objetos da sala: o piano centenário; a cadeira de balanço onde costumava sentar-se; o retrato ovalado fixado acima do tampo do piano, no qual ela aparece jovem portando um sorriso contido nos lábios. “Ela recebia as pessoas muito bem. Ela era o cartão-postal da casa. Eu apresentava minha mãe para todo mundo que vinha me visitar e ela sempre chegava, toda receptiva, dizendo coisas como: ‘Poxa, você tem o queixo do Haroldo de Campos, já a bochecha é do Jô Soares!”. Mário ri. A risada, entretanto, converte-se bruscamente em pigarro seco. “Ela tinha um sorriso tranquilo”, diz, de sobrecenho franzido. Íris morreu em 2003, aos 96 anos.

Além de retratos, o aposento é povoado por instrumentos musicais — além do piano, bongô, violão, tuba, bandolim

Mário Luiz Thompson sentado na porta de sua casa, no bairro do Brooklin, em São Paulo (c. 1970)

Rita Lee e Gilberto Gil durante as gravações do álbum ao vivo Refestança, em 1977

15

novembro • 2018

per fil

Criança no sertão alagoano (c. 1970)

e maracás disputam espaço com a mobília. Das estantes, brotam livros de temas diversos, cujas lombadas estão amarelecidas e gastas. Do misticismo de I Ching: O Livro das Mutações à poesia de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Entre as lombadas puídas nas estantes, surge a espiral plastificada de uma encadernação. É uma coletânea de versos e pensamentos de Íris — alguns dos quais podem ser lidos em cartazes presos nas paredes do lado de fora da casa. Em um dos poemas, de 13 de dezembro de 1982, ela descreve um encontro com Raul Seixas, quem Mario fotografou assiduamente: “Hoje conheci Raul Seixas. Simpático, alegre e jovial. De barbicha e lindas madeixas. Um visual original. Ofereci um cafezinho, mas ele agradece e não toma porque sua vontade seria tomar Coca-Cola. Que pena, não pude agradar aquele que sabe cantar.

Aquele que tanto fascina o povo que muito o admira. Outra vez que aqui chegar, um barril de Coca-Cola vou comprar para agradar o cantor que sabe cantar.”

“Aqui antes tinha mais vida, agora é só um silêncio. Aqui mesmo, nesta sala, fotografei mais de 400 pessoas. Mas eu não gosto muito de dirigir foto, sabe? De dirigir a pessoa, de fazer efeito. Eu gosto de captar o momento da melhor maneira possível.

16

novembro • 2018

Sem muitos recursos. Acende a luz lá pra ele ver!”, pede a Hernan efusivamente. O sobrinho acende dois grandes holofotes, que inundam a sala com uma iluminação pálida, hospitalar. “É uma judiação isso aqui estar ocioso. Olha essas fotos do Brasil, como são bonitas!” Enquanto fala, Mário aponta em direção a um mural com paisagens do norte e do nordeste brasileiro registradas por ele entre os anos 1970 e 1980.

“Aqui antes tinha mais vida, hoje é só um silêncio.” A frase repete-se pelas paredes emolduradas da casa. pretérito perfeito Enquanto bebe a goles curtos o café recém -passado, Mário menciona vídeos que fez de “shows históricos e antológicos” (como gosta de ressaltar) de João Gilberto, Dorival Caymmi, Rita Lee, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus: “O meu trabalho é, na verdade, o trabalho de muitos”. Com o dedo indicador em riste, aponta para uma região específica na parede à frente.

Indica uma imagem entre seus diplomas (formou-se em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado e em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia) e um antigo gramofone, cujo brilho de outro tempo deu lugar a uma coloração esfumaçada. Segundo ele, trata-se

Mário em foto de autor desconhecido (c. 1970)

da “primeira fotografia madura” que fez, “embora tivesse apenas 18 anos.”

O retrato mostra um menino negro debruçado sobre uma guitarra rudimentar. A imagem estampa a capa do livro Bem-Te-Vi Brasil, publicação que reúne 1.462 fotografias de personagens da MPB registradas por Mário. Entre um trago no cigarro e um gole de café, ele relembra o momento em que registrou a imagem, mencionando o som de uma “mão [batendo] na madeira e tocando uns arames”.

Andava pela região de Alagados, em Salvador, em 1963, após um congresso estudantil. Carregava no pescoço uma câmera Kapsa, conhecida também pelo apelido Pinta Vermelha devido a um pequeno botão de mesma cor localizado próximo à lente da máquina. “Se olhar bem, você vai ver três tampinhas de pasta de dente no corpo da guitarra.”

De súbito, como se sentisse deslumbrado pelo acontecimento, Mário diz: “As coisas foram me acontecendo e sempre foi assim: nunca planejei nada. Vivo aberto à conspiração dos astros”. Em seguida silencia: os olhos fixam uma mesa no canto da sala sobre a qual se acumulam livros em que teve fotos publicadas. São biografias de bandas como Os Mutantes e Novos Baianos. Também repousa sobre a mesa um catálogo empoeirado, de folhas ásperas e pardacentas. O catálogo contém um sumário com parte da vida fotográfica de Mário em alguns dos principais veículos de comunicação brasileiros para os quais trabalhou como fotógrafo freelancer. Jornais como O Estado de São Paulo, o extinto A Folha da Tarde e Folha de S. Paulo reproduziram 17

novembro • 2018

per fil

Painel com fotos feitas por MLT entre os anos 1970 e 1980

imagens feitas por ele, além de publicarem reportagens sobre sua vida. Ele também é mencionado em reportagens publicadas em veículos estrangeiros. Como é o caso do jornal italiano Corriere Romano, que, em uma nota de 26 de setembro de 1983, chamou Mário de “o fotógrafo da música e da alegria do povo brasileiro.”

As reportagens dificilmente entram em um acordo entre si sobre a quantidade exata de fotografias e de vídeos que montam o acervo dele: algumas apontam 100 mil negativos, registros audiovisuais e fotográficos; outras, 400 mil.

Mário também não tem certeza da cifra.

O total preciso e registros que integram o acervo de Mário parece ser um desses números em que paira certa obscuridade devido à sua grandeza.

18

novembro • 2018

“Registrava três shows por noite.

Não tinha namorada na época, então me casei com a máquina”, fala em voz alta, demonstrando certo orgulho bonachão.

Mário gostava de se aproximar afetivamente dos músicos que fotografava. Depoimentos como o de Caetano Veloso e também o de Milton Nascimento (o qual se encontra emoldurado próximo à porta de entrada da sala) sugerem o interesse que o fotógrafo tinha em não ser apenas observador, mas também parte do que registrava. “Parece que esse [Mario] tem ‘retratado’ todas as fases de minha carreira. Aliás, faz parte dela, em fotos e sorrisos, suor, tudo. Músicas, fotografia, personagem, sorriso, fazem um filme, mesmo separados. O filme das nossas vidas”, escreve Nascimento.

“Sempre enrolava oito ou nove baseados, botava num maço vazio de cigarro, chegava no camarim antes do show e saía distribuindo. Digamos que eu era benquisto pelos músicos”, diz o fotógrafo, esgueirando o corpo para apagar o cigarro na xícara de café — embora o cinzeiro estivesse ao lado. Apagado o cigarro no restante do líquido morno, ele repensa o que acabou de dizer e fala apressadamente, como se quisesse complementar o que foi dito anteriormente: “Não só por isso, claro. Mas também por causa do ritmo com que eu fotografava. Nunca tropecei em equipamento, nunca usei flash, nunca fiquei na frente de nenhum espectador.

Eu fazia foto dentro do ritmo da música. Com o João Gilberto, por exemplo, só fotografava na hora do aplauso.” Mário acende outro cigarro, pousa as mãos sobre os joelhos e observa algum ponto indistinto entre os pés.

Do outro lado da sala, Hernan coloca na vitrola um disco do músico indiano Ravi Shankar. Prepara, em seguida, um pequeno incensário. O som das cítaras e das tablas que escapa dos alto-falantes reverbera pelo cômodo à medida em que a fumaça do incenso de mirra e a do cigarro Hollywood espalham-se pelas paredes. “O Hernan foi a primeira pessoa a ligar essa vitrola desde que a minha mulher faleceu”. Parceira de longa data de Mario, Delma Herrero morreu em 2007, aos 44 anos, de câncer. Tiveram um filho, Gabriel. De acordo com Hernan, Delma era uma das responsáveis por manter organizado e conservado o acervo de Mario. Ela também coordenou a produção do livro BemTe-Vi: Música Popular Brasileira. Antes

de morrer, o casal já havia se separado.

Hernan acusa o temperamento errático de Mario como um dos potencializadores para o término da relação. Mario, por outro lado, não entra no assunto, a não ser que seja para relembrar a saudade de uma presença convertida em ausência. “A única salvação minha seria encontrar uma outra Delma, alguém que me amasse.

Fiquei meio bicho do mato depois dessas perdas todas.” futuro do pretérito “Meu acervo é um arquivo morto se não tiver utilidade para a comunidade”, disse Mário ao jornalista Roberto Comodo, que anunciava em uma reportagem de jornal o perigo ao qual o acervo estava sujeito.

Isto é, o perigo da deslembrança. Passados pouco mais de vinte anos da entrevista, a preocupação do fotógrafo ainda é a mesma: o silêncio do esquecimento.

“Queria que isso fosse preservado por uma instituição, que ficasse para o futuro. Sabe, tá tudo editado em DVD!

“

Não gosto muito de dirigir foto, sabe? De dirigir a pessoa, de fazer efeito. Eu gosto de captar o momento da melhor maneira possível.

Sem muitos recursos” 19

novembro • 2018

per fil

Eu tenho até um release para uma possível exposição. Inclusive, tem um texto que se chama…” — ele estala os dedos, crispa os lábios e abaixa a cabeça tentando lembrar; então grita: “Ô, Dalva!” Mario interrompe a fala para chamar por aquela que ele considera a governanta da casa.

Dalva dos Santos começou a trabalhar com ele por volta de 1992, depois de ler um anúncio de estágio publicado em um jornal de bairro. Na época, trabalhava no Sindicato de Rádio e TV e fazia um curso profissionalizante de fotografia no Senac. “Fiz uma entrevista com o seu Mário. Como a gente era vizinho de bairro, acabei ficando pra trabalhar no laboratório de revelação”.

Ao chegar na casa, uma das coisas que chamou sua atenção foi a quantidade de sacos plásticos empilhados na sala. Dentro deles, registros raros feitos em Super-8 de shows de Alceu Valença, Jards Macalé, entre outros. “Ia tudo pro lixo”, diz, enquanto observa atentamente o trabalho do eletricista que veio consertar o portão de entrada. “Perguntei se ele [Mario] não queria que eu fizesse uma limpeza naquilo. Pedi pra dar uma olhadinha, nem que fosse só pra passar o tempo, porque se dependesse dele estaria tudo no lixo. Fui então em um brechó e encontrei um projetor. Naquela época trabalhava das três da tarde às três 20

novembro • 2018

da manhã no laboratório emendando os filmes, ampliando imagens, catalogando o acervo. Boa parte do que está digitalizado no YouTube fui eu que fiz.” “Ô, Dalva!”, chama Mario, novamente. “Você pode imprimir também aquele texto dos projetos e dos patrocínios”. Ele explica: “É um projeto. Ou melhor! É um apanhado de cinco ou seis livros que eu gostaria de editar, mas falta o patrocínio.

Fazer um livro, para mim, é o máximo. A exposição [fotográfica] é efêmera, mas o livro fica para o futuro. Eu sinto que preciso fazer alguma coisa”, diz, com os olhos vítreos. “Eu preciso fazer alguma coisa, senão vou sentir que foi tudo em vão. Eu dei meu sangue por isso”. Conforme fala, gesticula com uma das mãos referenciando as paredes. Ele então apaga o cigarro no cinzeiro com força, polvilhando o tampo da mesa e as próprias mãos com as cinzas das baganas de outros cigarros acumulados.

Por alguns anos, Mário organizou eventos e shows com o intuito de financiar a preservação do acervo. Uma nota publicada em 30 de julho de 1991, no “Caderno 2”, do jornal Estado de São Paulo, anuncia: “Estrelas cantam para preservar memória da MPB”. A matéria, no entanto, não foi a única a tratar do assunto. Ou a mais recente. O caderno “Cultura & Lazer”, do Diário do ABC, também escreveu algo parecido, em 15 de dezembro de 1990, ao divulgar uma série de shows de Alceu Valença e Belchior cujo intuito era a arrecadação de dinheiro para manter preservado o acervo de Mario. A paráfrase atemporal repetese no título da notícia: “Artistas cantam para salvar suas fotos”.

Mário também organizou, em sua casa, as chamadas Tertúlias, festas que chegavam a durar 12 horas e que recebiam convidados como Chico César, Arnaldo Antunes, Tom Zé e Antonio Peticov. Os encontros, descritos por Wladyr Nader, em reportagem da Folha da Tarde, publicada em 2 de julho de 1992, eram regados “a cerveja, vinho e umas comidinhas preparadas na própria casa”, com uma atmosfera de confraternização boêmia, a qual ele assemelha livremente a do filme Sociedade dos Poetas Mortos.

“Hoje é só silêncio”, Mário diz ao entrar na sala em que a mãe dele costumavase sentar ao piano e dedilhar mazurcas. A sala centenária, onde tudo está suspenso entre o que foi, o que é e o que será. A frase reverbera pelas janelas e se mistura às vozes dos estudantes que saem da Escola Estadual de Primeiro Grau Mário de Andrade, localizada em frente. Anoitece.

em seguida dá uma mordida generosa na porção manchada pelo líquido. Com a boca cheia, agitando o pedaço de pão à frente do corpo, ele relembra: “Quando fui à Bahia pela primeira vez, dei uma passada no Porto da Barra, sozinho, querendo me enturmar, transar algumas ideias. Conheci umas pessoas e comecei a conversar com elas, mas fiquei preocupado em dar continuidade ao encontro. Sabe? Fiquei preocupado em fazer durar. Aí, perguntei: ‘E à noite, o que vocês vão fazer?’ E eles responderam: ‘À noite? À noite eu não sei.

A noite não chegou ainda’”.

Milton Nascimento em show realizado em 1975

∞ À mesa da cozinha, Mário bebe um gole demorado de leite com achocolatado e morde um pedaço de pão com manteiga.

“As pessoas sempre perguntam o ano em que eu tirei alguma foto. Não sei o porquê dessa preocupação com o ano, com o espaço-tempo das fotografias que faço. Como se o ano determinasse alguma coisa.”

Ele fica calado por alguns instantes.

Limpa a oleosidade acumulada nos lábios usando a língua e dá continuidade ao que falava: “Existe uma preocupação exagerada nesse sentido, mas eu percebo que o tempo é uma coisa meio que sine qua non para você se dar bem. Vou dar um exemplo”. Ele molha o pão no achocolatado e 21

novembro • 2018

o sabor do esperar Respeitar o tempo dos alimentos ĂŠ o ingrediente principal para o ĂŞxito de uma receita por julia gravalos benini

23

novembro • 2018

O gastro nomia

processo leva um mês, mas não dá trabalho algum, apenas esperar. Assim começam as instruções da chef de cozinha Heloisa Bacellar sobre o preparo de licor de jabuticaba. Formada em gastronomia pela escola parisiense Le Cordon Bleu, a chef paulistana de 55 anos de idade cozinha desde os seis. Quando colheu a fruta do quintal da casa dela, Heloisa imaginou algumas receitas que poderia publicar em seu site: sorvete, bolo e geleia de jabuticaba. “Se você me perguntar se eu gosto de licor, vou te responder que não dou a mínima”, confessa a chef, tentando entender o que a levou a destinar parte das frutas à bebida. “Encontrei um preparo ridículo: colocar as jabuticabas em dois potes (um com açúcar, outro com cachaça) e esperar um mês para coar os dois conteúdos e depois misturar. Imaginei que ninguém fosse se interessar devido ao tempo necessário para fazer o licor, mas é uma das receitas mais acessadas do site”, espanta-se, também ao lembrar das quatro mensagens diárias que recebe sobre o preparo, ainda mais no segundo semestre do ano, época de jabuticabas.

