Novo mundo Certa monotonia domina o ambiente. Nas paredes, sempre o mesmo tom de azul. Ao longo dos dias, sempre a mesma rotina. Nos corredores, sempre os mesmos rostos. Um elemento chega, porém, para mudar o ritmo constante dos dias: a câmera fotográfica. Uma câmera que não está ali apenas para registrar, mas também para filtrar o tédio. Através das suas lentes, o que era corriqueiro teve a chance de se tornar extraordinário. O azul das paredes recebia novos tons à medida que o obturador se abria e se fechava. A rotina mudava enquanto novas possibilidades profissionais se apresentavam. Os rostos de sempre contavam histórias antes desconhecidas. Histórias que ganharam forma em fotos, textos e vídeos. Foram impressas nesta revista e transformadas uma publicação digital (projetovoz.com, www.nitroimagens.com.br/site/projetos/a-estrela). Também ganharam as paredes e foram apreciadas em uma exposição itinerante. Tudo com o objetivo de chegar às ruas. Afinal, isso é tudo o que os autores desses relatos desejam.
Coordenação Nitro Imagens
Tiragem 1.000
Textos e fotos Antônio Tadeu Braulo Eduardo Everton Felipe Flávio Jadir John Caetano João Paulo Junio Marco Túlio Raimundo Rafael Matos Rafael Vilela Ronaldo Rubens Thairone Tiago Valdemir Wescley
realização
PATROC Í N IO
Edição Leo Drumond Natália Martino Projeto gráfico e diagramação Diogo Droschi Leo Drumond Oficinas Leo Drumond Natália Martino Gabriel Reis Impressão ??????????????????
APOIO
Sonho de liberdade p. 5
vote Wescley p. 17
Rabiscos de uma vida p. 7
Som atrás das grades p. 18
Regras de dois mundos p. 8
garimpo p. 20
Da rotina se fez o verso p. 11
Dos gramados para as grades p. 22
dia da tranca p. 12
Ausências p. 25
Dicionário p. 14
Preso: inimigo do Estado? p. 26
O preço de um erro p. 16
Daqui para as ruas p. 27 bastidores: Um sopro de liberdade p. 29
Sonho de liberdade A s r u a s e s tava m a s fa lta d a s . Eu não reconhecia as casas do cami-
nho, passei por um bairro inteiro que eu nunca tinha visto. Meu irmão parou o carro em frente a uma casa que eu também não reconheci. Era da minha mãe. Pintura nova, muro mais alto e dois cômodos a mais. Os celulares também mudaram. Nem consigo mais mexer neles, fiquei parado no tempo. Um sobrinho me mostrou um tablet. Não acreditei em quanta tecnologia existia dentro de um objeto tão pequeno. E os carros? Tetos solares, câmbios de marcha atrás do volante. Se eu demorasse mais para voltar, acho que os carros já estariam voando. Meu filho cresceu, está maior do que eu. A irmã do Caio também cresceu. Quando a vi pela última vez, ela tinha 13 anos. Agora, é uma mulher bem atraente. E eu, solteiro. Nós nos encontramos na sorveteria, era uma bela tarde de domingo. Ela me reconheceu, conversamos, saímos juntos. Rolou. Mas foi coisa de momento, não foi para frente. Garotos que estavam nas fraldas quando fui embora, agora estão no crime. 13, 14, 15 anos. Não era assim antes. Um deles morreu no dia que eu voltei. Era filho de um amigo meu. Isso não é certo, são os filhos que precisam enterrar os pais, não o contrário. Mas hoje, os jovens morrem cedo, é muita criminalidade. Eu também mudei. Envelheci. Foram dez anos e o mundo não parou para me esperar voltar. Conseguir emprego agora está mais difícil. Pedem ensino médio completo para qualquer trabalho, antes não era 4. A e s t r e l a
