matador Florianópolis, 29 de novembro de 2012 | Edição 1 | Ano 1
Curso de Jornalismo da UFSC Atividade da disciplina Edição Professor: Ricardo Barreto Edição, textos, planejamento e editoração eletrônica: Gabriel Coelho Serviços editoriais: A Ditadura Envegonhada, de Élio Gaspari, www. ig.com.br, www.memoriasdeumaguerrasuja.com.br Colaboração: Júlia Schutz, Mateus Vargas, Centro Acadêmico Livre de Jornalismo Adelmo Genro Filho Impressão: Postmix Novembro de 2012
MATADOR
Confissões sangrentas
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articipei das execuções de terroristas em vários pontos do país e também estive presente aos atentados que visavam a ampliação da vida do regime militar. É deste modo que Cláudio Guerra, ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, resume suas atividades como agente da ditadura brasileira. Seu relato foi colhido pelos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, durante quase 3 anos e publicado no livro Memórias de Uma Guerra Suja (291 páginas, Topbooks, 2012). Muitos termos podem ser utilizados para definir o teor da obra, mas o mais utilizado - e provavelmente mais adequado - é “chocante”. Guerra - um assassino experiênciado, com uma contagem de corpos que se aproxima de uma centena - revela como friamente matou, explodiu, ocultou - e queimou - corpos para defender e prolongar a existência do Estado de Exceção. Foi tão eficiente como matador que acabou promovido a estrategista, planejando homicídos e atentados, sendo importante na comunidade de informações
- formado pelos ordade da abertura política. gãos estatais da reUma das revelações mais pressão, militares e o impactantes do ex-delegado Serviço Nacional de é sua participação na cremaInformações (SNI). ção de 12 militantes na usina O livro alterde açúcar Cambahyba, em na entre a primeira Campos (RJ) - dois dos quais pessoa - exigência se lembrou apenas depois do dos autores, que livro, ao visitar a usina acomdisseram à Guerra panhado pela Polícia Federal. estarem interessados A iniciativa de revelar os em ouvir e publicar crimes cometidos partiu do apenas o que ele pupróprio Guerra. Até a década desse assumir - e a de 1990 era poderoso no ES, escrita dos jornalis- Hisórias de um assassino reunidas Linha-dura queria Ditadura eterna reconhecido e temido como tas. A estrutura sejusticeiro e matador. Rogério gue uma ordem lógica e trata de dois tou diversos atentados, como o ao EstaMedeiros publicou uma série de momentos distinos: a repressão e a do de S. Paulo, em 1983. O ex-delegado reportagens sobre o policial, expondo manutenção do regime. Começa na conta também como se envolveu com a sua face verdadeira: responsável por primeira pessoa, narrando a elimina- Operação Condor e participou do infa- assassinatos encomendados e chefe ção dos adversários do regime militar me episódio (e fracasso) do Riocentro. do crime organizado no estado, ligae as execuções em que Guerra esteve Diversos crimes são contados do ao jogo do bicho e ao tráfico. envolvido. Depois, conta sobre as me- numa rápida sequência: as tentativas Foi exonerado e preso, cumprindo didas tomadas para desaparecer com de assassinar Leonel Brizola e Fernan- pena pelo homicídio do bicheiro Jonacorpos de militantes. do Gabeira, um atentado simulado à thas Bulamarques - crime que afirma As páginas seguintes, na terceira casa de Roberto Marinho, a morte do não ter cometido. Na cadeia, enconpessoa, são dedicadas aos coman- jornalista von Baumgarten. Uma reve- trou-se com a religião e virou pastor da dantes do ex-delegado, como o Co- lação importante e inédita é a explosão Assembleia de Deus. Influenciado pela ronel Freddie Perdigão e o Coronel da Rádio Nacional de Angola, para fé e pelo Subsecretário de Promoção Magalhães, bem como a estrutura da matar a cúpula do Partido Comunista e Defesa dos Direitos Humanos do comunidade de informações - que do país africano. governo Lula, Perly Cipriano, resolveu fica clara na descrição da decisão de Os detalhes são muitos: desde o revelar as atrocidades feitas. assassinar outro agente da repressão, financiamentos dos crimes, feito por Para tanto, entrou em contato com o delegado Sérigo Fleury. empresários e banqueiros, passando Rogério Medeiros - um dos maiores Chega-se, então, ao segundo perío- pela auxílio recebido de algumas em- responsáveis por sua derrocada no do: o combate à redemocratização. A presas da mídia até o envolvimento poder do Espírito Santo - que logo ideia era clara: “gerar ambiente de in- de agentes da CIA (agência de inte- viu a importante história que tinha segurança que prejudicasse a abertura ligência dos EUA) e o imenso poder nas mãos: apesar de ter sido um dos política. O plano era provocar derra- que a repressão possuia - poder tão maiores matadores do regime militar, mento de sangue, e culpar a esquerda” grande que parte dela se rebelou con- a participação de Cláudio Guerra na afirma Guerra, que planejou e execu- tra o próprio regime, com a proximi- repressão era ainda um fato inédito. Arquivo Pessoal de Golbery do Couto e Silva/HF