A recepção positiva do público da chef poderia ser compreendida pela dificuldade em encontrar uma boa receita desse licor.

No entanto, a modéstia de Heloisa, que a faz seguir repetindo que o preparo é “ridículo”, conduz o pensamento dela para outra questão: “Existe um movimento de pessoas

24

novembro • 2018

que estão perdendo o medo do aguardar. Elas estão buscando receitas que têm o tempo e os processos naturais dos alimentos como ingredientes principais”. Para a especialista em mindful eating (consciência plena no momento da alimentação), Luiza Camargo, a possibilidade de se concentrar em outras atividades enquanto a preparação está em repouso pode ser um benefício, porque “nossa mente busca distrações durante qualquer atividade que estejamos executando, porque estamos acostumados a ser multitarefas”.

Apesar de direcionarmos nossa atenção a estímulos variados e, por vezes, simultâneos, Luiza ressalta a importância de se dedicar a uma só atribuição para ter consciência sobre os processos que a envolvem. “A prática da atenção plena no momento de preparar um prato é estar presente. É escolher as combinações de sabores, pensar a forma de preparo de acordo com o tempo de cocção dos alimentos, perceber as texturas e os aromas”, conclui.

Com entusiasmo, Heloisa ensina a preparar outra receita cujo sucesso ela também julga inexplicável. “É um preparo que demora uma semana e exige atenção todos os dias, mas não tem nada de complexo”, a chef antecipa. “Tendo a laranja da terra, você usa uma faca afiada para remover a casca alaranjada. O doce é feito com a casca branca, que tem um dedo de grossura. O miolo é muito amargo, não tem como comer e precisa ser removido antes do prepa-

ro, com um corte”, diz a paulistana, como quem já cometeu o erro de provar a parte descartável da fruta. Descascada, a laranja deve permanecer imersa na água durante toda a semana. Quatro vezes ao dia, todos os dias, a água deve ser trocada. Por fim, “é só colocar a casca no açúcar e cozinhar até ficar doce”, finaliza, preparando-se para repetir “é muito fácil”.

Para as pessoas que poderiam se incomodar com a dificuldade de trocar tantas vezes a água do doce, Heloisa recomenda uma divisão de tarefas. Para ela, preparar uma receita com outras pessoas torna o ato de comer “um momento de compartilhar o resultado daquela experiência”. E mesmo para quem cozinha sem ajuda, como a chef, “convidar os afetos é sempre uma possibilidade”. Ao falar de refeições de preparo lento, afirma: “Pode até ser que uma pessoa maluca vai preparar barreado só para ela. Mas, na teoria, quem se propõe a cozinhar em uma panela de barro, no fogo de chão, pretende dividir isso com alguém”. O barreado, prato típico do Paraná, é feito a partir do cozimento, durante 20 horas, de carnes bovinas temperadas com cebola, alho, pimenta, louro e cominho.

A filosofia de cozinhar para alguém também está no preparo do prato paraense maniçoba. As carnes bovina e suína são acrescentadas a folhas de mandioca que devem ser fervidas durante uma semana para perderem o veneno. “A receita pode ser mais complexa porque o ingrediente principal [as folhas de mandioca] é difícil de encontrar, mas nada impossível. A pessoa, na verdade, lida mais com o controle da própria ansiedade e menos com a dificuldade do preparo”, reflete Heloisa, que se refere a pratos assim como um “projeto”. A chef garante que o planejamento

para realizar esses projetos é o que determina a qualidade do desempenho de quem segue a receita. “Eu sou muito organizada. Deve ser por isso que eu considero tudo muito fácil”, acrescenta, ignorando a influência que os sete livros publicados sobre culinária podem exercer sobre essa habilidade.

A necessidade de Heloisa encontrar um motivo para o sucesso do licor de jabuticaba a faz retomar o assunto, pedindo licença para ler em voz alta as mensagens que recebeu ao longo do dia. “Helô, acabei de preparar minhas misturas, como você explicou. Daqui a um mês, mando uma foto com o resultado do licor”, recuperando o ar para a próxima mensagem, cuja leitura foi interrompida por ela mesma. “Para que a pessoa precisa me escrever? Para nada! Eu respondo todo mundo, mas é delirante. Quem toma tanto licor assim?”, diz a chef, entre gargalhadas. “Dessa aqui você vai gostar”, respirou fundo: “Helô, é verdade que se eu deixar as jabuticabas descansando por dois meses o sabor será ainda melhor? Ansiosa pela resposta!”.

“

A prática da atenção plena no momento de preparar um prato é estar presente”

Sala de recepção com peças vintage do acervo Casa Juisi, no centro de São Paulo

colcha de retalhos dupla conserva acervo de 40 mil peças e começa a produzir catálogo da coleção para traçar história da moda brasileira e internacional texto e fotos por ana beatriz fidelis e brenda zacharias

27

novembro • 2018

A acer vo

sala do prédio comercial recém -reformado, ao lado do Páteo do Colégio, no centro de São Paulo, estava abafada, apesar da garoa fina que caía lá fora. Os janelões abertos permitiam a entrada de um pouco da brisa, que mal conseguia ultrapassar a arara lotada de roupas. “Aqui não bate muito sol, então nem esquenta tanto”, diz Simone Pokropp, sentada na única cadeira firme do cômodo.

“Mesmo assim, instalamos um ar-condicionado como prevenção, já que algumas dessas peças são bastante delicadas”, continua. Fazíamos a entrevista em duas cadeiras dobráveis no estilo daquelas usadas por diretores de cinema, em cujos encostos estavam gravados os nomes de dois bastiões: a francesa Agnés Varda e o alemão Rainer W. Fassbinder.

Não que algum deles tivesse sentado nelas. Era apenas uma homenagem que ela resolvera fazer depois de ganhar as estruturas de uma amiga. A coleção de presentes vai longe: à nossa direita, penduradas pelo passador, estava uma coleção de calças jeans Levi’s que contam a história da marca, com modelos confeccionados desde o século 19. Dessa vez, uma permuta, segundo Simone, por um trabalho prestado para uma campanha da marca no Brasil.

Ela e o curador Junior Guarnieri são os fundadores da Casa Juisi, acervo de figurinos e acessórios que recompõem a his-

28

novembro • 2018

tória da moda do Brasil e do mundo. Os cerca de 40 mil itens — roupas, sapatos e acessórios reunidos pela dupla ao longo de 16 anos — estão divididos atualmente em dois prédios na rua Roberto Simonsen. As peças acomodadas no número 108 estão disponíveis para aluguel e são geralmente requisitadas por produtores de teatro, cinema e música. Ao lado, no número 94, há um anexo no qual guardam os 1.500 itens mais importantes da coleção, com os quais realizam um trabalho de catalogação da história da moda.

Tudo isso começou como um brechó, por volta de 2002. Apaixonados pelo vintage, sentiam falta de lugares na cidade para garimpar roupas de outras décadas.

Juntaram o que tinham e, então, passaram a organizar bazares aos finais de semana.

Nesses encontros, apareciam amigos que trabalhavam em revistas ou o “pessoal da moda”, como o estilista Dudu Bertholini.

Conforme mais peças foram chegando, tiveram que se mudar para a galeria Ouro Fino, na rua Augusta, e posteriormente para a Alameda Tietê, nos Jardins.

A dupla relutava em vender alguns dos modelos que adquiriam; em parte, devido à importância histórica que tinham.

“A gente começou a ver que muita coisa tinha valor por pertencer a um estilista, modelagem, movimento político específico, até peças mais modernas, que podem

Depósito central de peças da Casa Juisi, com vestidos, camisetas, calças e jaquetas

influenciar o futuro”, diz ela. Resolveram suspender as atividades por algum tempo e, em 2011, instalaram-se no centro. Nessa época, ainda dividiam o espaço entre loja e acervo, até optarem por focar de vez na conservação de artigos de moda. forração O acervo de figurinos do Projac, central de produção da Globo no Rio de Janeiro, conta com mais de cem mil peças. A cidade de São Paulo também abriga algumas coleções: a Central Técnica Chico Giacchieri, do Teatro Municipal; o Guarda-Roupa, no sótão do teatro da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP); o Museu de Arte de São Paulo, uma das mais importantes instituições culturais do país. Belo Horizonte

inaugurou, em 2016, o Museu da Moda, o primeiro voltado ao ramo no país. Em resumo, são poucas as instituições preocupadas com a manutenção desse segmento da história no Brasil.

“A gente trabalhou um tempo no Teatro Oficina [em São Paulo]. Vimos peças jogadas no chão, dentro de sacos plásticos.

Quando você menos percebe, está pisando em uma roupa da [atriz] Cacilda Becker”, lembra Simone, afirmando que isso literalmente aconteceu com ela. Em outro caso, correu para entrar em contato com o Balé da Cidade, que estava em processo de mudança, para pegar algumas peças que deviam ir para a doação. Nenhuma resposta.

A Casa Juisi planeja abrir as portas e gavetas da coleção até 2019. Desde setembro, fazem o levantamento do acervo a 29

novembro • 2018

acer vo

Algumas das caixas que guardam peças mais delicadas da coleção, como pijamas e camisolas

30

novembro • 2018

partir do anexo. Os detalhes das peças são fotografados e salvos em uma planilha.

Desse processo, é possível extrair uma ficha completa da condição da roupa: Simone folheia um bolo de páginas com a marcação das medidas, tipos de tecido, moldes, defeitos e manchas. O trabalho deve ser dividido com uma escola pública de modelagem da região, com a qual ainda fecham a parceria.

A ideia é reunir os itens mais significativos em um livro — projeto definido como o mais simples para dar início à consagração do acervo. Para patrociná-lo, a dupla deve recorrer a editais de arte e cultura ou então entrar com pedido via lei Rouanet. Em 2014, a Casa chegou a ser uma das premiadas com R$ 120 mil no projeto Rumos, do Itaú Cultural, para o qual desenvolveu um programa de residência artística com três estilistas do grupo Phosphorus. Ou ainda procurar uma das grandes cadeias de moda que atuam no Brasil, como a Riachuelo e a C&A. O processo é custoso. É necessário determinar gastos, etapas, peças que farão parte e quais as suas especificidades. Em diálogo com outras instituições, poderia surgir desse projeto uma exposição itinerante, desejam eles: “Não é um sonho utópico, caro. Eles sequer têm o trabalho de cuidar do material bruto, de manusear esses artigos com cuidado”, explica Simone. “Quem sabe”, ela continua, “o projeto poderia evoluir para uma instituição, citando o Museu do Traje, em Lisboa, como inspiração.”

Por enquanto, a manutenção é subsidiada pelo aluguel das peças. Para controlar a umidade e o calor, que podem mofar e desbotar os tecidos, as salas são equipadas

com ar-condicionado. Algumas das peças, principalmente as mais delicadas, estão cobertas com uma capa de plástico. Outras são guardadas em caixas. Todo o trabalho é acompanhado e feito pela dupla e alguns funcionários, nenhum com especialização em restauração. Contam com a orientação de amigos da área e da moda — uma restauradora da USP esteve lá para dar dicas para conservação dos itens. Uma delas era cobrir as araras com um pedaço de TNT branco, usado para evitar que se acumule poeira demais nas roupas; se estiver encardido, é hora de ser trocado.

“Mas, se no Rio de Janeiro, em museus daquela grandiosidade [em referência ao incêndio do Museu Nacional, em setembro de 2018] se veem tantos problemas, quem dirá eu que não tenho nada”, diz. arremate Quando perguntada sobre as peças mais especiais do anexo da Casa Juisi, Simone hesita como quem tem orgulho do tamanho do que faz. Primeiro, escolhe uma jaqueta

de cetim vermelho, usada por Rita Lee na apresentação de Chega Mais no programa Globo de Ouro, em 1979. Essa proeza, diz ela, foi alcançada depois que uma colega avisou que a cantora estava se desfazendo de parte de seu acervo pessoal, em 2010.

Menciona, mais tarde, que a Casa também trabalhou com a cantora Pabllo Vittar, fornecendo algumas peças para sessões de fotos e herdando outras.

Não só de memórias vive um museu.

A dupla diz procurar por artigos da atualidade, que seriam peças extravagantes, ou de estilistas contemporâneos, em começo de carreira, para tentar prever o que vem pela frente. “O que a [cantora] Anitta usa hoje em um clipe será uma referência estética dos novos artistas”, explica. Com a catalogação completa do acervo, espera-se também criar um banco de imagens, para fornecer como base de pesquisa para empresas de moda e de design.

Baseado em um processo delicado de escolha das novas aquisições, a coleção não para de crescer. Vão além dos acervos 31

novembro • 2018

de instituições e caçam em brechós por São Paulo e mundo, sendo a Bolívia e o Japão alguns dos citados por ela: “Tento correr atrás, salvar peças em lugares perdidos e tirar preciosidades do anonimato”.

Para reconhecer uma dessas raridades, o primeiro passo é o toque. Pelo tecido, tem-se uma dica da qualidade e da época. Começou a haver muita diversidade de materiais entre os anos 60 e 70, por exemplo, então é possível cruzar as informações de período. O segundo é a modelagem: se é “incrível” e passou no crivo do tecido bom, pode ser um sinal de que é uma criação de um certo estilista, ou apenas uma referência estrangeira que foi adaptada para o consumidor brasileiro.

Por fim, a etiqueta. Somente então se tem um indício de qual alfaiate ou atelier desenvolveu a peça. “O processo é rapidinho.

Mesmo quando vamos a um lugar grande, não passamos de uma hora pesquisando. O olhar ajuda.”

A dupla se dedica a outros projetos.

Empolgada com o trabalho que desenvolvem, Simone revela detalhes de projetos ainda prematuros: “Talvez seja um brechó só de peças de sportswear antigo. Outra ideia é reunir peças para trabalhar com outras vertentes, colaborar com empresas maiores. Algo totalmente diferente do que estamos acostumados.”

32

novembro • 2018

Jaqueta de cetim vermelho usada por Rita Lee na gravação do clipe da música “Chega Mais”, de 1979

33

novembro • 2018

ver be te

existência preta a experiência da população negra em uma sociedade de padrões e expectativas brancos por ana beatriz fidelis

37

novembro • 2018

ver bete

“

V

ou descer na praça da República agora. Logo mais chego. Estou de casaco cinza”, avisa Samanta Fonseca. Já estava à sua espera e, a partir desse momento, passei a ficar atenta à saída do elevador. Ela realmente chegaria logo mais. A caminhada da Praça da República até o Sesc 24 de maio, onde nos encontraríamos, leva menos de dez minutos.

Avistei um casaco cinza. A pessoa que o vestia se parecia com a que conhecia das fotos e vídeos. Me levantei para que também fosse vista. O sorriso e o andar em minha direção confirmaram minhas suspeitas.

“Me desculpe pelo atraso, resolvi passar no banheiro para lavar as mãos e o rosto. Quase tirei o casaco, mas me lembrei que ele era o nosso ponto de referência”, diz, enquanto finalmente se livra da peça. “Só preciso de um café e já podemos começar.”