assim. Muitos dos meus amigos morreram. Outros mudaram totalmente de vida. Um deles veio me oferecer droga para vender. Disse não. Estava em condicional, queria evitar ao máximo qualquer problema. Já perdi muito tempo da vida na prisão. Mas quando a gente pensa que tudo vai ficar tranquilo, de repente vem um problema. “Ei, você tem que me pagar aquela droga”. O cara chegou já cobrando, mas essa droga era de dez anos antes. Eu não derramei (usei) a droga, só não paguei porque rodei, fui preso. Perdi a droga toda. Então não vou pagar nada. “Como assim não vai pagar? Você me deve, vai ter que pagar”. Se eu tivesse derramado a droga era a minha cara pagar. Mas eu fui preso com ela, então não vou pagar. “Vou te fazer pagar”. Comprei uma arma. Ideia errada, cabeça fraca a minha. Mas o cara podia aparecer para cobrar e eu tinha que me preparar. Ele não apareceu. Soube que o mataram. Não fui eu que matei, mas achei bom. Quero me afastar disso tudo. Não vou dizer que dessa água não bebo mais porque não sei o dia de amanhã. Mas agora tenho outros planos para mim. Reencontrei a mãe do meu filho. Ela me apresentou Jesus Cristo. Minha vida mudou. O que era vergonha, o Senhor honrou. Depois dos momentos ruins, outros bons virão. A vida passa por nós em segundos. E foram muitos segundos na cadeia. O mundo mudou. A estrela .5
Rabiscos de uma vida
P ode se r um c hine l o c ol or id o o u um p r e s t o - b a r b a de p l ás t ic o .
Qualquer coisa serve. Derrete tudo, mistura com um pouco de água e pronto, já temos a tinta. Com uma agulha, alguém vai picando o braço na forma do desenho que se quer. E aí é só jogar a tinta por cima. Claro que fica mal-feita e nem sempre as cores saem como se esperava. Mas é suficiente. Às vezes dá para subornar o agente e conseguir o material adequado – foi assim que Caetano desenhou uma tribal no braço*. Ele não podia esperar sair da cadeia para fazer a tatuagem. Precisava com urgência tampar outra. Eram letras japoneses que significavam Raiva, Morte e Demônio. A vida de Caetano virou um inferno desde que desenhou isso no corpo. Guerra no crime, brigas, prisão. Precisava tampar o desenho e fez a tribal por cima. Mas a do palhaço demoníaco, ele deixou. Foi uma das primeiras, fez quando começou a roubar, aos 16 anos. Palhaço nunca significa coisa boa em presídio. Com boina, matador de policiais; sem boina, ladrão. Caetano tem outras figuras demoníacas no corpo. Um Volverine diabólico, um dragão negro com olhos vermelhos, uma caveira com asas de demônio e até um alien. Tem também um Jason, aquele personagem de filme de terror – esse ele fez quando levou o primeiro tiro. Já faz muito tempo. Mas Caetano também tem no corpo lembranças de outras vidas, longe do crime. No lado esquerdo do peito, “mãe”. No lado direito, “dias melhores viram” - deveria ser “virão”, mas o tatuador errou. Deus está no pescoço, “Deus é mais”, logo abaixo de um revólver calibre 38. Uma tatuagem que significa sobrevivência. Caetano estava “cheio de treta” na cidade e resolveu fazer um teste. Roleta russa: se sobrevivesse, sairia do crime. A arma disparou, acertou a cabeça. Mas ele sobreviveu para contar a história – e guardou uma cicatriz profunda para prová-la. Marcas de uma vitória, registros de uma vida. *Relatos
que remetem ao sistema prisional comum. Na APAC, onde os autores estão atualmente, esse tipo de comportamento é duramente reprimido (vide artigo 124 do código da APAC, na página 9).
6. A e s t r e l a
A estrela .7
Regras de dois mundos
Um código que nasce par a colocar ordem no Sistema Carcer ário.