Antigo matador da ditadura expõe de modo cru a maneira como atuava
Lei da Anistia impede punições de esclarecer os Advogados do crimes, mas não Brasil (OAB), a pode aplicar peCorte Interamerinalidades. Além cana de Direitos disso, tanto o Humanos - que MPF quanto a PF condenou o Esesbarram na Lei tado brasileiro da Anistia, propela impunidade mulgada em 1979 dada aos responpelo general João sáveis pela morte Figueiredo, então Comissão da Verdade: esclarecer, não punir dos guerrilheiros presidente, transdo Araguaia - e a formando em inimputáveis pelos Anistia Internacional - que recomencrimes cometidos tanto os agentes do dou à presidenta Dilma Rousseff a regime quanto os que o combatiam. revogação da lei. A Advocacia-Geral A auto-anistia que se concederam da União e o Supremo Tribunal Feos militares é questionada por diver- deral, no entanto, entendem que a sas entidades, como a Ordem dos anistia é irrestrita e os criminosos da Roberto Stuckert Filho/PR
As revelações feitas por Claúdio Guerra no livro motivaram a sua convocação para depor na Comissão Nacional da Verdade (CNV), além de investigações do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF). O objetivo é apurar a veracidade das informações e garantir que venham à tona os métodos, responsáveis e vítimas do regime militar citados no relato do ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo - mas não necessariamente punir os culpados. A Comissão da Verdade, como define a própria lei de sua criação, não terá “caráter jurisdicional persecutório” - portanto, tem o dever
ditadura não podem ser punidos. Alheias às possíveis consequências, prosseguem as investigações baseadas em Memórias de Uma Guerra Suja. Acompanhado pela Polícia Federal, Guerra já visitou dois locais citados no livro como cemitérios clandestinos: a Usina Cambahyba e um matagal em Minas Gerais, onde o membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Nestor Veras teria sido morto. Além disso, o ex-delegado depôs ao MPF e à Comissão da Verdade, para esclarecer as atrocidades cometidas e se dispôs a trabalhar em conjunto com a CNV para procurar restos mortais de desaparecidos políticos.
Estado mata os próprios agentes Trinta e cinco dias. Esse foi o período que Florisvaldo de Oliveira sobreviveu após ser libertado da prisão. Passado o tempo, foi assassinato com 18 tiros. A morte de Cabo Bruno - nome pelo qual Florisvaldo ficou conhecido em São Paulo, ao chefiar um grupo de extermínio - teve dois motivos apontados: vingança ou queima de arquivo. Matar para apagar rastros é algo familiar para Cláudio Guerra - que foi, inclusive, ameaçado ao prestar depoimentos para o livro Memórias de Uma Guerra Suja. Mas sua experiência com o assunto é anterior. O caso mais célebre é o de Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo. Um assassino a serviço da Ditadura, assim como Guerra, o delegado “não respeitava a autoridade dos coronéis”, usava o poder em seu benefício e estava fora de controle - por isso, “tinha que morrer”. Após a morte do delegado, uma paranoia se espalhou pela comunidade de informações. “Passamos a conviver com o medo. Quem seria o próximo?” O medo era justificado. “‘Acidentes’ serviam para mascarar os assassinatos do nosso pessoal. Uma equipe de policiais do Rio foi totalmente eliminada”. Várias mortes por queima de arquivo ocorreram no período, nem todas de pessoas que faziam parte dos orgãos da repressão. Um exemplo é o jornalista Alexandre von Baumgarten, que, como conta Guerra “recebia dinheiro para apoiar o governo militar” por meio da revista Cruzeiro. No entanto, teria se tornado muito ambicioso e teve sua morte decretada. Acabou assassinado durante a “Operação Dragão”, montada com esse único objetivo.
“Eu era convocado e matava. Muito eficiente, passei a ter importância crescente na comunidade de informações”
Guerra
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Dec 1960 i
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Em 31 março de 1964, os militares tomam o poder. Freddie Perdigão, depois comandante de Guerra, usa seus tanques para defender os golpistas e ajudar a depor Jango, no Rio de Janeiro
Já como conhecido e temido delegado do DOPS do Espírito Santos, Guerra é recrutado para a repressão pelo coronel Perdigão e torna-se um agente do regime militar brasileiro
Guerra começa a ser acionado e a executar diversos adversários políticos da ditadura. São pelo menos cinco vítimas naquele ano, em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Recife
1964
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Claúdio Guerra trabalha como Oficial de Justiça em Minas Gerais e se envolve com disputas agrárias. Em uma só diligência, 40 pistoleiros e líderes camponeses são mortos
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A trajetoria de um assassino a servico do regime militar segundo ele mesmo
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