Samanta Santos da Fonseca é psicóloga clínica, pesquisadora em psicologia e relações raciais e militante do movimento negro. “Falo como psicóloga ou militante?”, questiona antes de darmos início à conversa. E, como se pudéssemos antecipar que essa separação não existiria, combinamos de deixar as respostas fluírem.

“A primeira palestra que dei profissionalmente foi sobre identidade. Re-

38

novembro • 2018

corri ao Ciampa, a identidade como metamorfose”. Antônio da Costa Ciampa, doutor em psicologia social, apresenta o conceito de identidade como uma relação entre autor e personagem na qual quem exerce os dois papéis é um mesmo indivíduo. Nessa relação haveria também a atuação do outro. Os discursos desse terceiro se unem aos seus próprios constituindo assim uma identidade, um processo de constante metamorfose.

A origem do indivíduo não implicaria em nada, então? “A identidade não é algo rígido, posto de uma única forma, vai se construindo ao longo do tempo. Mas as pessoas têm um solo que é muito importante. Pensando em pessoas negras, não são muitas as histórias de famílias estruturadas que conseguem ter um repertório saudável para passar para os filhos. Esses pais, normalmente, não tiverem essa base, nem os pais deles. Voltando mais no tempo, a gente vai parar na senzala. Que identidade será construída a partir disso?”, explica Samanta que me indica a leitura de Tornar-se negro (1984) para ter uma visão mais ampla sobre o assunto.

No livro, considerado o precursor no estudo da vida emocional negra no Brasil, Neusa Santos Souza pensa a questão em nível macro. A psicanalista investiga os custos da existência negra em uma sociedade branca, na qual todas as referências, padrões e expectativas são brancos. A autora mostra o processo de apagamento da história negra, :“um massacre da identidade original e histórico social”. Samanta acredita que o processo não seja de anulação, mas de negação, a população negra lida com o desconhecimento de suas bases: “Narrati-

vas do não pertencimento, do não lugar passam a ser inseridas na sua trajetória. A realidade do outro é absorvida como algo único e verdadeiro”. É possível identificar o processo de construção identitária mencionado anteriormente, mas ele se dá com recursos limitados.

Para a psicóloga, essa lógica do cerceamento reflete-se na autoestima na autoestima da pessoa, tanto do ponto de vista estético, quanto do cognitivo. “Mesmo inserida, a pessoa carrega o sentimento de não pertencimento e não merecimento. Ao estar desvinculado de sua raiz, o indivíduo não tem consciência da potência que possui, não consegue se expressar e isso acaba sendo reforçado pela lógica midiática e social. Não há representatividade, o que demanda um esforço do constante afirmar e reafirmar. Há uma estratégia de distanciar a pessoa do lugar dela, o lugar que ela pode chegar.”

Samanta lembra-se da obra de Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas (1952).

Nela, o autor faz um diagnóstico social da

alienação da população negra e apresenta como se dá a construção do fenômeno.

Fanon mostra como o dominador impõe sua cultura ao dominado por meio da linguagem, por exemplo, como a assimilação cultural afasta as pessoas de seus semelhantes. “Essa inserção na cultura lhe garante um lugar específico na sociedade. Você não pertence a todos os lugares. Pensei agora na advogada Valéria [a profissional foi algemada por policiais militares durante uma audiência judicial no Rio de Janeiro (setembro/2018)] há uma deslegitimação da sua existência em determinados lugares”, conclui a psicóloga.

A mensagem no celular interrompe a conversa, que acabou tarde o suficiente para resolvermos irmos juntas até o metrô.

O percurso de poucos minutos é tempo suficiente para Samanta me fazer sua última recomendação: “eu conheço bastante por aqui, de vez em quando rolam algumas festas de samba-rock, são bem legais”. Respondo com um sorriso e nos despedimos.

39

novembro • 2018

Cenas dos filmes, de cima para baixo, Amor Maldito, de Adélia Sampaio; O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes; e Café com Canela, de Glenda Nicácio

não é espaço branco Mulheres marcam presença no circuito comercial 34 anos depois do primeiro filme dirigido por uma cineasta negra no Brasil por ana beatriz fidelis e brenda zacharias

41

novembro • 2018

ver bete

D

os filmes com bilheterias superiores a 500 mil espectadores, lançados entre 1970 e 2016, nenhum foi dirigido por uma mulher negra. A maior parte, de pelo menos 85% de gêneros e raças que foram identificados, é assinada por diretores brancos; apenas 2% são longas-metragens de diretoras brancas.

Esses são alguns dos apontamentos do boletim “Raça e gênero no cinema brasileiro (1970-2016)”, publicado por pesquisadores do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). A

Claudio Pedroso/Agência Foto

Glenda Nicácio durante palestra na 41ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em 2017

42

novembro • 2018

base são os dados disponibilizados pela Ancine, agência federal reguladora do cinema atrelada ao Ministério da Cultura, referentes às melhores bilheterias, excluindo-se documentários e filmes infanto-juvenis.

Esse universo compreende desde o primeiro ano de atuação da Embrafilme, produtora e distribuidora de economia mista extinta em 1990, no governo de Fernando Collor de Mello, até os dados mais recentes divulgados na época. O estudo conclui que as mulheres negras (pretas e pardas) estão sujeitas a uma dupla exclusão no audiovisual: de gênero e de raça.

A presença desse espectro entre os cineastas brasileiros é recente. A pioneira é a mineira Adélia Sampaio, hoje com 74 anos, que dirigiu e produziu em 1984 o longa Amor Maldito. A ficção, baseada em uma história real, narra o romance entre a executiva Fernanda (Monique Lafond) e a ex-miss Sueli (Wilma Dias), que comete suicídio por não ter a sua sexualidade aceita pela família – é também um dos primeiros com temática lésbica. Devido ao roteiro, a sua produção foi negada pela Embrafilme com a justificativa de “divulgar ‘desvios’”, disse a própria diretora em entrevista a Kênia Freitas e Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida para o catálogo da exposição Diretoras Negras no

Cinema Brasileiro, promovida pela Caixa Cultural. Para ser exibido, foi inserido na categoria de pornô ou pornochanchada em algumas casas.

Durante mais de três décadas, esse foi o único filme do circuito comercial encabeçado por uma mulher negra. Nesse período, houve apenas uma lei federal que estimula a presença de negros na mídia, a 12.888/2010, conhecida como o Estatuto da Igualdade Racial. O artigo 44 determina que a produção de filmes e programas de televisão, além de peças publicitárias para esses meios, devem “adotar a prática” de empregar profissionais negros – sem especificar porcentagem mínima para tanto. Ainda não há nenhuma lei que quantifique ou exija a presença dessas pessoas em produções nacionais, principalmente nas privadas.

Estão presentes, em sua maioria, no cinema independente e excluído dos maiores circuitos – ora por falta de aproximação das produtoras de elite, ora pela dificuldade em participar (e serem aceitos) efetivamente de editais e de festivais.

A seguir, falamos com duas diretoras que, em 2018, deram um novo passo rumo à quebra de paradigma e ao alcance de um cinema mais igualitário.

Direção*: 85% dos diretores são homens brancos 13% - homens que não tiveram sua raça identificada 2% - mulheres brancas *A direção por mulheres negras não foi registrada

glenda nicácio O doce da canela, se dosado na quantidade ideal (guardada a sete chaves por quem sabe), atenua o amargo do café. A delicada reaproximação da vendedora de coxinhas Violeta (Aline Brunne) e de sua antiga professora, Margarida (Valdinéa Soriano), durante um período de depressão profunda, representam esse encontro entre opostos 43

novembro • 2018

no longa Café com Canela, co-dirigido pelos mineiros Glenda Nicácio e Ary Rosa.

Situada em Cachoeira (BA), a história recupera o relacionamento das duas personagens, permeado por perdas (o filho de Margarida morreu quando criança, motivo não mencionado no filme) e zelo. Tudo percorrido nas ruelas de pé-de-moleque e casas de paredes desbotadas do centro da cidade do Recôncavo Baiano.

A ambientação foi uma das principais preocupações da dupla, egressa da terceira turma de cinema da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). “É um lugar que nos acolheu muito bem. De nada adiantaria pensar o cinema numa escala gigante se não aprendemos desse jeito”, diz Glenda. A cineasta, inclusive, pode ser considerada o segundo nome feminino negro a lançar um filme de ficção no mercado brasileiro.

Em 2011, os dois fundaram a produtora Rosza Filmes e começaram a investir em curta-metragens e produção de eventos. Inscreveram o projeto do Café com Canela em um edital da Ancine de Arranjos Regionais, para produções fora do eixo Rio-São Paulo, e receberam R$ 800 mil para realizar o filme. Essa quantia, entretanto, teve de ser elaborada dentro de um sistema de economia colaborativa para o longa render na medida pretendida.

Todas as filmagens foram feitas na própria cidade onde a história se passa. A maior parte dos atores também são de lá: 44

novembro • 2018

Alf Ribeiro/Divulgação

ver bete

Camila de Moraes, diretora do documentário O Caso do Homem Errado

Aline Brunne, por exemplo, era uma conhecida da faculdade e já fazia parte do cotidiano de Cachoeira. Quando escolhida, os diretores fizeram questão de apresentá-la a outras mulheres da cidade para saber se “seriam bem representadas”. Concordaram.

As equipes de cenografia e de filmagem também foram todas formadas na região. Para isso, montaram um curso de capacitação que envolvia todas as atividades de um estúdio de filmagem: desde como martelar um prego na parede a manusear as luzes. Chamaram profissionais Roteiros*: 71% - Homens brancos 19% - Homens sem identificação racial 6% - Mulheres brancas 2% - Homens negros 2% - Mulheres sem identificação racial *Mulheres autodeclaradas negras não aparecem na pesquisa

A isso, pode-se relacionar a epifania de Margarida ao relatar o seu amor pelo cinema: “Sabe, quando eu era mais nova, ficava me perguntando: será que da mesma forma que a gente vê os atores, eles conseguem ver a gente?”

de Salvador que deram as orientações a 30 pessoas, grupo composto por dez artistas, dez alunos de escolas públicas e dez pessoas da comunidade interessadas em participar da produção. Os figurinos foram feitos em parceria com uma cooperativa de costureiras, que davam as próprias sugestões do que Violeta vestiria ou não.

Esse processo, defende Glenda, é uma importante mudança no modo de pensar a representatividade nas telas. “A câmera tem que circular nas periferias”, diz ela. O filme ficou dez semanas em cartaz em salas do CineArte, patrocinada pela Petrobrás, e a dupla começará um processo de distribuição do longa em cineclubes de subúrbios, a fim de propriamente invadir esses espaços e introduzir um novo jeito de pensar o cinema. “Se quisermos trazer públicos historicamente excluídos às salas, temos que representá-los nos filmes também”, conclui.

camila de moraes Após algumas semanas de tentativas falhas de contato, Camila de Moraes se desculpa pela falta de tempo para entrevistas.

A gaúcha explica que consegue se dedicar a apenas uma por dia, já que gasta uma média de três horas para cada e as concilia com as viagens de divulgação do filme.

No último mês de agosto, seu filme, O Caso do Homem Errado, fez parte da lista de obras pré-selecionadas para representar o Brasil na premiação do Oscar de 2019.

Com seu primeiro longa-metragem, Camila é a segunda mulher negra na história do país a dirigir um filme com estreia no circuito comercial de cinema.

“Eu acho que nós, brasileiros, ainda não temos noção do grande passo que foi dado para a história do cinema nacional. É a primeira vez que uma produção independente, feita por pessoas negras, chega nesta lista tratando de uma questão racial.

E isso é muito”, conta a cineasta. O documentário relembra o caso da execução do operário Júlio César, que aconteceu em Porto Alegre no ano de 1987.

O homem, confundido com um assaltante, entrou no carro da polícia com vida 45

novembro • 2018

Elencos principais*: 50% - homens brancos 36% - mulheres brancas 9% - homens negros 2% - mulheres negras 1% - Homens sem identificação racial 1% - Mulheres sem identificação racial *Mesmo sendo mais da metade da população total, pessoas autodeclaradas negras ocupam menos de um décimo das telas

46

novembro • 2018

Fonte: Pesquisa “Raça e Gênero no Cinema Brasileiro — 1970-2016”, publicada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

O levantamento leva em conta os filmes brasileiros lançados no circuito comercial com mais de 500 mil espectadores, com base em dados divulgados pelo Ancine. Não foram considerados documentários e filmes infantis. Dados inferiores a 0,5% também foram excluídos.

e chegou ao hospital com um tiro no peito. “Infelizmente, ele não foi o primeiro a ser morto por conta da pele. Enquanto dou essa entrevista, uma pessoa negra está sendo morta”, diz ela, que enfatiza que a obra não trata de um caso isolado, mas sim de um “grito em resposta ao morticínio sistemático que ocorre no país”.

Para a diretora, os processos de produção e pós-produção do filme corroboram para revelar a gravidade da questão retratada. A obra, a qual Camila caracteriza como militante, não despertou interesse das produtoras e distribuidoras – a produção foi viabilizada com o apoio da comunidade negra de Porto Alegre por meio de doações –, além de sua participação ter tido participação recusada em diversos festivais por não apresentar um “tema interessante”, afirma a gaúcha.

“Precisamos compreender que vivemos num país racista que atua em todas as áreas, desde a temática que abordamos no filme até a não ocupação de pessoas negras em determinados espaços. As portas, para nós, a todo momento são fechadas, mas o nosso filme é de um coletivo, então

temos força no nosso discurso, no nosso trabalho. É possível superar a diferença histórica com ações afirmativas, repartindo a grana dos financiamentos públicos existentes no país, por exemplo.”

Embora não tenha sido escolhido para representar o Brasil no oscar, a presença na lista de pré-selecionados representa um avanço, como afirma a documentarista: “Nossas vozes estão sendo ouvidas por muitas pessoas. Precisamos de novas narrativas no audiovisual brasileiro, que é dominado por uma elite branca que detém os recursos. É uma competição desigual. Necessitamos de oportunidades e condições justas de trabalho para poder chegar lá, ter uma trajetória sem tantos obstáculos que nos façam querer desistir a todo instante. E precisamos de financiamento para produzir um filme”.

Fora das grandes salas, para saber onde assistir o documentário é necessário acompanhar a agenda de exibições na página do Facebook. Depois de finalizado o circuito comercial, a ideia de Camila é disponibilizá-lo on-line.

47

novembro • 2018

o ato negro de escrever Há 40 anos, os Cadernos Negros são a voz da população negra na literatura afro-brasileira por gabriel nunes de azevedo e julia gravalos benini

49

novembro • 2018

ver bete

U

m sentimento de desconforto ronda a literatura brasileira contemporânea. É o que afirma a professora Regina Dalcastagnè (Universidade de Brasília), responsável por coordenar um estudo chamado Personagens do romance brasileiro. Ao compilar dados (como faixa etária, raça, posição social e gênero) de romances publicados por editoras de grande porte desde 1965, a pesquisadora constata que esse desconforto vem “da ausência de dois grandes grupos em nossos romances: o dos pobres e o dos negros”.

De acordo com a pesquisa, entre 1990 e 2004, de 258 livros, os negros constituíam apenas 7,9% das personagens analisadas, sendo que desta porcentagem 5,8% dos negros eram protagonistas e 2,7%, narradores. O desconforto, entretanto, não se limita a uma questão de representatividade ficcional, mas também ao espaço no mercado editorial. Como indica o estudo, ainda dentro desse recorte temporal, 93,9% dos autores analisados eram brancos.