Regras bem definidas que determinavam a exclusão do convívio de todos aqueles que causavam transtorno. Foi com esse objetivo que nasceu, em 1969, o PJL (Paz, Justiça e Liberdade), no presídio de Ilha Grande (RJ). A criação do código é atribuída a um conselho liderado por Rogério Lembgruber, então membro do alto escalão do CV (Comando Vermelho). Presos covardes, que cometeram delitos até hoje inaceitáveis entre outros presos, não deveriam permanecer no convívio geral. Jack (estuprador), pé de pano (quem se envolve com mulher de preso), X9 (quem incrimina outros), rato (quem rouba companheiro de cela). Esses, que a administração coloque em celas de “seguro”, longe dos demais. Que ele frequente as áreas comuns em horários diferentes. Ou isso ou eles estarão sujeitos ao PJL. DAS PENAS
Artigo X9 – Levantar provas contra terceiros Pena – Atropelo (apanhar) Artigo Rato de Cela – Roubar de colega de cela Pena – Atropelo Artigo Jack – Estuprar Pena – Morte Artigo Ladrão de Boca – Roubar traficante Pena – Atropelo ou morte Artigo Pilantragem – Envolver-se com policiais ou bater em mulher Pena – Desligamento do crime com sugestão de morte ou atropelo Artigo Pé de Pano (ou Talarico) – Envolver-se com mulher de pessoa presa Pena – Morte sem direito a defesa
Aqui não tem molez a não. O crime não manda, vagabundo não tem
vez. PJL aqui não impera. A lei é o Código Disciplinar da APAC. Deveres descritos em 102 páginas. Pontualidade, participação em todas as atividades, respeito às autoridades e aos colegas, higiene pessoal, limpeza dos espaços comuns. Regras inegociáveis. Mas também temos direitos. Pratos e talheres nas refeições, banhos quentes e água gelada para beber. Onde tem PJL, banho, quando disponível, é frio. Para comer, se usa as mãos. Na APAC, uma cama para cada um, o dia fora das celas, filmes nos fins de semana. Privilégios para quem cumpre regras. DA APLICAÇÃO DAS SANÇÕES
Artigo 1º – Faltas leves serão punidas com pontos amarelos. § 1º – O recuperando com pontos amarelos deverá permanecer um dia ou mais na cela durante todos os horários de lazer. § 2º – Quatro pontos amarelos serão convertidos em um ponto vermelho. Artigo 2º – Faltas médias serão punidas com pontos vermelhos. § 1º – O recuperando com um ponto vermelho perderá benefícios, como direito à visita. § 2º – O recuperando com um ponto vermelho que cometer outra falta disciplinar receberá um ponto azul. Artigo 3º – Faltas graves serão punidas com pontos azuis. § 1º- O recuperando com um ponto azul será encaminhado ao juiz e a sanção pode ser transferência para o regime fechado pleno (sistema prisional comum). DAS PENAS
Artigo 23 – Não usar o crachá de identificação Pena – um ponto amarelo negativo Artigo 124 – Possuir ou utilizar máquina de tatuagem Pena – um ponto amarelo negativo e comunicado para a administração Artigo 170 – Portar ou usar drogas Pena – um ponto azul e comunicado ao juiz
8. A e s t r e l a
A estrela .9
Da rotina se fez o verso ( t r echo do r a p de Ma no Ma rcel o)
Pa r a q ue d e s a nim a r se toda prova tem escape. Desvie das maldades
e dos desejos da carne. Jogue por terra o sentimento, o fel amargo do Sistema Carcerário. Minas bem representado. A APAC veio. Chegou abrindo as portas. Mudança radical. Já era o criminoso. Já era o velho homem. Fez de mim assim um vaso novo. Existe aqui um quadro de atividades. Manhã, tarde e noite. Nem me lembro mais das grades. Cento e duas páginas faz parte estudar. Direitos e deveres, regulamento disciplinar. Das faltas e das sanções, o mérito e a obrigação. Primeiro o ato, o trabalho e valorização. Assim vou praticando, faço o bem para você. A mão que te roubava ontem, hoje estende para te erguer em meio à luta. Preparação para encontrar a família no domingo. Visita bem alegre, sorriso verdadeiro. Certeza da liberdade, é isso mesmo que eu anseio. Para que desanimar se toda prova tem escape. Desvie das maldades e dos desejos da carne. Jogue por terra o sentimento, o fel amargo do Sistema Carcerário. Minas bem representado.