50

novembro • 2018

Nas palavras da pesquisadora, “os lugares de fala no interior da narrativa são monopolizados pelos homens brancos, sem deficiências, adultos, heterossexuais, urbanos, de classe média”. A sobreposição de vozes e a invisibilização de personagens e autores negros revelam o silenciamento racial presente na nossa literatura.

Por outro lado, publicações como os Cadernos Negros (que neste ano chegaram ao quadragésimo volume) mostram que há, sim, a vazão criativa de um coro de vozes que compartilham uma experiência comum de opressão — mas que trazem, cada uma, a marca da individualidade. “Essa longevidade está sendo possível porque ainda acreditamos que podemos escrever dentro de um espaço literário que nos liberta do silêncio”, diz a poeta Esmeralda Ribeiro, na ocasião do lançamento do Volume 40 da publicação, realizada na biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo. “A branquitude fez um trabalho eficaz em nossas cabeças, sempre nos diz que quando falamos de racismo estamos fazendo um mimimi, racismo às avessas. Mas a branquitude só fala de si para nós o tempo todo. Isso também é um mimimi, será?”.

A coletânea de poemas e contos surgiu em 1978, a fim de cristalizar e reunir

“

uma literatura que expressasse a vida e os valores afro-brasileiros. Os poetas paulistas Cuti da Silva e Hugo Ferreira coordenaram a primeira edição dos Cadernos Negros, com 52 páginas escritas por oito poetas. As edições seguintes foram financiadas pelos colaboradores, que aumentavam a cada ano. Ao relembrar o início da publicação, Cuti revela como se deu a perenidade do trabalho: “Uma vez eu ouvi que precisamos ter ousadia no tempo. Eu dizia para os meus parceiros: a gente faz [os Cadernos Negros] nem que seja com xerox. O importante é fazer com aquilo que temos”. Contra o desinteresse do mercado editorial, em 1983, a feitura dos Cadernos Negros foi assumida pela então recém-criada editora Quilombhoje. A princípio, o corpo de editores era constituído por Abelardo Rodrigues, Cuti, Mário Jorge Lescano, Paulo Colina e Oswaldo de Camargo, mas sua formação alterou-se diversas vezes ao curso dos anos.

O Cadernos Negros caminha no tempo para dialogar com o leitor e com a leitora do passado, do presente e do futuro”

Naquela época, Esmeralda (ao lado de Miriam Alves e Sônia Fátima) era uma das poucas mulheres a escrever para a coletânea. A edição mais recente da publicação, no entanto, é representativa da atualização pela qual a literatura brasileira vem passando: entre os 42 colaboradores, 21 são mulheres. “Os Cadernos Negros caminham no tempo para dialogar com o leitor e com a leitora do passado, do presente e do futuro”, explica a poeta, destacando também que a construção da coletânea é conjunta. “Nós seremos uma legião. Temos que resgatar a palavra ‘união’ em novas roupagens. Em quarenta anos de existência, os Cadernos Negros valorizaram e celebraram os escritores negros, sem diminuir nossa produção literária”, enfatiza Esmeralda.

Ao explicar a convocatória dos(as) poetas e a seleção dos textos, Cuti resume: “Nós conseguimos desenvolver um processo que garantiu que a cooperação superasse a competição”. Essa filosofia pode ser explicada pela forma como os poemas e os contos são avaliados e escolhidos. Pessoas são convidadas para ler os conteúdos recebidos e fazerem críticas construtivas à estrutura, ao uso de figuras de linguagem e ao estilo do texto. Assim, quando os escritores e as escritoras receberem de 51

novembro • 2018

ver bete

“

Nós conseguimos desenvolver um processo que garantiu que a cooperação superasse a competição”

52

novembro • 2018

volta o que produziram, caso não sejam selecionados, terão subsídios para fortalecer a própria literatura. Esmeralda utiliza esse processo para justificar a recusa dos Cadernos Negros em passar a fazer parte do mercado editorial: “Nós não sabemos como uma editora de grande porte assumiria nossa produção, mas sabemos que ela teria outra visão sobre essa filosofia.

Não seria uma edição colaborativa”.

Esse distanciamento também pode ser compreendido como uma forma de resistir ao silêncio a partir de uma lógica própria. Ainda assim, Cuti tem como uma de suas melhores memórias a vez em que se deu conta do público que pode alcançar: “Eu dava aula no Capão Redondo [Zona Sul de São Paulo] à noite e certa vez eu vinha cansado, com o ônibus naquele chacoalho todo. Percebi que um jovem tinha um livro na mão. E qual era o livro?

Cadernos Negros, Volume 3. Naquele momento eu disse: nós estamos certos. Não podemos parar. Cadernos Negros para mim representa muita vida”.

Ao expandir o alcance da publicação e se concretizar como uma das produções centrais da literatura afro-brasileira, os Cadernos Negros conferem materialidade às experiências e histórias descritas por meio de contos e poemas que passam a ocupar o imaginário pre-

dominantemente branco. Márcio Barbosa vê na publicação essa possibilidade de criar um discurso contra-hegemônico: “Com o imaginário, a gente transcende esse limite da vida cotidiana. Os Cadernos entram nesse campo de batalha e estão sujeitos a receber tiro, a ser criticado e a ser retirado desse espaço. As narrativas que vêm sendo construídas a respeito da população brasileira, quando nos incluem, nos colocam como objetos, sujeitos passivos”. Para o poeta, “[Os Cadernos] têm essa função de construir narrativas positivas no campo do imaginário para a população afro-brasileira.”

Quando nos deparamos com a expressão “direitos humanos” somos conduzidos a pensar em conceitos amplos, como moradia, alimentação, saúde, instrução, bem-estar, etc. No ensaio “O

direito à literatura”, Antonio Candido lançou nova luz sobre a questão. De acordo com o crítico literário, a literatura desenvolve em nós “a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. Para “escurecer” — termo usado pelos poetas ao invés de “esclarecer” — o que a coletânea representa, a escritora e uma das coordenadoras da seleção de textos para o Volume 40, Joice Aziza de Mendonça, retoma as palavras do ensaísta francês Frantz Fanon em Pele negra, máscaras brancas, na ocasião do lançamento da mais recente edição da publicação: “Ele diz que falar é existir para o outro. E, se for isso mesmo, a Quilombhoje e os Cadernos Negros materializaram a nossa existência por meio da palavra escrita”.

a pequena voz do mundo Promovida pelo Coletivo Literatura Suburbana, a Coleção Besouro funciona como espelho para os rostos da infância brasileira por julia gravalos benini

55

novembro • 2018

ver bete

O

besouro O corpo cascudo de um besouro não se sustentaria no ar somente pelo fino do par de asas visível durante a trajetória aérea lenta e barulhenta.

Se não fosse pelo segundo par de asas que escondem embaixo da carapuça, o voar seria uma impossibilidade aerodinâmica para esses insetos. Israel Neto, membro do Coletivo Literatura Suburbana da Zona Norte de São Paulo, retoma essa característica biológica para explicar um dos motivos pelos quais a coleção de livros infanto-juvenis Besouro recebe esse nome: “É uma alusão à façanha que o besouro realiza toda vez que alça voo, contrariando as leis da natureza. Assim são os jovens e as crianças negras no Brasil, que contra as leis, as imposições e os pensamentos contrários, realizam todos os dias o milagre de voar”.

Desde 2012, quando a Coleção Besouro surgiu como uma das propostas do Coletivo Literatura Suburbana, mais de treze mil livros foram distribuídos gratuitamente para crianças e adolescentes de São Paulo.

Essa iniciativa permite, segundo Israel, que as obras não estejam restritas às livrarias às quais “a massa periférica tem pouco acesso, por questão financeira ou não adequação ao modelo de apresentação e comercialização de literatura”. Ele enfatiza que a dis-

56

novembro • 2018

Coletivo Literatura Suburbana Desde 2009, o Coletivo Literatura Suburbana da Zona Norte de São Paulo tem como objetivo fortalecer a cultura afro-brasileira na literatura, na dança e na música. Para isso, o coletivo organiza shows, palestras, eventos, cursos e oficinas, além de publicar, por meio de coleções literárias, narrativas que estão à margem do grande mercado editorial.

tribuição gratuita da coleção proporciona a jovens e a educadores a possibilidade de “desfrutar, trocar, aprender e se divertir” com as histórias narradas.

Ao estabelecer uma comparação com a Coleção Vagalume, também destinada ao público infanto-juvenil, Israel explica que a Besouro propõe outra perspectiva: “Queríamos algo para as crianças negras que geralmente não são contempladas pelo mercado editorial, com raras exceções de editoras, escritores e escritoras que trabalham para esse público”, diz, justificando a escolha temática das narrativas, bem como a de quem as escreve. Em acordo com a lei 10639 — que estabelece a obrigatoriedade de ensino da história e da cultura afro-brasileiras nas escolas —, a Coleção Besouro é protagonizada por pessoas negras.

A seleção dos escritores e das escritoras é feita a partir de um chamamento para que textos com a temática estabelecida pelo projeto sejam enviados ao Literatura Suburbana. A avaliação das obras é pautada em critérios como “caráter infanto-juvenil, dinâmica do texto, história, contexto e autoria, preferencialmente negra”, define Israel. “É importante também a ludicidade e a fantasia dos textos. A imaginação é algo que por vezes não está na literatura protagonizada por crianças negras na narrativa e

Representação do logo da coleção literária “besouro”

no público da obra, mas é um formato que nos é muito caro”, conclui.

Entre os objetivos do Coletivo com as publicações em dez volumes da Coleção Besouro — sendo que oito já foram publicados —, está “o fortalecimento da diversidade de narrativas na literatura para crianças e da diversidade de personagens e lugares sem estereótipos, de onde só de lá o personagem haja e interaja”, como afirma Israel e exemplifica a abertura do sétimo volume da Coleção. Nela, uma das histórias do capoeirista Besouro, outra inspiração para o nome da Coleção, encerra-se com as seguintes palavras: “Besouro virou as costas, voltou para a roda de amigos, seguiu contando seus causos, o povo dispersou a roda e a praça de Santo Amaro da Purificação

também seguiu sua rotina com harmonia naquela noite de sábado”. a escrivinhadora Cátia não queria colar a palha de aço que a professora lhe entregou para incrementar o desenho a ser colorido para o Dia da Abolição da Escravatura. “Era um escravo com a corrente sendo rompida. Tínhamos que pintar o corpo de preto ou marrom e colar o Bombril na cabeça dele”, ela recorda, descrevendo a representação de si na qual não se reconhecia. “Eu chorava, brigava, porque meu cabelo não era parecido com aquilo”. Na televisão e nos livros, as personagens com as quais ela poderia se identificar pela aparência eram empregadas domésticas e escravas, ocupando “uma 57

novembro • 2018

ver bete Representação de Cátia Luciana Pereira

posição na qual aquele que silencia coloca, sem um discurso legitimado”.

A partir dessa falta de representatividade, Cátia Luciana Pereira, que é professora de Língua Portuguesa e escreve desde quando aprendeu a juntar palavras em frases, teve a impressão de que se tornar autora publicada não estava em seu horizonte: “Não era questão de aceitar que não estava.

Era entender como natural que essa possibilidade não existia, o que é muito pior”.

Esse impedimento imaginado começou a ser desconstruído quando Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, chegou até Cátia. Ela olha para as mãos vazias e abertas, como se nelas estivesse o livro: “Entrar em contato com essa obra me mostrou a força do discurso da mulher negra, mas também me trouxe uma inquietação, 58

novembro • 2018

porque mesmo tendo estudado Letras na Universidade de São Paulo, eu nunca tinha ouvido falar sobre isso”.

Ecoar a própria voz adquiriu um significado além do que imaginava, depois que Cátia assistiu a uma palestra ministrada pela escritora Conceição Evaristo. “A Conceição disse que a ideia de que escrever é um ato político é disseminada. Mas é preciso completar: escrever e publicar é um ato político”, Cátia ensina, expondo os dentes em um sorriso. Desde então, a escrivinhadora — termo adotado por ela em homenagem à forma de falar de sua tia-avó, a quem chama, saudosa, de Tina —, dá-se o direito de publicar seus escrivinhados.

O conto A Descoberta de Jurema, por exemplo, integra o sétimo volume da Coleção Besouro, publicado em 2018.

Nele, Cátia construiu uma protagonista negra que descobre uma forma diferente de estudar sobre umbanda. Para a autora, escrever para crianças a respeito da cultura afrobrasileira é “saber que elas podem se identificar e, a partir de histórias como essa, sonhar, acreditar nos sonhos e os realizar”. Enquanto acaricia a gata de estimação, Felícia, completa: “A gente lê, se imagina naquela situação e fortalece nossos desejos.

Uma criança, ao fazer isso, pode se reconhecer, mas também conhecer o que está além do círculo dela”.

Se o efeito que Cátia espera causar em quem lê o que ela escreve é o de identifica-

ção, para ela a escrita “tem outro sabor”, diz.

“Eu escrevo porque me dói. E eu escrevo porque me sereniza. É um processo de cura, mas não traz uma serenidade perene. Sempre vem outra dor. As coisas me perturbam mais do que me alegram”, lamenta, com os olhos baixos, ainda que encontre na escrita um resgate de si mesma da angústia que a preenche. Escrivinha-se, autocrítica, lembrando o período no qual a autoria negra lhe era desconhecida: “A gente nunca foi silêncio. Você é que não ouviu”. o voo Pimentas. Desse bairro de Guarulhos parte a Kombi que Thayame sempre sonhou em ter. É branca como era há nove anos, quando foi adquirida. Pelas ruas de São Paulo, o veículo permanece conservado. O destino da bibliotekombi, como é apelidada, é estacionar próxima a superfícies regulares, onde um tapete de borracha pode ser esticado para as crianças formarem a roda de leitura. Pregado em um varal que circula o veículo, o tecido amarelado traz o nome do projeto bordado entre retalhos coloridos: Passarinho Contou.

“Na minha quebrada não tem biblioteca. Eu juntei um acervo de mil livros e não tinha onde colocar. Com dez mil reais, comprei a Kombi e a transformei em uma biblioteca comunitária. É o meu patrimônio que eu compartilho com as pessoas”, relembra a fundadora do projeto.

Thayame Porto dedica-se à formação leitora de crianças desde quando começou o magistério. Professora de Língua Portuguesa, escolheu ensinar longe das escolas: “Eu acredito na educação em contextos mais amplos que a sala de aula, como na rua. O Passarinho Contou é a militância

pela distribuição do livro e por isso acontece sobre rodas”. Neste ano, essa luta resultou em uma conquista para os responsáveis pelo Passarinho. O circuito Sesc, que permite a divulgação de projetos, espetáculos para um público de todas as idades e de forma gratuita, em 2018, iniciou uma parceria com a dona da bibliotekombi.

A decisão de integrar a Coleção Besouro ao acervo do Passarinho Contou foi uma forma de distribuir, além de livros, narrativas sobre o mundo. Segundo Thayame, os oito volumes permitem “que as crianças se vejam representadas nos livros que leem em grupo”. Para a escolha das obras que podem integrar o acervo, a professora descreve: “Nós buscamos a presença negra na literatura infantil. Isso inclui obras nacionais e traduzidas, de autores negros, com personagens negros. Mas também trabalhamos com obras de autores brancos nas quais personagens negros sejam apresentados sem traços racistas”.

Ainda que Thayame reconheça a importância de abordar as histórias africanas e afrobrasileiras na literatura infantil — como propõe a Coleção Besouro —, assume uma postura crítica em relação aos livros produzidos para crianças: “É importante ter personagens negros em histórias que não sejam temáticas. Sinto dificuldade em encontrar um livro protagonizado por crianças negras falando sobre o relacionamento que elas têm com as avós, por exemplo”, Thayame questiona.

Resgatando uma reflexão antiga, finaliza: “Nada disso é espontâneo. Hoje, as personagens negras aparecem na literatura infantil. Mas é só porque foi formulado que elas precisam aparecer”.

59

novembro • 2018

Divulgação

no topo da prateleira Quadrinhos do paulistano Marcelo d’Salete conquistam destaque internacional com raras narrativas da escravidão no Brasil Página do capítulo Calunga, que abre o livro Cumbe (2014), de Marcelo d’Salete

por brenda zacharias

61

novembro • 2018

ver bete

S

umidouro é o nome dado à fossa formada no meio de rios que escoa a água para galerias subterrâneas e profundas. Também designa os poços artificiais instalados nas casas, usados para transferir os dejetos diretamente ao solo.

Nas fazendas do Brasil colonial, no século 19, essas mesmas valas podiam significar o castigo final de escravos rebeldes, no cumprimento de uma eventual pena de morte.

Uma boa imagem para simbolizar o silenciamento da cultura afrobrasileira, enterrada em detrimento das narrativas brancas e, portanto, clássicas. “É importante criar imagens que disputem esses campos simbólicos. Caso contrário, a gente pode tender, sim, a um apagamento sistemático do que foi a história e das possibilidades de entendê-la”, diz Marcelo d’Salete em entrevista por trocas de e-mail.

Além de quadrinista, o paulistano é mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação (FEU), da mesma

62

novembro • 2018

instituição. Em Cumbe (Veneta, 2014), narra quatro histórias de resistência à escravidão, baseadas em uma extensa pesquisa histórica e etnográfica, iniciada em meados de 2006. Dessa mesma apuração, derivou o seu mais recente livro, Angola Janga (Veneta, 2017), sobre Palmares, considerado o maior quilombo do país, situado em Alagoas e extinto em 1710.

Nesse período, diz ter encontrado referências teóricas para construir os enredos, citando os historiadores Edison Carneiro e Décio Freitas como algumas delas. Contudo, ainda sente falta de aprofundamento e diversidade de pontos de vista, como volumes escritos pelos descendentes diretos dos protagonistas de suas narrativas.

Essa identificação é importante para a resistência: “Ainda mais nos nossos tempos, em que a violência é marcada pela perda de documentos no incêndio do Museu Nacional ou pelas eleições, nos discursos dos candidatos que promovem o apagamento”, defende Marcelo.

Em julho de 2018, ele venceu o maior prêmio internacional de quadrinhos, o

Eisner Awards. Desde 1988, o troféu homenageia o cartunista americano Will Eisner e destaca as produções e autores dos respectivos anos. O brasileiro venceu na categoria “Melhor Tradução” por Cumbe, que virou Run For It na versão publicada dos Estados Unidos. “As pessoas exigem conhecer mais lados de nossa história, e devemos lutar para que eles cheguem, de fato, a um público maior”, explica.

Outros dois livros escritos e ilustrados por Marcelo são Noite Luz (Via Lettera, 2008) e Encruzilhada (Veneta, 2012).

O diferencial deles é que ambos são baseados em vivências do próprio autor.

“Algumas das cenas observei ou foram contadas a mim. Surgiram do meu dia a dia, da experiência periférica e negra numa grande cidade como São Paulo”, lembra. Promover tal descentralização de narrativas, para ele, seria a principal força da resistência negra na literatura. Desse modo, é possível criar novas identidades e promover aproximação de diferentes manifestações artísticas, incluindo a de públicos historicamente

excluídos. Nos quadrinhos, destaca-se o aporte do visual – ferramenta que, para ele, aponta para a dubiedade, a depender da vivência do leitor.

Nenhuma das ilustrações que produz é colorida, e em poucas simula uma meia sombra; os traços são marcados pelo contraste entre preto e branco. E, ainda, restringe o tamanho e a quantidade dos diálogos, como se as palavras fossem complementos das cenas, e não as condutoras. “Muito [do conteúdo] dessas histórias está na visualidade, nas possibilidades de leitura que se têm a partir dela”, explica Marcelo.

Esse apoio nas imagens, resume, convidam o leitor a repensar a sua posição frente às verdades construídas na história nacional. “Penso que, tendo narrativas e autores que consigam trafegar entre vários públicos, possamos almejar chegar perto do que é uma democracia. Quando estivermos perto desse ideal, esses grupos influenciarão de maneira mais clara o campo da arte, dos símbolos e da visualidade”.

63

novembro • 2018

Cinco quadrinhos para entender quadrinhos Carolina, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro (Veneta, 2018) Narra a história da escritora paulista Carolina Maria de Jesus, cuja obra foi popularizada na década de 1960 depois de um encontro da autora, que morava na favela do Canindé, em São Paulo com o jornalista Audálio Dantas Homunculus, de Hideo Yamamoto (Big Comic Spirits, 2003-2011) Ainda sem edição no Brasil, o mangá mostra a história de um sujeito que é submetido a um experimento que permite aguçar os seus dons paranormais. É, sobretudo, um trabalho sobre personalidade, identidade e relações sociais, diz Marcelo Tungstênio, de Marcello Quintanilha (Veneta, 2014) Marcelo considera esse trabalho como uma referência nas narrativas de quadrinhos descentralizadas no Brasil. Situada na orla de Salvador, a história entrelaça as vidas de um policial e sua esposa, um traficante e de um ex-sargento do exército.

A graphic novel foi adaptada para o cinema em 2018 O Sistema, de Peter Kuper (Vertigo, 1998, esgotado no Brasil) Sem diálogos, a narrativa “engenhosa”, como define Marcelo, é conduzida apenas pelos anúncios que aparecem nos outdoors, placas e propagandas de uma grande cidade Holandeses, de André Toral (Veneta, 2017) O historiador conta a história de dois irmãos judeus que vêm para o Recife durante a invasão holandesa na região, no século 17. Para Marcelo, a obra dialoga com Angola Janga: “Ajuda a pensar o Brasil daquela época, como o contato de diversos soldados nas duas margens do Atlântico”, diz 64

novembro • 2018

65

novembro • 2018

música de silêncio Inventivo, Itamar Assumpção criou uma estética sonora plural, mas também silenciosa por bruno ascari

67

novembro • 2018

ver bete

É

quase lugar-comum citar a obra de Itamar Assumpção, cuja morte completa 15 anos em 2018, como um caldeirão de referências e influências.

O que é compreensível. Afinal, uma das características das composições do músico que foi um dos principais expoentes da vanguarda paulistana é a pluralidade.

Como se fizesse colagens, o músico paulista nascido em Tietê mesclou ritmos e gêneros diversos: do rock ao samba, do jazz ao reggae, do atonalismo ao pop radiofônico. Por outro lado, falar da discografia de Itamar é também falar de silêncio.

Esse gosto pela pausa, pelos espaços vazios, pode ser associado à influência que Itamar recebeu do reggae. Com um estilo rítmico e um compasso que permitem maiores espaçamentos entre uma nota e outra, esse gênero musical jamaicano por excelência, filho do rocksteady e do ska, conta ainda com a presença de um contrabaixo bastante acentuado — instrumento sobre o qual o músico baseava suas composições.

Teoria musical à parte, o silêncio em Itamar é, também, estranhamento e incerteza. Frequentemente, ele utilizava a

68

novembro • 2018

Músico e crítico musical, o colaborador Bruno Ascari é formado em Comunicação Social pela faculdade ESPM. Publica resenhas semanais em seu canal do YouTube Som de Peso.

pausa como um artifício cênico capaz de confundir ouvinte e espectador. Exemplo dessa provocação aconteceu sobre o palco do Festival MPB Shell, exibido na TV Globo, em 1982. Na ocasião, o músico apresentou, ao lado do grupo Isca de Polícia, a faixa “Denúncia dos Santos Silva Beleléu”, do álbum As Próprias Custas S/A. Para desconcerto do público e da produção do programa, músico e banda interromperam, inesperadamente, a canção antes do fim. A intenção era genuinamente farsesca: após o “silêncio constrangedor” no qual ninguém sabia exatamente o que acontecia, Itamar e banda voltaram à ação, mas dessa vez reproduzindo, de forma paródica, a cançãotema de abertura do festival.

Essa plasticidade performática reforça a noção de que a música de Itamar pertence a uma arte não-intencional, cujo princípio é a necessidade permanente de romper com os formalismos da canção; isto é: a harmonia, a estrutura “redondinha”, na qual sabemos exatamente onde está o começo e onde fica o fim. O cantor e compositor nascido na cidade paulista de Tietê se afasta dos clichês, das sonoridades pré-fabricadas, dos refrães prontos.

Ao mesmo tempo, ele não rejeita a música

comercial. Ele bebe o pop, o pastiche, com a única intenção de cuspi-lo de volta sob a forma da paródia, do ridículo, do picaresco. Essa terceira margem musical, nascida da aleatoriedade sonora e da espontaneidade performática de Itamar Assumpção, abriu os anos 1980 como uma atitude de renovação estética.

Como praticamente tudo que é demasiado novo, seu trabalho foi visto com um olhar de curiosidade, porém silencioso.

Itamar, no entanto, optou pelo silêncio. É possível ainda arriscar dizer que dentro da obra dele existe uma dialética do silêncio — o cênico, encarnado sobre os palcos e nos estúdios; e o pessoal, devido à vida contida que levava no bairro da Penha, Zona Leste de São Paulo, longe do burburinho dos centros culturais paulistanos. “É preciso estar silêncio pra eu não ficar aflito”, canta em “Sexto Sentido”. De fato, o silêncio foi para o artista uma matéria-prima comunicante, com a qual criou uma obra que ninguém sai ileso ao ouvir.

“

Itamar se afasta dos clichês, das sonoridades préfabricadas, dos refrães prontos.”

69

novembro • 2018

memória via corpo “Brinquedo popular” da região sudeste, jongo preserva a ancestralidade cultural afro-brasileira texto gabriel nunes de azevedo e julia gravalos benini

71

novembro • 2018

O

deir Santos pede licença para buscar o filho no colégio. O céu está carregado e ele teme que a chuva o apanhe no meio do caminho. Ele sobe na bicicleta, afivela um capacete branco no queixo e outro no antebraço, para Iatã, seu filho mais velho. Apoia o pé sobre o pedal direito e impulsiona corpo e veículo para fora da garagem da casa onde vive no bairro de Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo. A largas pedaladas, o jongueiro e arte-educador dobra uma esquina entre carros estacionados e uns poucos pedestres. Mesmo distante, ainda é possível ouvir o som das rodas rangerem enquanto percorrem o chão de paralelepípedos da rua.

A chuva começa a se precipitar sob a forma de uma garoa esparsa e fria quando Odeir retorna à casa. Ele se apressa para instalar o filho na sala da residência, onde os brinquedos poderiam oferecer-lhe algum tipo de distração enquanto o pai fala um pouco sobre jongo, ritmo cujo contato veio desde a infância. Sua chegada, porém, coincide com a chegada de Gabriela, sua esposa, que retorna do mercado trazendo o caçula, Elomar — e um amontoado de compras no porta-malas do carro. Como em uma dança, o corpo alto e esguio vai e volta de um lugar ao outro gingando: ora empunhando sacolas de supermercado, ora com um dos filhos nos braços.

“Agora podemos começar”, diz Odeir, com uma pausa grave e um suspiro demorado. “O jongo tem muitos períodos”, ele arrasta uma cadeira para perto da mesa e dá continuidade à fala: “Para abrir uma conversa, precisamos voltar um pouco no tempo.

Precisamos falar de uma África banto”. O raciocínio do paulistano de 35 anos, criado em Embu das Artes, é interrompido pelo som seco de um bater de portas. É Iatã. O menino de cabelos crespos observa o pai, um ar culpado no rosto. “Arreta de confusão!

Agora o pai tá ocupado dando entrevista”, responde Odeir em um tom de voz manso, mas com o semblante ríspido. O filho pede desculpas, meio que envergonhado, e dá as costas para ir brincar com um bambolê no quintal onde cresce uma jabuticabeira de tronco todo frutado. Odeir coloca as mãos negras sobre a mesa e recupera pouco a pouco o ritmo da entrevista.

Jongo, batuque, tambor, tambu ou caxambu são algumas das denominações utilizadas para se referir a essa manifestação cujas origens remontam ao século 19. De acordo com a pesquisadora Maria de Lourdes Borges Ribeiro em O jongo, de 1984, o jongo é definido como “uma dança afrobrasileira, de intenção religiosa fetichista”. Comumente acompanhado por dois tambores — um grave (caxambu ou tambu) e um

agudo (candongueiro) —, o jongo é dançado em roda, permitindo ainda que um casal de cada vez dirija-se para o centro da mesma.

Paulo Dias, outro pesquisador, caracteriza essa expressão cultural no artigo O lugar da fala: conversas entre o jongo brasileiro e o ondjango angolano como um “conjunto de tradições de música-dança-poesia de matriz africana banto praticadas no sudeste brasileiro”. Odeir encontra uma terceira margem para o jongo, definindo-o como uma forma de preservação da memória e da ancestralidade de um povo. “Os pretos nunca foram ignorantes em relação ao imaginário vivo de sua ancestralidade. Uma das principais premissas do jongo é a ancestralidade.”

Ele explica que esse “brinquedo popular” — expressão que usa frequentemente para se referir ao jongo — foi “traficado” para o Brasil junto com os negros de origem banto (grupo etnolinguístico das regiões centrais e sul da África), estabelecendo raízes na região sudeste do país. “Eles se organizavam nas senzalas ou nos quilombos para fazer um ritual de tambor e dança que culminava em festejo.” Essas organizações foram se tornando tão frequentes que deram origem a folguedos, sendo que algumas eram, inclusive, encomendadas pelos próprios fazendeiros: “Imagina um bando de fazendeiro ocioso falando: ‘Chama os 73

novembro • 2018

ver bete

“

“Os pretos nunca foram ignorantes em relação ao imaginário vivo de sua ancestralidade. Uma das principais premissas do jongo é a ancestralidade”

preto, que hoje eu quero festa!’”, diverte-se Odeir, falando com um tom de voz irônico. Enquanto desliza os dedos indicador e polegar de forma circular pela barba, ele observa os filhos andarem de bicicleta pelo quintal da casa. Pensa, silencioso. “O jongo fez parte do meu processo de identificação como homem preto. Foi assim que descobri que essa identidade poderia ser positiva.

Antes, eu só tinha uma visão negativa da minha existência enquanto ser humano.”

A garoa engrossa. Odeir abre um guarda-sol na mesa. Ao batucar surdo da chuva mistura-se o tilintar das buzinas das bicicletas de Elomar e Iatã correndo pelo quintal. “Eu aprendi a dançar jongo nas terras de Dona Mazé”, diz, chamando atenção para o retrato de uma mulher negra em um livro que segura. “Quando ela dançava jongo, sempre dizia que estava em relação com a mãe e as suas ancestrais”. Aprumando o grande livro amarelo entre as mãos, ele lê um trecho de uma fala dela: “É saudando os ancestrais e a rainha do mar que abrimos a roda de jongo no bairro do Tamandaré, em Guaratinguetá.”

74

novembro • 2018

Gabriela abaixa a maçaneta da porta com o cotovelo e pousa duas cumbucas generosas de mingau ao lado do livro recémfechado. “Iatã, Elomar: canela”, ela sinaliza, entregando o pacote com o tempero e seguindo em direção à entrada da casa. Como se encontrasse as palavras na mistura de amido de milho e leite, Odeir relembra a ocasião em que visitou o quilombo de São José da Serra, em Valença (RJ): “Eu nunca tinha visto uma concentração de pretos tamanha. Aquilo foi transformador para mim”, relembra o jongueiro. Ainda sem conhecer a técnica da dança, Odeir já se encantava com o movimento de projetar o próprio umbigo chocando-o ao de outra pessoa, movimento conhecido pelos jongueiros como umbigada.