10. A e s t r e l a
A e s t r e l a . 11
Dia da tranca
12. A e s t r e l a
“L e mb r e -s e d e o n d e v o c ê v e i o ”. Era esse o tema do debate, no
qual cada um falava da sua experiência no sistema prisional comum. Foi aí, durante um curso de aperfeiçoamento do método APAC em 2004, que surgiu a ideia. Partiu de um recuperando, Eduardo Padilha, condenado a 25 anos de reclusão. Ter um dia por mês para que todos os recuperandos permaneçam nas celas, sem sair nem mesmo nos horários da alimentação. Para lembrar do sistema penitenciário comum. Para olhar para o lado espiritual. A sugestão foi aceita e, desde então, as celas não se abrem na manhã da primeira terça-feira do mês. Os recuperandos só saem delas às 16h, quando, em um ato socializador, são escolhidas a cela mais organizada e o recuperando do mês. Reconhecimento que pode ser convertido em pequenos benefícios, como uma visita íntima a mais no decorrer dos próximos 30 dias.
A e s t r e l a . 13
P o r tão d e s a íd a – Blindado J o g o s – Passatempo
DICIONÁRIO
C in z e ir o – Boca suja Ga r r a fa P e t – Barriguda Ca r ta – Chorona A ç úc a r – Areia
Va s o s a ni tár i o – Boi R á d i o – Papagaio Ca f é – Moca C o l c h ão – Latro Sa c o l a p l ás t i c a – Chiadeira A g u l h a – Aranha
Pão – Marroco C hin e l o – Táxi S u c o – Veneninho C o l h e r – Guela T o a l h a – Praiana
L â m pa d a – Sol C o r ta d o r d e u n h a – Quebra-gelo I s q u e ir o – Dragão O v o c o z id o – zoiudo O v o f r i t o – disco voador
B i s c o i t o s – Crocante
C e l u l a r – Bumba
R o u pa s – Brechó
R e v i s ta P o r n o g r áf i c a – Gibi
Ca m a – Jega
D i a d e v i s i ta – Natal
J a n e l a – Ventana
B íb l i a – Palavra
P o r ta d a c e l a – Capa
C âme r a f o t o g r áf i c a – Rouba cena
Ca n e ta – Pena B r a n c a – Folha R e l óg i o – Bobo Sa b o ne t e – espumante 14. A e s t r e l a
L in g u i ç a – Sonho de noiva
O preço de um erro 16. A e s t r e l a
José Gonçalves já estava prestes a sair da cadeia. Passou anos
cumprindo pena no regime fechado, chegou ao semiaberto e, finalmente, ao aberto. Passava os dias na rua trabalhando e cadeia, só à noite. Em um desses dias, não resistiu: tomou algumas latinhas de cerveja antes de voltar. E caiu no teste do bafômetro. Tentou enrolar, disse que tinha comido uma bala Halls, refez o teste. O bafômetro quase estourou. A pena para essa falta é o retorno ao regime fechado. José Gonçalves desesperou-se. Escalou o muro e pulou. Sete metros de queda. Acabou com as duas pernas quebradas. Fratura exposta. Fez uma cirurgia, colocou platina nas duas pernas e agora usa pinos externos. Não apenas voltou ao regime fechado, como precisa contar com o apoio dos colegas para tudo. Não sai da cela sozinho, não toma banho sozinho, não troca curativos sozinho. E sente dores. Pelas pernas quebradas e pela liberdade, agora muito mais longe. A e s t r e l a . 17
Som atrás das grades
T e m BM W, t e m La m b o r g h i n i e t e m c a r r e ta . Toca rádio, mas
também MP3. Toca rap e funk, sertanejo e pop rock, toca também música gospel. Cada um tem o seu rádio, mas ninguém tem seu espaço. Cada cela, um acordo. Cada acordo, uma trilha musical.