Nos diários de viagens dos colonizadores europeus, a impressão sobre o jongo é outra. O alemão Carl Seidler, por exemplo, descreveu a dança como “a mímica mais nojenta, em que se revelava a mais crua volúpia carnal”. Para o pai de Iatã, que, de olhos arregalados tenta impedir que o filho despeje toda a canela no mingau, essa disparidade de percepções explica-se, também, pela ignorância dos europeus sobre

a dança. “O jongo, assim como o samba, é uma relação de pares. Ele ativa e rememora uma parte do corpo que o europeu não compreendia como uma possibilidade para manifestação de dança”, diz Odeir, traçando, em volta da cintura, a mesma linha imaginária onde se apoia um bambolê.

A garoa vira chuva. Odeir sugere então que nos abriguemos dentro da casa. Com uma cumbuca de mingau em cada mão, o jongueiro empurra a porta de aço com a cintura e sinaliza com a cabeça o caminho de entrada. Encerrando o silêncio das palavras, mas não o da chuva persistente, Iatã comemora ao lado do irmão: “Que bom que a gente se escondeu da chuva”. Odeir sorri pequeno, enquanto acaricia os cabelos do caçula. Recupera o fôlego e, como se lembrasse o que estava esquecendo, acrescenta a descrição de dois símbolos frequentes no jongo, por este ser também “uma confraternização social com fim ritualístico”, como ele retoma. “A cachoeira divide estados de consciência. Cria um véu, formando o mundo espiritual e o mundo físico”, constata Odeir. “O machado corta. Ele quebra. Termina. Acabou”, explica, enquanto despenca a palma da mão sobre a mesa, assustando Elomar com o estampido.

A linguagem construída em uma roda de jongo adquire ritmo também pelo som dos tambores. Odeir declara dominar a maioria dos instrumentos de percussão “com responsabilidade” e se mostra inconformado com quem acredita ser capaz

de produzir música com um tambor sem conhecimento prévio. “Existem processos iniciáticos para tocar. Eu tenho uma ancestralidade que me impulsiona nesse caminho. Nem todo mundo que vê um violino sente que pode tocá-lo, por exemplo”, diz Odeir, demonstrando irritação com o cenário que imaginou.

Espreguiçando-se, levanta-se da cadeira, recolhe os pratos vazios de mingau e os coloca dentro da pia. Caminha pela sala recolhendo brinquedos espalhados pelo chão.

As paredes estão cobertas de desenhos e rabiscos coloridos dos filhos. Odeir parece ensaiar uma fala conforme deposita os blocos de montar coloridos dentro de uma caixa de plástico: “Sabe, você tem que trazer uma fala dentro do seu texto. Tem que colocar isso em algum lugar”. Em silêncio, envolvido pelo tamborilar rutilante da chuva sobre o telhado, a conclusão da fala do jongueiro gera expectativa: “Existe uma alma brasileira, e essa alma é um substrato de diferentes culturas tribais tradicionais africanas, indígenas. A África colonizou, no bom sentido, um monte de país por aí.

Se não fôssemos colonizados pela África, não teríamos essa cultura. Ela trouxe uma outra qualidade de vida anímica.”

O jongo é uma linguagem na qual a memória, a ancestralidade e a tradição de uma cultura se manifestam “via corpo”, como explica Odeir. Ele abre uma porta e, orgulhoso, estende os braços, dizendo: “Esse aqui é o meu terreiro”. O quarto é 75

novembro • 2018

ver bete

iluminado por uma única lâmpada nua presa ao teto, criando penumbras e sombras angulosas entre as arestas do cômodo. Em uma das extremidades, uma caixa de madeira acumula instrumentos: um agogô, uma meia-lua, um tamborim, um xilofone de madeira, etc. Odeir ajoelha-se e começa a traçar um círculo utilizando uma pemba, objeto cuja matéria prima pode ser calcário ou outras rochas sedimentares. Pouco a pouco, ele preenche o círculo com símbolos, dando forma a uma cabala. “A pemba é uma palavra de origem banto e ela é vista pelos umbandistas como um intermediário capaz de estabelecer uma conexão entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Isso mostra como os bantos cultuavam o ancestral direto dentro da sua cosmologia.”

Terminado o desenho, Odeir coloca a pemba no centro do círculo e senta-se com as pernas cruzadas em um colchão no canto esquerdo da sala de piso verde. “Como eu ia dizendo, o jongo é uma linguagem”, resgata a fala introduzida ao entrar no terreiro. “É uma linguagem transmitida por meio da tradição oral, do ensinamento dos mais velhos. Vou cantar”. Marcando o ritmo com as mãos compridas e grossas, ele entoa uma cantiga de jongo: “Saravá jongueiro velho, que veio pra ensinar. Que Deus dê a proteção pra jongueiro novo, pro jongo não se acabar!” Ele termina o canto com uma expressão silenciosa e explica que, entre os bantos, a palavra é uma expressão, um 76

novembro • 2018

prolongamento da personalidade de quem fala. No artigo O lugar da fala: conversas entre o jongo brasileiro e o ondjango angolano, Dias escreve que em culturas africanas (como a banto, por exemplo), “as atribuições da palavra falada vão além da comunicação e da transmissão do saber”. Como expõe na pesquisa, a palavra é sagrada: ela adquire a forma de mediador entre sociedade humana e mundo espiritual.

A chuva cessa. Entre as nuvens de cor de chumbo surgem pedaços de um céu tímido e violáceo. O sol morno ilumina as plantas úmidas no jardim e a terra encharcada. Na cozinha, Gabriela tira do forno um bolo fumegante. Ela o coloca sobre a mesa,

“

A cultura afro-brasileira é sempre escrita por não-africanos, por pessoas que não tiveram a experiência da diáspora. Se você não tem certeza de uma raiz cultural, você fica alienado”

cuidando para que o doce não se desfaça no ato de removê-lo da forma circular. O vapor embaça seus óculos e Elomar começa a rir. O riso do irmão caçula puxa a gargalhada do mais velho e pela porta da cozinha escapa, uníssono, o riso largo das crianças e o cheiro quente de café e bolo de laranja.

Odeir aproveita o fim da chuva para fumar um cigarro na soleira da casa. “O pior de tudo é o apagamento”, diz, resgatando fragmentos da conversa no terreiro. “A cultura afro-brasileira é sempre escrita por não-africanos, por pessoas que não tiveram a experiência da diáspora. Se você não tem certeza de uma raiz cultural, você fica alienado”. Odeir traga o cigarro e lança um olhar rápido sobre o ombro, em direção à cozinha, onde Gabriela reparte o bolo entre os filhos.

“Tiraram tudo, até o nome dos pretos”. Ele olha para os pés e em seguida ergue o olhar, apertando a vista para enxergar, por entre os ramos da jabuticabeira, as nuvens abrindo o céu. “Tiraram tudo, mas o imaginário, o animismo, a espiritualidade, isso nunca vão conseguir arrancar do povo africano. E o mais bonito é que isso se prolifera, isso permanece no tempo. Eu sou um homem afrocentrado e eu sei que meus filhos darão continuidade a isso. Essa é a resistência.”

ver be te

a vida em luz mínima “O que é invisível mas dói”: uma homenagem à poesia de Orides Fontela, cuja morte completa duas décadas este ano por gabriel nunes de azevedo ilustrações julia benini

81

novembro • 2018

memó ria

U

ma estrela ao contrário “Tudo será difícil de dizer: a palavra real nunca é suave”. O primeiro verso do poema “Fala”, de Transposição (1969), debute autoral de Orides Fontela, sintetiza um dos pilares simbólicos da escrita (e da vida) da poeta: a relação da palavra com o silêncio. Em sua poesia, o silêncio recebe a anatomia de um leque. Ao longo da extensa (porém enxuta) obra dela — cinco livros lançados em um período de três décadas — percebe-se as diferentes formas que o símbolo adquire. Da contemplação meditativa à solidão metropolitana, o silêncio é talhado à revelia das mãos da autora.

Dona de uma visão sistemática de sua poesia, Orides construiu seus textos a partir de uma estrutura lógica, matemática.

Procurava, pela ordem metódica com que compunha seus livros, fixar o nada na tentativa de afirmar o ser, como escreveu Antonio Candido no prefácio de Alba (1983), terceiro trabalho da poeta.

Entretanto, a busca contínua pela ordem por meio da escrita não refletiu sua personalidade, sobre a qual um pequeno folclore foi construído. Foi descrita por Mario Sabino, em reportagem publicada em 1995, como uma “mulher de andar trôpego, curvada feito um ponto de interrogação, não raro num solilóquio ininte-

82

novembro • 2018

ligível [...] movida a álcool, desespero, desesperança”. Marilene Felinto, em matéria de 1996, deu a poeta o rótulo de “estrela ao contrário”, caracterizando-a como uma mulher “quase desvalida, tensa e pobre”, possuidora de “uma estranha arrogância, resultante de uma mistura de carência com genialidade”, em que nada “lembra o equilíbrio, a beleza e a elegância da poesia que escreve”. Essas e outras descrições serviram para reduzir Orides a uma caricatura. Em resposta às especulações sobre sua vida, a poeta afirmou em entrevista à revista Marie Claire que dela bastava saber uma coisa: “sou professora aposentada, o meu dinheiro não está dando para o aluguel e eu preciso dar um jeito de arranjar um emprego para equilibrar meu orçamento”, ressaltando ainda que precisava “de emprego e não de comentários”.

Orides nasceu no “mais cruel dos meses” — como escreveu o poeta T.S. Eliot — , na cidade de São João da Boa Vista, interior de São Paulo.Às margens da Serra da Mantiqueira viveu duas décadas e escreveu a maior parte do que viria a se tornar sua obra poética. Muitos dos textos redigidos nesse período aparecem dispersos em seus dois primeiros livros: Transposição (1969) e Helianto (1973). Essas obras, ao lado de Rosácea (1986) e Teia (1996), encontram-

se atualmente reunidos pela Editora Hedra sob o título de Poesia Completa.

Autor de Enigma Orides, híbrido de romance biográfico e perfil jornalístico no qual explora a vida da autora, o jornalista potiguar Gustavo de Castro constata que os primeiros textos da poeta surgem como referência ao silêncio interiorano da cidade natal dela. “Esses poemas representam a contemplação da menina que rezava os terços todos os dias, portanto é um silêncio quase religioso. Ela faz com que o poema seja uma espécie de oração e de meditação.”, afirma Castro. “Eles representam a contemplação da menina que rezava os terços todos os dias, portanto é um silêncio quase religioso. Dessa forma, ela faz com que o poema seja uma espécie de oração e de meditação.” trabalho de penélope Na obra de Orides Fontela, o silêncio se manifesta, também, por meio do hermetismo com o qual a poeta monta seus versos. Mas não se deve entender esse recurso como simples jogo de linguagem gongórico ou rebuscamento estilístico. Porém, não se deve entender esse “hermetismo” como simples jogo de linguagem gongórico ou rebuscamento estilístico. “A poesia de Orides não é popular, mas também não é elitista. Os textos dela trazem uma relação mais íntima com a palavra”, diz Gustavo de Castro.

De maneira análoga a uma pintura impressionista, a linguagem cifrada e

fragmentária (às vezes abstrata) sugere em vez de afirmar. “A poesia de Orides não dá a coisa pronta ou o sentido imediato. De certa forma, ela leva instintivamente o leitor para alguma coisa cujo significado não vem pela junção de significantes, mas pela desconstrução do significado”, explica Castro. É possível ainda associar a hesitação presente nos versos de Orides ao símbolo da espera. Como escreve o crítico literário Alcides Villaça, o eu lírico dos poemas da paulista está sempre “às voltas de” ou “a um passo de” algo ontológico.

A um passo de meu próprio espírito A um passo impossível de Deus.

Atenta ao real: aqui.

Aqui aconteço.

(Epígrafe do livro Transposição, em Poesia Completa, Ed. Hedra, 2015)

Feito “gato tenso tocaiando o silêncio” (“Da Poesia”, em Poesia Completa, Ed. Hedra, 2015), Orides transforma a espera em linguagem para dar forma ao que Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, chama de “a gente mesmo, demais”: o silêncio. À espera do “acontecer puro que nos vive” (“As Sereias”, Helianto), ela tece a teia do silêncio com versos sintéticos, quase epigráficos, transbordando aporias e paradoxos: O que faço des

faço o que vivo des

vivo o que amo des

amo (meu “sim” traz o “não”

no seio).

(Alba, “Penélope”, Ed. Hedra, 2015) 83

novembro • 2018

memó ria

Essa teia, por sua vez, está coalhada de símbolos. Entre eles o do leque. Em “Poemas do Leque”, publicado em Helianto (1973), o silêncio da espera é materializado nesse objeto. Estruturado em sete blocos, o texto sugere o movimento de um leque se abrindo: cada segmento do texto é um instante do movimento.

I O leque fechado: ausência.

V Cultiva-se a grau em ato extremo a antirrosa esplêndida

II A plumagem das sombras a textura do silêncio brunido (viva espera)

apresenta-se (apreende-se) o árido ápice luz vertical extrema.

a plumagem espanto a pupila da atenção cega densa (sombra viva).

VI Re-descoberta: o olharamor apreende o

QUE

III O leque fechado: espera.

VII Leque aberto. O real — o insolúvel real presença apenas.

IV Grau a grau

(leque abrindo-se) gesto por gesto

(leque abrindo-se) trama-se

a antirrosa e seu brilho

gesto

pleno.

84

novembro • 2018

(Helianto, “Poemas do Leque”, Ed. Hedra, 2015)

No primeiro verso, o leque é apresentado como coisa estática. Sua forma esgota-se em si mesma, como é possível observar nos trechos: “O leque fechado: ausência” e “o leque fechado: espera”. Trata-se da espera do inefável, que se encontra “entre o verbo e o real”, como escreveu Orides em “Diálogo”, Transposição (1969). Isto é, algo que só pode ser tocado pelas mãos da poesia.

O uso do leque como representação do silêncio pode ser associado ao contato que Orides teve com a cultura zen-budista. Para o taoísmo, o leque é uma metáfora usada para representar o voo do pássaro — imagem poética que utilizou com frequência.

Em 1972, a paulista foi aceita no culto semanal do monastério Busshinji, primeiro centro Soto Zen na América do Sul, o qual frequentou assiduamente entre 1972 e 1976.

Após iniciada, recebeu o nome Myoshen Xingue (que quer dizer “Mente Florescida”), tornando-se uma das primeiras brasileiras oficialmente introduzidas no zen-budismo. “O silêncio do budismo a fascinava”, explica Gustavo. “Nesse período de tempo, ela se dedicou à prática do ikebana e do sumiê, mas o que mais chamava atenção dela no zen-budismo era o silêncio.” Silêncio “autárquico” e “meditativo”, como arremata o jornalista e pesquisador.

Assim, o voo e o abrir do leque fazem parte da transposição sugerida ao longo da bibliografia da poeta. Transpor, na obra de Orides, é a tentativa de encapsular o efêmero, o real que nos escapa, uma vez que “lentamente o tempo perde-nos” (Helianto, “Ode”). Nas palavras de Gustavo de Castro, isso se deve à preferência de Orides pelo essencial, pelo breve.