18. A e s t r e l a
GARIMPO Sonhos em rodas
Rogério Augusto de Morais 42 anos
O pa i, c a minho ne ir o . Rogério o acompanhava
nas viagens e sonhava um dia ser como ele. Cresceu, conseguiu sua carteira de habilitação e começou a trabalhar. O sonho passou a ser comprar sua própria carreta. Financiou e conseguiu. Logo, veio a segunda carreta. Os negócios iam bem até que foi preso. Vendeu uma das carretas para pagar o advogado. A outra, ficou com um tio - até que um caminhão de petróleo bateu nele. Incêndio. Ele não tinha seguro. Ficou sem nada. Mas de carretas continuou a tirar seu sustento e dos seus pais que estão lá fora. Começou a construir réplicas de carretas de mais de um metro, vendidas como artesanato. O incêndio destruiu a carreta, mas não o sonho.
Traçados de um dom
Everton Delilano da Silva 28 anos
Navegar é preciso Rangel de Souza 36 anos
S e m a u x íl i o - r e c l u s ã o e sem família com
condições de ajuda-lo financeiramente, Rangel tira seu sustento do artesanato. O lucro chega a R$ 250 por mês. É com esse dinheiro que ele mantém seu filho do lado de fora. O dinheiro compra alguma coisa para comer, material escolar e às vezes até alguma peça de roupa. Aprendeu o ofício antes de ser preso. Aperfeiçou na APAC. Quer continuar com o trabalho quando voltar às ruas. Atualmente está terminando um barco com inspiração bíblica, a Arca de Noé. “Daqui a alguns dias, em outra vida, talvez eu esteja navegando com Jesus Cristo lá no céu”.
Um talento para passar o tempo Bruno Rezende Siqueira
E v e r t o n i a pa r a a e s c o l a e, enquanto a pro-
fessora falava, ele desenhava. Era assim que matava o tempo. Na quinta série, mudou de escola. Uma professora descobriu seu talento grandioso e o inscreveu em um concurso. Entre mais de 100 pessoas, foi o escolhido. Ilustrou um livro. Chegou a ganhar algum dinheiro desenhando. Uma imagem da Nossa Senhora que fez foi parar no Vaticano, mandaram para o papa. Ganhou uma bolsa de estudos em Toronto, no Canadá. Perdeu a oportunidade. A essa altura, já havia se afundado nas drogas. Esqueceu o desenho. Cometeu crimes. Foi preso. Só na APAC pôde se lembrar de novo do talento. Os colegas pediam que ele desenhasse para enfeitar as cartas que enviariam para as namoradas. Eram coisas simples e Everton foi se lembrando de como era desenhar. Um dia, o desafio cresceu: consegue copiar essa foto? Nunca tinha feito, mas tentou. Conseguiu. Desenhou também o logotipo desta revista. “O que tenho em mim é um dom e agora eu quero me qualificar”, diz. 20. A e s t r e l a
40 anos
N o in íc i o , e r a m o s b o nés . Mas Bruno aprendeu rapidamente e se enjoou também rapidamente do trabalho. Aí vieram as mandalas. Gostou tanto que se tornou o maior especialista do assunto na APAC. Com jornais velhos, aprendeu a reciclar e a criar novos formatos - da Rosa dos Ventos à Estrela de Davi Apesar do talento, não tem grandes pretensões. Aprendeu o ofício para cumprir o método da APAC, que exige o trabalho na laborterapia como forma de ocupar o tempo ocioso. Não pretende segui-lo ao sair da unidade. Sempre foi motorista de caminhão e assim quer seguir seu caminho ao ganhar a liberdade.
A e s t r e l a . 21
Um craque sem troféus
Foi nadando que ele começou.