Além do leque e do pássaro, o silêncio se manifesta na figura do pássaro, do 85

novembro • 2018

espelho, do ovo, da flor, da rosa, entre outros. De acordo com o biógrafo da autora, o gosto pelo estilo simbólico nasce a partir do contato com as obras de poetas simbolistas como Cruz e Souza, Augusto dos Anjos e Alphonsus Guimarães, nos quais o rebuscamento do texto e a opacidade da palavra não são “arbitrariedade poética, mas necessidade ontológica”, como escreve Hugo Friedrich em Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. No entanto, para o jornalista, é incorreto rotular Orides como simbolista: “Até chamaria de neo-simbolista, mas sei que essa escola nunca existiu”, afirma. Outra veia interpretativa tende a considerar a poeta paulista como uma “revitalizadora do verso modernista brasileiro”, aproximando-a de Hilda Hilst, Adélia Prado, Roberto Piva e Paulo Leminski, pertencentes à mesma geração (nascidos entre os anos 1930 e 1940).

Castro acredita que “não existe uma classificação certa para o que Orides criou”: “Acho que classificá-la seria limitá-la. A poesia não deveria passar pelas classificações do beletrismo. Ela é um médium.

Um mediador de compreensão da vida, do homem, da ética, do mundo.”

86

novembro • 2018

um anjo é fogo: consome-se A poesia de Orides Fontela “tem a força de um soco na boca do estômago mesclado ao esplendor do primeiro olhar”, escreveu a filósofa Marilena Chauí para o prefácio de Teia (1996), último livro da poeta. Dois anos após a publicação da obra pela editora Geração Editorial, Orides morria em um quarto do Sanatório São Paulo, em Campos do Jordão. A causa: insuficiência respiratória em consequência de tuberculose pulmonar. Ela tinha 58 anos.

Do discurso apolíneo do olhar deslumbrado diante do mundo à explosão emocional de um murro no estômago.

Isentos de biografismo e confessionalismo, praticamente todos os poemas dela são escritos com o uso do sujeito indeterminado. Por outro lado, há algo de biográfico neles, na medida em que compreendemos “biografia” a partir de sua etimologia: a vida escrita. Seus poemas são fragmentos de um espelho nos quais podemos ver refletidas pequenas porções do enigma que foi a poeta: o gosto pelo equilíbrio silencioso do zen -budismo; a violência e o caos de uma vida tocada pela solidão, pela pobreza e pelo descaso. É como se uma pequena morte e uma pequena vida de Orides

habitassem lado a lado cada poema deixado por ela.

Não há criação sem destruição no imaginário poético de Orides Fontela. “Quebrar o brinquedo é mais divertido”, escreveu em “Ludismo”, Transposição. “As peças são outros jogos, construiremos outro segredo”.

As palavras ecoam certa influência drummondiana, sendo possível traçar um paralelo com “Cerâmica”, do autor mineiro: Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso, ela nos espia do aparador.

(José & Outros, “Cerâmica”, Ed. José Olympio, 1967)

“Ao buscar a materialização do silêncio por meio da linguagem, a poeta paulista ressignifica a forma como percebemos e captamos o movimento do real, do que é “presença apenas”. Embora não exista qualquer informação de que tenha entrado em contato com a obra de Manuel António Pina, ela faz valer os versos do poeta português, morto em 2012: “Se é possível o silêncio, havemos de, penosamente, com as nossas palavras construí-lo”. “Estrela ao contrário” ou “anjo torto”, Orides foi uma ourives do silêncio, significando mais dizendo menos.”

87

novembro • 2018

Autora de três livros publicados por conta própria, Yeda escreve diariamente mensagens ditadas pelo pai morto em 1997

cartas do silêncio Na religião espírita, a psicografia é uma forma de amenizar a dor do silêncio de entes falecidos por gabriel nunes de azevedo e julia grvalos benini fotos gabriel nunes de azevedo

89

novembro • 2018

narra tivas

O

tempo do não-tempo O buldogue francês confia às patas traseiras todo o peso do corpo. Cumprimenta os desconhecidos sem latir, saltando e roçando as unhas nos joelhos das pessoas. “O nome dele é Nietzsche.

Por isso ele é louco”, diz Thaumaturgo José Luiz, à medida em que envolve as mãos com o couro solto da ponta da coleira.

O cachorro e o dono estreitam ainda mais a entrada da loja, já limitada pelos expositórios de vidro que prolongam a vitrine até o centro do estabelecimento.

Artigos para casa como ventiladores de mesa, vasos e estátuas de gesso disputam espaço com duas estantes, uma de cada lado, a de incensos e a de livros de temática religiosa. Ao caminhar em frente à loja próxima à rua Célia, na Zona Oeste de São Paulo, lê-se nas paredes avisos de que não aceitam fiado. “Não confunda amizade com fiado”, diz um deles. São as placas pedindo silêncio, o cheiro de óleo essencial de lavanda e o rádio intercalando new-age e música clássica indiana que caracterizam o local onde também são realizadas consultas mediúnicas.

Thauma — como é chamado pelos amigos — entrou em contato com o espiritismo cerca de vinte anos após uma questão não resolvida sobre si mesmo.

90

novembro • 2018

Nascido em Mantena, uma cidadezinha mineira próxima ao Espírito Santo, o médium foi criado em uma família católica que contribuiu com a construção de uma das igrejas da cidade. Com um borrifador e um pano, ele limpa a mesa branca de plástico, inundando a sala com o cheiro de desinfetante. “Eu ia deitar e sentia alguém passando a mão na minha cabeça”, recorda. “Ficava rezando de medo até o dia clarear”. Como bom coroinha que era, recorria, após momentos como esse, ao auxílio do padre: “Dizia que era o capeta me tentando e falava que eu deveria rezar cem Ave Marias e cinquenta Pai Nossos.”

A compreensão da própria mediunidade é um processo diferente para cada médium. Thauma explica que fortes dores de cabeça são sinais de uma tentativa de comunicação do plano espiritual com o plano terrestre. De acordo com o médium de óculos redondos, barbas grisalhas e voz dócil, todos temos mediunidade. Isto é, todos temos a capacidade de entrar em contato com seres desencarnados (como é comum se referir a pessoas mortas no jargão espírita). Para que a comunicação entre os planos espirituais aconteça, o médium deve “expandir o campo energético”, de forma que o “espírito comunicante se aproxime do campo”. “Diferente-

mente do que se acredita, o desencarnado não entra em nós. O que acontece é uma projeção mental: nós nos desligamos desse plano e nos conectamos a outro, porque para os espíritos só existe o tempo do nãotempo; para eles não há tempo-espaço.”

Thauma explica que uma das maneiras de manifestar a mediunidade é por meio da psicografia. “Você sente a presença [do espírito] sem se comunicar”, explica pausadamente, os olhos fechados e as mãos entrelaçadas sobre a mesa. “Então você vai deixando de ser um ser. Você vai anulando o seu próprio ego para deixar a outra pessoa falar através de você. Mas é preciso permitir. O telefone sempre toca de cima para baixo.”

O relógio na parede marca 15h. “É a hora da luz”, diz o médium. “Jesus foi crucificado às três horas da tarde, então é o horário em que há mais espíritos protetores no dia”. Enquanto caminhamos para

a frente da porta, Thauma nos explica a origem de seu nome: “Significa fazedor de milagres. É a segunda vez que venho para esse mundo com esse nome. A primeira vez foi na época da guerra”. Interrompe a fala por alguns instantes e nos observa com os olhos atentos atrás dos óculos. Perguntamos então de qual guerra teria participado, ao que ele responde, atropelando as palavras: “Fui pracinha na Segunda Guerra Mundial. Não, não! Foi da Revolução de 32”. As lentes dos óculos embaçam-se conforme lágrimas escorrem do canto dos olhos. “Eu era o melhor amigo de meu pai. Hoje, meu pai é meu neto. Quando nasceu meu segundo neto, o Joaquim, eu sabia que era meu pai. A energia era a mesma. Eu sei que é ele, só que agora, em vez de me chamar de filho, ele me chama de avô”. À porta da loja, Thauma nos entrega um cartão cor-de-rosa. Na frente, há um

Centro espírita no Jardim Mangalot realiza duas sessões de psicografia coletiva por mês.

Para participar é preciso retirar senha

91

novembro • 2018

A médium e escritora paulistana Yeda Guanaes Buongermino

logotipo estilizado com o seu nome gravado e informações como telefone, e-mail e horários de funcionamento do estabelecimento. No verso do cartão, ele escreveu o nome e o contato de outra médium: Yeda Buongermino. “Ela poderá ajudar na pesquisa de vocês”. Adotando um tom de voz moralista e enigmático, ele diz antes de nos despedirmos: “Fiquem atentos aos sinais que eles nos mandam. Às vezes pode vir por meio de uma palavra amiga.” a escrita da alma Yeda negou duas vezes. Depois de receber a mensagem como telepatia, continuou desfazendo a mesa do café da tarde. No entanto, atendeu ao pedido após a terceira vez.

Pode-se dizer que tanto pela conveniência 92

novembro • 2018

de ter encerrado as atividades pendentes do dia quanto por acreditar que o curso de psicografia, finalizado há pouco tempo, poderia ser finalmente colocado em prática.

Subiu para o quarto, sentou-se na cama e apontou a caneta esferográfica para o caderno em branco: “Pronto. O que eu tenho que escrever?”. Cerca de 20 anos depois de ter cedido à voz que vinha do silêncio, a professora de inglês aposentada relembra a forma como palavras e vírgulas eram ditadas e transcritas, desrespeitando a retidão das linhas da folha. “Não tinha cabimento.

Eu não conseguia acompanhar o raciocínio do que era dito, escrevia coisas sem estar pensando em escrevê-las”. Posteriormente, ao ler as frases riscadas no papel, veio a coesão do que havia redigido: um texto sobre a necessidade de praticar caridade para a evolução espiritual. Na assinatura da carta, vinha o nome do autor daquele pensar: “Seu pai do céu”. Entre assombro e fascínio, constatou: “Estou psicografando.” Médium há duas décadas, Yeda Guanaes Buongermino é autora de três livros publicados por conta própria; todos ditados por Valdemar Guanaes Pereira, pai dela.

A raiz etimológica do termo psicografia vem do grego “escrita da mente” ou ainda “escrita da alma”. Segundo o espiritismo, trata-se da capacidade que alguns médiuns têm de dar voz aos desencarnados por meio da escrita. “É como se alguém estivesse falando na sua cabeça. É difícil de explicar”, diz Yeda. “Não é no ouvido, porque você não escuta nada. É na cabeça mesmo. Você então percebe que as ideias e os conhecimentos que escreve não são seus.”

“

De acordo com Allan Kardec em O Livro dos Médiuns — obra publicada na França, em 1861, e que é considerada uma das bases da doutrina espírita kardecista — a atividade pode ser realizada de três maneiras: consciente, semimecânica ou mecânica. No primeiro caso, o médium tem consciência do que escreve, podendo interferir livremente no processo criativo, embora não reconheça a autoria dos textos como própria. No método semimecânico, utilizado por Yeda, o impulso pela escrita é mais forte do que o anterior: o médium não consegue influenciar voluntariamente no texto, ainda que esteja consciente do que está sendo escrito. O método mecânico, por sua vez, é caracterizado pelo automatismo da escrita. Nesse caso, o influxo de ideias se sobrepõe às vontades do médium, o qual se encontra em estado dissociativo, também conhecido como transe mediúnico. “Quando a gente está psicografando, o espírito incorpora na cabeça e no braço”, explica Yeda.

“Você psicografa conforme o espírito é.

Se ele é irritado, por exemplo, você risca o papel com força e às vezes até rasga a folha ou quebra o lápis.”

Em 2008, foi realizada uma pesquisa voltada ao transe mediúnico, em parceria entre as faculdades de medicina da Universidade de São Paulo, Universida-

de Federal de Juiz de Fora, Universidade Federal de Goiás e Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia (EUA). Intitulado Neuroimagem durante o estado de transe: Uma contribuição ao estudo da dissociação, o estudo analisa o comportamento cerebral durante a psicografia. Por meio da Tomografia Computadorizada de Emissão de Fóton Único, a atividade do cérebro de dez médiuns foi sistematicamente mapeada ao longo de dez dias. A partir do experimento, no qual textos autorais dos médiuns foram comparados a textos psicografados, os pesquisadores Julio Peres, Alexander Moreira-Almeida, Leonardo Caixeta, Frederico Leão e Andrew Newberg concluíram que o cérebro, de fato, funciona de um jeito diferente durante o ato de psicografar: áreas associadas à criatividade e ao planejamento foram as menos utilizadas durante o transe mediúnico.

Semanalmente, Yeda psicografa cartas do pai morto em setembro de 1997.

Todas as segundas-feiras, entre 18h e 19h, ela sobe para o quarto do sobrado em que vive no Jardim Mangalot, na Zona Norte da capital paulista, para escrever as palavras do pai. São ao todo vinte cadernos universitários de cartas e livros psicografados que fazem parte da biblioteca pessoal da médium. “É um caderno para cada ano”, explica enquanto coloca os óculos

“Para os espíritos só existe o tempo do nãotempo; para eles não há tempo-espaço”, afirma Thaumaturgo 93

novembro • 2018

“

narra tivas

“Quando a gente está psicografando, o espírito incorpora na cabeça e no braço.

Você psicografa conforme o espírito é. Se ele é irritado, você risca o papel com força e às vezes até rasga a folha ou quebra o lápis”, explica Yeda para ler uma carta de 30 de abril de 2018. É uma mensagem enviada à sua irmã mais velha: “Ela está com 79 anos, então já pensa no dia em que vai passar dessa para outra”. Com um tom que varia oscila entre acanhado e professoral, Yeda lê em voz alta a carta: “Filha, aqui é o retorno ao lar espiritual, ao lar eterno. Um lugar de luz e de amor. A Terra é a escola, onde aprendemos e evoluímos, onde nossos espíritos se aperfeiçoam. O futuro é o prêmio para os bons na terra ou o sofrimento para aqueles que desprezaram seus irmãos. Com o coração em paz, visito sempre vocês. Eu e sua mãe as abençoamos. Matamos nossas saudades e oramos a Deus para que as ampare. Com certeza nos encontraremos novamente. Seu pai, Valdemar. Um beijo.” Yeda tira novamente os óculos, deixando-os pendurados contra o peito pela corrente de plástico. Ela fecha o caderno com um sorriso nos lábios finos. o silêncio é uma prece Os carros estacionam em frente à Igreja Presbiteriana do Parque São Domingos, 94

novembro • 2018

na Zona Norte de São Paulo. Um letreiro com informações sobre os horários do culto e da escola dominical ilumina os rostos daqueles que se aproximam da casa de portões de ferro localizada diante da igreja.

Pouco a pouco, é possível distinguir um grupo de pessoas atrás das grades verdes.

Sob uma tela emoldurada na qual foi pintado à óleo a frase “o silêncio é uma prece”, as pessoas conversam em sussurros.

Ali, as pessoas esperam. E enquanto esperam, mais pessoas chegam para também esperar. “É às sete horas”, afirma confiante um deles. “Tem certeza? Acho que é às sete e meia”, engana-se outro. É noite de psicografia na casa de portões verdes da rua Homero Salles. Aqueles que chegam, trazem consigo um pequeno papel retangular com números de um a 20. Três semanas antes, cerca de cinquenta pessoas se reuniram no mesmo local para retirar uma senha que permitiria o recebimento de uma carta psicografada. No entanto, somente 40 são distribuídas: 20 para a primeira segunda-feira do mês, 20 para a semana seguinte.

Uma porta é aberta. Por trás dela surge a cabeça grisalha de Yeda. Nesta noite, junto de mais cinco médiuns, ela realizará uma sessão de psicografia coletiva no piso superior do centro espírita.