Andrey Leonardo, hoje com 33 anos, ganhou vários campeonatos de natação quando criança. Também nas corridas se destacava. O condicionamento físico diferenciado levou a convites de escolinhas de futebol e um talento reconhecido por observadores de clubes profissionais o levou aos gramados. Balançou as redes várias vezes, em vários estádios. Virou referência para outras crianças que, um pouco mais jovens, disputavam a oportunidade de entrar em campo segurando as mãos de Andrey. Mas a fama também trouxe facilidades que a pouca idade não soube administrar. As drogas chegavam às suas mãos sem que ele precisasse se esforçar. Festas, mulheres e drogas viraram rotina. E foi assim que os anos de futebol e sonhos se transformaram em anos cheios de nada na cadeia.
1988 Aos sete anos, Andrey se destaca em uma corrida para crianças e jovens entre 7 e 15 anos e é o campeão geral da competição, realizada em Itaúna.
1989 Depois da corrida, ele é convidado para jogar no time infantil do Tropical Tênis Clube, em Itaúna, e, em seguida, vai para uma escolinha de futebol.
1990 Escolinha de futebol.
1992 É o artilheiro de um campeonato regional e acaba convidado para fazer um teste no Clube Atlético Mineiro. Aprovado, entra logo no primeiro jogo e faz o gol decisivo da vitória.
1993 É campeão mineiro com o time infantil do Atlético. Logo depois, perde o ônibus que levou a equipe para jogar um amistoso e, com raiva, acaba se apresentando para jogar no Cruzeiro, onde também passa no teste.
1994 Não pôde disputar os campeonatos pelo Cruzeiro, por questões legais do contrato anterior com o Atlético, e acaba indo para um time de Passos. Desanimado por estar em um time menor, abandona o futebol.
1995 Começa a beber e conhece as drogas, primeiro a maconha, depois a cocaína. A pequena fama de jogador juvenil o ajuda a ter acesso a drogas e a mulheres.
1996 Andrey volta a disputar campeonatos locais em Itaúna. É convidado a fazer um teste no Palmeiras, passa, mas o empresário não aceita a proposta financeira do clube.
1997 Vai para o Rio de Janeiro e passa a integrar o time juvenil do Fluminense. Começa a frequentar as favelas cariocas e afunda-se no uso da cocaína. Na tentativa de parar, sai do time e volta pra Itaúna.
1998 É convidado para voltar para o Atlético, mas o secretário de esportes do município de Itaúna desencoraja o técnico da equipe ao falar sobre o envolvimento de Andrey com drogas.
1999 Vai jogar no Vila Nova, em Nova Lima (Região Meropolitana de Belo Horizonte). Ajuda a equipe a se classificar em primeiro lugar no campeonato mineiro em uma chave que tinha o Cruzeiro como favorito.
2000 O Vila Nova já não paga seu salário há meses, então Andrey volta para Itaúna. No carnaval, drogado, resolve roubar um caixa de banco. É preso com a picareta nas mãos.
2004 ...
2008 ...
2012 Respondia processo em liberdade quando, por acidente, colocou fogo em parte da casa enquanto usava drogas. Foi preso de novo, desta vez acusado por tentativa de homicídio da família.
22. A e s t r e l a
2001
...
2002 ...
2005 ...
2006 ...
2009 Sai da prisão depois de cumprir toda a condenação.
2013
...
2000 Volta a disputar campeonatos amadores de futebol e, paralelamente, trabalha como mecânico.
1991
Escolinha de futebol.
2003 ...
2007 Consegue o benefício da condicional, mas em algumas semanas acaba preso de novo por violar regras da liberdade assistida. Volta para a cadeia.
2011 Volta a se envolver com drogas e derrama sangue na encruzilhada para fazer um pacto com o diabo: que ele pudesse matar seus inimigos antes de morrer. Passa a andar com facas de açougueiro. Em uma briga, machuca um homem e acaba preso de novo, acusado de lesão corporal.
2014 Vai transferido da cadeia pública de Itaúna, Santana, para a APAC. Volta a estudar e a sonhar: quer ajudar crianças e jovens de Itaúna interessados em futebol a se profissionalizar.
A e s t r e l a . 23
Ausências É um a c o r r e r i a . Alguns querem tomar banho, outros querem passar
as roupas. Também temos que arrumar o pátio para a chegada da família. À medida que o tempo passa, a ansiedade aumenta. Será que a família vem? E a namorada? Vem? 14h30. Começam a chegar alguns familiares. Sorrindo. No sistema comum, eles chegam chorando. Revista íntima, presentes destruídos. Até os sabonetes são cortados em pequenos pedaços durante a revista. Na APAC não. Respeito. O dia passa rápido. As visitas se vão, a ausência fica. Um telefonema por semana, algumas cartas. E a ausência que não diminui. Nem a ansiedade – pelo próximo domingo, pelo dia da liberdade.
A e s t r e l a . 25
Preso: inimigo do Estado?
Da A PA C d e I ta ún a saem diaria-
Daqui para as ruas
Entrevista: Juiz Marcelo Loureiro
N o muni c íp i o d e Ca c h o e ir a d e I ta p e mir im , no Espírito Santo, uma
unidade da APAC recebe homens que cumprem pena em regime semiaberto. Uma reforma em andamento prepara o local para, em breve, receber também o regime fechado. Em seguida, outra unidade deve ser construída para os homens e a atual abrigará mulheres privadas de liberdade. Quem explicou todos esses planos para a unidade capixaba foi o juiz Marcelo Loureiro, que está à frente do movimento de implantação do método APAC no Espírito Santo. O juiz esteve na unidade de Itaúna para conhecer ainda melhor o trabalho e foi entrevistado pela equipe d’A Estrela. Sempre assistimos a rebeliões em penitenciárias. Qual é a causa do caos do sistema prisional? Algumas pessoas veem o preso como inimigo do Estado e a ele é reservado um tratamento que desconsidera o óbvio: essas pessoas vão retornar ao convívio social. E o tratamento dado a uma pessoa gera sempre uma reação. O retorno virá proporcionalmente à violência e o desrespeito com que a pessoa é tratada. Precisamos ter isso de forma clara e deixar de produzir violência nos presídios para produzir respeito e dignidade. A APAC já nos mostrou como fazer isso. Como? Nas unidades tradicionais, há uma dificuldade para receber os familiares e a construção de uma visão de mundo distorcida, na qual só se vê opressão. Aqui, encontramos pessoas sadias, querendo viver, buscando se reaproximar dos familiares. Tudo isso é muito bem construído na APAC, onde há acolhimento e respeito. É isso que transforma as pessoas. 26. A e s t r e l a
mente 2.500 peças de difusores de ar. Peças que, pelas mãos de oito recuperandos, chegam até todos os carros da linha Uno e pick-ups da Fiat. Mais do que trabalho, oportunidade. De repensar. De ficar longe das drogas. De aprender. De mostrar que podem confiar em nós. De começar de novo.