Os corredores do centro espírita Grupo Fraternidade Cristã Sociedade Espírita Beneficente são estreitos. Pelas paredes verdes estão distribuídos quadros que reafirmam: “O silêncio é uma prece”. Ao entrar

no local, somos levados a uma espécie de antessala na qual duas mulheres aplicam o passe, ritual conhecido como “imposição de mãos”. Presente em diversas religiões, a técnica (bastante difundida entre os espíritas) visa a transfusão de energia espiritual de uma pessoa para outra. A pequena antessala dá acesso a um largo saguão, onde duas longas fileiras de cadeiras apontam para uma mesa. As pessoas devem se dirigir até ela para depositar, junto com a senha, uma ficha contendo informações sobre aquele que irá ditar a carta para o médium. É necessário informar o nome do desencarnado, o dia e a causa da morte, bem como quem deseja receber a mensagem e o grau de parentesco.

Somos guiados para o segundo andar.

Orientados por uma das seis médiuns que participará da psicografia coletiva, entramos em um quarto localizado nos fundos da casa. A luz verde incide sobre os móveis, dando a impressão de estarmos dentro de um aquário. “É a cor da nossa casa”, ela explica. “Ela nos traz proteção.” Somos acomodados em assentos próximos a uma das paredes. Ao todo, seis mesas e doze cadeiras fazem parte do ambiente: uma cadeira para o médium, outra para seu “estagiário”, responsável por passar as fichas de inscrição e também por separar as cartas escritas que serão distribuídas após a sessão.

Antes de dar início à psicografia coletiva, os médiuns organizam um círculo com as cadeiras no centro da sala. É o momento

da prece. De olhos fechados e mãos espalmadas contra os joelhos, Glauce (uma das médiuns), começa a oração: “Vamos agradecer aos pretinhos velhos, que vêm com suas tochas iluminadas desde o corredor da frente até o corredor de trás. Essas tochas vão passando por toda a casa, pelo teto, pelas paredes, pela mesinha onde vamos fazer nosso trabalho, retirando toda energia negativa que possa ter aqui.”

Em seguida, ela dá início a um Pai Nosso murmurado, em tom monótono.

Assim como a médium, os demais também balbuciam palavras surdas. Com um gesto lento, eles dão as mãos entre si. Ao fim da prece, Glauce se dirige aos colegas, perguntando se eles têm “alguma percepção que queiram apontar”. Uma senhora vestindo touca vermelha pede permissão para falar: “Sempre no início da oração vejo aqui um grupo de crianças muito bonitas.

Elas se apresentam bem no início, dando uma voltinha e depois indo embora”. Outra médium também pede a palavra: “Hoje eu vi caírem sobre todos nós pétalas de flores”. Um terceiro complementa: “Muitas coisas acontecem aqui, energeticamente falando. Não dá para apontar tudo, porque o plano espiritual é bem rápido.”

A roda repete em monocórdio: “Graças a Deus”, para na sequência silenciarem e se levantarem. Eles retornam às cadeiras às antigas posições e sentam-se à mesa.

Cada escrivaninha recebe um copo d’água benzida. Sentados diante de uma folha de 95

novembro • 2018

narra tivas papel sulfite, os médiuns fazem correr os lápis. É preciso que a psicografia seja escrita com grafite e não com caneta, diferentemente de como Yeda prefere escrever.

“A caneta esferográfica é mais rápida”, lembramos dela comentando a razão da preferência. Também nos lembramos das palavras de Thaumaturgo: “É importante que a psicografia seja feita a lápis porque o grafite vem da terra; é natural.”

Por cerca de 40 minutos, os médiuns escrevem cartas sob a iluminação verde.

A música ambiente que escapa dos altofalantes quase desaparece sob o som das vozes de crianças brincando em uma casa vizinha e o ruído seco das pontas dos lápis atravessando uma extremidade do papel à outra.

“Vamos encerrar mais uma noite de atividade agora”, diz Glauce: “Vamos agradecer aos espíritos que aqui estiveram trazendo essas cartinhas, para que seus entes queridos leiam e entendam. Para que essas cartinhas afaguem um pouco a dor da separação. E que deus abençoe todos nós.” Os médiuns pousam os lápis sobre a mesa. Alguns bebem a água benzida, outros permanecem calados e de olhos fechados, como se estivessem se recuperando de uma tontura aguda. Eles se levantam, cada um com um maço de cartas em mãos. Os textos são entregues à coordenadora, que realizará a distribuição, no saguão principal.

Glauce chama os destinatários. Uns não conseguem conter a ansiedade em

Os médiuns de seus assistentes preparam-se para dar início à sessão de psicografia

96

novembro • 2018

receber a correspondência e caminham apressados de encontro à médium. Já os mais céticos recebem o papel das mãos de Glauce sem esboçar curiosidade. Lágrimas percorrem o rosto maquiado de Eliane, traçando pelas bochechas da servidora pública aposentada duas linhas escuras. “É difícil eu me emocionar”, ela diz, limpando a mancha de rímel. “Eu sou muito…”.

Ela interrompe a sentença, procurando no ar as palavras que faltam para completar a frase. “Embora eu ache muito difícil acreditar, eu acabei me emocionando.”

Depois de se aposentar, Eliane passou a se dedicar à pintura. Pinta telas abstratas, mas também “uma ou outra natureza morta”. “Pensei em me inscrever no curso de pintura mediúnica”, diz, dobrando a carta e colocando-a na bolsa a tiracolo. É a primeira vez que pede uma carta psicografada. Para a ocasião pediu uma mensagem de Flavio, ex-marido, morto aos 65 anos, em 2013, devido à uma “infecção cerebral”.

“Eu tinha uma necessidade…”, diz Eliane, de forma elíptica. “Foi uma forma muito brusca como ele morreu. Ele estava tão bem… Isso me deixou muito mal, embora eu tenha segurado bem as pontas. Precisava sentir e saber que ele está bem.”

A caminho do portão, em frente ao qual grupos de pessoas se reúnem com as cartas em mãos, Eliane diz: “Antes eu tinha muito medo dessas coisas de espírito, só que depois que meu marido morreu eu passei a encarar de outra forma. Eu parei de ter medo.”

Paramos sob o letreiro da paróquia da igreja evangélica. Colocando em prática o conselho dado por Thauma, decidimos prestar atenção aos sinais. Observamos as luzes do centro espírita serem apagadas uma a uma e os

médiuns deixarem a casa. A senhora de touca vermelha despede-se acenando, toda sorrisos, carregando debaixo do braço esquerdo uma pasta de couro. Atrás dela vêm Yeda e Glauce, caminhando lado a lado. Enquanto deixam a casa, as duas comentam sobre uma carta em especial, psicografada por Yeda: “Um menino disse que a desencarnada não se referia a ele da maneira que você escreveu”. Yeda responde com o mesmo sorriso nos lábios finos de quando fechou o caderno de cartas psicografadas: “Pede para ele ir falar com ela então.”

“

Eu era o melhor amigo de meu pai. Hoje, meu pai é meu neto. Eu sei que é ele, só que agora, em vez de me chamar de filho, ele me chama de avô”, diz Thaumaturgo

Pinturas psicografadas por médiuns e alunos do curso de evangelização do centro espírita

97

novembro • 2018

tristeza companheira Rodrigo Petronio, doutor em literatura comparada e professor da Faap (Fundação Álvares Penteado), explica como a melancolia pode ser uma força revolucionária por brenda zacharias

99

novembro • 2018

sinapses

N

a cultura ocidental, a melancolia foi teorizada ainda na Antiguidade, na Grécia. A palavra deriva dos termos “mélas” (negro) e “cholé” (bílis). Justapostos, designam o líquido negro expelido pelas pessoas diagnosticadas com uma tristeza profunda, sem motivo aparente, após ingerirem uma infusão de ervas [ver quadro ao lado].

Segundo Rodrigo Petronio, doutor em literatura comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e Professor Titular da Faculdade de Comunicação (Facom) da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), a melancolia não é apenas uma tristeza passageira.

Ela é uma característica fundadora do indivíduo e se manifesta em diferentes intensidades ao longo da vida.

Ela também é um paradoxo: a potência desejante do melancólico é maior quando ele reconhece o vazio da própria existência ou a ausência de deus e do sentido do universo. Vontades essas que se manifestam na tentativa de imaginar novas realidades e de se aproximar delas por meio de projetos políticos e artísticos, exemplifica Petronio. Assim, a melancolia pode ser vista como uma mola para grandes feitos e produções criativas: “Viver em uma estrutura domesticada, total-

100

novembro • 2018

mente preenchida de coisas e sentimentos, significa estar em uma zona morta do desejo. Quem se acha completo, está preso em si mesmo”, diz ele As pessoas ainda se sentem melancólicas?

Como esse termo se dissociou da tristeza?

A melancolia faz parte da estrutura de um sujeito, não é sazonal. Ainda assim, está sujeita a flutuações durante certos períodos da vida, mas não quer dizer que será suspendida. Por outro lado, as pessoas podem se sentir angustiadas, desmotivadas ou tristes.

Historicamente, é difícil entendermos quais eram os graus das classificações. Mas, na Idade Média, Tomás de Aquino introduz o conceito de acídia, que é entendida como uma espécie de desânimo, uma tristeza profunda. Ela era vista também como um pecado, porque impossibilitaria o indivíduo de se engajar em uma boa ação, em nome do bem. É possível identificar a origem da melancolia?

Não, ao menos do ponto de vista da psicanálise, já que esse assunto foi retomado na modernidade. Sigmund Freud trabalha bem isso no livro Luto e Melancolia (1917).

Se a pessoa tem um trauma, uma perda,

e consegue elaborá-las, ela está de luto. É preciso reconhecer esses sintomas para que haja uma renovação do desejo. No caso da melancolia, não é possível recuperar tais elementos. É por isso que em textos mais antigos, de Hipócrates ou Aristóteles, falase de uma angústia sem objeto.

O que a difere de uma patologia?

Basicamente, as relações sociais e culturais do período. A melancolia está muito ligada à criatividade, por exemplo. Há um texto atribuído a Aristóteles chamado Problema 30, em que se trabalha a noção de que todo ser humano genial carrega consigo um componente melancólico. A relação fica interessante porque a melancolia promoveria, assim, um desregramento dos humores em função de apenas um.

Uma psicopatologia não consegue traduzir a melancolia em criações reais.

O francês Michel Foucault, mais tarde, fala da taxonomia da loucura, que

está ligada a um sistema que precisa da saúde mental e física dos indivíduos para ser produtivo. Então, ficaria mais fácil confinar quem está fora dessa chave de normalidade do que repensar o sistema.

Os surtos que levavam um sujeito para o manicômio, por exemplo, poderiam ser os mesmos que o estimulava a fazer poemas ou ter visões, na Antiguidade. É possível falar em cura?

De certo modo, sim. Para Freud, o homem é incompleto, fraturado. A noção de felicidade não existe porque não há a ideia de plenitude do sujeito — ele está sempre em função de um desejo que, por sua vez, é sempre um objeto faltante. Talvez a cura esteja postulada na compreensão de que não somos completos, de um paradoxo: se a gente quer se curar, nunca vai conseguir, ainda mais se entendermos como cura a busca pela plenitude. Porém, não quer dizer que não existam formas mais ou me101

novembro • 2018

sinapses

nos autênticas de lidarmos com o desejo. É entender que há uma nova doença em curso: a doença da completude. Isso se reflete em objetos intramundanos, ou então no consumo que tenta preencher esses vazios.

Dá para dizer que a vida social pressupõe negar a tristeza?

Construímos uma sociedade em que todos os afetos podem ser coisificados ou discernidos entre patológicos e saudáveis. Substituir a melancolia por esses objetos não adianta muito, porque são parciais e não ligados a ela. Há uma linha da psicanálise que conecta essa questão ao liberalismo e vê a falta como uma potência. Na tese do esloveno Slavoj Žižek, por exemplo, essa ausência projeta um desejo e pode ser transformada. Sei que sou fraturado, mas quando imagino que consigo me completar, tapo o buraco da melancolia e vejo novas possibilidades para um mundo de coisas.

A medicalização é apenas uma construção dessa sociedade ou existe um momento em que deve ser procurada?

Existem momentos e instâncias em que precisamos procurar a medicalização. O que essa larga escala está gerando é o reverso, ou seja, muitos casos que não precisariam de medicalização se a pessoa não tivesse o intuito da completude e permitisse que o distúrbio de humor fosse autorregulado. Isso não é só uma construção da modernidade. Acho um pouco exagerado 102

novembro • 2018

Os cidadãos de Abdera, cidade localizada na costa da Grécia, preocupavam-se com a sanidade do filósofo Demócrito, uma das primeiras pessoas a conceber a noção do átomo.

Por isso, chamaram Hipócrates, pai da medicina ocidental.

Ele preparou um medicamento feito a partir da raiz de heléboro, uma flor semelhante à rosa silvestre, que agia como purgante, causando diarreia e vômitos de cor negra. Acreditava-se que essas substâncias expelidas do corpo do paciente causavam o distanciamento dele em relação ao mundo e às outras pessoas. Assim, livraria o corpo da melancolia.

Como afirma o historiador e médico suíço Jean Starobinski em seu livro “A Tinta da Melancolia: Uma História Cultural da Tristeza” (2012), as pessoas que acusavam Demócrito de loucura não o compreendiam direito. Nessa ocasião, Hipócrates decidiu conversar com o paciente antes de aplicar a medicação, sobre os mais diversos assuntos: física, filosofia, e a condição humana. A partir disso, concluiu não haver insanidade alguma em Demócrito; e que, se houvesse algum tipo de loucura, ela estava na atitude dos demais cidadãos em não tentar compreender as dores do filósofo.

dizer que ela é a pior praga da humanidade e que gera todas essas doenças apenas para administrar a vida alheia e dar lucros.

Recuando no tempo, vamos ver que havia mulheres que eram queimadas vivas por serem melancólicas, mas a sociedade achava que eram bruxas. É só imaginar Van Gogh pintando no século 10 ou 12; não teria conseguido produzir nada porque seria queimado. O francês Antonin Artaud, que produziu uma dramaturgia totalmente visionária e melancólica no século 20, a mesma coisa. Nós, modernos, temos as nossas contradições e elas não são melhores ou piores do que as de outros tempos.

Como a melancolia se manifesta na cultura?

A Divina Comédia (1304-1321), de Dante Alighieri, tem algumas coisas ligadas à melancolia — um dos círculos é ocupado pelos acometidos de acídia. Na modernidade, ela continua vinculada à genialidade, se pensarmos em Van Gogh, na pintura, e nos poetas franceses Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire. O spleen, termo ligado à obra dele, tem tudo a ver com a melancolia, já que trata de um tédio abissal, sem objeto.

Como a melancolia consegue resistir no imaginário coletivo?

O capitalismo hegemônico é uma tendência que atingiu o planeta inteiro. Ele submete e traduz todas as coisas em objetos.

Com isso, produz uma coisa muito estranha: não conseguimos pensar em nada que não possa ser confiscado ou reduzido a um objeto. Todas as dimensões da vida estão reguladas por esse mecanismo. A melancolia pode ser pensada como uma fronteira de resistência, ou seja, uma esfera de afetos que não é objetivável e, portanto, não pode ser comercializada.

Acredito que nós não sejamos marionetes do capitalismo, mas sim co-criadores das coisas. A melancolia pode subverter esse tipo de estrutura planificada, que produz objetos para serem consumidos, e ressimbolizar. Isso seria uma das vocações da literatura e do escritor, de todo processo criativo. Ela é, sobretudo, a pulsão de vida que nasce em contato com o vazio.

103

novembro • 2018