Qual a diferença entre o sistema prisional comum e o método APAC? A principal diferença é o tratamento dado às pessoas envolvidas, tanto a quem cumpre pena quanto a quem trabalha, e isso leva a transformações na vida de todos - inclusive dos visitantes. O efeito de uma unidade APAC é muito grande entre todos os que conhecem o que acontece entre suas paredes. Nós já sabemos como realizar algo muito melhor do que o que tem sido feito nas unidades tradicionais. Nós assistimos na televisão os políticos e empresários sendo presos e, em dez dias, já recorreram e já saíram da cadeia. E a gente fica aqui meses esperando as respostas dos processos. A Justiça trata de forma diferente pobres e ricos? O excesso de pessoas presas em algumas unidades prisionais, a total desassistência de advogados e defensores públicos, a sobrecarga das varas de execução penal, tudo isso faz com que os processos sejam mais demorados e as pessoas demorem a ter seus direitos atendidos. A pessoa que tem uma assistência maior, com advogados, acaba tendo acesso mais rápido a isso. Não é porque é mais pobre ou mais rica, é porque o serviço é melhor. O esforço da Justiça é em considerar o crime cometido e não o perfil da pessoa. Então como melhorar esse acesso à Justiça? A APAC pode ajudar nisso. Tenho informações de que essa assistência jurídica acontece de forma simples e muito mais eficaz nas APACs. A e s t r e l a . 27
bastidores
Um sopro de liberdade P e r mi t ir q u e h o me n s p r e s o s c o n t e m s u a s hi s t ór i a s e se posicionem sobre assuntos que lhes interessam. Foi com esse objetivo que nós chegamos à unidade masculina da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) de Itaúna (MG). Nas malas, equipamentos de trabalho, roupas para uma semana e muitas expectativas. Expectativas que foram aos poucos sendo confirmadas. A curiosidade natural de novatos frente a uma câmera fotográfica profissional. As dificuldades, também naturais, diante de uma ferramenta desconhecida. O receio com a traiçoeira língua portuguesa. O empenho em se aproveitar uma nova oportunidade. Nem tudo o que esperávamos, porém, se concretizou. Acreditamos poder oferecer a eles liberdade de comunicação, mas o que mais escutamos, porém, foi “não, não podemos falar sobre isso, vai dar B.O.”. Medo de problemas futuros dentro ou fora dos muros. Antigos comparsas que não perdoariam certas revelações. Punições administrativas. Assuntos que são proibidos na unidade prisional para evitar o conflito entre os condenados poderiam ser discutidos na revista? Eles decidiram o que contariam e como contariam – e foi essa a liberdade relativa que conseguimos oferece-los. Tudo devidamente pautado, os novos repórteres saíram à caça das suas histórias. Depois de aulas sobre textos jornalísticos e técnicas de fotografia e vídeo, eles
28. A e s t r e l a
ficaram sozinhos com os equipamentos e as pautas. Quando buscamos as câmeras, elas vieram carregadas de fotos e acompanhadas de textos manuscritos. Pequenos contos escritos a partir da reunião de várias histórias tomaram forma para falar de forma poética de realidades duras. O juiz, sempre tão implacável nas perguntas, passou a oferecer respostas. Detalhes de um cotidiano escondido dos olhos do mundo foram fotografados. Parte do que nos foi contado aos sussurros, nas noites compartilhadas na unidade prisional, não está aqui. Ainda assim, narrativas que merecem ser conhecidas preenchem essas páginas. Lembranças do sistema prisional comum e comparações com a APAC foram inevitáveis. Mas que fique claro: os relatos desta revista não refletem a opinião da APAC e são apenas fragmentos de memórias e posicionamentos dos que hoje dividem seu espaço. A Estrela, periódico que na década de 1940 publicava artigos de presos, renasce com as histórias desses homens de Itaúna. A eles, que nos revelaram parte das suas vidas e nos cochicharam segredos guardados entre os muros das prisões ou atrás das armas do tráfico, nosso muito obrigado. Outras Estrelas virão e muitas outras histórias ainda serão contadas.
A e s t r e l a . 29
Agradecimentos Esse trabalho só foi possível por causa de pessoas e empresas que acreditaram que grades não seriam capazes de destruir talentos. Que confiaram que homens não perdem a capacidade de aprender nem nas situações mais difíceis. Que apostaram na arte como instrumento de mudança. Que, acima de tudo, acreditaram que erros podem ficar para trás e que pessoas podem reescrever suas histórias. E deram uma oportunidade para que homens privados de liberdade se tornassem protagonistas das suas próprias histórias. Nossos sinceros agradecimentos a todos. À Universe Imports, que patrocinou a impressão destas revistas. À Artmosphere, que apoiou a exposição. À Nikon, que emprestou os equipamentos utilizados para contar estas histórias. E à APAC e à FBAC, que permitiram a realização deste trabalho dentro dos seus muros.